Você está na página 1de 340

Colleen Gleason

Atenção.

Esta obra foi digitalizada pelo Grupo As Valkirias para


proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício da leitura
àqueles que não podem pagar, ou ler em outras línguas. Dessa forma, a
venda deste e‐book ou até mesmo a sua troca é totalmente condenável em
qualquer circunstância.

Por favor prestigie o autor e incentive a editora comprando o livro.


Prefácio

O sofrimento da viúva

Um mês depois de perder seu marido, Vitória saiu às ruas de


Londres.

Na parte mais negra da noite, enquanto o resto da cidade


estava recolhido, em segurança, e a maioria dos membros da elite
havia se retirado para o interior, durante a temporada de caça,
Vitória Gardella Grantworth de Lacy, marquesa de Rockley,
caminhou sozinha pela região de cortiços conhecida como Seven
Dials.

O embotamento permeava seus ossos. O desencanto e a


dormência, mesclados com tristeza e raiva, profundas e corrosivas
que faziam suas pernas se moverem, à semelhança dos passos de
soldados, um pé diante do outro. Não era apenas em deferência a
seu estado de luto que ela usava preto, dos pés à cabeça, mas
também para permitir que ela se misturasse com as sombras,
entrando e saindo: ser vista quando assim o desejasse mas, caso
contrário, integrada à escuridão.

Ela usava roupas masculinas, para facilitar os movimentos e


porque tinham o cheiro de seu marido. Também as envergava como
um silencioso protesto contra o rigor da sociedade, exigindo que ela
ficasse sentada em sua casa às escuras e não fizesse nada por um
período de 12 meses. Seus lábios se curvaram sem graça, ao
pensamento do que diriam toneladas de matronas caso soubessem
de suas andanças.

A cartola, alta o suficiente para esconder sua grossa trança,


também tinha sido de Filipe. Quando a colocou pela primeira vez na
cabeça, ela havia sentido o perfume de alecrim da brilhantina que
ele usava nos cabelos. Agora o agradável, familiar, doloroso aroma
fora perdido no mau cheiro das fezes de cavalos, dos dejetos
humanos e outros refugos que lotavam as ruas de Londres, nos
piores bairros.

Aquelas ruas eram estreitas e próximas, com construções


erguidas a uma largura que mal dava passagem a um ser humano.

Quase não se via janelas, e quando havia, cada moradia


ostentava venezianas quase despencando ou portas mambembes,
senão ambas. Carruagens e mesmo montarias eram raridade,
especialmente nas primeiras horas da manhã, quando ainda estava
escuro e havia rufiões e bandidos à espreita de inocentes
desprevenidos.

Vitória sabia que não iria encontrar vampiros para caçar


nessa noite. Todos tinham escapado da cidade, com sua rainha,
Lilith, havia um mês.

Não, Vitória não esperava encontrar um morto-vivo para


fincar uma estaca de madeira nele, mas queria, sim. Ah, queria!
Precisava.

Tinha necessidade de sentir o sangue correndo por todo seu


corpo de novo, o sangue que parecia estar entorpecido entre um
fluir muito lento e uma parada, estufado como um lago coberto de
detritos, em suas veias. Tinha necessidade de se mexer, de se
esforçar, de sentir de novo. Tinha de se vingar.

Precisava de absolvição.

Vitória virou a esquina e imediatamente ingressou na sombra


do velho edifício de tijolos que circundara. Do lado oposto, no
espaço que era considerado uma rua, nessa área de Londres, ela
viu duas figuras.

Uma delas, um homem corpulento. A outra, uma mulher


jovem; na verdade, uma menina, porque mal alcançava as axilas do
sujeito. A meia-lua, incidindo sobre a rua, iluminava bem os dois.
Vitória podia ver que a garota estava apavorada, suplicava, lutava..,
enquanto o homem, se prevalecendo de sua força e altura, a
segurava pela garganta, ao mesmo tempo em que apalpava seus
seios, arrancando o corpete de seu vestido. As pequenas mãos dela
puxavam e arranhavam os braços peludos dele, tentando
alternadamente cobrir-se, tirar a mão que apertava seu pescoço e
afastar a outra mão do sujeito.

Vitória deu uma olhada ao redor, quando se permitiu sair à


luz, emergindo das sombras. Não havia ninguém nas proximidades;
se a garota havia sido trazida ali pelo homem ou se acabou se
perdendo por conta própria, aparentemente não existia ninguém
capaz de lhe oferecer socorro. Vitória tirou o chapéu de Filipe e
deixou sua longa trança cair ao longo da espinha. Queria que o
homem soubesse que uma mulher o faria ajoelhar-se.

Ignorando a estaca escondida nas profundezas de seu


vestuário, dentro do bolso de seu casaco, e descartando a faca
presa em sua coxa,Vitória se encaminhou até o homem, por trás,
silenciosa como um gato, e lhe deu um poderoso pontapé na base
das costas.

Com um grito de raiva, ele girou, sua mão carnosa ainda


fechada no pescoço da garota... até ele viu quem o atacara. Ele
soltou a moça, que desabou no chão, e avançou para Vitória. Ela
estava pronta para ele. O sangue fluía rapidamente nela, suas mãos
posicionadas, seus joelhos dobrados para lhe dar estabilidade,
exatamente como Kritanu lhe ensinara. A ira que ela havia engolido
por semanas subiu à tona. Sua respiração se acelerou.

O homem lançou-lhe um sorriso asqueroso e, em seguida,


atacou. Ágil e rápida, Vitória esperou até o último instante e se
esquivou, lateralmente, enquanto agarrava o braço estendido dele e,
usando a própria força do peso do sujeito, fez com que ele rodasse
no ar, sua trança voando. A pequena vis bulla, amuleto que ela
usava preso ao umbigo, lhe deu energia e velocidade semelhante à
dos mortos-vivos com os quais estava acostumada a lutar, e
permitiu que batesse três vezes o rosto pesado dele contra a parede
de tijolos.

Ele foi arremessado ali com um ruído bem audível, mas


Vitória não havia terminado com o homem; ainda não estava apta a
controlar suas emoções explosivas. Ignorando os olhos
esbugalhados da jovem, que havia se esgueirado para o lado,
afastando-se da confusão, Vitória chicoteou novamente o aspirante
a estuprador. Seus nervos sibilavam com energia, sua respiração se
tornou profunda, aos suspiros, seus olhos estavam quase
vermelhos quando ela bateu com o punho no queixo dele. O sujeito
tropeçou, mas procurou se endireitar e, com um grito gutural de
fúria, tentou atingi-la com um braço que era mais grosso do que a
coxa dela.

Vitória impediu o golpe com um braço magro e forte, e


esmagou seu outro punho contra o rosto do oponente. A expressão
dele era de surpresa e choque, mas ele conseguiu se esquivar,
saltando e se curvando, enquanto girava, para depois levantar com
uma navalha nas mãos.

O mundo ficou, ao mesmo tempo, muito lento e rápido.

Vitória, sorrindo, lembrou a sensação de alegria que,


calmamente, a dominou quando ela procurou por sua própria faca.
Com que facilidade conseguia retirá-la da liga, trazendo-a para fora
de suas calças! E relembrou como era senti-la na palma de sua
mão... não muito diferente do peso e espessura de uma estaca. Uma
estaca acinzentada.

Era como voltar para casa. Era como ser libertada de um


confinamento profundo, escuro. Ela se libertou, imediatamente.

Cravou a arma, cortou e esfaqueou muitas vezes. Imagens


ardiam em sua mente, enquanto ela fazia e desfazia as posições que
Kritanu, lhe ensinara, aquelas que haviam se tornado uma segunda
natureza para ela, nos últimos meses. As lembranças, de Filipe, de
Lilith, das miríades de vampiros de olhos vermelhos com quem ela
lutara... todos se fundiram com o rosto de seu atacante, ainda
paralisado em choque e depois a dor... e então o vazio.

Vazio.

Vitória só voltou a si quando levantou o braço para feri-lo de


novo e notou o fio escuro de sangue escorrendo sobre os tendões de
sua mão.
Ela congelou, olhando para aquela mão. Não deveria ser
sangue. Vampiros não sangram quando são feridos por estacas.

Notou que não conseguia recuperar o fôlego, que lhe


escapara. E também que seu corpo estava se sacudindo em
profundas palpitações, a cada inalação. Seus ombros subiam e
desciam, seus pulmões queimava. Seus braços e pernas tremiam.
Os olhos, e o nariz gotejavam.

Vitória olhou para baixo. Estava segurando uma faca, não


uma estaca. Uma faca toda ensanguentada.

Sua mão não estava apenas com um fio, mas pontilhada,


salpicada de sangue, de um horrível padrão. Ela estava
ajoelhando... ajoelhando sobre um corpo maciço que já não se
movia.

Os olhos dele estavam abertos, sem brilho e vidrados, e o


sangue cobria seu queixo e as bochechas, com o mesmo e espectral
padrão que havia nas mãos dela. O peito dele mal subia e descia.

Vitória ficou olhando para ele e cautelosamente aproximou os


pés do homem, mantendo-os juntos.

Observou a faca. Deveria ter caído, mas seus dedos não


soltavam o cabo. Ela a enfiou em seu bolso, ainda mantendo-a
segura, e olhou ao redor.

A garota. Ela mal lembrava da garota.

Mas não havia ninguém. Ninguém para ver o que ela fizera, o
que a raiva e a devastação faziam quando eclodiam nela.

Vitória olhou de novo para suas mãos. Já havia matado


antes... mas nunca tivera sangue nas mãos.

Eustácia Gardella ouviu o barulho antes do homem que


estava dormindo a seu lado. Ela procurou, automaticamente, pela
estaca que mantém junto à cama, deslizando para fora do colchão
com uma agilidade inacreditável, para seus 80 anos de idade.
Kritanu, com os cabelos escuros brilhando ao luar filtrado pela
janela, se virou e despertou com o movimento dela.

Viu a estaca na mão dela e seus olhos escuros encontraram


os dela, silenciosamente; depois, ele também escorregou o corpo
para fora das cobertas. Alcançou a faca, e Eustácia o sentiu atrás
de si, quando girou para sair daquele cômodo.

O ruído fora tênue, mas sua sensibilidade de Venadora


permitia reconhecer e processar o alerta de perigo de maneira muito
mais acurada do que qualquer mortal comum. Ela ouviu algo uma
só vez e, depois, nada mais.

Embora, de fato, não tivesse sentido a presença de um morto-


vivo, Eustácia segurava a estaca da mesma forma que a mão de seu
amante, e se esgueirou escada abaixo, rápida e silenciosamente.
Havia apenas outro criado, Charley, que não havia despertado.

Ela já havia descido metade dos degraus, quando viu a figura


em pé na grande entrada de sua casa; reconheceu-a, e sua
respiração ficou suspensa.

—Vitória! — gritou, levantando a barra da camisola,


amaciando, com aquela suave textura, sua firme pegada na estaca.

— O que aconteceu?

Sua sobrinha-neta estava ali, na entrada, olhando para ela


sob a luz difusa que sempre permanecia queimando na luminária
dourada, ao lado da escada. Com fios escuros marcando seu rosto e
mãos, e os olhos arregalados, em pânico, ela contou a Eustácia
parte da história.

— Não quis ir para casa desse jeito — a voz de Vitória parecia


extraordinariamente calma.

— O que os criados iriam dizer?

— Querida, o que aconteceu? — Eustácia envolveu, com seus


dedos retorcidos, as manchas frias de Vitória e gentilmente a
conduziu para a sala de estar.
Kritanu, abençoado seja, havia colocado o cobertor, com o
qual se envolvera, sobre os ombros de Vitória. — Vou lhe preparar
um chá — disse com uma voz tão suave como a bebida de
Darjeeling, que ele, sem dúvida, traria.

— Eu quase o matei — Vitória diz, fitando para Eustácia com


olhos que pareciam caroços de azeitonas. — Havia muito sangue.
Não sabia o que fazer.

As palavras eram simples, calmas, lógicas. Ela permanecia


ereta e relaxada. Mas a expressão que notava naqueles olhos fez
com que Eustácia franzisse as sobrancelhas. Ela conduziu sua
sobrinha até o grande sofá e se acomodou perto dela. — Vitória,
conte-me o que houve.

— Eu saí esta noite. Não esperava encontrar nenhum


vampiro; sei que Lilith levou todos com ela, mas saí, de qualquer
forma. Precisava.

— Você tinha de fazer alguma coisa — ela repetia as palavras


propositalmente, esperando que ajudassem a drenar o choque dos
olhos da moça. — Tinha, com certeza. Você é uma Venadora.

Um sorriso fugaz assomou ao rosto de Vitória. — Max disse


isso. Na noite que Filipe... morreu. Ele disse que eu era uma
Venadora de verdade.

— É mesmo? — Max, o protegido de Eustácia, viajara para a


Itália imediatamente depois da tragédia e ela ainda não tivera
notícias dele. A tensão entre eles, um Venador experiente, e Vitória,
era palpável. Ela achou interessante que Max tivesse feito tal elogio
à sobrinha; sim, porque ele havia sido tão categórico, considerando
que ela talvez estivesse mais preocupada com bonitões e bailes do
que com vampiros e estacas. — Então, você saiu. Diga-me o que
aconteceu. De quem é esse sangue?

— Eu quase matei um homem. Não me lembro de ter feito


isso, tia Eustácia. Ele estava prestes a estuprar uma mulher, uma
jovem, e eu o impedi. Ele era grandalhão, muito maior do que eu.
Começamos a lutar, e quando ele puxou uma navalha, eu peguei
minha faca também.., e a próxima coisa que sei é que ele parou de
atacar. Havia sangue por todo lado. Nunca houve sangue, antes —
os olhos dela estavam vazios de novo, e o coração de Eustácia ficou
apertado enquanto ela observava o belo rosto da sobrinha. Sua
corajosa, inteligente, forte e confusa sobrinha.

Quantas vezes ela se arrependera de transformá-la em uma


Venadora e trazê-la para esse mundo? Esse mundo de violência
maldade?

Mas a jovem estava aqui e eles contavam com ela. Eustácia e


Max e os outros Venadores precisavam de Vitória, se eles realmente
fossem destruir Lilith, a Rainha dos Vampiros. A descrição do mal
que assolava seu mundo merecia qualquer sacrifício, grande ou
pequeno. Eustácia vivenciara essa verdade por mais de sessenta
anos.

Vitória vivenciaria a mesma coisa, também. Eustácia apenas


desejava que ela não tivesse de enfrentar tamanho sacrifício tão
cedo.

— Não, jamais houve um pingo de sangue — ela repetiu,


preferindo responder apenas à última frase do relato de Vitória.

— Aquilo me enojou; Ele... eu o deixei lá. Não sabia o que


fazer.

—Vitória.Ouça-me. O homem estava atacando uma jovem e


você a salvou. Ajudou-a. E ele teria ferido você, caso não o
esfaqueasse. Você teve de se proteger.

— Sim. Mas não tinha de enfiar a faca até as costelas! —


Então, finalmente as lágrimas desceram.

Eustácia a abraçou, sentindo os delicados ombros da


sobrinha sacudirem, em palpitações, como se ela mesma estivesse
soluçando. Muito tempo se passou desde a morte de Filipe. E ela se
sentia aliviada porque Vitória finalmente acabara de liberar a
tristeza e a raiva que haviam crescido em seu íntimo. Perdei seu
marido menos de um mês após o casamento, e de uma forma
terrível havia feito com que ela se retirasse e permanecesse
enclausurada. Ao menos esta noite ela havia encontrado uma forma
de enfrentar algumas daquelas emoções.
Mas tinha sido de um jeito pavoroso.

Depois de bastante tempo, solavancos se transformaram em


movimentos mais suaves e, na sequência, viraram pequenos
soluços, Vitória se afastou. Seus olhos estavam inchados; e as
bochechas, manchadas. Pequenas marcas ovais, de cor marrom, se
espalhavam por sua face e um rastro escuro escorria de sua
mandíbula. Algumas das mechas encaracoladas de seu cabelo
escaparam da trança, contornando seu rosto em cachos
desordenados.

Vitória começou a se atrapalhar com a camisa enfiada em


suas calças masculinas, puxando-a para fora até que a afastou de
sua barriga. Eustácia deu uma olhada de relance, mas Kritanu
havia desaparecido — provavelmente quando as lágrimas haviam
começado.

— Não posso usar isso. Não posso permitir que ele me


controle.

Eustácia sabia do que ela estava falando. Vitória levantou a


camisa e lá, no buraco de seu umbigo, estava a vis bulla, o sagrado
amuleto usado pelos Venadores, os caçadores de vampiros.
Trabalhada em prata da Terra Santa, a pequena cruz havia sido
mergulhada em água-benta do Vaticano, antes que a pequena
argola fosse incrustada ali, no alto do umbigo de Vitória, da mesma
forma que Eustácia usava sua própria vis bulla, desde quando
aceitara seu dever, como parte da herança da família Gardella.
Eustácia ainda mantinha a dela, obviamente. Um Venador jamais
remove a vis.

Ela e Vitória eram Venadoras natas, treinadas e abençoadas.


Um seleto grupo havia sido convocado e apenas alguns, de fato,
aceitaram. Havia umas poucas dúzias de Venadores no mundo e
que realmente passaram no teste e usavam a vis bulla.

E agora Vitória desejava devolver a sua. Eustácia abriu a


boca para falar, mas sua sobrinha a interrompeu.

— Não tenha receio, tia. Vou pegá-la de volta quando estiver


certa de que não abusarei dela. Fiquei muito apavorada comigo,
esta noite, mas percebi que ainda não estou pronta para caçar
novamente. Uma coisa é matar um morto-vivo, um ser imortal
devotado à maldade... mas não quero ver sangue humano em
minhas mãos novamente.

Eustácia pegou as mãos ensanguentadas de sua sobrinha.


Aquilo lhe provocava dor e, profundamente, a amedrontava... mas
ela entendia. — Não há perigo em Londres, agora. Lilith levou seus
seguidores embora, e até que ela esteja de volta, não há nenhuma
ameaça iminente.

Os olhos de Vitória se iluminaram, sua boca se apertou em


um ricto feroz. — Não se preocupe. Eu me vingarei de Lilith pelo
que ela fez a Filipe, juro. O que antes era um dever agora se
transformou em uma responsabilidade pessoal.
1
Como a arma de Lady Rockley tornou-se perigosamente
ineficaz

Vitória apertou a estaca cinza entre seus dedos, mais por


hábito do que necessidade, e observou o canto de tijolos. Estava
escuro e úmido, como Londres costumava ser depois da meia-noite
e, além da área mais segura delimitada pela Drury Lane, as ruas
eram repletas de lixo e refugos, com gente como ladrões ocasionais,
prostitutas e outras pessoas desonestas.

Infelizmente, nenhuma dessas pessoas estava causando


danos, remexendo nos bolsos dos outros ou mordendo pescoços.

Havia se passado um ano desde a morte de Filipe, e Vitória


voltara às ruas à caça de vampiros pela primeira vez, desde a noite
em que removera sua vis bulla. Passara os últimos doze meses
praticando suas técnicas de luta e aprendendo a controlar a raiva e
a tristeza, pois foi a ausência desse cuidado que a levara a quase
matar um homem em St. Giles. Ela queria se assegurar de que
estava, de fato, pronta e capaz de controlar aquelas emoções, antes
de recolocar seu amuleto de força. A cruz de prata tremeu no
buraco de seu umbigo, quando ela estava caminhando, e Vitória se
sentiu completa outra vez. Estava pronta, sim.

Foi isso que a levou às ruas naquelas horas tardias da noite,


a estaca em uma das mãos, a pistola, na outra. Em busca de algo a
fazer. Alguém para salvar.

Ela jamais pararia de procurar alguém para salvar.


Vitória sacudiu a cabeça abruptamente, para se livrar de
lembranças e afastar a culpa que ainda se manifestava em seu
íntimo. Sua têmpora se arranhou ao atritar-se com a parede de
tijolos, espalhando caquinhos de argamassa no chão e provocando
uma dor incômoda em sua pele. E ela voltou seus pensamentos
para o que deveria fazer agora.

Barth não tardaria a chegar com a carruagem para buscá-la,


levando-a de volta ao casarão vazio e cheio de ecos conhecido como
St. Heath’s Row, onde ela continuaria a viver até a chegada do novo
marquês, que estava em algum lugar da América e ainda não havia
sido localizado.

Tão logo ela pensou nisso, a carruagem em questão virou a


esquina e foi se aproximando até parar, mais devagar do que
costumava. Não é que Barth estava dirigindo melhor, mas sim que
ele estivera esquadrinhando as ruas, devagar, à procura de Vitória.

Quando ela subiu no veículo, tomou a decisão que vinha


adiando por uma semana. — Barth, ainda não estou pronta para
voltar à casa... leve-me até St. Giles. Para o Cálice.

E, antes que ele pudesse protestar, ela fechou a porta.

Houve uma pequena demora, como se ele estivesse pensando


em argumentar, mas então ela ouviu Barth instigar os cavalos e
notou que os animais começavam a se movimentar em um ritmo
constante. Vitória se recostou no assento e tentou não pensar sobre
a última vez que estivera no Cálice de Prata. Havia mais de um ano.

Era bem depois da meia-noite, e as ruas de St. Giles estavam


desertas. Apenas gente muito louca ou corajosa se aventurava
nessa região de Londres durante a relativa proteção da luz do dia; à
noite, menos pessoas ainda se atreviam a entrar ali. Enquanto
seguiam pela St. Martin Lane e cruzavam a intersecção das sete
ruas, um local conhecido como Os Quadrantes, Vitória deu uma
olhada em uma delas. Não havia esquecido a rua Great St.
Andrews, nem o beco onde ela quase matara o homem. Podia
encontrá-lo de novo, em seu sono, embora não conseguisse lembrar
do acontecido em todos os seus terríveis detalhes, mas o lugar
ficara impresso em seu cérebro.
Talvez algum dia, ela pudesse retornar.

Algumas ruas depois, a carruagem deu um solavanco ao


parar, despertando-a da desconfortável lembrança. Pressentindo o
movimento, Vitória já havia estendido a mão, para se proteger.
Levando consigo a pequena lanterna que ficava no interior do
veículo, ela saltou e desapareceu antes que Barth pudesse falar
com ela ou segui-la.

Seus passos não faziam ruídos na rua de paralelepípedos,


enquanto contornavam pilhas de lixo e saltavam sobre pequenas
poças, remanescentes da chuva que caíra no início da noite. O mau
cheio não a incomodava nem os olhos que a espreitavam das
sombras.

“Eles que venham!” Ela estava pronta para uma luta.

Ela andava, cruzando e descendo a rua, a cabeça altiva, a


mão em sua pistola, as pernas de seus culotes masculinos roçando,
levemente, uma na outra, a luz da lanterna transpassando a
sombra dela.

Uma bem-vinda brisa de verão trouxe o odor de carcaças


podres e de resíduos de animais de volta à sua consciência, depois
desapareceu. A parte de trás de seu pescoço se arrepiou
ligeiramente, sob o chapéu-coco de castor que ela usava, mais por
causa do vento, não como sinal de algum perigo iminente.

Vitória parou em frente do que tinha sido a porta de entrada


do Cálice de Prata. Ela não visitava o lugar desde aquela noite em
que viera procurar Filipe e, em vez disso, encontrara as ruínas
incandescentes do que havia sido um empreendimento que servia a
vampiros e seres parecidos com mortais.

Será que ela imaginou ou ainda havia, mesmo, cheiro de


carvalho calcinado pairando no ar? Não podia ser, tantos meses
depois...

O calafrio voltou a percorrer a parte de trás de seu pescoço.

Ela congelou, parando de respirar para ouvir. Para sentir.


Sim, estava lá, era real, arrepiando os cabelos de sua nuca
como um aviso que ela não sentia havia um ano: um vampiro
estava próximo. Abaixo.

Agora, com a urgência do pressentimento energizando suas


ações, Vitória ultrapassou os parcos escombros do batente da porta
e começou a descer os degraus para o recinto cavernoso. Ela
apalpava as pedras com sua mão esquerda e segurava a lanterna
com a direita, iluminando os degraus, repletos de escombros de
madeira e pedra. Se ela pudesse caminhar sem luz, teria feito isso,
mas ver no escuro não era um dos dons concedidos aos Venadores.
Algo do elemento surpresa seria reduzido, mas era melhor isso do
que tentar percorrer aquela bagunça sem fazer barulho e na
escuridão.

Por milagre, o telhado não desabara integralmente sobre a


escada e logo ela chegou ao piso inferior. Vitória parou, escondendo
a lanterna atrás de si, para bloquear um pouco a luz, e olhou ao
redor do porão sombrio e desforme.

É o que restara do empreendimento de Sebastian.

Embora o calafrio na parte de trás de seu pescoço persistisse,


confirmando seu instinto, ela não sentiu nem ouviu nenhum sinal
de movimento. Acalmou-se, porque deslizou os dedos para dentro
do bolso de seu casaco.

A estaca se moldou, confortavelmente, em sua mão, e ela não


a retirou. Apenas manteve a madeira ainda mais apertada,
esquentando-a com o calor de seu corpo, e esperou, ouvindo e
sentindo. O calafrio no pescoço ficou ainda mais gelado e ela
pressentia a proximidade do vampiro e a excitação da iminente
batalha. Seu coração começou a bater mais depressa, suas narinas
se dilataram, para sentir se havia ou não algum morto-vivo.

Finalmente, certa de que estava sozinha no recinto, Vitória


aumentou a intensidade da lanterna. Passando o facho de luz ao
redor, ela constatou a mesma cena de destruição que encontrara
meses atrás; mas agora sua mente não estava anestesiada pelo
medo e pela apreensão. Podia ver as vigas enegrecidas do teto, as
mesas quadradas e os copos estilhaçados.., talvez até sentisse um
leve cheiro de sangue no ar.

A lanterna balançou, enquanto ela subia em uma cadeira


quebrada, e cacos de vidro se esmigalhavam sob seus pés, como
cascalho. Ela estava percorrendo a parte mais escura e recôndita do
recinto, escondida sob um teto rebaixado. A crescente sensação na
parte de trás de seu pescoço lhe dizia que ela estava se deslocando
na direção certa.

Sebastian Vioget desaparecera na noite em que o Cálice de


Prata se incendiou. Max estivera lá naquela noite, e disse a Vitória
que não sabia se Sebastian havia ou não escapado do fogo; e ela
sabia que, de qualquer forma, ele não dava a mínima para o que
tivesse acontecido.

Vitória sabia que não deveria se importar também, mas não


fora capaz de esquecer o homem de cabelos castanho-claros com
reflexos acobreados que recebia vampiros em seu estabelecimento.
Ele dissera a Vitória, uma vez, que era melhor conhecê-los e
oferecer a eles um lugar onde pudessem ser encontrados
facilmente, onde suas línguas se soltassem e, assim, seria possível
obter informações...

Ela encontrou a porta secreta para o lugar onde Sebastian a


levara na primeira noite em que o conheceu. Protegida por um teto
baixo e entre paredes de pedra, permanecia quase incólume.
Marcada com listras negras, ela estava entreaberta.

E o arrepio em sua nuca tornou-se mais agudo.

Vitória empurrou a porta, deixando a lanterna na entrada do


corredor. Sentiu o peso da pistola em seu bolso quando bateu
contra a borda de uma pedra; a pistola, inútil contra um vampiro,
obviamente, poderia ser usada para outros propósitos. No escuro e
apertado corredor, Vitória não podia deixar de lembrar como
encarava Sebastian, com a parede de pedra às suas costas e ele
próximo demais para sua própria segurança, enquanto ele
procurava tirar o chapéu do disfarce masculino que ela usava.

Ele não tentara beijá-la, aquela vez.


Passando bem rápido pelo corredor fracamente iluminado,
como se quisesse afastar o pensamento, Vitória caminhou na
direção da salinha à esquerda, aquela que Sebastian tinha usado
como escritório e área íntima. Ele, ela ou eles... estavam na sala.
Seus lábios se curvaram em um sorriso selvagem e a adrenalina
acelerou seu pulso. Ela havia sido preparada para isso durante
meses.

A porta estava entreaberta, dando a ela a oportunidade de


espreitar o que havia dentro do cômodo. Estava iluminado lá
dentro; só uma grande lanterna poderia clarear suficientemente
aquele lugar a ponto de permitir que ela observasse o intrincado
desenho do brocado do sofá de onde ela estava. Interessante que
um ou dois vampiros usassem uma lanterna.

Pelo que pôde ver, da porta entreaberta, o lugar permanecera


intocado pelo fogo, exceto por um ligeiro aroma de fumaça que
poderia estar impregnado no sofá e na cadeira estofada. Não havia
nenhum sinal de mudança... os livros ainda permaneciam nas
prateleiras, as almofadas perfeitamente alinhadas nos móveis..,
mesmo a bandeja de prata com garrafas de conhaque e xerez
estavam no lugar, do outro lado do recinto.

As únicas coisas fora de lugar eram as duas figuras


inclinadas sobre a mesa de Sebastian. Ao menos um vampiro.

Retirando a estaca de seu bolso, Vitória a manteve pendendo


entre as dobras de seu casaco e entrou no cômodo.

— Boa-noite, cavalheiros — disse enquanto eles se viravam.

— Você está procurando alguma coisa?

Aquele ano de sofrimento a tornara um pouco lenta.

Antes que imaginasse, um deles estava diante dela, com


aqueles olhos vermelhos e os incisivos cintilando.

Vitória deu um passo atrás, sentindo a parede às costas e se


afastou. Ele a seguiu e ela tropeçou na perna de uma cadeira,
quase desabando no chão. O erro fez com que ela ficasse mais
determinada, e as técnicas que Kritanu lhe ensinara começaram a
fluir em seus músculos como uma luva bem calçada.

Quando Vitória recobrou o equilíbrio, o vampiro estava


procurando por ela, inadvertidamente abrindo seu peito para a
estacada certeira. Ela o atingiu, sentiu o ruído familiar e deu um
passo atrás, enquanto ele se desintegrava em poeira.

Respirando com dificuldade, ela olhou para o outro homem,


que não se movera. Ele a observava com um sorriso contraído, mas
não se alterou. Em vez disso, ajeitou seu casaco e olhou para ela,
com cintilantes olhos negros.

— Veio preparada, não? — perguntou, andando


tranquilamente ao longo do outro lado da mesa. E foi se
aproximando, mas com calma. Inofensivo e sem ameaças.

— O que está fazendo aqui? — Vitória queria algumas


respostas, antes de feri-lo com a estaca. Não podia ser coincidência
que ambos tivessem escolhido aquela noite para visitar as salas de
Sebastian; e, pela quantidade de poeira existente, além da limpeza
do cômodo, ela não tinha dúvidas de que era a primeira visita de
alguém.

— Simples curiosidade — ele parou, porque o sofá estava


entre os dois. — Isso foi o que restou do infame Cálice de Prata; eu
estava interessado em conhecer o lugar que pertenceu a Sebastian
Vioget.

As presas dele não eram salientes; seus olhos, de um cinza


comum.

— Você o conhece?

O vampiro, não mais alto do que a maioria dos outros


homens em Londres, tinha cabelos de um castanho banal,
penteados de maneira a deixar o rosto bem descoberto. Seu nariz,
um pouco grande demais para permitir que seu rosto fosse
atraente, era arredondado na ponta como um bulbo de alho. E suas
sobrancelhas, retas, não passavam de tiras estreitas sobre seus
olhos. Ele balançou a cabeça em resposta à pergunta. — Receio que
não tenha tido o prazer de conhecer o senhor Vioget. E, pelo que
soube, não estou bem certo de que, agora, isso possa acontecer.

— Há meses, não vejo um vampiro em Londres — Vitória


comenta, olhando para ele. — Desde que Lilith foi embora, levando
seus seguidores com ela. Ela mandou você de volta para se
assegurar de que poderia retornar com segurança?

Ele observou a moça por um instante e então o


reconhecimento surgiu em seus olhos escuros. Não vermelhos...
ainda não. Eram normais. Ele era bem semelhante a qualquer outro
cavalheiro inglês, exceto por suas roupas mal-ajambradas. — Você
é Venadora?

Vitória curvou a cabeça, em sinal de confirmação.

Os olhos se estreitaram, pensativamente. — Que honra seria


levá-la a Nedas! Ele me recompensaria regiamente.

Um sobressalto de antecipação a percorreu. — Você poderia


tentar, com certeza. Estou segura de que Nedas, seja ele quem for,
apreciaria seu martírio.

— Não sou tão voluntarioso com meu querido companheiro


que se foi — ele replicou. Mas sou muito mais forte e rápido.

Então estava lá, atravessando a sala, mais próximo dela,


procurando por sua garganta. Vitória se esquivou, mas ele agarrou
seu braço e, de fato, era bem forte.

Ela tentou se safar, na mira dos olhos subitamente vermelhos


e brilhantes dele, e sentiu o sofá contra suas pernas. Fingiu que
tropeçava, esquivou-se e acertou-lhe um golpe que o desequilibrou.
Ele a seguiu, bem perto, às suas costas, sem dar a ela a chance de
recuperar o fôlego, e ela soube que a próxima coisa a fazer seria
virar-se, para encará-lo.

Levantando sua estaca na altura do ombro, ela levantou o


rosto para olhar para ele, pronta para abatê-lo e vacilou. Filipe.

Era Filipe.
Foi como se o corpo dela se congelasse e, em seguida,
pegasse fogo. A estaca escorregou de seus dedos frouxos e ela
deixou escapar um grito, quando ele a empurrou, derrubando-a no
chão. No tapete, engolindo poeira e, apavorada, respirando com
dificuldade, Vitória olhou para cima, na direção da figura que
pairava sobre ela. Como?

Mas não foi Filipe que se inclinou em sua direção. Foi o


mesmo homem indescritível, agora com olhos cintilantes e a boca
transformada em uma linha, de pura determinação.

Ela tateou, à procura de sua estaca... seguramente não havia


rolado para longe do tapete. Ele estendeu as mãos para ela, que se
esquivou, subitamente presa contra a borda do sofá. Ela sentiu algo
sob seu quadril, arredondado, duro e longo, e deu uma reviravolta,
recuperando o prumo e agarrou a estaca.

A força de seu movimento o desequilibrou, e Vitória tomou


impulso para ficar em pé, a estaca na mão. Ela se virou, usando o
impulso de sua perna para girar como um chicote, alterando seu
centro de equilíbrio, quando enfiou a estaca no centro do peito dele.
Deu um pulo para trás, se afastando para vê-lo virar pó sobre o
chão.

Nada aconteceu.

E ele a atacou novamente, sua boca desenhando um sorriso


assustador, selvagem.

Vitória recuou, em choque, desabando para trás, ao tropeçar


no canto levantado do espesso tapete persa. Caiu no chão, batendo
a cabeça na parede, e ficou ali olhando para o homem de olhos
vermelhos que avançava em sua direção.

Calmo e firme, ele se movimentou e Vitória mal podia


acreditar que o atacara, conseguira enfiar uma estaca em seu peito
e nada acontecera. Nem sangue nem poeira... ele simplesmente veio
atrás dela, de novo.

Enquanto ela se preparava para fazer com que ele se


estatelasse contra a parede acarpetada, segurando a estaca para
outra investida, o rosto dele se virou, novamente, para ela.
— Filipe? — ela chorou baixinho.

— Venadora! — ele disse, se inclinando na direção dela. —


Agora venha... relaxe... eu não vou machucar você.

— Não! — ela brandindo a estaca, com toda sua energia.

Ela o impediu de continuar, fincando a estaca de madeira no


corpo dele, mas ele não se desintegrou. Seus movimentos ficaram
mais lentos... porém, ele não morreu. Com um grito de pavor e
desespero, ela usou a estaca e sua mão para empurrá-lo. A estaca
não causava nenhum efeito e ela tratou de escapar.

Precisava de outra arma. A pistola em seu bolso... ela a


sacou, mirou na criatura e puxou o gatilho. A explosão provocou
um solavanco na arma em sua mão, e a bala se estatelou contra o
peito de seu agressor.

A parte mais atenta dela não se surpreendeu quando ele mal


parou... se reequilibrou e veio na direção dela.

Vitória se atirou no sofá, freneticamente procurando por algo


que poderia ser usado como arma... mas o quê?

Ele era tão rápido, tão forte... ela não tinha chance.

Ele estava atrás dela, em cima dela e eles rolaram no chão,


batendo nos móveis. A delicada bandeja de prata que acomodava
garrafas de conhaque e xerez se espatifou sobre o tapete,
derramando os líquidos aromáticos.

Em meio a uma névoa de choque e pânico, a mente de Vitória


oscilava entre um emaranhado de possibilidades, da necessidade de
sobreviver à raiva, por ter sido pega de surpresa. Sentiu a pesada
bandeja em suas costas e enroscou os dedos na fina beirada. Não
muito segura do que estava fazendo, Vitória levantou o objeto acima
de sua cabeça, batendo com ele no crânio do homem que se
inclinava para ela.

Ele cambaleou, perdeu o equilíbrio; ela ainda segurava a


bandeja. Procurando apoio no sofá, ele se atirou na direção dela,
com os olhos voltando a ficar de um vermelho fulgurante, a boca
em um ricto sombrio.
Vitória murmurou uma oração e sacudiu a bandeja e, com
ela, atingiu fortemente o pescoço dele, separado da cabeça com
aquele golpe improvisado, mas poderoso.

Os olhos dele se reviraram, enquanto sua cabeça rolava para


o chão e Vitória se protegeu, esperando, tremendo, sua respiração
ofegante como se ela houvesse lutado com 10 vampiros.

Enquanto ela observava, o rosto dele se alterou... encolheu-se


e afundou, adquirindo uma textura de couro marrom com os olhos
se afundado e a boca seca, e então virou uma coisa encarquilhada e
negra... depois fundiu-se com o chão e desapareceu.
2

Como Lady Rockley desdenhou um debate sobre moda e


se exaltou

— Deveria ser algum tipo de demônio — Vitória disse, quando


terminou de descrever sua experiência. Foi bem cedo, na manhã
seguinte à sua visita ao Cálice de Prata — de onde ela conseguiu
escapar — de St. Heath’s Row bem antes que a maioria dos seres
malignos começasse a se agitar. — Mesmo que eu jamais tenha
conhecido algum antes, e que não tem havido muitos na Inglaterra,
ao longo de séculos, não poderia ser um vampiro. Não consegui
matá-lo com a estaca.

Tia Eustácia, cujos olhos brilhantes foram se arregalando


enquanto Vitória fazia o relato, concordou. — Uma estaca no
coração sempre matará um vampiro, minha cara, você tem razão.
Mesmo Lilith sucumbiria a isso, embora seja difícil atingi -lo com
essa arma.

Seus cabelos negros azulados, ainda sem nada de grisalho,


estavam reunidos em um penteado, brilhantes e ondulados.

Mesmo seu rosto, aos 80 anos, mostrava poucos sinais de


sua idade... porém, suas mãos — as mesmas que haviam segurado
o pequeno amuleto de metal que Vitória lhe dera — eram velhas e
retorcidas, com juntas artríticas, tornando muito difícil, para ela,
segurar uma estaca.

— Eu finquei a estaca nele duas vezes —Vitória continuou.


Sua pulsação cardíaca ainda se acelerava quando ela se lembrava
daqueles momentos de pânico. Ao contrário daquela vez, no beco de
Seven Dials, onde havia sido fácil demais quase matar um homem,
a noite anterior fora um pesadelo, durante o qual ela não conseguiu
matar um vampiro. — Duas vezes, direto no peito... a estaca o
perfurou, mas quando eu a removi foi como se nada tivesse
acontecido.

— Você disse que ele estava com um vampiro? Isso é muito


estranho. Demônios jamais coexistem com vampiros, caso consigam
evitar. Ambos são tão inimigos como nós somos deles.

— Não vejo por que se evitariam, uma vez que ambos os


gêneros trabalham a favor de Lúcifer.

Tia Eustácia balança a cabeça. — É o que alguém poderia


pensar. Mas felizmente são muito ciumentos, uns dos outros. Os
dois gêneros disputam ferozmente a preferência de Lúcifer, uns
jamais permitindo que outros consigam qualquer favoritismo dele.

Analisar a coisa por aí fazia algum sentido, embora de


maneira distorcida, Vitória pensou. Os demônios haviam sido anjos
celestes, antes de seguir Lúcifer, muito antes do início da história
humana.

Comparativamente, os vampiros eram relativamente jovens.


Judas Iscariotes, o infame traidor de Jesus Cristo, fora o primeiro
desses mortos-vivos. Incapaz de acreditar que seria perdoado
depois de entregar seu amigo aos inimigos dele, Judas cometeu
suicídio e escolheu a imortalidade, aliando-se a Lúcifer, que, em
contrapartida, fez a ele o obséquio de torná-lo pai dos vampiros, um
novo tipo de demônio. Por uma terrível ironia, o diabo havia se
apoderado das palavras de Jesus — “Este é meu sangue, tome-o e
beba-o” — e decidiu que Judas e seus vampiros teriam de fazer
justamente isso para sobreviver.

Não era de admirar que esses dois tipos de criaturas fossem


rivais, quanto aos poderes do inferno. Um está com Lúcifer por toda
a eternidade; o outro foi criado por ele, convencido a trair Jesus
Cristo por 30 moedas de prata, com a promessa de ser protegido
contra a ira de Deus. Aparentemente, esses seres detestáveis não
eram diferentes de seus colegas humanos, em sua gana por poder e
reconhecimento.
— Vitória? — Eustácia olhou para ela como se um novo
pensamento tivesse passado por sua mente. — Preciso lhe fazer
uma pergunta e reflita, antes de responder. Depois que você matou
o vampiro, sentiu a presença de outro? Um calafrio percorreu a
parte de trás de seu pescoço? Você se lembra?

Vitória, tranquilamente recostou-se, reviu a conversa que


tivera com ele e tentou lembrar... seu pescoço ficou frio? No fim, ela
teve de sacudir a cabeça. — Não... não foi como se eu estivesse
pressentindo a presença de um vampiro, mas havia algo. Senti um
cheiro... desagradável. Sem paralelo. Estranho, mas não posso dizer
que fosse uma sensação perceptível, como a que sinto quando estou
perto de um vampiro.

Tia Eustácia sorriu. — Bem, isso é muito interessante.


Muitos Venadores não podem notar a presença de um demônio,
como conseguem perceber a de um vampiro; de fato, a maioria nem
sequer o pressente. Se você sente algo, qualquer coisa, é incomum
para um Venador. — O sorriso dela se dissolve. — Preciso entrar
em contato com Wayren e conversar com ela sobre isso. Talvez ela
tenha uma ideia do que poderia ter reunido um vampiro e um
demônio. — Tia Eustácia olhou para baixo, fitando o disco de
bronze que Vitória encontrou no lugar em que o corpo da criatura
afundara no chão. — Seja lá o que for, não pode ser um bom sinal.

O disco talvez fosse do tamanho de uma unha do dedão do pé


de um homem, estampado ou gravado com a imagem de um animal
parecido com um cão. Embora não pudesse assegurar que viera da
criatura que decapitou, o instinto de Vitória lhe indicava que aquilo
era importante. Quando ela tocou naquilo, para recolhê-lo, uma
sensação de desconforto percorreu seus braços, fluindo pela parte
traseira de seus ombros, de maneira que ela se virou.., como se
alguém tivesse se aproximado dela pelas costas. Ou alguma coisa.

— Onde está Wayren? — Vitória perguntou, curiosa sobre a


serena, e ainda misteriosa, mulher a quem Eustácia consultava
com frequência, quando precisava pesquisar algo. Sua atenção se
voltou para a pequena estante onde repousavam antigos,
desgastados manuscritos. Eles pareciam com algo que ela teria
atribuído à tia Eustácia — velho, importante, sagrado. Talvez
fizessem parte da biblioteca do pai de Wayren, e que ela havia
manuseado e estudado... em algum lugar. Vitória nunca soube
exatamente onde Wayren morava.

Sua tia colocou o amuleto sobre a mesinha de mogno de três


pés, próxima de sua cadeira favorita. — Ela estava com Max, em
Roma, mas virá se eu a chamar. Ela o estava ajudando com um
problema.

— Max tem um problema? — as palavras sarcásticas


escaparam antes que Vitória pudesse evitá-las. — Eu jamais
imaginaria algo assim. Na verdade, estou estupefata ao saber que,
no mundo dele, nem todas as coisas sejam maravilhosas. Então,
como Max tem passado, de volta a seu país?

— Há vários meses ele não entra em contato comigo. — Sua


tia mantinha os olhos baixos; talvez não quisesse que Vitória visse
a expressão que havia neles. — Vitória, noto que talvez parecesse
que Max tenha sido muito insensível por retornar à Itália logo
depois dos acontecimentos com Lilith, no ano passado... e também
ao que houve em seguida, mas ele tinha sido chamado de volta pelo
Consilium — o conselho dos Venadores — poucas semanas antes e
decidira permanecer até que pudesse impedir a ameaça de Lilith,
aqui em Londres.

— Insensível? Não, isso nunca passou pela minha cabeça

— Vitória disse. — De fato, Max retardou seu retorno à Itália.


Você e eu éramos bem capazes de lidar com qualquer ameaça de
vampiro, aqui em Londres. Até a noite passada, eu nem sequer
tinha visto algum vampiro, desde que Lilith foi embora.

Tia Eustácia esticou o braço e acariciou a mão de Vitória.


Seus dedos retorcidos estavam quentes e a palma, lisa e macia.

— Foi um ano difícil, querida, eu sei, especialmente os


últimos meses, quando você começou a receber alguns de seus
amigos mais próximos e pensou em seu retorno à sociedade. Com
todas as perguntas sobre Filipe e...

A parte mais difícil foi que eu não tinha nada para fazer!
— Vitória ouviu sua voz se transformando em um gemido e
parou. Se Max estivesse aqui, teria feito algum comentário
sarcástico sobre como bons Venadores não conseguiam impedir que
suas emoções os dominassem, citando a si mesmo como perfeito
exemplo de alguém que evitasse isso.

Mas... talvez não. Na última vez que ela o vira, Max disse algo
que era um autoelogio, a considerar a origem. Ele a chamara de
Venadora. Como se a considerasse igual a ele.

— Talvez você não tenha tido muito o que fazer nos últimos
meses — sua tia disse —, mas o que fez nos primeiros meses como
Venadora superou de longe o que qualquer um poderia esperar. E
depois do que aconteceu... Vitória, você precisava de um descanso.
Precisa se curar.

Preciso fincar estacas em vampiros. Não apenas um. Mais.


Preciso voltar ao trabalho. — Vitória estava em pé, e sua saia de um
tom pesado balançava. —Você não pode imaginar como é, tia! Eu
fico sentada com minhas roupas negras, monótona como um
espantalho, e não faço nada o dia inteiro) a menos que mamãe ou
suas duas amigas venham me visitar. E então conversamos sobre
coisas idiotas. Vestidos e jóias, quem vai casar com quem ou quem
está fornicando com qual cônjuge. Aparentemente, agora que eu
sou uma viúva respeitável, posso me manter a par desses assuntos.

Fora isso, e uns poucos outros visitantes, como minha amiga


Gwendolyn Starcasset, eu quase não saio de casa. E nem sei
quando me pedirão para deixar a residência de Filipe. O novo
marquês está em algum lugar da América, e ainda não respondeu a
nenhuma das cartas enviadas por advogados. Não sabemos
quando, ou mesmo se, ele virá reclamar o título e o imóvel. Sou
afortunada porque Filipe teve a clarividência de me garantir ao
menos uma estada temporária, ou teria sido forçada a voltar à casa
de minha mãe. — Ela havia caminhado até a janela que dava para a
entrada e ficou olhando a rua monótona e chuvosa. Julho deveria
ser verde e bonito, não triste e cinzento.

— Isso não deveria ser uma coisa assim tão desagradável,


Vitória. Ao menos você não estaria sozinha.
Vitória deixou as cortinas voltarem a seu lugar. — Tia
Eustácia, como é que eu poderia viver com minha mãe...
especialmente depois do que aconteceu? Colocá-la em perigo, outra
vez? Ela não sabe nada sobre minha vida de Venadora. Tanto ela
como o restante dos moradores de Londres não têm sequer ideia de
que vampiros e demônios existem! Além disso, ela tentaria
encontrar um marido para mim, tão logo eu esteja livre desse
período de luto. E depois do que aconteceu com Filipe, bem... com
certeza eu não posso me casar novamente.

—Acho que você já poderia estar usando cinza há meses,


Vitória

— sua tia replicou gentilmente. — Um adorável cinza


perolado faria com que sua cútis ficasse mais rosada e seus olhos
escuros, maiores. Você já ultrapassou o período de luto de um ano.
Penso que continua usando preto apenas para manter sua mãe na
linha, contida.

— Por favor, tia! A senhora está começando a falar como


minha mãe. Vamos falar de estacas e amuletos e de parar o mal
neste mundo — em vez de vestidos e modas. Não dou a mínima
para o fato de as saias estarem ficando mais amplas.

— Vitória.., você precisa cuidar de si mesma. Ainda está de


luto. Ignorar sua perda vai tornar as coisas ainda piores.

— Tia Eustácia, eu não estou ignorando minha perda. Quero


vingá-la. Mas não há vampiros, em Londres... ao menos até a noite
passada. — Ela estava tão aborrecida com o fato do vampiro não ter
morrido, que deixou de atentar para as implicações daqueles
acontecimentos.

Talvez os mortos-vivos estivessem retornando.

E se os vampiros estivessem, mesmo, de volta, ela poderia


descobrir onde Lilith estava.., e como chegar a ela.

Descanso? Não, Vitória não se permitiria isso até que fincasse


sua própria estaca no coração da ruiva rainha dos vampiros.

Ou morresse tentando.
Eustácia respirou longa e profundamente... depois expeliu o
ar durante algum tempo, devagar, tranquilamente. Abriu os olhos
para se deparar com Kritanu, que a observava.

Sentou no chão, como ela. Ele colocou um de seus tornozelos


atrás do pescoço, enquanto esticava a outra perna à sua frente.
Diante do olhar dela, ele retirou o pé da nuca e o descansou
delicadamente na fina esteira onde estava, levantando seus braços
magros, firmes, e aspirando profundamente.

Eustácia alongou suas próprias pernas, consternada ao ouvir


o dique suave do músculo e do tendão, um barulho que não fazia
havia cerca de um ano, e elevou seus braços também para uma
demorada respiração.

Eles não conversaram, senão quando terminaram o exercício.

— Ioga costuma ser relaxante e propícia à meditação — ele


diz, se arrastando com o impulso de seus pés descalços, para se
aproximar dela. — A preocupação, entretanto, ainda não se afastou
de seu olhar. — As calças dele, curtas e largas, se levantaram,
expondo duas panturrilhas musculosas e cobertas de pelos negros
azulados. Não havia nenhum branco ou grisalho em qualquer lugar
de sua pele cor de chá, embora ele recentemente tivesse completado
73 anos. Ele era capaz de fazer as posições mais difíceis, das
sequências de ássana, quando praticavam ioga... aqueles que
Eustácia havia muito tempo não tinha flexibilidade para praticar.

Ela ainda conseguia se alongar e respirar, como aprendera


com Kritanu quando eles começaram a treinar juntos... bem... há
mais de 55 anos. Mas ela não podia mais colocar seus tornozelos
atrás da cabeça nem levantar seu corpo sustentado apenas na
palma de sua mão, com os dedos espalmados, como ele.

— Não? E como você notou, se estava meditando, como


deveria?

— Estava meditando sobre o rosto familiar de mere humsafar


e fiquei desanimado com o que vi.

Ela sorriu para ele e, daquele mesmo jeito antigo, como fazia
quando eles eram bem jovens, Eustácia inclinou a cabeça dele na
direção de suas pernas cruzadas em lótus, olhando para o rosto
dele. Não importava que os joelhos dela já não alcançassem o solo
como outrora e que seus tornozelos artríticos vibrassem com o peso
da cabeça dele. Era familiar e, também, um conforto, tocá-lo.

Ela respondeu: — É verdade. Mal tenho conseguido me


concentrar, desde a visita de Vitória, esta manhã. Não é um bom
augúrio que ela tenha encontrado um vampiro e um demônio
juntos, e eu temo não ter energia suficiente para determinar o que
isso significa. O demônio ainda falou em alguém chamado Nedas; o
nome não é estranho, mas não consigo localizá-lo. Wayren saberá.

— Ao menos não se trata de Beauregard, fazendo suas


diabruras.

— Infelizmente, não há razão para acreditar nisso. Nedas


pode ser um de seus seguidores ou mesmo um de seus rivais. Se eu
não tivesse sido amaldiçoada com a mente de uma bruxa, eu seria
capaz de lembrar quem ele é. Além disso, há o amuleto encontrado
por Vitória... tem fedor de demônios, quando toco nele.

— Tenho pensando nisso, bem como na preocupação em seu


rosto — Kritanu diz, olhando para ela. — Tudo o que cerca essa
história me faz pensar nos hantu saburos do Vale do Indo.

Eustácia alisa o amplo maxilar com as mãos, em um gesto


automático. — Os vampiros que vivem em cavernas e se alimentam
do sangue de animais?

— Não, mere sanam. Nas histórias que ouvi são cães


supostamente treinados para caçar seres humanos, trazendo-os
para servir de alimento. Não sei se há algo de verdade na lenda,
mas... a figura que parece um cão, no amuleto, me recorda isso.
Não sei se vale a pena mencionar isso em sua correspondência com
Wayren... mas você já deve ter mandado a mensagem, não? — Ele
levantou a cabeça do colo dela e sorriu. — Com certeza, já fez isso.
Com os pombos mais rápidos, não?

—Wayren deve receber a carta dentro de, no máximo, quatro


dias. Vou mandar outra, com as suas reflexões, porque aprendi a
jamais desconsiderar suas impressões.
— Ao menos você aprendeu algo, em mais de 50 anos.

Eles riram juntos, confortavelmente próximos, suas


respirações se misturando e seus narizes se tocando.

Quando o humor desapareceu de seu rosto, Kritanu pegou a


mão dela. — E você está preocupada com Vitória.

— Vero. É como se ela fosse minha filha. A dor ainda está


muito pungente, nela. E houve todos aqueles boatos, a compaixão
pela nova esposa do Marquês de Rockley, casada há tão pouco
tempo e já viúva.

— A versão contada é de que ele morreu no mar. Bastante


razoável.

— Si, embora houvesse mais do que alguns comentários


sobre a razão que ele teria para deixar o continente sem sua
esposa, se é que estavam tão apaixonados... mesmo os criados não
sabem o que de fato aconteceu. E, com certeza, nem a mãe dela.
Vitória manteve a cabeça altiva corajosamente, durante tudo isso...
mas ela tem apenas 20 anos — jovem demais para suportar
tamanha carga e sofrimento. Nossa vida, tal como se apresenta, já é
suficientemente difícil.

— Não é culpa sua, Eustácia. O que aconteceu não foi


responsabilidade sua.

Uma súbita amargura perpassou os olhos dela. Ele a


conhecia tão bem. — Sei disso... mesmo assim, não posso me
abster de culpa. Se ela não tivesse se transformado em Venadora...
se eu não a tivesse forçado a isso...

— Você não a pressionou. Ela estava destinada a ser... como


você. Se bem me lembro, você não estava se esquivando de assumir
a tarefa... nem mesmo era recatada, ao menos quando um homem
mais jovem apareceu para ensinar você a usar kalaripayattu e a
meditar, com ioga. Não queria nada comigo, muito mais jovem do
que os seus 24 anos. — ele alisou os dedos feios e nodosos daquela
mão envelhecida. — E veja que diferença você acabou fazendo no
mundo, sanam. Sem você... sem seu dom e sua coragem, o mundo
dos mortais seria muito distinto do que é, agora. Lembra-se daquela
véspera de Natal, em Veneza? Eustácia... se você não tivesse
impedido aqueles Guardiões, a cidade inteira teria se perdido.

— E Lilith teria o Fecho de Ouro em suas mãos. — A sombra


de um sorriso passou pela boca de Eustácia. — Nós conseguimos
frustrar Lilith mais de uma vez, não, amore mio?

— Nós... você conseguiu. — Os olhos dele, a pupila e a íris da


mesma cor negra, cintilaram com seriedade. — Você e Max e os
outros... porém você, mais do que todos. E agora é a vez de Vitória.
Ela está destinada à grandeza. Você sabe disso, porque ela carrega
duas gerações de habilidades Venadoras, tanto de seu irmão como
de sua frívola mãe. Você deve deixá-la conseguir.

— Penso que, na realidade, foi melhor a mãe de Vitória não


ter aceitado seu chamado como Venadora. Não creio que Melly fosse
capaz de desistir de seu amor pela vida social, para caçar vampiros.
— O último traço de leveza e conforto se foi, rapidamente. —
Kritanu, estou mais preocupada é com Max.

— Você não tem tido notícias dele?

Ela balançou a cabeça devagar. — Nada, ao longo de mais de


oito meses. Não fui completamente honesta com Vitória, quando lhe
disse que Wayren estava com ele. Ela foi para a Espanha, depois a
Paris, até um mês atrás, quando soube que eu nada sabia de Max
desde agosto último, logo depois que ele chegara a Veneza. Wayren
voltou à Itália para ver se conseguia encontrá-lo.., mas, não. Parece
que ninguém sabe onde ele está. — Levantando os olhos, ela fitou
seu sanam, seu bem -amado — Ela informa que Tutela está se
levantando de novo. Receio que essa é a tarefa desse vampiro
chamado Nedas.

Eles se elevaram antes e nós os impedimos.

— Desta vez, Kritanu, há algo diferente. E eu temo não ter a


energia nem a clareza mental para saber do que se trata... e o que
fazer. Sou velha e vagarosa. E sinto dores.

— É a vez de Vitória, pyar. Você fará o que puder, mas não


tudo. E não se preocupe com Max. Ele usa a vis bulla, porque
nasceu para isso. Ele é um dos poucos que passaram a vida e a
morte sendo testados para fazê-lo. Há uma razão para isso.

— Eu sei, mesmo assim temo por ele.


3
Um encontro com um cavalheiro muito discreto

Vitória havia andado muitas vezes, à noite, desde que


assumira seu dever como Venadora.

A liberdade de usar calças e ir para onde quisesse tinha sido


uma aventura agradável, não obstante o perigo de perseguir os
mortos-vivos. Saber que nenhuma outra mulher desejaria, ou seria
capaz de perambular sozinha naquelas ruas vazias e perigosas,
enchia-a de entusiasmo.

Saber que mesmo um homem estaria em grande perigo, ao


atravessar, a pé e sem companhia, lugares como Great St. Andrews
ou Little White Lion of St. Giles, fazia com que ela se sentisse
invencível.

Entretanto, esta noite ela estava inquieta. Seus nervos


pareciam seus cabelos — depois que sua criada Verbena os
escovava em excesso —, eriçados pela estática e acúmulo de
energia. Esperava por aquele formigamento ou calafrio no pescoço.
Ela agarrou sua estaca, segurando-a pronta para uso nas dobras de
seu casaco masculino; antes, porém, ela costumava deixar a arma
guardada no bolso, até que precisasse dela.

Ela poderia ter ficado em St. Heath’s Row, a salvo atrás dos
portões decorados com cruzes e paredes de pedra. Ela poderia ter-
se permitido outra noite ou mesmo duas, depois da experiência no
Cálice de Prata. Ela até poderia ter esperado tia Eustácia receber
alguma informação de Wayren sobre o amuleto que encontrara.
Poderia, ainda, passar a noite debruçada sobre a coleção de
manuscritos e pergaminhos que sua tia guardava na casa dela,
procurando por alguma pista para ter uma ideia se aquilo fora
deixado pelo demônio que ela decapitara ou, seja lá o que fosse,
talvez pudesse ter sido perdido por Sebastian, meses atrás.

Contudo, ela não fez isso. Se os vampiros estivessem, mesmo,


de volta, era seu dever caçá-los e matá-los. Ela não poderia
permanecer escondida na casa de seu marido imaginando como
poderia aniquilar um demônio, caso encontrasse com outro, de
novo.

Seu dever era manter pessoas inocentes e inconscientes a


salvo dos imortais que se alimentam da vida dos incautos. Se os
habitantes de Londres, na verve de toda a Inglaterra, tivessem a
menor ideia de quão facilmente o mal andava a seu lado, haveria
uma histeria em massa.

Então, em vez de ir a jantares festivos ou lojas de roupas e


chapéus, Vitória treinava, planejava e caçava.

Uma sombra que se destacava na esquina de um beco


chamou sua atenção quando ela passava por ali.

Sentiu que a coisa seguiu seus passos, caminhando


tranquilamente atrás dela; silenciosa... ah, silenciosa demais.

A parte de trás de seu pescoço não esfriou. Ela não sentiu


nada mais, nem mesmo agulhadas em seus nervos. Esse, então, era
um mortal que a espreitava, e Vitória esperou que ele se movesse
em sua direção, deixando a estaca deslizar para o fundo de seu
bolso. Não obstante sua desconfiança, ela estava pronta para lutar
com algo que sabia muito bem como enfrentar.

Dobrando uma esquina, Vitória deu dois passos antes de ver


a outra figura se aproximando dela pela esquerda. Ela girou,
graciosamente, e sacou a faca que mantinha atada às pernas de
sua calça, deixando que brilhasse à luz esmaecida. Seus dedos
tremeram, mas ela manteve a mente clara. Se precisasse usar a
arma, manteria sua mente limpa e equilibrada.

— Num tem precisão de usá isso aí, malandro — grunhiu


alguém com um sotaque cockney, bem atrás dela. Algo pontiagudo
foi introduzido na parte de trás de seu casaco.
A segunda figura bloqueou a calçada, as pernas separadas e
fortes, segurando algo prateado na mão. Sua face era sombria, sua
envergadura, poderosa. Quanto maiores eles fossem...

Vitória parou, calma, sua mão segurando a faca, oscilando ao


seu lado. Ela não se virou para ver o homem que estava atrás, mas
manteve os olhos no que estava diante dela, ouvindo e sentindo
aquele às suas costas. Seu coração pulsava estavelmente, seus
músculos se retesaram em antecipação e a energia aumentava em
seu interior.

— Cê dêxa isso pra lá, num vai precisá. Nóis só qué suas
coisa di valô.

— Não tenho nada valioso, então me deixe passar — ela disse


ao homem, sem disfarçar a voz feminina.

Ela percebeu um sobressalto de reconhecimento na pessoa


que barrava a calçada — o exato momento em que ele notou que ela
não era um almofadinha maluco procurando lugar em mesas de
faraó, aquele popular jogo de cartas, senão uma mulher indefesa.
Mesmo sob a luminária da rua, fraca e imunda, ela viu que os
lábios dele se abriam em um sorriso e notou o espaço na frente,
onde um dia talvez tenha havido um dente.

— Óia, cê pode num tê nada nos bolso, mas tem uma coisa
que a gente qué — o primeiro homem falou, atrás dela. Ele já não
estava mais cutucando Vitória com o que ela achou que fosse á
ponta de uma faca. Aparentemente, apesar de ela ter mostrado uma
arma, ele não parecia mais sentir necessidade de contar com uma
própria.

Ele era muito louco, e isso ficou claro quando ele procurou
por ela.

No momento em que colocou os dedos dele sobre a parte


superior do braço dela, Vitória reagiu. Ela escapou facilmente do
aperto e atacou, a faca brilhando. Seu chapéu caju, e a trança que
estava escondida embaixo dele se espalhou sobre seus ombros,
quando ela rasgou a manga dele com a lâmina e depois deu a
impressão de que ia desistir. O homem deu um grito quando ela o
cortou, mas o movimento seguinte de Vitória foi prejudicado por um
empurrão, vindo de trás.

O grandalhão da frente a fez girar, e quando ela se colocou


em posição de ataque de novo, ele estava pronto para golpeá-la,
meio agachado, a faca na mão. Ela é brava, é mesmo — riu — e óia
que a gente quase dexô ela ir embora. — Ele tomou fôlego e Vitória
se inclinou, lançando a cabeça contra a barriga dele, com força
suficiente para deixá-lo sem ar.

Ela se afastou, fazendo movimentos com sua faca,


controlando com facilidade a batalhadora irada que fervia em seu
interior. Tirando os cabelos de seu rosto, ela voltou para agarrar o
primeiro homem pela nuca. Com um grande golpe, ela o lançou
sobre seu comparsa e observou enquanto eles rolavam no solo.

O grandão se levantou com surpreendente agilidade, se


deslocando até ela, agora com o sorriso sarcástico substituído pela
fúria. — Sua putinha!

O arco traçado por sua faca, no ar, fez com que ele parasse e
ela o acertou no canto do queixo, se aproximando demais dele em
detrimento de seu próprio nariz, porque o homem fedia a chiqueiro.
Acabei com você, agora. Tenho coisas mais importantes a fazer do
que ficar brigando com vocês dois, seus loucos.

O homem menor desapareceu nas sombras de onde saíra,


mas o maior permaneceu no chão.

Uma carruagem se aproximava, emergindo de uma rua


escura na direção desta, triturando os cascalhos do caminho. Os
instintos de Vitória se aguçaram, quando a parte de trás de seu
pescoço esfriou, mas ela não deixou de prestar atenção no homem
que a abordara.

Como se estivesse se preparando para atacar, o homem se


movimentou, no momento em que a carruagem reduziu a
velocidade, ao passar por ali. O frio, na nuca de Vitória, ficou mais
acentuado e, definitivamente, tinha a ver com a chegada do veículo.
Ela segurava a faca, quando a porta se abriu. Antes que reagisse,
porém, um homem saltou, caindo bem apoiado em seus dois pés,
no chão irregular.

Ele usava uma roupa muito benfeita, mais parecida com um


residente de Hanover Square do que de St. Giles. Seu rosto estava
meio ofuscado por causa das abas do chapéu alto, mas ela podia
ver as linhas de um longo nariz e de um queixo quadrado.

Ele girou, brandindo uma pistola, que apontou para o outro


homem. — Eu devia estorá seus miolo rosnou o recém –chegado —
atacanu uma muié na rua!

Um vampiro? Falando com uma voz vagamente familiar e


daquele jeito malandro? Seguramente, não.

O calafrio estava, mesmo, levantando os pelos de sua nuca e


afiando seus sentidos, mas esse homem não era um morto-vivo. Ela
sabia muito bem... mesmo assim, ainda permanecia em alerta.

Então, Vitória viu uma suave mudança na sombra, de cinza-


escuro para negro, atrás da carruagem.

Ah!

Abstendo-se da altercação em que o recém-chegado se


envolveu e da agitação quando ele avançava sobre o bandido, ela
procurou em seu bolso e agarrou a estaca, que substituiu pela faca.

Ela se virou e viu o fraco brilho dos olhos vermelhos entre


dois edifícios de madeira, no lado oposto da rua — um espaço com
largura quase insuficiente para que um homem de ombros largos
pudesse caminhar. Seu pulso se levantou e ela sorriu, no meio da
noite, se esgueirando na frente da carruagem parada, até cruzar a
rua... na direção daquele estreito corredor.

Ouviu um grito de alarme atrás dela, como se o recém-


chegado a tivesse visto seguir para aquele espaço estreito... mas ela
o ignorou.

Enquanto se movimentava no interior do beco escuro, Vitória


pisou em algo que se alterou e afundou sob seus pés, de maneira
que ela se desequilibrou, batendo em uma parede de tijolos. Era
algo peludo e se contorcia, mas não tinha oito patas e nem estava
esmagado. O próximo passo levou sua bota a encontrar algo macio,
lodoso e pútrido, e quanto ela deu mais um passo notou que os
olhos vermelhos haviam desaparecido e que a parte de trás de seu
pescoço estava esquentando.

O vampiro tinha ido embora.

A sensação em sua nuca, também.

Ali no escuro, franzindo a testa, Vitória parou e ouviu e


sentiu. Fez profundas respirações, como Kritanu a ensinou,
profundas respirações para aumentar sua consciência e acalmar os
nervos. Nada. Ela não sentiu nem ouviu nada.

Recusando-se a crer que sua oportunidade de lutar se


desvanecera, Vitória esperou mais, em contemplação. Esta era a
segunda vez, em duas noites, que ela encontrava vampiros, depois
de meses de nenhum evento parecido.

Na noite passada, ela tivera a perturbadora experiência de ser


incapaz de matar um deles ou de matar o que ela pensava ser um
vampiro. E nesta noite, o que ela conseguira atacar com a estaca
simplesmente desaparecera, silenciosa e rapidamente, deixando-a
com a estaca na mão e a estranha sensação de trabalho inacabado.

Ela ouviu e sentiu, de novo. Ainda nada!

Quando Vitória se virou para dar os quatro ou cinco passos


que a levariam para fora do beco, ouviu um grito, vindo da rua.

— Madame! Senhorita!

Era o proprietário da carruagem, aquele que resolvera salvá –


la dos bandidos. Mais uma vez, ela pensou que a voz dele era
familiar. Ela voltou para o que podia ser considerado área
iluminada, nessa noite escura, fora do beco, e disparou em direção
ao carro. — Estou aqui — Ele se virou, encarando-a, e o
reconhecimento foi simultâneo.

— Senhor Starcasset!

— Lady Rockley!
Vitória não podia acreditar em seu infortúnio. Seu pretenso
salvador era o irmão de sua boa amiga Gwendolyn Starcasset. E ele
estava olhando para ela com compreensível preocupação, imóvel,
como se fosse incapaz de pensar no que fazer.

Como, aliás, ocorreria com qualquer outro membro da


aristocracia, caso encontrasse uma viúva, que acabava de sair do
luto, sozinha na parte mais perigosa de Londres, no meio da noite,
sem contar o fato de que ela estava vestida com roupas masculinas.

Apesar da estranheza da situação, Vitória não pôde deixar de


se divertir ao observar como o homem estava lutando para
encontrar algo polido para dizer, então se apressou em ajudá-lo. —
Senhor Starcasset, grata por sua ajuda — ela lhe disse,
timidamente. Não estava disposta a oferecer nenhuma explicação
sobre sua presença ali.

Ele pareceu aceitar sua assertiva. — Madame, posso


acompanhá –lo até sua casa? — Sua atenção se deslocou dela para
a esquina e retornou, de novo, como se esperasse ver outro veículo
ou pessoa ou guarda. — Certamente, você deve estar... com frio?

Ele tirou seu chapéu, que, ao contrário do de Vitória, de


alguma forma se manteve no lugar, durante o entrevero com o
bandido. Agora, ela podia ver mais do belo, embora um tanto
infantil, rosto dele; o queixo forte e o nariz estreito evocaram,
desconfortavelmente, os traços de Filipe.

Mas George Starcasset, herdeiro do Visconde de Claythorne,


tinha as bochechas mais arredondadas, os cabelos loiros, em vez de
escuros, e seus olhos, embora não fossem de um azul profundo,
revelavam pálpebras mais leves, do que as pesadas, de seu marido.
Ela não podia vê-los direito sob a luz baça, mas Vitória sabia que
tinham a cor de um oceano bravio, porque o senhor Starcasset já
havia olhado muitas vezes para ela, desde que se conheceram.

— Não estou com frio, grata, senhor, e minha carruagem já


vinha se aproximando, enquanto falávamos. — Ela ouvira o ruído
do veículo conduzido por Barth, percorrendo as ruas, momentos
antes dele aparecer.
— Uma carruagem? Madame, não posso permitir que você se
dirija sozinha para casa, no meio da noite. Por favor, dê-me o prazer
de levá-la a Sr. Heath’s Row.

Vitória deveria estar acostumada a ser chamada de


“madame”, mas não estava. Isso fez com que seus olhos se
enchessem de lágrima, porque ela teve de morder a língua para não
dizer o que realmente sentia. O título poderia ser importante para
qualquer outra mulher e ela certamente não desdenhava o conforto
e a riqueza que obteve ao casar com Filipe, mas ela abriria mão de
tudo isso, se ainda pudesse tê-lo. E cada vez que alguém usava o
título, ela se lembrava de sua perda. Porque antes de Filipe, ela
tinha sido simplesmente “senhorita.”

Inesperadamente, seus olhos perderam o brilho. O senhor


Starcasset deve ter percebido, porque procurou pelo braço dela, e a
amparou com firmeza, enquanto disse, consoladoramente:

— Esta noite deve ter sido desafiadora para você, tenho


certeza, Lady Rockley. Por favor, me permita vê-la chegar em sua
casa, no conforto de minha carruagem.

— Muito bem, senhor Starcasset. Grata por sua insistência.


Vitória fez um sinal a Barth, que havia deslizado corajosamente de
seu assento, e não se preocupou em esconder a estaca, em uma das
mãos, e a pistola, na outra. Ao menos ele estava preparado para
qualquer eventualidade, incluindo a proteção garantida pelo grande
crucifixo que pendia de seu pescoço.

Ela se virou para subir na carruagem oferecida e, ao fazer


isso, esbarrou em Starcasset.

— O que você está segurando? — ele perguntou, procurando


a mão que ainda segurava a estaca.

Vitória acomodou o objeto no interior de seu casaco, antes


que ele pudesse agarrá-lo. — Uma varinha.

— Com certeza, estou muito feliz de ter chegado até você,


madame, pois temo que essa varinha não seria de muita serventia
como defesa contra aqueles bandidos. — A carruagem sacolejou
quando ele subiu, depois dela.
— De fato —, Vitória resumiu sua resposta a um murmúrio e,
acomodando-se no assento, introduziu a estaca no bolso interno do
sobretudo.

A carruagem se colocou em marcha, levando Vitória embora


de um jeito mais suave e tranquilo do que ela costumava ir para St.
Giles. Ela e Starcasset ficaram em silêncio por algum tempo,
enquanto Vitória refletia sobre a presença de outro vampiro que
parecia ter fugido dela... ou, e o pensamento a tomou de assalto,
talvez quisesse que ela o seguisse.

— Lady Rockley, se me permite perguntar, como você tem se


saído nesses últimos meses? Gwendolyn me disse que você tem
recebido apenas alguns poucos visitantes. Penso frequentemente
em você.

— Grata, senhor Starcasset. Aprecio muito seus sentimentos.


E sobre como tenho passado... bem, tem sido um longo ano, mas
espero e creio que o pior já passou. Eu disse à sua irmã, na semana
passada, que estou me preparando para retornar integralmente à
sociedade.

À fraca luz da lanterna que balançava ao ritmo do pavimento


da rua, o sorriso dele era excessivamente caloroso. — Posso dizer
que fico muito contente ao ouvir isso. E sei que Gwendolyn sentiu
demais a sua falta nos acontecimentos desta temporada. Mas agora
que está chegando ao final, posso assegurar que estamos nos
preparando para nos retirar rumo a Claythorne. E se não parecer
muito avançado de minha parte, acredito que seria um grande
prazer para minha irmã que você viesse estar conosco, lá.

— Com certeza. É muito gentil de sua parte, senhor


Starcasset.

— Vitória se viu querendo corar sob o olhar quente dele,


tornando mais claro que ele ficaria realmente encantado com a
presença dela. — Gwendolyn falou a respeito disso, comigo.

— Estávamos apenas conversando, na última quarta-feira,


sobre a festa em nossa casa, realizada anualmente, como uma
celebração ao começo da temporada de tetrazes. Obviamente, você
teria sido convidada, no ano passado, mas... oh! perdoe-me,
madame. Não foram os melhores tempos, para você — ele passou os
dedos na lapela de seu casaco, em um gesto meio nervoso. —
Gwendolyn estava pensando em voz alta, na esperança de que você
pudesse vir este ano. E como eu fico alegre ao ter a oportunidade de
reiterar o convite, pessoalmente.

Vitória se abstém de comentar que a alegria teve pouca


participação no encontro deles, naquelas escuras, frias e úmidas
ruas de St. Giles. O perigo e a casualidade, talvez.., mas não a
alegria. — Fico muito honrada e decidi aceitar o convite — ela
respondeu. Já era tempo de que ela, ao menos, abandonasse as
roupas pretas que vinha vestindo. Certamente, ela nunca estaria
disposta a participar dos bailes, das festas, das modas e dos chás
que constituíam a rotina da sociedade de maneira tão plena como
antes... talvez pudesse encontrar algum tipo de equilíbrio entre
duas vidas.

Ou, quiçá, ela estivesse fadada à solidão de perambular pelas


ruas à meia-noite, em vez de ficar em casa com um namorado
bonito, depois de uma longa noite de danças.

— Ficarei muito feliz de estar com vocês em Claythorne — ela


acrescentou, com real prazer.

— Esplêndido! Vou contar a ela amanhã que você aceitou ele


comentou gentilmente. — Não vou dizer a ela quais foram as exatas
circunstâncias de nosso encontro — os lábios dele se abriram em
um sorriso jovial.

— De fato, eu gostaria e apreciaria sua discrição, quanto a


isso — Vitória sorriu de volta para ele, percebendo que o riso dele
era tão agradável que fazia com que qualquer pessoa quisesse
compartilhar de seu bom humor. Ela esperava que ele honrasse o
compromisso e não contasse a Gwendolyn nem a ninguém mais da
sociedade o fato de que a encontrara andando sozinha nas ruas, à
noite. Embora achasse que se ele fosse capaz de fazer isso, poucos
haveriam de acreditar em suas palavras.
Enquanto se acomodava na carruagem, ela ficou pensando o
que exatamente havia levado o próprio Visconde Claythorne àquelas
ruas perigosas durante a mesma noite escura.
4

Verbena mostra seu jeito

— Faiz um tempão que num vejo ocê usá uma cor diferente
do preto — Verbena cacareja enquanto ajusta o corselete de Vitória.
— Ocê já divia di tê passado pro meio-luto faiz uns seis meses,
usano esse bonito cinza pérola. Memo quando todo mundo tava
diluto pela princesa Charlotte, Deus tenha piedade da alma dela, o
pessoá passô pro cinza antes dos seis meses. Mais não ocê, não
memo, e eu num posso dizê que ocê tem culpa, porque nóis perdeu
o marquês daquele jeito horrívi, mais dona, a sua pele tá sentino
falta di cores bonitas como aqueles amarelo e pêssego. Tá certo,
memo, dá um poco de vida pras suas bochecha.

Vitória sabia muito bem que não deveria dizer uma só palavra
quando sua criada estava discursando. Provavelmente Verbena
estivesse falando nisso durante os últimos nove ou dez meses e não
poderia ser dissuadida de defender seu ponto de vista,
independentemente do que sua patroa poderia ter vontade de
objetar.

— Tudo que eu posso dizê é que tô contente de tê falado pra


ocê dexá todos aqueles vestido preto e cinza lá onde ocê mora. Esta
aqui é uma casa de festa e a gente tem de si diverti. Ocê merece
isso, patroa. Merece memo. — Seus incríveis cabelos cor de laranja
estavam presos em dois tufos, abaixo de cada orelha, e
permaneciam ali, duros como malhas de arame.

Os olhos de ambas se encontraram no espelho, um par de


cintilantes e bem humorados azuis, e o outro, pestanudo,
amendoado e sério. — Mais tou feliz de ver — Verbena acrescentou
de maneira mais delicada — que ocê não tirou a sua vis bulla. O
que é que ia sê da gente sem ocê e os outro Venadores?

Verbena, cujo primo era Barth, o condutor da carruagem,


havia reconhecido imediatamente o amuleto de caça-vampiros, logo
depois que a moça começara a usá-lo, havia mais de um ano.
Vitória não sabia muito bem como ela sabia sobre vampiros e
Venadores, quando o restante dos moradores de Londres sequer
desconfiava de sua existência; mas era um alívio que sua criada,
que também inexplicavelmente sabia como tratar mordidas de
vampiros e não tinha medo de visitar lugares como o Cálice de
Prata, conhecia seu segredo. Era uma feliz casualidade ter uma
criada assim, pois ela sabia dos detalhes mais íntimos de sua vida,
especialmente quando envolvem muitas saídas a esmo e o uso de
roupas que pertencem ao gênero oposto.

Vitória balançou a cabeça, esboçando uma respiração mais


restrita, agora que havia sido mais apertada em seu corselete. — Eu
me sinto melhor quando estou usando a vis, isto é certo. Em todo o
caso, espero que não tenha abdicado de nenhuma necessidade de
usá-lo enquanto permaneço em Claythorne. Para ter certeza, não
concordei em sair de Londres enquanto tia Eustácia não me
garantisse que me avisaria se houvesse alguma ameaça a ser
contida. Só vi um vampiro, além daquele que matei, e não encontrei
sinais de outros, desde a noite em que me deparei com o senhor
Starcasset.

— Sua tia Eustácia é mêmo uma muié esperta — Verbena


disse, escavando cuidadosamente a pilha de vestidos para não
amassá-los. — Tá certo que aquele mordomo dela, o Charley... ele
sabe mêmo como mantê sua boca fechada. Num posso dizê que não
tentei fazé com que ele me contasse o que tava acontecenu, mais os
lábio dele tavam fechado como uma concha. E aquele amigo dela...
o tal sinhô Maximiliam Pesaro... Ele é muito sedutô, se é que eu
posso dizê. Ele é tão bonito, qui até dá medo, a gente pode falá —
ela estremeceu. — Se eu não conhecesse melhó a coisa toda, podia
até pensá que ele era um vampiro, por causa daquele jeito elegante
e perigoso que ele tem di oiá.
— Você não é a primeira a pensar isso dele — Vitória
retrucou secamente. Ela ficou em pé, se afastando da penteadeira
de madeira branqueada e se dedicou à, na certa, difícil tarefa de se
recusar a deixar que Verbena a vestisse com algo carmim escuro ou
cor de junquilho brilhante para seu primeiro jantar em Claythorne.
— Ele é um tremendo Venador, isso é certo. Não posso dizer que
entendo porque ele foi embora tão depressa depois que Filipe
morreu, mas minha tia disse que ele era necessário em Roma, como
se não fosse preciso que estivesse aqui. Acho que eu deveria usar
aquele traje marinho, esta noite, Verbena.

— Marinho? Minha dama, isso é tão ruim como o preto! Óia


só... essa bonita cor de amora não é bem mió? Oiá só... num parece
que faz as suas bochechas ficá mais rosada? E perto desses cachos
negros? Faiz tamém os cílio ficá mais escuro, que nem uma escova
— ela colocou seu vestido preferido na frente de sua patroa. —
Bão... aquele sinhô Pesaro na certa ajudô ocê no verão passado,
quando cêis tava tentano impedi que Lilith pegasse aquele livro
especial que ela queria. Quem sabe ele achô que tinha ficado muito
tempo por aqui e que precisava ir pra casa dele.

— Talvez — Vitória comentou, tentando imaginar como seria


na primeira vez que visse Max de novo. Ela sentiu que a
animosidade que surgira entre eles, sob a camada de polidez e
proximidade forçada, talvez tivesse amainado um pouco, depois do
que acontecera, mesmo que ela ainda estivesse aborrecida com o
fato de ele ter ido embora de Londres repentinamente.

Afinal de contas, ela tinha visto o impressionante Max cair


sob o controle de Lilith, por quem havia sido subjugado, mostrando
uma fraqueza que ela jamais teria atribuído a ele... e ele vira Vitória
aprender a lutar como uma Venadora e evoluir de uma debutante
mediana a uma feroz e corajosa caçadora de vampiros.

A roupa escolhida por Verbena estava flutuando sobre


Vitória, escorregando para baixo de seus ombros, e antes que ela
percebesse, o momento de parar havia passado. — Não, o cor de
amora, não! — exclamou em vão. — É brilhante demais!
Mas já estava vestida e rapidamente sendo abotoada pelas
costas, quando Vitória se olhou no espelho. Ela ficava muito bem
com aquela roupa. Deus do céu, fazia um ano que ela não se
arrumava desse jeito, e Verbena estava certa. Realmente trazia de
volta um tom de rosa suave a seu rosto. Ela mordeu os lábios, o de
cima e o de baixo, e eles se avolumaram e avermelharam como se
tivessem sido beijados.

— Muito bom, minha senhora — Verbena lhe disse, fazendo


uma trança estreita dar uma longa volta no alto da cabeça dela. —
Ocê num tem nada que se senti culpada, agora. Ocê ficou de luto
completo por seu marido e memo que não vai nunca deixar de amar
ele, tem que lembrá: ocê ainda tá aqui e tem uma vida pra vivê. —
Ela terminou a trança e a enrolou no resto dos cabelos de Vitória,
arranjados atrás de sua cabeça.

— Sim, uma vida. E um dever. — Seus olhos verde-


amarronzado cintilavam acima de suas bochechas coradas.

Os olhos azuis de Verbena encontraram os de sua patroa, de


novo. — Um dever para o qual ocê tá bem preparada — ela
introduziu o último grampo no cabelo e sorriu com satisfação.

— Mas isso não qué dizê que ocê tem que sê uma monja.

Vitória acenou para seu reflexo, e então levantou-se da


cadeira. — Está na hora de descer para o jantar. Talvez eu tenha
um pouco de alegria, antes que o dever me leve de volta a Londres.

— Espero que a senhora tenha memo. Merece.

Vitória deixou seu quarto no segundo andar e desceu para a


sala de visitas, onde os demais convidados se reuniriam antes de
jantar. Ela chegara havia apenas duas horas, tivera um breve
encontro com Gwendolyn e se recolhera ao quarto para se trocar.

Agora, ela entrou na grande sala de visitas e notou que cerca


de dez convidados já estavam ali. Três cavalheiros estavam em um
dos lados do recinto e pareciam segurar uma garrafa de algum
líquido dourado. Um deles Vitória reconheceu como sendo o pai de
Gwendolyn, o Visconde Clayrthorne. Ele estava falando com o
Barão Frontworthy, o mais fervoroso pretendente de Gwendolyn.
— Vitória! Você está linda! — Seu amigo se levantou e veio
até ela, imediatamente. Estava acompanhado de uma mulher idosa
e elegante. — Deixe-me apresentar-lhe, Lady Rockley, minha tia,
Lady Manley.”

Vitória fez uma reverência e cumprimentou-a.

— Boa-noite, Lady Rockley.

Vitória se virou ao ouvir a voz de George Starcasset. Ele se


curvou sobre a mão que ela lhe estendia e fez uma breve reverência.
— Boa-noite, senhor Starcasset. Devo lhe agradecer novamente por
me convidar para sua festa.

— Gwendolyn e eu estamos encantados por tê-la aqui


conosco — ele sorriu e colocou a mão no braço dela. — Posso lhe
oferecer um xerez?

— Com certeza, seria ótimo — Vitória deu um sorriso, por


cima do ombro para Gwendolyn, que não parecia muito surpresa a
respeito das atenções de seu irmão. De fato, os olhos brilhantes de
sua amiga mostravam que ela estava muito satisfeita com a
situação.

— Os outros estarão conosco em pouco tempo. O senhor


Berkley e sua irmã, a senhorita Berkley, talvez você conheça, junto
com o senhor Vandecourt. E nosso outro convidado — Starcasset
lhe contou, enquanto lhe oferecia um copo em formato de tulipa —
tenho certeza de que você gostará muito de conhecê-lo. Ele é uma
celebridade.

— Uma celebridade? — Vitória sorveu o doce xerez, olhando


para o irmão de Gwendolyn, com a cabeça delicadamente inclinada
para o lado. Que maravilhosa é a sensação de pensar, não em
vampiros e estacas, não em perdas e sofrimento, mas no belo
cavalheiro que está diante dela.

— Sim, o doutor John Polidori, o autor.

Vitória piscou. Não, aparentemente nem mesmo aqui ela


podia se afastar de vampiros.
O senhor Starcasset tomou sua expressão como uma
evidência de que estivesse confusa e tratou de explicar: — Ele
escreveu o livro O Vampiro. Foi publicado em New Monthly, com o
nome de Lord Byron, mas só recentemente se soube que o
verdadeiro autor era Polidori. Comenta-se que ele baseou-se no
próprio Byron para compor o personagem do vampiro, Lord
Ruthven.

— De fato... — Vitória murmurou. Seria interessante


conversar com o doutor Polidori. Ela ficou imaginando se ele
conhecera mesmo algum vampiro. Muito improvável, pois se
tivesse, não estaria escrevendo novelas românticas sobre o tema.

— O doutor Polidori e o senhor Vioget chegaram minutos


atrás e se apressaram a vestir-se para o jantar. Vamos esperar pela
chegada deles, antes de iniciar a ceia. Lady Rockley, algum
problema?

— O doutor Polidori não está viajando sozinho? — Vitória


tentou fazer com que sua voz soasse casual, mas o que deveria ter
sido um pequeno gole de xerez se tornou um grande trago e a levou
a controlar uma tosse áspera.

Ele viaja com seu amigo, o senhor Sebastian Vioget, que


conheceu, acredito, quando esteve antes na Itália, com Byron.

— Itália? Sei. — Então era Sebastian e ele estava ali. Com o


autor de um livro sobre vampiros. Muito inesperado.

Vitória terminou seu xerez. A última vez que vira Sebastian,


ela o deixou em sua carruagem depois de um interlúdio mais
íntimo, e que terminou meio abruptamente, quando ele a entregou
a um grupo de vampiros, sedentos pelo sangue dela.

Ele a teve meio nua em sua carruagem e, meio tonta pelo


desejo, como ela se lembrava, sua face ardendo. Ele ficara
encantado ao saber que ela rompera o noivado com Filipe e tentou
tirar vantagem de seu estado de recente quebra de compromisso...
até que ela percebeu a presença de vampiros.

No momento em que eles estavam andando na carruagem


dele, e Vitória não via nenhum vampiro havia semanas, eles
apareceram subitamente, cercando o veículo, ela não teve
escapatória senão achar que ele estava envolvido nisso. O jeito de
ele negar foi lembrar que havia salvado a vida dela antes... então
porque haveria de expô-la ao perigo naquele momento... mesmo
assim, Vitória não acreditou completamente nele.

— Ele parece um cavalheiro muito afável, embora um pouco


tímido — comentou Starcasset, aproximando-se tanto de

Vitória, que ela sentiu um sutil aroma de bálsamo.

— O senhor Vioget? Tímido?

— Eu quis dizer, em verdade, o doutor Polidori, embora o


senhor Vioget também seja muito agradável. Ah! E ali estão eles,
agora.

Starcasset se dirigiu até a porta, mas Vitória permaneceu


impudicamente na sala, de costas para a cena, fingindo estar
admirando um arranjo de longos tremoços de cor púrpura. Logo
saberia se Sebastian ficaria surpreso com a sua presença, como ela
estava com a dele.

Atrás dela, os outros convidados estavam sendo apresentados


ao doutor Polidori e ao senhor Vioget, como Sebastian se
identificava. Ao ouvir sua voz familiar e seu sotaque intrigante,
Vitória sentiu uma desconfortável agulhada.

Então, finalmente... — E... doutor Polidori e senhor Vioget,


quero apresentá-los a uma amiga particular de minha irmã, Vitória
de Lacey, a marquesa de Rockley.

Vitória se virou para encarar os três homens. — É um prazer


conhecer um homem de tanto renome, doutor Polidori. Seu
trabalho lhe rendeu uma boa reputação — ela disse, oferecendo sua
mão ao homem com emaranhados cabelos escuros. Um rápido
lapso de sua atenção sobre Sebastian lhe revelou que ela estava em
vantagem em relação a ele. Ela jamais vira um olhar de tanta
perturbação naquele rosto bonito. Seria cômico, se ela não tivesse
sido surpreendida, como ele.
— Senhora, tenho muito prazer em conhecê-la. E grato por
suas amáveis palavras. — Polidori curvou-se e soltou a mão dela,
virando-se para pegar um copo de brandy das mãos do visconde,
enquanto comentava sua viagem de Londres.

— Senhor Vioget —Vitória disse, e ofereceu a mão a


Sebastian. Obviamente recuperado, ele a tomou galantemente,
fechando seus dedos sobre a mão enluvada da moça, elevando-a até
seus lábios.

Ele não havia mudado nesse último ano: ainda


impecavelmente vestido no auge da moda, com os bastos cabelos
encaracolados sobre o colarinho alto de sua camisa e o mesmo
sorriso charmoso e superficial que sempre parecia esconder algo.

— Deixe-me expressar minhas condolências, Lady Rockley —


ele disse, enquanto erguia seu rosto da luva. Ele deixou os dedos
dela escaparem dos seus, quando ela retirou a mão, olhando-a com
intensidade. — Fiquei muito triste ao saber de sua perda.

Considerando o fato de que ele foi rápido ao tirar vantagem


quando foi informado de que ela rompera seu noivado com Filipe,
Vitória achou aquilo altamente improvável. Mas havia aquele ligeiro
sinal de embaraço no rosto dele... talvez ele estivesse se sentindo
arrependido em relação aos eventos que levaram o Cálice de Prata a
arder em chamas e Filipe e Max, finalmente, nas mãos de Lilith.
Ela, porém, não tinha certeza se a origem do arrependimento dele
era a perda de seu negócio ou a causa da morte de Filipe.

— Foi uma experiência terrivelmente triste — ela replicou


friamente e se voltou para o irmão de Gwendolyn com um caloroso
sorriso. — Quem é a linda mulher na pintura sobre a lareira,
senhor Starcasset?

Satisfeito por captar o interesse dela, Starcasset afastou-a de


perto de seus convidados e caminhou, com ela, até o retrato em
questão.

Vitória tratou de continuar a conversa com ele durante os


próximos minutos, enquanto esperavam que os últimos comensais
se juntassem aos que ali estavam. Enquanto continuava a fazer
perguntas sobre essa pintura, o vaso e a estátua sobre a mesa mais
adiante, ela manteve o foco de sua atenção em Sebastian.

Ele a observava, sem aparentar que fazia isso; discretamente,


ela o media de cima a baixo, sempre que ele se virava para falar
com alguém, deixando seus olhos vagarem na direção dela todas as
vezes que levantava seu copo para beber. Em vez de sentir um
calafrio na parte de trás do pescoço, sempre que um vampiro a
estivesse olhando, Vitória processava a atenção de Sebastian como
uma agulhada contínua entre suas omoplatas. A sensação era
acompanhada de uma desconhecida contorção do estômago. Ela e
Sebastian tinham negócios não concluídos a resolver.

Quando chegou a hora de caminhar até a sala de jantar, o


senhor Starcasset permaneceu ao lado dela e levou Vitória até uma
cadeira entre ele e o doutor Polidori. Sebastian foi conduzido ao
outro lado da mesa, perto da extremidade oposta, entre as
senhoritas Berkley e Gwendolyn.

— Tive o prazer de ler seu trabalho, doutor Polidori — Vitória


afirmou, descalçando suas luvas e acomodando-as em seu colo.
Havia lido O Vampiro antes mesmo de começar a ter consciência de
sua missão de Venadora. — É uma obra muito singular, pois a
maioria das outras histórias sobre vampiros os retrata como as
criaturas mais bestiais da classe baixa, enquanto seu gracioso e
charmoso Lord Ruthven poderia facilmente se encaixar entre as
pessoas da moda. Como é que você chegou a esse entendimento tão
diferenciado dessas criaturas?

— Na verdade, foi mais por culpa de Byron. Eu fui visitá-lo,


na residência de Shelley e sua esposa, e ela sugeriu um jogo entre
nós, para que escrevêssemos uma história sobre uma criatura
sobrenatural ou monstruosa. Byron se dedicou ao conto durante
algum tempo, mas depois se voltou para outra coisa, e como a ideia
captou meu interesse, eu decidi continuar.

— A resposta de Polidori era superficial, como se ele a tivesse


dado muitas vezes. Seus cabelos eram uma explosão de cachos
negros, indomáveis, não importava a quantidade de brilhantina que
usasse. Eles emolduravam seu rosto redondo e jovial, e se
espalhavam em todas as direções. Ainda que ele se expressasse
muito bem, uma cautela pairava em seus olhos, como se estivesse
preocupado com algo.

— Você escreveu de maneira tão convincente, doutor Polidori.


Acredita na existência de vampiros? E que eles realmente podem
estar entre nós, na sociedade? Alguns de nossos pares poderiam ser
vampiros, realmente? — O senhor Manley, a tia de Gwendolyn,
sentados do outro lado da mesa, pareciam bastante incomodados
com a ideia de que um vampiro pudesse estar sentado naquela
mesma mesa.

Vitória se recusou a trocar olhares com Sebastian, embora ele


tentasse. Ela esperava, sinceramente, que a mulher nunca tivesse
de ficar cara a cara com um vampiro, fosse ou não em sociedade. —
Somente membros da nobreza que não mostram seus rostos
durante o dia — Vitória comentou com um sorriso.

— De acordo com o doutor Polidori, eles não saem à luz do


dia. Se o fizessem, teriam uma morte horrível.., ou simplesmente se
consumiriam em chamas?

— Acredito que eles sofreriam terríveis queimaduras, mas


seria pouco provável que morressem, a menos que houvesse
excesso de exposição.

— E quanto às chamas? — Vitória perguntou, lembrando o


verão passado, quando ela e Max ficaram presos com vampiros em
um prédio que pegava fogo. — Elas poderiam queimá-los?

Polidori limpou migalhas do canto de sua boca. — Chamas de


incêndio não causam ferimentos em um vampiro, ao menos — ele
esboçou um suave sorriso — em minha imaginação.

E também na realidade. Vitória pensou em como era


interessante que Polidori parecesse ter um conhecimento tão
apurado dos demônios que têm sede de sangue.

— O doutor Polidori retornou recentemente da Itália. — O


comentário de Sebastian foi dirigido à senhorita Berkley.
— Itália? Jamais estive lá, mas ouvi dizer que Roma e Veneza
são lindas cidades. Por onde você viajou, na Itália? — perguntou
Gwendolyn.

— Passei muito tempo em Veneza, com Byron, até alguns


meses atrás, quando partimos para diferentes destinos. Ele achou
que não precisava mais de cuidados pessoais de um médico —
acrescentou com um sorriso de depreciação. — Viajei pelo país e
depois retornei à Inglaterra, perto do começo do ano.

A atenção de Vitória se deslocou do médico-que-virou-autor


para o senhor Starcasset, quando ele se inclinou bem perto dela e
disse: — Prometo-lhe, lady Rockley, que os cavalheiros não vão
deixá-las, as senhoras, por muito tempo sozinhas na sala, depois
do jantar. Espero que me acompanhe em um jogo de whist esta
noite, porque minha irmã afirma que você é uma jogadora
diabolicamente boa!

— Ela disse, mesmo? — Vitória replicou, tentando recordar se


já havia jogado cartas com Gwendolyn. Não acredita ter feito isso;
então, fica imaginando se o senhor Starcasset talvez a confundisse
com outra senhora, ou se estava apenas tentando unir-se a ela.
Esboçando um sorriso, ela se voltou para ele e, com um olhar
acanhado, disse: Terei muito prazer em ser sua parceira no whist,
se você concordar em cantar quando Gwendolyn se sentar ao piano.
Ela mencionou várias vezes, para mim, que você tem uma voz
agradável!

Ele sorriu para ela, os dentes largos e brancos e o olhar


quente. — Penso que devo avisá-la de que se trata de um exagero,
madame, porque Gwendolyn raramente permite que algum de seus
irmãos cante enquanto ela toca... mas tentarei, com alegria, porque
farei tudo para tê-la comigo em uma partida de whist.

De fato, Starcasset cumpriu sua promessa, apressando os


homens para terminar seus charutos e seu brandy, de maneira que
estavam de volta à companhia das mulheres menos de 30 minutos
depois que se afastaram, no fim do jantar. Seguiu-se um
empolgante jogo de whist, com ele e Vitória como parceiros, contra
a senhorita Berkley e o senhor Vandecourt.
Vitória, que não era conhecida por sua excelência nas cartas,
embora Starcasset afirmasse o contrário, tentava não ter um
desempenho embaraçoso, mesmo quando Sebastian caminhava até
suas costas e espiava sobre seus ombros, para verificar se a
atuação medíocre dela se devia à falta de boas cartas ou de
habilidade.

Era possível, também, que ele estivesse usando a


oportunidade para olhar para dentro do corpete de seu vestido, pois
demorava atrás dela, mas como ele estava bem familiarizado com o
que a roupa escondia, ela duvidou que necessitasse ficar ali
observando por tanto tempo.

Vitória sentiu seu rosto se aquecer ao lembrar que aquele


homem atrás dela, embora tivesse uma aparência conhecida, era
um estranho para ela... mas já passara suas mãos de dedos longos
em sua pele nua. E ela permitira.

— Creio que basta de whist para mim — disse calmamente,


quando terminou a derradeira mão da segunda partida e ela ainda
permaneceu em sua cadeira. — Talvez Gwendolyn e seu irmão
possam nos entreter ao piano.

Os irmãos Starcasset aceitaram seu pedido e seus lindos


duetos logo se transformaram em um conjunto mais animado de
músicas country. Os demais se juntaram ao coro e, bebendo mais
conhaque e xerez, logo as bochechas de Gwendolyn ficaram
vermelhas, a senhorita Berkley foi piscando ostensiva- mente para
Sebastian, e Vitória estava se sentindo alegre, como nunca, havia
meses.

Mas, quando ela viu a maneira como o senhor Vandecourt


ficou pairando junto de Gwendolyn, disposto a ajudá-la a arrumar o
travesseiro em que ela se sentava e a forma como a expressão dele
se suavizou quando ao olhar para a moça, Vitória sentiu uma onda
de solidão. Tinha sido assim com Filipe. Tão gentil, tão atencioso,
tão bonito.., e ela o perdera tão depressa.

Quando ela tentava amainar essa dor, que a agarrava pela


garganta; quando ela menos esperava, e se continha, jamais
pensara em encontrar um marido ou em ter fflhos. Ela não era
capaz de ser como Gwendolyn, feliz por estar apaixonada,
planejando uma vida familiar e ansiosa para que chegasse a
próxima temporada.

Assim era a vida que ela escolhera, e Vitória não se


amargurava com isso. Ela decidira — por razões corretas e as
liberdades que lhe foram concedidas —, as coisas que aprendeu, a
capacidade de confiar e se proteger foram suficientemente
compensadoras.

No entanto, havia momentos, como agora, ao ver a amiga


feliz, que notava a profundidade de seu sacrifício.

— Lady Rockley, algo a preocupa? — perguntou George


Starcasset, que se afastou do piano e se aproximou dela. — Posso
convidá-la a tomar um pouco de ar no pátio? Você parece que está
sentindo um pouco de calor.

— Não, obrigada, senhor — ela respondeu. — Temo que seja


porque estou fatigada com a viagem, desde Londres.

Desculpe-me, mas já lhe digo boa-noite.

— Com certeza. Talvez você se sinta melhor, pela manhã.


Boa-noite.

Vitória se despediu dos outros e deixou o sarau ainda em


curso. As últimas coisas que notou, antes de deixar o recinto, foi
que a senhorita Berkley e Sebastian estavam conversando em um
canto, perto do jogo de whist, e que o olhar azul do senhor
Starcasset seguia seus movimentos.

Quando retornou a seu quarto, Verbena a ajudou a se


preparar para dormir. A criada parecia não ter percebido o estado
melancólico de sua patroa, e encheu o que deveria ter sido um
completo silêncio com uma série de observações sobre os tipos
masculinos do grupo reunido em Claythorne. Um em particular
parecia ter atraído sua atenção e fez comentários poéticos sobre o
vice-mordomo durante todo o tempo que levou para tirar os
grampos dos cabelos de Vitória, para depois penteá-los em uma
trança bem apertada.
— Isso é tudo, para esta noite — Vitória disse, deslizando
para dentro das cobertas de sua cama. — Agora tire uma folga e
saia para ver se pode encontrar o impressionante John Golon e
pisque um pouco para ele.

Apesar de sua relativamente precoce saída da festa, lá


embaixo Vitória sabia que não conseguiria conciliar o sono
facilmente. Mais tarde, foi despertada por uma queda repentina na
cama a seu lado.

Ao acordar completamente ela notou movimentos do corpo


volumoso no colchão, enquanto as mãos da pessoa se erguiam para
ela.

— Lady Rockley. Vitória.

Junto com o murmúrio suave de seu nome, veio um bafo de


álcool. Era tão forte, que Vitória teve de se virar e segurar a
respiração. Uma mão passou por seu rosto e outra, ao longo de seu
braço... perigosamente próxima de seu peito.

— Senhor Starcasset? O que está fazendo aqui? — Saindo


fora do alcance dele, ela levantou da cama e acendeu uma vela.

A iluminação era suficiente para mostrar que ele se mexia


sob as cobertas e que erguia seu rosto de olhos vidrados.

—Vitória.., se é que eu posso chamá-la assim... — ele disse,


as sílabas grudadas, umas nas outras, em uma estranha cadência.
— Eu soube... eu captei os sinais...

— Senhor Starcasset, não sei do que está falando, mas você


está completamente embriagado. — Vitória quase caiu na risada,
diante da expressão completamente confusa do rosto dele. Talvez
ela devesse se sentir afrontada pela impropriedade do homem, mas
naquele momento ele parecia tão inofensivo e atrapalhado, que ela
ainda achava a situação engraçada. O próprio George Starcasset
ficaria mortificado se soubesse que seu ser bêbado havia invadido o
quarto de dormir de uma senhora no meio da noite.

Certamente, era um acontecimento corriqueiro em festas


como aquela. Vitória não tinha ilusões sobre o objetivo de grandes
festas em uma propriedade no interior do país... frequentemente
eram a desculpa e a oportunidade perfeitas para encontros
amorosos ilícitos. Mas, por alguma razão, ela não considerava
George Starcasset como alguém que, furtivamente, procurasse
seguir escadas acima. Talvez esse destempero fosse para criar
coragem... talvez fosse porque jogara demasiadas partidas de whist.
Ou talvez ele tivesse se perdido, a caminho de seu quarto. Vitória
reprimiu uma risadinha.

Não havia tempo a perder. Tinha de tirá-lo de seu quarto e,


esperançosamente, levá-lo de volta ao quarto dele... ao menos a
uma área diferente da casa.

Uma olhadinha para baixo a lembrou que perambular por


uma casa estranha vestida com um diáfano traje de dormir com
pouco mais do que renda francesa e seda não seria uma coisa
prudente. Observou seu visitante noturno, que parecia estar bem
confortável em seus travesseiros; ela puxou uma casaco do armário,
onde havia sido pendurado por Verbena, vestiu-o e fechou
firmemente os três botões sobre seu corpete. Teve de puxar, com
energia, a manga de sua camisola, para ajustá-la sob a manga
estreita do mantô. O comprimento da roupa de cima não era
suficiente para esconder a camisola, mas ao menos seus seios
estariam cobertos.

Alcançou um par de chinelos e os calçou, voltando para a


cama. — Venha, caro senhor Starcasset. Acho que depois disso, eu
posso chamar você de George... pelo menos por esta noite.

— Ela riu e puxou-o para fora da cama. Graças à sua


excepcional força, não foi uma tarefa difícil, e assim que conseguiu
erguê-lo, colocou um braço ao redor da cintura dele. Ele estava
começando a perder o controle de seus olhos, ora se concentravam
nela, ora se reviravam para cima, ora se dirigiam para baixo e, de
novo, para ela.

Não ia demorar muito para que ele apagasse completamente


e, então, ela teria de se mexer rapidamente para levá-lo dali. Ela
mal podia imaginar o horror que se estamparia na face dele, se
acordasse na manhã seguinte no quarto dela.
Sorrindo diante daquele pensamento, Vitória fez com que ele
caminhasse até a porta e, dali, para o corredor. Ela segurava o
castiçal com uma das mãos, e com a outra segurava-o pela cintura,
arrastando-o. Ele era um pouco mais alto do que ela, e sua cabeça
começou a pender de maneira alarmante. Vitória se deu conta de
que não tinha a menor ideia de onde era o quarto dele.., nem
mesmo em que ala da casa se localizava. Então, ela optou pela rota
mais fácil e segura: a biblioteca, bem ali embaixo da escada.

Tum, tum, tum ... desceu com ele os dezesseis degraus, e


quando chegou no piso inferior, sempre o arrastando, ele perdeu a
batalha com seus olhos e pescoço. Sua cabeça pendia, balançando
facilmente, e quando ela deu uma olhada, viu que os olhos dele
estavam quase fechados, as pálpebras vibrando como se ele
estivesse sonhando. Seus pálidos cabelos loiros caíram ao longo de
suas têmporas e a boca dele se abriu ligeiramente. Provavelmente
não do jeito que ele gostaria que ela o visse, Vitória pensou, e sorriu
de novo, agradecida porque ele provavelmente não se lembraria
muito do que aconteceu. Assim, se ela não dissesse nada, o orgulho
dele seria preservado.

Ela entrou na biblioteca, um dos lugares que, felizmente,


Gwendolyn havia indicado a ela na tarde passada. Ela depositou
George na grande poltrona de espaldar alto, perto de uma lareira
silenciosa e ajeitou a gola de seu próprio casaco.

Algo brilhou no chão; ela quase deixou de notar, mas a luz de


sua vela inesperadamente havia incidido sobre aquilo. Um dos
botões de George, talvez? Vitória se inclinou, e com uma tomada de
fôlego, ergueu-o do tapete.

Não, não era um botão.

Era algo redondo, de bronze e com a imagem de um cão


sinuoso gravado na superfície. Idêntico ao que achara no Cálice de
Prata.
5
Varandas e reprimendas

Vitória esfregou o amuleto de bronze com o polegar. Não


poderia ser coincidência o fato de ela ter encontrado algo assim no
estabelecimento de Sebastian, e agora, aqui, de novo.., onde
Sebastian também estava. Com os lábios apertados, em razão
daquele pensamento, ela deu uma última olhada para George,
assegurando-se de que ele continuava a ressonar confortavelmente
em sua poltrona de alto espaldar, depois saiu rapidamente da
biblioteca e subiu a escada.

Tia Eustácia não havia recebido nenhuma resposta de


Wayren sobre suas reflexões a respeito do amuleto, antes que
Vitória saísse de Londres, mas garantiu que avisaria assim que
soubesse algo.

Vitória achava que o amuleto pertencera ao demônio, mas


este que acabara de encontrar não parecia corroborar sua
impressão, pois não havia demônios ou vampiros em Claythorne.

Concentrada em seus pensamentos, Vitória não o viu senão


quando foi tarde demais. Ele saiu de um quarto a uma curta
distância do quarto dela, levando—a a vacilar, em seu ritmo
apressado. Descuidada. Ela deveria ter esperado por isso; ela
deveria imaginar.

— Sebastian — disse, olhando para o belo rosto dele. A luz da


vela incidia sobre as bochechas dele, criando um halo dourado em
seus cabelos ondulados, Os lábios dele esboçaram aquele sensual e
divertido “eu’ ora a aborrecia ora a encantava,
— Veja só — Lady Rockeley — ele murmurou. — Que
surpresa encontrá-la vagando pelos corredores, no meio da noite.

Ela não estava disposta a ser cortejada. — Suponho que devo


agradecer a você o meu abrupto despertar.

Os olhos dele expressavam o quanto ele estava se divertindo,


quando inclinou levemente a cabeça. — O senhor Starcasset está
loucamente apaixonado por sua atraente pessoa e, percebi, fica
muito dócil quando embebido em muito brandy.

Vitória percebe que eles estão em pé no corredor onde, por


mais improvável que fosse, no meio da madrugada, eles poderiam
ser vistos facilmente. Com um olhar raivoso, ela passou por ele e
alcançou sua porta, com Sebastian em seus calcanhares.

Uma vez dentro do recinto, ela colocou o castiçal em sua


penteadeira e se voltou para ele, os braços cruzados no peito e,
subitamente, muito satisfeita por ter vestido o casaco. — Você
mandou aquele pobre homem para cá!

— Vamos sair para a varanda — ele sugeriu. — Não obstante


o fato de você ser uma viúva e de que ser encontrada em seu quarto
com um homem seja considerado muito escandaloso, é uma bela
noite. Além disso... — ele acrescentou, enquanto se dirigiu às
portas francesas que se abriam para o pequeno terraço — eu não
desejo estar no mesmo quarto com você e uma cama.., a menos que
você deseje colocá-la em uso. — Ele fez uma pausa,
dramaticamente — Deseja?

Ignorando uma faísca de interesse que percorreu seu interior,


Vitória passou rapidamente por ele, saindo à varanda.

—Aparentemente, não. — Fechando as portas atrás deles,


Sebastian caminhou até ficar diante dela. — E quanto a
Starcasset... bem, revelando a situação, eu achei que seria muito
mais prudente fazer com que você saísse de seu quarto se eu
desejasse falar consigo do que tentar me introduzir. Tenho a
sensação de que sua hospitalidade poderia ser um pouco... fria. —
O sorrio dele brilhou ao luar. — E então... aqui estou. Exatamente
onde planejava estar. E não está muito frio, de jeito nenhum.
—Ao contrário. Acho que a temperatura está ligeiramente
fresca. — Uma brisa muito suave roçou as pontas dos cabelos dele
e as faces de Vitória. Era, de fato, uma noite linda. O perfume das
rosas e dos lírios, que cresciam no jardim abaixo, chegava à
varanda Ela respirava profundamente e sentia o ar fresco da noite,
penetrante e denso; tão diferente do mosaico de cheiros artificiais
de Londres e da própria sociedade.

A luz prateada da lua só melhorava ainda mais a aparência


de Sebastian; um fator que ela presumia ter feito com que ele
sugerisse a saída para o terraço, não obstante a proximidade da
cama. Ele estendeu os braços, apoiando as mãos na parte superior
da balaustrada, olhando-a com uma simplicidade que a irritou. A
pálida iluminação oferecida pelos corpos celestes tornava os cachos
do cabelo dele prateados e ajudava a manter sua expressão
parcialmente oculta.

Vitória esperou que ele falasse, mas ele não o fez; então ela
disse: — Agora que você conseguiu, graças a tão grande esforço,
tirar-me da cama, seguramente não me manterá em suspense por
muito tempo.

— Então, você deixou Londres. — Ele olhava para ela como e


procurasse por algo. — Como você está, Vitória?

Ela desviou o olhar. Havia inúmeras camadas de significado


nessa questão aparentemente simples; embora ela fosse capaz de
supor cada uma das que conseguia ler, não sabia ao certo. — Por
que pergunta? Talvez porque seu plano de me entregar aos
vampiros de Lilith não tenha funcionado? Por que você talvez esteja
envergonhado de ter fugido do Cálice de Prata, no ano passado, e
deixou Max e Filipe enfrentar os vampiros sozinhos?

Embora ela se mantivesse equilibrada, seguramente ele


ignorou a raiva na voz dela.

Ele continuou inclinado, de maneira que seus olhos estavam


ocultos na sombra, e ela não conseguia ler o que realmente
expressavam. — Ah... Então eu tenho resposta para uma de minhas
perguntas. Você ainda pensa o pior de mim. Que eu seria tão
desprezível a ponto de fazer amor com você em uma carruagem,
enquanto a entregava aos vampiros. Não obstante, eu a avisei
quando seu marido veio ao Cálice de Prata. Não obstante o fato de
que, sem minha ajuda com o Livro de Antwartha, Maximilian seria
morto e provavelmente Lilith tomaria posse dele. — Ele falou fria e
serenamente, mas havia uma emoção subjacente que Vitória não
conseguia identificar. Ela nem tinha certeza de que, de fato,
quisesse.

— Até onde me lembro, você ficou ali e observou Max ser


atacado, quando tentou pegar o livro. Mas, fora essa pequena
questão, o que mais eu poderia pensar?

— Que talvez eu simplesmente tenha me encantado com a


sua linda boca e quisesse fazer com que amainasse aquela dor tão
evidente em seus olhos.., e que a chegada dos vampiros n)() tinha
nada a ver com meu plano de conseguir despi-ia.

Agora ela podia ver os olhos dele, e essa visão provocou um


ligeiro arrepio em seus ombros.

— De acordo com Max, você sempre aproveita a oportunidade


de despir uma mulher, particularmente em uma carruagem.

— Não desejo ouvir as opiniões de Maximilian, porque é isso


que elas são, apenas opiniões.., e provavelmente indicam as
próprias inclinações dele, caso não estivesse tão determinado a ser
um Venador e nada mais. Um caçador, um assassino.., um homem
voltado à violência e nada — ou ninguém — mais. Eu, Vitória... não
sou um homem de violência.

—Um fato corroborado por sua covarde fuga do Cálice de


Prata, no verão passado.

— A tristeza endureceu você. Lamento. Eu realmente sinto


muito pela morte de seu marido. Caso lhe sirva de consolo, eu
achava que ele iria me seguir, e a Maximilian, quando enveredei
pela saída, nos fundos do bar.

— Tudo isso é bastante esclarecedor.., reviver os


acontecimentos do último verão com você, no meio da noite, em
minha varanda, mas sinto dificuldade em acreditar que você se deu
ao trabalho de enganar o senhor Starcasset, fazendo com que
entrasse em meu quarto, só para mostrar como você fica bem à luz
do luar.

—Você acha que tenho uma bela aparência ao luar? Que


casualidade afortunada!

—Para mim, nossa conversa acabou aqui, e acho que já é


tempo de você ir embora. — Ela se virou e se encaminhou para a
porta, preparando-se para trancá-lo, às suas costas, se ele não a
seguisse. Certamente, se ele tinha sido capaz de escapar de um
grupo de vampiros, poderia encontrar um jeito de sair da varanda.
Quando a mão dele se fechou em torno de seu braço, ela girou e se
livrou do agarramento com um movimento de pulso e uma revirada
de saias de seda. Fez bem em liberar um pouco da tensão que
estava se expandindo em seu interior. Entre ambos. Fez com que
ele soubesse que ela se mantinha no controle.

— Você ainda usa sua vis bulia. — Ele se aproximou dela,


enquanto suas botas faziam barulho sobre o piso de tijolo e
argamassa, do terraço.

— É uma surpresa para você? — Ela sentiu a porta atrás


dela, mas em vez de segurar a maçaneta fria, ela não fez nenhum
movimento para se virar. Ele estava muito, muito perto, mas isso
não a inquietava. Afinal de contas, ela havia encarado numerosos
vampiros e um demônio. E até mesmo a Rainha dos Vampiros. Um
simples homem não representava perigo para ela.

— Presumo que ao sair de Londres você também deixou para


trás seus dias de Venadora. Ou talvez continue a usar sua vis bulla
para se proteger de pretendentes apaixonados, como o senhor
Starcasset.

— George — ela usou deliberadamente o nome próprio dele —


, até que você colocou seus dedos elegantes na massa.

—Você considera meus dedos elegantes, então? — O sorriso


de Sebastian brilhou. — Dois elogios em uma só noite.., algo
completamente inesperado.

— Não deixei para trás meus dias de Venadora. Por que eu


faria isso?
Os ombros dele se encolheram, como um sinal de
despreocupação. — Pensei que talvez depois do que aconteceu com
Rockley, você havia decidido desistir. Afinal de contas, você fez seu
dever, e olhe só o resultado. Você perdeu o amor de sua vida.

— Desistir? A questão não é se eu iria, mas sim se poderia


abrir mão de meu dever? Depois de ver, em primeira mão, a
maldade dos vampiros, como eu poderia?

Ela percebeu que ele estava mais próximo. Ela podia ver os
longos cílios e a delicada linha de uma covinha que mal se
mostrava quando ele não estava sorrindo, como agora. —Sempre
existe uma escolha, Vitória.

— Eu fiz a minha. Eu não poderia desistir. Nada me faria


abdicar, agora que Filipe se foi.

—Nada? — A palavra ficou pairando no ar entre eles, como se


’ Sebastian tivesse visto a verdade nos olhos dela e esperasse
entendê-la. Ela sustentou, desafiadora, o olhar dele.

— Nada.

Os ombros dele se moveram enquanto ele respirava fundo,


para depois exalar como se estivesse saboreando isso. —Você é
uma mulher admirável, minha querida. Talvez mesmo fora de meu
alcance. — Ele estendeu a mão para ela, de novo; devagar e com
facilidade, fechou seus dedos ao redor dos pulsos dela. — O que
você tem procurado esse tempo todo?

Novamente, ela se esquivou, mas não abruptamente. Os


dedos dele eram surpreendentemente fortes; exigia esforço livrar-se
de suas garras. Foi quando ela abriu a mão e ele pôde ver o amuleto
brilhando em sua palma. — Fico feliz que tenha perguntado.
Acredito que isso possa ser seu?

Pegando-o, ele precisou apenas de um vislumbre antes de


voltar seus olhos para ela, ainda próximo o suficiente para que ela
pudesse sentir o perfume de cravo, ver o brilho de seus pelos
castanho dourados sob o punho da camisa. —Você sabe o que é
isso?
Ela balançou a cabeça e sua expressão se desanuviou,
ligeiramente.

—Ah... Então por que você a atribui a mim, se não sabe o que
é?

— Encontrei uma no Cálice de Prata e, depois, uma aqui esta


noite. Você é o único fator comum, em ambos os lugares.

— Portanto, você chegou à conclusão de que isso era meu.


Nesse caso talvez eu decida no me sentir ofendido. Disse que
encontrou uma Cálice de Prata? Quando? Onde?

Ela explicou, incluindo o fato de que conhecera e decapitara


um demônio.

— Um demônio? Com um vampiro? — Ele se virou, para se


postar ao lado dela, quebrando a intimidade antes criada pela
proximidade. — Nedas não permitiria.

— Você vai me dizer o que é isso ou vai ficar aí murmurando


para si mesmo sobre coisas que eu não entendo e, portanto, não
podem me ajudar?

— Sempre impaciente, não é mesmo? — Um rápido sorriso


revelou a covinha, depois desapareceu, enquanto a expressão dele
se tornou sóbria. — Esse amuleto pertence a um membro da
Tutela. Você sabe alguma coisa sobre a Tutela?

—Não.

— Tutela é uma sociedade secreta, muito antiga. Tem


centenas de anos de existência, segundo eu soube. Começou em
Roma, provavelmente nas catacumbas, bem ao lado dos cristãos,
caso você acredite na ironia.

Permanecendo do lado oposto ao dela, na varanda, ele tirou a


capa, deixando o objeto escuro escapar, caindo nas sombras em
seus pés. Agora, sua camisa branca, abotoada, mas sem gravata,
ficou à luz do luar e brilhava na escuridão, que fazia o pano de
fundo. — Ah, não tenha medo, não estou me preparando para
assaltá-la. Este abrigo é um pouco sufocante e você já me viu em
mangas de camisa, no passado. — Em vez do sorriso que ela
esperava, ele apenas lhe lançou um olhar que provocou
formigamento em seu estômago.

Como ela não respondeu, ele continuou: — A Tutela protege


os vampiros. — Ele desabotoou os punhos da camisa com
desenvoltura. — Tem feito isso há séculos.

—Ela os protege? Como? Oferecendo um lugar onde os


Vampiros podem ir beber, com os mortais? — Vitória replicou, com
veemência.

Embora seus ombros largos e braços fortes e musculosos


brilhassem ao luar, enquanto ele arregaçava as mangas, o rosto
dele estava na sombra, novamente. Como ele conseguia fazer isso,
mostrar o seu físico enquanto escondia sua expressão? Ou talvez
não passasse do fato de que Vitória não podia ignorar o jeito como a
camisa dele se ajustava à cintura e aos ombros que ela já tivera a
oportunidade de abraçar. E talvez ela nem quisesse mesmo saber o
que estava se passando dentro de sua cabeça.

— Agora você está, novamente, beirando ao insulto, minha


querida. Certamente sua tia ensinou você a agir melhor. Não, o
objetivo da organização é garantir uma provisão de mortais para
que os vampiros se alimentem. Trazer gente inocente para o prazer
e a nutrição dos mortos-vivos. Perambular por aí, durante o dia, e
proteger os interesses e o sigilo dos mortos-vivos enquanto eles
ficam a salvo, na escuridão. Fazendo o trabalho maléfico que os
mortos-vivos não são capazes de realizar ou se esforçando para
estabilizar e aumentar seu poder. Os membros da Tutela são as
putas dos mortos-vivos.

—Mas por quê? Por que alguém faria isso?

Sebastian balançou a cabeça. —Você continua sendo muito


inocente, mesmo depois de já ter vivenciado e visto tanta coisa. Não
sei se gostaria ou não de mudar isso. — Ele colocou de novo as
mãos no balaústre. — Há pessoas que anseiam pela imortalidade.
Que sentem prazer ao servir de alimento a um limito vivo.
Acreditam que podem proteger os vampiros; elas, em contrapartida,
serão protegidas dos males deste mundo.
Um instantâneo de sua memória a deixou atordoada. Corpo,
sangue e devastação... mutilados do pescoço às pernas... olhos
baços, cortes abaixo das mandíbulas, lágrimas nos peitos, o
repugnante, doloroso cheiro da morte. A visão que ela encarou
depois da única vez em que chegou tarde demais para impedir um
ataque de vampiros no verão passado, logo depois que se casara
com Filipe. Aquilo ainda tinha o poder de gerar uma náusea
gordurosa no fundo de sua garganta.

Quando reviveu essa imagem, ela não entendia... não


imaginava.., como qualquer homem ou mulher fosse capaz de
proteger tais criaturas, muito menos de confraternizar-se e conviver
com eles. — Eu não consigo compreender — ela disse finalmente,
quando a memória foi arrefecendo e o silêncio se estendeu.

— Vitória, eu mantive o Cálice Sagrado como um instrumento


para permitir que os mortos-vivos se reunissem, com o objetivo de
obter, por intermédio deles, qualquer informação importante sobre
sua forma de agir. Como já lhe disse, prefiro que estejam onde eu
possa vê-los e espioná-los, em vez de não ter a menor ideia do que
estão planejando. Não sou nem nunca fui um membro da Tutela.
Independentemente de qualquer outra atitude minha, espero que
você ao menos acredite em mim.

Ela não podia ver o rosto dele, maldição! Como poderia saber
o que pensar. — Venha para a luz, onde eu possa vê-lo.

— Será um prazer. — Ele se afastou da varanda, mas não se


contentou em dar um, dois ou até três passos. Só parou quando
pôs as mãos na parte superior dos braços dela, suas botas tocando
a ponta dos chinelos que ela usava. — Vitória. — O sotaque
francês, na voz dele, pendendo de cada sílaba, fez com que a
respiração dela parasse. Ele se inclinou para ela, que fechou os
olhos, esperou. Fazia um ano que não sentia as mãos de um
homem. Um ano, desde aquele momento em que tinha sido tocada
com todo carinho e sensualidade. Ela se deu conta de que nem
percebera como a carência passara a fazer parte de sua vida. Mas
agora ela sabia. Um breve suspiro escapou de seus lábios, antes
que ele roçasse a boca sobre a dela, uma vez e, depois, outra. Seus
lábios se encaixavam, tanto quanto seus dedos queriam apertar os
braços dela.

E então ele se afastou, soltou-a e abriu seus olhos. Pela


primeira vez naquela noite, ela leu a mensagem que ali estava e isso
fez com que ela quisesse voltar atrás... ou tê-lo de volta, para mais.

Ele recuperou seu jeito leve, charmoso. — Não creia por um


só momento que eu não desejo mais, Vitória — ele disse
suavemente, como se tentasse negar sua própria afirmação. Mas há
outros assuntos urgentes a discutir.

—Assuntos urgentes?

Como se tivesse sido abruptamente despertado de um sonho,


ele se virou e caminhou ao longo da varanda, dobrando uma das
mangas, que havia deslizado até seu pulso. — Como você encontrou
o amuleto no Cálice, isto significa que alguém da Tutela esteve...
provavelmente o demônio ou vampiro que você matou, ou talvez
ambos. Não há outros vampiros em Londres, não é?

— Quando saí, hoje de manhã, já haviam se passado duas


semanas de patrulhamento, todas as noites. Encontrei o demônio e
o vampiro nas ruínas do Cálice, e vi outro vampiro, que fugiu... e
não mais. Lilith não voltou. — Ela olhou para ele, questionando-se.
— Não sei por onde você andou durante o ano, Sebastian, mas
talvez não saiba que Lilith levou seus seguidores e desapareceu,
depois que não conseguiu obter o Livro de Antwartha.

— Estou sabendo, sim, embora não tenha estado na


Inglaterra. Eu saí do continente bem rápido, depois que os
vampiros me visitaram no bar. — Ele olhou para os jardins, abaixo,
e depois se voltou para Vitória. — Estão procurando por Polidori. E
existe alguém aqui. Alguém da Tutela. Alguém deve ter deixado cair
o amuleto. Mas aqui não há vampiros.

—Não, não há. Nem tampouco demônios, eu acho.

—Você também pode sentir a presença de demônios, então.


Bom Polidori se sentirá aliviado ao saber disso.
— Você vai me contar por que eles estão atrás dele? Ou
eu devo adivinhar?

O sorriso charmoso dele estava de volta. — Tenho certeza de


que você não teria dificuldade de descobrir.

— Deve ser por causa do livro dele: O Vampiro. Revela


muito, na verdade, sobre os vampiros. E você está viajando
com ele por qual razão? Certamente, não para protegê-lo.

— Bem, Vitória.., não subestime minhas capacidades;


particularmente porque você não está familiarizada com a imensa
gama de meus talentos. — O pequeno traço de seriedade
desapareceu de seu rosto e ele fixou os olhos nela. — Embora não
seja por falta de vontade da minha parte que você permaneça
ignorante a respeito. De qualquer forma, sim, eu encontrei com ele
na Itália. Byron dispensou meus serviços, não porque não
precisasse de um médico por mais algum tempo, mas por temer por
sua vida. — Suspirou.

— Vou deixar que John Lhe conte a história, pois ele sabe de
todos os detalhes. Basta adiantar que eu não espero que esta seja
urna festa tranquila e segura. Alguém está aqui, a mando da
Tutela. Quem quer que seja, ele vai ficar no encalço de Polidori, e eu
não devo me afastar dele, até que saibamos de quem se trata.

— Por que o médico não vai embora, simplesmente?

— É o que ele tem feito, ao longo do último ano. Tenta


permanecer adiante deles. De alguma forma, eles devem ter achado
que eu estava envolvido, por isso andaram à minha procura no
Cálice de Prata. — Ele se afastou da grade da varanda. — Pelo
menos ninguém sabe que existe uma Venadora entre nós — disse
dc, contorcendo os lábios. — Polidori ficará aliviado ao saber disso,
e com sua ajuda, ele não terá nenhuma pressa em ir embora. Mas
está mais seguro aqui, com você, do que em qualquer outro lugar.

— Isso é verdade. Você pode conseguir que eu converse com


ele amanha?
— Sim, claro. Se você vier conosco à caça, pela manhã,
poderemos encontrar um jeito de falarmos a sós, onde ninguém
possa nos ouvir.

—Então, está bem.

Ele começou a caminhar, movendo-se em direção a ela, que


de repente se sentiu muito consciente... dele e da calma intimidade
da noite. Vitória poderia ter saído do caminho ou ter aberto as
portas para entrar no quarto antes dele, mas... não, um fez isso.
Enquanto ele se aproximava, ela olhou para o rosto dele, e seu
ventre sentiu um sobressalto.

—Se você continuar olhando para mim desse jeito, Vitória,


ficarei muito feliz em lhe dar o que você está querendo. — O tom de
sua voz, era estranho e brusco. — Afinal, você não é mais uma
inocente.

Ela ficou onde estava e estendeu a mão para alcançar o rosto


dele, com um suave toque dos dedos. Ela jamais fizera, antes, esse
tipo de movimento voluntário na direção de um homem, exceto no
caso de Filipe. Queria que os braços de Sebastian a entrelaçassem,
não apenas um leve roçar de boca a boca. Queria sentir e esquecer.
Queria ser mais que uma viúva, mais que uma Venadora, mais que
uma tranquila marquesa, tomando chá ao discutir sobre o tempo e
que estava fornicando com alguém.

Sebastian permitiu que os dedos dela perpassassem o seu


rosto por um momento e, depois, com estudada descontração,
pegou a mão dela e levou sua palma gentilmente à boca. Um beijo
na parte interna de seu pulso trouxe de volta a ela a lembrança da
noite cm que ele removera sua luva e fizera o mesmo gesto. Ela
jamais teve aquela luva de volta.

— Se eu não tivesse de encontrar Polidori, você estaria em


apuros, minha querida. — Ele soltou a mão dela e, sem olhar para
trás, passou por ela rapidamente e foi embora, atravessando as
portas francesas.
6
Acontecimentos de uma noite perigosa

Ao contrário do que imaginava, Vitória não se encontrou com


Sebastian e Polidori como estava planejado, na manhã seguinte,
nem permaneceu no conforto de sua cama por muito tempo.

Ali deitada, relembrando a conversa com Sebastian, e


considerando até que ponto ele tinha sido completamente
elucidativo com ela, Vitória se deu conta de que os pelos da parte
traseira de seu pescoço se levantaram. Era como se a delicada brisa
que vinha da varanda, cujas portas ela havia deixado abertas
depois que Sebastian saíra do quarto, tivesse soprado exatamente
sobre essa parte de seu corpo.

Entretanto, Vitória concluiu que não se tratava disso, uma


vez que ela estava deitada de costas, o travesseiro sustentando a
curva de sua nuca.

Caso Sebastian fosse mesmo digno de crédito, os vampiros


haviam encontrado Polidori.

Mesmo se ele não fosse digno de crédito, o fato era que


Claythorne House havia atraído alguns hóspedes indesejáveis.

Arremessando os cobertores para longe, como também seus


confusos sentimentos a respeito de Sebastian, ela saltou do
colchão, plantando os pés no chão, sem fazer barulho. Vitória
dobrou sua longa trança, acomodando-a na parte de trás do seu
vestido (era a melhor forma de impedi-la de voar em seu rosto, caso
houvesse alguma luta depois) e enfiou os braços no casaco. As
mangas da camisola subiram, ficando amontoadas, mas ela estava
com muita pressa naquele momento, para ajeitá-las. Procurou por
suas estacas, no fundo de sua mala, e pegou uma delas, assim
como um minúsculo frasco de água-benta, que enfiou em uma das
mangas. Pendurou no pescoço um crucifixo de prata, do tamanho
da palma da mão, e voou para fora do quarto, não parando sequer
para verificar se a porta se fechara atrás dela.

Lá fora, no corredor, ela seguiu chispando, ao mesmo tempo


em que calculava o arrepio na parte de trás do pescoço. Era muito
cedo para dizer quantos podiam ser. Será que sabiam para onde foi
Polidori? Seria, realmente, o escritor que os vampiros procuravam?

Ao chegar à escada, teve de tomar uma decisão: subir, descer


ou continuar, em linha reta, pelo mesmo corredor. Com os nervos
saltando e o pulso acelerado, ela resolveu fazer uma pausa;
respirou fundo e esperou. Sentiu. Ouviu e cheirou.

Para baixo.

Vitória desembestou pela ampla escada, segurando firme a


estaca em uma das mãos e saltando os últimos degraus...
rapidamente chegou no andar de baixo. Ela não se sentia em tal
estado de alerta havia meses... meses! Ela nascera para fazer
aquilo.

Ali, novamente, ela teve de esperar para sentir os mortos-


vivos. Talvez eles ainda não tivessem encontrado um jeito de entrar
na casa. Tinham de esperar que alguém os convidasse; um vampiro
não pode entrar em uma residência, mesmo que a porta esteja
aberta, a menos que seja chamado por alguém que tenha
autoridade para fazer isso.

Como alguém com autoridade poderia incluir pessoas tão


diferentes como mordomos, criados ou mesmo arrumadeiras, essa
exigência não oferecia um nível de proteção adequado.

Havia que considerar o amuleto. Quem quer que o tivesse


perdido seria, com certeza, o responsável pelo convite de entrada.

Então ela ouviu. Um tilintar, depois um lento, suave som de


arranhadura, vindo da biblioteca.

A biblioteca. Foi onde ela havia deixado George Starcasset!


Vitória se escondeu atrás da alta e grossa coluna que havia
na base dos degraus, seu coração descompassado no peito.
Encostando a face contra a superfície de gesso, ela ficou espiando,
protegida pela sombra, de um ângulo em que podia ver o recinto,
pois a porta estava aberta. Será que ele ainda estava ali?
Seguramente estava.., afinal, estava profundamente adormecido
quando ela o deixara.

Por mais que tentasse, não conseguia enxergar a poltrona


onde o depositara; era um lugar envolto em sombras e de frente
para a lareira, distante do resto do cômodo. Em seu sono, George
ficaria impotente contra qualquer ameaça, talvez imperceptível se
não estivesse roncando.

Ela notou movimento na janela e prendeu a respiração.


Contou quantos eram. Quatro. Quatro seres se esgueirando por
uma janela aberta, uma a uma, silenciosamente e sem hesitação.
Sua nuca estava fria. Todos eram vampiros, ela podia ver o brilho
tênue dos quatro pares de olhos... e invadiam a casa por iniciativa
própria. Não havia nenhum outro movimento no cômodo... ou
George ainda dormia ou já não estava mais lá. Os vampiros devem
ter estado, antes, na casa Claythorne. Só assim poderiam ter
entrado daquela forma. Alguém os convidara em outra ocasião,
quando ostentavam sua forma humana, e agora retornaram... com
ou sem o conhecimento daquela pessoa.

Vitória esperou, observou enquanto eles conferenciavam, com


gestos e sussurros, rezando para que não vissem George na
poltrona, escondido pelas sombras. Então, como eles começaram a
se movimentar em direção à entrada, cada vez mais distantes da
poltrona, ela sentiu uma onda de alívio e uma chispa de excitação.

Ela poderia enfrentar os quatro, sem grandes dificuldades.


Seus olhos se estreitaram, antecipando o momento, ao mesmo
tempo em que apertou com mais firmeza a estaca na mão. Viu os
rostos deles, seus olhos abrasadores, quando eles se viraram para
sair da biblioteca, apenas um suspiro distante do lugar onde ela
estava escondida. Não eram vampiros normais, com íris vermelhas,
cor de sangue. Dois tinham olhos de um tom de rosa bem forte,
como rubis, de sangue. Guardiões.
Os outros dois tinham olhos púrpura. Seus cabelos eram
compridos e eles carregavam reluzentes espadas de metal.

Vampiros Imperiais.

Vitória engoliu saliva, o ruído de sua garganta seca ecoou em


seus ouvidos. As palmas de suas mãos ficaram úmidas e a estaca
deslizou, apesar de estar desconfortavelmente apertada entre seus
dedos. Alguém sempre pode calcular onde se situa determinado
vampiro na hierarquia de seu gênero, observando os olhos dele.
Guardiões de olhos rosados, membros da guarda de Lilith, são
muito perigosos, por sua mordida venenosa e sua capacidade de
encantar com grande facilidade, mas... Imperiais, com a íris
magenta, eram os mais poderosos dos mortos-vivos, além, é claro,
da própria Lilith. Imperiais empunham suas espadas como
segundas mãos, enquanto sua força e sua velocidade eram
incomensuráveis. Podiam voar, quando em combate, e absorver a
energia vital de uma pessoa sem tocá-la.

Na primeira e única vez em que ela encontrara um vampiro


Imperial, Max estava com ela. O embate havia sido difícil,
assustador até para ela que estava só olhando... mas Max vencera.

Não havia Max esta noite; ninguém, exceto ela mesma.

Eles podiam enxergar no escuro — todos os vampiros podem


—, mas, graças a Deus não podiam sentir a presença de um
Venador, como ela podia notar a deles. Sua existência, como
simples ser humano, sim, era notada, mas como a casa estava
cheia deles, os vampiros não necessariamente saberiam de quem
determinada sensação derivava nem seriam capazes de detectar sua
proximidade, caso ficasse em silêncio e imóvel.

Vitória segurou a respiração quando os quatro mortos--vivos


saíram da biblioteca, nada fazendo para abafar o som de seus
passos.

Os quatro passaram pelo esconderijo dela, suficientemente


próximos para que ela pudesse ter estendido a mão e agarrado a
bota do último deles, quando subiram as escadas. O melhor,
porém, era esperar que se separassem, para que ela pudesse
enfrentá-los um a um.

Vitória saiu de sua toca, permanecendo na sombra, mas se


virou para que pudesse ter uma boa visão da parte superior do
espaço, a partir da grade que sustenta o corrimão. Os quatro não
pareciam dispostos a separar-se, por isso ela teria de oferecer um
estímulo para que fizessem o que lhe favoreceria.

Movimentou-se, com discrição, nas sombras, ao longo da


parede do hall de entrada, até chegar a uma mesinha próxima à
porta da biblioteca. Sobre ela estava colocado o busto de um
ancestral dos Claythorne, e Vitória o deslocou de seu pedestal,
gerando um ruído suave de mármore arranhando a madeira. Em
seguida, ela recuou pelo corredor, afastando-se da entrada e das
escadas, até permanecer em pé no mesmo corredor, mas em um
ponto que não podia ser visto a partir da escada. Manteve a estaca
escondida nas dobras de seu casaco, e com a outra mão, segurou o
crucifixo, impedindo assim que fosse visto.

Seu truque funcionou. Ela ouviu passos de volta, descendo


as escadas, esperando que apenas um tivesse se separado do
grupo. A sorte estava a seu favor: um só vampiro veio em sua
direção, felizmente um Guardião, não um Imperial. Ela permaneceu
onde estava, apoiando-se em uma das paredes, enquanto ele se
aproximava. Mantinha contra a palma das mãos as pontiagudas
arestas do crucifixo. — Lamento, senhor... — ela gaguejou — não
quero perturbá-lo.., ah! — Ela cuidou para que essa expressão de
susto fosse suficientemente sutil — não havia necessidade de
chamar atenção de algum membro da criadagem — e manteve a
estaca segura firmemente, oculta pelas dobras da saia.

O vampiro veio chegando, com um traço de humor no brilho


de seus olhos, de um rosa bem forte. — Você não me perturbou —
respondeu com uma voz áspera, bem perto dela.

— Mas eu ficaria bem satisfeito em perturbá-la, minha cara.

— As presas dele, longas e prateadas na penumbra,


apareciam na abertura de seu sorriso. — Tenho uma tarefa esta
noite, mas é difícil resistir ao sangue fresco de uma bela jovem.
Fingindo empurrá-lo, pelo susto, Vitória girou, se esquivando,
de maneira que ele não conseguiu agarrar o braço com o qual ela
mantinha a estaca. Em vez disso, ele riu e facilmente agarrou-lhe o
braço cuja mão segurava a cruz, oculta. Eles haviam se
movimentado pelo corredor, rumo à parte posterior da casa,
justamente onde ficavam as cozinhas, suficientemente longe das
escadas para que os outros vampiros não pudessem ouvir os
detalhes de sua altercação.

— Se você for muito gostosa, talvez eu lhe dê o dom da


imortalidade ele disse com um sorriso condescendente. — Então,
você poderá permanecer sempre jovem e linda como é agora, com
seus longos cabelos escuros e pele sedosa. Que adorável pescoço
branco você tem... tão longo e delgado e delicado...

Tudo aconteceu muito depressa: quando ele agarrou seu


pulso, ela permitiu que ele puxasse seu braço, de maneira a deixar
o crucifixo bem à vista. Ele afrouxou a pegada e saltou para trás,
como se tivesse sentido uma agulhada, deixando seu peito
vulnerável. Vitória o atingiu com a estaca. Um quase imperceptível
pop, seguido de um puf e o vampiro falastrão sumiu em uma
substancial nuvem de poeira.

Vitória não conseguiu evitar um sorriso.., sua coreografia não


podia ter sido melhor. Mas antes que se dispusesse a ir atrás dos
outros, esperou por um instante, apenas ouvindo. Se tivesse sorte,
um dos outros três se separaria do grupo para voltar, procurando
pelo Guardião, dando a ela oportunidade para tomá-lo de surpresa,
também.

Mas, depois que ela aguardou por algumas respirações e não


ouviu nada, Vitória soube que não tinha mais tempo a perder. Mais
uma vez, correndo sem fazer barulho, voltou pelo corredor até a
grande entrada, alcançando a escadaria. Ela estava apenas a meio
caminho do primeiro lance, quando um grito horripilante ecoou
pela casa... vindo da parte de baixo. — Maldição! E agora? — Os
vampiros estavam no andar de cima, onde certamente também se
encontrava Polidori, mas estava acontecendo algo no piso inferior...
Vitória parou por um momento no topo da escada, obrigando-
se a esperar, na tentativa de perceber onde estava o perigo. Com o
pescoço frio, seu instinto lhe disse para continuar lá em cima...,
porém o grito ecoou novamente pela casa. Passos eram ouvidos,
portas batiam e, de repente, as pessoas espocavam pelo corredor.

— O que é isso? — Quem está ferido? — Lady Rockley, é a


senhora?

Esta última frase foi dirigida a ela por um homem, de joelhos


magrelos e camisola noturna, os cachos grisalhos dos cabelos
achatados em um dos lados de sua cabeça. Ela não conseguia
recordar o nome dele era um dos convidados do pai de Gwendolyn
— nem teve tempo de responder educadamente.

—Voltem para seus quartos! — ela gritou, passando por ele e


iniciando uma segunda decida rápida, pelas escadas. — Tranquem
as portas! — Fazer isso não ia protegê-los definitivamente, mas ao
menos retardaria a ação dos vampiros. Ela esperava.

— O que é, Vitória? — A voz de Gwendolyn, em tom muito


alto, veio do andar de cima. — O que você está fazendo?

— Entre no seu quarto! Tranque as portas e consiga uma


Bíblia ou uma cruz! — Vitória passou correndo por sua amiga, que
tentou agarrar a cauda de seu casaco. — Gwendoiyn, agora! Faça o
que eu digo! — O frio em sua nuca não diminuiu, foi aumentando.
Ela sabia que estava próxima. Onde está Polidori? — gaguejou, em
alto e bom som, para repetir, em seguida: — Onde ele está?

Mais gritos, mais portas batendo, homens correndo e, vindas


de um dos quartos ao longo do corredor, batidas fortes, com raiva.
— Última porta — informou Gwendolyn, olhando apavorada, bem
atrás dela. — Vitória, o que você está fazendo? Volte!

— Lady Rockley! — Era o senhor Berkley, que parecia


confuso e amassado.

Vitória passou por ele e seguiu correndo, perguntando-se


como, por Deus do céu, iria lutar com dois Imperiais e um
Guardião, sem o elemento surpresa. E como manteria afastadas as
outras pessoas, que não tinham a menor noção de que os vampiros
invadiram a casa. Mas ela tinha de conseguir. Aparentemente, a
vida de Polidori dependia disso. Algo a agarrou, atraindo-a para a
sombra, e ela tentou se safar, sufocando um grito.

— Sebastian!

— Eles estão aí. Dois Imperiais e um Guardião.

— Eu os vi; já finquei a estaca em um Guardião. Pensei que


você tivesse ido ficar com Polidori, depois que deixou meu quarto —
Vitória falou entre dentes, antes de se afastar, seguindo em direção
à porta.

— Que diabos você está fazendo? Eu disse que dois Imperiais.


— Ele agarrou o braço dela e, surpresa, ela cambaleou para trás. —
Polidori não está aí.

— Vamos lá — ela rosnou, se safando. — Tenho um trabalho


a fazer. Onde ele está? —Vitória olhou para ele, impressionada com
a expressão de seu rosto. Ela só vira Sebastian com sua
personalidade calma e encantadora, não nesse estado de tremenda
raiva. Mas quem estava no comando era ela. Não ele.

— Estou fazendo o que tenho de fazer. Lembra-se? Minha


decisão é de ficar e lutar, não colocar o rabo entre as pernas e fugir.

— Você, contra dois Imperiais e um Guardião... não seja


louca. Além disso, ele está escondido. — Sebastian apontou para
um quarto, do outro lado do corredor, onde ela quase irrompera
intempestivamente. — A pessoa que autorizou a entrada dos
vampiros lhes disse onde ele ia dormir e eles estão procurando o
cômodo, para pegá-lo. Há outros dois lá fora, dando uma olhada
nas janelas. — Ele falou depressa, e suas palavras soaram como
golpes raivosos no ouvido dela.

— Não temos muito tempo, antes que percebam que ele se


foi. Então ela notou. — O que você está segurando, uma espada?
Vitória deu uma breve e nervosa risada. — O que você espera fazer
com uma espada?

Com irritação no olhar, ele a empurrou para longe. — Pense o


que quiser. Você está...? — Seja o que for que estivesse prestes a
dizer, foi interrompido por alguém que gritava. Eles se viraram,
olhando para trás, onde vários convidados ainda permaneciam em
pé, reunidos em um grupo de olhos arregalados. Vários homens
tinham tratado de pegar pistolas e estavam olhando para Vitória e
Sebastian.

— Para trás! — Sebastian gritou, encarando-os. — Vocês não


entendem o que está acontecendo aqui. Voltem para seus quartos e
tranquem as portas! Vocês só vão aumentar ainda mais o perigo
que estão correndo!

— Lady Rockley, o que está acontecendo? Você deve ficar em


segurança! O que é isso? — O senhor Berkley, ainda parecendo
amassado, porém um pouco mais consciente, ignorou Sebastian.

Embora detestasse perder tempo, ela se virou, olhando para


ele e os demais. Falou com calma, mas energicamente. Sabia que
eles tinham de ver honestidade e seriedade em seu rosto. —Vocês
não podem ajudar. Precisam me ouvir. Salvem-se e façam o que eu
digo. Tranquem as portas de seus quartos e não saiam até que seja
seguro. Há vampiros nesta casa, e pistolas não servirão para nada.
Vitória arrancou o cordão com o crucifixo. — Isso irá protegê-la —
disse, jogando o pesado amuleto para Gwendoiyn, que permanecia
atrás dos homens. — Agora, tranquem-se.

— Vampiros? — O senhor Berkley ficou todo atrapalhado, de


olhos arregalados. Outro homem, segurando uma pistola como se
fosse um escudo, deu um passo em direção a ela, aparentemente
disposto a discutir. Antes que ele abrisse a boca, uma porta foi
aberta com força e um vampiro alto, de olhos brilhantes, saiu.
Gritos ecoaram pela sala, enquanto Gwendolyn e alguns homens
mais covardes se viraram e fugiram.

A visão do Imperial, com seus olhos magenta e cabelos


prateados, foi suficiente para esvaziar qualquer argumento do
homem atrevido com a pistola. Ele arregalou os olhos ao ver o
morto-vivo e recuou, trêmulo, apontando uma arma de fogo para
ele. Vitória e Sebastian não se mexeram.

— Onde está Polidori? — rosnou o Imperial, seguindo na


direção deles, enquanto seus companheiros se aproximavam pelo
estreito corredor, atrás dele. Como a porta estava aberta, Vitória
vislumbrou uma cama revirada, com seus sustentáculos
quebrados, e uma penteadeira destroçada. Retalhos de roupa de
cama e outros tipos de tecido estavam espalhados no chão, que
brilhava à luz da lanterna com anteparos de vidro.

Vitória avançou, mantendo sua estaca escondida nas dobras


da camisola, tomando cuidado para evitar os olhos da criatura.

Ele não está aqui. — Ela gostaria de acrescentar: — É uma


pena que você tenha de admitir, em seu relato a Lilith como
perderam sua presa — mas esperava manter em segredo, por um
pouco mais de tempo, a sua condição de Venadora. Um lapso
apenas suficiente para encontrar uma brecha que lhe permitisse
lançar mão da estaca que estava ansiosa para usar.

— Mentira sua — disse o Guardião, abrindo caminho entre os


dois Imperiais. A respiração dele sibilava como um caldeirão de
vapor malévolo. — Eu posso sentir o cheiro do cão. Diga -m onde
ele está ou você morre.

Sebastian se deslocou para ficar ao lado dela, mas Vitória


deu um passo lateral e fez um gesto, às suas costas, indicando o
longo corredor que se estendia em direção à escada. Distrações. Ela
precisava criar distrações. E tinha de atraí-lo perto de si o
suficiente para que pudesse usar a estaca. Ela precisava apenas de
uma chance.

— Para que você quer Polidori? Não basta o sangue fresco


que existe bem aqui? — Vitória provocou.

Os outros dois vampiros preencheram o espaço atrás de seu


líder. Em algum recanto profundo de sua mente — a parte que não
estava concentrada na grande mão do Guardião, que se aproximava
dela — Vitória ficou satisfeita com o fato de o corredor não ser
suficientemente largo para que os três homens pudessem ficar lado
a lado. O Guardião, por causa de seu corpo atarracado,
efetivamente bloqueava o avanço de seus companheiros para o
ataque. Agora, se ela conseguisse que eles se deslocassem, no
corredor, para longe do cômodo onde estava Polidori, talvez
Sebastian pudesse ajudá-lo escapar de alguma forma. Enquanto
isso, ela teria como única alternativa a estratégia da divisão.

Todos os outros pensamentos se desvaneceram quando a


mão do Guardião se fechou no alto de seu ombro e o apertou.
Justamente onde ela queria que ele estivesse.., perto o suficiente
para poder atacá-lo. Não olhe para ele, ela repetia para si mesma.
Seria muito fácil de ser presa pelo olhar cativante dele.

Unhas afiadas penetraram em seu delicado ombro, e ela


manteve o foco distante do desconforto, enquanto ele se inclinava
para ficar mais perto dela e sussurrava, em voz baixa e
ameaçadora: — Bem aqui existe um oloroso sangue fresco. Posso
me banquetear em seu lindo pescoço, agora mesmo?

Ela perdeu o equilíbrio quando atingida pela força da mão


dele e ao ter o ombro sacudido, senão, quando Vitória recuou e
depois deu um impulso para frente, a estaca teria encontrado seu
alvo.

Em vez disso, o objeto pontiagudo de madeira cinza bateu no


braço dele, como se tivesse atingido uma parede de tijolos, O
choque do repentino bloqueio a surpreendeu, deixou seu braço
entorpecido ao mesmo tempo em que ela sentiu um dique
assustador no pulso. E dor. Muito aguda, no pulso que ficou
dobrado de um jeito desconfortável. Vitória engasgou e cambaleou
para trás, atordoada, pontos escuros em seu campo de visão.

— O que temos aqui? — resmungou o Guardião, estreitando


os olhos abrasadores, quando olhou para baixo, na direção de
Vitória, cuja cabeça chegava apenas à altura dos ombros dele. O ser
ainda apertava com muita força o ombro dela, mas ela conseguiu
fazer um movimento, afastando-se, quando ele tentava atraí-la para
mais perto.

Não olhe para ele.

— Uma garotinha atrevida. Talvez ela seja minha


recompensa, por um trabalho bem feito.

Vitória conseguiu se livrar dos pontos escuros que


atrapalhavam sua visão, mas agora, ao tentar se concentrar
novamente, foi atraída pelo olhar dele, justo quando ele a agarrou
para um golpe mortal.

O efeito da atração foi instantâneo. Ela se sentiu como se


estivesse caindo em uma suave piscina de pétalas de rosa
aveludadas. Sua respiração se alterou, ficou mais lenta; seus
membros pareciam travesseiros macios. Em seu pescoço, a
pulsação se acelerou. Ela sentia o sangue vibrar nas veias,
ansiando pela mordida, ao mesmo tempo suave e afiada, que iria
libertá-la, O sangue corria quente nas veias, muito quente,
fervendo, formigando. Ela saltou e girou, como se o vampiro
clamasse para si o seu líquido vital, fluido e intensificado a cada
respiração. Seu corpo despertou... vivo, mas ainda confuso,
sonolento.., como se ela estivesse se virando para o corpo de Filipe,
no meio da noite, meio acordada, meio excitada.

Debilmente, tentando subir à superfície, sua consciência


lutou para quebrar o encanto. Ela tinha de acabar com isso. Mas a
atração... a envolvia, como um fluxo de água que, de repente,
corresse para afogá-la, sem barreiras. Ela lutou... se pudesse
piscar, fazer com que aquilo estancasse, fechar os olhos abertos,
mesmo que fosse por um momento... Vagamente, ela sentiu e ouviu
movimentos, gritos.., mas não conseguia responder. Nem identificar
do que se tratava.

Seus braços se debatiam, como se alguém os estivesse


movimentando, a estaca escorregou de seus dedos frouxos, algo
pesado colidiu contra seu pulso ferido.., algo curvo e sólido e que
estava fora de lugar... sua cabeça se inclinou para um lado, o calor
de seu ombro aquecendo um dos lados de seu pescoço; o outro,
úmido e frio e vulnerável.

As mãos dela ondulavam, como se quisessem lutar para


afastá-lo, mas ele estava muito perto... era forte demais. Ardentes
rosas e rubis invadiam seu mundo. A respiração quente tão
próxima, as presas, atraentes e prometendo alívio, cintilando em
tom de amarelo acinzentado, na penumbra.

Vitória sentiu aquela coisa delgada, novamente, sob a manga,


quando seus braços se debatiam contra seu corpo, fora de controle,
e, de repente, ela teve um lapso de clareza. Era o frasco de água-
benta. Pater noster. Ela pensou. Então, rezou em voz alta. “Pater
noster, qui es in caelis...” Foi como um relâmpago em sua mente,
um lampejo de consciência. Foco. Ela recuperou o foco. A risada
rouca soou perto de seu ouvido. — Aquele para quem você reza não
pode ajudá-la, agora. O vampiro estava perto demais; ela não
conseguia ter noção do tempo, porque o movimento dele em sua
direção parecia levar horas... dias. Seus dedos se atrapalharam,
desajeitados; ele se achegou mais ainda, enquanto ela lutava para
piscar, para quebrar a conexão, e então puxou o frasco.

Seus olhares se desconectaram, quando ele chegou a um


centímetro dela, e o frasco foi liberado quando as presas dele
começavam a tocar sua pele. Com o último estertor de sua força,
ela dobrou um joelho e virou para o lado, girando a tampa do
frasco. Ela caiu, jogando a água diretamente no rosto do vampiro,
quando ele se inclinou para alcançá-la.

O Guardião gritou e saltou, com as mãos sobre os olhos, nos


quais cintilava uma fúria assassina. Vitória procurou pela estaca
que deixara cair, mas antes que conseguisse encontrá-la, deparou-
se com algo melhor. Uma espada brilhante estava perto de seus
pés, uma arma que um Imperial esquecera. Ela a alcançou e
ergueu, segurando a lâmina pesada. Com um golpe rápido, como o
que ela usara para decapitar o demônio, no Cálice de Prata, ela
investiu contra o vampiro, no momento em que ele começava a se
movimentar em direção a ela.

A cabeça dele, decepada, virou pó antes de chegar ao chão.

Vitória girou, libertando-se dos últimos vestígios do controle


que ele exercera, e, subitamente, estava de volta ao presente.

Viu, perplexa, que Sebastian tinha investido contra um dos


Imperiais, usando sua própria espada.

As lâminas brilhavam, ao ritmo dos golpes dos esgrimistas,


no corredor estreito. Sebastian enfrentava o Imperial em pé de
igualdade, as lâminas se distanciando quando ambos também se
afastavam, O outro Imperial estava fora de cena, mas a porta do
outro quarto permanecia aberta.
Vitória hesitou por um momento, mas Sebastian gritou: —Vá!
Polidori! — Ele estava em desvantagem e ela sabia que, se saísse,
ele morreria. Uma espada só seria eficaz contra um vampiro, se
fosse usada para decapitá-lo. No entanto, uma espada empunhada
contra um mortal poderia ferir, mutilar ou matar, se o atingisse em
qualquer parte do corpo. Sebastian não tinha a força ou a
velocidade necessárias para combater com o vampiro por muito
tempo... ela nem conseguia imaginar como ele pudera aguentar até
agora. Era uma bênção que o teto baixo impedisse o Imperial de
flutuar e descer rapidamente, como uma ave de rapina, senão a
batalha teria terminado antes mesmo de começar.

— Vitória! Vá! — ele gritou e ela tomou sua decisão. Poderia


especular, mais tarde, por que Sebastian estava disposto a se expor
ao perigo. Inclinando-se, com um movimento gracioso, ela pegou a
estaca e, ainda segurando a espada, disparou na direção do
Imperial.

Ela não ia fazê-lo pelas costas, embora, no momento em que


ele a viu e girou, dando um golpe na direção de Sebastian, inclinou-
se depois para Vitória. O ruído do choque, resultado do encontro de
três lâminas, era interessante, embora assustador.

Aproveitando a oportunidade, Vitória se virou, de maneira


que a espada acompanhou seu movimento, enquanto ela deslizava
para o lado do vampiro, que ergueu sua arma para aparar o golpe
da de Sebastian. Como a moça balançou com todas as suas forças,
desferindo estocadas contra o vampiro, este manejou sua própria
espada, procurando atingir Sebastian enquanto procurava por ela.

Vitória abaixou a lâmina, e sem atingir seu vulnerável


pescoço, cortou o braço dele, que despencou. O braço praticamente
explodiu, virando pó, mas em um piscar de olhos outro braço
apareceu, para substituir o perdido.

Vitória brandiu sua espada, novamente, percebendo que


Sebastian estava pressionado contra a parede, e deu golpes para
cima e ao seu redor, fazendo com que o Imperial investisse no
novamente contra ela. Suas lâminas se chocavam, deslizando
raivosamente uma contra a outra, e quando estavam no auge da
contenda, se separaram. A de Vitória se ergueu e a do vampiro
baixou, mas a dela se dirigiu ao pescoço dele, mesmo que ela
sentisse uma dor lancinante ao longo de sua coxa. Com um grito de
determinação, ela sustentou o ímpeto e se sentiu aliviada quando o
decapitou.

Vitória caiu no chão, enquanto o vampiro se evaporou, virou


nada. O sangue escorria da perna dela, ensopando sua camisola de
seda e pingando sobre o piso encerado. Ela executara seu primeiro
Imperial, graças à ajuda de Sebastian.

Tremendo, ela se recuperou, cambaleando na direção de


Sebastian. Quando ela colocou a mão no peito dele, deslizando os
dedos sobre sua pele morna para sentir se ele ainda respirava e
inclinou a cabeça dele para o lado, de maneira que pudesse avaliar
sua pulsação, ele estremeceu, respirou fundo e se esforçou para
manter os olhos abertos. Um espírito de humor exausto se revelou
no que disse, em seguida. — Não agora, Vitória.., mas eu prometo...
depois.

Com um sorriso espontâneo, ela se afastou, ainda fraca. Ela


se manteve em pé com dificuldade, mas satisfeita porque ele não
estava prestes a expirar ali mesmo. — Uma pessoa deve ter suas
próprias fantasias — disse a ela, para em seguida engasgar, devido
à dor na perna. Ainda segurando a espada, pesada demais para seu
pulso dolorido, ela a usou para ajudá-la a entrar no quarto onde,
supostamente, o escritor se escondia. A porta estava aberta,
pendurada apenas na metade de suas dobradiças.

O vampiro Imperial, o último remanescente, saltou da cama


para enfrentá-la. Ele não tinha uma espada; deve ter sido ele que
deixara cair aquela que ela segurava. Olhando além dele, Vitória
teve a impressão de ver sangue, uma poça espalhada ao redor de
um corpo que ali jazia, denso e rescendendo a oxidação.

O cheiro do mal, da morte.

Com a perna latejando, o pulso protestando, ela ergueu a


espada, mas o Imperial se lançou em sua direção e impediu o
movimento da lâmina. Fez isso com a palma de sua mão, agarrando
a arma do pulso fraco da moça e arremessando-a, em voo livre, pelo
quarto. Seu rosto ardia em raiva, o sangue escorrendo dos cantos
de sua boca e os olhos cintilando, quando retornou a Vitória.

Ela se sentiu levantada e jogada para o outro lado do quarto.

Bateu em algo duro e tudo ficou negro.


7
Uma questão perturbadora continua sem resposta

O cheiro da morte a despertou. Vitória abriu os olhos,


recuperando-se para voltar à batalha com o Imperial, afastando
Sebastian, que estava com a mão sobre seu peito e a fitava com
olhos dourados e sem brilho.

— Ele foi embora — disse a ela, retirando a mão,


deliberadamente. — O vampiro. — Polidori? — Ela se apoiou nos
cotovelos, depois nas palmas das mãos, e notou que sua
amarrotada camisola branca estava manchada de vermelho-escuro.
— Morto. — Não! — Ela empurrou Sebastian e tentou ficar em pé,
permitindo que ele a ajudasse, depois que estendeu as pernas. Sua
coxa direita estava ferida, latejava, doía como se tivesse sido
esmagada por uma pedra, e ela sentia gotas quentes escorrendo até
se concentrar em seu tornozelo. Quando se virou, viu a cama.

Ali estava Polidori ou o que restara dele. Vitória já havia visto


uma carnificina como essa antes, mas mesmo assim não era algo
que se pudesse observar com facilidade. O que antes eram cachos
rebeldes de cabelo, agora estava reduzido a uma massaroca
misturada a sangue marrom, já coagulado, tudo concentrado em
um dos lados de seu rosto. Os quadris e o peito dele, estraçalhados,
estavam curvados frente a frente. Manchas em tom de vermelho-
escuro arruinaram o que restara do pijama listrado, cinza e
marrom. Sua garganta permanecia escancarada como a entrada de
uma caverna e três letras xis — em memória das trinta moedas de
prata que Judas recebeu por vender Jesus — haviam sido riscadas
no peito dele.
— O Imperial foi embora? Não lembro o que aconteceu —
disse Vitória.

— Não tenho certeza... mas ele desapareceu quando eu


cheguei. Você não ficou inconsciente por muito tempo, e quando
entrei, ouvi um forte baque. Suponho que você foi lançada contra a
parede. Ele deve ter ido embora pela janela, porque eu vim ver o
que houve logo depois que ouvi o barulho.

Então, Vitória se lembrou. — Você queria que eu salvasse


Polidori, enquanto continuava lutando contra o Imperial e insistia
para que eu me afastasse. Você poderia ter morrido.

— Hummm... que surpreendente reviravolta nos


acontecimentos, hein, corajosa? Bem, quem sabe só tenha sido um
acidente... afinal de contas, eu tinha de entrar em ação quando o
Guardião estava prestes a se refestelar em seu pescoço encantador,
porque o Imperial estava bem atrás dele. Se eu não o tivesse
retardado, com a espada, aquele poderia ter sido o seu fim,
Vitória.., e, depois, onde é que nós estaríamos? — Um brilho de
zombaria se estampou em seus olhos. — Por mais presunçoso que
pareça, eu achei que poderia segurá-lo por alguns instantes. E,
certamente, foi por acaso que eu distraí o Imperial por um lapso
suficiente para que você o decapitasse. Mas, devo dizer — ele
inclinou calmamente a cabeça — que foi um alívio quando você
quebrou o encantamento gerado por esse Guardião.
Momentaneamente, eu fiquei um pouco preocupado. Você dava a
impressão de que estava pronta para fazer qualquer coisa que ele
quisesse, com os olhos entreabertos e pesados.

Vitória caminhou em direção à cama e cobriu o homem morto


com um lençol. — Ninguém deve entrar neste quarto. Temos de
esconder o que aconteceu aqui esta noite. — Ela olhou para
Sebastian. —Vou cuidar de Polidori. E deste cômodo. Podemos
queimar tudo.

— Minha empregada pode ajudar. E talvez eu possa mandar


uma mensagem à minha tia, em Londres. Ela tem um jeito... de
fazer com que as pessoas apaguem suas lembranças de situações
como esta. — Seu disco de ouro, sim, eu já ouvi falar sobre o
amuleto giratório, que ajusta a memória das pessoas. Isso sena
mais útil. Se você se comunicar com ela agora, talvez ela possa vir
até aqui amanhã à tarde. Certamente, conseguiremos manter todos
na propriedade até que ela chegue. Não seria prudente que relatos
sobre os acontecimentos desta noite se espalhassem por toda
Londres. Teríamos uma histeria em massa — Sem contar, uma
série de pretensos caçadores de vampiros. Uma vocação muito
perigosa para quem não está treinado.

Ele olhou para ela, como se estivesse tentando concluir se o


comentário dela era ou não dirigido a ele.

— Qualquer pessoa pode fincar uma estaca em um vampiro


— ele replicou friamente.

— Se conseguir chegar suficientemente perto — Vitória disse.


E olhou para trás, na direção da carnificina.

— Com tudo o que ele sabia sobre vampiros, você poderia


pensar que ele conseguisse se proteger de alguma forma. Usando
um crucifixo, carregando uma estaca... algo, enfim.

— Um crucifixo não poderia tê-lo ajudado — Polidori era um


ateu. Então, relíquias sagradas, que nada significavam para ele,
não lhe garantiriam nenhuma proteção.

— Como é que alguém pode acreditar no mal e na


condenação eterna sem também crer na bondade divina? Um não
pode existir sem o outro.

Sebastian encolheu os ombros. —Você e eu temos mais


conhecimento disso, pois compreendemos e vivenciamos esse
aspecto do mundo religioso... paranormal, imortal, maldade
inerente.

Talvez. Mas por que eles o perseguiram, afinal? Você ia deixar


que ele me dissesse... mas certamente você sabe de alguma coisa.

— Tudo o que sei é que a Tutela está se levantando na Itália,


e Polidori sabia algo a respeito disso e do líder da organização,
Nedas. Trata-se de algo que os vampiros precisam silenciar,
possivelmente algum segredo de vulnerabilidade ou fraqueza. Ou
algum detalhe de seus planos. Mas ele não me disse nada mais. Ele
não confiava em mim. Ele me permitiu ficar com ele porque não
tinha escolha, mas não elevou o nível de confiança suficientemente
para me revelar tudo. — Vitória ergueu as sobrancelhas. — Mas ele
teria confiado em mim? Uma Venadora. A sobrinha-neta de
Eustácia Gardella. — Sim, acredito que teria. Mas agora... nós
nunca vamos saber.

— Nedas. Você o mencionou, antes, esta noite. Disse que ele


estava se movimentando rapidamente; suponho que seja um
vampiro, não um demônio. O que você quis dizer? — Sim, com
certeza um vampiro. De fato, um dos filhos de Lilith. O que eu quis
dizer foi apenas que ele havia encontrado Polidori muito depressa e
que havia mandado muitos de seus homens atrás dele — incluindo
o demônio e o vampiro que você encontrou no Cálice. — Os lábios
dele tremeram. — Não posso acreditar que você demorou tanto para
perguntar isso.

Ela ergueu o queixo. — Prefiro não ser previsível. Além disso,


sabia que você estava me seduzindo, queria que eu perguntasse...
conheço você... ou Polidori iria me contar, na hora certa. Além
disso, você se meteu nessa encrenca toda para me tirar do meu
quarto.

Os olhos dele se estreitaram. — Falando em meu quarto e na


saída dele... por que você não estava com Polidori, quando os
vampiros chegaram? Pensei que você fosse ficar com ele.

— Eu estava caminhando em direção a ele, quando encontrei


seu apaixonado visconde tropeçando pela casa e dei um tempo para
levá-lo de volta a seu quarto e o deixei a salvo, roncando em sua
cama, antes de sair do quarto. Quando terminei essa tarefa, os
vampiros invadiram o corredor e se dirigiram para o quarto de
Polidori. Ele havia seguido minha recomendação e estava dormindo
em outro lugar; mas isso acabou não importando, no final das
contas.

— Posso ver por que... você é tão criativo quando se trata de


fugir do perigo.
— Tudo para manter a salvo minha delicada pele. — As
palavras deles eram leves, mas havia uma ponta de irritação em
seus olhos. — Agora, deixe-me lidar com essa confusão e talvez sua
criada possa cuidar do ferimento em sua perna.., a menos que
prefira manter isso em segredo e me permita tratar disso.

— Minha criada é perfeitamente capaz, muito obrigada. —


Vitória ouviu a rispidez em sua própria voz e decidiu que seria
prudente se afastar de Sebastian. Ele tinha o indesejável efeito de
acelerar as batidas de seu coração e fazer com que seus nervos
formigassem. Especialmente depois de ver a maneira como ele
manejava a espada, na batalha com o Imperial. Ela poderia estar
distraída, mas não deixou de notar que os movimentos dele eram
poderosos e elegantes.

— E lá vou eu... ser previsível. Simplesmente não consigo me


concentrar, quando estou perto de você, Vitória.

E a expressão no olhar dele revelou a ela que ele não estava


lá muito satisfeito com isso.

— Quando — rosnou Vitória, enquanto enfiava sua perna


ferida no pesado protetor acolchoado que seu treinador também
usava — você vai me ensinar qinggong? — Sua velocidade não
diminuiu quando ela avançou na sequência de um golpe na altura
do peito.

Entretanto, Kritanu era muito ágil e ele se abaixou, voltando


em seguida com um pontapé poderoso.

— Você precisa dominar esta kalaripayattu com a espada,


antes que eu lhe ensine a deslizar no ar e pular, ao mesmo tempo,
durante uma luta — ele respondeu. — E se tratava de uma
manobra muito previsível. — Kritanu era um dos Comitadores:
peritos em artes marciais que foram enviados como protetores e
assistentes, bem como treinadores, para os Venadores aos quais
haviam sido designados. Ele estava com Eustácia havia décadas e
atuava, também, como preparador de sua sobrinha.

Vitória, que tentou evitar o golpe, estava bem mais do que


levemente irritada ao notar que ele podia dizer uma longa frase com
facilidade, enquanto ela gemia e respirava pesadamente. O homem
tinha quase 70 anos, enquanto ela, apenas 20. E ela não estava
sequer usando um espartilho, embora seus seios estivessem presos.
Sem mencionar o fato de que ela não queria ser considerada
previsível.., fosse durante uma batalha ou diante de homens
misteriosos e charmosos.

— Então, quando vamos começar a treinar com a espada? —


ela perguntou, aproximando-se dele rapidamente, com um dos
punhos dando um golpe imediato no peito dele.

Ela e Eustácia haviam retornado a Londres, vindas de


Claythorne, no dia anterior e Vitória insistia em um treino urgente
com Kritanu. Se tivesse sido mais ágil, forte e preparada, talvez não
ostentasse agora os quatro arranhões superficiais em seu pescoço,
no lugar onde o guardião estava prestes a cravar suas presas... nem
sentiria tanta dor no pulso ou teria aquele corte profundo ao longo
de seu quadril e de sua coxa, feito pelo Imperial.

O ferimento já começava a apresentar sinais de cura,


certamente. Dentro de uma semana, não seria mais do que uma
cicatriz. Mas encarar um Imperial sozinha — a despeito da
presença de Sebastian, ela estava mesmo sozinha, para todos os
efeitos — fez com que ela percebesse que precisava aprender muito
mais e o quanto lhe custara ficar cerca de um ano sem lutar com
vampiros.

— Podemos começar com a espada, amanhã — ele


respondeu. Ela notou, encantada, que desta vez as palavras dele
saíram um pouco mais entrecortadas.

— Que bom! — Ela acentuou sua satisfação girando


rapidamente em um só pé, desferindo um golpe bem abaixo do
plexo solar dele. Kritanu gemeu suavemente, por trás do escudo,
inclinando-se. Mas quando ele olhou para cima, estava sorrindo. —
Isso não era previsível. — Então, olhou para a porta e parou. Vitória
se virou e viu sua tia, ali, em pé. — Muito bem, querida — Eustácia
lhe disse, balançando a cabeça afirmativamente. — É difícil
surpreender Kritanu, como você conseguiu. Na verdade, tenho
tentado há anos. Wayren acaba de chegar. Será que vocês dois
podem se juntar a nós, na sala de estar?

Wayren era uma mulher alta e magra, lembrando à Vitória a


figura de uma dama medieval. Tinha cabelos loiros bem claros e os
usava soltos, caindo em ondas suaves sobre os ombros; compridos,
chegavam quase à cintura dela. Nas duas vezes em que Vitória a
vira, usava a mesma roupa fora de moda: um vestido longo e amplo,
ajustado à cintura com uma corda de tiras de cânhamo bem
apertadas, com mangas largas e compridas, descendo em pontas
quase até os joelhos. A cor do tecido era creme, como se o linho não
tivesse sido tratado com corantes ou alvejantes. Ela se levantou
quando Vitória entrou e, para surpresa da moça, a enlaçou em um
delicado, mas firme abraço.

— Fico muito feliz ao vê-la de novo, minha querida. Quero lhe


dar os parabéns por seu trabalho com o Livro de Antwartha.

Soube, por Max, que você foi responsável pela evolução dos
fatos.

A mulher, cuja idade era incalculável, embora parecesse mais


velha que Vitória e mais nova que Eustácia, tinha uma estrutura
corporal tão delicada, que Vitória se surpreendeu com a força de
seu abraço. — Mas acima de tudo, eu sinto muito, mas muito
mesmo sobre Filipe.

Vitória sabia pouco sobre ela, exceto que Wayren e Eustácia


se conheciam havia muito tempo e tinham muita confiança, uma na
outra. Ela sempre achou que não ficaria surpresa se viesse a saber
que Wayren vivia como uma sílfide entre as árvores da floresta.

— Esta vida que nós compartilhamos é suficientemente


difícil, sem que, por causa dela, tenhamos de perder alguém amado.
Wayren se afastou de Vitória, mas manteve as mãos em seus
ombros, reservando um momento para olhar nos olhos da moça,
como se tentasse ler as emoções dela. Os olhos de Wayren eram de
um cinza desbotado, e quando Vitória os fitou sentiu calma e
suavidade. Uma sensação de que Wayren realmente se importava
com ela.
Finalmente, a mulher a soltou, conduzindo-a até o sofá, com
um sorriso carinhoso. Vitória se movimentou timidamente,
surpresa de como se sentia comovida pela recepção amorosa de
uma mulher que ela mal conhecia.

Eustácia se sentara em seu lugar de sempre, à mesa


laqueada, com Kritanu na poltrona ao lado dela, e falava como se
estivesse organizando uma reunião formal. — Relatei a Wayren os
acontecimentos em Claythorne, e também que, juntamente com
Sebastian Vioget, fomos capazes de ocultar a verdadeira causa da
morte de Polidori aos outros convidados. Alguns dirão que ele
morreu envenenado; outros, que foi por causa de um acidente.
Histórias conflitantes, ao mesmo tempo em que foram apagadas as
lembranças do que houve naquela noite, vão ajudar a esconder a
tragédia do resto da nobreza. Vitória, por favor, explique a Wayren o
que Sebastian descobriu.

Eustácia ergueu uma delicada xícara de chá e bebeu um


golinho. — Eu contei a ela sobre o amuleto e como você chegou a
ele, no Cálice de Prata.

— Quando Sebastian estava cuidado do corpo de Polidori, ele


encontrou um embrulhinho de couro, cheio de papéis. Eram
anotações sobre a Tutela e seu novo líder, Nedas. Sebastian já me
dissera que o amuleto era um novo símbolo do renascimento da
Tutela, razão pela qual tia Eustácia não o reconheceu.

Wayren olhou para Kritanu. — Como sempre, seu instinto


chegou bem perto. Recebi a mensagem de Eustácia, revelando que
você tinha associado o cão do amuleto aos hantu saburos, embora
não com a própria Tutela. Mas, é claro, o hantu saburos são
vampiros que treinam cães para lhes trazer seres humanos, como
presas para se alimentar... e o que é a Tutela, senão um
agrupamento de seres humanos agindo como cães treinados por
Nedas e seus seguidores? — Seus olhos descoloridos se estreitaram,
revelando desaprovação. — Um símbolo adequado, cujo significado
provavelmente tenha se perdido para os que o usam... mas
certamente reconhecido por todos nós, agora. — Kritanu curvou a
cabeça, agradecendo o elogio, e se virou para Vitória, como se a sua
intenção fosse a de reconduzir a conversa aos trilhos, afastando-a
de si mesmo. — As anotações? — Aparentemente, este
renascimento da Tutela está sob a liderança do vampiro Nedas,
que, de acordo com Sebastian, é filho de Lilith.

— Nossa! — As mãos de tia Eustácia se levantaram. — Com


certeza! Nedas, filho de Lilith. Eu sabia que tinha ouvido esse nome,
antes.

— Como ela poderia ter um filho? — perguntou Vitória. —


Ela... engravida? — Um rubor tomou conta de seu rosto, mas
precisava perguntar. Ela entenderia.

— Não, não neste caso, embora seja possível, mas não


comum, que um vampiro possa gerar filhos. Não, eu acredito... eu
acredito que ela se apoderou do pai do menino, há alguns séculos,
tornando-o seu concubino. Na época, ele tinha uma mulher, que
Lilith não permitiu que continuasse viva, e um bebê. Lilith criou o
garoto, e quando ele chegou a uma idade que ela considerou
satisfatória ela o transformou e o chama de filho. Ela dotou-o de
grandes poderes, obviamente semelhantes aos dela.

Depois de ouvir a resposta à sua pergunta, Vitória continuou.


— Segundo as anotações de Polidori, Nedas conseguiu se apoderar
de um tal Obelisco de Akvan, algo que constitui tamanha ameaça a
ponto de assustar Polidori, fazendo-o deixar a Itália. — Vitória
olhou para Wayren, como se estivesse pedindo desculpas. — Era
muito difícil ler as anotações, porque ele escreveu em cada
pedacinho do papel onde ele encontrou um espaço em branco.

— A Tutela teve seus períodos de poder e glória, seus tempos


de fraqueza à beira da extinção. Há décadas, a organização era
mesmo uma ameaça, mas a última vez foi durante os
acontecimentos na Áustria, quando fomos capazes de acabar com
eles, depois daquele terrível massacre — disse tia Eustácia,
calmamente.

Wayren ouvia tudo com muita atenção, pressionando as


pontas dos dedos de uma mão contra os da outra, mantendo os
olhos lixos. Vitória acreditava que até pudesse ver o lento e
profundo movimento das voltas que dava sua mente, enquanto ela
pensava. Então, ela enfiou a mão na grande sacola de couro que
colocara no chão, ao lado de sua cadeira, ficou vasculhando lá
dentro e, finalmente, tirou um pequeno manuscrito, com as folhas
escuras e amassadas.

Suas bordas eram rotas e quebradiças e estavam unidas


apenas por uma tira de couro, alinhavada ao longo de um dos lados
do conjunto de papéis. O manuscrito não era mais grosso que um
dedo, e, de largura, talvez correspondesse ao dobro do tamanho da
mão de um homem. Vitória podia ver arranhões escuros que
formavam símbolos; observou que eram escritos em uma língua
aparentemente não conhecida, ao menos a partir de sua perspectiva
oblíqua, e provavelmente também não seria se ela estivesse olhando
diretamente para as páginas. Parecia que Wayren tinha sido
abençoada com a capacidade de ler qualquer língua ou grifo que
precisasse, enquanto Vitória se limitava a saber inglês, italiano e
um pouco de latim.

Wayren virava as páginas cuidadosamente, usando um dedo


esbelto para percorrê-las, uma de cada vez, e alguns instantes se
passaram antes que ela dissesse: — Ah, sim.. eu acreditava que
deveria estar aqui.

Olhou para cima.— O Obelisco de Akvan é uma pedra


grande, semelhante a uma lança, feita de obsidiana e, conforme diz
a lenda, quando ativado confere, a um demônio ou vampiro, a
capacidade de invocar e controlar as almas dos mortos. Imagine um
exército de mortos, não vampiros, sem sequer precisar alimentar-se
de sangue humano, nada além de corpos deformados, manipulados
pelas cordas de suas almas, chamados de volta após a morte e
trazidos à Terra. Seria devastador para nós ter de lutar contra um
exército de tamanha força e tão numeroso.

Ela olhou para baixo, de novo, em direção ao manuscrito,


fazendo círculos, com seu longo dedo, em torno de uma imagem. —
De acordo com este livro, o Obelisco de Akvan foi um presente
oferecido pelo demônio da montanha Akvan para Millitka, seu
amante, que mais tarde foi transformado em vampiro. Em um
acesso de raiva (pois, como você sabe, demônios e vampiros
geralmente são inimigos imortais), Akvan tomou o Obelisco de volta
de Millitka e, durante seu destempero, arremessou-o para a terra. O
objeto penetrou no solo tão longe e profundamente, que ninguém
conseguiu encontrá-lo de novo.

— Ela olhou para cima. — Se Polidori estava certo, e Nedas,


de alguma forma, o recuperou, pode haver sérias consequências
para nós, caso ele o ative. Se é que a lenda é verdadeira.

Todos os demais permaneceram em silêncio, enquanto


Wayren voltava sua atenção novamente para o livro, lendo mais. —
É impossível destruir a pedra. Uma vez ativada e nas mãos de seu
mestre, é infalível e indestrutível. A ativação tem alguns estágios,
mas uma vez totalmente realizada não haverá nenhum jeito de
obstruí-la.

— O Obelisco de Akvan é indestrutível.., mas e Nedas? Ele


poderia ser morto? — Vitória perguntou.

Wayren piscou, olhando na direção de Eustácia, e em


seguida, voltando-se Vitória. — Se fosse morto, seria rompida a
ligação entre ele e o Obelisco.., mas isso não diminuiria o poder do
Obelisco. Alguém mais poderia ativá-lo, assim como ele o fez. Você
tem razão, minha cara. Nedas tem de ser assassinado. É preciso
infiltrar-se na Tutela, localizá-lo e matá-lo, antes que a ativação
comece. Nedas é um vampiro. Um filho de Lilith, portanto, muito
poderoso. Nós fomos capazes de descobrir muitas coisas. Mas não
sabíamos que ele havia encontrado o Obelisco de Akvan —
comentou Wayren.

— Nós? — Vitória perguntou, embora soubesse a resposta.

— Max e eu... uma das razões pelas quais ele voltou tão
rápido à Itália, depois dos acontecimentos do ano passado, foi o
crescente poder da Tutela. Então, Max vai matar Nedas.

Eustácia e Wayren trocaram olhares de novo. Desta vez foi


muito mais sutil, mas Vitória não era uma Gardella por nada. Ela
captou o movimento, embora não soubesse o que significara. Algo
estava errado. — O que é?

— Logo depois que chegamos a Roma, as mordidas de Lilith


no pescoço de Max começaram a doer mais do que de costume
— Wayren respondeu. — Você sabe que aquelas mordidas
nunca se curaram e que ela usa isso a seu favor — ela gostaria,
acima de tudo, de ter Max sob seu total controle. Ele sempre foi
capaz de enfrentar isso, mas... ficou mais difícil a partir do
momento em que ela o mordeu de novo, no ano passado, quando
vocês estavam roubando o Livro de Antwartha.

— Onde está Lilith, agora? — perguntou Vitória, lembrando


como tinha sido horrível ver o poderoso Max tão indefeso, sob a
perseguição da rainha dos vampiros.

— Tenho certeza de que ela está em seu covil, escondida em


algum ponto do Monte Fagaras, na Romênia. Ela permanece lá
desde que você a caçou, por Londres, no ano passado, e não tenho
razões para acreditar que ela tenha saído.

— Então o que há de errado com Max?

— Como eu já disse, as mordidas dela começaram a ficar


mais doloridas e, subitamente, ele desapareceu por algumas
semanas. Sei que ele retornou, porque foi visto por outro Venador,
Zavier; mas então eu fui chamada de volta a Paris e não consegui
mais fazer contato com ele, durante mais de oito meses.

Vitória sentiu a garganta secar. — O que você acha que


aconteceu?

Wayren olhou para Eustácia, depois de volta para Vitória.

— Não sei. Mas estou certa de que Lilith está envolvida, de


alguma forma, nisso. Ela tem um longo alcance; mesmo que não
esteja na Itália, tem grande influência. Não tenho certeza, sequer,
se Max está vivo.
8
Pisões no pé, condutores tagarelas e inflação.

— Então a senhora está de partida para a Itália, Lady


Rockley?

— De fato, sim, senhor Starcasset — Vitória respondeu. Na


verdade, naquele momento ela já deveria ter deixado Sr. Heath’s
Row, mas foi retardada pela visita dos irmãos Starcasset. — Espero
que me perdoe por não ter tido tempo de lhe mandar uma
mensagem antes de partir. Minha viagem a Veneza é de natureza
urgente, e se refere a uma propriedade que uma tia idosa mantém
lá.

— Com certeza. Espero que tudo corra bem. — George (ela


nunca mais fora capaz de pensar nele como senhor Starcasset ou
mesmo como herdeiro, o visconde de Claythorne, depois do episódio
em seu quarto) parecia estar muito contrariado com a sua iminente
partida.

—Vitória, espero que você não esteja se distanciando por


causa dos acontecimentos em Claythorne — disse Gwendolyn,
avançando na entrada de St. Heath’s Row. Pela careta que seu
irmão fez, ela não só seguira seus passos, como pisara mesmo nos
pés dele.

Provavelmente essa abordagem o ajudara, pensou Vitória,


porque ele havia sido muito cuidadoso nas tentativas de
monopolizar a conversa com ela. — Eu nem tenho condições de
começar a me desculpar pelo medo tremendo que todos tivemos
naquela noite, Vitória. Pensar que uma coisa daquelas aconteceu
em Claythorne
— Não se preocupe com isso — Vitória murmurou calma,
pressionando a mão enluvada sobre o braço de seu amigo.
Gwendolyn, obviamente, não sabia da metade do que ocorreu,
graças ao medalhão cintilante de Eustácia, que foi usado para
alterar a memória de todos os convidados de Claythorne. — E
agora, querida Gwendolyn e G... senhor Starcasset, sinto
muitíssimo, porém tenho de lhes pedir licença. Minha carruagem
está esperando e o navio no qual embarcaremos está aguardando
pela minha chegada, a qualquer momento. — Vitória deu a ela um
abraço de despedida, dando-se conta, naquele exato momento, que
Gwendolyn era sua única amiga da mesma idade. E também era
uma lembrança de que a outra parte do mundo de Vitória era muito
diferente daquele em que Gwendolyn vivia.

Tal como acontecera com Filipe.

Talvez se ela tivesse usado o medalhão de Eustácia em Filipe,


as coisas poderiam ter evoluído de outra forma.

Vitória foi subitamente despertada de seu deplorável


devaneio, quando George se inclinou sobre sua mão enluvada, para
passar seus lábios sobre ela.

Quando ele ergueu o rosto, puxou a mão dela e deu um passo


em sua direção, para que só ela ouvisse o que ele tinha a dizer. —
Sua partida pode amortecer bastante minhas intenções de lhe fazer
a corte, Lady Rockley. — Ele deu um beijo na parte inferior dos
dedos da moça, e, depois, nas pontas. — Vá com Deus, Vitória, se é
que posso ser tão ousado a ponto de chamá-la assim... e se você
desejar, eu receberia de bom grado qualquer correspondência que
me enviasse durante o tempo em que permanecer fora. — Não podia
evitar que sua transparência e jeito de garoto o fizessem parecer
mais um escolar do que um sério cortejador. Mas, ela teve de
admitir que apesar do sorriso largo e do desalento estampado em
seus olhos, ele era muito charmoso. E, apesar das circunstâncias,
Vitória se sentia bastante satisfeita em ser, novamente, alvo da
atenção de um homem. Ela tinha andado tão solitária.

— Grata, senhor — ela respondeu. — Não sou conhecida


como uma ótima correspondente, mas vou me esforçar para não
desapontá-lo. E, quando eu voltar, podemos conversar a respeito da
sua intenção de me cortejar. — Com um sorriso que achou ser mais
insinuante do que gostaria, ela retirou os dedos e acenou para
Filbert abrir a porta da frente.

— Adeus, Gwendolyn. Vou avisá-la imediatamente, quando


retornar.

— Adeus, senhor Gwendolyn. Vou avisá-lo imediatamente


após o meu retorno. — Vitória viu que os irmãos Starcasset
estavam em segurança, dentro de sua própria carruagem
ornamentada e confortável, enquanto um homem alto e robusto,
chamado Oliver, abria a porta da sua. A porta se fechou e ela se
afundou na poltrona, quando percebeu que não estava sozinha.

— Sebastian? Maldição! Como, diabos, você chegou até aqui?


E em mangas de camisa, de novo! — Lá estava ele, refestelado no
assento diante dela. Ela não percebeu a presença dele, quando
subiu, porque tava prestando atenção no lugar onde sentaria e ele
fora bastante prudente para manter os pés acima do chão, para
onde ela certamente teria olhado, ao entrar. Para falar o mínimo,
aquele homem tinha talento para aparecer inesperadamente e
parecer muito à vontade.

Ele se sentara com as pernas estendidas ao longo do assento,


com as costas apoiadas em um dos lados do veículo. A cartola
estava em seu colo, mantida no lugar por duas mãos elegantes. Sua
jaqueta escura fora removida e estava pendurada em um gancho.
Ele sorriu preguiçosamente para Vitória, que ajeitou seu vestido,
empertigada na poltrona, balançando ligeiramente quando a
carruagem começou a andar. — Pelo menos ele não é tão
imprudente como Barth — murmurou Vitória.

— Quem? Ah... seu novo condutor. Sim, ele é um sujeito bem


complacente, esse Oliver. Ah, sim, fiquei muito satisfeito ao saber o
nome dele e uma boa parte de sua linhagem, enquanto estávamos
nos conhecendo. Não foi difícil mandá-lo falar com o condutor da
outra carruagem, enquanto você se despedia carinhosamente de
seu apaixonado George, que, tenho certeza, está devastado com a
sua partida. E, com isso, Oliver começou uma conversa com o
criado dos Starcasset, dando-me a oportunidade de aproveitar o
assento extra de sua carruagem. — Os lábios dele se fecharam em
um sorriso complacente, enquanto o veículo fazia uma curva suave.

— Certamente você também não está aqui para lamentar o


fato de que nosso namoro terá um hiato de vários meses, enquanto
eu fico na Itália? — Vitória respondeu, tentando não olhar para
aqueles lábios. Ela se lembrava muito bem do gosto deles. Não
precisava recordar sua forma. Com a presença dele, a carruagem
parecia muito menor do que realmente era, e se ela tivesse prestado
mais atenção, em vez de refletir sobre a visita inesperada dos
irmãos Starcasset, notaria o cheiro forte de cravo que pairava no ar,
logo que colocou os pés lá dentro.

Ela nem sequer começou a se perguntar como é que ele sabia


que ela estava indo embora para a Itália, naquele momento. Ele,
certamente, devia ter uma noção de por que ela estava se dirigindo
para lá, pois ele encontrara as anotações de Polidori, mas seu senso
de oportunidade, como sempre, era asquerosamente perfeito. Foi
uma bênção para ele que ela enviara Verbena na frente, com a
maior parte de sua bagagem e alguns móveis, para que arrumasse a
sua cabine no navio, caso contrário, ele teria que achar uma forma
de se livrar dela. A maldição é que ele teria tido êxito. — Namoro?
Essa é uma palavra um pouco forte para o que eu tinha em mente.
— Ele deve ter escolhido propositadamente a posição na carruagem,
de maneira a manter, o máximo possível, seu rosto na sombra.
Mais uma vez. Ela precisava encontrar um jeito de vê-lo, alguma
vez, em plena luz do dia. — O que quer que você tenha em mente —
ela replicou friamente — terá de ser interrompido enquanto eu
estiver fora. A não ser que você planeje terminar tudo ao longo
deste trajeto até as docas?

Sua gentil provocação a surpreendeu tanto quanto a ele, se é


que o fato de ele ter arregalado os olhos e dar um súbito sorriso se
constituíssem em uma indicação.

— Muito bem... — ele disse, movimentando os pés até o e


sentando direito. — Não era essa, exatamente, a razão pela qual eu
entrei em sua carruagem, Vitória.., mas se você insiste, estou mais
que feliz em fazer o favor.
— Eu apenas estava tentando entender por que você invadiria
minha carruagem, no momento em que estou para deixar o país.
Não quero sugerir que possa continuar com isso.

Os olhos dele não estavam mais na sombra; agora ela podia


ver seu âmbar intenso e o interesse que cintilava ali. — Com
certeza, você não vai, Vitória. No discurso, ao menos. Todo o resto
de você diz o contrário.., entretanto, sinto informá-la que, a
despeito de meu extremo interesse em retomar do ponto que
paramos no verão passado... em um cenário muito semelhante —
ele acrescentou, fazendo um gesto para indicar o interior da
carruagem — eu não invadi, como você disse, sua carruagem por
essa razão. Não queria visitá-la por medo de ser visto...

— Por quem?

Ele deu de ombros, estendendo as mãos benfeitas, que


pareciam nunca ter tido um dia de trabalho. — Por qualquer
pessoa.

Não sei quem ou o que ainda está à espreita, então pensei


que seria melhor se nós continuássemos, para todos os efeitos, a
não nos conhecer formalmente.

— Eu acho que é apenas uma desculpa para você encontrar


maneiras misteriosas de aparecer de repente. — Vitória olhou pela
janela. — Estamos quase chegando às docas. Se você tem algo que
deseja me dizer, agora seria um bom momento para deixar de ser
mentiroso e fazê-lo, por favor, Sebastian.

— Eu adoraria ouvir você perguntar isso, lindamente. Se eu


não aceitasse, será que você poderia ser compelida a mendigar?
Penso que não. — Ele voltou a se recostar no assento. — Esqueci-
me de lhe dizer uma coisa que aprendi com Polidori, quando fiquei
cuidando das coisas. Ele usava a marca da Tutela. Era um membro
da Tutela.

— Marca?

— Um símbolo impresso na pele. É chamado de tatuagem,


feito com tinta e não pode ser apagado. Ele tinha o símbolo de um T
ornamentado, com uma cobra entrelaçada no traço superior, o
símbolo histórico da Tutela. O cão que está no amuleto é o símbolo
do novo movimento, que está crescendo na Itália.

— Agora eu compreendo. Os vampiros e os demônios estavam


atrás de Polidori porque ele saiu da Tutela e porque eles tinham
medo de que revelasse seus segredos. Talvez ele soubesse mais
sobre o Obelisco de Akvan do que escreveu em suas anotações.

— Eu pensaria isso. — Ele deu uma olhada pela janela e


depois se voltou para ela. — Não sabia que ele era um membro da
Tutela quando eu pedi para ajudá-lo a voltar para a Inglaterra. Foi
só depois, quando eu cuidei do corpo é que descobri.

— Mas isso significa que poderia perfeitamente ser a pessoa


que deixou cair o amuleto em Claythorne.

— É o que eu pensaria também... a menos que houvesse


outros membros da Tutela ali. Mas, se houvesse, eles não estariam
tão apavorados com os vampiros. E há mais uma coisa. Eu
suspeito, embora não tenha certeza, que Byron talvez possa ser um
deles.

— Lord Byron... sim, isso pode fazer sentido. Byron e Polidori


eram tão próximos e, então, subitamente não eram mais amigos e
Polidori deixou a Itália.

— Conhecer Byron poderia ser o principal trunfo de que


alguém precisa para chegar à Tutela, assim essa deve ser a única
razão que faz você ir para a Itália. A menos que seja para visitar seu
colega Maximilian.

Ela olhou para Sebastian. — Você sabe de alguma coisa sobre


Max?

— Eu sei muito sobre o homem... o que você gostaria de


saber, exatamente?

— A tolice não lhe assenta bem — ela retrucou. Podia sentir o


cheiro de peixe, a aproximação do mar e o grasnar das gaivotas. Em
virtude da natureza da sua viagem, tia Eustácia reservou a
passagem em um navio cargueiro, que seguia diretamente para a
Itália, em vez de optar por um pacote que incluiria um trajeto de
Dover para a Normandia e exigiria uma viagem por terra ao longo
de todo o continente. Ela achou que isso lhes garantiria o
anonimato, diante de qualquer membro da Tutela, reduzindo a
probabilidade de que fossem seguidos ou interrompidos durante a
viagem.

— Há meses, minha tia não tem notícias de Max. Não sei


como ou onde você conseguiu sua informação, mas se soube a
respeito dele, eu gostaria que me contasse.

— Sempre querendo algo de mim, não é? — E então os


últimos vestígios de humor desapareceram do rosto dele. — Eu que
me perguntando por que não era ele que estava cuidando dos
problemas com a Tutela. Nada soube, mas isso não significa que
não há nada a saber. Você teme que ele esteja morto?

— Não sei. Minha tia disse que ele se mantém em silêncio por
mais de oito meses. Bem, nós chegamos — Vitória disse, olhando
para fora da janela. — Grata por me oferecer esta informação,
Sebastian. Vou aceitar sua sugestão e começar com Byron, quando
chegar a Veneza. Você poderia ter me mandado uma mensagem, em
vez de se dar ao trabalho de me visitar pessoalmente.

De novo, aquele sorriso. — Mas acho muito difícil resistir a


uma desculpa para vê-la.

Ela lhe deu um olhar fulminante, depois desviou o olhar para


longe, se esforçando demais para ignorar as profundas e
perturbadoras sensações na barriga. — Tenho certeza que você se
consumiu de saudade durante o ano em que se manteve
convenientemente desaparecido.

— Não... eu estava lhe dando um tempo para que sofresse


seu luto.

Essas palavras, simples e austeras, fizeram com que ela


olhasse para ele. Parecia que ele havia se aproximado; talvez
estivesse sentado na beirada da poltrona, talvez tivesse se inclinado
para frente... ou talvez o veículo tivesse dado outro solavanco.

Ele não dava a impressão de estar aguardando pela resposta


dela, prendendo a respiração para que ela pudesse reagir. Ele
estava apenas olhando para ela, como se quisesse encher os olhos
com o seu semblante. Ela notou, de relance, que seus próprios
dedos estavam tremendo, e, olhando para baixo, tratou de mantê-
los bem firmes, em seu colo. — Eu certamente não esperava
tamanha sensibilidade de sua pessoa — falou, mantendo sua voz
tranquila

Subitamente, ela não queria mais ir embora. Seria muito


solitário, lá em Veneza, com ninguém consigo, senão Verbena,
Oliver e, é claro, tia Eustácia; mas ela não ficaria morando com sua
tia. Elas tinham de fingir que não se conheciam, por receio que a
Tutela a identificasse como Venadora.

Ela não confiava inteiramente em Sebastian, mas ao menos


eles compartilhavam certo humor. Ele fazia com que ela sentisse..
algo. Viva. Atraente.

E quando ele olhava para ela, como agora, fazia com que ela
se sentisse, também mais que uma caçadora, uma guerreira. — Não
quero desapontá-la, minha querida — disse ele, com um tom
ríspido na voz — mas a minha benevolência era um pouco mais
egoísta do que você possa imaginar.

A carruagem havia parado havia bastante tempo e Vitória


podia sentir os empurrões e sacolejos, enquanto Oliver retirava o
resto de sua bagagem do veículo. Ela ouvia os gritos, as chamadas,
os ruídos das cargas sendo levantadas e levadas, de uma forma
pouco delicada, pelas docas.

Vitória olhou para Sebastian, viu que seu rosto se fechou e


ficou imaginando o que ele estaria refreando desta vez. Talvez a
intensidade das emoções reais fosse demais para ele. Arqueando
uma sobrancelha, ela seguiu a linha de pensamento dele, para
comentar: — Você? Egoísta? Nunca diga isso!

— Com certeza. Mesmo que eu não pudesse almejar...


recompensa... por meus serviços e ajuda, talvez ocorresse algo que
valesse a pena. Como houve com Polidori e agora.
Vitória sentiu o rubor começar a se espalhar de seu peito à
garanta. Tratou de inibi-lo, ostentando uma aura de irritação. —
Você deseja compensação pelo que informou a respeito de Polidori?

— Nós não temos tido, sempre, um entendimento?

— Você é que tem tido, eu não. Do que se trata... você quer


ver minha vis bulla, novamente?

Ele sorriu de um jeito tão feroz, que Vitória sentiu uma


pontada na barriga. — Eu já a vi e a beijei, como você sabe. — As
palavras, a lembrança pareceram absorver todo o ar na carruagem.
Vitória sentiu a palma de suas mãos úmida e seu rosto quente. A
voz dele combinava com seu sorriso. — Na verdade, meu preço
subiu.

— Certamente, você deve estar brincando. — Ela precisava


ostentar indignação, para disfarçar as diversas e assustadoras
emoções que a invadiam, desenfreadamente. Palavras, argumentos,
lógica, tudo lhe faltava, e só o que pôde pensar em dizer foi: —
Estou prestes a pegar um navio para a Itália! — Sua frase ficou
quase inaudível, em meio ao grasnar das gaivotas e gritos dos
marinheiros.

— Eu ficaria feliz em aceitar um pagamento de pequena


monta. — Ele mal piscara, durante os últimos instantes, mantendo-
a presa em seu olhar. — Estou certo, com base em suas
manifestações anteriores, que será sem grandes dificuldades.

Ela poderia ter argumentado ou manifestado zombaria ou se


mostrado ofendida... mas não fez nada disso. Deliberadamente,
resolveu não seguir essa linha; decidiu resolver as coisas do seu
próprio jeito, como costumava fazer em outros aspectos de sua vida.

Sua respiração parecia se ampliar, tomando conta dela,


quando se voltou para ele. Inclinou-se, as mãos procurando os
ombros dele, seus dedos se curvando ao toque do tecido fino que os
envolvia.

Ele tinha o cheiro de cravo que exalava de sua roupa, suave,


escorregadio e perigoso. Não foi um beijo fácil, um toque suave de
lábios sobre lábios. Não foi superficial ou indeciso. Foi ardente e
ansioso; o ápice do desejo controlado.

Quando Vitória se recompôs, quebrando a conexão, viu que


seu rosto estava bem perto do dele, trazido por suas próprias mãos,
na parte de trás de sua cabeça. Ele olhava para ela com uma
expressão estranha, depois delicadamente a libertou de seu abraço.

— Isso, com certeza, é um começo. — A despeito das palavras


sutis, a voz dele soava como uma chama de vela em uma poça de
cera. — Estarei ansioso para coletar o saldo.

Ela ajeitou os cabelos escuros dele, ainda mais selvagens por


força de seu toque insensato. — Você terá de esperar muito tempo,
Sebastian. — E desceu da carruagem.
9
A senhora Emmaline Withers se irrita com uma condessa
italiana

Veneza, Vitória logo notou, não estava em seu período mais


agradável, no declínio do verão. Embora setembro quase estivesse
findando, ainda estava quente e ensolarado. A cidade, em si, no
formato de um peixe grande, com a cauda apontando para o Mar
Adriático, evocava sonho e tranquilidade, com suas brilhantes
gôndolas passando para cima e para baixo, nos canais. Mas o mau
cheiro do lixo, que exalava da água, era agravado pelo calor.

— E eu qui me quexava do fedô di Londres, no calô —


Verbena se lamuriou, verificando se Vitória mantinha na bolsa um
pequeno frasco de água-benta com sal. Desde que sua patroa fora
mordida por um vampiro, e que o ferimento tinha de ser tratado
justamente com a água-benta salgada, Verbena assumiu a
responsabilidade de garantir que Vitória sempre levasse um
vidrinho desses consigo. — Esta cidade tá pió! Com esses pêxe
flutuanu nas rua e as alga du mar e essas coisa verde fedidas qui
fica em cima da água, num intendu por que alguém qué morá aqui
no verão! Mas aquele Oliver! Ele diz que num é assim tão ruim e
acha que a cidade num fede tanto como a fazenda. Bão... a gente
num podi esquecê qui ele é um garoto do mato. Parece que dexô o
nariz dele lá nos campo da Cornualha.

Ela balançou a cabeça e substituiu a bolsinha de Vitória, na


penteadeira. — Eu ainda num intendu por que meu primo Barth
num dexô sua potranquinha com otra pessoa e veio cum a gente em
vez de mandá seu amigo Oliver. Ele pode não sê o mió condutô —
achu que Oliver tem um poco mais de cuidado — mas tem a cabeça
mais no lugá quando si trata di vampiros. Ele carrega sua cruz e
água-benta e estaca. Ele é um homi da cidade mió que esse
verdinho aí du campo.

— Oliver parece um sujeito gentil, apesar de todo seu


tamanho — Vitória arriscou. — Ele tem lhe dado algum problema?

— Probrema? Não... ele não, minha sinhora, probrema é a


última coisa qui ele mi dá. Ele é muitu divagá, isso sim que ele é.
Sempre perguntanu o qui é pra fazê, como pode ajudá. Digo que ele
é um garoto verdinho du campo e nunca veio pra cidade antes, isso
a gente logo vê. — Verbena havia se movimentado, postando-se
atrás de sua patroa, e começou a pentear as longas fileiras de
cachos. — Fico tremenu só di pensá o qui podi acontecê si ele por
acaso vê um vampiro.., é possivi qui ele diga pra criatura si qué um
chá! Hummm. Agora, pra sua primeira entrada essa noite, é bão
que a sinhora esteja no meu mió, patroa. Tô ponu duas estaca no
seus cabelo, pro caso de aparecê um vampiro. Quem sabe se eles
não vão saí di noite.

— Não senti nenhuma sensação que indique a presença


deles, desde que cheguei — Vitória respondeu. — Nenhuma brisa
fria na parte de trás do pescoço, exceto se alguma vem do próprio
mar. Começo a duvidar que a Tutela esteja aqui em Veneza. E você
não está sempre empenhada em que eu apareça em minha melhor
forma? — Vitória concordou, com um sorriso carinhoso.

Ela estava de bom humor esta noite; era a primeira vez, em


muito tempo, que ela se sentia satisfeita por ir a um evento social.
Sua primeira semana em Veneza havia sido arrastada e frustrante.
Foi preciso deixar a casa em ordem, anunciar sua presença a todo e
qualquer expatriado inglês e esperar por convites.

Todas as noites ela se obrigou a ficar em casa, praticando


kalaripayattu na sala de estar, pois não conhecia suficientemente
as ruas para sair em patrulha, à caça de vampiros. Havia, ainda, a
complicação adicional de que metade das ruas eram canais, não
passagens em terra firme.

Mas, finalmente, Vitória tinha sido convidada a participar de


uma reunião em, nada menos, que a casa de Lord Byron. Não
esperava tanto sucesso em tão pouco tempo, mas sim um chá aqui,
um jantar ali, antes de fazer qualquer conexão com Byron.
Aparentemente, porém, sua menção à morte prematura do doutor
Polidori havia lhe garantido a entrada no grupo social de Byron,
algo de que ela precisava mesmo.

— Sei qui ieu faço meu mió, patroa — Verbena disse. — Não
qui seja muito difici fazê que a sinhora fique bonita. Tem essa pele
tão linda, como si fossi uma rosa clarinha, e esses grandes óios
verde escuro. Nossa... e todos esses cabelo! Quem é qui podia achá
algum defeito nesses cabelo?

— Algumas vezes eu já pensei em cortá-los — Vitória


confessou, enquanto a criada cuidava de seu penteado. — Ficam no
caminho, atrapalhando, quando eu luto.

— Num pode! — Verbena exclamou, seus olhos azuis


esbu1hados como centáureas em plena florada. — Eu num ia
permiti isso, patroa. Vô dá um jeito di penteá eles de um jeito que
num dá pra eles caí na sua cara. I depois... si a sinhora cortasse
eles, onde é que ia colocá suas estaca? Num ia tê onde escondê
elas, se cortá muito curto! Eu sei que tem umas muié que tá
fazendo isso, mas eu não vô dexá minha patroa cortá.

Verbena não parava de tagarelar, até terminar de pentear e


vestir Vitória. Isso era encantador para sua patroa, porque permitia
que ela mergulhasse em um sonho tranquilo, só perturbado por um
ou outro ocasional puxão de cabelo ou um grampo colocado de
maneira muito apertada ou uma ordem como “agora fique em pé”
ou “levante os braços, minha sinhora”

Infelizmente, seus pensamentos queriam se concentrar no


último interlúdio com Sebastian, na carruagem, e na forma como
ele olhou para ela, quando disse: Eu estava lhe dando um tempo
para que sofresse seu luto. — Mesmo agora, a lembrança daquele
olhar fez seu estômago se sentir como uma bola de massa, sob
pressão. Não que tivesse, algum dia, feito isso, mas quando era
mais jovem ela viu Landa, o cozinheiro de Grantworth House,
sovando uma massa com tanta energia e entusiasmo, que ela
pensou que era isso exatamente que se passava com seu estômago.
Mas ela nunca iria deixar de se sentir de luto, ao menos não
completamente. A dor iria amainar, ela continuaria vivendo — em
certo sentido, já estava fazendo isso — mas a tristeza nunca
desapareceria de vez. De qualquer forma, sempre seria uma marca.

Se ela fosse diferente, talvez pudesse encontrar alguém para


amar de novo. As viúvas faziam isso; não era algo inusitado. Ela
suspeitava que sua mãe houvesse desenvolvido uma ternura por
Lord Jellington, agora, três anos depois da morte do pai de Vitória.

Mas Vitória não esperava que pudesse fazer o mesmo.

Certamente, a maioria das pessoas que perde um ser amado


acha que nunca mais vai querer se apaixonar de novo. Não desejam
mais correr o risco de passar por essa terrível dor da perda. Mas
podiam amar de novo, quando o sofrimento diminuísse. Seriam
capazes.

Vitória, não.

Bem, poder até podia. Era possível e talvez até mesmo aquele
amor a encontrasse algum dia, porque ela ainda era jovem e
atraente, e se sua resposta a Sebastian fosse uma indicação, ela até
gostou de ser tratada assim por um homem.

Mas ela era uma Venadora. Sua vida era uma colcha de
retalhos de perigo e traição, patrulhas noturnas, caça incessante,
violência e confrontos com o mal. Um grande mal e que a maioria
das pessoas jamais haveria de encarar.

Amar alguém significava colocar esse homem em perigo e


também a ela, porque sua concentração ficaria dividida. As
mentiras, o subterfúgio, o estilo de vida seria retalhado, minando
qualquer chance de felicidade que ela podia imaginar.

Ela não podia se permitir enamorar ou, pior, muito pior, ser
amada.

Suas últimas palavras para Max tinham sido que ele tinha
razão. Estava certa quanto ao fato de que não deveria ter se casado
com Filipe por todas as razões que ela agora sabia muito bem.
Vitória nunca encerraria o luto, porque jamais seria capaz de se
perdoar por ter se casado com ela, de qualquer forma.

Ainda assim, ela sentia falta dos lábios de um homem sobre


os dela, da firmeza de um abraço. O cheiro da masculinidade e a
altura dos ombros, o aumento de sua pulsação quando um homem
atraente olhava para ela como se quisesse devorá-la, enquanto
estivesse falando sobre o tempo ou, como no caso de Sebastian,
sobre uma sociedade secreta de protetores de vampiros.

Ela não precisava casar e nem mesmo amar, para sentir


prazer em um refúgio como esse, longe de seu mundo. Ela era uma
viúva, agora, experiente no amor e mais experiente, ainda, na vida
do que a maioria das mulheres da idade de sua mãe.

Quando estava sozinha, ela podia encontrar companhia em


um homem. Seletivamente, com certeza. Discretamente. Sem o
vínculo emocional que poderia colocar ambos em perigo.

Ela pode ser uma Venadora, uma viúva, um membro da


sociedade. Mas era, também, e sempre seria, uma mulher.

Ser introduzida no ambiente de La Villa Foscarini foi uma


experiência incomum para Vitória. Chegar a uma pequena festa
onde não conhecia ninguém, sem um acompanhante masculino e
completamente sozinha, era algo que ela não poderia fazer no seio
da alta nobreza de Londres, sem levar muitas cabeças a se virarem
para ela e causando incalculáveis sussurros de falta de decoro. Mas
tia Eustácia explicara que a sociedade italiana não era tão rígida
como a da Inglaterra, ensinando que seus costumes sociais eram
muito mais informais do que aqueles a que Vitória estava
acostumada. E a panelinha de expatriados ingleses que se tornou o
pequeno círculo social de Lord Byron era ainda mais indulgente em
relação a normas vigentes.

Mesmo assim, pareceu estranho demais ser anunciada como


senhora Emmaline Withers e ter de encarar um mar de rostos
irreconhecíveis para ela.

Em um esforço para manter em segredo sua identidade de


Venadora, Vitória havia concordado com a sugestão de Wayren de
que usasse um pseudônimo durante seus movimentos na sociedade
italiana. Lilith certamente sabia quem era ela e, embora muitos dos
vampiros que ela poderia encontrar soubessem seu nome, eles não
a conheciam pessoalmente. Então, se Vitória quisesse penetrar na
Tutela, tinha de ter cautela para não ser descoberta.

As consequências, como disse Eustácia, eram óbvias.

— Senhora Withers! Estamos encantados porque a senhora


pôde comparecer à nossa pequena festa. — Um homem cheio de
energia, de cabelos escuros ainda mais ondulados e selvagens do
que os de John Polidori, levantou-se de sua cadeira e se
movimentou em sua direção, disfarçando ao máximo seu andar
coxo.

Então, esse era Lord Byron, poeta e, se todos os rumores


fossem verdadeiros, amante extraordinário.

Certamente, tinha lindos cabelos. E testa alta. Mas era bem


pequeno de estatura.

E, ainda mais certa era sua ligação com a encantadora


mulher ruiva que veio se arrastando atrás dele, para cumprimentar
Vitória.

— Lord Byron, sou muito grata por seu amável convite. Estou
aqui há pouco mais de uma semana e começava a me perguntar se
eu nunca veria outra festa! Como tem sido desagradável, e que
adorável festa o senhor oferece! — Ela fez uma breve reverência,
ofereceu-lhe a mão, e sorriu para a mulher, esperando que Byron
fizesse as apresentações.

— Meu amor, esta é a senhora Emmaline Withers, uma


amiga de John. Aparentemente, ela teve a infelicidade de estar
presente na festa que houve na casa onde ele morreu, há algumas
semanas. Senhora Withers, esta é Teresa, a condessa Guccioli.
Agora! Vamos voltar para nossas leituras! — Com o que só poderia
ser descrito como um floreio, o poeta voltou para o conjunto de
cadeiras onde outras sete ou oito pessoas estavam sentadas.

— Ele detesta ser interrompido, quando está lendo uma de


suas obras — disse Teresa a Vitória, com um sorriso carinhoso. Seu
inglês era perfeito, mas as sílabas eram revestidas de um alegre
sotaque.

— É um prazer conhecê-la, senhora Withers. Soube que veio


visitar meu belo país enquanto se recupera da morte de seu marido.
Lamento muito. Embora haja momentos em que alguém pode
querer livrar-se de seu cônjuge. Entretanto, estou certa de que
achará Veneza um lindo lugar para comemorar o fato de ter ficado
com uma soma considerável e sem o marido. Agora, venha que
havemos de lhe reservar um lugar perto de um de nossos bonitos
jovens.

Afortunadamente, tia Eustácia havia alertado Vitória sobre a


condessa Guccioli ou ela se sentiria profundamente ofendida.
Teresa e Byron estavam apaixonados e moravam juntos havia dois
anos, parte do tempo no Palazzo Guccioli, mesmo quando o marido
da condessa ainda permanecia ali. Isso, conforme tia Eustácia, era
um sinal de uma das grandes diferenças entre as perspectivas do
casamento, entre italianos e ingleses.

Na Itália, uma pessoa se casava por iniciativa de seus pais e


procurava amantes por conta própria. Amantes eram tratados com
o mesmo respeito e fidelidade que a maioria dos ingleses reservava
a seus cônjuges, ao menos aparentemente.

Assim, Teresa Guccioli não era diferente de muitos de seus


conterrâneos, fossem homens ou mulheres, mas tinha um jeito
ousado de se expressar.

Vitória se sentou em um lugar forrado de brocado e ouviu,


junto com os outros, por mais de trinta minutos, quando Byron
terminou a leitura de suas últimas estrofes. Ela não era muito
inclinada a ficar escutando poesia por longos períodos, da mesma
forma que ouvir música ou não fazer nada, mas tratou de
permanecer em seu lugar e manter uma aparência de quem está se
divertindo. Não que os versos fossem complicados ou
desinteressantes; era, sim, porque tinha uma tarefa a completar e
certamente não poderia tentar saber se Byron seria, mesmo,
membro da Tutela enquanto ele estava lendo sobre ocasos e saias
de deusas.
Finalmente, a parte de leitura da festa terminou, e se o resto
do grupo estava deliciado, como ela, não demonstrou. Todos se
levantaram e começaram a se aglomerar em pequenos grupos,
enquanto bebidas e adoráveis antepastos eram servidos.

Vitória conversou rapidamente com Teresa, antes que ela


fosse chamada a ver um desenho amador, por uma de suas amigas.
Viu Lord Byron saindo da sala, com evidentes dificuldades para
caminhar, e se dirigiu àquele acesso.

Quando alguém sai por um lugar, por ali mesmo costuma


retornar.

E ele fez isso, pouco depois, e assim que chegou sua atenção
dirigiu a Vitória.

— Senhora Withers, espero que esteja tendo uma estada


agradável. Um pouco menos convencional do que a corte, você
diria?

— De fato, aqui há mais frivolidade. Minha temporada tem


sido adorável.

— Espero que não se importe se eu lhe perguntar como


estava meu amigo John, quando a senhora o viu pela última vez.
Fiquei desolado ao saber de sua morte horrível.

O brilho nos olhos dele e a maneira como ele gesticulou, com


o copo de chianti, desmentiam seu sentimento, mas Vitória estava
mais que feliz por seguir adiante. Afinal, tinha um papel a
desempenhar. — O doutor Polidori estava saudável e caloroso,
quando ouvi pela última vez. Estávamos em uma festa, na casa
Claythorne, e... bem, você soube do acidente. Não quero falar sobre
isso, porque foi horrível demais. Tivemos uma bela conversa sobre
vampiros. — Ela abaixou a voz ao nível de quase sussurro, ao
proferir a última palavra, inclinando-se, propositalmente, para bem
perto dele, de maneira que ele tivesse uma visão do panorama
abaixo de seu corpete. Ele notou e, encerrando delicadamente os
dedos em volta do pulso dela, deu um passo para trás, seus olhos
apertados descendo em direção a seus seios; ela sabia, por
experiência anterior, que eles eram muito apreciados pelo sexo
oposto. Vitória percebeu que atrás dele havia uma pequena alcova
protegida. Ela permitiu que ele, gentilmente, a conduzisse para trás
das cortinas, enquanto que ela, discretamente, deslocava o lenço
rendado que Verbena havia ajustado em seu pescoço. Qualquer
coisa ajudaria sua missão.

Ela apenas esperava que a condessa Teresa Guccioli não


percebesse. Lidar com vampiros era uma coisa, ter uma condessa
italiana ciumenta voando em sua direção era outra, bem distinta.

— Foi tão fascinante — Vitória continuou, arregalando os


olhos e delicadamente desvencilhando seu pulso. —Vampiros! Eu
acredito — ela suspirou de novo, forçando-o a se aproximar mais
ainda dela, para ouvir, “que o doutor Polidori estava realmente
convencido de que eles realmente existem. Imagine só!

— De fato — Byron replicou. Vitória jamais se sentira tão


satisfeita, como naquele momento, com a moda dos vestidos
decotados. O homem estava quase em cima das taças do corpete
dela e muito absorvido pela quantidade de carne que ela estava
mostrando, desde o momento em que retirara o lenço. Essa era
uma das vantagens de ser uma viúva, em vez de uma criada
inocente.

Ela estava certa de que poderia fazer qualquer pergunta, que


ele responderia. — Deve ter sido um grande desconforto para você,
quando O Vampiro foi publicado e todos pensaram que você o
tivesse escrito.

— Não foi nada. Logo tratei de esclarecer. Embora a ideia


fosse minha, não liguei que John se apoderasse dela. Encarnando
Lord Ruthven, depois de mim! — Ele tropeçou, na direção dela (se
foi ou não proposital, ela não soube) e segurou seus seios. Vitória
segurou e, gentilmente, retirou os dedos dele, mas manteve controle
sobre os gestos dele, dirigindo sua mão à carne fresca de seu
ombro, na parte superior de seu peito. Uma região mais segura,
porque ela queria mantê-lo concentrado sem demonstrar completa
rejeição. Parecia estranho ter a mão de um homem sobre sua pele;
particularmente um homem que ela não conhecia.
Mas ela não pensou nisso. Ninguém veria e, se a ajudasse a
obter a informação que desejava, ela suportaria.

— Penso que você daria um adorável vampiro — ela disse a


ele, rindo de um jeito mais próprio para uma debutante do que para
uma vampira matadora de vampiros. — Tudo escuro e perigoso...
com certeza, você não vai soltar presas e morder meu pescoço, não,
meu senhor?

Ele sorriu lascivamente, uma grossa mecha de cabelos negros


rebeldes se revirando sobre sua testa, misturada às sobrancelhas e
dançando diante de seus olhos. Ele não parecia nem um pouco
perigoso, mas sim meio bobo, com aquela pele clara e lábios
demasiadamente femininos. — E se eu fosse, você iria gritar e sair
correndo... ou você me deixaria morder?

— Deixaria.

Suas pupilas se dilataram, tornando-se negras como a noite


seus dedos se contorceram na pele desnuda da moça.

— Senhora Withers... você está me tentando demais.

— Mas — ela falou, habilmente retirando a mão dele e a


afastando, enquanto balançava a cabeça. — Coisas como vampiros
não existem... não é? O que é uma pena, porque penso que eles são
tremendamente românticos.

— Românticos? — Ele parecia confuso, como se não estivesse


certo de como chegara tão perto de sua presa para ser afastado sem
um golpe sequer ou mesmo uma luta. — Eu adoraria conhecer um
deles. Um vampiro. Diga-me... você já encontrou um? Porque tenho
certeza, depois de falar com Polidori, de que eles realmente existem.
— Byron olhou para ela, agora com uma expressão mais
transparente. —Você ficaria muitíssimo assustada, claro, se
encontrasse um, senhora Withers, estou certo.

— Não, de jeito nenhum. Por que ficaria? Eles apenas querem


sobreviver e não podem evitar o fato de que, para isso, precisam de
sangue fresco. É da natureza deles. — Ela arqueou seus lábios em
um sorriso promissor. — Acho que deveria ser algo... erótico... ter
duas presas se cravando em meu pescoço.
Byron deu um passo atrás e manteve as mãos longe dela.
Parecia que ele esperava que ela ostentasse presas a qualquer
momento. — Para ser honesto com você, minha querida senhora
Withers, eu não ficaria surpreso se eles existissem. Mas eu mesmo,
infelizmente, jamais vi um deles. — Tossiu. — Acredito, entretanto,
que você esteja certa. John Polidori também acreditava neles e
estou quase certo de que os conheceu. Mas temo que não possa
afirmar com toda segurança.

Maldição! Ela pensava que tivesse feito progresso!

— Grata por suas leituras poéticas esta noite, meu senhor —


ela lhe disse, pronta para deixá-lo ir antes que procurasse por ela,
novamente. — Acho que estou com muita sede. Posso pedir licença
para procurar um pouco de chá?

— Obviamente, senhora Withers. Ficarei feliz em acompanhá


-la — A condessa Guccioli não parecia nada satisfeita quando eles
emergiram do espaço acortinado, mas não se jogou em cima deles
como Vitória esperava que ela pudesse fazer, pronta para arrebatar
seu amante das mãos de uma mulher furtiva. Jogou todo seu
charme, beleza e coqueteria na direção de dois cavalheiros que
estavam sentados ali perto e nem sequer piscou ou franziu o nariz
para seu amante. Simplesmente o ignorou.

Vitória a observou, fascinada. Não tinha muita experiência na


arte feminina da sedução e, aparentemente, Teresa Guccioli era
mestra nisso. Pobre Byron. Ele estava muito mal no momento em
que Vitória estava pronta para ir embora... o que aconteceu duas
horas mais tarde.

Ela havia chamado Oliver com a carruagem e já estava saindo


pela porta da mansão, pronta para respirar profundamente o ar da
noite, quando sentiu uma presença às suas costas.

— Está nos deixando tão cedo, signora?

— Conde Alvisi, não está uma noite linda, cheia de estrelas?


E... sim, lamento, mas estou me sentindo muito cansada. Passei
momentos bastante agradáveis, aqui.
Ele era da mesma altura dela e tinha a mesma cor de pele
morena, características dos italianos, semelhante à de Max. Mas
seus olhos brilhavam pouco e seus lábios se curvavam de um jeito
consternado. E ele cheirava, ridícula e atrozmente, a água de
lavanda. Ou ele se banhara nisso ou ficara perto demais de uma
mulher que o fizera.

De qualquer forma, a paciência de Vitória estava por um fio, e


ela se preparava para abandoná-lo rapidamente, caso ele se
tornasse amigável. E era bem o que ele tinha em mente, se a
direção de seu olhar fosse alguma indicação.

— Mas você não conseguiu o que procurava, não é?

Ela olhou atentamente o homem. Ele balançou a cabeça


delicadamente e alisou a parte dianteira de seu vestido. — O que
quer dizer com isso, senhor?

— Tive o prazer de ouvir uma parte de sua conversa com


nosso maravilhoso anfitrião.

— É mesmo?

— Como o fato de você desejar conhecer um vampiro de


verdade. — Ele se aproximou bastante, trazendo lavanda e... seria
limão?... com ele.

— Penso que seria fascinante. Você acha que eles existem, de


fato?

— Sei que existem. Eu os vejo.

Ela arregalou os olhos e deu um gritinho juvenil. — Verdade?


Onde você os viu? Eles são perigosos? Você foi mordido? — ela
baixou o tom de voz.

— Sim. Você gostaria de ver minhas cicatrizes? — Ele


mostrou e, de fato, havia quatro pequenas marcas em seu pescoço.

Bem recentes, na verdade.

— Como? Onde?
— Nós temos um pequeno... grupo. Encontramos os vampiros
e passamos algum tempo com eles; apenas alguns deles, calcule.
Porque nós os compreendemos. Eles são as criaturas mais
incompreendidas que eu já conheci.

— Posso imaginar! Durante anos, as pessoas pensaram neles


como bestas. Mas eles não são, não é? São tão românticos e
perigosos como eu sonhei?

— Sim. E, se quiser, posso conseguir que esteja conosco em


alguma noite dessas.

— Eu ficaria muito grata, conde Alvisi.

Ele introduziu algo duro e liso na mão dela. — Esta será sua
prova de admissão. Vou avisá-la quanto à data e local.

Ela olhou para baixo, já sabendo o que iria ver. O amuleto da


Tutela.

Gratíssima, de fato!
10
Lady Rockley desenvolve tremenda aversão à lavanda

FieI à sua palavra, o conde Alvisi enviou um recado


enigmático para Vitória, quatro noites depois daquele encontro. —
Vou procurar você em uma hora e meia — ela leu em voz alta.
Olhando a mensagem que flutuava sobre a penteadeira, ela olhou
para Verbena. — Parece que, dentro de pouco tempo, vou participar
de uma reunião da Tutela.

— Olhou para o pequeno relógio. — Logo mais, às dez da


noite.

—Vô avisá Oliver pra tá aqui, quando a senhora tivé pronta


— a criada falou, saindo depressa, porta afora. — O homi tá me
deixano nervosa, porque fica procurando alguma coisa pra fazê.
Dipois qui eu ispliquei que eles têm medo de prata, ele ficô todo
agitado e se trancou no quarto, dizendo que ia fazê uma nova arma
pra lutá contra os vampiro.

Ela bufou e sacudiu a cabeça, quando saiu do quarto de


Vitória, depois voltou para acrescentar: — O homi nunca viu um
vampiro, intão num sei como é que ele vai inventá um jeito de matá
um. Quando ele oiá aqueles óio vermelho vai saí correno de volta
pro seu lugá, que é a Cornualha, com as calça moiada.

A porta se fechou atrás dela, e Vitória pegou a mensagem, de


novo. Nos últimos dias, ela ficou pensando na melhor forma de
encarar o convite oferecido pelo conde. Ela chegou a pensar em
segui-lo, para que pudesse descobrir aonde ele ia e, possivelmente,
saber, por si mesma, em que lugar a Tutela se reunia. Ela preferia
chegar lá em seus próprios termos, possivelmente se esgueirando,
em vez de esperar para ser acompanhada.

Se fosse na companhia de alguém, teria de assumir o papel


da viúva senhora Withers e permanecer com Alvisi durante todo
tempo. Caso conseguisse ir sozinha, poderia simplesmente passar
desapercebida.

Mas, no fim, ela decidiu esperar pelo convite e ir com o


conde. Ele certamente conhecia o processo, e se houvesse algo
especial a fazer para garantir a entrada, ele saberia. Uma vez que
ela soubesse a localização do encontro e como entrar, poderia
investigar por si mesma. Afinal de contas, sua meta era encontrar e
assassinar Nedas.

Contra sua própria vontade, ela permitiu que Verbena a


penteasse e vestisse como se ela estivesse indo para um evento
social. A criada protestara quando Vitória inicialmente optou vestir
uma saia larga e prender os cabelos em uma singela trança.

— A senhora tem que se vesti que nem que fosse pra i numa
festa — Verbena insistiu. — Num pode se arrumá como se fosse
caçá vampiros. De mais a mais... o conde deve di querê exibi a
senhora pros vampiros! Tô certa que é mais bonita qui qualqué
outra muié da Tutela!

— Mais perigosa, também — Vitória acrescentou e sucumbiu


às recomendações da empregada. Ela estava certa de que Verbena
insistia em vesti-la e penteá-la daquele jeito mesmo quando não lhe
pedia; o motivo era que sua irmã era criada da filha de uma
duquesa... e elas sempre estavam comparando os vestidos e as jóias
de suas patroas.

Quando Vitória desceu as escadas uma hora depois de


receber a mensagem de Alvisi, com duas estacas escondidas em
seus cabelos e outra presa na liga sob sua saia, mais água-benta
em sua bolsinha e outro frasquinho junto à outra liga, além de um
punhal e um grande crucifixo enfiado profundamente entre seus
seios, onde não seria visto a não ser que ela quisesse, interrompeu
urna discussão acalorada entre Verbena e Oliver, na sala da frente.
Era divertido: a criada mal chegava à altura da clavícula dele,
mas parecia estar controlando a conversa, com ele balançando a
cabeça, silenciosa, mas decididamente, na direção dela. Os cabelos
vermelho-cenoura dela, crespos e grossos, se agitando a cada
movimento dela, os escuros e ruivos dele acompanhando-a em um
ritmo mais lento. Como se usadas para enfatizar algo, as mãos &la
se chocavam, as costas de uma na palma da outra, com um ruído
alto, depois se alterando para mostrar um só indicador.

— O conde já chegou? — Vitória perguntou, candidamente.

— Inda não, minha sinhora — Verbena respondeu, afastando


-s de seu colega, com uma última olhada fulminante. Talvez ela
tivesse fazendo um sermão a ele, insistindo para que usasse um
crucifixo em vez de alho, como o melhor repelente de vampiros. —
Mas esse Oliver aqui, tô certa de que vai dá uma olhada pra
senhora cum prazê.

Só então, o criado italiano que estava fazendo as vezes de


mordomo para a pequena casa que estavam alugando, entrou na
sala e anunciou: — O Conde Alvisi, signora.

Ficou evidente, logo que o conde entrou na salinha, que ele


não estivera próximo demais de alguma mulher que tomava banho
de lavanda, na outra noite, mas sim que ele mesmo fazia isso. E
como se ele estivesse tentando ampliar o cheiro como se fosse uma
espécie de padrão estilístico, sua camisa era de seda cor de
lavanda... da mesma forma que a gravata, atada cuidadosa e
delicadamente em seu pescoço. E a pedra que brilhava no centro
era... sim... uma clara, pálida ametista.

— Você está linda, esta noite, senhora Withers — o conde lhe


disse, com uma admiração sincera brilhante em seus olhos escuros.
— Na verdade você está linda o suficiente para ser mordida! — Ele
piscou e deu uma ruidosa gargalhada, quando se adiantou para
pegar a mão dela.

Vitória se lembrou de que tinha que desempenhar o papel de


uma mulher corajosa e insensível, em vez de uma feroz Venadora
ou de uma perfeita mulher da sociedade, e conseguiu dar uma
gargalhada tão estrepitosa, que sua mãe teria se mortificado. Ela
tinha de se lembrar disso naquela noite: se ela fizesse algo que
levasse o queixo de sua mãe a cair de desaprovação ou seus lábios
a se arquear, como um sinal de aborrecimento, ela estaria agindo
exatamente como deveria, ou seja, como uma mulher interessada
em conhecer vampiros porque os considerava fascinantes e
atraentes.

— Podemos ir? — Vitória perguntou.

— Com certeza, signora. A carruagem espera. — Ele tomou o


braço dela e eles saíram da sala, ombro a ombro, cotovelos unidos.

— Não posso acreditar que vou conhecer um vampiro de


verdade, esta noite — Vitória disse, quando estavam acomodados
na carruagem. Assim que a porta se fechou ela desejou
ardentemente abrir uma janela para permitir que um pouco de
lavanda se dissipasse.

Alvisi sentou-se diante dela, não como Sebastian estaria,


relaxando no canto com um braço estendido ao longo do encosto do
banco, mas sim na beirada do banco, ereto, com as mãos no colo.
Ele parecia que estava pronto a sair correndo a qualquer momento.
— Bem... sim, signora. Mas também talvez não vejamos um deles;
eu mesmo só vi um e uma só vez.

Vitória se recostou, fingindo sufocar desilusão e


aborrecimento. Será que este teria sido apenas um estratagema
para estar sozinho com ela, na carruagem?

Se fosse Sebastian, ela acreditaria nisso, sem nenhuma


dúvida. Mas este homem não lhe gerava ondas de apreensão.
Parecia inofensivo e facilmente controlável. Exceto em relação à
poderosa arma de sua colônia. — Onde estamos indo, se não para
ver um vampiro?

— Vamos assistir à reunião de uma sociedade secreta, a


Tutela, cuja finalidade é proteger e cuidar dos vampiros. Mas eu
não sei se seremos agraciados com a presença dos imortais. —
Aquela cintilação que ela vira nos olhos dele, na residência de
Byron, voltara, acompanhada de um brilho instantâneo em sua
testa arredonda Eles não comparecem a todos os encontros deste
nível.

— Nível? — Vitória olhou ao redor; a carruagem havia parado.


— Chegamos?

— Não, ainda não. Temos de cruzar um canal. Venha,


signora, rápido, ou chegaremos tarde demais e as portas estarão
fechadas. Já passa das dez e meia.

Eles desceram da carruagem e entraram depressa em uma


gôndola que estava à sua espera e que se afundou e inclinou,
enquanto eles tentavam encontrar um assento confortável. Vitória
não reconheceu a parte da cidade em que haviam parado, mas ela
ainda não se familiarizara inteiramente com Veneza. Enquanto o
gondoleiro conduziu facilmente ao longo do canal, com sua longa
vara, ela olhou na direção da terra que estavam deixando para trás.
Algo nas sombras se moveu perto da carruagem e depois foi
embora.

Ela continuou a observar como o contorno cinza de praia —


iluminado apenas por lanternas penduradas em postes, aqui e ali, e
um punhado de estrelas no céu sem lua — fundia-se na escuridão,
que agora os envolvia, no largo canal. Alguém ou algo tinha estado
lá. Seguindo-os?

Enquanto eles se deslocavam pelo canal, longe de qualquer


praia, Vitória podia ouvir a emoção crescente nas respirações de
Alvisi. Elas estavam mais rápidas e superficiais, ligeiramente
ásperas, às vezes com um sutil ruído, no final. A única lanterna
perfurada que pendia, bruxuleante, da parte posterior da gôndola,
oferecia luz suficiente apenas para que ela enxergasse as mãos dele,
agarradas com firmeza em ambos os lados da embarcação e um
brilho intenso em sua testa. Ou ele não apreciava água e barcos, ou
estava se tornando muito excitado por causa da reunião da Tutela.

Eles continuaram por muito tempo se afastando da cidade,


silenciosamente se movimentando sobre a água. Havia outras
gôndolas nas proximidades quando o trajeto começou, mas quanto
mais aumentava a distância da cidade e de sua carruagem, o
número de barcos alheios diminuía até que não houvesse mais
nenhum. Mesmo as luzes das casas, ao longo dos canais, e as
silhuetas quadradas dos edifícios lá na costa se esvaíram na
escuridão, bem como as estruturas irregulares e os terrenos
rochosos, os quais só de vez em quando eram iluminados de
relance, quando a luz da lanterna da gôndola oscilava em sua
direção.

Vitória começou a ficar um pouco apreensiva ao notar que


eles estavam deixando Veneza para trás. Aquilo era muito diferente
de Londres, onde ela ao menos tinha um senso de direção e sabia
onde estava. Lá, sempre era possível alugar um veículo para
conduzi-la até sua casa, mesmo em St. Giles. Ela se deu conta de
que deveria ter prestado mais atenção para onde estavam se
dirigindo enquanto seguiam na carruagem, observando as marcas
ao longo do canal.

Ela não estava assustada, mas deveria ter se preparado


melhor para a ocasião. Fazer com que Oliver os seguisse teria sido
uma decisão prudente. Talvez até mesmo Kritanu.

Mas ela estava tão confiante em sua capacidade de cuidar-se,


com sua vis bulla e outras armas, e tão concentrada em seu
objetivo de conseguir entrar para a Tutela, que pouco se preocupara
em planejar.

Claro que ela poderia estar exagerando, talvez não tivesse que
se preocupar com nada. Mas sua inquietação estava começando a
aumentar na mesma medida que o suor na testa de Alvisi. Ele falou
pouco durante a pequena viagem e Vitória, que tentava encontrar
indicações para lembrar o percurso, não tentou alimentar um
diálogo.

E então, finalmente, depois de navegar por mais de uma hora


ao longo do escuro canal, eles chegaram.

Ao menos foi o que Vitória pensou, quando a gôndola parou


em uma praia escura.

— Venha, venha cá — disse Alvisi, com a voz tensa. Ele saiu


do barco e a puxou para fora, sem nenhum resquício de seu verniz
cavalheiresco, evidente antes, quando estavam na casa dela. Assim
que equilibrou no solo rochoso, Vitória se desvencilhou com firmeza
das mãos dele; não foi uma tarefa difícil, e se ele notou uma força
incomum nela, não fez nenhum comentário. Ele já estava correndo
a longo de um percurso que ela mal podia enxergar. Olhando para
trás, na direção da água, ela viu que a gôndola e sua lanterninha
haviam se afastado da costa e já estava retornando ao canal.

Ela teria feito uma pausa maior, para calcular a distância do


barco e de seus ocupantes, na escuridão, mas Alvisi voltara ao eu
encalço.

— Senhora Withers, venha, temos de nos apressar, pois eles


trancarão as portas! — Foi para isso que ela viera. Vitória se virou e
o seguiu pela trilha escura, entre arbustos e árvores que se
movimentavam e a fustigavam, bem como seu claro casaco.

Finalmente, eles chegaram a uma porta de madeira, de um


edifício de pedra, cercado por um bosque de árvores bem altas.
Parecia que eles haviam se aproximado pela parte traseira; não
havia outras construções à vista, nem nada que sugerisse
existência de civilização. Era um lugar isolado, dentro da escura
floresta. Vitória podia ver os contornos das pedras que constituíam
a parede, graças ao pequeno lampião pendurado em uma curta
haste de ferro. Esse ponto de luz ficava à altura do joelho e estava
meio escondido por um arbusto, de maneira que só era visível de
muito perto. Obviamente, a Tutela não se arriscava a oferecer
possibilidades para que o local de suas reuniões fosse encontrado.

Alvisi puxou o ferro comprido do trinco da porta, e para seu


evidente alívio, suas dobradiças se abriram, sem fazer ruído. Uma
luz vermelha, vinda do interior, coloriu o chão, repleto de pegadas
de areia perto da lanterna de fora, e tingiu também a porta e as
pedras com uma tonalidade quente.

Com uma rápida olhada para o céu, que estava claro,


mostrando a lua, Vitória notou que já era quase meia-noite. Ela
seguiu Alvisi, e quanto estavam lá dentro, um homem alto, vestido
como se estivesse pronto para ir à ópera, fechou a porta atrás dela.

— Boa-noite, senhora, seja bem-vinda — disse ele, em


italiano. Parecia estar à espera de algo, e foi quando Vitória se
lembrou. Abriu a mão para mostrar a ele o amuleto da Tutela e ele
balançou a cabeça, permitindo seu acesso.

Ela seguiu Alvisi, pelo corredor, confirmando que, a julgar


pelo que lhe indicava a parte de trás de seu pescoço, não havia
vampiros nas proximidades.

No final do trajeto, chegaram a um recinto à meia-luz, onde


dezenas de pessoas conversavam, suficientemente amplo para ser
comparado a um salão de baile, mas não preparado para essa
finalidade. Vitória não era capaz de definir qual era, exatamente, o
tipo daquele edifício, mas não parecia com uma vila ou uma casa.
As paredes internas eram da mesma pedra que as exteriores. Não
havia janelas (nada estranho, porém, dado que os vampiros não
eram receptivos à entrada de luz do sol) e, ao que ela podia notar,
só havia mais outra porta. O chão estava coberto de tapetes, e entre
eles ela podia ver traços de poeira e da pedra original.

Havia, entretanto, cadeiras e bancos espalhados por todo o


espaço. E, no extremo oposto ao lugar por onde ela e Alvisi
entraram, existia um pequeno tablado, elevando-se pouco acima do
piso. Era suficientemente grande para abrigar uma longa mesa e
cinco cadeiras. Lembrava um teatro, ou, talvez, uma igreja... apesar
de que, se fosse, seria um lugar estranho para o encontro de
protetores de vampiros.

Curiosa, Vitória se safou de sua escolta e se dirigiu para a


frente da sala, pois estava muito longe para ver o que estava sobre
a mesa, nada além de duas grandes tigelas rasas, uma em cada
extremidade do comprimento, com pequenas chamas.

A luminosidade vermelha que emanava da sala vinha do fogo


aceso em uma lareira, na parede próxima ao palanque, uma fenda
tão grande, que poderia abrigar cerca de oito homens adultos. Velas
e castiçais cintilavam por toda a sala, e ao transitar entre outras
pessoas presentes, Vitória observou que a grande maioria delas
eram homens de todas as idades e que eles estavam bem-vestidos
como aquele que lhe pedira para ver seu amuleto.

Na verdade, ela viu apenas três outras mulheres, e não


pareciam ser do gênero bem-aceito na alta sociedade, a julgar por
seus vestidos ridiculamente decotados e por suas jóias
pretensiosas. Talvez devesse falar com elas. Justamente por tratar-
se de algo que faria com que sua mãe revirasse os olhos, caso
estivesse ali para ver, parecia ser uma iniciativa bastante adequada
para a senhora Withers.

O lugar cheirava a fumaça e suor, misturados ao terrível odor


da lavanda de Alvisi, das águas de rosas, dos perfumes de menta e
das colônias de vetiver que exalavam de outras pessoas. Mas, além
dos doces aromas florais e dos toques de ervas e de almíscar,
Vitória podia sentir o odor de sangue, de trevas e do mal, e de algo
que ela notara apenas uma vez, no Cálice de Prata.

Não era uma coisa que ela pudesse reconhecer, nada que
fosse capaz de nomear ou mesmo de comparar; era fraco, mas
rançoso e repugnante. Fez com que sua barriga quisesse engulhar.
Ela nem sequer se lembrava de tê-lo sentido, até agora, mas a
memória retornou quando o inalou outra vez. A única vez em que o
havia sentido foi quando estava lutando com o demônio.

Será que esse era o cheiro do demônio? Ou seria algo


totalmente distinto?

Ela olhou em volta e notou que todos pareciam estar


escolhendo um lugar para sentar. Alvisi gesticulava para ela, de
uma das fileiras na parte de trás do recinto, e Vitória achou que
seria melhor para ela estar ao lado dele. Não tinha a menor vontade
de ser escolhida até que se inteirasse mais do que ia acontecer ali.
Além disso, sentar nos fundos lhe daria uma visão mais apurada da
totalidade do recinto e, talvez, uma oportunidade de perceber se
havia, de fato, um demônio presente. Até aquele momento, não
havia vampiros.

Tão logo ela se acomodou perto de seu acompanhante, três


homens subiram ao palanque. Ela reconheceu um deles como
hóspede da vila de Byron. O senhor Zinnani.

— Boa-noite — disse ele, fazendo um gesto largo para a sala,


como se pedisse às pessoas que prestassem atenção. — Bem-vindos
à Tutela. Vocês todos estão aqui porque foram convidados por um
de nossos membros. — Vitória olhou Alvisi, que deu de ombros e
balançou a cabeça. —Vamos começar. — Zinnani abriu o que
pareia ser uma caixa preta quadrada, que brilhou ao ser
movimentada. Ele procurou, dentro dela, e lançou o que quer que
tenha retirado de em cada uma das pequenas tigelas com chamas
que estavam diante dele, sobre a mesa. Cada chama fez um ligeiro
puff como uma respiração, e as chamas ficaram azuis, depois
púrpuras e, em seguida, vermelhas de novo. Quase imediatamente,
um suave, mas persistente, perfume alcançou o sensível nariz da
Venadora Vitória.

Ela não gostou. O cheiro fez com que ela desejasse fugir dali,
como se escapasse pelo ar, silenciosa e invisível, como uma teia.

Não gostou mesmo. Era espesso e doce demais, como o mel


ou o melaço, e fez com que as narinas de Vitória se entupissem,
como se um pedaço de pano grosso tivesse sido jogado em cima
dela, sendo apertado e enfiado no interior de seu nariz. Ela olhou ao
redor, ao lado e para as fileiras à frente. Ninguém parecia estar
incomodado com o odor, senão ela. Na verdade, Alvisi parecia
querer farejar a sala inteira, abrindo suas narinas, pela maneira
como ergueu o rosto e fechou os olhos, concentrado em profundas
respirações.

Vitória estava se sentindo confusa e tonta. Alvisi balançava


ao lado dela e quando ela se virou para olhá-lo, notou que os olhos
dele estavam escuros e opacos. Os outros, que estavam nas fileiras
à sua frente, até o limite do palanque, estavam se movimentando,
inquietos, agindo como se também tivessem dificuldade de manter o
equilíbrio.

Ela se deu conta de um murmúrio. Não conseguia entender


as palavras, mas aquilo parecia um canto. Começou com os
homens, no tablado, e foi se ampliando até encher a sala, em tons
profundos e baixos, como se tivessem necessidade de ficar próximos
ao chão, de maneira que seu significado não pudesse ser entendido.
A boca de Alvisi se movimentava, e dela saíam palavras, mas que
ela foi incapaz de reconhecer. A sensação de tontura não a
abandonara; Vitória colocou a mão em seu abdome, deslizando os
dedos até o buraquinho onde vários pontos haviam sido desfeitos,
na costura entre o corpete e a saia. Dessa forma ela podia sentir,
sob a blusa e a roupa de baixo, a vis bulla, o abençoado e sólido
conforto prateado e poderoso. Quando seus dedos a tocaram, ela
fechou os olhos, respirando profundamente e deixando que a
energia fluísse em seu interior.

A confusão mental se reduziu. Não desapareceu


completamente, mas sua pressão relaxou.

O canto parou, e por um momento o único som audível era


do fogo crepitando em seu enorme nicho de pedra.

Então, novamente tomou a palavra Zinnani. Sua voz era


baixa e suave. — Fomos todos chamados, nós que aqui estamos.
Fomos escolhidos, entre os mortais, para proteger aqueles que não
podem andar ao sol, como nós. Para proteger aqueles que não
podem viver livremente, aqueles que foram condenados à escuridão.

—Proteja-os! — Àqueles entre nós que são capazes de se


colocar à prova, será concedida segurança. — Segurança! — Ao
servir os imortais, ficaremos a salvo de danos. Não seremos caçados
ou devastados, como os incrédulos. Não seremos seus alvos,
quando os imortais se erguerem para dominar. — Levantem-se,
imortais! Levantem-se! — Será concedido a nós um prazer jamais
conhecido. — Prazer! — Esta resposta foi como um leve suspiro,
quase um sussurro.

— O compartilhamento e a doação de força vital é o evento


mais erótico e prazeroso que se pode vivenciar. Isso será nosso, à
vontade e sem cessar! Vamos nos sentir como nunca nos sentimos,
antes! Vamos nos sentir e assim viveremos pela primeira vez!
Seremos agraciados com o dom da vida imortal.

— Vida imortal!

— Vida imortal!

— Vida imortal!

As palavras encheram os ouvidos de Vitória, escorregando


para dentro deles — girando, em espiral em sua consciência.
Vida imortal. O prêmio perseguido ao longo de séculos, dos
Alquimistas aos se a lenda merece crédito —, Cavaleiros da Távola
Redonda, que procuravam o Santo Graal.

Seria de estranhar que alguns homens se disporiam até a se


alinhar com o mal, para alcançar a vida eterna?

Vida eterna, essa era a dádiva da Tutela. Vida imortal até que
fossem afixados ou decapitados e... depois... a danação eterna.

Ela estremeceu, pois sabia que era verdade.

Vitória se virou para Alvisi, querendo lhe dizer algo, para


tentar penetrar no nevoeiro que o envolvia, mas mesmo quando ela
puxou seu braço com toda força, ele apenas oscilou na direção dela,
para, em seguida, se endireitar e voltar sua completa atenção para
Zinnani.

E, então, ela sentiu. Espirais frias em volta de seu pescoço,


queimando a pele de tão geladas. Com os dedos ainda esfregando a
vis bulla, Vitória olhou ao redor de toda a sala, sem virar a cabeça,
à procura de recém-chegados. Eles nem precisavam entrar pela
porta próxima ao tablado, nem mesmo pela que ela e Alvisi
atravessaram ao entrar no recinto. Ela nem sequer conseguira ver
aquele acesso, se não girasse o corpo, e não se atreveu a fazer isso,
com receio de chamar atenção. A sensação de frio tornou-se
intensa. Deve haver cinco ou seis vampiros aqui.

Foi quando eles passaram por ela, esgueirando-se entre as


fileiras desalinhadas de cadeiras, um por um, seis deles,
caminhando em direção ao palanque. Vitória sentiu o frio fluir por
todo o seu corpo. Ela jamais estivera tão perto de um vampiro com
o qual não estava lutando, que não estivesse em atitude de ataque.

Manipulando seu amuleto vis, ela agradeceu a Deus o fato de


que os vampiros não poderem sentir a presença de um Venador.

Cinco dos seis vampiros não haviam se alimentado. Ela viu


que, no momento em que pisaram no tablado, eles se voltaram para
a sala. Seus olhos, vermelhos de puro sangue, revelavam a urgência
de sua fome, o que os levaria a encontrar alimento a qualquer
custo. O sexto vampiro, cujos olhos também estavam vermelhos,
virou-se para falar com Zinnani.

Zinnani, que ostentava a mesma expressão no rosto que se


via em Alvisi, sem pestanejar, abriu espaço, a seu lado, para os
vampiros convidados. Mesmo estando lá atrás, Vitória conseguia vê-
lo vibrar de emoção e prazer, devido à proximidade com as criaturas
que ele, obviamente, adorava. Seus olhos brilhavam com o que
deveriam ter sido lágrimas, e sua boca estava estendida em um
amplo e úmido sorriso, uma expressão que fazia com que parecesse
alguém que estivesse prestes a compartilhar algum doce delicioso, a
ponto de ser lascivo. O sexto vampiro se virou e falou para a plateia.
— Viemos para receber seu comprometimento e sua promessa para
os imortais. Quem, no Primeiro Teste, se apresentará para receber
esta honra antes dos demais?

Houve um momento de hesitação e, em seguida, um homem


se dispôs. — Eu gostaria.

— Aproxime-se.

Pouco mais do que um jovem adulto, ele se movimentou entre


as cadeiras, até que chegou ao palanque. O líder dos vampiros,
aquele que Vitória pensara ser o sexto, puxou o rapaz para o
tablado sem nenhum esforço.

Ela podia ver uma veia pulsando, distendida, na testa do


homem e a maneira como seu pomo de adão se sacudiu e saltou.
Ele olhou para a plateia e o sexto abriu a boca, mostrando suas
presas letais, ao mesmo tempo em que posicionava adequadamente
o voluntário.

O vampiro se inclinou, e como Vitória pôde ver, fincou os


dentes devagar no pescoço exposto. O rapaz se movimentou, os
ombros para trás, mas não lutou. Seus olhos se fecharam, sua boca
se abriu; ele teria caído no chão, caso o sexto vampiro não o
mantivesse seguro. Ele gemeu, se contorcendo, os dedos agitados
como se procurassem pegar alguma coisa, seu peito subindo e
descendo, rapidamente, como se ele estivesse correndo. Parecia
estar saudando a sensação.
Atrás dele, os outros cinco vampiros, os que não haviam se
alimentado e que estavam suscetíveis ao cheiro de sangue,
permaneciam quietos e observando, avidamente. Seus narizes se
torciam, como se o cheiro de sangue os chamasse. Vitória podia
sentir sua fome, quase adivinhava o odor de sua obsessão e
esperava, com ansiedade, para ver quando eles sucumbiriam à
tentação e necessidade.

Mas, embora os olhos deles queimassem como as brasas


quentes do inferno, eles não se moveram e o sexto nada fez para
aliviar sua agonia. Em vez disso, depois de ter se alimentado do
jovem por alguns instantes, ele se virou para encará-lo, limpando
um pequeno filete de sangue de seus lábios.

— Você agora entrou no Segundo Teste. Quando concluir o


que for exigido de você nas duas próximas provas, e tiver seu
serviço aprovado, será conduzido ao Centro.

O homem, tremendo, mas resplandecendo em uma espécie de


realização, correu de volta para seu assento e recebeu os parabéns
dos que estavam sentados a seu lado.

— Quem será o próximo?

Outro homem ficou em pé e avançou, e o mesmo processo


aconteceu. O sexto se alimentou dele, como fizera com o anterior,
ignorando a crescente degradação e impaciência dos outros cinco
vampiros. Dessa vez, quando o homem estava sendo sugado,
Vitória, que agora sabia o que esperar, sentiu que estava ficando
extasiada com o homem. Seus gritos não eram de agonia, mas de
êxtase. Ele fechou os olhos de prazer e não de dor. Suas mãos
seguraram o vampiro que estava sugando seu pescoço e
acariciaram os cachos dos cabelos dele, na altura dos ombros.

Quando ele gemeu, as veias dela palpitavam, em burburinho.

Ela sentiu calafrios e ondas de prazer, seu corpo todo


despertou.

O que deveria ter sido grotesco e assustador, tornou-se


tentador. Ela percebeu, então, que aquele doce e enjoativo aroma
tinha se tornado mais forte, novamente, e notou que Zinnani se
movimentou, atrás do palco. Procurando, sob seu vestido, alcançou
a sua vis bulia e fechou os olhos.

Aquilo continuou por algum tempo; para Vitória parecia que


horas haviam se passado desde que ela chegara com Alvisi; o sexto
se alimentou por um breve momento de cada um dos homens que
se apresentaram como voluntários. Nenhuma das três mulheres
que Vitória tinha visto pediu para realizar seu Primeiro Teste, e ela
começou a se perguntar se só os homens tinham a chance de
chegar ao Centro. Ela tinha de descobrir, porque aquele, o Centro,
era o lugar onde Nedas deveria estar.

Para sua surpresa, Alvisi não se apresentou como voluntário,


para ir lá na frente, e conseguiu se lembrar, mesmo ainda confusa
(porque segurava sua vis bulla) que ele dissera algo sobre um “nível’
Talvez os testes fossem os tais níveis a que ele se referira. Isso a
levou a perguntar-se a que nível, ou teste, ele havia chegado. Ele
havia lhe mostrado suas marcas de dentadas, então deveria ter
ultrapassado ao menos o Primeiro Teste.

Quando todos os voluntários do primeiro teste já haviam


caminhado até a frente, o sexto colocou as mãos nos quadris. Ele se
esquecera de limpar os vestígios de sangue de sua última
alimentação, e um filete descia por seu queixo. Seus lábios estavam
inchados, úmidos e vermelhos, e seus olhos acompanhavam o
mesmo tom de sangue. — Agora, terminamos o Primeiro Teste.
Trouxemos dezesseis novos membros da Tutela, dezesseis novos
homens que devem ajudar a proteger e a servir os imortais!

Um grito irrompeu no recinto, seguido por aquele mesmo


canto que ela ouvira no início da reunião. Como antes, ele começou
bem baixinho e profundo, ondulando por toda a sala, contagiando-a
com seu ritmo. Ela ainda não conseguia entender as palavras, mas
desta vez o volume aumentou, atingiu um ponto máximo e foi tão
emocionante, que provocou arrepios em suas costas. Era
incontrolável, elevado, cada inspiração e expiração, de sílabas e
respirações, roncando dentro e ao redor dela, combinados com
outro aumento do cheiro doce e hipnótico no ar.
Os homens ali presentes gritaram, agitando os punhos
fechados. Por toda parte, ela viu olhos brilharem com fanatismo e
fervor, O canto continuou, funcionando como um acompanhamento
suave para as próximas palavras do sexto: — O Segundo Teste!
Quem vai começar o Segundo?

O canto se intensificou, o cheiro se tornou mais adocicado, o


fervor cresceu. Alguém ficou em pé, um homem lá da frente, mas
não aquele que servira de alimento naquela noite. — Eu vou —
gritou alegremente.

E então, em vez de avançar como Vitória esperava, ele se


inclinou e agarrou o braço da mulher que estava sentada a seu
lado.

Apertando-a de tal forma que a subjugou — mesmo porque


ela agora tentava se safar, obviamente apreensiva quanto ao que
poderia acontecer —, o homem a empurrou para frente.

Ela tropeçou e teria caído, mas o homem agarrou seu braço,


de novo, e a conduziu, à sua frente, até o tablado. — Eu ofereço
meu compromisso e minha promessa para os imortais — disse o
homem, gritando para ser ouvido acima do volume do canto. E
empurrou duramente a garota. O sexto desceu do palanque e
facilmente a agarrou, antes que caísse, carregando-a para a
plataforma. Seu vestido branco perolado foi também arrastado,
espalhando-se pela beirada do degrau, quando ela tropeçou outra
vez.

— Seu compromisso foi aceito! — gritou o sexto, abafando o


frenesi que havia na sala, segurando os pulsos da mulher atrás das
costas, sem nenhum esforço. Ele, então, a entregou a dois dos
vampiros não alimentados. Eles caíram em cima dela, um de cada
lado, enfiando suas presas em sua carne branca. Um, no lado de
seu pescoço; outro, na junção de seu pescoço com o ombro. A
mulher gritou, esperneou, chutou; mas um terceiro vampiro chegou
por trás dela e puxou seus braços, segurando-a firme, enquanto
seus companheiros a sugavam.

Vitória acompanhou tudo com tremendo horror, a boca seca e


o coração disparado. Aquilo era muito diferente das cenas
anteriores. Uma vítima involuntária à mercê de dois vampiros, que
devastaram seu pescoço e seus ombros, enlouquecidos pela
premência da fome, pelo cheiro de sangue e pela agonia de ter visto
outros dezesseis serem sugados.

Mas o que ela poderia fazer? Uma mulher contra uma sala
cheia de homens, contra seis vampiros. Sua mente ainda estava
confusa, os membros não queriam se mover. No momento em que
fosse descoberta como Venadora, ela seria morta antes que pudesse
iniciar a próxima respiração.

Olhou de novo para o tablado e viu o corpete da mulher ser


arrancado e um seio branco, com filetes de sangue, saltando e
balançando, enquanto a mulher se contorcia e lutava. Aqueles
vampiros não mordiam delicadamente, pois estavam famintos,
então arrancavam, rasgavam, destruíam. Os gemidos da mulher
foram sufocados, seus gritos aos poucos perderam a força. O cheiro
de sangue se espalhava pelo ar, ao mesmo tempo em que o canto
continuava.

E então Vitória percebeu que outra mulher estava no outro


lado do palco. Mais dois vampiros a compartilhavam, mas ela não
lutou com a mesma veemência que a outra. Sua carne foi rasgada e
o sangue fluiu de seu pescoço e peito, e ela chorou, e de repente
Vitória sentiu um empurrão, um tremendo solavanco em seu
próprio braço.

Ela se esquivou de Alvisi, cuja expressão facial se tornara


determinada e fanática, libertando-se de suas garras com um giro,
mas bateu em outro homem, que a empurrou para frente. Vitória
conseguiu evitar que a controlasse, livrando-se de seus punhos,
mas teve de enfrentar outro. Para qualquer lado que se voltasse,
outro sujeito se levantava e a bloqueava, empurrando-a na direção
do palco.

O canto continuava, enquanto Vitória estava girando, na


tentativa de abrir caminho entre os homens, mas eram muitos. Ela
foi empurrada, atirada para adiante e arrastada. Levou rasteiras,
chutou e lutou, sua cabeça mergulhou, o odor adocicado invadindo
seu nariz, de novo. Ela não podia tocar sua vis bulla, não conseguia
se manter ereta nem ver onde estava. Não podia respirar.

De repente, mãos, muitas mãos, a agarraram; numerosas


demais para que pudesse reagir. Ela sentiu que a levantaram e o
crepitar do fogo que estava à sua esquerda ficou diante dela, depois
mudou de lugar, enquanto ela se defendia com chutes, mordidas e
cotoveladas. Depois ela notou que a lançaram no ar, até que ela
caiu, com os quadris e os ombros sobre algo duro, seu rosto se
esmagando contra o chão. O cheiro de sangue fresco invadiu seu
nariz.

A onda de cantoria continuava; rostos de olhos brilhantes


estavam diante de sua visão apenas um instante antes que fosse
arrastada pelos pés. Vitória teve um minuto para tatear, em busca
de sua vis, antes que ela enfrentasse os vampiros que vieram a seu
encontro. Ela chutou e deu socos e se esquivou, teve a satisfação de
atingir um deles no rosto e estava tentando agarrar uma estaca das
que estavam escondidas em seus cabelos quando seus braços
foram agarrados e puxados para baixo. Vagamente consciente de
que havia sido pega por dois vampiros, um em cada braço, ela se
abaixou e tentou girar, para se livrar.

Eles a apertavam muito forte, de maneira que ela não se


safou. Não conseguia alcançar suas estacas, sua água-benta, seu
crucifixo... havia mãos em todo o seu corpo, puxando seu vestido,
suas braços, suas pernas, seus seios. Ela sentiu a cabeça sendo
puxada para um lado, pelos cabelos; penteado desabou e seu
pescoço ficou nu, aberto para a sala com aquele cheiro doce. O
denso e reduzido odor do sangue no hálito do vampiro mais
próximo penetrou em suas narinas, apagando até mesmo o cheiro
do incenso.

Quando os dentes dele se afundaram em seu pescoço foi


quase um alívio.
11
Duas portas fortuitas

Dentes afundaram uma, duas, três vezes. Vitória sentiu o


caldo quente de sangue escorrer ao longo de seu pescoço,
escorrendo, do côncavo nas clavículas, para a fenda entre seus
seios, e a calma e suave sensação de alívio.., a nebulosa
tranquilidade que a tentava a capitular. Ela não podia deixar de
lutar; seu corpo se movimentava e inclinava enquanto eles a
sugavam e mordiscavam. Ela sentiu algo pesado penetrar e deslizar
sob o corpete e, depois, continuar em queda livre, com uma suave
pressão puxando a parte de trás do seu pescoço.

Houve gritos de surpresa e medo, as mãos que a agarravam


desapareceram e ela se sentiu caindo, até despencar no chão, de
novo, O crucifixo bateu contra seu peito e, automaticamente,
Vitória estendeu a mão para alcançá-lo, os ouvidos captando gritos
e choro quando ela o levantou, como um pequeno escudo, enquanto
a palma de sua outra mão batia no tablado de madeira.

Embora seu súbito aparecimento os surpreendesse, o


crucifixo não os manteria distantes por muito tempo; não impediria
um mortal de arrancá-lo de suas mãos e entregá-la de volta para os
vampiros famintos.

Os dedos de Vitória arranhavam o chão, tentando encontrar


algo em que pudesse agarrar-se para se levantar, até que sentiram
algo além de madeira polida. Metal. Depositado no chão.
Sua mente ainda estava confusa, mas desde que os vampiros
tinham parado de sugá-la, Vitória readquiria algum controle, e uma
parte de sua força e clareza estava voltando. Ela teve a presença de
espírito para fechar os dedos ao redor do objeto de metal e, mesmo
atrapalhada, conseguiu reconhecê-lo como dobradiças. No piso.
Onde havia dobradiças, haveria, com a ajuda de Deus, uma porta.

Mãos a agarravam, agora, tirando o crucifixo de seus dedos,


para que pudessem arrancá-lo de seu pescoço e devolver a moça
aos vampiros. Vitória se contorceu, enfrentando com vantagem a
reduzida força de um mortal — Zinnani —, que havia substituído os
imortais e se inclinava sobre ela.

Ela parou de lutar contra as mãos e continuou se


contorcendo até que seu rosto tocou o chão, livrando sua mente do
que estava acima e atrás dela, enquanto se concentrava em tentar
encontrar uma maçaneta de porta. Onde a porta abria? Ela sentiu
que alguém — ou algo — puxava a corrente que estava em seu
pescoço e ela deu uma série de chutes, sentindo que seu pé tocou
em uma coisa macia e úmida e teve suficiente presença de espírito
para esperar que fossem as partes íntimas de um homem.

As de Zinnani, caso tivesse sorte.

Ela estava na porta; agora podia ver, exatamente porque as


sombras em cima e atrás dela se distanciaram, sim, via o sutil
recorte da porta no chão e se deu conta de que seu peso a impedia
de abri-la. Se fosse antiga e emperrada ou estivesse trancada, ou,
de fato não fosse mesmo uma porta, ela não teria outra chance.
Seus dedos encontraram o que estava procurando, na cintura, e ela
prontamente controlou a musculatura, enrijecida.

Sentiu a corrente do crucifixo ser rompida bruscamente,


deixando marcas em sua garganta, no derradeiro instante antes
que fosse atirado para longe e o rugido de prazer se abatesse sobre
ela, com os vampiros retornando para a matança.

Vitória estava pronta para eles e rolou para fora da porta,


batendo nos pés dos vampiros, enquanto espalhava o frasco de
água-benta salgada neles. Eles gritaram e se afastaram e ela puxou
a alça que havia no chão.
Continuou emperrada por um instante, depois, rangendo, se
abriu perto de onde ela estava agachada e ela aproveitou para se
esgueirar pela abertura.

Sentiu o vestido enroscar na borda áspera da abertura da


porta; isso não a impediu de continuar e cair, em seguida. O
retângulo de luz acima desapareceu quando a porta se fechou atrás
dela e ela bateu no chão.

Imediatamente, a porta de cima se abriu, espalhando uma


luz baça no espaço onde ela aterrara. Dando um impulso com os
pés, ela deu de encontro com uma parede áspera justo no momento
em que um dos vampiros passou pela abertura e pousou ao lado
dela.

Os olhos dele brilhavam na penumbra, e ele se lançou para


pegá-la. Vitória estava pronta. Segurando a estaca com firmeza, ela
a cravou no coração dele, com imensa satisfação.

Antes que as cinzas da criatura chegassem ao solo, ela já se


infiltrava na escuridão, na esperança de que fosse uma passagem
que levasse a algum lugar. Atrás dela, se ouvia o som dos pés
batendo no chão; mas ela não parou para verificar se era um
vampiro de olhos vermelhos ou se, desta vez, se tratasse de um
mortal corajoso vindo no seu encalço.

Vitória encontrou um muro, e movimentando-se da maneira


mais silenciosa que podia, seguiu ao longo dele, rezando para que
não fosse dar em um beco sem saída. Ao menos aqui, ela contava
com a vantagem do espaço limitado, como acontecera no caso da
luta com os vampiros em Claythorne. Se todos eles viessem atrás
dela, teria uma chance maior de enfrentá-los um a um, em vez de
ser atacada por todos, ao mesmo tempo.

Quem vinha atrás estava ganhando, pois uma rápida olhada


confirmou os olhos vermelhos de um vampiro. A visão noturna lhe
deu uma vantagem decisiva quando ele atravessou o túnel escuro
como breu. Vitória readquiriu seu ritmo, mantendo-se na
vanguarda. Se ela pudesse fazer uma pausa, teria condições de
pegar o outro frasco de água-benta, que estava em sua liga, mas se
realmente escapasse precisaria do líquido para passar nos
ferimentos causados pelas mordidas.

Eles latejavam e sangravam; Vitória sentia o fluido


escorrendo para baixo de seu pescoço e dos braços. Sua pele estava
fria, não havia mais aquela sensação aveludada que ela
experimentara quando os vampiros estavam se alimentando.

Ela colocou uma das mãos à sua frente, para se orientar um


pouco, e correu o mais rápido que pôde, mas estava cega e o
vampiro, não. Chegou perto o suficiente para pegar em sua roupa,
mas ela o empurrou e desviou para o lado, dando uma balançada
para trás em seguida, tentando desequilibrá-lo.

Havia outros sons de passos atrás deles; no mínimo, outro


estava se aproximando. Ela não podia continuar fugindo daqueles
que estavam em seus calcanhares; mais cedo ou mais tarde, ela se
defrontaria com uma parede ou uma porta ou algo que desse um
fim no trajeto, e ele veria essa barreira muito antes que Vitória a
sentisse. Ficar longe do incenso hipnótico na sala de reuniões da
Tutela ajudara a clarear um pouco sua mente, e ela decidiu que
tinha de fazer algo drástico. Notou, também, que havia uma tênue
linha de luz a uma boa distância dela. De onde vinha a luz, haveria
uma porta e, possivelmente, sol. Seria muito tarde? Ela
permaneceu ali por horas e horas... mas o suficiente para a aurora?

Ela reuniu seu alento para um derradeiro rompante de


velocidade, esquivou-se para um lado e mergulhou de cabeça no
chão. O vampiro não se movimentou a tempo e tropeçou,
despencando no solo. Vitória tomou impulso e saltou na direção
dele, procurou por sua nuca e cravou a estaca no centro de suas
costas. Ele se desintegrou.

Mas um terceiro vampiro estava lá; aproximou-se dela,


agarrando-a pelos cabelos para fazer com que se levantasse. Vitória
não conseguiu segurar um suave grito, diante da dor inesperada.
Os olhos vermelhos dele ardiam furiosamente, quando ele apertou a
garganta dela com os dedos; as mãos deslizando no sangue
iluminaram uma pequena área com o brilho do mal, de maneira
que ela pôde ver parte do rosto dele. O suficiente para reconhecê-lo.
Era o sexto. Não um dos famintos, depravados vampiros, mas seu
líder.

— Quem é você? — ele rosnou, sacudindo-a ligeiramente.

Ela teria levantado sua estaca, mas ele agarrou sua mão no
ar e a empurrou contra a parede. Estava fria e ela sentiu grãos de
poeira e a superfície da pedra sobre seus ombros nus.

— Quem é você, que matou dois dos meus? — Ele chegou


mais perto e ela sentiu o cheiro do sangue em sua respiração,
sangue velho, e o fedor dos condenados.

Como sua outra mão estava livre, Vitória tentou


escarafunchar sob as saias, para alcançar o frasco de água-benta,
mas ele foi mais rápido e segurou seu pulso, também. Prendendo
ambas as mãos dela, pressionadas contra a parede de pedra úmida,
ele se aproximou. Seu aperto era feroz e ela deixou cair a estaca. —
Uma Venadora, obviamente. Eu nunca provei uma Venadora. —
Seus olhos vermelhos se aproximaram mais e ela esperou até que
ele estivesse prestes a pressionar os lábios em sua pele. Em
seguida, usando a força dele ao segurá-la, para manter o equilíbrio,
ela levantou suas duas pernas e lançou os pés nas panturrilhas
dele.

Isso o surpreendeu tanto, que ela foi capaz de se libertar e


procurar pela última estaca escondida em seus cabelos, mas ela
caíra quando ele a erguera. Vitória se lançou contra o vampiro,
deixando-o desequilibrado e começou a correr em direção à luz
fraca.

Ele estava atrás dela, não longe, mas o suficiente para que
ela mantivesse a liderança. Tentou vasculhar sob sua saia para
pegar a última estaca, mas demorou demais e ela não conseguia
encontrar a arma enquanto estava correndo.

Por favor, uma porta! Por favor!

Agora ela já estava bem perto; já era uma fresta de luz. Ela
bateu contra a parede, que tinha de ser uma porta, tinha de ser, e o
sentiu chegar, atrás dela. Escarafunchando ao redor com os dedos,
novamente ela sentiu uma trava, rezando por luz do sol. Ela não
tinha ideia de quanto tempo havia se passado desde que viera para
a reunião, mas com certeza horas e horas .... Luz do sol, por favor.

Ela introduziu os dedos em uma abertura, quando ele surgiu


por trás dela. Agarrou-a pelo ombro e lançou-a no chão, certamente
esperando mantê-la ali o mais que pudesse. Mas, na verdade, ele
deu uma vantagem a Vitória. Ela se virou e chutou a barriga dele,
desabando-o, enquanto ela rolou no chão e cravou as unhas na
parte inferior da porta. Puxa, puxa, puxa... E ela abriu. Meu Deus,
abriu! E um suave feixe de luz inundou o túnel.

O vampiro gritou e se afastou; Vitória o seguiu, tirando a


última estaca que estava sob sua saia. Ela enfiou a arma nas costas
dele, direto em seu coração, e então se virou para tropeçar em uma
abençoada, abençoada madrugada em que o sol apenas espreitava
entre as árvores, no horizonte. Ela bateu a porta às suas costas e,
cambaleando, deu três ou quatro passos para se afastar do edifício.
Ela correu com os olhos ardendo diante do repentino brilho, cega de
novo, se arranhando nas árvores e arbustos, até que deu um
encontrão em alguém. Duas criaturas. — Minha sinhora? —
Senhora Rockley?

Vitória se recompôs, levantando-se da grama e, ainda


piscando para livrar-se de lágrimas provocadas pelo sol, disse:

— Verbena? Oliver? Que diabos...

— Meu Deus, ela está sangrando! — A voz horrorizada de


Oliver a invadiu e ela, finalmente, foi capaz de focalizá-lo. — Por
todo lado.

A voz dele falhou, transformando-se em um silêncio


horrorizado.

— Nós temos um barco, minha sinhora, venha, venha. —


Verbena a estava puxando e embora Vitória pudesse escutar o
medo na voz dela, também notou sua característica autoridade.

Permitiu que sua criada a levasse de volta pelo mesmo canal


por onde viajara, horas atrás, com Álvisi, havia cerca de meio dia.
A travessia levou uma hora mais ou menos, durante a qual
Vitória sentiu a impressão esmagadora da luz do sol. Mais tarde,
ela lembrou de alguns momentos: a agonia quando Verbena
encharcou profusamente suas feridas com água-benta salgada. A
súbita inclinação de sua gôndola, quando a vara de Oliver bateu em
algo. Os trechos de conversas murmuradas entre seus dois
companheiros.

— Ela parece tão branca.

— Na certa tá memo! Foi mordida cinco, seis vêiz, foi issu!

— E depois o barulho da água seguida pela ardência dolorosa


do sal. — Nóis podemo ir menos rápido?

— Não estou correndo. Você está vendo algum remo? Está


vendo um? Não, é uma vara e não é como estar remando em um
lago lá na Cornualha.

— Oia pra onde a gente tá...

E então houve uma grande guinada, uma praga abafada e os


solavancos resultantes da retomada de curso da embarcação.

Então, mais tarde... — Se você não fosse essa cabritinha


teimosa quanto à sua ida, fazendo com que eu me atrasasse, nós
não tínhamos demorado tanto para chegar lá. — Ocê num ia sem
ieu. — Olha só que grande ajuda você ofereceu, gritando e
cacarejando como uma galinha lá no canal. — Seguiu-se uma
bufada cheia de irritação e um sacolejo do barco como se alguém
tivesse saltado e ela cruzou seus braços no peito. — Océ tava ino na
direção errada.

— Então não seríamos seguidos.

— Nóis é que tava seguino.

—Você não pode ser muito cauteloso em algumas questões.

Depois, outro grande solavanco do barco. Ela devia ter-se


virado para encará-lo. — O que é que você sabe sobre lutar com
vampiros?
— Mais do que ocê... pelo que vejo é bem pôco.

Provavelmente, foi bom que Vitória estivesse alheia à


conversa naquele momento e que não tenha ouvido a resposta de
Verbena. Ela não estava consciente de nada mais senão sacolejos e,
então, um súbito solavanco lhe indicou que eles haviam chegado ao
embarcadouro.

Ela podia andar, disse a Verbena, e começou a demonstrar


isso. A água-benta salgada já começara a fazer seu trabalho e,
embora estivesse fraca, dolorida e exausta, ela sabia que se sentiria
melhor no dia seguinte. Venadores se curam rápida e facilmente,
mesmo de mordidas de vampiros. Ao chegarem à vila, no entanto,
Verbena insistiu que Vitória se recolhesse ao quarto, para ser
banhada e trocada, em vez de mandar uma mensagem à tia
Eustácia.

— Oliver vai levar um recado pra ela, enquanto a gente faz a


limpeza.

Vitória não queria admitir, mas estava abalada pela


experiência, e embora soubesse que, do ponto de vista físico, estaria
perfeitamente bem em um dia ou mais, a lembrança dos vampiros
se lançando sobre ela, junto com a sensação nebulosa e o incenso e
o canto constante fazia seus dedos tremerem e seu estômago se
contorcer, como se desse um terrível nó.

Ela dormiu, depois dos remédios de Verbena, e acordou horas


depois, a julgar pela posição do sol fora de sua janela. Vitória saiu
debaixo das cobertas, para dar uma olhada nos estragos.

Contou oito marcas de mordidas e outras seis, que mais


pareciam rasgos, pois os cortes tinham bordas irregulares, na pele
de seu pescoço e dos ombros. O sangue fora lavado, mas os
ferimentos já ostentavam aquela aparência escura, de hematoma,
sob as marcas. Vitória tocou uma das mordidas e percebeu o
quanto se aproximara da morte.

Ficou imaginando o que teria acontecido com as outras


mulheres. Teriam sido trucidadas ou libertadas, depois do trauma?
Não poderia salvá-las; mal foi capaz de safar-se. Mas era
muito doloroso para ela saber que podiam ter tido uma morte
terrível e dolorosa. Vitória era uma Venadora. Sua tarefa era salvar
vidas, ao impedir que vampiros e demônios as pusessem em risco.
Ela falhara, na noite passada.

Vira acontecer e fora impotente para evitar aquilo.

Chegara tarde demais para salvar Polidori, mas ao menos


tentara.

Nem sequer tentara salvar as mulheres.

Afastando-se do espelho, Vitória lavou o rosto com um pouco


de água, usando suas mãos úmidas para ajeitar alguns cachos de
cabelo que haviam escapado da trança, enquanto estava dormindo.
Na base da escada, ela encontrou o mordomo italiano, um membro
de confiança da criadagem de tia Eustácia, e que fez uma pequena
reverência e lhe disse: — Sua tia e dois cavalheiros estão na sala de
visitas, signora.

Dois cavalheiros?

Vitória correu até a sala de visitas e abriu a porta.

Não era Max. — O que você está fazendo aqui? — Ela parou
bem perto da porta.

— Maldição, Vitória! — Sebastian ficou em pé, começou a


caminhar na direção dela e então parou no meio do cômodo.

— Sua criada disse que você tinha sido ferida, mas isso é
muito pior do que ela deu a entender.

— O que ele está fazendo aqui? — Vitória perguntou à tia,


ignorando Sebastian, para se sentar ao lado dela, em um sofá. É
claro que a aparência dela estava horrível. Fora espancada por três
vampiros. Mas ele não precisava parecer tão malditamente chocado.
Ou manifestar tamanha repulsa. E não é porque ele estava assim
bonito e bem-arrumado, como sempre, com seus cachos de cabelo
dourados artisticamente despenteados e a gravata perfeitamente
dobrada...
— Parece que você passou por um grande susto — disse tia
Eustácia, observando as mordidas, as quais chegou mesmo a
cutucar com o dedo. — Estas estão bastante desagradáveis, e
mesmo para uma Venadora esses tipos de ferimentos podem ter
consequências, minha querida. Sua empregada disse que os tratou
com água-benta salgada; eu tenho algo mais, aqui e que vai ajudar
a fazer com que os hematomas desapareçam. — Ela começou a
remexer na bolsinha que retirou de seu pulso.

— Estamos muito felizes que você não tenha sofrido


ferimentos mais graves — Kritanu disse com sua voz suave. Ele se
ergueu da cadeira onde estava sentado, para dar uns toques na
mão de Vitória, terminando o gesto com um afetuoso cumprimento.
— E, para responder à sua pergunta, monsieur Vioget chegou à vila
de sua tia na noite passada.

Vitória virou-se para olhar Sebastian, que não tirara os olhos


dela desde que a moça entrara na sala, e levantou a sobrancelha
evidenciando uma dúvida.

— Eu não sabia onde você ia ficar, aqui em Veneza — ele


explicou, voltando para o lugar onde estava sentado, em uma clara
tentativa de parecer calmo. Cruzou os braços, com seu bem cortado
casaco bem ajustado aos ombros largos. — Mas eu sabia onde
encontrar sua tia e presumi que ela pudesse me colocar em contato
consigo, especialmente porque cheguei com informações que,
acredito, você gostará de saber. Infelizmente cheguei com um dia de
atraso, senão talvez pudesse ter evitado seu sangrento
contratempo, na noite passada.

— E do que se trata? —Vitória perguntou. Estava começando


a ficar farta de suas repentinas aparições e afirmações misteriosas.
Ele parecia estar sempre ocultando algo. Ou tentando obter alguma
coisa. — Eu poderia ter dito a você que Nedas está em Roma, não
aqui em Veneza. E se estiver disposta a infiltrar-se na Tutela na
esperança de impedir que ele siga em frente, você não poderá fazer
isso aqui em Veneza. E, certamente, não por intermédio do conde
Benedetto Alvisi.
— E você esperou até agora para me informar a respeito
disso? Por que não me contou, antes que eu saísse de Londres? Na
carruagem? Seus ferimentos pulsavam junto com as inflamadas
veias de seu pescoço. Ele estendeu as mãos. Eu não sabia disso,
naquele momento. — Vitória, conte-nos o que aconteceu na noite
passada — tia Eustácia interrompeu. Ela fechou seus dedos
artríticos em torno da mão de sua sobrinha-neta. Estavam frios,
mas fortes, e a pele dela era macia e texturada, com a grossa
espessura das veias. — E aqui está um pouco de pomada, para
suas mordidas. — Aliviada, Vitória se desligou de Sebastian e fez
uma descrição detalhada da reunião da Tutela.

— Então, você foi sozinha, sem tomar nenhuma precaução,


caso algo saísse errado. — Vitória fuzilou Sebastian com seu olhar.
— Sou uma Venadora e nós temos de correr riscos, por mais
perigosos que possam representar.

Tia Eustácia alterou a respiração, como se estivesse prestes a


falar, mas Vitória a atropelou, porque não queria ser repreendida,
particularmente na frente de Sebastian. — Eu, porém reconheço
que deveria ter me preparado para a possibilidade de que as coisas
não ocorressem como deveriam. Sem Max, eu tinha de agir por
conta própria, pois não havia ninguém que poderia ter me seguido e
fosse capaz de me ajudar, caso as coisas dessem errado. E,
naturalmente, deram errado. Tive suficiente sorte para escapar
sozinha e encontrar Verbena e Oliver, que me trouxeram de volta
para casa. Não foi... uma experiência que eu gostaria de repetir

— ela balançou a cabeça para Kritanu e sua tia.

— Você não deu um jeito de fazer com que sua criada a


seguisse, então — tia Eustácia falou com um cuidadoso tom de voz,
que revelou a Vitória o fato de ela estar aborrecida ou irritada.

— Não. Ela fez isso por sua própria conta.

— Você não mandou uma mensagem pedindo a Kritanu para


ir com você. Ele poderia tê-la seguido, também.
— Não tive tempo suficiente para fazer isso, porque só recebi
a mensagem de Alvisi menos de meia hora antes que ele passasse
para me buscar.

— Foi uma decisão consciente da parte dele. Ele passou


muito tempo tentando encontrar um jeito de ingressar no interior
da Tutela, para ver seu funcionamento — acrescentou Sebastian. —
Você parece ser extremamente bem versado na Tutela, monsieur
Vioget — Vitória replicou sarcasticamente.

Ele sorriu suavemente. — Estou muito contente por estar a


serviço de vocês e todos os outros Venadores. Agora, se me permite,
ficarei mais satisfeito ainda em ajudá-la a se ligar com as pessoas
certas, em Roma — ele disse o R de um jeito autenticamente
italiano — de modo que você possa continuar sua procura por
Nedas. — Vitória olhou para a tia Eustácia. Ela assentiu, com a
cabeça. — Si, devemos, todos, ir para Roma. De navio. Será mais
seguro do que por terra, onde a Tutela pode nos localizar e seguir.
12
Monsieur Vioget blefa

— Apreciando o luar ou vasculhando o navio à procura de


vampiros desagradáveis, para salvar o resto de nós, meros mortais?

Vitória não ficou surpresa; ela sentira a presença de


Sebastian, quando ele se aproximou, por trás dela, na plataforma
do navio. Ela se virou, tranquilamente, para encará-lo, deixando
um braço apoiado no canto da amurada. — Não se preocupe,
Sebastian querido. Não há um só vampiro nesta embarcação.

— Você acabou de me chamar de querido ou eu estava


sonhando? — Ele escolheu um ponto para ficar próximo a ela,
suficientemente distante de suas saias, que se erguiam e revolviam
à mercê da brisa do Mar Adriático, para que não tocassem em suas
calças. — Talvez eu esteja fazendo progressos.

Ela só olhou para ele, ignorando as ondas que se agitavam


como bandeirolas ao redor de suas têmporas. Quando ele pareceu
satisfeito de ficar observando o brilho do mar, em suas cores entre
o negro e o cinza à luz da lua e das estrelas, ela comentou: — Achei
que não levaria muito tempo para você vir me procurar. — Ela
odiava admitir, mas estava feliz que ele o fizera.

— Espero que eu não esteja terrivelmente atrasado.

— Não demais.

— Mas suficientemente atrasado para que você ficasse


impaciente, verdade? — Ele virou o rosto para olhá-la, seus
cotovelos apoiados na amurada — Talvez eu não deseje ser
previsível.

— A única coisa previsível a seu respeito é que você aparece


quando supõe que eu menos espere. Quem sabe será essa a sua
desgraça; no momento, eu espero vê-lo cada vez que me viro.

— Você foi muito imprudente indo à reunião da Tutela por


sua própria conta. Você quase morreu, Vitória. Eles por pouco não
a fizeram em pedaços.

— Você acha que eu não sei disso? — Ela desviou o olhar do


perfil dele, aquele que se voltara para admirar o mar e seguiu na
mesma direção. — Não tive escolha.

Você sempre tem uma escolha.

— Não. Vou nisso até o fim e, no trajeto, vou tirar do caminho


tantos quanto puder. Devo isso a Filipe.

— Você fala de violência com muita naturalidade, Vitória.


Fará sempre parte de sua vida? Seu foco?

— Não pode haver outro. Você não entende; não pode saber
como é, Sebastian. Sou uma Venadora e isso jamais mudará.

Ele permaneceu em silêncio por muito tempo. Ela o olhou de


relance e notou a alteração em sua mandíbula, fazendo com que
seu rosto ficasse sombrio e depois se recompusesse, de novo. —
Quando a vi, em Veneza, com todas aquelas mordidas e cicatrizes,
eu... bem, percebi que seria uma grande perda se algo pior tivesse
acontecido a você.

— Não se preocupe, Sebastian. Há outros Venadores para


protegê-lo. Ou será que você está preocupado com o balanço da
minha dívida?

Ele riu, mas comedidamente. — Sei onde a Tutela se reúne


em Roma. Você não terá de ir sozinha.

— Se você diz... mas eu não posso deixar de pensar por que


se colocaria em tamanho risco, um homem da não violência?
— Por que você está brava comigo?

— Com você? Não seja presunçoso, Sebastian. É a raiva por


esta minha vida que me corrói agora mesmo. Eu carrego essa
responsabilidade que, apesar de sua ideia de que existe uma
escolha, não posso decidir me esquivar. Estou sozinha e não vejo
um fim para isso. Sou uma viúva e não posso ver outro futuro para
mim. Eu poderia ter morrido há duas noites e, mesmo assim,
voltaria de bom grado. Às vezes... — nesse ponto sua voz fraquejou.
— Às vezes fica demais e a coisa se transforma em raiva. E outras
vezes... é só assim que eu posso ser. A verdadeira Vitória.

— Poucos de nós sabemos quais os sacrifícios que você e


outros Venadores fazem. Como suas vidas não lhes pertencem,
embora desejassem o contrário. Mas sem você e os de seu gênero, o
mundo seria muito diferente.

Vitória estava em silêncio, de novo. A raiva que ela expressara


se amainou e depois desapareceu, conduzindo a uma excruciante
consciência do cheiro de cravo misturado ao da maresia e a uma
mão de dedos longos, segurando na amurada, ao seu lado. Ela ficou
atenta à noite e ao fato de que eles estavam em um canto da popa
do navio, à sombra do mastro, da vela e da própria cobertura do
deque; para todos os efeitos, sozinhos. Ele ouviu o tênue bater das
velas e os gritos distantes de um dos marinheiros.

— Que estranho! — Ela não percebeu que falara alto senão


quando sentiu Sebastian mover-se ao seu lado, olhando para baixo,
mas não na direção dela, e sim para ajeitar a lapela do paletó. — O
que é? — Ficar fora, à noite, sozinha com um homem, e não temer
por minha reputação. Eu não posso deixar de pensar em todas as
vezes, durante a temporada, em que eu saía com todo o cuidado
para não ser encontrada sozinha com um cavalheiro, mesmo
quando não corria o perigo de ter de proteger minha virtude. E,
agora que eu sou viúva, essa preocupação não existe mais.

— Certamente. — Ele parecia confuso. — Estou me


perguntando se não deveria ficar desapontado por não ser
considerado um perigo para a sua virtude.
— Se você fosse um perigo para mim, teria parado com esse
discurso cavalheiresco sobre compensações. E eu teria de fazer com
que caísse de joelhos, assim como aconteceu com alguns outros
pretendentes que acharam que levar-me a um passeio no terraço
daria a eles a oportunidade de usar livremente suas mãos. Entre
outras coisas. Entretanto, acredito que você não seja tão tolo, por
saber que eu não sou uma ordinária.

— Não sou, mesmo. E não creio, nem por um momento, que


seria levado, Vitória. Você é muito mais inteligente e eu, também.

— Não estou interessada em levá-lo a lugar nenhum.

Então, ele riu. Não estrepitosamente, como se tivesse ouvido


algo divertidíssimo, mas uma risada baixa, fluida, cúmplice e que
fez Vitória se sentir um pouco desconfortável. — Eu poderia
cooperar, minha chére. Na verdade, estou tentado a fazer isso.
Muito tentado.

Ele se moveu rapidamente, suave como um lenço de seda, e,


de repente, ela ficou presa entre a amurada e Sebastian, que
postara as mãos em cada um dos lados dela, cercando o parapeito.
Braços longos a envolveram, mantendo-a bem aconchegada, no
meio.

A respiração dele era quente, na parte de trás das costas


dela, onde seus cabelos presos deixavam sua pele nua vulnerável.

— Seria muito fácil permitir a você que me provocasse para


fazer o que, covardemente, não tenta por si. — As palavras
provocaram arrepios, mandando ecos de cima abaixo das costas
dela.

— E o que, em sua mente distorcida, você imagina que eu


sou covarde demais para fazer? — Ela ficou satisfeita porque sua
voz se manteve estável e tranquila, como a brisa do mar, enquanto
ela podia sentir a estatura dele, por trás dela, a sua proximidade;
ainda, perturbadoramente, nenhum contato, senão o toque das
mãos dele ao longo das dela.

A boca dele estava na altura da parte superior da orelha de


Vitória, apenas roçando-a, internamente, quando seus lábios se
moveram. — Por mais corajosa que você possa ser ao enfrentar
vampiros e demônios, é covarde demais para admitir que gostaria
de terminar o que começamos na carruagem. Você prefere me
provocar com seus comentários acres, esperando que eu perca
minha cabeça e a devaste.., momento em que se convenceria de que
não seria assim tão horrível sucumbir a seus desejos.

Ela começou a respirar nervosamente, seus ombros se


moveram para trás e os seios se elevaram, e ele aproximou mais
suas mãos, apertando seus braços em torno dela. — Eu...

Mas a voz dele, embora mais baixa do que a sílaba indignada


que ela proferiu, anulou tudo o que ela poderia dizer. — E então
você teria uma desculpa para abandonar suas suspeitas e
desconfianças a meu respeito, sua reputação e seus medos. A
verdade, Vitória, é que você me deseja tanto quanto eu a desejo.

Apenas não quer tomar a decisão.

Ele se movimentou e, agora, ela sentiu que Sebastian estava


atrás dela, a validação inconfundível de suas palavras pressionando
a parte inferior de suas costas. Ele empurrou seus quadris contra a
amurada, segurando-a por trás, enquanto depositava um beijo
delicado na pele sensível bem atrás do lóbulo da orelha de Vitória.
Sua boca estava aberta, acolhedora e suspirando, a cada
respiração, roçando delicadamente sobre o mesmo lugar, leve e
sensual, provocando cócegas e arrepios na parte de trás dos ombros
dela.

— A verdade, Vitória, é que você não tem de confiar em mim,


ou sentir qualquer obrigação emocional em relação a esta aliança, a
fim de aplacar seus desejos. Você não precisa temer que eu seja
outro Rockley e lhe peça o que não pode ou não dará.

Ela sentiu o peito dele se elevar e baixar atrás dela, enquanto


ele respirava profundamente e beijava ao longo do tendão que se
projetava do lado de seu pescoço; ela inclinou a cabeça para o outro
lado, como se ele fosse um vampiro que a perseguira e subjugara.
Seus joelhos queriam dobrar-se, mas a grade estava lá para
ampará-los e salvá-la daquela indignidade. Ela não tinha ideia,
nenhuma ideia, do quanto sentia falta desse despertar, dessa
reavivação de seu corpo. Nem mesmo a menção que ele fez a Filipe
foi suficiente para dissipar o crescente prazer.

As mãos dele se moveram da amurada para seus seios e eles


se elevaram nas palmas dele, quando ela respirou profundamente e
oscilou, para tocar a cabeça dele, que estava atrás dela. Um dedo
desceu tranquilamente, entrando em seu corpete para encontrar o
bico dos seios dela e acariciá-lo, e depois os braços dele a soltaram,
suas mãos voltando à amurada, uma em cada um dos lados dela.

Vitória tentou se mover, virar-se para olhá-lo, mas ele a


manteve na posição, olhando para o mar, com seu quadril e outro
insistente apêndice. — Não, você não vai conseguir, minha querida
—, ele disse em um tom de voz irregular, profundo, no ouvido dela.
— Eu lhe disse que não seria provocado e não serei. E acho que não
vou lhe permitir que use como desculpa minhas exigências
anteriores por recompensa. Decidi que você quitou integralmente
qualquer dívida que possa ter tido comigo.

Ela notou que estava tremendo e úmida em todos os lugares


e súbita e totalmente sozinha.

Abandonada, em pé na amurada com a brisa do mar roçando


nela como um vestígio da boca dele.

Maldito seja ele!

Eu me pergunto quem será o primeiro a ceder — murmurou


Kritanu na orelha de Eustácia. Ele ficou atrás dela, os braços em
volta de sua cintura, e deu uma sonora risada. Eles estavam
apreciando a noite no mar, de um patamar mais elevado, perto da
popa do navio, quando Vitória se postou na amurada, abaixo.
Quando Sebastian se juntou a ela, momentos depois, Kritanu e
Eustácia poderiam ter se afastado, mas não o fizeram.

Assim, eles tomaram conhecimento, embora não em todos os


detalhes, do entrevero verbal entre os dois jovens, mesmo assim
ficaram sabendo o suficiente do que se passava, para entender o
que estava ocorrendo.

— Eu certamente espero que Vitória tenha bastante juízo


para não tomar uma decisão impulsiva ou governada pelos desejos,
em vez da razão — respondeu Eustácia. Mas ela tinha visto o modo
como sua sobrinha suspirou e se inclinou para Sebastian, e como
ela respirava profunda e irregularmente depois que ele se foi.
Quando ela pensava que ninguém veria.

— Tenho certeza de que ela não faria algo tão imprudente. As


mulheres Gardella certamente não são conhecidas por sua
impulsividade, quando se trata de assuntos do coração.

Eustácia não pôde conter um sorriso. — Que bruxa mal-


humorada eu me tornei, vero? A idade está me tomando e começa a
pesar como um fardo. Esqueci como é ser jovem e tentada por um
homem novo e bonito.

— Um homem novo e bonito oito anos mais jovem que seu


caçula. —Ele estava rindo atrás dela, e deu um beijo em sua orelha.

— Oh, como você lutou contra sua atração por mim. Eu era
jovem demais, demais mesmo, e apenas um Comitador, um mero
treinador, não um Venador, então estava aquém de ser notado por
você.

— Fiquei furiosa, quando Wayren mandou você para mim!


Você, aos 17 anos, sabia mais sobre lutar com vampiros do que eu,
uma Venadora eleita, que tinha recebido a vis bulia havia
aproximadamente quatro anos, desde meus 20 anos. Obviamente,
eu não tinha ideia do quanto aprenderia com um Comitador.

— Ela deu meia-volta para olhá-lo, e ele ficou ao lado dela,


ambos alinhados à amurada, mirando-se. Tinham exatamente a
mesma altura: o corpo dourado e compacto dele e o esbelto, dela,
que se inclinava ligeiramente com a idade.

— Eu sei. E eu fiquei atordoado com sua beleza e desanimado


diante de sua rudeza, atitude mal-humorada e abomináveis
habilidades para luta.

— Nunca me canso de ouvi-lo falar sobre minha


deslumbrante beleza.
— E eu nunca me canso de ouvi-la dizer que, graças à
insistência de Wayren para que eu treinasse você, sua vida foi salva
muitas vezes.

Eles sorriram, um para o outro, amigáveis e confortáveis em


meio à noite e com suas lembranças. Embora suas articulações
doessem mais do que usualmente e apesar de estar apreensiva
quanto ao retorno a Roma, Eustácia não desejava retornar àqueles
tempos da juventude.

— Sua sobrinha é tão bela, talentosa e teimosa, como você


foi. Não é de admirar que Vioget olha para ela daquele jeito.

— Não sei de tudo que se passou entre eles; temo que seja
mais do que eu gostaria e espero que o apego não seja duradouro.

— Você não confia nele inteiramente.

— Não. Não consigo. Ele pode ser um valioso aliado; já


provou que é útil para nós. Mas não posso levá-lo a sério, porque
ele representa qualquer papel que lhe convenha, quando deseja. E
representa bem. Ele dirá e fará o que for preciso para conseguir o
que quer.

— E o que é que ele quer?

— Isso é o que mais me perturba, Kritanu. Eu não sei. Eu


não sei o que se passa, verdadeiramente, em seu coração.

— Talvez você esteja sendo um pouco mais cautelosa, diante


de sua própria intuição, por causa do desaparecimento de

Max. Você confiou implicitamente nele.

— Confiança. Eu continuo a ter e assim seguirei até o


túmulo. Ele pode estar morto ou... bem, eu não quero pensar nisso.
Eu não sabia nada sobre ele ou o seu paradeiro em Veneza; só
espero que possamos encontrá-lo, em Roma.

— Caso contrário, você teme que a profecia possa se cumprir.

Ela balançou a cabeça, afirmativamente. — Como escreveu


nossa mística Rosamund: “A era de ouro do Venador pode acabar
aos pés de Roma”. Se Nedas, de fato, liberar todo o poder do
Obelisco de Akvan, receio que essa batalha de Roma será o fim de
todos nós.
13
Uma aposta é feita

Depois de seu interlúdio com Sebastian, Vitória permaneceu


obstinamente longe de todas as áreas do pavimento externo do
navio, sob a lua e as estrelas, fazendo seus passeios só à luz do sol.

Era estranho vê-lo todos os dias, inclusive durante as


caminhadas diurnas, entre e ao redor dos mastros e de outros
objetos fixos existentes no deque. Ela estava acostumada a vê-lo
aparecer inesperadamente... não a ficar sentado à sua frente,
durante uma refeição. Ele agia como se mal a conhecesse,
curvando-se educadamente e chamando-a de senhora Withers,
sempre que entravam em contato, e derramando seu charme
equitativamente entre as outras quatro mulheres que viajavam no
navio. A esposa do capitão e suas irmãs ficavam, evidentemente,
encantadas.

Vitória preferia que ele se mantivesse a distância. Era mais


fácil se concentrar em Filipe — em como tanto o amara e no fato de
ter ficado viúva recentemente —, quando via Sebastian apenas de
passagem.

Mas o fato é que ela pensava em Sebastian com muita


frequência. Era difícil evitar a lembrança de seu corpo musculoso
pressionando-a contra a amurada e praticamente impossível
esquecer os beijos que eles haviam compartilhado, em especial
quando a boca dele se curvava naquele sorriso acolhedor) a cada
vez que ela entrava em um recinto. Ao menos suas intenções para
com ela eram bem claras; ela esperava que tia Eustácia ainda não
os tivesse notado.
E, de fato, Vitória ficava se perguntando qual seria o
problema em ceder ao que ambos desejavam. Ele deixou bem claro
que não tinha interesse em nada além de um namorico
mutuamente benéfico; era tudo o que ela queria ou, de qualquer
forma, poderia permitir-se. E não havia possibilidade de haver um
bebê como resultado de qualquer ligação que ela estivesse inclinada
a começar, pois Vitória tomara uma poção medicinal, quando
estava casada com Filipe, destinada a evitar que engravidasse. Era
uma velha tradição das Gardellas; ninguém, muito menos Vitória,
queria ver uma Venadora gerando uma criança.

Se ela estivesse considerando a possibilidade de ter um


amante, sem intenção de casar-se ou manter outro tipo de
compromisso, Sebastian seria uma escolha bastante lógica. Ele, no
mínimo, entendia e aceitava o tipo de vida que ela levava. Ele estava
consciente de suas obrigações, e não manifestava aquele autoritário
senso de proteção característico de qualquer outro homem. Não
haveria necessidade de mentir para ele nem de esconder sua vis
bulla nem ele esperaria nada mais dela, quanto menos um
casamento.

Ele era atraente e charmoso e fazia com que ela se sentisse


um pouco temerária, mesmo para uma Venadora. Havia,
obviamente, aquela questão de até onde ela poderia confiar
plenamente nele. Mas, digno de confiança ou não, ele sabia beijar
bem, entre outras coisas, e, afinal de contas, ela era uma Venadora
e podia tomar conta de si mesma.

Sem dúvida, era algo digno de ser considerado.

Além de tentar evitar Sebastian — e também seus confusos e


tentadores sentimentos em relação a ele durante a viagem —,
Vitória tinha pouco a fazer.

A princípio, ela tentou se manter em forma, praticando


kalaripayattu no quartinho que compartilhava com Verbena, mas
era pequeno demais. Ela ficava batendo nas camas, e certa vez
bateu o cotovelo na parede, quando calculou mal uma espiral.

Isso fez com que ela procurasse outro lugar no navio, que
permitisse maior mobilidade. Mais precisamente, ela mandou Oliver
procurar esse tipo de espaço para ela. Ele tratou de localizar uma
área dedicada a armazenamento, porque como a viam demorava
menos de uma quinzena, a embarcação não tava lotada com
materiais necessários para longos trajetos.

Então, Vitória praticava ali, às vezes com e às vezes sem


Kritanu, enquanto Oliver permanecia sentado na porta, para o caso
de alguém tentar entrar. Seria extremamente embaraçoso se algum
dos passageiros se deparasse com Vitória usando calças folgadas e
uma camisa tipo túnica, enquanto ela girava e dava pontapés por
todo o recinto.

Certo dia, ela havia praticado por mais de uma hora, usando
as caixas espalhadas pelo cômodo, como parte de seus movimentos.
Ela girava e chutava, lançando-se em cima desses objetos,
rodopiava utilizando a energia do próprio movimento, e pulava por
todos os cantos.

Vitória estava transpirando e seus cabelos começaram a


escorregar da trança, grudando em seu rosto e no pescoço. Ela dava
golpes em todas as direções, manuseando um facão que, nos
últimos dias, vinha utilizando nas lutas com Kritanu, e, quando se
virou, viu que a porta foi aberta.

Naturalmente, era Sebastian.

— Como você entrou aqui? — perguntou, arfando e


respirando com dificuldade. Ela ficou em pé em um dos caixotes
que estavam diante da porta e passou a mão sobre a testa úmida.
Sua espada pendia, segura com pouca força. Ela nem sequer ousou
pensar em sua aparência, com manchas de suor por toda a túnica e
aquelas calças amplas, nada femininas. Usava apenas meias nos
pés.

— Seu criado Oliver, é claro. Ele e eu temos conversado


bastante, durante seus treinos.., uma questão de ganhar a
confiança dele, você sabe. Então, hoje, eu lhe sugeri que talvez ele
pudesse me deixar assistir um pouco.

Ele entrou e pegou o facão de Kritanu. — Aprendendo


esgrima, não?
— A técnica é chamada de ankathari e é muito mais letal do
que as piruetas e desvios da arte francesa. Note a inflexibilidade e a
largura da lâmina. Nossas armas são muito mais sérias do que as
delgadas e flexíveis que você usa.

— Oh! Então você deseja me desafiar para um duelo. Fico


feliz em aceitar. — Ele sacou a espada, fazendo com que zunisse no
ar, e, em seguida, deixou-a de lado para tirar o paletó e a gravata.
Ela tentou não notar quando ele desabotoou os dois botões do
colarinho e arregaçou as mangas, mostrando a pele bronzeada, cor
de caramelo.

— Há protetores acolchoados ali, se quiser usá-los. — Vitória


balançou a cabeça em direção à pilha de armaduras de tecido que
Kritanu normalmente usava durante as sessões.

Sebastian pensou a respeito e, então, olhou para ela. —Você


não usa?

— Não. Mas eu...

— ... sou uma Venadora. Sim, sim, estou ciente disso. — Ele
ficou em pé no centro do cômodo. — Vou me arriscar. — Olhou
para ela, onde ela ainda permanecia. — Você não deseja duelar
comigo? Ou já terminou o treino por hoje?

— Vou duelar com você. — Ela saltou, caindo com os pés no


solo. — Há pouco mais a fazer, neste navio.

Eles se encararam à distância de duas lâminas de facão um


do outro. Os olhos castanho dourados dele capturaram os dela,
quando ela o fitou e reconheceu o prazer e o desafio que havia ali.

— Precisamos oferecer um prêmio para o vencedor deste


duelo — ele disse, rindo maliciosamente. —Você não acha que eu
deixaria passar esta oportunidade, não é?

Vitória não conseguiu segurar o “huuff” de um riso de


surpresa. — Claro que não. E, coincidentemente, tenho certeza de
que você tem algo em mente.

— Uma vantagem. O vencedor escolhe aquela que o outro


deve lhe dar livremente.
Agora, ela riu de verdade. — Sebastian, você é totalmente
previsível!

Em vez de ficar ofendido, ele retribuiu o sorriso e balançou a


cabeça. — Com certeza. Quando a oportunidade se apresenta, fico
muito satisfeito em agarrá-la.

— Isso quer dizer, é claro, que você tem de ganhar, para


merecer o benefício.

— Você não parece preocupada.

— Não estou. — E ela o atacou. Ele não se mexeu, exceto com


mão que empunhava a espada, habilmente bloqueando o facão.

— Nem eu.

Eles se defenderam e brincaram um pouco, mantendo seus


pés em uma posição fixa, a maior parte do tempo, enquanto suas
lâminas deslizavam uma na outra, fazendo ruídos metálicos sempre
que se batiam, para depois distanciar-se. Vitória se refreou,
querendo avaliar a habilidade de seu adversário; sim, pois embora
desejasse superá-lo, não pretendia ferir o arrogante almofadinha,
que desdenhava da proteção acolchoada. Certamente, ele devia
estar mais acostumado a manejar uma espada ou outro tipo de
arma típica para esgrima, algo bem leve e mais flexível. No entanto,
ele manteve o mesmo ritmo que ela, mesmo quando Vitória
aumentou sua velocidade, força e o poder de suas investidas e
estocadas.

Logo eles estavam dançando pelo recinto, um estranho tipo


de valsa, e Vitória sentiu necessidade de se concentrar para
acompanhá-lo. Ele era rápido e inventivo, e ela não estava
conseguindo superá-lo. De fato, Vitória começava a se perguntar
como ele mantinha o mesmo ritmo que ela e, ao mesmo tempo,
conseguia bloqueá-la com tanta facilidade. Mas, então, ela pegou a
arma dele no ângulo certo e a arrebatou, fazendo com que caísse ao
chão.

Ela mal registrou o fato de que tinha ganhado, quando ele


deu uma cambalhota, recuperou a espada que ainda estava
vibrando e a enfrentou, arremetendo em sua direção com ferocidade
suficiente para fazê-la retornar a um de seus caixotes.

Suas lâminas colidiram e ficaram unidas, como se estivessem


coladas, parando no meio da batalha; com os rostos tão juntos,
Vitória podia ver os pelos cor de cobre dourado da sobrancelha dele
se curvando de maneira a misturar-se à franja que caía de sua
testa. Uma linha de suor escorreu em uma das têmporas. Ele sorriu
e o estômago dela se revirou.

Em seguida, como se pudessem ler, um a mente do outro,


eles se moveram ao mesmo tempo num frenesi de lâminas e um
perigoso emaranhado de metais deslizantes; se juntaram de novo
para soltar-se, até que um facão saiu voando e a outra arma caiu
no chão, junto deles. Sebastian bateu o pé sobre a lâmina caída,
que subiu no ar e a pegou, antes que Vitória conseguisse alcançá-la
— A vitória é minha, querida. Vou reivindicar o meu prêmio!

— Nada de vitória para você. A batalha terminou em empate.

— De rato. Bem, eu vou reivindicar minha vantagem e não


me importo muito se quiser considerar um empate.

— Mas e se meu pedido for que a sua vantagem é nula e sem


efeito?

— Não fará isso, minha querida. Você não é covarde.

Os olhos dela se estreitaram, mas ela se afastou, balançando


a cabeça. — Muito bem, então. Diga qual é o seu prêmio.

— Eu desejo — ele deu um passo na direção dela, pegando


suas mãos antes que ela pudesse reagir, e a atraindo gentilmente
para si.

— Uma resposta honesta à pergunta que estou prestes a lhe


fazer.

— Nada de beijos? Nada de ver minha vis bulla? Nada de


propostas indecentes? Sebastian, você está me assustando!

Ele se aproximou, suavemente envolvendo com os dedos e


erguendo o queixo dela. — Se você está desapontada, lembre-se que
também tem um prêmio a reivindicar. Ele deu um afetuoso
empurrãozinho no queixo dela e, em seguida, roçou suas faces com
os dedos. — Eu gostaria de saber por que você se casou com
Rockley... se por dever familiar ou por amor.

A pergunta a surpreendeu e ela hesitou. Então: — Não foi por


dever. Eu o amava. — Sua voz parecia enferrujada e, de repente, a
sala ficou sufocante. Por que ele faria uma pergunta dessas? Por
que se importava com isso?

Ele apertou as mãos dela, depois as libertou e ficou


esperando. Ela olhou para ele, em sua camisa branca, úmida em
certas partes e meio aberta, de maneira a revelar o brilho de suor
em sua garganta e em seu peito, coberto de pelos cor de bronze. Ela
refletiu mais de uma vez sobre a forma como ele fazia com que ela
se lembrasse de um anjo dourado, com os cabelos loiro escuros, a
pele clara e os olhos de tigre. Os aspectos escuros de seu rosto
eram as sobrancelhas retas, de uma cor que parecia uma mistura
de loiro com ruivo e os cílios, que emolduravam seus olhos.

Tudo o mais era bronze.

Mas, certamente, não era um anjo, particularmente quando


olhava para ela como naquele momento... como se esperasse que
ela caísse de luxúria a seus pés.

— Vitória? — ele provocou.

Ela sorriu para ele, um sorriso que oferecia apenas a Filipe...


um que ela aprendera depois de descobrir como o desejo de um
homem funcionava e como uma mulher pode usar isso a seu favor.
E prazer.

Ela sorriu aquele sorriso para ele; talvez houvesse um nome


para esse tipo de expressão, mas ela não sabia qual era.
Aproximou-se dele, bem perto. Ele cheirava a cravo, a homem, e
talvez houvesse algum outro aroma que estivesse impregnado em
sua roupa ou nos seus cabelos.., de folha de louro.., e colocou as
mãos em seus ombros. Eram grandes, largos e sólidos, e sua pele
queimada, úmida e quente, através da camisa fina que ele usava.
Ela podia ver os tons acobreados, dourados e marrons da
barba começando a despontar sob a pele de sua mandíbula, e
sentir a expectativa na sua respiração. Os olhos dele estavam
semicerrados, mas ela sentia que a observavam, profundamente.
Ele não estava sorrindo. Vitória ergueu-se na ponta dos pés.
levando sua boca até o pescoço dele, para sussurrar: — Eu quero
que me diga como você sabe tanto sobre vampiros.

Então, ela deixou os calcanhares baterem no chão e recuou,


soltando os ombros dele, enquanto eles cediam, com a tensão
liberada. Os olhos de Sebastian se abriram inteiramente.

— Como você tenta um homem, Vitória — ele disse, com


suavidade. Mas sua expressão não revelava que estivesse se
divertindo. — A resposta à sua pergunta é muito mais complicada
do que eu possa ou queira compartilhar neste momento, mas vou
lhe dizer isto: como você, eu perdi alguém que eu amava para os
vampiros

— Sua mulher? Uma amante?

— Meu pai.
14
A senhora Withers se diverte em dobro

O primeiro vislumbre que Vitória teve de Roma lhe provocou


um inesperado arrepio ao longo da parte superior de seus ombros.
Quando olhou para a cidade com tanta história, ela sentiu um
pressentimento agudo, como se a visão da cidade anunciasse a
presença de uma energia catalisadora desconhecida para ela.

Mas quando a embarcação que a trouxera, e aos outros, ao


porto de Óstia, finalmente parou e ela desceu, Vitória não voltou a
sentir a sensação nem o tremor de terra sob seus pés que ela
poderia ter esperado ao pisar em um solo que ardia em função de
tal profecia. Ela simplesmente notou que sua consciência seria
invadida pelos sons, cheiros, paisagens das ruas... de Roma.

Apesar do fascínio da cidade, Vitória não teve muita


oportunidade de apreciá-la ou mesmo vivenciá-la. Um dia depois,
tia Eustácia a instalou em uma pequena residência urbana, com
Oliver e Verbena, e uma parte da criadagem italiana,
aproximadamente a quinze minutos de onde a matriarca Gardella
estava hospedada. Como em Veneza, Vitória e Eustácia haviam
decidido que seria mais prudente manter sua relação em segredo.
Vitória não sabia para onde fora Sebastian.

Eles só se viram em refeições depois de sua batalha simulada


com espadas, e das confissões íntimas; ele permaneceu fora de seu
campo de visão, quando Vitória e sua comitiva desembarcaram do
navio, em Óstia. Aparentemente, ele encontrara outros meios de
transporte para chegar à cidade.
Ela ficou satisfeita por não poder vê-lo, porque não tinha
certeza de como reagir à informação que ele lhe dera. O que ele
queria dizer com a afirmação de que perdera o pai para os
vampiros? Que ele tinha sido morto por eles? Ou que, talvez, tenha
se transformado em um vampiro? Também era possível, ela supôs,
que o pai dele fosse um membro da Tutela. Isso poderia explicar por
que Sebastian sabia tanto sobre aquele grupo. Fazia sentido. Algo
assim deveria ser uma indicação de como ele se envolvera com
Polidori, justificando o fato de ele ter dito que sabia onde seus
membros estariam reunidos, em Roma.

Ele não fizera nenhum contato com Vitória durante os três


dias seguintes à sua chegada à cidade, fazendo com que ela ficasse
imaginando se eles haviam se deslocado a Roma só para serem
manipulados por Sebastian; mas então, no terceiro dia ele mandou
uma mensagem, informando que iria vê-la à tarde.

Vitória esperou por ele na sala. Ela confundira aquele


pequeno recinto com uma despensa para guardar objetos de
limpeza doméstica, não fosse pela existência de duas cadeiras e
uma mesinha, algo que levara os italianos que deixaram a
residência para ela denominarem aquilo como uma sala. Fosse o
que fosse, porém, era pequena demais para ela e Sebastian. Ela
sentiu o cômodo diminuir ainda mais quando ele entrou e fechou a
porta atrás de si.

— Presumo que você passou os últimos três dias trabalhando


duramente para descobrir a localização clandestina da próxima
reunião da Tutela, e encontrou a melhor forma de me infiltrar — foi
a maneira como ela o saudou. E sentou-se em seguida, embora ele
tenha permanecido em pé, fazendo com que o recinto parecesse
menor ainda.

As sobrancelhas dele se uniram, mas suas palavras foram


mais secas do que giz. — O que foi que a levou a pensar isso? Eu
tinha de resolver outros negócios, entrar em contato com
conhecidos, assistir a uma ópera e ir até a Fonte de Trevi, para
lançar uma moeda e fazer um pedido. Mas, em relação ao encontro
da Tutela, de fato você deverá ir, sim. Espero que sua agenda esteja
livre esta noite.
— Eu tinha um camarote reservado para a ópera, mas vou
abrir mão dele para acompanhá-lo à reunião, é claro. O dever antes
do prazer.

— Não em minha agenda.

Antes que ela pudesse perceber o que ele pretendia,


Sebastian se aproximou e colocou as mãos sobre os ombros dela,
pressionando-a contra a cadeira de espaldar alto e mantendo-a,
com firmeza, no lugar, graças ao movimento firme de seus dedos
curvados. Ele se inclinou para beijá-la, cobrindo sua boca, que se
abrira disposta a protestar, surpresa, enquanto ele apoiava o joelho
na almofada próxima à saia dela, O rosto de Vitória estava inclinado
para cima, o centro do alto espaldar da cadeira pressionado contra
a parte posterior de seu crânio, quando ela recebeu o beijo, com os
lábios abertos para sentir o gosto dele. Ela sentiu o volume de seus
próprios cabelos, que estavam presos, atrás da cabeça, enquanto
roçavam na madeira e no estofado de veludo e se afrouxavam a
cada movimento de sua cabeça, enquanto a ponta afiada de dois
grampos cutucavam seu couro cabeludo.

Uma sensação morna e lânguida percorria suas pernas e ela


suspirou, ainda com a boca de Sebastian na sua. Ele tinha um
sabor ainda mais dourado e quente do que parecia. O joelho dele na
cadeira ao seu lado fez com que ela se inclinasse ligeiramente,
apoiando ali todo seu peso, enquanto sua mão esquerda roçava na
bainha da calça dele. Afastando seus lábios da boca de Vitória, ele
começou a beijá-la ao longo do queixo, em direção à sua orelha. Ele
respirava profundamente e seus dedos apertavam ainda mais firme
os ombros dela, mas, com um último beijo no canto do queixo, ele
parou. Usando o apoio na cadeira como uma alavanca, ele olhou
para ela e disse: — Isso é o pagamento em espécie por sua breve
exibição, pouco depois da nossa luta de espadas.

Ela não teve de perguntar o que ele queria dizer; seu coração
estava batendo muito depressa no peito e ela se sentia inteiramente
quente e úmida.
— Estou completamente preparado para ir até onde e quando
você quiser, Vitória. A única coisa que nos separa do que ambos
queremos é você.

Ela assentiu, com a cabeça. Era verdade. E ela nem sequer


tinha certeza da razão que a impedia de ir adiante. Deus bem sabia
que ela não era inocente e que certamente gostara de fazer amor
com Filipe. Mas ele se fora e ela teve muito pouco prazer à sua
disposição, nessa vida.

— Agora — Sebastian disse como se o interlúdio não tivesse


acontecido —, temos de falar sobre a reunião da Tutela. O encontro
de hoje à noite é um evento social, mas contará com muitos
membros da Tutela. Não tem uma característica fechada ou de um
ritual, mas o conde Regalado, um dos mais proeminentes
integrantes da Tutela, será o anfitrião, e o objetivo é, gentilmente,
recrutar mais seguidores.

— Eu gostaria de ir.

— Tinha certeza disso. Eles estão recrutando pesadamente,


Vitória, e sua necessidade de ampliação quase chega às raias da
histeria e do pânico. Acredito que o que Polidori possa ter aprendido
em sua interação com eles tem algo a ver com essa busca por mais
membros. Eles estão se preparando para algo, provavelmente a
ativação do Obelisco de Akvan.

— O evento de hoje tem como pretexto a inauguração da


última pintura de Regalado... ele acredita ser um artista
consumado. Haverá membros da Tutela e eles vão procurar
oportunidades para atrair interessados em sua causa, então,
algumas palavras aqui e ali certamente podem lhe oferecer
vantagens. Acredito que ele comece a receber seus convidados a
partir das oito horas da noite.

— Tenho certeza de que se eu lhe perguntasse como você


obteve todas essas informações, não me contaria.

— Você continua a me impressionar com sua inteligência,


determinação e desnecessária virtude. — Ele olhou firmemente para
ela durante um longo instante, provocando um rubor em seu peito
que subiu para o pescoço e as bochechas, quando ela decifrou a
mensagem dos olhos dele: — maldita virtude!

—Você vai me acompanhar, então? — ela perguntou, quando


desviou o olhar.

— Na verdade, não. Não seria prudente, para mim, ir até lá


esta noite... tam, tam, tam, tam! Não me pergunte por que, minha
querida. Um homem deve ter certos segredos.

— Certos segredos? Sebastian, não há nada a seu respeito


que não seja secreto.

Ele levantou as sobrancelhas. — Verdade? E eu aqui


pensando que meu desejo por você fosse absolutamente flagrante!

O rubor voltou, diante de palavras tão diretas. Ela nunca


ouvira tal coisa assim em voz alta, seca e corajosamente expressa.

Mas preferia ignorar, por ora. — Então, eu terei de ir


sozinha?

— Não, isso seria estranho, na melhor das hipóteses.


Acontece que eu conheço duas jovens que também são amigas de
Sarafina, a filha do conde Regalado. Irão ao evento e ficarão muito
satisfeitas de levar você com elas. Naturalmente, como a senhora
Withers, viúva recente que procura consolo pela perda do marido.
Junto com alguma distração, e, talvez, uma chance de
imortalidade.

— Duas jovens? — Vitória olhou para ele com ar de


cumplicidade. — Então isso explica por onde você tem andado nos
últimos três dias.

— É mesmo? — O sorriso dele era enigmático e, para sua


própria irritação, ela se descobriu... bem... irritada.

— Talvez eu possa aprender mais sobre os seus muitos


segredos, enquanto fico na companhia delas, esta noite — ela
comentou com um sorriso provocante. — Vai ser bem interessante.

— Hmm... talvez eu tenha falado demais. — Mas ele estava


rindo, seus olhos de tigre brilhavam, bem-humorados. — Elas se
chamam Portiera e Placidia Tarruscelli, e concordaram em vir
buscá-la às oito. Aparentemente, não pegaria bem ser
absolutamente pontual em um evento como esse.

—Vejo que a sociedade, em Roma, não é diferente da nossa —


disse Vitória. — Muito bem, então, estarei pronta, quando elas
chegarem. Muito obrigada, Sebastian, pela ajuda que nos oferece
neste caso.

Ele pegou a mão dela, levou-a até seus lábios para um beijo
muito suave, como eram os beijos de Sebastian. — Espero que
continue grata, quando tudo isso acabar.

Portiera e Placidia Tarruscelli eram belas de olhos e cabelos


escuros, com aparência voluptuosa, e cada uma delas tinha uma
pequena verruga em um dos lados de suas sedutoras bocas
rosadas: Portiera, à esquerda; Placidia, à direita. Eram gêmeas.

Vitória não podia evitar de conjecturar até que ponto


Sebastian conhecia.

Tudo nelas era duplicado: seus vestidos (um granada e outro


lilás), suas bolsinhas (uma com bordas de pérolas, a outra com
contas de azeviche).., e até mesmo seus elogios ao vestido verde
primaveril de Vitória, com pequenas variações (uma, adorou a
renda em torno do corpete, a outra, as três camadas de babados,
na bainha).

Quando sentou diante delas, na carruagem em direção a vila


de Regalado, Vitória sentiu como se estivesse sendo abordada por
dois gatos tagarelas — gatos não falam, mas se movem
sinuosamente e têm uma certa sonolência no olhar. Perguntas e
comentários intermináveis, marcados por risos e gritinhos,
caracterizavam a parte tagarela.

Vitória era fluente em italiano e as gêmeas, em inglês,


portanto seu diálogo era fácil e bilíngue. E extremamente difícil de
acompanhar.

Quando uma das gêmeas fazia uma pergunta referente à


Londres, a outra seguia uma linha de pensamento focada em moda,
querendo saber coisas diferentes. E para aumentar a confusão de
Vitória, elas voltavam atrás nos assuntos, cada uma delas pegando
um fio da conversa, de maneira que, em determinado momento, ela
já não conseguia ter certeza de a quem estava respondendo.

Ficou encantada, quando finalmente chegaram à vila.

No interior da espaçosa residência, depois que ultrapassaram


as tradicionais fontes romanas que enfeitavam os acessos, Vitória e
as gêmeas Tarruscelli foram anunciadas e, em seguida,
ingressaram no salão principal. Não estava decorado para um baile,
embora um quarteto de cordas tocasse, discretamente, em um
canto. Havia pinturas penduradas em todas as paredes, e, pelo que
se podia ver, todas feitas por algum artista medíocre.
Aparentemente, Sebastian e Vitória compartilhavam a mesma
opinião sobre a arte de Regalado.

No centro de uma das paredes do espaço retangular havia um


estrado, onde normalmente ficaria tocando uma pequena orquestra,
durante um baile, mas naquela noite o destaque era para a última
pintura de Regalado.

Vitória quase riu alto quando a viu. Na verdade era mesmo


um retrato das gêmeas Tarruscelli e suas verrugas, ao lado de uma
garotinha loira da mesma idade e proporções. Foram pintadas para
representar as três Parcas, cada uma delas em diáfanos vestidos no
estilo grego e que deixavam um ombro exposto e também uma boa
porção dos seios. Seis mamilos apontavam, através de suas roupas
transparentes. — Está me reconhecendo? — perguntou alguém ao
lado de Vitória, falando inglês com forte sotaque.

Vitória se virou: — Você deve ser a signorina Regalado, a filha


do artista.

— Si e você deve ser a amiga inglese que Portiera e Placidia


trouxeram esta noite. Emmaline Withers? Tenho tanto prazer em
conhecê-la, que nem esperei que elas nos apresentassem. Eu vim
immediato para discorrere com você.

Vitória deu uma olhada pela sala, para buscar uma saída; a
última coisa que precisava naquela noite era ser escoltada por
outra jovem tola. Tinha um trabalho a fazer. — Grazie por sua
hospitalidade, signorina...

— Oh, favore, para você, sou Sara! Estou encantada de poder


praticar inglese com outra mulher. Os homens não conhecem as
palavras importantes. Tais como rendas e babados e luvas e
plissados e...

— Onde está seu pai? Gostaria de parabenizá-lo por tão bela


obra de arte Vitória a interrompeu antes de ser brindada com uma
relação completa de cada termo relativo à moda existente sob o sol.
— Ele fez você ficar tão bonita!

— Meu amore disse a mesma coisa — Sara sorriu e deu o


braço a Vitória. — Vou apresentá-la a ele depois, mas primeiro eu
gostaria de levá-la a meu pai, e também a dois de seus
compatriotas. Eles não querem falar sobre moda comigo, então vou
exibir você a eles, para que fiquem com chiume.

Quando Sara finalmente localizou seu pai, que estava com


um grupo de outros três homens, no outro lado da sala, ela quase
arrastou Vitória até lá. Ela não estava nem um pouco relutante em
conhecer o conde, é claro, porque se ele fosse um dos membros
mais proeminentes da Tutela, caberia a ela travar amizade com ele.

— Ah, Sarafina, quem é a bela encantadora que você nos


trouxe? — ele perguntou, ao virar-se, interrompendo a conversa.

— Padre, esta é minha nova amiga, a senhora Emmaline


Withers. O homem, que era pequeno e atarracado, com apenas
resquícios em seu crânio, dos cabelos escuros de outrora,
compensara essa falta deixando crescer uma grande e espessa
barba, e um bigode, curvou-se e pegou a mão de Vitória. Ele a
levantou e beijou com seus lábios delicados e úmidos, fitando-a
com olhos escuros excessivamente interessados. Não era uma
surpresa, pois, afinal, aquele era um homem que pintara os
mamilos de sua própria filha e das amigas dela. — Estou muito
grato em conhecê-la. Deixe -m apresentá-la a alguns dos meus
companheiros.
Foi quando Vitória se virou e viu, pela primeira vez, o rosto
muito aturdido e familiar de George Starcasset.
15
Lady Rockley é repreendida

Vitória olhou para George e sorriu, como se não fosse nada


incomum ser apresentada com um nome falso.

Felizmente, ele não fez nada senão uma reverência e levantou


a mão dela para um beijo rápido, mas, momentos depois, quando
todas as apresentações terminaram e Vitória se escusava para sair,
antes que ele dissesse alguma coisa estranha, o jovem deu um jeito
de segui-la.

— Talvez me permita acompanhá-la, em busca de algo para


beber — disse George, pegando o braço dela com firmeza.

Ao afastar-se o suficiente para que o conde e seus


companheiros não pudessem ouvir, George puxou Vitória para o
lado e olhou para ela. — Não sei que acontecimento fortuito nos
reuniu assim que cheguei à Itália, mas o que quer que seja, eu me
sinto agradecido.

— Você não fez nenhuma menção a uma viagem para a Itália,


quando nos despedimos — disse Vitória, imaginando porque ele não
havia perguntado sobre seu nome fictício. Talvez ele simplesmente
estivesse sendo tão educado e circunspecto como na ocasião em
que a encontrou cravando estacas em vampiros à meia-noite, nas
ruas de Londres. Ou quem sabe apenas não fosse uma pessoa
desconfiada.

Mas poderia haver outra razão? Embora surpreso, ele


pareceu tão espantado como ela, no momento em que Regalado se
virou para apresentá-lo.

— Naquele momento eu ainda não havia planejado vir à


Itália, para ser exato... mas tenho de confessar que lamentei
profundamente que você tenha tido de deixar a Inglaterra justo
quando estávamos nos tornando melhores amigos.

Ele apertou o cotovelo de Vitória, como se quisesse


acrescentar uma camada extra de significado à palavra. — E,
depois de pensar um pouco, pensei que seria uma boa época para
retornar a Roma e dar uma olhada em alguns negócios que me
interessavam aqui. Achei que ao estarmos no mesmo país eu seria
capaz de procurá-la e encontrá-la. Não tinha ideia de que esta
circunstância nos reuniria no mesmo evento social, apenas dois
dias depois de minha chegada. — Seu sorriso era largo e jovial e,
com as duas profundas e arqueadas covinhas que o emolduravam,
juntamente com a profunda fenda no queixo, ele parecia ainda mais
jovem.

— Que grande sorte! — A mentira dela foi acompanhada de


um sorriso igualmente falso. Ela tinha de encontrar uma forma de
se livrar de George para que pudesse conversar com Regalado, para
obter informações sobre a Tutela. Em seguida, lhe ocorreu outro
pensamento desagradável: “Como você fez para vir aqui esta noite?”
Certamente não era porque ele estava interessado na Tutela. Deve
ter sido uma coincidência. Mas havia vampiros e Polidori, um
membro da Tutela, em Claythorne. E ela não tinha certeza absoluta
se Sebastian não pertencia à Tutela. Era possível que o pai dele
pertencesse.

Depois, outro negro pensamento se descortinou em sua


mente. Sebastian dissera que seria imprudência dele participar da
festa na vila de Regalado. Ele já sabia que Starcasset estaria lá? E
por que ele no queria ser reconhecido?

— Polidori me disse, quando estávamos no jantar daquela


noite, em Claythorne... aquela noite... que se eu alguma vez
visitasse Roma, deveria, com certeza, conhecer seu amigo, o conde
Regalado. Ele parecia acreditar que o conde e eu nos acharíamos
incrivelmente amigáveis. — Ele levantou a sobrancelha novamente,
— E eu descobri que é verdade, mesmo. Regalado e eu temos muito
a conversar.

Vitória decidiu arriscar. — Ele falou com você sobre a Tutela?


—A Tutela? Por que? Não que eu me lembre. O que é isso?
Não sei muito bem — ela respondeu delicadamente, olhando ao
redor da sala. — Acontece que eu ouvi menciona- em a palavra e
fiquei curiosa. — E foi então que ela viu Max.

—Bem, eu ficaria satisfeito de perguntar mais a respeito, se


você não quiser... Lady Rock... senhora Withers, é algo importante?

Ele, Max, estava em pé no lado oposto da sala, como se


tivesse acabado de chegar, cumprimentando muita gente.
Parecendo tão alto, com cabelos escuros e arrogante como era um
ano arás. Ele estava sorrindo, ao apertar a mão das pessoas.

—De fato, não — ela respondeu a George, logo depois que ele
fez a pergunta. — Exceto, talvez, porque eu esteja com um pouco dc
sede. Será que você...? — Ela fez com que sua voz fosse diminuindo
de intensidade, enquanto lhe oferecia um olhar convenientemente
enviesado, de maneira a parecer uma fêmea indefesa.

— Com certeza, com certeza, senhora — respondeu ele, meio


confuso. — Eu demorei para ir em busca de uma bebida e lhe devo
um pedido de desculpas. Vou lhe buscar um chá... ou quem sabe
prefira um copo de vinho, que eles chamam de chianti?

— Chá seria ótimo... ou limonada — Vitória respondeu,


tentando manter a atenção no perímetro em que estava Max.

Tão logo George seguiu rumo às mesas onde as bebidas


estavam sendo servidas, ela girou e começou a andar na direção
oposta, entre grupos de pessoas espalhados no salão. Estava a meio
caminho, quando Max a viu.

Ele não esperava encontrá-la; isso ficou claro pela expressão


aturdida que assumiu em seu rosto, por um instante, e que sumiu
tão rapidamente como apareceu. Ele não procurou contato com os
olhos dela, mas sim voltou sua atenção ao grupo de pessoas com as
quais estava reunido. Alguém disse algo divertido e todos, Max
inclusive, reagiram com risadas.

Ele parecia estar bem e relaxado. Bonito e aristocrático, com


aquela pele morena, altivas maçãs do rosto, nariz reto e longo
queixo bastante angular. Seus cabelos escuros haviam crescido
tanto, que podiam ser presos na nuca, mas naquela noite estavam
soltos e caíam quase até os ombros. Certamente, não parecia que
ele tivesse passado por alguma atribulação ou qualquer tipo de
acidente. Nada, a julgar por sua aparência, que justificasse o fato
de ele não se comunicar durante quase um ano.

Vitória sabia que não poderia simplesmente invadir o grupo e


abordar Max, nem mesmo imiscuir-se na conversa com os quatro
ou cinco homens com quem ele estava. Olhou mais uma vez em sua
direção e, mesmo de longe, pôde ver a expressão nos olhos dele:
sombria, anódina e fria.

— Senhora Withers! Procurei por você em toda a parte. Fiquei


me perguntando para onde teria ido. Posso chamá-la de Emmaline?

— Eu estava procurando por você também, Sara, e é claro


que pode me chamar de Emmaline — Vitória respondeu.

Como poderia usar Sara para conseguir o que queria?

— Splendido! Agora, preciso apresentá-la ao amore mio. Ele


acabou de chegar.

Óbvio. Vitória não se surpreendeu. Por que deveria? Junto


com os vampiros, sua vida se tornara repleta de coincidências e
chegadas inesperadas. Sebastian geralmente aparecia como se
materializado no ar. George Starcasset simplesmente surgiu em seu
primeiro compromisso social, em Roma. Então, por que Max não
poderia ser o namorado de sua recente conhecida, a filha de um dos
homens mais poderosos na Tutela?

— Caro, gostaria de lhe apresentar minha nova amiga, a


senhora Emmaline Withers — disse Sara, possessivamente dando o
braço a Max. — Ela chegou recentemente de Londres. Emmaline,
quero lhe apresentar ao fidanzato mio, Maximilian Pesaro. — Noivo
dela?

Ele fez uma reverência ínfima; na verdade, foi uma atitude


mais insolente que educada, seguida de um olhar impessoal e raso,
ao dizer, em italiano: — Londres, você diz? E o que foi que a induziu
a abandonar uma cidade tão encantadora?
— Não se ofenda, Emmaline. Max simplesmente odeia
Londres — Sara interrompeu. — Ele teve de permanecer alguns
meses lá, no ano passado e disse que mal podia esperar por seu
retorno a Roma.

— Verdade? Bem, estou certa de que ele jamais terá de voltar,


se tanto despreza a cidade. Mas você não foi com ele? E o que você
acha de Londres?

— Infelizmente, eu ainda não tinha tido o prazer de conhecer


minha noiva, quando lá estive disse Max, com sua voz profunda e
suave. Muito, muito tranquilo. Indiferente. — Isso aconteceu logo
após meu retorno.

— Talvez eu possa me juntar aos que vão cumprimentá-los,


em seu casamento iminente — Vitória replicou. — Quando é a data
auspiciosa?

— Não; pode ser em breve — disse Max, olhando para a


radiante Sara, que o contemplava como se ele fosse um chapéu, que
ela simplesmente tinha de ter. Nem sequer chegava aos ombros
dele; era tão miúda, além de delicada e curvilínea. Seus cabelos
loiros, incomuns na Itália, devem ter sido o que mais o atraíram;
isso e, quem sabe ainda, os olhos castanhos de longos cílios, em
um rosto doce, em formato de coração. — É uma pena que você não
poderá comparecer, senhora Withers, porque estou certo de que
seus planos de viagem logo a levarão embora de nossa bela cidade.

A mensagem não poderia ter sido mais clara, se ele a tivesse


escrito. Vitória notou que seus dedos estavam tremendo. — Vejo
que o senhor Starcasset voltou com uma bebida para mim — ela
disse a Sara. Recusou-se a olhar para Max, com receio de que
alguém mais conseguisse captar a expressão assassina, que
certamente estaria estampada em seu rosto. — E eu simplesmente
preciso dar outra olhada naquela pintura. Por favor, desculpe-me.

— O prazer será todo nosso. — O comentário abafado de Max


foi direto aos ouvidos dela, quando se afastou rapidamente.

Respirações profundas. Vitória respirou profundamente e


tratou de se acalmar. Não queria que ele percebesse que a irritara.
E é claro que a aborreceu. Havia desaparecido há cerca de
um ano e agora ela o encontrava alegremente instalado, com sua
noiva. nas entranhas da Tutela! Seguramente, ele não desconhecia
o envolvimento do pai de sua noiva; afinal de contas, era um
Venador.

Quando se aproximou de George, que, felizmente, apareceu


com uma bebida para ela no momento exato, Vitória reconheceu
que havia duas explicações para o envolvimento de Max com Sara
Regalado e também para seu comportamento nessa noite. Ou ele
estava desempenhando um papel, como ela, na tentativa de se
infiltrar na Tutela, ou mudara de lado, e, em função disso, não
tinha mais o menor interesse em se comunicar com tia Eustácia e
com Wayren. No primeiro caso, Vitória não entendia por que ele
deixara de manter contato. Havia formas discretas de fazê-lo;
certamente Max as conhecia. Mas se ele tivesse aderido à Tutela,
aos Protetores de Vampiros, então teria de ter renunciado à posição
de Venador. Ela não podia acreditar nisso. Nem mesmo por um
instante.

Mas havia, ainda, uma terceira possibilidade.

Tudo poderia ser exatamente como parecia; nem mais nem


menos; ele se apaixonara por Sara Regalado e estava planejando
casar-se com ela.

Vitória teve de suportar as desajeitadas tentativas de George


Starcasset, empenhado em beijá-la durante o trajeto que fizeram de
carruagem, no regresso à casa. Ela bem que desejava alcançá-lo de
volta a seu assento com um belo empurrão, planejado para
funcionar como uma chicotada, mas ela se absteve de usar tão
descaradamente seus poderes de Venadora.

Em vez disso, resolveu pisar — “acidentalmente” — com seu


salto afiado nos dedos dos pés dele, com força suficiente para lazer
com que ele se abstivesse de quaisquer intenções amorosas que
pudesse ter. Não apenas para esfriar seu ardor, mas também que
estivesse sem condições de dançar por uma semana.

O que ela realmente queria fazer era bater em alguém. De


preferência, Max.

Depois que teve oportunidade de refletir sobre a situação,


Vitória chegou à única conclusão possível: a de que ele estava
representando um papel e que, tão logo tivesse um momento para
falar a sós com ela, iria esclarecer a situação. Só essa explicação
fazia sentido. Max era um Venador, o mais poderoso, depois de tia
Eustácia. Nunca iria traí-los.

E quanto a Sarafina Regalado? Vitória não acreditava que


Max se apaixonara por aquela tolinha, cabeça de vento. Como ele
nunca se dignara a deixar-se distrair por uma mulher, teria de ser
alguém... diferente.

Uma vez que chegara a essa conclusão, Vitória achou que


Max estaria tão ansioso para falar a verdade como ela, para ouvi-la;
então ela permanecera em uma das entradas do salão, na
esperança de que ele a fitasse e atendesse seus discretos sinais,
para sair dali. Porém, ele não olhou para onde ela estava nem uma
vez e parecia muito contente se misturando aos convidados, com ou
sem Sara enganchada em seu braço.

Quando, finalmente, ela havia esgotado sua série de


desculpas a Portiera e Placidia, para justificar por que não se
movia daquele lugar, ela permitiu que as jovens a conduzissem a
um grupo de jovens italianos — o equivalente aos libertinos e
ladinos que ingressaram na nobreza de Londres — para apresentá-
la a eles.

Por algum tempo, Vitória deixou-se embalar pelo prazer de


não ser nada além de uma mulher jovem e atraente interagindo
com homens também jovens e atraentes. Ela havia esquecido como
era preocupar-se apenas em fazer comentários espirituosos ou
distribuir rápidos sorrisos, cheios de recato.

Essa era a vida de que abrira mão: simples e em que a maior


preocupação era com o que vestir para determinado evento, se o
seu caderninho de pedido de danças ficaria cheio e se, depois de
casada, seria capaz de ter um herdeiro para seu marido. Um
mundo cheio de falatórios e festas e pouco mais a fazer.

Ah... e de abençoada ignorância.

Sim, definitivamente aquela era a vida da qual ela desistira


Os belos amigos de Portiera e Placidia eram gentis e charmosos e se
digladiavam para falar com Vitória, para ir buscar uma bebida para
ela ou um biscotto, um antipasto, ou mesmo levá-la ao jardim, para
que tomasse um pouco de ar. Como se tratava de uma viúva
inglesa, era incomum e, portanto, mais os atraía, em particular um
dos mais velhos da turma, embora ele não tivesse mais do que uns
trinta anos... o barão Silvio Galliani.

— Talvez eu pudesse convencê-la de que um pouco de ar


fresco seria delicioso, senhora Withers — ele sugeriu, afastando do
caminho outro concorrente menos ousado. — Os jardins da Vila
Regalado são particularmente lindos ao luar.

O italiano temperava o inglês dele, a admiração pairava em


seus olhos escuros e seu sorriso era suficientemente irresistível
para provocar uma ligeira agulhada em sua barriga. Quando ela
concordou e ele pegou seu braço, ela sentiu os músculos vigorosos
sob o tecido leve do paletó.

— Faz tempo que conhece a família Regalado? — Vitória lhe


perguntou quando eles caminhavam ao longo do piso de pedras do
terraço.

—Há muitos anos — ele respondeu. — Sou primo da


condessa. Não fui sincero ao afirmar que os jardins são mais
bonitos ao luar? Vê essas rosas ali adiante?

Ela olhou para os botões de um branco quase creme, porém


prateado pela lua. — Elas são bonitas, mas parece que floresceram
mais tarde, nessa temporada.

—De fato, atrasaram! Lido um pouco com o cultivo de flores e


esta é uma de minhas criações. Dei a ela o nome de Sara à Luz da
Lua — Chiaro de luna de Sarafina —, mas talvez eu tenha sido
apressado demais ao batizá-la. — Ele lançou um olhar significativo
para Vitória. — A cor delicada de suas pétalas me recorda o tom de
sua linda pele inglesa, e o brilho prateado da lua é o mesmo que
reluz em seus cabelos escuros. Chiaro Emmaline de Luna talvez
fosse mais apropriado. Emmaline ao Luar.

Vitória sentiu a abrangência do charme dele. Afinal, nunca


fora comparada a uma rosa. — É um grande elogio -— replicou,
continuando a caminhar. — Você deve ser muito próximo de Sara e
de sua família para dar o nome dela a uma rosa.

— Sim, eu a conheço desde que era bem jovem. Um pouco


frívola às vezes, mas uma garota bastante bonita. Bela à sua
própria maneira.

— Parece que a família está muito satisfeita com seu


casamento, em breve. Você já esteve com seu prometido?

— Muitas vezes. Pesaro é um perfeito cavalheiro e parece que


logo se apegou à jovem Sara. Dentro de apenas um mês, talvez até
menos, eles devem anunciar seu noivado. Obviamente, quando
alguém encontra o amor verdadeiro, o tempo não significa nada. —
Ele estava olhando para ela de novo daquele jeito intenso. Será que
ele pensava, mesmo, que ela ficaria caidinha por ele?

— O conde aprova uma decisão tão rápida, quanto ao


casamento da filha?

— Ele está muito satisfeito. Ele e Pesaro têm extensas


relações de negócios e foi por isso, creio, que ele veio a conhecer
Sara. Agora, minha querida senhora Withers, chega de falar de Sara
e de seu namorado... vamos conversar sobre nós. Notei o grande
interesse daquele garoto inglês. Diga-me a verdade e não parta meu
coração... ele a interessa particularmente ou existe a possibilidade
de que outro possa atrair sua atenção?

— Minha atenção não está focada em ninguém, neste


momento, barão.

— Então, posso me considerar um homem de sorte. — O


brilhante sorriso do barão Galliani cintilou ao luar. Eu ficaria muito
feliz se você me chamasse de Silvio. Gostaria de dar uma volta pelo
caminho mais adiante e mostrar algumas de minhas flores de
ervilha roxas.

— Na certa me agradaria muito vê-las, mas temo que preciso


voltar ao salão. Não quero que Placidia e Portiera se preocupem com
minha ausência. Elas podem estar se preparando para ir embora.

Ele ficou claramente desapontado, mas acatou sua vontade e


a conduziu de volta para dentro. Justo no momento em que
encontraram no salão, voltando do terraço, Vitória viu a alta figura
de Max caminhando em direção a uma porta que ficava do lado
oposto.

Ele estava deixando o recinto e ela decidiu segui-lo. Seria a


oportunidade para pegá-lo sozinho.

Vitória pediu a Silvio que a desculpasse por uns instantes, e


caminhou entre as pessoas que conversavam e bebiam, sem dar a
impressão de ter pressa. Ela até parou na mesa onde serviam
bebidas, para tomar um trago de limonada, de maneira um tanto
vulgar e depois seguiu em frente. Até o momento em que ela
alcançou a saída visada, tinham se passado quase dez minutos.

A porta por onde Max desapareceu não era aquela através da


qual ela mesma ingressara no salão; em vez de conduzir a um hall
de entrada, deu acesso a uma sala espaçosa, com o teto abaulado, e
cheia de portas e nichos, com altos pilares encimados por bustos de
mármore. Seguindo a tendência temática de Regalado, alguns deles
também ostentavam mamilos.

Vitória parou em uma das portas, indecisa sobre a razão que


kvara Max a sair, se fora encontrar alguma outra pessoa, se em
busca de algo necessário ao evento ou, quem sabe, se à procura
dela, na parte externa.

O lugar estava em silêncio e, então, a certa distância, ouviu -


s uma voz baixa seguida de um leve gemido feminino de prazer.
Alguém tinha aproveitado a oportunidade para ter um encontro
amoroso.

Vitória se movimentava, imaginando se deveria se atrever a


abrir uma das portas. Max poderia estar em qualquer lugar,
inclusive em uma área completamente distinta, da vila. Mas se ele
saíra visando ter a chance de eles se encontrarem, provavelmente
estaria perto. Esperando por ela. Deve tê-la visto retornar do terraço
e, na certa, imaginara que ela estava em seu encalço.

Uma maçaneta girou e Vitória rapidamente se escondeu atrás


de um dos pilares, ocultos pela própria sombra dele, desejando ser
tão pequenina como Sara. Com um ruído sutil, a porta se abriu e o
farfalhar de saias lhe indicou que uma mulher caminhava pelo
corredor. Vitória segurou a respiração, mas a mulher correu de
volta para o salão, sem desviar o olhar. Era Sara Regalado.

Uma sensação desagradável revolveu seu estômago. Ela saiu


detrás do pilar e aguardou.

A mesma porta se abriu, de novo, e dali saiu Max. Seus


longos cabelos estavam revoltos e o colarinho de sua camisa, torto.
Fora esses detalhes, sua aparência agressiva estava fria e distante,
suas elegantes maçãs do rosto pareciam esculpidas em gelo. Ele
olhou para baixo, seguindo a linha reta de seu nariz, parou e lhe
disse: — Você, de novo?

Ele teria passado por ela direto, mas ela bloqueou seu
caminho.

— O que está acontecendo, Max? — perguntou em voz baixa.

— O que você quer dizer com isso? — ele perguntou, roçando


a mão em um vestígio imaginário, na manga de seu paletó.

— Talvez você tenha me surpreendido em uma situação


incômoda, mas, afinal de contas, ela é minha noiva.

— Por que você não entrou em contato com tia Eustácia?

O olhar dele era tão insosso como mingau. — Ando muito


ocupado. Planos de casamento e coisas assim. Você sabe como
podem nos deixar distraídos.

Para ela, era como se ele tivesse lhe dado um soco no


estômago. — Sim — suspirou.

Ele esperou um instante e depois disse: — Algo mais?


— Não.

— Muito bem, então — aliás, senhora Witters, não é? — você


permite que eu retorne à minha noiva? Espero que sua volta a
Londres seja confortável.., e iminente. — Assim que ela recuou, ele
seguiu adiante, alto e sombrio, e Vitória não pôde deixar de notar o
ar de aborrecimento que ele ostentava.

Agora, horas depois, ao lado de George, na carruagem que de


lhe ofereceu com o maior entusiasmo para levá-la à sua casa
quando as irmãs Tarruscelli ainda não estavam dispostas a ir
embora, Vitória ainda estava furiosa.

Ela bufou e fervilhou, mas, sob a raiva, havia um tremendo


vazio, incredulidade, medo. Arrogância e grosseria não eram
novidade, quando Max estava preocupado, mas o que de fato a
chateou foi a sarcástica indiferença dele, quando ela lhe perguntou
sobre tia Eustácia. Ele amava sua tia, como se fosse uma mãe, uma
mentora, uma professora e uma líder. O fato de ele descartá-la não
era um sinal nada auspicioso. Certamente, não deveria ser o que
parecia. Certamente não era que ele, por ter se apaixonado, havia
de renunciar ao seu mundo e dever de Venador.

Nem por que teria ingressado na Tutela.

Ela jamais acreditaria nisso.


16
Intensa atividade em uma Pequena sala de visitas italiana

Vitória não ficou nem um pouco surpresa ao encontrar


Sebastian esperando, em sua casa, quando ela voltou. Parecia algo
bastante previsível na sequência do que estava acontecendo.
Quando ela se deparou com ele na salinha do tamanho de uma noz,
teve um breve instante de arrependimento por não ter aceitado os
insistentes pedidos de George, que tanto queria ser convidado a
entrar.

Foi apenas um átimo, substituído, entretanto, por um desejo


mais intenso de ter permitido que Silvio, sim, a trouxesse em casa e
entrasse com ela. A presença do solícito e belo barão italiano teria
dissipado o esperançoso sorriso no rosto de Sebastian.

Como não tinha sido assim, Vitória mesma trataria de lhe dar
o fora. Ela realmente não estava a fim de ter companhia, como sua
mãe diria. Mas quem tinha assumido o risco de aparecer sem ser
convidado era Sebastian. E também de mandá-la a uma festa
sozinha. E, ainda, de não lhe dizer tudo o que sabia.

Ele estava pedindo por isso. — Espero não tê-lo feito esperar
demais — disse ela, à guisa de saudação.

Ele havia tirado o casaco e luvas, antes dela chegar, afrouxou


o nó da gravata e abriu os dois botões do colarinho. Bastou essa
simples presunção para irritá-la. — Não, de jeito nenhum, minha
chére ... na verdade, eu achei que iria demorar bem mais para
livrar-se de todos aqueles jovens fanfarrões salivando, que você,
com certeza, encontrou. Ou foi uma noite inútil?
— Tive que me defender das investidas de George Starcasset,
tentando me beijar na carruagem, a caminho de casa.

— Eu deveria ficar encantado pelo fato de terem sido apenas


tentativas? E gratificado de que minhas tentativas com a mesma
finalidade foram bem-sucedidas?

— E sobrevivi a um passeio ao luar com o barão Galliani. Não


que tenha sido muito difícil.

— Galliani? — O sorriso dele se apagou por um instante, mas


logo reapareceu, fresco e sensual.

— Seu amigo?

— Não particularmente. Além de decidir se guardar para


mim.., como foi sua noite?

— Hum... então eu me guardei para você? Não sabia. Minha


noite, tal como se passou, foi cheia de surpresas. Estou tentando
imaginar se você sabia de todas ou de apenas algumas delas.

Ela estava andando pela sala, o que consistia em dez passos


em uma direção e, em seguida, outros dez na oposta. Se fosse
cuidadosa, poderia evitar esbarrar no braço da cadeira maior.

Sebastian a observou por um momento, e, então, com um


sorriso indiferente, escolheu o assento mais apertado e desabou
sobre ele, em um gesto de imensa grosseria, enquanto ela ia de lá
para cá. — Posso sugerir outras maneiras mais agradáveis de
desabafar — comentou ele. — Se você vier até aqui.

Ela parou de perambular. — Infelizmente para você, essa é a


última coisa que eu gostaria de fazer agora. Você sabia que George
Starcasset estaria lá, esta noite? — Ela parou ao lado da cadeira
onde ele estava, fitando-o. A camisa dele estava ligeiramente aberta,
em um longo e estreito V, e ela até podia ver seus pelos dourados e
bronzeados através dessa fenda. A visão íntima fez seu estômago
formigar de um jeito especial, e teve de pensar em desviar o olhar e,
de fato, desviou.

Direto para os ardentes olhos âmbar dele.


— Venha cá, Vitória — ele disse, e chegou a tentar puxá-la
para a cadeira. — Isso já foi longe demais e posso lhe garantir que
não há clima para dissimulação, mesmo que você não queira
admitir.

Ela caiu deixou-se cair, para dizer a verdade — na dura


beirada da cadeira, desabando ao lado do colo dele. Um de seus
braços se curvou ao redor do outro lado da cadeira, encontrando
apoio na borda da parte traseira, e seu quadril se projetou para o
lado em que procurara equilíbrio. Sua outra mão encontrou outro
ponto de apoio bem atrás do ouvido de Sebastian... mas ela não
estava pensando na madeira lisa sob seus dedos nem no
estofamento de brocado brilhante, mas desgastado.

Não, ela estava beijando Sebastian com o mesmo fervor que


ela vira nos olhos dele, pouco antes que ela fechasse os dela.

O formigamento em seu estômago se expandiu e se espalhou


devagar, enquanto ele libertou o que ficara preso e deslizou as mãos
para os seios dela, afagando-os com o polegar e o indicador. Ela se
curvou, ajeitando-se no colo dele, sentada com o quadril inclinado e
as pernas dobradas. Sentia, através do tecido fino de seu vestido, o
ritmo dos polegares dele em seus mamilos e o calor do peito,
coberto de pelos, sob suas mãos.

Vitória abriu a camisa dele, para que pudesse ver aqueles


ombros largos, dourados. Ele gostou de sentir os dedos dela se
espalharem sobre os pelos de seu peito: ela podia perceber pela
maneira como ele fechou os olhos e deixou a cabeça cair contra a
parte de trás da cadeira. A pele dele parecia quente e um pouco
salgada, cheirava a cravo e alecrim e a homem, e ela até podia
sentir a pulsação do pescoço, sob seus lábios.

Quando ela deslizou as mãos mais para baixo, disposta a


arrancar o resto de sua camisa, ele a impediu, abrindo os olhos
com um sorriso preguiçoso. — Por que a pressa, minha querida?
Ambos esperamos tanto tempo por isso. — Segurando os ombros
dela, atraiu-a para um beijo longo e úmido, deslizando as mãos
sobre as pequeninas mangas na parte superior do corpete, e
puxando-as para baixo. Com elas se foi a frente de seu vestido, e
seus seios saltaram para fora do curto espartilho, livres, quentes e
trêmulos.

Um ano antes, Vitória ficaria mortificada com o simples


pensamento de ficar com um homem na sala e ter seu vestido
arrancado até a cintura, enquanto Sebastian manipulava os botões,
em suas costas. Mas ela não era inocente nem Sebastian um
verdadeiro cavalheiro.

E ele estava certo: ela não estava inclinada a fingir


desinteresse. Precisava de algo, naquela noite; algo, depois de tudo
que acontecera nas últimas semanas.

Quando ele beijou um de seus seios, foi um ósculo macio.


suave, tão delicado, que foi pouco mais do que uma respiração. mas
fez com que ela se aproximasse mais, dando ligeiros sobressaltos,
onde quer que ele a tocasse. Ele repetiu os movimentos,
acariciando-a suavemente, e assim provocando as mesmas
sensações por todo o corpo de Vitória. Como uma onda lenta,
percorrendo-a suave e insistentemente, liberando calor e fluidos no
lugar onde ela estava sentada no colo dele. seu vestido desceu e
deslizou abaixo de seus joelhos.

A cabeça dela se inclinou para trás e ela segurou com força


os sólidos e angulosos ombros dele. Ambos estavam quentes,
suaves e firmes. Ele a beijou de novo, agora com a boca mais
ousada, os lábios molhados e ardentes contra o mamilo. A
respiração dele tornou-se mais acelerada e visível, profunda e
ruidosa, enquanto seus dedos, agora, apertavam mais ainda a pele
dela.

Vitória se contorceu; um calor ardendo entre suas pernas,


quando se esfregou nele. Balançou um pouco, ele gemeu, e ela
balançou novamente.

— E eu que sempre pensei que nossa primeira vez seria


numa carruagem — ele murmurou, segurando seu vestido pela
bainha e puxando-o até a cintura dela, para em seguida introduzir
os dedos ao longo de suas coxas, sob um monte de seda, renda e
linho.
Pegando-a por trás, ele escorregou as mãos sob suas saias e
ao redor de seus quadris, puxando-a para a frente, mais perto, de
maneira que ela caiu sobre ele, na cadeira. Os seios de Vitória
pressionaram o peito dele e Sebastian se movimentou e, ao segurar
a cabeça dela, inclinou-a para o lado, de um jeito que pôde beijar o
tendão que se estendia do queixo até o ombro. As mordidas que os
vampiros lhe deram haviam se curado havia muito tempo, mas a
sensibilidade de seu pescoço continuava aguçada, multo mais
acentuada do que antes de ser mordida, e quando ele roçou a boca
sobre aquela pele suave, ela ficou completamente concentrada ali.

Tudo tão diferente das terríveis e maldosas presas que


drenaram sua força vital; ainda assim, assustadoramente
semelhante.

Tudo ficou mais lento quando Sebastian mordiscou e lambeu,


demorada e suavemente, de suas orelhas aos ombros e costas.
Vitória estava tremendo, querendo evitar aquela sensação intensa,
mas, ao mesmo tempo, ansiando por mergulhar ainda mais nele,
em busca de mais. Os olhos dela estavam fechados, suas mãos
caídas, não mais apoiadas na cadeira; ela se entregou ao
redemoinho do prazer.

Então, novamente, ele introduziu os dedos sob suas saias,


abrindo caminho em meio à fenda de suas calcinhas, onde ela
estava quente e pulsante e úmida. Eles esfregaram aquela carne
úmida e ela se derreteu, a respiração totalmente alterada. Como é
que ela esquecera isso?

O prazer se intensificou, de um foco para o outro, de seus


lábios e língua para seus dedos, golpeando e deslizando. A palma
da mão dele contra sua fronte, a crescente pressão e o ritmo
contínuo dele, sem vacilar.

Ela sentiu a respiração dele ainda mais rápida, contra seus


seios, ouviu seus ásperos gemidos, enquanto a boca dele se
afastava de sua pele. Habilidosos.., ah... seus dedos eram
habilidosos... provocando-a até o limite, para em seguida recuar,
fazendo com que ela arqueasse; depois, de volta, gentilmente
explorando, decididos e hábeis, até que finalmente a levaram ao
auge.

Vitória se conteve antes de gritar; algo em seu interior fez


com que lembrasse que estavam na sala e ela enterrou o rosto no
ombro dele, estremecendo, durante o orgasmo.

Longo demais. Tinha sido muito demorado.

Ela estava fraca e preguiçosa e viva. Seus dedos se agitavam


junto com a respiração dela e ela notou que as mãos dele estavam
se deslocando para sua própria cintura e ela concentrou sua
atenção, disposta a ajudá-lo.

Quando quis tirar sua camisa, ele a impediu, fazendo com


que as mãos dela deslizassem até uma protuberância em suas
calças e murmurou: — Não... aqui, por favor — com um pouco de
tenso e irônico humor na voz. — Vitória.

— Este é um jeito eficiente de fazer com que eu me esqueça


da pergunta que lhe fiz — ela sussurrou no ouvido dele, tratando de
abrir suas calças. Quando introduziu a mão lá dentro, percebeu
que estava quente, pronto, firme, sob seus dedos.

— Sobre George? Você já suspeita da resposta. — A


respiração dele fez uma pausa, prontamente.

— Você sabe.

— Não vamos deixar que George se intrometa entre nós — ele


murmurou, persuasivo.

— Que tal Max? — ela perguntou.

— Max, também? — Os dedos dele pararam. — Então é disso


que se trata.

— O que? — Levou um instante, mas a sensação nebulosa do


desejo desapareceu quando ela viu a seriedade no rosto dele.

— Sua capitulação assim tão fácil. Você falou com ele? — Ele
manteve os dedos apertados sobre suas costelas, um pouco abaixo
dos seios, mas eles estavam quietos e sua boca distante e fina.
— Ele vai se casar com a filha de Regalado. Não me diga que
não sabia disso.

— Não sabia. — Sebastian olhou para ela, com uma


expressão sombria, enquanto deslizava as palmas de suas mãos
sobre os seios dela, novamente. — Agora eu entendo e é uma sorte
que eu não tenha escrúpulos quanto a aproveitar uma
oportunidade que cai no meu colo. Literalmente. — O sorriso dele
tinha um traçado desconhecido.

Com um movimento súbito, ele puxou-a de volta para um


beijo quente e rude, beijo que a deixou mais fora de si que antes.
Sua respiração ficou suspensa e ela retribuiu o beijo, envolvida pela
emoção, com o desejo reavivado pulsando em seu interior. As mãos
dele afagavam seus seios com mais urgência.

E, então, algo mudou. Devagar, ele retomou o ritmo normal


de sua respiração, suavizou a intensidade do beijo, descansou suas
mãos quentes na cintura dela.

— Aparentemente, não sou o oportunista que pensava ser —


disse pesarosamente, e, com um movimento, tirou-a de seu colo.

Vitória ficou ali, subitamente fria; seu vestido levantado até a


cintura, suas anáguas amontoadas sob as saias, seus seios
balançando com o movimento de sua respiração e subitamente
libertada por ele.

Sebastian se levantou, em seguida, sua camisa amassada


roçando seu torso. Olhou para ela, enquanto reajustava as calças.

—Não posso concluir se é porque você espera que ele venha


ao nosso encontro, a qualquer momento, ou porque está zangada
com ele. Ou ambos. Provavelmente, ambos.

Os últimos vestígios da excitação desapareceram. — Você


está confuso! — Ela ergueu o corpete, para cobrir os seios.

— Provavelmente esteja, sim — ele respondeu, ajeitando a


camisa. — Mas prefiro estar confuso a ser manipulado.

— Grata por sua ajuda, com a Tutela — ela disse friamente.


— Espero que você se lembre desta noite com carinho,
porque, tão logo, não se repetirá.

Os lábios dele se entortaram, enquanto ele pegava o casaco,


as luvas e a gravata. — Você é tão previsível, Vitória, fingindo ser a
mulher rejeitada.

— Mulher rejeitada? — ela riu com verdadeiro prazer. — Eu


não diria. Você me deixou com pouco, por que me arrepender? E
aposto que vou dormir melhor do que você. — Ela ergueu uma
sobrancelha e olhou significativamente para ele.

— Se isso acontecer, ficarei satisfeito em corrigir a situação.


Ele se virou para ir embora, sua mão na porta da sala, e lhe deu
um último olhar. — Ou vou chamar as gêmeas Tarruscelli.

Vitória se arrependeu de ter comentado com Sebastian sobre


o aparecimento de Max na vila de Regalado, não tanto pela maneira
como, inexplicavelmente, terminou aquele momento de intimidade,
mas porque ela mesma ainda não sabia muito bem o que aquilo
poderia significar.

Ela queria guardar essa informação, sem revelar a ninguém,


para que pudesse analisá-la em sua mente, de maneira que, de
alguma forma, chegasse a ter sentido. Achou que se contasse à tia
Eustácia, ou a qualquer outra pessoa, seria tarde demais para
voltar atrás; aquilo se tornaria real. E aquilo poderia preocupar
desnecessariamente sua tia, porque Vitória simplesmente não
acreditava que Max pudesse ter renunciado à sua posição entre os
Venadores.

E ela também achava.., sabia, no fundo, que Max iria procurá


-la Se ele estivesse desempenhando um papel, algo em que tinha de
acreditar, apesar de todas as evidências em contrário, ele evitaria
qualquer possibilidade de que pudessem ser vistos ou ouvi- dos.
Eles poderiam ter sido observados, quando estavam naquela área
depois do salão, e ele estava sendo extremamente discreto... ou
seja, nada aquém do que ela esperaria de Max. Mesmo que ele a
tenha enfurecido, Max não cometia erros. Era decidido, cuidadoso e
muito, muito perigoso.
Quanto às estranhas acusações de Sebastian... Vitória as
deixou de lado, devido ao fato de que não conseguia entender o que
o levara a se refrear imediatamente, desistir quando estava no auge
da paixão. Não havia nenhum afeto entre aqueles dois homens, por
razões que ela desconhecia, mas parecia fazer parte de uma longa
história. Aparentemente, a simples menção do nome de Max era
como um balde de água fria para Sebastian.

Vitória tinha tanta certeza de que Max iria visitá-la ou lhe


enviaria alguma mensagem, agora que sabia que ela estava em
Roma, que ela permaneceu em casa durante os próximos dois dias,
recusando-se a sair até mesmo para visitar tia Eustácia, na vila
Gardella. Ela não queria perder a oportunidade de encontrá-lo, caso
aparecesse. Ela não diria à sua tia-avó que vira Max. Ainda não. Ela
queria ter certeza... preferia esperar até que eles pudessem
conversar de novo, privadamente. Mas ele não tentou fazer contato
com ela.

Ela, por sua vez, teve de receber George Starcasset, quando


ele a visitou um dia após a festa, trazendo flores e um brilho nos
olhos. Sentaram-se e tomaram chá na salinha abarrotada
conversando frivolamente sobre a sociedade londrina e seus amigos
de lá. Passaram-se uns trinta minutos antes que ela não visse a
hora de se livrar dele.

No dia seguinte, quando ele chegou, Vitória “não estava em


casa’ Na terceira manhã depois da festa na casa de Regalado, as
irmãs Tarruscelli apareceram, trazendo com elas Sara Regalado.

— Achamos que você ficara doente — cacarejou Portiera.

— Esperávamos que viesse ao chá de ontem e ficamos muito


decepcionadas quando você não apareceu.

— Sim, sentimos tanto sua falta no chá de ontem, que


chegamos à conclusão de que tinha sido vítima de alguma dor de
cabeça ou qualquer outro mal-estar — disse Placidia, na esteira das
palavras da irmã.

— Eu não estava me sentindo bem, de fato — Vitória admitiu,


observando como Oliver e Verbena tentaram ajeitar o cômodo
minúsculo para acomodar três convidadas, além de sua patroa. —
Eu gostei demais da festa de seu pai, Sara.

— Espero que esteja se sentindo bastante bem, hoje — disse


a noiva de Max em seu inglês imperfeito.

— Estou me sentindo um pouco melhor, obrigada — Na


verdade, estava ficando pior a cada hora que passava sem saber
nada de Mar.

A menos que... talvez Sara tenha sido enviada para, sem


saber, entregar a mensagem.

De fato, isso parecia viável, quando a jovem prosseguiu,


dizendo: — Esperamos que você possa vir conosco a nosso
camarote para a ópera, amanhã à noite. Nós quatro seremos
acompanhadas por meu pai e Maximilian, além do barão Galliani, a
quem parece que você impressionou profundamente. — Ela sorriu
sem um traço de malícia e continuou: — Meu primo ficou tão
encantado com você, que até ameaçou mudar o nome da rosa que
ele criou para mim!

— Na certa seu noivo ficou bem contente — Vitória não


resistiu em dizer.

Intrigada, Sara olhou para ela. — Maximilian? Por que? Ele


não tem um pingo de ciúmes; não se importaria nem se Silvio desse
meu nome a vinte flores. E se ele mudasse o nome por alguém tão
adorável como você, minha nova querida amiga, bem, eu também
não ficaria adirato de jeito nenhum. Porque eu tenho meu
Maximiian para dar meu nome a flores.

Vitória teve de transformar uma bufada vulgar em um acesso


de tosse. A visão de Max cuidando de uma touceira de rosas, e
muito menos batizá-la com o nome de uma jovem tolinha, era
ridícula.

Quando sua tosse arrefeceu, em meio a uma enxurrada de


“hummms” e “ohsss!” (das gêmeas Tarruscelli, com suas verrugas-
espelho se contorcendo de acordo com as interjeições) e de
batidinhas nas costas (da delicada Sara, cuja batida era bastante
sensual), Vitória sorriu com olhos lacrimejantes e aceitou o convite.
De qualquer forma, assim teria outra oportunidade de ver Max e
observar o que ele estava fazendo. Mal seus visitantes a deixaram,
Vitória, que havia planejado se recolher para treinar seus golpes, foi
chamada de volta à sala. Tia Eustácia chegara.

Vitória beijou o rosto suave e enrugado da tia e a acomodou


na cadeira mais confortável da sala. Notou que ela parecia

mais frágil, como se toda a viagem tivesse lhe custado muito.


Era estranho, porque Vitória esperava que o retorno à sua terra
natal, depois de muitos anos de afastamento, teria feito com que os
olhos dela brilhassem. Em vez disso, ostentavam uma ponta de
tristeza e preocupação. — Tem notícias? — sua tia perguntou, sem
rodeios.

— Sebastian me ajudou a comparecer a um evento na casa


de um dos líderes da Tutela — ela respondeu e explicou sobre
Regalado. —Vou à ópera com ele, sua filha e algumas outras
pessoas, amanhã à noite. Espero que tenha a oportunidade de
descobrir algo mais sobre a Tutela. Não tenho saído à caça de
vampiros, desde que chegamos a Roma; estava planejando reiniciar
meu treinamento agora mesmo e sair em patrulha hoje à noite. Sei
que é importante estar pronta e em forma. E sinto falta disso.

Eustácia olhava para ela com uma expressão dura em seus


olhos negros, como se soubesse que a sobrinha tratava de usar
evasivas. — Você não percebeu nada na casa, quando estava lá?

— Vitória hesitou. — George Starcasset estava lá, e era algo


que eu não esperava. — Os olhos de sua tia se aguçaram,
interessados. — E Max, também.

— Max? Graças a Deus! Você falou com ele?

Ela assentiu, com a cabeça. — Aparentemente, ele está noivo


e vai se casar com a filha de Regalado. Não mencionou a Tutela
nem nada relacionado aos Venadores. Tenho aguardado que ele
entre em contato comigo, mas até agora... nada... e eu não sei o que
pensar.
— O que ele lhe disse, exatamente?

Vitória repetiu suas rápidas conversas e observou a


expressão de sua tia. Manteve-se neutra, mesmo quando ela
comentou: — Eu jamais acreditaria que Max nos abandonasse.
Deve estar envolvido em algo.

— Claro, ele está envolvido com Sara Regalado. Está


apaixonado. — Vitória começava a ser perguntar se isso poderia,
mesmo, ser verdade. — Ele não tem tempo para nós. Está tão
ocupado, que sequer arranjou tempo para avisá-la de que está vivo.

Tia Eustácia lançou-lhe um olhar enviesado. — Não consigo


calcular as numerosas vezes em que conversei com ele a respeito
disso, no ano passado, quando você decidiu se casar com Filipe,
cara. Eu disse a ele, naquela ocasião, como digo a você, agora, que
temos de confiar na capacidade dele administrar todas as suas
obrigações. Não há nenhuma norma que diga que um Venador não
pode se casar.

— Mas eu não abandonei meu dever!

— E não sabe se Max fez isso, Vitória. Para todos os efeitos,


Max tem caçado vampiros todas as noites e, ao mesmo tempo, tenta
encontrar um jeito de se infiltrar na Tutela. Talvez você tenha uma
oportunidade de falar com ele, amanhã à noite, na ópera. É
bastante promissor que você tenha ficado amiga da filha de
Regalado.

— De fato. E com ou sem Max, pretendo fazer tudo o que


puder para saber mais sobre o conde Regalado e sua Tutela. A
mulher dele morreu há alguns anos e ele não se casou de novo. E...
— Vitória acrescentou, recordando os mamilos nos quadros dele, —
ele parece apreciar as mulheres. Talvez eu possa fiertar
descaradamente com ele.

Tia Eustácia concordou. — Muito bem, cara. Sei que você


terá cuidado e espero que tenha mais notícias para contar, em
breve.

— Ela suspirou. — Estou muito preocupada e Wayren, que


está em Roma desde que saiu de Londres, compartilha de meus
receios. Nedas está com o Obelisco e trata-se apenas de uma
questão de tempo para que ele passe a controlar seus poderes. Não
sabemos quando ou onde, embora Wayren esteja estudando seus
livros e pergaminhos, para ver se encontra qualquer profecia ou
descrição capaz de indicar o período de tempo e o lugar. Neste
momento, você é a única pessoa em quem podemos confiar para
descobrir. Os outros Venadores, tanto em Roma como em qualquer
rincão da Itália, são muito conhecidos e seriam imediatamente
reconhecidos pela Tutela. Sua vantagem é que você é uma mulher,
e você não é muito conhecida. Quando imaginam uma Venadora,
eles pensam em mim, apenas em mim.

— Salvo se eles notaram que, nos acontecimentos em Veneza,


a Venadora era eu — lembrou Vitória.

— É possível, mas não provável. Você matou o único vampiro


que a reconheceu; os demais não sobreviveram para ver como você
luta bem e com tanta energia. Temos de usar essa vantagem,
enquanto for possível. Vero, eles realmente sabem que minha
sobrinha é uma Venadora, mas não sabem quem é você e como são
suas feições nem que esteja aqui em Roma. Por isso, é importante
que você não seja vista comigo e também que não seja observada
lutando com um vampiro, em nenhum lugar. Por nenhuma razão.

Ela dirigiu um olhar implacável para a sobrinha. — Entende?

— Eu não poderia ficar parada, observando, enquanto um


vampiro atacasse outra pessoa — Vitória replicou, pensando nos
eventos de Veneza. — Não faz parte de minha natureza.

— Você deve. Tem de agir como qualquer outra mulher, se


ficar frente a frente com um deles.

— Tia Eustácia...

— Vitória, você vai me obedecer, quanto a isto. Há momentos


em que é preciso fazer um sacrifício pessoal, para salvaguardar um
bem maior. Eu sei. — Seus olhos se entristeceram.

— Eu sei disso, Vitória, porque vi acontecer. Você tem de


aprender a pensar em larga escala, em vez de se concentrar apenas
no ínfimo instante em que respira.
Vitória apertou os lábios, mas assentiu. Não sabia se
conseguiria ficar parada, deixando que o pior acontecesse, mas
tentaria, se as circunstâncias levassem a isso.

— Temos de encontrar uma forma de parar Nedas. Quanto


mais informação você puder obter, melhor poderemos planejar esse
passo. Talvez tenhamos de dar um jeito de roubar o Obelisco, caso
ele já tenha começado a ativá-lo. — Tia Eustácia balançou a cabeça.
— Vou deixá-la, agora, entregue a seu treinamento. Vou entrar em
contato com você na manhã seguinte à ópera; não há necessidade
de que você procure por mim. Eu sei melhor como me movimentar
discretamente, aqui em Roma. E não se preocupe com Max. Tudo
correrá bem.

Vitória, porém, não acreditou nela. Notara as alterações


durante aquela conversa, como as linhas do rosto dela se
aprofundaram e a forma como seus olhos ficaram sombrios e ela
sabia que tia Eustácia também não acreditava em si mesma.
17
Maximilian considera a possibilidade da jardinagem

— Já aconteceu antes, Eustácia — Wayren disse a ela. —


Muito a contragosto, vou confirmar. Perdemos Venadores para a
sedução do vampiro. Como vem acontecendo em cada batalha ao
longo história, têm havido traidores entre nós, também.

— Isso é possível, mas Max? Depois do que ele fez? Não. Há


alguma outra explicação.

Wayren parecia tão distante, como Eustácia se sentia


entorpecida. — Eu também não acredito... mas lembre-se da
história dele. E que ele ainda luta contra a subjugação de Lilith; as
mordidas dela ainda ardem nele. É uma batalha horrível para ele,
que tanto pode elevá-lo como enfraquecê-lo, de maneira inesperada.

— Ele aprendeu a se distanciar disso. Às vezes.

— Eu sei disso. Ele é um homem tremendamente forte. Mas


temo que, se algum Venador pudesse voltar-se para a Tutela, ele
seria um provável candidato, não fosse por outro motivo senão seus
laços com Lilith, por mais horríveis e indesejáveis que sejam. Desde
que ela o atacou pela primeira vez, anos atrás, aquelas mordidas
não se curaram, e ela tenta exercer seu controle sobre ele. No ano
passado, quando ela se alimentou dele, de novo, aquilo apenas
fortaleceu os laços. Ele tem conseguido resistir, mas qualquer coisa
pode acontecer. Não há absolutos. Não obstante sua grave
declaração, ela parecia serena e etérea como sempre foi; da mesma
forma que tinha sido desde o dia em que Eustácia a conhecera,
aproximadamente 60 anos atrás.
Ela não tinha ideia de qual era a idade de Wayren nem era
importante saber isso. Ela apenas sabia que, de alguma forma,
Wayren sempre estava lá, quando ela precisava. Era a pessoa mais
sábia que ela conhecera e nunca mentia. Ao contrário do que ela
acabara de dizer, aquilo era um absoluto.

Wayren vira muita coisa ao longo dos anos; talvez nada fosse
chocante para ela.

— É possível que ele venha procurá-la, depois de saber que


Vitória está em Roma. Deve haver uma razão por que ele não quis
falar com ela. — Seus pálidos cabelos loiros, que emolduravam seu
rosto, presos em quatro tranças tão finas como um dedo de criança,
caíam sobre seus ombros e colo. As tranças estavam amarradas
com delicadas correntes de ouro e, de cada uma, pendia uma pérola
do tamanho de uma ervilha.

Eustácia assentiu, sentindo-se velha e deselegante. — É


possível. Você descobriu mais alguma coisa que possa nos ajudar?

E sabe onde está Lilith?

Wayren remexeu em sua sempre presente bolsa de couro e


tirou um maço de papéis enrolados. Colocando os óculos quadrados
que ela sempre usava quando lia naquela posição, começou a virar
as páginas.

Eustácia não pôde evitar um sorriso. Se havia pensado que a


idade distorcera sua memória, isso não podia ser comparado ao que
acontecia com Wayren, que havia muito mais tempo dependia
demais de suas anotações diárias e textos que escrevia para si
mesma, durante as sessões de pesquisa.

— Não acredito que Lilith esteja diretamente envolvida nessa


trama com Nedas; caso esteja, ela não se encontra aqui na Itália.
Ainda está escondida nas profundezas das montanhas da Romênia,
com uma cidade inteira dos vampiros. Tenho certeza de que ela já
deve estar ciente de que Nedas encontrou o Obelisco de Akvan e
que pretende ativá-lo. Afinal de contas, ele é seu filho. Eles têm
formas de comunicação, tal como nós.
Seu sorriso triste revelou três pequenos vincos, perto de seu
queixo. — Pelo que tenho descoberto, desde que cheguei,
Beauregard e seus vampiros foram preparados para derrubar
Nedas, aqui na Itália, mas depois que ficou notório que o filho de
Lilith estava com o Obelisco, Beauregard foi forçado a recuar.
Imagino que ele esteja esperando para ver o que acontece, antes de
declarar sua lealdade... ou tentar roubar o objeto dele.

— Beauregard é inteligente e tem mais experiência, mas


Nedas é filho de Lilith. Dio mio, nós não podemos permitir que
nenhum dos dois fique com ele. Wayren, se nós não conseguirmos
pará-los, pode acontecer outro panorama como o de Praga.

— Rezo para que não ocorra. Vinte mil pessoas foram


massacradas pelos vampiros e pela Tutela.., aqui em Roma. Eles
certamente terão como alvo o Vaticano, bem como o nosso Consílio
e tantos mortais quantos forem possíveis. Seria devastador. —
Wayren olhou para ela e Eustácia viu compreensão nos olhos dela.

— Você está pensando na profecia de Rosamund, não é? O,..


hummm... — Ela se inclinou para escarafunchar novamente em
sua mochila, de onde tirou cinco livros grandes, de vários
tamanhos, formas e condições e que provavelmente não poderiam
caber ali, mas de alguma forma couberam.

— . . .A Idade de Ouro do Venador pode terminar aos pés de


Roma. — Eustácia conferiu as palavras que jamais esquecera. Uma
frase curta, uma das muitas que ela havia lido ao longo dos anos,
estudado, analisado.., mas nenhuma delas havia permanecido com
ela, ressoado em seu íntimo, como essa.

Os apagados olhos cinzentos, cercados por lentes quadradas,


se encontraram com os negros, aguçados. — Isso pode não
significar nada, Eustácia.

— É possível. Mas temo que essa possa ser nossa última


batalha. Rosamund foi agraciada com muitos dons, dos quais os
últimos foram seus escritos místicos. — Ela agarrou com firmeza
seu vestido cor de corvo, que usava por causa da idade.
— Nossa única esperança é impedir Nedas de ativar o
Obelisco de Akvan, ou, então, de alguma forma, roubá-lo.

— A única coisa que sabemos, com certeza, é que ele ainda


não terminou de ativá-lo completamente. Está esperando por algo
— o tempo certo ou alguma outra coisa que deseja — ou já teria
feito.

— Eu preciso me juntar a Vitória; ela não pode fazer isso


sozinha.

Wayren a fitou com olhos que mudaram de cor, do pálido


pedra da lua para o brilhante, buliçoso safira, em uma piscada. —
No momento em que houver uma conexão entre você e Vitória,
quaisquer chances que tivermos deixarão de existir. No exato
segundo em que você ingressar em uma reunião da Tutela ou
estiver na presença de Nedas, isso vai acontecer. Você vai virar
lenda.

— Acha que sou velha demais para lutar? — Doeu ouvir o


que Wayren tinha a dizer. Mesmo sabendo que era verdade.

— Um Venador nunca é velho demais para lutar. Mas há


como aproveitar melhor você e sua experiência, do que anunciar
nossas intenções com sua presença. Eustácia, eu amo você. Mas
isso é algo, Vitória, que terá de fazer sozinha.

— Sozinha? Por Deus do céu... não, vou convocar o Consílio.


Talvez Vioget possa ser convencido a ajudar. Vai chegar a hora em
que ele terá de escolher um dos lados.

— Talvez aceite. Talvez não. Eu não acredito muito nele.

Nenhuma delas mencionou Max.

O teatro não era diferente daqueles que Vitória frequentava


em Londres: opulento, ornamentado e repleto de membros da alta
sociedade vestidos com o que tinham de melhor, mais interessados
em verem e serem vistos do que realmente em assistir à ópera.
A carruagem com as gêmeas Tarruscelli e o barão Galliani
viera buscá-la, e ela se sentara ao lado dele, para sua evidente
satisfação. Ele a cumprimentara, imediatamente se desculpando
por não tê-la visitado antes e disse que sabia que ela estivera
doente.

Durante o trajeto, Vitória permitiu que ele fosse tão solícito


como quisesse e, mais de uma vez, percebeu os olhares
especulativos de Portiera e Placidia. Ela sorriu discretamente,
quando ele fez um verdadeiro espetáculo ao tomar seu braço e o de
uma das gêmeas — ela não notou qual delas — e conduzi-las pela
entrada do teatro até o camarote de Regalado.

Dentro do pequeno e sombrio cômodo que ficava suspenso


bem à esquerda do palco, a uma altura de aproximadamente dois
homens e suficientemente próximo para que Sara pudesse ver até
os detalhes dos botões de cada uma das roupas, o conde Regalado e
sua filha estavam aguardando seus convidados.

— Que gentileza a sua de estar conosco o conde Regalado


disse com um sorriso que fez com que Vitória se lembrasse de
melado. Ele se curvou, pegou cada uma das mãos enluvadas das
gêmeas e as beijou. Em seguida, ele se virou para ela e se inclinou
mais uma vez, pegando sua mão da mesma maneira, mas sem
liberá-la, após o beijo. — Senhora Withers, estou particularmente
satisfeito de que você tenha aceito o convite de minha filha, para
esta noite. Para minha consternação, nós não tivemos muita
oportunidade de conversar durante o lançamento de minha obra de
arte.

— Conde Regalado. Vitória fez uma reverência, quando ele


segurou sua mão como se não estivesse disposto a devolvê-la —
Nem consigo externar como foi agradável ser tão bem recebida aqui
em Roma, por você, sua família e amigos. Não tive a oportunidade
de lhe dizer quão fascinante achei sua pintura. — Fascinante,
definitivamente, era uma forma de descrever o homem que pintara
os mamilos de sua filha.

— Espero que eu possa convencê-la a posar para mim, um


dia. Eu acredito que você daria uma adorável Diana.
A caçadora. Muito apropriado. — Eu ficarei muito lisonjeada
em aceitar seu pedido —Vitória respondeu, imaginando se a
imagem dele de Diana incluiria a mesma roupa transparente que
envergam suas Parcas.

—Emmaline! — Sara havia cumprimentado as gêmeas e


agora abria caminho entre seu pai e Vitória, para saudá-la. — Você
tem de sentar a meu lado, para que possamos conversar. Padre,
desculpe-nos, por favor.

— Boa-noite, senhora Twitters, não é? — A voz profunda de


Max surpreendeu Vitória. Ele estava em pé, ali ao lado, em meio às
sombras, onde não podia ser facilmente notado. Ela tinha certeza
que ele fizera de propósito, justamente para provocar aquele efeito.

— Max, pare de brincar. Você é ridículo. Claro que se lembra


do nome dela. Esta é a senhora Withers; com certeza você se lembra
de tê-la encontrado na apresentação do papai, não é?

— Obviamente. — Mas a afirmação dele tinha um acento de


incerteza, e Vitória teve vontade de estapear aquele sorriso
indolente no rosto dele. Mas então, quando ela levantou a face para
fitá-lo, ficou tão chocada com a animosidade que observou em seus
olhos, que quase deu um passo atrás.

Vitória se virou para Sara e perguntou alegremente: — Você


consultou seu noivo sobre certa rosa?

— Não, eu esqueci. — Sara se virou para Max, agarrando seu


braço, e olhou para ele com um sorriso ingênuo. — Silvio, il
malfattore” — ela riu quando usou o adjetivo, para afastar qualquer
sinal de insulto em relação a seu primo — decidiu mudar o nome de
minha rosa, para batizá-la de Emmaline, e então ela sugeriu que
você poderia plantar uma para mim. E eu disse a ela que tinha
certeza de que você concordaria. — Vitória observou, admirada,
enquanto ela piscava com insistência.

Max ergueu as sobrancelhas e olhou para Vitória. — É


mesmo?

— Bem, na verdade, não foi exatamente como aconteceu, mas


— ela inclinou a cabeça para um lado como se estivesse avaliando a
capacidade dele — acho que estar cercado por flores e escavar a
terra pode lhe cair muito bem.

Foi tão rápido, que Vitória não tinha certeza de ter visto,
mesmo; porém, ela poderia jurar que havia um toque de humor ou
admiração ou algo que aliviou a dureza ali presente, algo do velho
Max... mas aconteceu tão depressa, que ela talvez estivesse
enganada, porque aquele olhar terrível e arrogante estava de volta.
— Compreendo. Bem, adorate mio, por você eu levaria isso em
consideração.

Naquele momento, a porta do camarote se abriu de novo e


Sebastian entrou. — Lamento profundamente por meu atraso — ele
disse, perscrutando o pequeno recinto com o olhar.

Ele parecia encantador — sua vasta juba de leão penteada


cuidadosamente de maneira a deixar a testa descoberta e
ondulando sobre a nuca e as orelhas. Vestia uma jaqueta de cor
topázio brilhante com calças de montaria de ferrugem escuro, a
gravata ostentava um desenho bem masculino em tom de cenoura,
cáqui e dourado; e o traje completo, como sempre, tinha um corte e
um acabamento perfeitos. E... seu sorriso.., ah, a maneira como
seu lábio superior projetava uma sombra sobre o inferior e o sinal
de uma linha tão peculiar em um canto...

Vitória sentiu o calor subir de seus seios ao pescoço e às


faces, em uma grande onda. Ela não o vira nem soubera dele desde
seu erótico encontro na noite da festa. E tudo em que ela conseguia
pensar era no que suas mãos e dedos provocaram nela. E no que
ainda estava inacabado entre eles.

— Senhora Withers, está se sentindo mal? Parece que está


um pouco... vermelha. — De alguma forma, Max se aproximara por
trás dela, e quando ele falou em seu ouvido ela quase saltou. De
novo. — É meio desconcertante quando as pessoas aparecem onde
não deveriam e não são bem-vindas, não é mesmo?

Vitória engoliu em seco e virou a cabeça o suficiente para ver


o quão perto estava a gravata de seda azul e cinza dele. Quase
roçava em seus ombros. — Eu não tenho ideia do que você quer
dizer — foi tudo o que lhe veio à cabeça, para retrucar.
Naquele exato momento, ela se virou para trás e se deparou
com o tal homem, bem diante dela. — Senhora Withers, como estou
encantado em vê-la, novamente. — Havia tantas nuanças no tom
com que Sebastian se dirigiu a ela, que não tinha certeza se deveria
corar ou estapeá-lo.

— É, de fato — respondeu com uma reverência, e lhe


permitiu beijar sua mão enluvada. Mas, quando ele a soltou e ela
puxou a mão, a luva se desprendeu e ficou balançando na mão
dele, como uma gravata afrouxada.

— Ah, querida... — disse Sebastian, olhando para ela. — Você


tem uma tendência a perder suas luvas, não é mesmo?

Na certa, ele estava se referindo ao momento em que ele


havia tirado outra de suas luvas, quase da mesma forma. Aquela
que ele jamais devolvera. — Eu ainda tenho uma luva sem par —
Vitória respondeu suavemente — e espero que você não me faça
perder outra.

—Mas se assim for, você pode juntar sua luva solitária com
esta e terá um par completo. E então... bem... talvez eu encontre
uma companheira para esta, também. — E a colocou em seu bolso.

— Boa-noite, Maximilian.

—Sebastian. — Max fez um movimento de cabeça frio e


indiferente e se afastou.

Vitória não podia dizer mais nada sobre sua luva sem chamar
atenção, então teve de se contentar com um olhar fulminante na
direção de Sebastian e tirar sua outra luva, o que,
afortunadamente, não era um crime tão grave como seria em
Londres. Os italianos são um pouco menos rígidos sobre essas
convenções do que os ingleses.

Sebastian olhou para ela com uma expressão afável e depois


se voltou para conversar com as gêmeas Tarruscelli, que haviam
ficado bem alegres (tal como se evidenciava pelo fato de estarem,
com certa elegância, batendo palmas e dando gritinhos) com sua
chegada.
Ela ficou se perguntando, por um breve instante, se
Sebastian havia cumprido sua ameaça de recorrer a Portiera e
Placidia, após aquele tête-à-tête na sala, entre eles, e que tanto
deixara a desejar.

Como Vitória lançou um dissimulado olhar para ele, naquele


momento ladeado por duas beldades de cabelos escuros e suas
verrugas-espelho nas bocas, ela se deu conta de que a ideia não lhe
agradava de jeito nenhum. De fato, fez com que ficasse bastante
inquieta.

E irritada.

Na verdade, ficou brava a ponto de pensar na velha retaliação


feminina, de usar as unhas para arrancar fora aqueles lindos
olhinhos. Claro que, sendo uma Venadora, provavelmente ela
arrancaria muito mais do que de costume, e a coisa ficaria mais
confusa do que habitualmente...

— Senhora Withers, tem certeza de que está se sentindo


bem? Talvez seja obrigada a retornar à sua casa; vejo que ainda não
se recuperou de sua enfermidade. Esse tipo de desconforto, muitas
vezes acontece às pessoas quando elas se envolvem em uma
situação indesejável. — Max, de novo. Ele ficou olhando para ela
com uma expressão insossa e ela percebeu que os demais estavam
se preparando sentar-se.

Ela foi salva da vergonha de não ter uma resposta na ponta


da língua — as coisas estavam de tal modo de cabeça para baixo,
que sua mordacidade desaparecera — pela aproximação do conde
Regalado.

— Senhora Withers, posso acompanhá-la até sua cadeira? —


ele perguntou, deslizando o braço na dobra do cotovelo de Vitória.

— Eu ficaria encantada — deu uma olhada por cima de seu


ombro, enquanto se afastavam. Não foi sua melhor réplica, porém
tinha sido sua a última palavra.

Mas quando o conde Regalado a conduziu à fila da frente e se


sentou a seu lado, ela percebeu que Max e Sara se acomodaram
atrás deles e ouviu a inocente pergunta dele: — E quando é que sua
amiga vai retornar a Londres, minha querida? Tenho certeza de que
não pode ser muito em breve.

Galliani se sentou ao lado de Vitória com uma leve reverência


e segurava uma das gêmeas Tarruscelli pelo braço... Portiera, ela
poderia adivinhar pelo azul centáurea de seu vestido. Ela sempre
usava a cor mais escura. Atrás deles sentaram-se Sebastian com
Placidia, de azul-celeste.

Assim, Vitória estava, de fato, cercada por um conjunto de


homens: um insuportavelmente grosseiro, um pai que pintou os
seios de sua filha detalhadamente e que tinha o hábito de manter-
se na companhia de vampiros, um barão que cultivava rosas, e um
que a fizera suspirar e tremer de paixão poucos dias antes e que
agora estava flertando com outra mulher.

O conde Regalado pediu sua atenção, fazendo-a lembrar de


seu plano de flertar com ele, na esperança de obter mais
informações sobre a Tutela. — A ópera está prestes a começar — ele
disse. Cheirava a vinho e lavanda. — Espero que você goste.

Era uma ópera demorada. O camarote ficou morno. E Vitória


ficou inquieta. Ficava se perguntando por que decidira vir, afinal de
contas. Principalmente, para que pudesse encontrar Max de novo,
na esperança de ter uma oportunidade de falar com ele; mas isso,
obviamente, não ia acontecer.

No final do primeiro ato, ela ouviu um movimento lá atrás e


olhou naquela direção, a ponto de ver Sebastian levando Placidia
para fora do camarote, a cabeça dele se inclinando solicitamente em
direção do rosto dela, enquanto eles abandonavam o recinto
sufocante.

Infelizmente, não se tratava de um intervalo formal, senão


Vitória poderia ter ido com eles. Mas, na situação em que estava,
pareceria estranho que ela insistisse em acompanhá-los.

Se soubesse que Sebastian estaria lá, ela teria ficado em


casa, apenas para evitar o constrangimento.

Não, por outro lado ela teria vindo de qualquer forma, porque
não parava de pensar nem em sua boca sensual e em seus dedos
habilidosos, e no fato de que era uma pena que ele tivesse sido tão
frio e convencional com ela. E que preferisse ficar sentado ao lado
de uma das gêmeas. Além de acompanhá-la até lá fora.

Então, de repente, sua mente se aguçou, em alerta, e ela


notou que a parte de trás do seu pescoço ficou fria. Os pelos
estavam se eriçando, como se uma brisa fresca estivesse passando
sobre eles. Vampiros.

Em algum lugar próximo. Um, talvez dois.

Vitória prendeu a respiração, manteve a atenção focada no


palco. Pensando. Tinha de fazer alguma coisa.

Embora tia Eustácia tivesse insistido com ela sobre a


importância de não deixar transparecer sua condição de Venadora,
Vitória não foi autorizada (por Verbena) a sair da vila sem uma
estaca, introduzida em uma de suas ligas, sob o vestido.

O segundo ato estava começando; a cortina acabara de subir.


Não haveria um próximo intervalo senão no fim desse ato, o que
poderia ser daqui a uma hora. Ela não podia esperar tanto. A
sensação foi ficando mais forte.

Max deveria estar sentindo, também.

Ela se mexeu na cadeira, tentando descobrir um jeito de fazer


contato visual com ele, bem atrás dela, e acabou esbarrando no
braço de Galliani.

— Está se sentindo mal? — ele murmurou, inclinando-se em


sua direção. — Gostaria de tomar um pouco de ar?

Obrigada. Ela concordou com a cabeça e respondeu: — Isso


seria maravilhoso. — Ela poderia se afastar de Galliani, quando
estivessem lá fora, para ver o que estava acontecendo. Vitória
começou a se levantar, mas não conseguia. Algo estava prendendo
seu vestido. Pela parte de trás. Embaixo do banco.

O conde Regalado estava olhando para ela, agora. — Algum


problema, senhora Withers? — ele perguntou, colocando uma
pesada mão em seu braço.
— Eu apenas... senti necessidade de tomar um pouco de ar.
Está tão abafado aqui. O senhor Galliani foi muito bondoso, ao se
oferecer para me acompanhar. — Ela tentou levantar, de novo, e
notou que não dava.

Galliani estava esperando; ele a observava com ansiedade.

Seu pescoço estava mais frio; calafrios começaram a subir ao


longo de seus ombros, indicando que o vampiro estava cada vez
mais perto.

No palco, a diva começou a cantar, com sua voz clara e


verdadeira, as mãos rechonchudas repletas de anéis e braceletes.

Vitória teve de resistir à necessidade premente de se virar


para Max e ordenar que ele soltasse seu vestido. Queria fazer isso,
mas algo a segurava de volta.., além da pressão dele.

Ele estava tentando fazer com que ela não se movesse por
alguma razão.

Tia Eustácia havia recomendado que ela não revelasse que


era uma Venadora, mesmo diante da aproximação do perigo. Ela
teria de deixar que a ameaça seguisse seu curso, tinha de ignorá-la.

Mas como poderia?

Galliani a cutucou, delicadamente. — Senhora Withers?


Mudou de ideia?

— Estou me sentindo melhor, agora — ela respondeu


relutantemente, tomando a decisão de seguir a ordem de tia
Eustácia. Seu estômago estava estranho, como se estivesse, de
repente, cheio de um líquido espesso e pesado.

E se os vampiros tivessem atacado alguns dos espectadores e


ela nada fizera? Ela conseguia ficar sentada ali, deixando que
acontecesse? Será que teria capacidade de tal discernimento?

O frio aumentou e Vitória introduziu os dedos nas dobras de


sua saia, amassando a seda suave e olhando direto para o palco,
abaixo, sem ver nada, sem ouvir nada, sem se dar conta de nada,
além do crescente frio na parte de trás de seu pescoço.
E então a porta do camarote se abriu.

Dois homens entraram.

Seus olhos não eram vermelhos, suas presas não estavam


visíveis, mas Vitória sabia que eram vampiros.
18
Uma interrupção muito bem-vinda

Os vampiros eram semelhantes a quaisquer outros


cavalheiros, vestidos para a ópera com casacos escuros e calças de
montaria marrons ou castanho-amareladas, devidamente
paramentados com luvas e gravatas. — Recebam nossas desculpas,
por chegar tão tarde — disse um deles, com uma reverência dirigida
ao conde Regalado, que se levantara para cumprimentá-los.

Não homens, vampiros.

Vitória permaneceu em sua cadeira, voltada para a ópera,


observando e aguardando. Seus nervos formigavam e a nuca estava
eriçada. Seus dedos estavam coçando, dispostos a puxar a estaca
presa sob seu vestido.

Havia uma sensação de expectativa no ar e ela não sabia para


onde olhar. Max deliberadamente se recusou a virar-se em sua
direção, quando se levantou e cumprimentou os recém-chegados.
Regalado e Galliani pareciam encantados em recebê-los.

O que isso tudo significava? Regalado sabia que eram


vampiros? Com certeza, um poderoso membro da Tutela saberia,
sim.

— Senhora Withers, permita-me apresentá-la a um conhecido


meu... o senhor Partredi.

O vampiro se inclinou, pegou a mão dela, surpreendente-


mente morna, e a elevou até seus lábios.
— Com certeza é um prazer conhecê-la. — Estando
familiarizada como vampiros, ela leu uma mensagem inteiramente
diferente nos olhos dele. E não era prazerosa de jeito nenhum.

Para sua surpresa, ele sentou-se a seu lado, na cadeira que


havia sido desocupada por Galliani. Regalado voltou a seu lugar e lá
estava ela, imprensada entre um vampiro e um líder da Tutela.

Quando o segundo vampiro escolheu o lugar atrás dela. onde


Max estivera, ela se sentiu ainda mais encaixotada. Cercada pelo
perigo, por todos os lados. E nada podia fazer. Vitória não sabia ao
certo onde Max estava e, claro, Sebastian ainda não retornara, com
Placidia. Ela não se atreveu a virar-se para dar uma olhada no
camarote. Devia manter a aparência de que nada estava fora do
normal.

Enquanto a ópera seguia, com uma ária após a outra, ela


refletia sobre aquela terrível noite da reunião da Tutela; relembrou
o horror de estar sendo controlada, atacada por todos os lados, o
aumento do fluxo de sangue sob os dentes dos vampiros. Sua
mente ficou leve, tranquila... seu pulso mais lento; ela precisava
piscar para manter o foco. O camarote tornou-se quente e
sufocante. Vitória fechou os pulsos, enterrando as unhas nas
palmas das mãos, usando a dor para afastar aquela suave calmaria
que ela começou a sentir. Sentada perto de um vampiro, sentindo a
manga de seu casaco roçar contra seu braço nu, permitindo que a
presença dele mergulhasse em seus sentidos... era um jeito
diferente de se deixar encantar. Incomum, porque na maioria das
vezes em que ela enfrentou um vampiro era um momento de muita
ação, movimento, batalha.

Esse era um tipo distinto de batalha. De vontades.

Até agora, na verdade, tinha sido fácil. Os vampiros não


fizeram ameaças, nem tentaram ferir ninguém.

Ela podia permanecer sentada e concentrar sua energia no


combate às sutis tentativas de capturar sua consciência, fingindo
que assistia à ópera e talvez, apenas talvez, isso acabaria ali.
Mas houve um raro e breve momento de silêncio no palco,
durante o qual as esperanças de Vitória capitularam. Seus ouvidos
captaram um suave suspiro engasgado e ela sentiu os pelos de seu
braço se arrepiarem, enviando uma onda de agulhadas sobre sua
barriga.

Ela se virou na cadeira. Ali atrás, o vampiro que tomou o


lugar de Max também ficara ao lado de Sara. Quando Vitória olhou,
a verdade do que estava acontecendo tomou de assalto todos os
seus sentidos, no mesmo instante: o cheiro de sangue fresco, o
fraco, bem fraco sibilar da sucção, o tom opaco do alvo pescoço de
Sara e seu seio meio exposto, com um filete de seu próprio sangue
escorrendo e o renovado fluxo de sensações ao longo do corpo de
Vitória.

Ela desviou o olhar, os olhos se distanciando da cena que


parecia mais sensual do que terrível, e se depararam com os de
Max. Ele estava perto da porta, na parte de trás do camarote, em
uma atitude que lhe pareceu totalmente desapaixonada. Quando
seus olhares se encontraram, ela procurou por alguma coisa ali,
algum sinal ou significado... mas ele apenas ergueu as
sobrancelhas daquele jeito sarcástico, tão dele e, casualmente,
desviou seu olhar.

Aparentemente, ele não se interessava o mínimo pelo fato de


sua noiva estar sendo atacada por um vampiro. Do outro lado do
vampiro Partredi, Portiera estava observando a apresentação, sem
dar o menor sinal de que soubesse o que acontecia atrás dela.

Vitória se acomodou na cadeira e voltou à ópera. Seu coração


estava disparando. Ela se obrigou a refletir sobre tudo o que estava
acontecendo, embora todos os seus instintos a encorajassem a
agarrar a estaca e enterrá-la no peito da criatura que estava
sugando Sara.

Mas Sara não estava lutando. Não tratava de se defender.


Não emitia outros sons senão suspiros e gemidos leves, que mais
pareciam em resposta a um amante do que a alguém que a
estivesse atacando. Não precisava da ajuda de Vitória. Não estava
sendo mutilada ou destroçada. Um vampiro podia se alimentar sem
ferir permanentemente uma pessoa, como Vitória bem sabia.

Podia deixar para lá. Em sã consciência, ela não deveria agir.

Passando a língua nos lábios, ela tentou acompanhar a


ópera, na esperança de não ouvir os sons atrás dela. De não sentir
o puxão, o incessante puxão daquele que estava perto dela.

Ela notou o momento em que o vampiro às suas costas


terminou de se alimentar e se preparou para o que aconteceria a
seguir.

Partredi colocou a mão em seu pulso, segurando-o contra o


braço da cadeira. Vitória ficou sem fôlego. Ela era forte, podia se
safar... mas deveria?

Então, do outro lado dela, Regalado cerrou os dedos sobre


seu outro pulso. — Agora, apenas relaxe, minha querida —
murmurou em seu ouvido. — Você vai achar tão agradável como
parece à minha filha.

Seu coração pulsava acelerado, no peito. Vitória sentiu sua


respiração dar uma pausa, enquanto algo acontecia à sua frente
para obliterar o palco lá embaixo... alguém estava fechando as
cortinas do camarote.

Max.

Ela ficou tensa na cadeira, imóvel, incapaz de se mover, com


palpitações e respirações muito curtas.

O vampiro ao lado dela se virou, mostrando-lhe os olhos


vermelhos, e ela se sentiu enfraquecer quando foi capturada por
eles. Respirações profundas. Olhos fechados.

Tentou, mas descobriu que era impossível quebrar aquela


conexão. Tentou libertar os pulsos, da pressão do vampiro e de
Regalado, mas de algum jeito eles a mantiveram cativa. Sua força
estava minguando, mas ela ainda era uma Venadora. Podia lutar.

Mas tinha de deixar aquilo acontecer. Tinha de obedecer à tia


Eustácia. Se lutasse, sua poderosa energia e suas habilidades de
luta seguramente a libertariam. Ela já havia sido mordida, antes;
ficaria curada rapidamente.

Max estava ali. Com certeza, não deixaria que eles realmente
a ferissem.

Algo agarrou sua cabeça por trás, os dedos mergulhando no


penteado de tranças, arrumadas quase no topo, e puxando-a para
trás, ao mesmo tempo em que a inclinava fortemente para um lado.
O hálito com odor de sangue, do outro vampiro. Flutuava sobre seu
rosto virado. Seu pescoço estava nu, e ela sentiu Partredi mover-se
em sua direção, mudando de posição no assento ao lado dela, o
joelho dele batendo em sua perna. Ele usou o peso para manter o
braço dela seguro e, assim, chegou mais perto e trouxe aquelas
presas brilhantes até sua vulnerável garganta.

Seu pulso batia mais forte, ela tentou girar, de alguma forma
permanecendo em silêncio... sem saber se era ou não proposital.

Seus olhos se cerraram. Os dentes arranhavam suavemente


sua pele. Ela não podia mais controlar o impulso de lutar;

retesou-se tentando se safar e percebeu que não conseguia.


Os sons da orquestra, os murmúrios no recinto, tudo desapareceu.
até que só o que podia ouvir era a respiração do vampiro, misturada
com a sua. A pulsação dele também acompanhava a dela.

A cabeça de Vitória foi mantida firmemente, enquando seus


braços, suas pernas, tudo foi rapidamente subjugado por dedos
implacáveis.

O hálito dele era frio contra sua pele, congelando sua


garganta e a parte de trás de seu pescoço. Ele suspirou e cravou
suas presas nela.

— Pare. — De alguma forma, a palavra penetrou em seu


aturdimento.

Houve uma pausa, um lapso no movimento do vampiro...


então, subitamente, ela foi libertada; o jugo foi quebrado. O peso
saiu de cima dela. Conseguiu respirar. Focar.

— Este é meu — a voz prosseguiu.


Ela reconheceu o tom... o rosto, quando entrou em seu
campo de visão. Sebastian retornara.

Os vampiros a soltaram, a partir de uma ordem dele?

Ele aparentava estar calmo e ter absoluto controle, mas os


vampiros pareciam envergonhados, enquanto se afastavam dela. —
Vioget! Nós não sabíamos... — disse Partredi.

Regalado estava paralisado. — O que? O que está


acontecendo

— Ela não é para vocês — Sebastian disse a ele, friamente.

— Eles não vão tocar nela. — É minha!

Os olhos escuros de Regalado ardiam em fúria. —Você não


tem autoridade, aqui!

Sebastian levantou uma sobrancelha. — Se esse fosse o caso.


por que eles se afastaram ao meu comando? Você não quer me
irritar, Regalado. A Tutela não deseja contrariar Beauregard Ou
será que pretende?

— Beauregard? — Regalado recuou. — Como é que você...

— Deem o fora — Sebastian ordenou aos vampiros, ignorando


a pergunta gaguejada por Regalado, como se ele fosse uma criança
de dois anos de idade.

Os vampiros fizeram uma reverência para ele, quando


saíram, e, para seu espanto, Vitória notou que alguém — Max? —
havia reaberto as cortinas do camarote. A orquestra continuava a
tocar, o coro seguia cantando.

Ela não sabia o que pensar. Para onde olhar. Ou a quem.

Como se sentia ao ser chamada de “minha” por Sebastian.

Com certeza, isso provavelmente era só para causar um


efeito. Mas ainda ecoava em sua mente, junto com o fato de ter sido
mordida de novo. Felizmente, foi uma mordida superficial; quase
imperceptível. Um ligeiro filete de sangue descia de seu pescoço.
Sorrateiramente, Vitória abriu o pequeno frasco de água-
benta que mantinha em uma bolsinha e empapou seu lenço com
ela. Enquanto pressionava o tecido contra o ferimento, sentindo
bastante a água salgada, fez um balanço dos outros ocupantes da
sala, para verificar quem permanecia ali.

Sara estava sentada em sua cadeira, com olhos vidrados e


segurando um lenço branco junto ao pescoço. Parecia nem notar
Vitória, ou, se a estivesse vendo, não se importava com isso.

Galliani e Max permaneciam no fundo do camarote, em meio


às sombras. Regalado olhava para Sebastian, mas não fez mais
nenhum comentário. Sentado em seu lugar, parecia menos com um
protetor de vampiros do que com uma criança emburrada, cuja
brincadeira havia sido interrompida. Placidia ficou atrás de
Sebastian, como se eles tivessem acabado de entrar no recinto e ele
tivesse dado um passo adiante dela. Portiera estava perto de sua
gêmea.

Vitória olhou para Sebastian, que a fitou de um jeito que

revelava mal poder esperar pelas perguntas que, sabia, se


passavam em sua mente, porque não as responderia.

Ela já podia imaginar que tipo de compensação ele tentaria


extrair dela.

O que mais ela poderia fazer? Afundou-se em sua cadeira


para acompanhar o resto da ópera, aliviada por ter se safado da
situação sem que ninguém desconfiasse de sua condição de
Venadora. Mas, enquanto permanecia ali sentada, notou,
tardiamente, que a sensação de frio em sua nuca não passara. Sua
persistência indicava que os vampiros ainda estavam próximos.

E, como se fosse para confirmar essa sensação, poucos


momentos depois alguém gritou. Foi um grito horrível, assustador.

Vitória saltou de onde estava. Felizmente, não foi a única no


camarote a reagir dessa maneira, e Sebastian estava a seu lado.
deslizando a mão em seu braço, como se quisesse mantê-la junto
de si. Ou segurá-la.
Ouviu-se outro grito, talvez um pouco mais próximo, vindo da
passagem bem atrás de seu camarote. Mais alguns gritos. A diva
continuou a cantar. A orquestra prosseguiu tocando. O frio na
parte de trás do pescoço de Vitória não diminuirá.

— Quem é? — gritou Portiera, agarrando Galliani. — Alguém


está ferindo a moça!

— Alguém está sendo machucado — ecoou Placidia, puxando


o outro braço de Sebastian.

Com Portiera a reboque, Galliani abriu a porta do camarote e


deu uma olhada lá fora. — Não vejo nada!

Houve outro grito, mais alto, agora que a porta estava aberta.
Vitória se libertou de Sebastian, pois todas as suas reflexões a
respeito de seguir os alertas de tia Eustácia evaporaram,
subitamente. Ela se movimentou entre as cadeiras, procurando pela
porta e foi pega pelos olhos escuros de Max. Quando viu a sombria
expressão no rosto dele, parou.

Enquanto ela agarrava o espaldar de uma cadeira forrada de


veludo, perto dela, tentando decidir o que fazer, deu uma olhada
para o conde Regalado. Ele estava encostado em uma parede lateral
do camarote, perto das poltronas. Indiferente. Observando-a.

Vitória respirou fundo e apertou mais os dedos contra o


estofamento aveludado, ancorando-se ali.

Mas estava em dúvida. Precisava sair do recinto. Os vampiros


tinham sido mandados embora por Sebastian... apenas para causar
estragos em outro lugar.

Os sons de gritos e pés correndo aumentaram; mesmo assim,


a ópera continuava. Talvez os artistas não pudessem ouvir, porque
estavam longe e cercados pelo som da orquestra. Mas a sensação
era estranha — de um lado do camarote, havia uma bela música,
do outro, sons de terror e pânico.

— Alguém precisa fazer alguma coisa! — Placidia chorava.

— Eu não quero permanecer aqui... e se for um incêndio? Ou


bandidos! Não quero ficar presa! — Sua voz se elevou em uma
espiral de tensão, enquanto ela olhava para Sebastian.
Aparentemente, não estava preocupado com vampiros.

Vitória aproveitou a oportunidade e levou as costas de sua


mão

à testa, como ela vira sua mãe fazer, quando se queixava de


febre.

— Estou me sentindo muito quente — disse, com uma voz


lamentosa. — Senhor Vioget, acho que vou precisar de sua
companhia para sair deste camarote. Você me protegerá, não é
mesmo?

E, antes que ele pudesse responder, ela deslizou seu braço


pelo cotovelo dele e começou a dirigi-lo, delicadamente, para a
porta. Ouviu as outras mulheres falando, mas Vitória e Sebastian,
junto com Placidia, já estavam fora do camarote, na estreita
passagem que ficava atrás dos assentos inferiores do teatro.

Outras portas estavam se abrindo, pessoas saíam e olhavam


ao redor, com medo e preocupação, e o hall estava se enchendo de
gente.

A distância, Vitória ouviu os sons do caos — pessoas


correndo, gritos e berros e barulhos altos, que poderiam ser de
portas batendo ou grandes objetos caindo no chão. Tão logo saiu do
campo de visão da porta do camarote, e dos outros atrás dela,
Vitória se desprendeu de Sebastian e disparou pelo corredor,
misturando-se entre os outros espectadores.

Ela ouviu o grito atrás dela, mas não atentou para ele... o que
prendeu sua atenção foi o frio em seu pescoço, o barômetro que lhe
dizia onde os vampiros estavam.

No hall, na passagem que conduzia às portas de outros


camarotes, na escada que conduzia ao piso de entrada ... ou mais
acima, nos camarotes mais altos.

Vitória não pegou sua estaca, enquanto deslizava entre as


pessoas. Havia mais do que dois vampiros ali, ela calculou, e ficou
imaginando o que eles estariam fazendo — se arrebatando o maior
número de pessoas que pudessem, alimentando-se delas e depois
as largando, ou se as estavam levando como prisioneiras, para
nutrir-se mais tarde.

Então ela ouviu o berro. — Fogo!

Uma onda de gritos se expandiu pelo corredor estreito e as


pessoas começaram a se empurrar, forçando a passagem.

— Fogo! — ecoou em seus ouvidos, de cima abaixo e por todo


o teatro. A orquestra havia parado de tocar e os únicos sons
audíveis eram de choro e berros.

As pessoas estavam saindo, em massa, do prédio, o que era


bom. Lá fora, teriam mais chance de escapar de um ataque de
vampiros. simplesmente porque se dispersariam. Mas seu pescoço
ainda estava frio, portanto ainda havia vampiros nas proximidades.

Ela correu, descendo por uma das escadas, atenta a seus


instintos e na esperança de encontrá-los em algum lugar. Um leve
cheiro de fumaça lhe indicou que, realmente, havia fogo em algum
lugar da casa de espetáculos, mas Vitória ainda não estava disposta
a sair.

Ela não sabia por quanto tempo ficou abrindo caminho entre
aquele monte de gente nem mesmo, com exatidão, para onde se
dirigia, ao vagar para cima e para baixo das escadas, pulando
muitos degraus. Mas conforme o tempo foi passando, a fumaça
ficou mais densa e ela podia escutar partes do prédio caindo e o
abafado rugido das chamas.

Finalmente, ela escancarou uma porta e se encontrou no


camarote oposto ao de Regalado. Sabia que havia um vampiro ali
perto; olhou para cima e ao redor, até que o viu, abaixo, a três
camarotes de distância.

Ele estava se alimentando de um homem, quando olhou para


cima e a viu.

O reconhecimento foi instantâneo. Era o vampiro Imperial


que escapara depois de assassinar Polidori.
Você! — ele gritou, o sangue escorrendo em borbotões de sua
boca. — Pensei que estivesse morta! — Ele largou sua vítima e
pulou de um camarote a outro, subindo para que pudesse chegar
ao andar onde ela estava.

Vitória viu as chamas lambendo as cortinas a um braço de


distância, percebeu que o vampiro teria de dar apenas mais dois
saltos desumanos para alcançar seu camarote e tomou a decisão:
teria de enfrentá-lo.

Como ele a reconhecera, se conseguisse ir embora certamente


a denunciaria à Tutela. Então, tinha de lutar com ele.

Mergulhando a mão para alcançar a estaca sob suas saias,


não percebeu o movimento às suas costas até que foi puxada para
trás. Uma mão tapou sua boca e braços fortes a mantiveram presa,
na escuridão do camarote.

— Não — Max grunhiu no ouvido dela — lute.

Ela ouviu o vampiro se aproximar, lutou para contar a ele,


mas Max era forte e inflexível, de maneira que rápida e suavemente
a carregou para fora do camarote.

A fumaça ficara mais densa no corredor, mas Max corria e a


puxava atrás dele. Os olhos dela ardiam e os acessos de tosse se
sucediam, mas a situação ainda não estava tão perigosa assim. Ela
ainda podia respirar e enxergar. As chamas estavam distantes.

Max a empurrou para um lance de escadas abaixo, entrando


com ela em uma saleta, para silenciosamente fechar a porta atrás
deles. Ele a pressionou contra a parede, ficando às suas costas,
com a mão apertando firme sua boca, para impedi-la de falar. Ela
lutou para se livrar dele, mas ele não se movia, exceto pelo ritmo
arfante de sua respiração, atrás dela.

— Vá embora. Retorne a Londres. Você não pode fazer nada.


aqui. Nedas é forte demais. Ele vai ganhar. — Os lábios dele
roçavam em seu ouvido, enquanto falava. Ela tentou se
desvencilhar, de novo, tentando sua manobra favorita, de lançar a
cabeça para trás, de maneira que batesse no rosto dele, mas em
vão, ele se defendeu bem.
— Você entendeu? Balance a cabeça.

Ela assentiu e balançou a cabeça o mais que pode, sob a


pressão da mão dele. Os outros dedos dele estavam sujeitando os
dois pulsos dela, presos atrás das costas.

— Com certeza você não vai me dar ouvidos, não vai mesmo.
Você é danada de ingênua. E cabeça dura. Fique quieta. senão vou
machucar você — ele disse ferozmente no ouvido dela, antes de
libertá-la. Vitória girou e o encarou.

Havia uma janelinha na saleta, permitindo que entrassem


raios de luar suficientes para iluminar o rosto dele. Ela não
encontrou nada, ali que lhe desse conforto. Só dureza, raiva e
determinação; seus olhos, quase imperceptíveis, não passavam de
linhas finas.

— Talvez isto a convença de que sei o que estou falando. —


Ele abriu sua camisa desabotoada, arrancou-a pelos ombros
musculosos e se virou para que ela pudesse ver ‘a marca ali.

Era escura e forte, na parte de trás de seus ombros, bem


abaixo da escápula, e ela a reconheceu. O T com as serpentes
entrelaçadas.

— Veja por si mesma. Sou um membro da Tutela e aderi às


suas normas. Isso a convence? — Ele estava respirando fortemente,
agora, e se virou para encará-la. — Sou obrigado a assassinar
Venadores. Sou um deles.

— Não acredito em você. — Mas algo em seu interior estava


mudando. Eles estavam sozinhos. Ninguém podia ouvir. Por que ele
mentiria? — Se for verdade, você tem de me contar a razão.

Ele respirou profundamente e segurou-a pelos ombros. Seus


dedos eram fortes, mas não machucavam, e ele a posicionou de
forma que sua camisa desabotoada rolasse nos seios dela,
enquanto ele a observava, de cima. — Fiz uma barganha com Lilith.
Ela prometeu me libertar de seu jugo, se eu ingressasse na Tutela.
— Os dedos dele apertavam sua pele, mas ela se libertou. Para sua
surpresa, ele permitiu.
— Lilith está aqui, em Roma, então? É onde você tem
andado... com ela?

— Não. — Sua voz ficou estrangulada, como se ele mal


pudesse dizer cada palavra. — Ela tem permanecido em seu
esconderijo nas montanhas, longe daqui. Eu a vi apenas uma vez,
quando ela se ofereceu para me libertar de seu cativeiro, se eu me
entregasse à Tutela.

— Então, por que você não me mata, agora, já que é


obrigado a assassinar Venadores?

— Estou lhe concedendo a oportunidade de fugir. Esta é sua


última chance. Se eu a vir de novo, vou entregá-la a Regalado e aos
outros. Se eu não fizer isso, eles não terão razão nenhuma para
continuar confiando em mim.

Vitória riu, rápida e amargamente. — Então, você não fez


nada para me proteger. Aquele vampiro que eu vi no teatro. aquele
com quem me impediu de lutar, me reconheceu. Ele sabe que sou
uma Venadora e vai me denunciar. E quem tomou a decisão foi
você.

— Então, é como você bem pode ver. — Ele olhou para ela e
deu um passo atrás. — Mais uma razão para que volte a Londres.

Será necessário, depois que tudo isso terminar.

— Depois do quê?

— Volte para casa, Vitória.

Em seguida, ele estendeu a mão e destruiu a janela que


estava perto dela. Antes que pudesse reagir, ele a agarrou e a
empurrou para fora. Quando ela se deu conta, estava caída no solo.
Não foi uma grande queda e ela aterrissou em cima de um arbusto.

Lutando para se levantar, ela olhou para cima, porém Max


não a seguiu.

Max abriu caminho para fora do teatro, deixando para trás


uma caverna repleta de fumaça e, sabe-se lá, quantas vítimas do
fogo e dos vampiros.
Ele tinha mais uma coisa a fazer nessa noite e não iria
demorar muito.

De fato, ele encontrou Bertrand caminhando na direção do


lugar onde a Tutela e os vampiros estavam reunidos. Ficava a
apenas um quarteirão de distância, em um beco estreito. A Locanda
de Fettuch, um lugar não muito diferente do Cálice de Prata, que
pertencera a Vioget.

Max cumprimentou Bertrand. — Noite agradável, não? —


perguntou ao vampiro.

— De certa forma — ele respondeu. — Não terminei o que


tinha de fazer, mas trago boas notícias para Nedas. A mulher

Venadora, que eu pensei ter assassinado em Londres, está


aqui.

— É mesmo? Ele vai ficar muito satisfeito. — Ele deu uma


parada para olhar uma longa e estreita faixa de sombra. Era o
último beco antes daquele em que eles deveriam entrar. — O que
diz? O que é isso? — Quando Bertrand o seguiu, na escuridão, Max
se virou, enterrando a estaca no coração do vampiro, antes que ele
pudesse aspirar mais uma vez.

Guardando a estaca, Max limpou o último vestígio da poeira


do vampiro e seguiu em frente.
19
O segredo de São Quirino

Na manhã seguinte, depois da experiência na ópera, Vitória


recebeu uma mensagem de sua tia, pedindo que fosse ao encontro
dela em uma igrejinha do outro lado do rio Tibre, na área mais
densamente povoada de Roma. A mensagem foi trazida por um
mascate que veio entregar leite, na parte de trás da casa, e foi
entregue a Vitória enquanto ela tomava o café da manhã.

Assim que ela entrou na capela de São Quirino, encontrou


sua tia coberta com véus pretos e segurando um rosário, ajoelhada
em um banco, perto do altar. Ao contrário de muitas outras igrejas
de Roma, a de São Quirino não ostentava um esplendor
extraordinário.

Nada de janelas com vitrais. Nada de pisos de mármore ou


murais. Cheirava a santidade e à passagem do tempo, e nuvens de
incenso, usado há muito, pairavam no ar.

A decoração era austera e simples: tijolos assentados com


argamassa, alinhados em faixas grossas nas paredes, deixando
largas faixas de cerâmica nua separadas pela cor creme do rejunte.

Quatorze cruzes de prata sem brilho, numeradas em estilo


romano, pendiam das paredes, sete em cada lado da pequena nave,
nas áreas cobertas de argamassa. Os bancos eram escuros e sem
forração. O altar em si era pouco mais que uma mesa de pedra
sobre uma plataforma, um degrau acima do piso comum. O teto era
uma pequena cúpula redonda, com três janelas circulares, que
permitiam a entrada de fachos da luz da tarde, em meio às
esquadrias de ferro filigranado. Sem vitrais.
Enquanto caminhava no interior da igreja vazia, exceto pela
presença de um homem sentado nas sombras, também ajoelhado
em oração, Vitória sentiu sua vis bulia balançar contra o umbigo,
algo que ela jamais notou, desde que se acostumara a usá-la.

Hoje, porém, ela estava particularmente consciente dela e da


força que, a partir dali, percorria sua barriga e membros. Sentia-se
quente e confiante; era quase como uma renovação dos votos que
fizera na primeira vez que aceitara a energia do amuleto.

Não querendo interromper tia Eustácia, Vitória ajoelhou ao


lado dela, para rezar, e esperou até que ela terminasse o rosário.
Nesse momento, sem falar, sua tia levantou e fez um sinal para que
ela a seguisse.

Em vez de sair da igreja, tia Eustácia caminhou na direção do


altar, ultrapassando a grade de ferro que separava o padre da
congregação, e subiu dois degraus, no lado esquerdo.

A princípio, quando tia Eustácia abriu a pequena porta de


madeira atrás de uma estátua de São Jorge, de tamanho natural.
Vitória pensou que ela estivesse entrando em um confessionário.
Hesitou, e a mulher mais velha se virou para indicar que ela
andasse depressa. Assim que Vitória entrou, a porta se fechou atrás
dela e ela se viu, não em uma saleta confessional, mas em uma
câmara redonda que nada ostentava, senão três lanternas e um
conjunto de escadas espirais, conduzindo à escuridão.

— O Consilium está reunido lá embaixo — tia Eustácia lhe


disse, com voz entrecortada, descendo na frente, com uma das
lanternas balançando na mão.

O Consilium? Uma onda de excitação a percorreu, ao perceber


que estava prestes a ser apresentada a essa instância. Vitória sabia
muito pouco sobre o Consilium, além do fato de ser a entidade
formal que supervisionava os Venadores.

Quando tia Eustácia o mencionara, uma só vez havia mais de


um ano, Vitória ficou surpresa pela existência de um grupo desses.
Mas sua tia explicou que era preciso ter alguém que apresentasse
relatórios ao Papa e que tinha de haver uma maneira de transmitir
o conhecimento dos Venadores ao longo dos tempos. Fora preciso
criar uma forma de compartilhar o que era aprendido e de agir em
conjunto, se necessário.

Agora, ao descer acompanhando sua tia, Vitória sentiu


aquela mesma renovação de energia que experimentara ao entrar
na igreja, e achou que entendeu a razão. Este era o centro do
mundo dos Venadores, o lugar onde as decisões aconteciam, onde
as vis bullae eram forjadas e abençoadas, onde os líderes se
encontravam, oravam e discutiam.

— Qualquer um pode entrar aqui — sussurrou Vitória para a


sua tia, achando que se usasse um tom de voz normal seria uma
blasfêmia. — A porta não estava trancada.

Tia Eustácia desceu o último degrau, pisando no chão de


pedra, e se virou para olhar a sobrinha. Seus olhos estavam
escuros e brilhantes, pelo reflexo da luz da lanterna. — Na verdade,
não. Você não viu os outros, na igreja? São os nossos Treinadores..,
cada um deles.

— Eu vi apenas um homem rezando.

— Si, e mais dois antes dele, perto da porta por onde você
entrou. E outro na abside, diante da estátua, no alto destas
escadas. Você não os viu, porque não são visíveis mesmo, porém
estavam lá. — Ela sorriu, seu rosto elegante marcado por linhas
finas, ao lado de sua boca. — Wayren e São Quirino garantem que
estamos bem protegidos aqui. Mesmo que os vampiros ou a Tutela
soubessem que esta igrejinha conduz ao nosso Consilium, não
poderiam cruzar a entrada. As portas são revestidas de prata e
cobertas com crucifixos: água-benta é espalhada por toda parte,
várias vezes ao dia. E nossos Comitadores, embora não sejam
Venadores, são muito bem preparados para lidar com os intrusos.

Vitória balançou a cabeça, denotando compreensão e


ansiedade. As palmas de suas mãos formigavam, quando sua tia
tirou o véu escuro que a cobria. Eustácia ajeitou seus cabelos,
pretos e lisos, que estavam penteados de um jeito intrincado, em
ondas cravejadas de pérolas e esmeraldas, o que lhe dava um
aspecto de rainha. Ao retirar o pesado manto preto, ela mostrou um
magnífico vestido verde de mangas justas de brocado verde floresta,
tão escuro, que parecia quase preto.

Em apenas alguns instantes, tia Eustácia se transformara —


de senhora idosa curvada, em oração, para uma figura altiva e
poderosa.

Isso fez com que Vitória olhasse para seu próprio traje com
desalento. De fato, seu cabelo estava penteado, os grossos cachos
presos em um conjunto bonito, mas não ornado com pérolas ou
pedras preciosas. Nem ao menos uma fita fora imaginada Verbena,
entretanto, havia introduzido uma delgada estaca, para ser usada
em caso de necessidade. O vestido de Vitória não passava de um
modelo simples, para a tarde, feito com seda amarela e com uma
sobreposição modesta de renda creme.

Ela se sentiu como uma criança de avental.

Tia Eustácia depositou seu véu e o casaco em uma mesinha


perto da porta, no fim da escada. Alta e nobre, ela abriu a porta e
entrou.

Vitória a seguiu.

Encontrou-se em uma câmara enorme, que lhe fez imaginar


como poderia ser uma catedral, se fosse circular. As paredes e o
chão eram de mármore pesado, brilhante e raiado de preto e cinza.
Ao redor de toda a circunferência havia colunas do mesmo
mármore, e, entre elas, arcos pontiagudos, conduzindo a pequenos
nichos ou portas. Foi por um daqueles que Vitória e a tia haviam
entrado no recinto.

Era uma câmara imensa, em cujo centro ficava uma grande


piscina, com água cascateando de uma fonte, bem no meio dela. O
espaço era tão escuro, que Vitória não conseguia ver o que tinha do
outro lado. Havia cadeiras e escrivaninhas, bancos e mesas
espalhados por toda a sala, que, embora subterrânea, era
extremamente bem iluminada por tochas e lamparinas. As mesas
continham livros ou documentos, tinteiros e canetas, e até mesmo
algumas estacas e outras armas. Exceto pelo chafariz e pelos arcos
semelhantes aos de igrejas, parecia um pouco com um clube
masculino, onde, no ano anterior, ela tivera de acabar com um
ataque de vampiros.

Ali estavam, também, Venadores. Ou, ao menos, homens que


pareciam pertencer ao lugar, de forma que Vitória presumiu que
fossem Venadores ou Comitadores. Como notaram a presença de
duas mulheres — porque não havia outras no campo de visão de
Vitória — os ocupantes do recinto deixaram de lado o que estavam
fazendo (lendo, escrevendo, conversando, manuseando atacas); os
que estavam sentados, se levantaram e os que estavam em pé se
viraram, olhando para elas.

Talvez houvesse, ao todo, uma dúzia deles, e Vitória notou


nenhum deles teria mais de quarenta ou, quem sabe, cinquenta
anos, pela aparência. Os mais jovens provavelmente eram da sua
idade. Alguns tinham a pele morena dos italianos, outros, ainda
mais escura, talvez originários da Índia ou do Egito enquanto os
demais pareciam ser celtas ou ingleses.

Imaginando se todos seriam de ramos mais distantes da


família Gardella, ou se haviam se tornado Venadores por escolha
própria, como Max, Vitória ficou observando sua tia cumprimentá-
los pelo nome e em várias línguas. Eles se mostravam muito
respeitosos com ela, beijando sua mão e fazendo reverências, como
se ela fosse de alguma linhagem real.

Vitória sempre soube que, como sua tia era a descendente


direta, viva, do primeiro Gardella, era alguém especial no mundo do
Venadores, mas essa demonstração de carinho e respeito para com
sua idosa tia fez seu coração se expandir.

— Signora Gardella! — Uma voz que veio do outro lado da


piscina, sobrepondo-se ao ruído da fonte, chamou a atenção de
Vitória, e, felizmente, dos outros que ficaram observando.

— Ilias — disse tia Eustácia, abrindo um caloroso sorriso,


quando ela apertou a mão do homem que se aproximou para
cumprimentá-la. — Que maravilha vê-lo de novo!
O homem estava mais próximo da idade dela do que qualquer
outro ali presente, mas, mesmo assim, ela ganhava dele em uma
geração.

Ele talvez tivesse sessenta, para os oitenta dela, e parecia


suficientemente distinto, provavelmente uma pessoa importante.

Vitória ficou olhando quando ele se dirigiu até ela e eles se


abraçaram. — Então, esta é sua sobrinha? A nova Gardella? —
disse, virando-se para encarar Vitória. — Aquela que mandou Lilith
de volta para seu esconderijo nas montanhas?

— É ela mesma. Vitória, permita-me apresentar-lhe Ilias de


Gusto. Ele é, e tem sido por muitos anos, o Guardião do Consilium.
—Ilias, por favor, esta é Vitória Gardella Grantworth de Lacy.

Vitória fez uma reverência e se viu mirando cintilantes olhos


cinza-azulados. As sobrancelhas dele, vastas como aranhas
peludas, grisalhas e marrons, se elevaram e arquearam, enquanto
ele olhava para ela com satisfação. — Estamos honrados em tê-la
conosco, hoje, signorina Gardella. — Ele sorriu abertamente,
quando ela o corrigiu. — Não, não, para nós você será sempre a
Gardella, signorina. E um dia será Illa Gardella.

A Gardella. A conexão mais direta com o Venador original. A


líder, aquela que decide, uma referência para todos os Venadores,
independentemente de onde eles se colocavam na árvore
genealógica mundial da família. A pessoa em torno da qual se
reuniam, em ocasiões de grandes ameaças.

Houve uma série de apresentações para que Vitória


conhecesse os demais; e, caso estivesse certa, a maioria deles era
de Venadores, visitando o Consilium para treinamento ou por outras
razões. Três outros estavam estudando e se preparando para
tornar-se Comitadores. Kritanu era um Comitador, é claro, e seu
sobrinho, Briyani, era o de Max. Ou, pelo menos, tinha sido. Vitória
vinha trabalhando com Kritanu, mas possivelmente teria seu
próprio treinador.

Vitória esperava ser recebida com suspeita ou


condescendência pelos outros, como fora na primeira vez em que se
reunira com Max, no ano anterior. Ele acreditava que ela estaria
mais interessada em cadernetas de baile, vestidos e pretendentes
do que em caçar e matar os vampiros — ele estava enganado.
Finalmente, acabou aceitando o fato de que ela era, realmente, uma
Venadora.

Ela não estava sequer considerando o que podia ter


acontecido, o que havia mudado em Max, ao longo do último ano,
desde que retornara à Itália.., especialmente depois da noite
passada. Havia tempo para isso, mais tarde. De fato, ela suspeitava
que essa era parte da razão pela qual ela e tia Eustácia estavam ali,
hoje. Se, em verdade, Max havia capitulado, os outros Venadores
teriam de ser informados a respeito.

Mas Vitória não queria ser a pessoa a fazer isso.

Apesar de Max ter aceitado com relutância a vocação de


Vitória, os outros Venadores pareciam não ter nenhuma dúvida.
Vitória se sentiu como se estivesse debutando em um baile,
enquanto cavalheiros de todas as idades e aparências se reuniam
para conhecê-la.

— Gostaria de ver as câmaras do Consilium, signorina


Gardella? — perguntou um deles, com um ligeiro sotaque escocês.
Embora não muito mais alto do que ela, ele era tão grande e
musculoso como um boi. Seu cabelo, cor de cobre polido, era
comprido demais para estar na moda (em Londres, pelo menos),
amarrado frouxamente para trás, com um cordão de couro.
Infelizmente, ela não conseguia lembrar o nome dele, que acabara
de aprender. — Eu teria prazer em lhe mostrar, enquanto sua tia
fala com Ilias e Wayren.

— Wayren está aqui?

Ele sorriu, pegando o braço dela e enlaçando-o no seu, como


se quisesse reafirmar sua sugestão. Seus músculos eram muito
desenvolvidos, seus dedos pareciam que iam se afundar na dobra
do cotovelo de Vitória. — Sim, com certeza. Ela quase sempre está
aqui. Ou, ao menos, assim parece.
Ele seguiu adiante, e enquanto ambos caminhavam, um dos
outros chamou: —Você não ouse monopolizar a signorina, Zavier!

Ah, isso! Zavier. Esse era o nome dele.

— Você é muito gentil, Zavier. Estou muito interessada em


conhecer tudo sobre este lugar. — Sentia uma estranheza pelo fato
de chamar pelo primeiro nome um homem que acabara de
conhecer, mas aparentemente os Venadores não ligavam para
cerimônias — exceto com ela e tia Eustácia — porque não tinham
declinado nenhum sobrenome.

Zavier a conduziu, primeiro até a fonte e lhe disse para


colocar a mão ali. — É a mais santa das águas — contou, quando
ela mergulhou seus dedos. — Sente sua vis bulla agora?

Vitória quis corar com a menção à cruz de prata, por causa


do lugar de onde ela pendia; afinal de contas, ele era um cavalheiro
e um estranho. Mas ele pareceu tão natural, em relação a isso, que
ela não achou que devia se sentir desconfortável. E, sim, ele estava
certo. — Sinto. É como se ela soubesse que estamos aqui.

—Sim. E talvez queira que ela seja abençoada, de novo, antes


de ir embora, hoje. Eu ficaria feliz em ajudar, se desejar. — Os
olhos dele brilhavam quando desceram sobre ela, e Vitória não
conseguiu mais evitar a ruborização. Podia estar acostumada com
os comentários diretos de Sebastian, mas ela ainda não se sentia à
vontade com provocações de outros homens.

— Penso que deveria ser capaz de fazer isso sozinha — ela


retrucou em tom de censura.

Ele riu e a puxou mais para o seu lado, de maneira que ela
esbarrou em seu braço, vigoroso como um tronco de árvore. Ela mal
podia imaginar quão tremendamente forte ele era. — Eu achei que
você diria isso, mas não resisti ao desejo de fazer a oferta. É tão
raro ser honrado com a presença de uma mulher, que até me
esqueço de mim mesmo.

Embora ela tivesse certeza de que não seria o caso dele


“esquecer” de si mesmo, Vitória se absteve de comentar. Em vez
disso, falou: — Quantas outras mulheres Venadoras você
conheceu?

Bem, como você e sua tia são as únicas Venadoras vivas,


apenas duas, até agora — ele respondeu, com um sorriso. — É
claro que só uma mulher diretamente ligada à linhagem Gardella
pode ser Venadora. O restante de nós... bem, somos Gardellas mais
diluídos, pertencemos a ramos distantes da família, espalhados ou
enviados para todos os cantos do mundo. E alguns de nós — claro,
você conhece Maximilian Pesaro — não têm nada do sangue dos
Gardellas, mas ele foi convocado de uma forma diferente e
enfrentou atribulações mortais, que lhe permitiram usar a vis.

— De fato.

— Não vejo Max há algum tempo. As últimas notícias que tive


é que ele havia viajado para a Inglaterra. É de onde você veio, não
é?

— Sim, com certeza. Tive o prazer de trabalhar com Max para


recuperar o Livro de Antwartha, antes que Lilith o obtivesse. —
Chamar de prazer o fato de ter atuado com ele era um pouco de
exagero, mas Vitória estava tentando ser educada.

— Ah... de fato, todos nós ouvimos a história de sua


aventura, e de seu sacrifício. — O tom de brincadeira havia
desaparecido da expressão do rosto dele, agora, enquanto eles se
afastavam da fonte, e foi substituído por uma sobriedade que fazia
com que ele parecesse mais com um guerreiro do que com o
lisonjeador bem-humorado de antes. — Estou bastante intimidado.
— E ele parecia tão sério que ela acreditou que não a estivesse
meramente bajulando.

— Obrigada — foi tudo o que ela falou.

— Como perguntou sobre mulheres Venadoras, será que


talvez gostasse de apreciar a galeria? — Zavier perguntou,
conduzindo-a por um arco que continha uma pesada porta de
mogno.

Ele a abriu e fez um gesto para que ela entrasse primeiro.


Essa câmara era longa e estreita, mais parecida com um corredor
ou uma passagem do que com um cômodo. Retratos e arandelas se
alternavam nas paredes. Ocasionalmente, havia um pedestal
encimado por uma estátua ou um busto ou um gabinete de vidro
ou prateleiras.

— Desde a primeira estaca dada a um Gardella, cada


Venador tem um retrato, aqui. Temos, também, outros objetos e
lembranças. Talvez seja um pouco mórbido, mais parecido com um
museu do que com qualquer outra coisa, mas é importante que não
esqueçamos aqueles que deram tudo de si, antes nós.

Vitória caminhou lentamente ao longo da linha de retratos.


Todos eles pareciam ter sido pintados pelo mesmo artista, embora
alguns deles datassem de séculos, ou mesmo um milênio, antes.

Ela parou diante do quadro de uma mulher atraente. —


Catherine Gardella — leu em voz alta. Seus cabelos eram
brilhantes, reluziam como cobre polido, enrolados, erguidos, em
ambos os lados da cabeça, e presos com fitas e jóias. Ela estava
vestida com roupas da corte, de três ou quatro séculos atrás, talvez,
com uma gola ao redor do pescoço e mangas de veludo, bufantes,
com uma abertura longitudinal, no meio, e, em seu interior, cetim
vermelho. Parecia mais uma rainha, que uma Venadora. Em seu
colo, em meio às pregas da saia, ela segurava uma estaca. Uma
grande esmeralda brilhava na outra mão, tão realisticamente
pintada, que Vitória quase esperou que a mão se movimentasse,
fazendo com que as facetas da lapidação brilhassem em uma
direção diferente.

— Nossa Cat — Zavier disse com um sorriso na voz. — Ela


era famosa. Uma verdadeira fera, se necessário, segundo os relatos
que ouvi. Seu temperamento combinava com seus cabelos.

— Os cabelos de Lilith eram do mesmo tom — Vitória


comentou, lembrando o brilho intenso dos cabelos da rainha dos
vampiros, iluminando intensa e profanamente um cômodo.

— Você não é a primeira a fazer esse tipo de comentário,


entre as pessoas que já viram Lilith e continuam aqui, para contar.
Eu até havia esquecido. — A voz de Zavier ficou abafada. — Você,
Max Pesaro e sua tia, é claro. Alguns dos poucos, muito poucos,
desta época que conseguiram se safar dela. Eu fico imaginando
como é que Max conseguiu permanecer tão forte, por todos esses
anos.

Vitória lembrou o que Max tinha dito na noite anterior sobre


ter feito um pacto com Lilith, de maneira que para ser liberado de
sua escravatura, aderira à Tutela. Ela gostaria de saber o que isso
significava; certamente, ele nunca demonstrara estar sob qualquer
tipo de controle da rainha dos vampiros. Sua habilidade em
perseguir e caçar vampiros era lendária; como poderia estar sob
controle de Lilith e, ainda assim, ser tão temido? Não tinha havido
tempo para perguntar a ele — e, claro, ela sabia muito bem que não
poderia esperar uma resposta dele. A intenção dele era de tirá-la do
teatro, de Roma, da Itália.

— Que tipo de controle Lilith tem sobre ele? — perguntou. —


Eu tenho trabalhado com Max, mas ele não é tremendamente
receptivo a... certas coisas.

— Com certeza. Sabemos que esse é o jeito de Max. — Zavier


olhou para ela; não tinha de abaixar o rosto, porque ambos tinham
a mesma altura. — As mordidas dela são incuráveis, inclusive para
Venadores. Mesmo com a utilização do bálsamo ou da água-benta
salgada. Permanecem ali e causam dor, quando ela assim deseja,
porque procura lembrar-lhe de sua influência sobre ele.

—Porque?

Agora, ele olhou para Vitória de uma forma estranha. — Ela o


deseja como seu concubino, segundo meu entendimento. Estou
seguro de que ele faria qualquer coisa para ser libertado dessa
posição. Ser um Venador e estar ligado à rainha dos vampiros é um
fardo pesado demais para carregar.

Ele ofereceu o braço e ela introduziu seus dedos ao redor da


massa de músculos que parecia retesada, mesmo quando em
descanso. — Aqui está outra de nossas mulheres Venadoras. Lady
Rosamund. Ela já fizera seus votos, mas deixou a abadia quando
atendeu ao chamado e ingressou na Cruzada para a Terra Santa.
Vitória parou diante da imagem da jovem. Vestida de maneira
simples, com um vestido cor de safira, parecido com o modelo que
Wayren usava, longo e folgado, com mangas em ponta que
chegavam a varrer o chão, Lady Rosamund parecia calma e serena;
muito diferente da provocante Catherine Gardella. Seus compridos
cabelos cor de mel caíam de uma despojada touca de pérolas. Ela
segurava uma estaca em uma das mãos e um rosário, na outra.

— Ela era mística e, durante o tempo em que permaneceu na


abadia, antes de saber que fora chamada a iniciar-se, fez muitos
manuscritos sobre as revelações que recebera durante meditações e
preces. Vários de seus trabalhos tornaram-se conhecidos, como
nossas profecias, e Wayren as estuda profundamente. Sim, ela é a
única pessoa a quem foi revelada toda a história de como Judas,
bem-amado de Jesus, o traiu e se aliou a Lúcifer e se transformou
no primeiro vampiro.

— Há quem diga que Jesus pediu a ele que o entregasse aos


judeus, para que tudo o que veio em seguida pudesse, de fato,
acontecer — comentou Vitória, olhando para o retrato da mulher
serena, cujos cinzentos e tranquilos olhos a levaram a lembrar os
de Wayren.

Zavier riu, uma risada baixa e redonda, que se encaixou


muito bem em sua aparência de urso. — Oh oh oh, isso é o que
Lúcifer gostaria de nos fazer acreditar. Se você estudasse os escritos
de Rosamund, como eu, aprenderia que, seja qual for a razão, na
verdade Judas vendeu Jesus por trinta moedas de prata, e, até
hoje, um vampiro recua na presença desse metal. Judas talvez
soubesse — ou não — o que aconteceria por causa de a traição.
Mas a verdade é que, depois de Jesus ter sido crucificado, Judas
não acreditou que pudesse ser perdoado por seu papel no episódio
da traição, e, facilmente, Lúcifer o convenceu a se aliar a ele, para
garantir proteção.

— Você é um bom historiador. Costuma se lembrar desse


detalhe, para todos os Venadores?

Ele sorriu para ela. — Sim, as histórias que eu mais aprecio


das mulheres Venadoras, porque se espera, de nós, homens, que
sejamos guerreiros e caçadores. Quando uma mulher recebe essa
incumbência, tem mais obstáculos a superar do que os homens
jamais terão. Já é bastante difícil para um homem ser escolhido e
chamado para tornar-se um Venador. Eu tenho o maior respeito
por uma mulher que atende ao chamado.

Vitória pensou em Melly, sua própria mãe, que fora escolhida


para ser Venadora, mas decidira não assumir a responsabilidade,
porque havia acabado de conhecer o homem que viria a ser o pai de
Vitória. Por causa disso, na mente de Melly tinha sido apagada
qualquer memória relacionada aos vampiros e Venadores; e todas
as habilidades inatas, de que tinha sido dotada, foram passadas à
sua filha. Assim, e porque o pai de Melly — irmão de tia Eustácia —
também decidira não aceitar o convite para ser um Venador, Vitória
herdara a capacidade e o sentido de duas gerações anteriores de
Venadores.

Zavier estava evidentemente satisfeito por estar na presença


de uma Venadora, e não hesitava em demonstrá-lo. Vitória decidiu
aceitar a lisonja, com prazer. — E onde está o retrato de tia
Eustácia? — perguntou.

— Não há nenhum retrato ainda. As pinturas não são feitas


até que termine o trabalho do Venador. A grande questão, relativa à
sua tia, será como retratá-la — se jovem e feroz Venadora ou
elegante e idosa matriarca.

Antes que Vitória pudesse perguntar algo sobre o retrato


seguinte, eles foram interrompidos.

— Perdoem-me, Zavier e signorina Vitória, mas o Consilium


está pronto para começar. — O homem apontou para a grande
porta trabalhada, as tochas brilhando nas lentes de seus óculos.

— Grazie, Miro — respondeu Zavier, e conduziu Vitória para


fora da sala. — Ele é um de nossos mestres de armas — explicou.

— Um Comitador que tem talento especial para a criação de


novas formas de lutar contra os vampiros e de nos proteger. Vamos
ver se ele pode desenvolver uma estaca especial para você, mais
feminina. Talvez uma que caiba em sua bolsinha ou sob a meia. Ou
algum tipo de armadura de couro? — piscou.

O Consilium, que era tanto o nome do corpo diretivo como


também o nome das câmaras por onde eles andavam, se reunia em
uma sala diferente. Aquela onde entraram tinha um círculo de
cadeiras dispostas em forma de meia-lua, sobre um tablado
semicircular.

A maioria dos vinte assentos estava ocupada; Vitória


escolheu um perto da parte de trás e notou que sua tia e Wayren
estavam sentadas sobre o palanque, atrás de uma mesa.

Elas não perderam tempo. Wayren falou, consultando o


monte de anotações que estavam diante dela.

— Nedas possui o Obelisco de Akvan e está claro o que


pretende para ativá-lo; na verdade, já começou a dar os passos
necessários para fazer isso. Minha pesquisa indica que o Dia dos
Mortos, o de Finados, será o melhor momento para esse tipo de
evento. É o dia em que as almas dos falecidos são libertadas de
seus corpos, tornando-se o período perfeito para que Nedas e os
imortais tentem capturá-las, usando-as para seus propósitos. É,
naturalmente, o 2 de novembro, ou seja, daqui a dois dias.

Ela reuniu as notas em uma pilha e olhou para tia Eustácia,


que continuou. — Como muitos de vocês sabem, eu estava presente
na última vez em que a Tutela conquistou grande poder e se lançou
sobre os mortais. Foi na Batalha de Praga, onde trinta mil pessoas
foram massacradas por vampiros e membros da Tutela, nome dos
imortais. Embora, no final, nós tenhamos conseguido detê-los,
infelizmente, só depois de uma grande devastação. Com o poder do
Obelisco de Akvan para controlar as almas dos nossos defuntos,
Nedas será imbatível, e acreditamos que os danos sejam maiores
ainda, caso ele tenha sucesso. — Ela fez uma pausa e olhou ao
redor do recinto. — Creio que será o fim da nossa batalha contra
eles, pois seu poder vai superar o nosso. —Wayren não precisava de
suas anotações para fazer esse pronunciamento.
— Então, como vamos impedi-lo? — perguntou Zavier. Seu
rosto era inexpressivo. — Como é que nós podemos destruir o
Obelisco? E onde é que ele o mantém?

— Ontem à noite houve um incêndio no Teatro Ópera


Blendimo — disse Wayren, lançando um olhar para Vitória. Ó
edifício não foi completamente destruído, por algum fator estranho,
mas foi fechado ao público e não será reaberto durante muitos
meses, se for. Houve, também, relatos de alguns ataques de
vampiros no local. Eu não acredito que seja uma coincidência, por
várias razões. Primeiro, minha pesquisa indica que Nedas vai
precisar de um grande espaço para completar a ativação do
Obelisco, e o teatro é um dos maiores e mais altos locais da cidade
— outros, como as catedrais, com certeza não seriam adequados
para que vampiros invocassem o poder do mal. Segundo, o teatro,
como vocês bem sabem, está localizado em uma pequena colina
perto do maior cemitério da cidade. Isso faz sentido, porque tal
posição facilitaria para eles atrair as almas dos mortos, embora eu
não acredite que eles se restrinjam apenas àquelas mais próximas.
Estou certa de que é onde Nedas planeja ativar o Obelisco. Como
não há formas conhecidas de destruir o objeto, temos de pensar em
outras alternativas.

— Então, temos de assassinar Nedas. Se ele morrer, não pode


ativar o Obelisco — sugeriu outro Venador, um dos mais velhos.
Talvez estivesse com quase cinquenta anos.

— Essa seria nossa esperança — concordou Wayren. — Mas


uma vez que o ... — ela apertou os olhos, na direção de seus papéis,
marcando uma palavra com o dedo, e olhou para cima — se a
sombra for liberada e se espalhar em volta de quem conseguiu isso,
até mesmo assassinar quem detiver o Obelisco não resolverá o
problema. Seu poder pode ser facilmente transferido para outra
criatura. E mais outra. Nós, certamente, não queremos que
nenhum outro demônio ou vampiro tome posse dele nem de seus
poderes.

— Beauregard estaria esperando para arrebatá-lo com ambas


as mãos, se Nedas for banido do cenário — concordou Zavier.
Isso chamou a atenção de Vitória. — Beauregard?

— Um vampiro que é rival de Nedas. Mais velho e muito


poderoso, mas Nedas é filho de Lilith e, como tal, conta com
favorecimento. Se ao menos pudéssemos voltar sua atenção para o
outro e fazer com que se engajassem em suas próprias batalhas
internas, poderíamos deixar que se destruíssem mutuamente.

Tia Eustácia balançava a cabeça, concordando. De fato. Na


verdade, foi assim que conseguimos parar o terror em Praga, há
trinta anos. Mas não acho que isso vai funcionar agora, pois, de
acordo com o que aprendemos, a sombra do Obelisco já foi
quebrada. Nedas já iniciou as etapas para ativar o Obelisco e
Beauregard, o tão poderoso, já não é mais páreo para Nedas com
seu Obelisco. Não há nenhuma possibilidade de distraí-los daquele
jeito.

— O que podemos fazer, se o Obelisco não pode ser destruído


e Nedas já está ligado a ele?

— Duas coisas. Temos de nos preparar para o pior e esperar


que Nedas tenha sucesso. Temos de começar a discutir o assunto
rapidamente e iniciar nossos preparativos, de imediato, porque
temos menos de dois dias. Há uma outra e única possibilidade, que
é a de alguém chegar perto o suficiente para matar Nedas e roubar
o Obelisco de Akvan, antes que sua energia possa ser passada a
outra criatura.

— Vou fazer isso — apresentou-se como voluntário o Venador


que antes havia sugerido o assassinato.

— Você não conseguirá chegar suficientemente perto para


tanto — Eustácia disse a ele. — No momento em que a Tutela o
reconhecer como Venador, você será morto. Como acontecerá com
qualquer outro de vocês. Seus olhos se fixaram em Vitória. —
Exceto um, talvez.

— Eu já concordei em fazer isso — Vitória afirmou, se


levantando. — Concordei, em Londres. Não há dúvida que deva ser
eu. — Ela não havia contado a tia Eustácia o que acontecera na
ópera, na noite passada — que ela tinha sido vista pelo vampiro
Imperial, que a reconhecera como Venadora. Nem dissera nada
sobre sua conversa com Max.

Ela abriu a boca para falar, mas então decidiu algo melhor.
Não havia mais ninguém capaz de levar a cabo a missão. Os outros,
ali presentes, certamente seriam reconhecidos mais facilmente, do
que ela, como Venadores.

Havia uma chance — pequena, sim, mas uma chance — de


que o vampiro Imperial não a tivesse denunciado à Tutela ou que
não tivesse certeza de que ela fosse, mesmo, uma Venadora.

E então ela se lembrou do que Max lhe dissera: Nedas vai


ganhar. Ele é forte demais. Você será necessária depois que tudo
isso terminar.

Seja como ou por qual razão Max tenha se envolvido com a


Tutela e com Nedas, já não era importante. O pior ia acontecer e ele
aceitara isso. Ele permitiria que acontecesse. De alguma forma, ele
sabia que Nedas seria o vencedor.

Naquele momento, seu último vestígio de mais profunda


esperança se esvaiu como um vampiro atingido pela estaca.

Não haveria ajuda de Max. De ninguém.

Ela realmente estava sozinha.


20

Lady Rockley janta fora

Quando Vitória voltou para casa, de sua ida ao Consilium,


uma carruagem esperava na frente da vila. Já passara da hora do
chá; aproximava-se a da ceia. Tarde, portanto, para um convite
social mesmo não formal.

Ela subiu apressadamente os degraus da entrada.

— Há um visitante, signora — disse o mordomo, mas ela já


estava voando pela porta aberta da sala de visitas.

Sebastian olhou por cima do jornal que estava folheando.

— Não sei quem você estava esperando, minha querida, mas


eu tenho certeza que deve estar desapontada. Tamanho entusiasmo
não poderia ser dirigido a mim, para minha grande tristeza. — A
atenção dele se voltou para ela, de uma forma que a fez lembrar a
última vez em que estiveram juntos naquele cômodo.

E, depois, da ameaça dele de procurar as gêmeas Tarruscelli,


quando ele ficou inexplicavelmente zangado com ela.

E, depois, de volta àquela noite quando ele a chamou de


minha. E casualmente invocou o nome de um poderoso vampiro.

— Está um pouco tarde para o chá, Sebastian — ela disse


friamente, tentando acalmar sua respiração e as vibrações de seu
estômago. A forma como ele estava olhando para ela... a fez querer
cobrir o rosto, para evitar o rubor, a tocar os cabelos grossos dele,
naquela cor marrom dourada, a sair da sala antes que ele pusesse
as mãos nela, como estava bem claro que era o que ele pretendia
fazer.

Aparentemente, alguma coisa tinha mudado desde que ele


afugentara os vampiros para longe do pescoço dela.

— Precisamos conversar — ele disse, mas havia uma


mensagem diferente nos olhos dele. Agora ela não podia mais evitar
o inoportuno calor que subiu de seu peito para o pescoço e o rosto.
— Você me permitiria levá-la a um passeio?

— É fora de moda sair para um passeio no parque assim tão


tarde — ela retrucou.

— Exceto por meus trajes, eu anseio estar fora de moda. —


Você vem comigo?

Vitória sabia que se aceitasse tal convite equivaleria a


concordar com o que quer que viesse a acontecer entre eles. O mais
provável é que continuariam o que haviam começado nessa mesma
sala poucos dias atrás, mas que vinha fermentando lentamente
entre eles havia mais de um ano.

E depois, ainda havia o fato de que ele tinha perguntas


menores a responder, e tê-lo encerrado em uma carruagem com ela
seria uma situação favorável à obtenção de respostas... entre outras
coisas. Ela lançou a ele um olhar pensativo, e em seguida disse,
casualmente: — Eu vou me refrescar e, então, ficaria encantada em
acompanhá-lo.

— Merci, ma chére.

Vitoria correu ate seu quarto, chamando por Verbena. Não


tardaria muito para ter seus cabelos rearranjados, mudar sua
roupa, escolhendo um modelo em tom de rosa bem forte, e colocar
uma capa, garantindo que se mantivesse aquecida, não obstante a
fria temperatura do outono. Era de mangas compridas e justas,
abotoadas do cotovelo ao punho e manteria seus braços quentes,
mesmo que ela tivesse de tirar as luvas. Algo que viria bem a calhar
com Sebastian por perto, pois ele parecia ter uma inclinação a livrá-
la desse tipo de acessório.
— Você parece muito mais descansada — ele lhe disse no hall
de entrada, quando ela desceu as escadas. — Tomei a iniciativa de
pedir que preparassem uma cesta de jantar para nós; vai levar
algum tempo para que cheguemos a nosso destino e não desejo que
você fique faminta.

— Não sabia que íamos demorar tanto.

Sebastian fez uma pausa no movimento de colocar o chapéu


de copa alta em sua cabeça. — Você tem outro compromisso para
este fim de tarde: esta noite? Eu não sabia.

— Não — ela respondeu, olhando para ele de um jeito


desconfiado.

— Houve outros visitantes hoje, minha senhora — Verbena


interrompeu, enquanto ela e Oliver surgiam, carregando uma
grande cesta. — Os cartões estão sobre a mesa.

Aborrecida porque a presença de Sebastian a havia distraído


de uma tarefa tão simples como olhar para a mesinha da entrada,
Vitória se virou e deu uma olhada na pequena pilha de cartões. As
gêmeas Tarruscelli e Sara Regalado. Silvio Galliani. Obviamente,
todos eles chegaram em casa, da ópera, sãos e salvos. (Ela se sentiu
grata por não estar em casa, quando eles vieram, por que de que
maneira poderia conversar casualmente com eles depois de
observar Sara sucumbir lascivamente à mordida de um vampiro.
Não, nem mesmo sua mãe tinha sido tão pressionada a realizar tal
façanha.)

Ninguém mais viera.

Vitória nem sequer admitiu que esperava por alguém mais:


sabia que Max lhe tinha dito tudo o que podia.

Isso apenas confirmava a sensação que ela teve, mais cedo.


no Consilium. Ela estava sozinha.

— Podemos? — Sebastian perguntou, calçando suas luvas e,


em seguida, ofereceu o braço a ela.
Não havia muito mais espaço para os dedos dela na dobra do
cotovelo dele, do que no de Zavier. E ele era mais alto. E muito mais
bonito.

E menos confiável.

Sim, ela confiava nele, de certo modo. Afinal de contas, ele a


salvara de ser atacada pelo vampiro na noite anterior. Isso deveria
significar alguma coisa.

Dentro da carruagem, eles se sentaram um diante do outro,


enquanto o veículo sacolejava, lembrando a Vitória a condução
errática de Barth, em Londres. Ela sorriu e Sebastian notou.

— Lembranças agradáveis, minha querida? Ou você está


simplesmente pensando em como eu consegui, brilhantemente, nos
colocar sozinhos em uma carruagem, de novo?

— Sua técnica foi brilhantemente clara. — Vitória olhou para


ele cautelosamente.

Ele notou e riu. — Está com receio de que eu dê um pulo e


arranque suas roupas? Não que eu não tenha pensado nisso, mas
espero que você me considere alguém com mais sutileza.

— Nunca estou bem certa do que você fará, Sebastian. De


fato, eu fiquei muito mais surpresa diante de suas ações de ontem à
noite.

As sobrancelhas dele se ergueram, como costumavam fazer


quando ele bancava o inocente. —Você se refere a minhas
prolongadas atenções a Portiera? Espero não ter perturbado seu
orgulho, ma chére Vitória. Você deve saber que você é quem
realmente capturou minha estima. — A voz dele era leve e alegre,
como se quisesse subtrair significado das palavras, mas o
sentimento provocou um súbito arrepio em seu interior.

— Não estava me referindo a seus grosseiros flertes com as


gêmeas Tarruscelli — ela respondeu. — E você sabe disso. Estava
esperando a sua visita, da mesma forma que tinha certeza de que
você gostaria de reivindicar algum tipo de reconhecimento de mim
— não compensação, Sebastian; sei que você descartou isso em um
passado recente — algum reconhecimento pelo fato de você ter me
salvado de uma experiência muito desagradável ontem à noite. Eu
fui e sou muito grata.

— Ah... mas você é uma Venadora — ele a lembrou, ainda


com aquele tom leve — não precisava realmente de minha ajuda.
Eu simplesmente tratei de impedir aquilo porque não podia
suportar ver esse adorável pescoço marcado novamente.

— Sua voz deslizou para um tom de baixo tenor e todo o


humor se evaporou de seu semblante. — E você está morrendo de
vontade de saber quem é Beauregard e como eu o conheço.

— Com certeza. E sei que você só me contará se desejar,


portanto não há necessidade de perguntar. Não quero brincar de
gato e rato com você, Sebastian. — O tom das palavras dela era
firme, ao contrário de seus dedos que, se não permanecessem bem
apertados nas dobras de sua saia de seda, estariam tremendo.

— Então, não vamos brincar. — Em um instante, ele estava


sentado ao lado dela, no banco. Tirou seu próprio chapéu e o
atirou, indolentemente, no interior da carruagem, ignorando o fato
de que foi rolando até cair no chão, perto da porta. — Você vai me
beijar, desta vez, Vitória, ou vai me obrigar a fazer o trabalho sujo?

— Beijei você nas docas, em Londres.

— Claro, porque sabia que era seguro. Você ia embarcar em


um navio, viajando para cá. Mas agora... — Depois de tirar o paletó,
ele se acomodou no canto e olhou para ela, os braços cruzados
sobre o colete. Suas pernas encostadas nas dela, no centro do
banco, o peito dele se levantava e abaixava, e seus ombros se
sacudiam ao ritmo do movimento da carruagem.

— Você é suficientemente corajosa, minha linda Venadora?

Ela se inclinou e ele se endireitou, abandonando a postura


relaxada, para encontrá-la a meio caminho. Suas bocas se
mesclaram em um emaranhado de lábios e línguas e ela suspirou
profunda e deliciosamente, de prazer. Antes que ela percebesse,
seus cabelos se soltaram, os grampos arrancados pelos dedos de
Sebastian se espalhando por seus ombros, o banco macio e o chão.
Ele enfiou os dedos nas ondas e espirais que Verbena havia feito,
passando depois ao pescoço, à parte superior dos braços dela, para,
em seguida, mover-se até para abrir o casaco, antes inteiramente
abotoado sobre seus seios.

Agarrando o casaco bem ajustado aos ombros dela, deslizou-


o para baixo, de maneira que escorregasse pelos braços e continuou
a beijá-la na boca, no queixo, no pescoço, até que ela se
contorcesse. — As mangas... precisam ser desabotoadas — disse
ela, tentando livrar-se do agasalho apertado.

— Eu sei — ele disse a seu ouvido, empurrando o casaco


mais para baixo, de maneira que deslizasse sobre as mãos dela,
fazendo com que seus pulsos ficassem presos nas mangas, para
depois continuar o movimento, até que a vestimenta pairasse atrás
dos quadris de Vitória.

— Sebastian — ela murmurou com uma nota de alerta e


pânico, na voz. — Não gosto disso.

— Shhh — ele sussurrou, contra o pescoço dela, roçando os


cílios em sua face. — Apenas relaxe. Aproveite. — Ele sugou seu
lóbulo da orelha, com lábios quentes e úmidos.

Vitória respirou profunda e instavelmente e percebeu que o


sinal de pânico foi cedendo quando ele estendeu as mãos sobre os
ombros, puxando o corpete, em seguida, deslizando para trás para
soltar os botões e desde o início de sua estada, principalmente por
causa do que a boca e as mãos foram fazer para distraí-la.

Vitória respirou profunda e descompassadamente e percebeu


que a ponta de pânico estava se dissolvendo à medida que ele
acariciava seus ombros, afastava o corpete e se movia na direção de
suas costas para abrir os botões e desamarrar a parte de cima do
corselete, enquanto sua boca e mãos tratavam de distraí-la.

Ele foi rápido e suave; os seios dela, soltos e nus, se


movimentavam no escuro recinto da carruagem antes que ela
percebesse.

Ele os cobriu, ergueu e acariciou, com um toque gentil e


firme. Vitória fechou os olhos e suspirou quando a boca dele se
fechou sobre um mamilo e o manteve, com energia, lambendo-o
com a ponta da língua. A sensação pulsante que sentia ali
combinava com a que se expandia entre as suas pernas, e ela
movimentou os quadris sob o peso dele.

Com um último toque de seus lábios, Sebastian riu contra o


peito dela. — Paciência, minha querida — disse, mas se levantou
para tirar suas calças. Ela as viu cair, desnudando coxas
musculosas e, depois, suas cuecas; ele se inclinou para frente e
suas mãos procuraram o interior das saias dela, deslizando ao
longo de suas coxas, para descobrir suas pernas e empilhando todo
aquele tecido da vestimenta de seda e rendas no colo dela.

Os dedos dele se introduziram e brincaram onde ela ardia e


queimava, fazendo com que suspirasse e gemesse e ansiasse pelo
restante. Ela sentiu o roçar dos cabelos dele sobre seu rosto quando
ele beijou seu pescoço, a respiração áspera em seus ouvidos.

Vitória queria chegar mais perto dele, mas seus braços ainda
estavam presos às suas costas. — Sebastian... — ela começou a
dizer, mas o resto se perdeu, quando ele cobriu sua boca com a
dele, silenciando tudo, menos o suave gemido de Vitória, enquanto
as mãos dele subiam sob seu vestido, para tocar sua vis bulla.

Ela sentiu quando roçaram naquele amuleto, gentilmente


passando sobre a cruz de prata. Depois, as mãos dele se
estenderam em suas coxas, sob as saias e as roupas íntimas e
ergueram os quadris, para que a roupa se amontoasse mais ainda.

Sebastian se afastou, liberando a sua boca com um ruído


baixo e delicioso, deixando bem claro que poderia beijá-la a noite
toda. Com um último olhar para ela, como se fosse para confirmar o
movimento seguinte, ele suspirou suavemente e a penetrou,
deslizando em seu interior com calma.

Ah... Vitória fechou os olhos enquanto seu coração disparava


e a adorável sensação de estar se unindo a um homem a invadiu.
Uma lágrima de prazer escorreu para seus cabelos e ela se entregou
a uma respiração profunda e simplesmente sentiu.
Percebeu que ele não estava se movendo; eles estavam unidos
ali, na ruidosa carruagem, as mãos dele próximas de seus ombros,
um joelho dobrado perto de sua coxa, no banco. Quando abriu os
olhos, foi para vê-lo olhando para ela com um sorriso.

— Eu sempre soube que nossa primeira vez seria numa


carruagem — ele lhe disse. E aspirou profunda e
descompassadamente. Depois exalou. Fechou os olhos.

E ainda não se moveu.

Ela se deslocou, sob o peso dele, porque suas mãos estavam


presas. — Sebastian.

—Por que a pressa, minha chére? — Ele se inclinou para


beijá-la, de novo, acariciando seus lábios com os dele, degustando
como eles se tocavam suavemente um contra o outro, ao ritmo do
veículo. Havia suficiente movimento, no incessante balanço, para
que Vitória focasse toda sua atenção exatamente lá, no ponto em
que ele a penetrou e onde seus mamilos roçavam a camisa que
Sebastian nem se preocupou em tirar. O vestido dela estava
erguido, entre os dois, espalhado sobre o banco, e as pernas dele,
quentes, contra as dela.

Ele se movimentou para frente e ela sentiu o gosto de seu


pescoço, levemente salgado, e a pulsação em sua garganta. A
vibração entre eles doía e queimava; e ela sentiu a maneira como
eles deslizavam juntos, sempre tão levemente, e a familiar e, há
muito tempo, perdida vertigem que começaria a evoluir em seu
mais profundo interior. Aquela imensa, incessante necessidade de
penetração, até que tudo em que ela podia pensar, concentrar-se,
era nele dentro dela e sem se movimentar.

Sebastian descansou seu rosto na testa dela e, finalmente, se


mexeu. Devagar, traçando cada estocada, para dentro e para fora,
com deliberação, ele se movimentava para cima e para baixo, suas
mãos pressionando o assento estofado, ao lado dos ombros dela,
penetrando em seus cabelos e apertando a pele de Vitória. Ambos
respiravam no mesmo ritmo, apressado e urgente, entre suspiros e
leves gemidos.
Vitória se movia, também, sentia a tensão latente em seu
interior e não tardou muito para que estremecesse, embaixo dele,
mais lágrimas brotando de seus olhos fechados, e então percebeu
que ele arqueou-se, dando a última estacada, e parou,
permanecendo dentro dela.

—Ah, Vitória — ele murmurou pertinho de sua orelha, em voz


baixa, quase inaudível sobre o ruído da carruagem — estou tão feliz
que você mudou de ideia.

— Sobre o quê? — ela mal podia balbuciar as palavras.

— Sobre me fazer esperar muito tempo para isto.

— Você me deu pouca chance — ela respondeu, seus lábios


roçando contra o despontar da barba no queixo dele. — Você é
muito convincente. E... Sebastian... meus punhos estão doendo.

— Claro. — Ele se afastou, sentou e vestiu as calças,


deixando-a sem o prazer de ver seu peito ou outras partes de seu
corpo. Depois ele a ajudou a livrar-se do casaco e recolocar os seios
dentro do vestido.

— Está com fome? — ele perguntou, reclinando-se, de volta


seu lugar.

— Quanto tempo falta até chegarmos ao lugar para onde


estamos indo? Ou será que tudo não passou de um truque para
fazer entrar nesta carruagem?

Ele sorriu, muito despreocupado. — Realmente, foi um ardil.


Eu queria, desesperadamente, fazer com que você entrasse neste
veículo. Mas ainda podemos comer, não?

A cesta havia sido colocada sob um dos assentos e Vitória o


ajudou a puxá-la, seus longos cabelos caindo, quando ela se
inclinou para frente.

— Que prazer, observar seus cabelos soltos como agora — ele


comentou, enquanto ambos levantavam a cesta para depositá-la
perto dele, no banco. — Esperei vê-la assim desde a primeira noite
que nos conhecemos, no Cálice de Prata.
— Permaneceu daquele jeito — ela disse. — Estive pensando
em cortá-lo, mas não pude suportar a ideia.

— Graças a Deus pela vaidade! — ele comentou, abrindo uma


garrafa de vinho. — Você pode dar uma olhada para ver se há
queijo lá dentro?

Enquanto ela remexia na cesta, ele encheu uma taça para


ela, entregando-a quando Vitória lhe passou o queijo e o pão, e
ambos se recostaram para comer.

Seu corpo ainda vibrava e havia um monte de perguntas a


fazer e mistérios a desvendar. Como por exemplo, a aparência dele,
sob todas aquelas roupas. E quem era Beauregard.

Enquanto tomava um gole de vinho e mordiscava um pedaço


de pão, Vitória se sentiu preguiçosa, sonolenta e satisfeita. Foi só
quando seu copo estava quase vazio que ela se deu conta de que
aquele conjunto de sensações — a leseira, a sonolência e a
satisfação não era natural.

Ela se afastou e a carruagem parou. Ela se agarrou na lateral


do veículo mais próxima dela.

— Posso pegar isso, ma chére, antes que você derrame? —


Sebastian foi rápido ao tirar a taça de vinho dela.

— Salvi — ela acusou. Sua língua estava grossa, mas ela se


forçou a repetir. — Você colocou salvi... nisso. Você... mentiu... —
As palavras saíam com dificuldade; os olhos dela estavam pesados.

— Não menti quando disse que era um ardil para trazê-la


aqui — ele falou. — Lamento ter tido de fazer isso dessa forma...
mas você não teria vindo, de outra forma. Afinal de contas, você é
uma Venadora e costuma fazer as coisas a seu modo. — Ela
pensou... será que existia um pouco de zombaria na voz dele?

— Sebastian... — ela carregou ao máximo o tom acusatório


de sua voz.

—Você ficará mais confortável desse jeito. — Ele a ajudou a


se acomodar perto dele, sua cabeça apoiada no canto oposto ao
dele, seus joelhos dobrados no banco, seus pés empurrando as
pernas dele.

—Porque?

— Infelizmente, você estava se tornando um problema para o


planos da Tutela e fui encarregado de removê-la.

— Seu... men... ti... roso. Seu... bas... tardo.

— Olha só que linguagem! Mas é apenas temporário, minha


querida. Prometo que não sofrerá nenhum dano. Estará a salvo fora
de Roma, depois do segundo.

— Quem é... Beau... re... gard... — os olhos dela se fecharam.


O sono a levou para longe.

Ele disse algo; talvez fosse uma resposta à pergunta. Ela


achou que ouviu isso, mas depois não conseguiu lembrar de mais
nada.
21
O senhor Vioget faz uma comparação desairosa para
nossa heroína

Quando Vitória voltou a si, a primeira coisa que notou foi que
sua nuca estava fria.

Depois, que não podia mover os braços. Nem as pernas.

Ela tentou estreitar os olhos abertos, em um esforço para


fingir que ainda estava inconsciente, mas obviamente não
funcionou.

— Ah... nossa linda Venadora retornou a nós. — A voz de


Sebastian estava muito próxima e, então, Vitória abriu os olhos e
deu uma espiada.

Ele estava sentado em uma cadeira perto de onde ela estava


deitada, em uma cama estreita ou sofá; não tinha muita certeza. O
que sabia mesmo era que seus pulsos e tornozelos estavam presos
e, mesmo assim, que ela trataria de matá-lo.

Um rápido vislumbre do cômodo pequeno lhe indicou que


estavam em algum tipo de residência: cortinas cobriam as janelas,
tapetes protegiam o piso, uma mesa com um candeeiro estava ao
lado do cotovelo de Sebastian. Agradável e acolhedor.

Em algum lugar, entretanto, havia vampiros. Não no quarto,


acreditava, mas em algum lugar nas cercanias.

— Vou matar você — ela murmurou com os dentes cerrados.

— Por que acha que tomei a precaução de prendê-la?

— Você disse que Beauregard é seu avô?


— Bem... mais precisamente, ele é meu tatara-tatara-tatara -
tatara.. um vasto número de gerações anteriores às do que seria a
de meu avô. — Sebastian sorriu de maneira benevolente, como se
acabasse de revelar seu parentesco com o rei. Ela havia tirado o
casaco e estava com sua camisa e suas calças, tendo uma taça de
vinho perto dele, sobre a mesinha.

— Ele é um vampiro. — Sebastian curvou a cabeça,


assentindo. — Um vampiro cujo nome obviamente sugere uma
grande quantidade de poder e influência.

— Então você me ouviu, em meio à névoa de sua submissão,


na noite passada? Eu não tinha certeza do que você lembraria.

— Ouvi tudo, incluindo a parte em que você afirmava que eu


lhe pertencia, como um pedaço de carne de cavalo. Eu não
imaginava que você queria tomar posse de mim como um ser
primitivo e, também, queria se aproveitar de mim.

Então, ele a fitou com olhos de tigre que cintilavam de


censura. — Permita-me lembrá-la, Vitória, que eu não tomei nada
que você não tenha oferecido livremente.

Ela se esforçou para evitar o rubor de fúria e mortificação e


mudou de assunto. — Quem ordenou que você me levasse embora?

— Não fui obrigado a fazer nada. Foi um pedido que,


relutantemente, me fizeram e eu prontamente concordei, sabendo
que seria para o meu bem e o seu, também, uma vez que manterá
sua linda pele a salvo durante o fogo cruzado e eu de ser forçado a
tomar partido. E, devo esclarecer, disse isso sem pedir nenhuma
compensação. Você não acha que foi uma atitude heróica de minha
parte?

— Heróica? Ou em beneficio próprio? Afinal de contas, parece


que você se aproveitou bastante da situação e teve suas
compensações.

— Vitória, agora você tem de admitir que nossas adoráveis


intimidades vinham acontecendo havia muito tempo e, na verdade,
foram simplesmente um benefício inesperado de minha tarefa. De
fato, minha única intenção foi vê-la em segurança, fora do caminho
quando as coisas progredirem do jeito que devem.

— O que você pensa que eu sou, uma mulher indefesa? Sou


uma Venadora — não preciso ser sequestrada, seu idiota sangrento!
— eu tenho de estar lá! — Ela puxou as cordas em torno de seus
pulsos, fazendo com que o material, seja lá qual fosse, fizesse leves
ruídos. Quando ela viu o interesse cintilando no olhar dele, à
lembrança de que fosse indefesa, rapidamente começou a lhe fazer
perguntas. — Quem lhe pediu para me levar embora? Beauregard?

Ele parecia estar apreciando imensamente a situação, o que


fez Vitória ficar ainda mais decidida a acabar com o sorriso
sarcástico naquela boca linda. — Quer dizer que você ainda não
adivinhou? — Riu. — Você realmente não sabe? Foi Max,
obviamente. Max, que jamais pediria uma coisa dessas para mim se
tivesse outra saída, o que, com certeza, não tinha. Pobre bêbado!

Vitória fez uma pausa. Sim, fazia sentido. Max lhe dissera
para deixar Roma, sabia que ela não lhe dera ouvidos (algo que, na
certa, não deveria fazer mesmo) e resolvera decidir por si mesmo.

— Por que existe tanta animosidade entre você e Max? — ela


quis saber.

Sebastian sacudiu a cabeça. — Isso é algo que não desejo


conversar com você neste momento. Mas, fique à vontade para fazer
outras perguntas que deseje. Talvez você toque em algum outro
tema interessante. Temos mesmo que ficar matando o tempo. A
menos que você queira se dedicar a outras atividades prazerosas.

— Você está realmente perturbado, se pensa que deixarei que


me toque de novo.

— Agora você está começando a soar como aquelas heroínas


das novelas da senhora Radcliffe; nada Venadora, de jeito nenhum.
ÉO que acontece quando se extraiu o melhor de você? É
surpreendente que você tenha chegado aonde chegou se é capaz de
resvalar nesses protestos banais.

— Por que você não me solta e observa que tipo de heroína


gótica eu sou.
— E permitir que a Venadora atue com força total? — ele
respondeu fingindo estar horrorizado. — Acho que não. Embora...
— Ele se movimentou e, subitamente, estava sentado perto dela,
seu quadril tocando a cintura dela. — Não sei por que eu não tiraria
vantagem da situação; como você indicou, quando for libertada, não
me permitirá chegar muito perto de sua adorável pessoa. O que eu
considero muito penoso.

Ele curvou os dedos firmemente ao redor do maxilar dela,


para manter sua cabeça no lugar e inclinada para frente.

Ela esperava um beijo rude e autoritário, mas se surpreendeu


ao notar que foi suave e gentil, a antítese da forma como a
mantinha subjugada. Ela disse a si mesma que retribuiu o beijo
apenas para envolvê-lo em complacência. Quando, depois de um
momento, ela tentou morder os lábios dele, Sebastian se afastou,
rindo, e soltou o rosto dela. — Aí está minha lutadora!

Ele passou um dedo pelo queixo de Vitória, descendo pelo


pescoço, e, através do côncavo na base da garganta, seguiu para os
seios, deixando um rastro de arrepios ao longo do caminho. — Você
é muito tentadora, minha cara; tanto, que eu arrisquei mais do que
deveria, desde que nos conhecemos. Mas não sou o primeiro Vioget
a permitir que uma mulher me influencie. Os homens da minha
família têm suas fraquezas.

Sebastian não se moveu do lugar em que estava, perto dela, e


o calor de suas pernas ao lado do corpo de Vitória estava se
tornando insuportável. Ele havia se virado e estava se inclinando
sobre ela, apoiado na palma de sua mão no outro lado do braço
dela, a camisa sem gravata roçando no seu vestido.

Ela não deu a ele a satisfação de fazer uma pergunta óbvia, e


tentou não pensar na proximidade dele. Recusou-se a admitir que
houvesse uma calma pulsação na garganta dele nem que uma
abertura em sua camisa mostrava um pouco dos pelos dourados
que havia em seu peito. E em como um dos dedos dele brincava
gentilmente nas mechas próximas a seu ouvido, enviando
desconfortáveis arrepios ao longo de seu pescoço.
Em vez disso, ela concentrou sua atenção no fato de que ele a
enganara novamente. Com certeza, jurava que era para mantê-la a
salvo.., mas ele era neto de um vampiro poderoso. Não podia confiar
nele, mesmo que fosse um amante delicioso. Seu ato de amor tinha
sido apenas uma maneira de pegá-la desprevenida e confiná-la em
algum lugar, para que ficasse em segurança.

Ela! Uma Venadora!

— Meu tatara-tarara-tataravô foi levado a seu estado por uma


linda, manipuladora vampira, há séculos. E meu pai foi atacado e
morto por outra, lascivo. Ela foi a primeira entre os dois únicos
vampiros que eu já matei.

— Você afirma que não é membro da Tutela.

— Não sou membro da Tutela, Vitória, embora haja


semelhanças entre nós. A Tutela está interessada em proteger
vampiros, bem como em conquistar sua própria imortalidade. Seus
integrantes querem que os vampiros aumentem seu poder e são
fascinados pela vida deles. Eu não quero ser imortal nem pretendo
destruir mortais. O preço é muito alto e seu estilo de vida é pouco
recomendável. Se é que alguém pode se referir à existência deles
dessa forma.

—Mas os vampiros se apossaram de dois membros de sua


família, afastando-os de você.., não entendo como você pode se aliar
a eles de alguma forma.

— Meu avô não foi afastado de mim. Acho que ele é quem é e
tem sempre sido, e eu o amo. Se fosse morto por alguém como você,
seria condenado por toda a eternidade. — Ele se endireitou,
olhando para ela com uma expressão desconhecida. Condenado por
toda eternidade, Vitória, sem nenhuma chance de reconciliação.
Você compreende o que isso significa? — Ela nunca o vira tão
categórico e destituído de humor. — Cada vampiro antes foi uma
pessoa querida pelos seus... a mãe, a filha, o pai, o filho.... Vitória.
Como você deve muito bem saber. Enviar um deles para a morte
equivale a fazer um julgamento.
— O vampiro somente é condenado se escolhe se alimentar
de um mortal; se nunca fez isso, pode ser salvo da danação eterna.
E Venadores são chamados a julgar como parte de sua missão —
Vitória disse ferozmente, tentando não pensar no homem que ela
poderia ter matado nas ruas de St. Giles, quando se permitiu julgar
quando isso não lhe era permitido. — Fomos agraciados com esse
dom e devemos usá-lo para erradicar o mal neste mundo. — Ela
havia tentado condenar um mortal e se odiava por ter feito isso.

— E eu recusaria essa tremenda carga de julgar. Os vampiros


não são totalmente maus, Vitória, como eu bem sei. Se fossem os
cretinos sanguinários e arbitrários que você acredita serem, eu não
estaria aqui agora. Meu avô teria me transformado ou me ferido há
muito tempo.

— Mas quando um mortal vira vampiro, ele não é mais a


pessoa que era. Torna-se um monstro, um demônio, movido apenas
por sua necessidade. Eu nunca encontrei um vampiro que não
tivesse sido transformado por outro. Vi a carnificina que eles
provocam, a maneira como eles destroçam, desgastam e aniquilam
homens e mulheres. Eles são condenados por uma razão,
Sebastian, condenados porque agem promiscuamente e sem
necessidade; porque eles têm de drenar a vida dos outros para
viver. Sabendo que eu posso evitar que isso aconteça, que sou
chamada a proteger mortais, eu jamais poderia me abster disso.
Não consigo entender como você pode perdoar esse mal, mesmo em
seu próprio avô.

— E é por isso — ele disse delicadamente, ao levantar-se e se


afastar dela, física e emocionalmente — que você me atrai tanto,
para meu grande pesar. Sua convicção, sua coragem, seu sacrifício.
Sua força. Como, mesmo quando diante de um argumento, você
não se deixa influenciar facilmente. Deixe-me perguntar uma coisa,
Vitória. Se meu avô, Beauregard, entrasse neste quarto e eu desse a
você uma estaca, você o mataria, aqui, diante de mim?

Ela olhou para ele, seu coração batendo forte, audível no


repentino silêncio. Sebastian não era uma pessoa má, ela sabia
disso. Podia ser um oportunista, alguém que anda na corda bamba
e joga dos dois lados, mas não acreditava que ele desejasse mal a
ninguém. Mesmo a ela. Especialmente a ela.

— Sabendo que, com um golpe de estaca, você o enviaria —


ou qualquer criatura — ao fogo eterno? — Sebastian se dirigiu a
ela.

Sabendo o que sabia, seria capaz? Julgaria o homem — não o


imortal, o vampiro — que Sebastian conhecia e amava? Como ele
podia amar um vampiro?

— Não sei. — Sua voz era um sussurro; era o melhor que


podia fazer. — Se ele... não sei, Sebastian.

A boca dele se repuxou para um lado. — Parece que você é


capaz de ver ao menos algum tom de cinza, ao contrário de seu
amigo Max, que só vê branco e preto. — Ele se virou e andou pelo
quarto, segurou as cortinas para olhar lá fora.

O movimento permitiu que entrasse um pouco de luz dentro


do quarto; estava bem mais claro do que sua última lembrança de
quando estavam na carruagem. Calculou que permanecera ali a
noite inteira.

Isso significava que nessa mesma data, à meia-noite,


começaria o Dia dos Mortos. Se ela tivesse alguma chance de parar
Nedas, de tentar matá-lo, tinha de se afastar de Sebastian e dos
vampiros que se escondiam em algum lugar, nas proximidades. Seu
pescoço ainda estava gelado.

Vitória puxou seus braços, presos sobre sua cabeça, com os


cotovelos dobrados. — Por quanto tempo você vai me manter
assim? — perguntou.

Ele se virou, meio ofuscado pela luz do sol em raios que


entravam pela janela, lembrando-lhe que ninguém era
completamente sombrio ou iluminado, ninguém era totalmente bom
ou mau. Mesmo, se ele merecesse crédito, os vampiros. — Como eu
gosto de vê-la em uma posição tão indefesa, não me sinto motivado.
— O sorriso dele voltara, mas denotava sinais de tensão.
Ela puxou os pulsos, novamente. — Meus braços estão
doendo.

— Tenho certeza que posso dar um jeito de afastar sua mente


da dor.

— Você ia achar isso mais agradável, se eu fosse capaz de


participar.

Uma das sobrancelhas dele se ergueu. — Sua ideia de


participação provavelmente não será a que eu tenho em mente.
Penso que vou deixá-la exatamente do jeito que está.

— Onde estão os vampiros? Sei que estão aqui. Amigos de


seu avô, suponho.

— Apenas um pouco mais de segurança — ele comentou.

— Fora daquela porta. Você devia se sentir lisonjeada porque


senti necessidade de contar com ajuda adicional.

Ele caminhou em direção a ela e parou, olhando para baixo.

— Quando tudo isso acabar, amanhã, talvez, eu liberte você,


de maneira que possa começar a juntar as peças. Por enquanto,
porém, eu digo au revoir.

Ele se inclinou, deu-lhe um beijo suave no canto dos lábios,


onde ele estava a salvo dos raivosos dentes dela e saiu do quarto.

Tão logo ele foi embora, Vitória começou a procurar uma


oportunidade de fugir, mas assim que a porta se fechou atrás de
Sebastian, abriu-se de novo e outro homem entrou. Um vampiro.

Os olhos dele cintilavam em vermelho e suas presas estavam


à mostra e, por um terrível momento, ela pensou que ele estivesse
disposto a atacá-la. Com certeza, Sebastian não permitiria. Mas ele
foi embora.

Assim que o vampiro chegou e se colocou perto dela, sua


visão girou e seu estômago se revolveu.
— É uma vergonha que tenhamos de manter você intocada.
Eu nunca tinha visto uma Venadora, antes. — A implicação era
clara e ela sentiu que seu pânico foi diminuindo.

Mas, então, o vampiro passou um dedo frio em seu pescoço,


usando sua unha afiada e ela sentiu a picada, seguramente
profunda o bastante para drenar sangue. Ele se inclinou sobre ela,
que se movimentou, esticando as cordas atrás de sua cabeça,
sentindo-as saltar, mas ele não a mordeu.

Em vez disso, ele passou sua longa e fria língua sobre o lugar
que havia cortado. Vitória virou a cabeça, o estômago dando saltos,
suas costas arquearam, e ela esperou que qualquer proteção que
Sebastian tivesse colocado à sua disposição, funcionasse direito no
momento em que o vampiro sentiu o cheiro de seu sangue e o
provou.

Suas veias se intumesceram, o sangue pulsando visivelmente


como se fosse explodir no lugar do pescoço onde ele a arranhara.

A respiração de Vitória tornou-se arrastada, lenta, indolente.


O mundo afunilou em um turbilhão de sensações: a fria umidade
da língua dele, longa e vagarosa, sobre a carne dela; o roçar dos
dentes, os dedos com unhas afiadas, agora se cravando em seu
couro cabeludo, sob sua pesada cabeleira... as batidas de seu
coração disparando, pulsando em suas pernas enquanto ela lutava
para libertá-las.

Quando ele se afastou, sorriu e seus olhos apresentavam um


vermelho sanguíneo profundo. A fome cintilava dentro deles e ela
sentiu o cheiro no hálito dele. — Isso foi saboroso — ele murmurou,
passando suavemente sua unha afiada ao longo do pescoço e do
peito dela. — Estou muito tentado. — Sua unha parou,
pressionando a pele macia que inchou sobre seu corpete.

O furioso pulsar de seu coração era tão forte, que o peito dela
se sacudia ritmadamente, de maneira que ela mal ousava respirar.
Os olhos do vampiro cintilavam em vermelho, depois em vermelho
mais intenso, para se suavizar em seguida, enquanto ele parecia
estar calculando suas opções.
Mas no fim, ele se afastou. — Felizmente, para você,
Venadora, eu dou mais valor à minha existência do que às delícias
que você promete — disse, olhando para ela. — Talvez mais tarde,
quando Vioget se cansar de você.., mas, por ora... devo,
lamentavelmente, declinar. — Ele disse a frase por cima do ombro,
à medida que se afastava e ela relaxou, observando quando ele saiu
porta afora.

Se não fosse por Sebastian — e, possivelmente, pela


influência de seu avô — ela poderia estar em grandes apuros. As
ações do vampiro amorteceram bastante os argumentos de
Sebastian: o vampiro estava claramente disposto a tomar posse de
uma mulher indefesa e só foi impedido pelo receio com sua própria
segurança.

Mas agora... nesse momento ela precisava encontrar um jeito


de se libertar.

Quando ela puxou bem forte as cordas de seus pulsos, sentiu


algo se mover sobre ela. Observando o ambiente com mais atenção,
ela percebeu que estava amarrada a uma cama e que a cabeceira se
afrouxara, por causa de seus esforços. Talvez ela conseguisse
quebrá-la.

Ela não sabia se o barulho poderia fazer com que os vampiros


que estavam de guarda entrassem, mas tinha de tentar.

Tentando fazer com que o ruído fosse o menor possível, ela


puxou os pulsos, sentiu as cordas arranharem sua pele e se virou,
procurando ver se poderia soltar a cabeceira da cama. Ela não
tinha certeza sequer do que o móvel era feito... parecia metal ou
algo parecido.

Vitória lutou, depois começou a forçar os pés, da mesma


forma, causando ruídos baixos e profundos, na parte inferior da
cama, felizmente tão ínfimos, que não iriam alarmar os vampiros.
Se ela conseguisse soltar as cordas, poderia se aproximar da
cabeceira e, talvez, fosse capaz de usar suas mãos, em vez de fazer
um esforço integral tão grande.
A parte de baixo da cama cedeu primeiro, e quando ela
finalmente conseguiu erguer os pés, trouxe consigo o metal solto,
que caiu sobre suas pernas. Gemendo de dor, ela se aproximou da
cabeceira e a segurou com os dedos, tentando agarrar o metal com
firmeza.

Mas então ela descobriu algo melhor. O ferro fundido era


áspero e ornamental, e a parte traseira de suas mãos roçou em uma
área que era bem afiada. Se ela pudesse se posicionar de maneira a
ser capaz de mover seus pulsos para serrar as cordas naquela
borda...

Demorou bastante. Seus braços já estavam bastante


doloridos, por manter-se naquela posição, e por causa dos
movimentos, mas ela não era uma Venadora em vão. Finalmente,
as cordas se soltaram o suficiente para que ela conseguisse livrar-
se delas.

Com os braços livres, Vitória se sentou, arrancou-as e


começou a trabalhar em seus tornozelos. Logo, estava em pé no
chão, correndo para a janela, levando consigo a corda que estava
enrolada em suas pernas. Ainda era dia; passava do meio-dia, a
julgar pela posição do sol. Tinha, então, menos de doze horas para
chegar de onde quer que estivesse até o teatro, para tentar matar
Nedas.

Poderia sair pela porta e lutar com os vampiros; sentiria até


uma certa satisfação ao afundar uma estaca naquele que provara
de seu sangue. Mas isso levaria tempo e ainda havia a possibilidade
de ser, novamente, capturada. Não uma grande chance, mas a
possibilidade existia.

A janela ficava quatro andares acima do solo, porém, ela


daria à corda de Sebastian uma boa utilidade. Quando estivesse
fora da janela, descendo, os vampiros seriam incapazes de segui-la,
por causa do sol. E então ela viu a silhueta da Basílica de São
Pedro. Ainda estava em Roma! Ao menos isso estava a seu favor.

Quando olhou para baixo, praguejou e se afastou da janela.


Mas era tarde demais — Sebastian, que acabara de descer da
carruagem, a vira olhando pela janela. Ele a olhou de um jeito
zombeteiro, como se dissesse: — Boa tentativa — e correu pelas
escadas, lá embaixo.

Então, ele não acreditava que ela conseguisse fugir pela


janela, não é mesmo? Ela pensou que ele deveria conhecê-la
melhor!

Com sua saia bem enrolada sobre o corpo, Vitória agarrou a


peça de metal que ainda estava sobre a cama e a colocou contra a
parte interior da janela, de maneira a ter um apoio para a descida.
Podia ouvir o ruído de passos nos degraus, abaixo, e sabia que
tinha pouco tempo. Rapidamente, amarrou a corda no mármore do
parapeito, na borda de uma varanda do tamanho de um simples
travesseiro.

A porta do quarto foi escancarada e os vampiros entraram,


mas ela já estava lá fora, ao sol, descendo pela corda. Vitória pôde
ouvir as maldições de Sebastian, quando ele chegou ao cômodo,
mas ela já estava passando pelo segundo andar, sua saia
balançando sob a brisa suave e impedindo que tivesse uma boa
visão da área abaixo. A parede de gesso que estava diante dela
tinha uma cor laranja-escuro, que descascou quando ela tentou
encontrar, ali, uma saliência para apoiar os dedos do pé.

Felizmente, a casa se assentava sobre um pequeno pátio


rústico, em vez de estar de frente para a rua, então havia pouca
chance de alguém dar um alarme sobre a mulher que tentava
descer pela janela. Arbustos de urtiga estavam plantados ao longo
do comprimento das paredes, para obstruir o acesso às janelas
inferiores. Ela teria de tomar cuidado para não pousar sobre um
deles.

A corda acabou bem abaixo da janela do terceiro andar e


Vitória olhou para cima. Sebastian não estava mais olhando para
ela; certamente estariam descendo as escadas para alcançá-la
Tinha de tomar uma decisão: entrar pela janela e tentar fugir de
outra maneira, ou soltar-se, esperando cair na minúscula varanda
do segundo andar.

Voltar para o interior da casa poderia representar mais


perigo, pois estaria novamente ao alcance dos vampiros, mas tentar
um salto lá para baixo talvez não lhe desse tempo suficiente para
fugir, antes da chegada de Sebastian. Ela teve que fazer a escolha.

Olhando para baixo, além de sua saia que obstruía


parcialmente sua visão, ela se concentrou na borda da janela.
Estava a uma distância não superior à altura de um homem. O arco
ogival da parte superior estava fora de seu alcance, mas alterando
sua posição na ponta da corda, procurando se aproximar com uma
das mãos, ela foi capaz de agarrá-lo, segurando-se nele para se
equilibrar. Fechando os dedos sobre a saliência, Vitória apoiou seu
peso na parede, inclinando-se no arco e soltou a corda.

Ela caiu, usando o apoio da mão na saliência para direcionar


a queda e pousou na pequena beirada da janela, onde mal havia
espaço para seus pés. Com um lampejo de reflexão, ela se virou
sobre a mesma base, como fizera no quarto andar, as saias
balançando, e ficou pendurada ali por um instante, antes de cair ao
chão, felizmente ao lado de um arbusto.

Ela correu na direção da pequena entrada do pátio,


assustando dois gatos que estavam ao sol, e ouviu a batida da porta
sendo aberta atrás dela, bem como o chamado de Sebastian.

Virando o canto, ela se encontrou em uma rua estreita, com


uma série de casas semelhantes àquela da qual acabara de fugir.
Ele estava bem atrás dela; podia ouvir seus passos cada vez mais
próximos.

Vitória não estava disposta a ser pega, agora, quando chegara


tão longe. Correu rua abaixo, entrando em outra viela e foi embora,
passando por esquinas e subindo ruas, passando em frente de
casas de artesãos de cadeiras, alfaiates e padeiros, até que o ruído
dos passos atrás dela se perderam entre os sons de Roma, ao meio-
dia.

O relógio do Quirinal soou a distância: duas da tarde.

Contaria com dez horas.


22
O senhor Starcasset esclarece alguns detalhes

As ruínas do teatro ainda estavam fumegando quando Vitória


chegou, mais ou menos pouco depois das três da tarde, primeiro de
novembro, a véspera, portanto, do Dia de Finados ou Dia das
Almas, como costumava ser chamada aquela data. Curiosos
estavam observando, boquiabertos. Apressados passavam
rapidamente, como se nada tivesse acontecido.

O fogo havia destruído apenas cerca de um terço da frente do


edifício, mas obviamente estava destruído. Vitória se perguntou
quantas pessoas haviam morrido — vítimas do fogo e da fumaça ou
das presas dos vampiros.

A despeito de sua conversa com Sebastian, ela não conseguia


aceitar a ideia de que os vampiros não fossem totalmente maus. Ia
contra tudo o que ela aprendera no último ano e meio e em suas
interações com aquelas criaturas.

Vitória ajeitou seu manto sobre os ombros, na tentativa de


esconder suas vestimentas incomuns. Ela se vestira para lutar,
para se esconder, para correr e escalar, com calças pretas largas e
uma túnica combinando. Seus sapatos tinham sola de couro,
suficientemente espessos para oferecer, ao mesmo tempo, proteção
e flexibilidade, de maneira a facilitar os movimentos. Seus longos
cabelos haviam sido presos em uma longa trança, reunida atrás de
sua camisa, de maneira que roçavam a base de suas costas,
embaixo da roupa. Ela trouxera consigo água-benta, estacas e uma
faca, tudo isso escondido em diferentes partes de seus trajes. Miro,
o mestre de armas do Consilium, lhe dera uma outra arma, especial
para uso nessa situação particular: um pequeno arco, que lhe
permitiria arremessar determinada seta de madeira — na verdade,
um tipo de estaca — até um alvo a distância.

Ela já sabia que jamais conseguiria chegar suficientemente


perto de Nedas, para fincar uma estaca em seu peito, então sua
única chance de sucesso era esse arco que permitia lançar estacas
em formato de setas. Ela não era uma arqueira muito hábil, mas
podia atingir seu alvo. Tinha três estacas e seu plano era matá-lo, e
então, na sequência do que ela esperava ser um tremendo caos,
roubar o Obelisco de Akvan. Em último caso, assassinar Nedas
impediria — ainda que temporariamente— a ativação do Obelisco,
dando mais tempo de ação aos Venadores, se Vitória não fosse
bem-sucedida.

Verbena estava mais curiosa do que preocupada, quando


Vitória voltou à vila; ela sabia que sua patroa havia saído com
Sebastian e não ficou surpresa demais quando não a viu retornar,
naquela manhã. — Afinal, eu vi o jeito que cêis dois se oiavam —
como gente que quasi num pódi esperá pra tirá as roupas um do
outro. Ocê é jovem e ficou de luto pelo marquês mais de um ano,
intão já tava bem na hora de se dá um tempinho de rala e rola, se é
que ocê mi entende.

O que Vitória poderia dizer, diante disso? A observação de


sua criada fora, como sempre, bem acurada; como ela poderia saber
que Sebastian tinha outros planos, além de seduzi-la?

Não demorou muito para que Verbena vestisse e preparasse


sua patroa para ir. Oliver levara uma mensagem à vila de tia
Eustácia, para informá-la que Vitória estava de volta (obviamente,
ela nem sequer sabia que sua sobrinha havia desaparecido, uma
vez que Verbena não disse nada) e sobre seus planos de ir ao teatro
para tentar fazer com que Nedas parasse. Oliver retornara, mas
com informações de que tia Eustácia não estava em casa. Ele
deixara a mensagem, é claro, mas Vitória não podia esperar mais, o
tempo estava se esgotando.

Agora, no teatro, sua maior dificuldade era conseguir entrar


no edifício destruído sem ser notada por um vigia ou, pior, um
membro da Tutela. Uma vez lá dentro, seu plano era seguir adiante
e atacar Nedas furtivamente, a distância.

Vitória caminhou até a parte de trás do prédio, onde havia


menos observadores e se dirigiu, com uma atitude bem casual, até
ele. Notou que havia uma pequena entrada, meio oculta por um
outeiro, provavelmente para uso de funcionários e comerciantes. Ao
se aproximar, começou a sentir que sua nuca esfriava.

Deu alguns passos fora da alameda que conduzia à porta,


passando por um conjunto de árvores, quando notou que havia
alguém atrás dela. Antes que pudesse virar-se e ver quem estava
saindo da sombra dos carvalhos, algo foi pressionado contra seu
quadril: redondo e rígido. E pequeno.

— Então é você, Vitória. Eu estava começando a imaginar.


Não, não pare, continue andando, tranquila e facilmente até a
porta. Eu esperava que Pesaro a trouxesse, mas isto aqui também
vai dar certo.

George Starcasset a estava ameaçando com uma pistola


encostada em seus rins, falando suficientemente baixo para que
não pudesse ser ouvido por nenhum eventual transeunte;
pareceria, ao contrário, que ele estivesse passando um braço
protetor ao redor da cintura dela.

— Sinto muito, mas acho que não sei do que você está
falando — Vitória falou calmamente, embora tenha sido pega de
surpresa. Ao menos eles estavam indo na direção que ela queria.

— Não tínhamos certeza a seu respeito; havia suspeitas,


obviamente, e foi por isso que eu a convidei para ir a Claythorne e
me assegurei de que Vioget e Polidori lá estivessem, para atrair os
vampiros. Como pode perceber, naquela ocasião eu não sabia que
vocês eram tão amigos — ele pressionou mais a arma nas costas
dela. — Mas, como eu não a tinha visto em ação ou observara o que
aconteceu, não podia saber, com segurança. Venha por aqui. — Um
rápido olhar sobre seus próprios ombros confirmou que ele perdera
a aparência sorridente e infantil que geralmente ostentava,
substituída por outra, fanática e perturbadora, ainda que em um
rosto jovem.
— Sobre o que você não tinha certeza, George? — ela
perguntou quando eles alcançaram a porta. Ela mal podia acreditar
que aquele fosse o irmão de sua melhor amiga! Um membro da
Tutela, ao que parecia. Ele a cutucou com a arma e ela tomou essa
atitude como uma indicação de que deveria abrir a porta. Fez o
movimento, esperando que não houvesse mais ninguém por perto.
Se fosse escapar dele, o melhor era que houvesse o menor número
de testemunhas. Preferencialmente, nenhuma.

— Que você fosse uma Venadora, claro. Nem tente negar isso,
minha querida — ele disse, fechando a porta atrás deles,
permitindo que a pistola se inclinasse um pouco, ficando mais
distante dela, quando fez o movimento. — Tínhamos nossas
suspeitas, mas uma vez que Lilith foi embora de Londres e levou
seu povo com ela, como poderíamos ter certeza?

Felizmente, para ela, George estava emborcado, de tão


bêbado, naquela noite do ataque de vampiros em Claythorne; ele
dormira durante os eventos. Ela imaginou se ele se mortificara por
não poder admitir à Tutela que estava muito fora do ar para ficar de
olho nela. O pensamento fez com que surgisse um leve sorriso nos
lábios dela. Ele bem que merecia isso.

— Lilith? Ela certamente saberia. Engraçado que você tenha


tido que me seguir até a Itália, para descobrir. — Ela se virou
ligeiramente, de maneira que se colocou quase de frente para ele,
na estreita passagem e notou que ele estava carregando uma sacola
sobre o ombro.

— Talvez ela soubesse, mas como há um sentimento aberto


de animosidade entre ela e seu filho Nedas, como é que ela poderia
dizer a ele algo capaz de protegê-lo? Eles preferem mandar um ao
outro para o inferno, antes de se ajudar. Por aqui, minha querida.
— Ele apontou a arma indicando que ela deveria seguir em frente.
— Eles ficarão satisfeitos ao ver que você já chegou.

Vitória tratou de aguçar os ouvidos. Quanto mais


permanecessem sozinhos, melhor. A parte de trás do pescoço dela
esfriara e agora formigava. Havia muitos vampiros por perto. Em
algum lugar. Seus dedos procuraram pelas estacas, porque essas
eram as armas com as quais estava mais familiarizada, mas não
serviriam para nada, contra George. Além disso... ela poderia matar
um vampiro sem nenhum escrúpulo, mas ainda persistia aquele
detalhe irritante sobre o que fazer com um mortal que se
atravessasse em seu caminho. Especialmente um que fosse irmão
de sua melhor amiga, não obstante seu potencial para inclinações
violentas. Ela teria de encontrar uma maneira de detê-lo, sem
derramamento de sangue.

Sorte que ela ainda estava com seu manto, ocultando o


pequeno arco pendurado em seu ombro, caso contrário ele o teria
pego. Aparentemente, como ela podia notar, George Starcasset não
era a pessoa mais experiente quando se tratava de manter uma
arma bem segura na mão, enquanto a apontava para uma pessoa,
na tentativa de fazê-la obedecer às suas ordens. A arma escorregava
e se movimentava ao acaso e ele tendia a usar justamente aquela
mão para fazer gestos, enquanto falava.

— Ali — disse, apontando para uma pequena porta. — Temos


algum tempo antes de descer. — O sorriso que ele lhe deu teria
causado arrepios na coluna, se fosse de alguém mais ameaçador.

Dentro do reduzido recinto, ele a empurrou, para que ficasse


a certa distância dele, mantendo a arma apontada para ela,
enquanto trancava a porta. — Agora, não quero que você grite, ou
serei forçado a usar isso. E eu odiaria fazê-lo, porque os vampiros
chegariam correndo tão logo sentissem cheiro de sangue. Tire seu
manto.

Vitória fez com que o arco escorregasse junto com o manto,


quando o tirou, de maneira que conseguiu mantê-lo escondido em
meio ao tecido amontoado no chão. Havia apenas uma cadeira no
cômodo; o que quer que ele tivesse em mente — e ela achava que
podia ter uma ideia do que fosse — não seria nada confortável, de
qualquer forma.

— Você estava, mesmo, bêbado, quando veio ao meu quarto,


em Claythorne? — ela perguntou.

Para sua surpresa, ele pareceu ficar levemente ruborizado. A


arma se movimentou, enquanto ele falou sobre a experiência.
— Não percebi o que ele estava prestes a fazer, até que Vioget
me induziu a beber quase uma garrafa de brandy... mas ele sugeriu
que você gostaria de receber uma visita minha e eu não estava
disposto a recusar a sugestão quando ele me levou até seu quarto e
me impeliu para dentro.

Vitória sentiu uma onda de irritação. Então, será mesmo que


Sebastian havia levado George até seu quarto? Ele a induzira a
acreditar que tinha sido ideia de George, com um pouco de
encorajamento dele mesmo!

—Bem, ele não estava muito enganado, ao fazer aquela


sugestão — ela disse a George, imaginando se ele seria tão crédulo,
como fora ao ser induzido, em uma ocasião em que estivesse
segurando uma arma que lhe dava uma sensação de estar no
controle. Ela esperou para ver como ele reagia à sua afirmação.

A arma curvou um pouco para baixo e a boca dele se relaxou.

— Pensei que tivesse lido os sinais, mas ninguém pode estar


muito certo quando se trata de senhoras recatadas, da sociedade.
Sabe? Essa foi a outra razão pela qual a convidei a Claythorne.
Havia notado a forma como você olhava para mim, sempre que
estávamos na mesma festa ou jantar. Mesmo quando era casada.

Vitória teve de engolir a tentação de dar a gargalhada que


aquela afirmação lhe provocou; quando ela e Filipe eram casados —
naquele curto espaço de tempo — ela só tivera olhos para ele. E não
para esse homem jovem e frágil que estava diante dela. — Quando
você me convidou para ir a Claythorne, eu acabara de sair do luto,
então não achei que seria apropriado ser... óbvia. — Ela ofereceu a
ele aquele sorriso.., aquele que aprendera ao estar casada e que
usara com sucesso com Sebastian havia pouco mais de uma
semana. — Mas o fato é que você não precisaria se embebedar para
entrar em meu quarto.

A expressão dele se tornou faminta e ele se aproximou dela,


que se manteve firme, mesmo quando ele encostou o cano metálico
da arma naquela parte suave, sob seu queixo, pressionando-a ali
enquanto abaixava o rosto para beijá-la.
Ela esperava que ele fosse tão inexperiente e grosseiro como
parecia ser com outras coisas, mas não ao beijar. Se ela não
estivesse irritada com ele e distraída por outros afazeres que teria
de tentar, talvez até tivesse apreciado. Possivelmente, mas de
maneira nenhuma certamente.

E essa era a diferença entre ele e Sebastian. Mesmo quando


ela estava brava com Sebastian, mesmo assim gostava de seu beijo.
Maldito!

Na verdade, ela retribuíra o beijo de George com certo


entusiasmo, na esperança de desarmá-lo. Quando a mão livre dele
começou a ficar mais amável, ela se afastou dos lábios dele e
perguntou: — Então, você faz parte da Tutela?

— Claro que faço! Já cheguei ao terceiro nível — ele


respondeu, introduzindo a mão na frente da túnica de Vitória e
apalpando seu seio por cima do tecido. Se fosse um pouco mais
fundo iria encontrar suas estacas... ela não queria que nada o
afastasse de sua trajetória, fazendo com que lembrasse que não
estava diante de uma mulher comum, da sociedade.

— Eu adoraria ver sua marca — ela pediu timidamente,


deixando claro que não era a única coisa que desejaria ver.

— Agora? Eu ficaria muito feliz em mostrá-la para você. Mas,


primeiro... — ele procurou na sacola que estava carregando e tirou
dali um rolo de corda. — Odeio fazer isso, minha querida, mas
tenho de tomar certas precauções.

Aquela era sua oportunidade. Vitória se moveu, rápida como


um raio, dobrando-se e, em seguida, levantando-se com uma
tremenda força, para atingir o queixo dele com sua cabeça e o
abdome de George, com seu cotovelo.

O ranger dos dentes dele se encontrando, seguido de uma


lufada de ar de seus pulmões foram os únicos ruídos que se ouviu,
antes que ele desabasse no chão, com a cabeça e os quadris, como
um saco de pedras.

Vitória guardou a pistola que ele deixara cair, depois o


amarrou. Tratou de apertar bem as cordas e, em vez de deixá-lo
caído no chão, onde ele podia fazer barulho e chamar a atenção
(alertando sobre a presença dela), ela pendurou o corpo inerte dele
nos ombros e o arrastou de volta ao estreito corredor e porta afora.
Largou-o, sem a menor cerimônia nos arbustos que havia ao lado
da pequena entrada do outeiro, totalmente escondido, a salvo de
olhares e na parte externa do teatro, o que era bem seguro.

Ele não recobraria a consciência num futuro próximo, e se


alguém o encontrasse antes, não teria como fazer a conexão com o
fato de ela estar no edifício.

Uma vez tendo deixado George incapacitado, ela correu para


dentro do mesmo quarto onde deixara seu manto e arco, sabendo
que já passava das quatro da tarde e que estava chegando a hora.
O sol ia baixar por volta das seis.

A única pista de que dispunha do lugar para onde deveria ir


derivava da afirmação de George sobre “lá para baixo”. Mas em qual
direção, onde e como... ela não tinha uma noção melhor de quando
ali chegara.

O ruído da porta pela qual ela havia entrado há pouco, vinda


de fora, chamou sua atenção e Vitória espiou pela fresta, na direção
do corredor. Um homem alto e de cabelos loiros caminhava
casualmente pelo corredor, na direção dela. Sebastian.

Finalmente.., a oportunidade de fazer algo que ele costumava,


aparecendo quando jamais esperava. Vitória saiu do cômodo diante
dele. — Olha só, Sebastian... e eu pensando que você ainda
estivesse vasculhando as ruas de Roma, à minha procura.

— Lamento informá-la, minha querida, se você imaginou que


ia fazer meu coração disparar pulando na minha frente,
infelizmente subestimou minha habilidade. Vi quando, momentos
atrás, você levou sua... encomenda... para fora do teatro e a deixou
no meio dos arbustos. Aliás, mandei o velho senhor Starcasset
embora com meu cocheiro, em um esforço para reduzir ao mínimo
sua interferência. Depois disso, foi bem fácil encontrá-la.

— Maldição — Será que ela nunca ia conseguir surpreendê-


lo?
— Espero que você não esteja aqui com a intenção de me
fazer parar. Você sabe como acabou a última vez que tentou.

Ele olhou fixamente para ela, que se surpreendeu ao ver a


aprovação em seu olhar. É algo contrário à minha opinião. mas não
vou tentar impedi-la. No entanto, pretendo acompanhá -la se tem
certeza de que você deseja mesmo fazer isso. Talvez você quisesse
estar presente, para ver tudo.

— Nedas vai ativar o Obelisco de Akvan e eu tentarei fazer


tudo para impedi-lo. O que você espera que aconteça?

— Não estou absolutamente certo, mas receio que eu não


optaria por testemunhar isso. Quaisquer coisas em que Nedas
esteja envolvido só podem ser repulsivas.

— Você sabe para onde ir ou isso seria me oferecer vantagem


demais?

Ele sorriu para Vitória, mas havia um traço de seu velho


temperamento. — Sei de algo melhor. Um lugar onde você pode
observar sem ser notada.

Vitória pensou em seu arco e nas setinhas de madeira. Não


ser notada significava que ela verdadeiramente teria a oportunidade
que precisava. — Então, vamos lá.

Quando eles se moveram, ela acrescentou: — Grata,


Sebastian.

Ele balançou a cabeça. — Poupe sua gratidão, porque você


pode se arrepender, mais tarde.

Vitória podia ouvir vozes quando se abaixou e seguiu


Sebastian por uma abertura estreita. Quando saiu de lá,
encontrou-se olhando através de uma frestinha, em meio às
sombras, acima de um pequeno palco.

Não era o palco onde a ópera tinha sido apresentada, havia


três noites; não havia camarotes nem cadeiras forradas de veludo
alinhadas em um meio círculo em volta dele. A decoração, em vez
de dourados e mármores, consistia de madeira rústica e gesso
deteriorado. Havia uma janelinha quadrada em uma das paredes
perto do teto — Vitória notou — cujas vigas estavam expostas e
cobertas de teias de aranha. Bem abaixo de sua cabeça.

— Onde estamos? — sussurrou no ouvido de Sebastian.

— No palco de ensaiar, dois pisos acima do teatro — ele


respondeu, também em voz baixa.

Ela olhou para baixo, observando as pessoas — a maioria,


homens, e, muitos deles, vampiros — se movimentarem. Eles
pareciam estar se concentrando em uma área central, próxima ao
palco. O frio na nuca não diminuira; sua pele estava tão fria, que
queimava.

Vitória se inclinou para Sebastian de novo e estava prestes a


falar quando ele apertou seu braço e apontou para baixo. Quando
fez isso, algo mudou no ambiente — parecia denso, em expectativa
e metálico, em compasso com o mal.

Um homem estava se aproximando do palco e os outros,


membros da Tutela e vampiros, abriram caminho para a sua
passagem. Ela não conseguia ter uma visão perfeita dele, mas
notou que tinha brilhantes cabelos pretos, curtos e rentes ao couro
cabeludo, a pele de um moreno azeitonado, muito mais escuro do
que o tom costumeiro dos italianos, e sobrancelhas grossas. Era
difícil calcular, mas ela pensou que talvez ele fosse poucos anos
mais velho que ela, em meados dos vinte. Seus lábios eram finos e
apertados; o branco de seus olhos, tão alvo, que chegava a brilhar.

Não era nada parecido com sua mãe, cuja pele era quase
transparente, de tão pálida, enquanto seus cabelos pareciam
cachos de cobre polido e rubi, brilhantemente vermelhos.

Ela sabia que devia ser Nedas, o filho de Lilith, porque


nenhuma outra criatura poderia gerar tamanha obediência e

contar com a completa atenção dos outros. E Vitória sentiu o

mal de uma maneira tão forte, que desejou sair, ir embora.

Ela ficara tão concentrada em examinar Nedas que, a


princípio, se esqueceu completamente... Mas então, quando três
outros homens se uniram a Nedas no palco, e ali permaneceram ob
a iluminação de uma miríade de velas, ela reconheceu Max.

Não ficou surpresa. Surpresa, aliás, não foi o que sentiu


quando viu sua confiante e tranquila figura destacando-se sobre
Nedas e os outros, próximos dele. Ela deve ter se movido ou
segurado a respiração, porque Sebastian tocou seu braço, como se
quisesse confortá-la.

Conforto. A última coisa que precisava — ou queria — era


conforto.

Ela ignorou Sebastian e ficou observando o rosto bonito e


rígido de Max enquanto se suavizava em uma risada, diante de
algo que Nedas dissera, levantando a cabeça em direção ao teto, de
maneira a expor sua garganta enquanto se entregava à hilaridade,
por um instante.

Vitória não podia imaginar o que uma criatura do mal


pudesse dizer de tão engraçado.

Foco.

Ela precisou afastar o turbilhão de sentimentos e desejos


conflitantes que a invadiu, para se concentrar em sua
oportunidade. Abençoado Sebastian; ele lhe ofereceu a localização
perfeita para sua tentativa de assassinato. Eles estavam tão no alto
e envoltos em sombras, que até a visão aguçada de Max não poderia
identificá-los, a menos que soubesse exatamente onde procurar.

O pensamento de que ele possivelmente pudesse saber


cruzou sua mente, breve, mas gravemente. Considerou que ele e
Sebastian podiam ter planejado isso juntos, sabendo que ela
tentaria fazer o que queria e então fingiram um sequestro para que
ela pensasse que eles não a desejavam ali.., quando, de fato, se
tratava de uma elaborada artimanha para conduzi-la àquele lugar,
naquele momento. Max, com certeza, era suficientemente esperto
para arquitetar algo assim e a conhecia bem.

Não teria sido por isso que George não se surpreendeu ao vê-
la? Ela até pensou que o próprio Max a traria, mas também seria
bom se ela chegasse sozinha.
Vitória ficou tensa. Seu estômago se revirava em dúvidas, a
despeito de si mesma. Não. Se Max quisesse tanto que ela viesse,
não a teria ajudado a escapar do teatro havia apenas duas noites.

Essa linha de pensamento conduziu a outra, e ela começou a


procurar entre a pequena multidão de vampiros o Imperial que ela
conhecera em Claythorne. Não o viu, mas reconheceu Regalado e,
para sua surpresa, notou que os olhos dele estavam vermelhos. Ele
havia sido transformado.

Vitória notou a filha dele, Sara, que permanecia


discretamente em um canto com um capuz sobre a cabeça,
escondendo seus olhos, junto com outro companheiro encapuzado.
Vitória só a reconheceu porque ela levantou a cabeça, por um
instante, para falar com Max, que estava no palco.

Naquele momento, Vitória percebeu que a assembléia, ou seja


como for que se chamasse aquele encontro, estava sendo chamada
à ordem e que Nedas estava falando. Ela também notou que não
havia nada nas proximidades que pudesse ser considerado o
Obelisco de Akvan. Ela realmente não sabia como ele era, mas
Wayren lhe dera a impressão de que se tratava de um grande objeto
de obsidiana, certamente nada que pudesse ser escondido, sem
dificuldade, em um bolso ou sob um manto.

Se eles estavam ali para ativar o Obelisco de Akvan, onde ele


estava? Seria possível que eles estivessem enganados sobre tudo?
Será que ele já teria feito isso?

— Esta noite, estamos dando as boas-vindas a um de nós que


voltou ao redil. Um Venador que provou seu desejo de retornar a
nós, a despeito de minhas suspeitas em contrário — Nedas dizia.
Sua voz, para tamanho poder, não era muito alta... mesmo assim
parecia permear cada canto e recanto do recinto, insidiosa como o
mal que exalava de seu tom. Vitória descobriu que não precisava se
esforçar para ouvir suas palavras. — Ele ainda tem de passar por
uma prova para atestar sua lealdade, e então tomará seu lugar, ao
meu lado. O acréscimo de um Venador em minhas fileiras mais
secretas será providencial para nosso sucesso, particularmente com
o poder que vou obter esta noite do Obelisco de Akvan.
Ele se virou para Max, que agora estava sozinho com ele no
palco, e continuou: — Embora tenha sido um membro da Tutela há
muito tempo, você saiu de nossa sociedade e tornou-se um inimigo,
atacando-nos sem trégua, até fazer de si mesmo uma lenda.
Quando você veio a mim, meses atrás, e manifestou seu desejo de
retornar a nós, eu o teria matado imediatamente. — Seus lábios se
estreitaram em um sorriso malicioso. — Mas quando vi que você
carregava a marca de minha querida mãe, e que ela queria você
para si mesma e percebi que ela o havia mandado a nós, percebi
que tremenda oportunidade nós tínhamos. Um membro da Tutela
tornou-se Venador que virou Tutela. Finalmente, você voltou para
casa.

Max se aproximou, fez uma breve reverência a Nedas, e falou


com uma voz sebosa, que Vitória mal reconhecia como dele: —
Grande Um, estou satisfeito que você tenha me aceitado,
permitindo que provasse minha lealdade. As tarefas que você tem
designado para mim não foram simples ou fáceis; na verdade, estou
ciente de que ninguém mais em suas fileiras foi instado a fazer o
que eu fiz. Percebo que é a penitência para minha deslealdade à
Tutela, por ter aderido aos Venadores ao longo de anos e anos, e
reunir à sua sociedade se deveu unicamente aos desejos de sua
estimada mãe, Sua Majestade, a rainha Lilith. Espero que a última
tarefa desta noite elimine qualquer dúvida em sua mente de que eu
seja total e completamente um Tutela.

Vitória observava — suas emoções se alterando do horror à


descrença e à esperança. Seguramente, tudo isso era uma grande
atuação — ao menos da parte de Max. Nem sequer parecia ele
mesmo; nem lembrava aquele com quem ela falara poucos dias
antes.

Mas, será que Lilith realmente o teria mandado?

Seus dedos se apertaram; todos os pensamentos sobre o arco


e as setinhas de madeira tinham voado. Um horrorizado fascínio
tomou conta dela, enquanto observava o cenário lá embaixo. Seu
coração pulsava ritmadamente no peito e sua garganta estava tão
seca, que quando ela tentou engolir, fez um ruído.
Max, o que é que você está fazendo?

Uma risada explodiu lá embaixo, de Nedas e Max, de alguma


brincadeira que só eles dois compartilharam. E depois, afastando-
se do homem mais alto, Nedas anunciou: — Chegou a hora! Onde é
que está aquela Venadora de quem você tanto gosta?

O corpo de Vitória congelou e seu coração parou de bater por


uma respiração. Seu estômago se revolveu e latejou de náusea, e
embora ela soubesse que não deveria se mover, não deveria chamar
atenção sobre o lugar onde estava, virou-se para olhar Sebastian,
espumando de raiva. Ele estava olhando para a cena abaixo, tal
como ela. Com os dedos agarrados às setinhas de madeira, ela o
fitou, pronta para cravá-la no coração humano dele, para revidar
em resposta àquele último truque.

Mas ela não completou o gesto, porque havia movimento lá


embaixo. Não se dirigia, no entanto, lá para cima, onde ela estava
se escondendo; eles não estavam invadindo aquele esconderijo à
procura dela.

Não. Em vez disso, uma pequena e frágil figura vestida de


preto tinha sido empurrada para frente; ela estivera em pé ao lado
de Sara, ali no fundo da sala, ambas com capas pretas e capuzes.
Agora que ela viera à frente, na luz, Vitória a reconheceu
imediatamente.

Tia Eustácia.

A Venadora que eles estavam esperando não era Vitória, mas


sua tia.

Ela engoliu o nó na garganta de surpresa e olhou para baixo.


Sua tia, sacudindo as mãos que tinham sido amarradas, enquanto
se dirigia ao palco, caminhando com orgulho. Ela se movimentou
entre o pequeno grupo de vampiros e de membros da Tutela. Subiu
três degraus, alcançando o palco.

Vitória mal podia respirar; ela nem sequer se atrevia a piscar.


Sua tia orgulhosamente ereta, tão alta quanto sua estatura
permitia. Seus cabelos escuros estavam presos em um coque
simples, na parte de trás da cabeça; não estava com a adornada
vestimenta que usara no Consilium. O manto caiu, revelando um
traje negro e Vitória viu que as mãos de sua tia pareciam estar
entrelaçadas em suas costas.

— Nedas. Finalmente nos conhecemos — disse tia Eustácia,


com uma voz calma que preencheu cada recanto da sala.

— Por fim. Infelizmente, será muito breve este momento em


que estamos juntos. — Ele sorriu, mas era algo completamente
destituído de humor.

— Qualquer momento em sua presença é longo demais para


meu gosto. Rezo diariamente para sua extinção, bem como de toda
sua raça;

— É uma pena para você que meus desejos sejam atendidos


bem antes dos seus.

Vitória observava, aguardando, sua respiração finalmente


retornando, em pulsos breves. O que ela deveria fazer? Poderia
interferir no que estava prestes a ocorrer?

Olhou para Max. O rosto dele estava pálido, mais ilegível que
nunca. Ele ficou impávido, alto e repleto de maus pressentimentos,
de frente para tia Eustácia e Nedas.

Max tinha um plano. Claro que tinha, e tia Eustácia fazia


parte dele. Se Vitória fizesse qualquer coisa para interferir, poderia
arruinar tudo. Ficou quieta. Afastou-se da abertura pela qual
estava olhando e deslizou o arco que estava em seu ombro,
segurando-o no colo. Seus dedos estavam fechados e mal se
moviam contra as palmas das mãos, feridas porque as unhas se
enterraram nelas.

— Agora, Maximilian Pesaro, você foi desafiado a provar sua


total lealdade à Tutela, trazendo-nos um dos seus. Você vai selar
seu destino e se tornar um membro da Tutela ao completar esta
última tarefa. — Nedas apresentou uma lâmina longa, brilhante.
Mesmo de onde estava sentada, Vitória podia perceber como
era pesada e afiada. Seu coração batia mais rápido agora e algo
desagradável borbulhava na sua garganta.

Max pegou a espada, girou-a no ar e acenou para Nedas,


enquanto testava a lâmina com seu polegar. Vitória viu o fiozinho
de sangue aparecer, depois que cortou superficialmente a carne
dele.

Enquanto os acontecimentos se sucediam, Vitória observava,


congelada, à espera, preparando-se para ajudar Max e sua tia,
quando eles precisassem.

Nedas se afastou, seus sombrios olhos escuros focados em


Max e tia Eustácia.

— Execute a mulher.

Max se voltou para sua mentora. Ela permaneceu ereta, mal


atingindo os ombros dele enquanto o encarava. Os braços cruzados
nas costas, calma. Vitória podia ver seu peito subir e descer. A
tensão pairava no ar.

Max agarrou a espada, ajustando-a nos côncavos das


palmas, segurando-a com as duas mãos como se estivesse prestes a
entrar em uma batalha demolidora. Seu rosto ainda estava imóvel,
destituído de emoção como um muro de pedra, sua boca, uma linha
reta. Seus cabelos escuros estavam presos em um rabicho curto,
livrando o rosto austero de qualquer sombra.

Vitória viu quando ele engoliu, pelo movimento de sua


garganta. Viu, também, quando ele prendeu a respiração. Viu seus
ombros e o peito subirem. Ele balançou para trás com os dois
braços, os cotovelos acentuadamente flexionados, o antebraço
bloqueando seu rosto durante breves segundos, e, então, com todo
o poder reunido no gesto, abaixou a lâmina. Seu brilho prateado
sob a luz varreu o ar em um grande arco, enquanto Vitória
observava, com a respiração presa na parte posterior da garganta,
esperando que tia Eustácia libertasse os braços e entrasse em ação,
junto com Max.
Uma grande contorção de dor escureceu o rosto de Max, que
deu um gemido baixo e gutural e fechou os olhos, quando a lâmina
cortou o lugar para onde foi apontada. Não houve nenhum som de
tia Eustácia, quando seu corpo desabou no chão, a cabeça caindo
ali perto. Cortada. Separada. O sangue espirrou no chão e nas
pernas de Max.

Vitória ficou imóvel por um momento, sem acreditar em seus


olhos, a respiração bloqueada, esperando que acontecesse algo para
provar que o que vira era falso.

E quando nada aconteceu e ela percebeu que sua tia estava


realmente morta, em uma súbita e imensa poça de sangue, a seta
resvalou de seus dedos inertes e caiu bem em cima do palco, abaixo
dela.
23
O suplício

Vitória ficou insensível ao seu próprio centro vital; a parte de


trás de seu pescoço estava fria, mas o resto de seu corpo,
desprovido de sentimento. Não podia ver nada, além da ira
vermelha que escurecia os limites de sua visão e Max.

Max segurando a espada, empapado de sangue de sua tia.


Max olhando para cima, com uma expressão sangrenta, chocada e
traidora no rosto, que ficou pálida no momento em que a
reconheceu.

Não deve ter transcorrido mais que um ou dois segundos,


talvez, quando ela foi tomada por uma explosão de emoções, não
mais de uma respiração, antes que os vampiros e membros da
Tutela, abobalhados, notaram que ela estava lá no alto, olhando
com raiva e espanto, antes de partirem em seu encalço,
escorregando na poça de sangue de tia Eustácia.

Alguns estavam na parede, apoiando-se uns nos outros, em


direção ao lugar em que ela se encontrava em vantagem, usando
rústicos tijolos e pedaços de madeira como apoio. Ela ouviu passos
apressados e gritos vindos da parte posterior e sabia que em poucos
minutos eles a alcançariam.

Ela encaixou a segunda seta de madeira no arco e notou,


vagamente, que Sebastian já não estava a seu lado, mas isso não
tinha a menor importância naquele momento. Ela mataria Nedas,
pois era para isso que ali estava, e, em seguida, Max.
Não haveria nenhuma dúvida quanto ao julgamento,
nenhuma hesitação em usar uma força letal contra um ser humano
vivo. Tinha de ser feito.

Uma fria determinação a invadiu, afastando o estado de


choque, quando ela levantou o arco; o fato de saber que sua tia
estava morta lá no palco precisava ser posto de lado por um
momento, enquanto ela se concentrava em seu dever, O impacto da
morte de sua tia logo iria se acomodar, em seu interior. Primeiro, a
vingança.

A seta se instalou no fio do arco, e Vitória a apontou bem no


meio do caos no palco, onde Nedas ainda se encontrava, olhando
para cima, na direção dela, com uma careta desafiadora no rosto.

Focando em seu coração, ela lançou o parafuso de madeira. A


corda do arco pingando no lugar, arrojando a seta em um arco
gracioso, enquanto Vitória sentia que mãos a agarravam por trás.
Um rosto apareceu na frente, arrebatando-a, tentando arrancá-la
da pequena plataforma em que ela se agachara e, quando os
vampiros notaram a situação, eles a empurraram.

Ela esvaiu pelo buraco, em direção ao palco, lá embaixo,


deixando cair o arco e as flechas; uma infinidade de mãos —
muitas, inúmeras — a agarraram, despertando a lembrança
mórbida do outro encontro da Tutela, em que ela quase fora
espancada.

Talvez nesta noite eles concluíssem o movimento. A dor a


transpassava; de algum modo ela aterrizou lá embaixo, estatelando-
se no palco. Ela esperneou e lutou com todas as suas forças, sentiu
cheiro de sangue e sua visão se toldou, como se inundada por
fumaça... e então mergulhou na escuridão total. A única coisa que
lhe vinha era o fato de estar caída no sangue de sua tia e que ela
odiava Max.

A traição de Max.

Abriu os olhos, quando sentiu que as mãos se afastavam,


enquanto o caos deslizava para o silêncio. Ela estava olhando para
o rosto de Nedas.
Assim de perto, ele era mais aterrorizante, intensamente mais
repugnante do que parecia a distância. Ele cheirava a algo cru e
poeirento, que lhe trazia à mente ossos queimados e carne de
açougue, e seu estômago queria se revolver.

Mas ela não deixaria. Sua tia fora tão corajosa, tão altiva e
forte enquanto caminhava para o que sabia que seria sua morte. O
corpo de Vitória estava tremendo de choque e exaustão, e com uma
série de ferimentos que latejavam no compasso de seu pulso
cardíaco.

Com uma respiração instável, Vitória tratou de recuperar a


energia por meio dela, recusando-se a pensar no que havia
acontecido e em como seria a vida sem sua mentora, sem lua
Gardella, e se reportou à sua força e inteligência. E, acima de tudo,
inspirou-se em sua raiva e no ódio pelo homem ao lado de quem
lutara e a quem confiara sua vida, no passado, canalizando essa
sensação em potência.

— A outra Venadora, presumo — Nedas falou, virando-a com


sua bota de couro. Suas presas estavam de fora e, obviamente, a
setinha de madeira perdera seu alvo, deixando-o vivo.

— Esta é muito mais bonita e vívida que a anterior.

Vitória desviou-se dos olhos autoritários que haviam


começado a cintilar, com brilhantes anéis vermelhos ao redor da
íris azul, como a de sua mãe, algo que indicava o poder que ela
investira nele. Ela se deparou com Max.

No breve instante em que seus olhos se encontraram, ela viu


que sua aparência de extrema dureza se esvaiu; notou que algo
vacilava no interior dele, mas então Max se aprumou, endireitando
a postura, e lançando para ela aquele olhar frio e zombeteiro que
costumava ostentar. — Ela não é uma verdadeira ameaça — disse.
— Por que acha que eu escolhi a outra?

— Vá para o inferno — Vitória disse a Max, como se eles


fossem as duas únicas pessoas no recinto; suavemente, como se
fosse o sussurro de uma amante contando um segredo íntimo.
Ele a fitou sem vacilar, sem se distanciar do ódio que ela
sabia estar ali; até mesmo Nedas sumiu do perímetro ou de sua
consciência. Para Vitória, só havia ali os dois Venadores.

Então, ela foi agarrada violentamente por uma forte mão


escura, seus pés no ar, e se viu frente a frente, a menos de um
braço de distância, do filho de Lilith.

— Não uma verdadeira ameaça — Nedas comentou,


perscrutando seu rosto como se estivesse lendo uma página do The
London Times, destituída de artigos interessantes. Não, não a
mulher que enfrentou e matou dois de meus Guardiões e um
Imperial que eu mandei para trazer Polidori de volta. Não. Nenhuma
ameaça. E mais precisamente, não a mulher que escapou de cinco
vampiros, mesmo que tivessem lutado com ela e se alimentado de
seu sangue, durante um encontro da Tutela. Não. — Ele olhou para
Max. — Esta aqui não é uma ameaça real.

Max arqueou uma sobrancelha. — Ela deve ter se


aperfeiçoado muito, no último ano.

Nedas a fitava e ela se lembrou de manter sua visão a salvo


de ser pega pelo olhar dele. Ela estava focada nos cílios dele,
notando como eram espessos e pretos, como roçavam suas grossas
e ásperas sobrancelhas, quando ele mantinha os olhos totalmente
abertos.

Ela e Nedas eram quase da mesma altura e ele mal tinha de


inclinar o rosto na direção dela. Sua mão segurava o braço de
Vitória, que não fez nenhum movimento para soltar-se. Seria uma
vitória superficial, de curta duração. Melhor que ele pensasse que
ela estava congelada de susto. Ou presa em sua teia.

— Eu podia matá-la agora — ou você mesmo teria de fazer


isso, Max, como seu primeiro dever em meu círculo íntimo... mas
talvez, em lugar disso, vou imitar uma das ações de minha querida
mãe. Não será tão difícil reivindicar uma Venadora só para mim,
particularmente uma assim tão atraente. E depois desta noite..,
bem, ela terá pouco a fazer, não? A ativação do Obelisco de Akvan
tornará os Venadores inofensivos. — Ele sorriu para ela,
novamente. — E quem sabe você não ficaria satisfeita de ser uma
das protegidas, como seu colega, aqui.

Vitória não lhe concedeu a graça de uma resposta. Era inútil


e ela tinha muito mais o que pensar do que trocar réplicas com o
príncipe dos vampiros.

Esse pensamento a lembrou que Sebastian tinha


desaparecido em algum momento, durante a altercação. Mas antes
que ela pudesse chegar a uma conclusão a respeito, Nedas,
aparentemente irritado porque ela não se engajou em uma guerra
de palavras com ele, ordenou: — Desarme-a.

Graças a Deus Max não participou daquilo; parte dos pares


de mãos a seguravam, mantendo-a imóvel, enquanto outros a
vasculhavam, removendo as estacas, a água-benta e a faca que ela
mantinha escondida em vários lugares de seu corpo. Ela se
remexia, torcia e chutava, em vão, não podia se conformar com
aqueles dedos horríveis e repressivos mexendo nela. Eles
encontraram até o frasco de água-benta escondido dentro de sua
grossa trança, junto com o jogo de estacas ali colocado, também.

Sua túnica foi levantada antes que ela pudesse notar o que
estava acontecendo e depois, a súbita e intensa dor em seu umbigo,
quando um deles — seguramente alguém da Tutela — arrancou a
vis bulla de sua pele. Ela gritou; depois deu um gemido baixo,
quando sentiu a instantânea evaporação de sua energia e força e
uma onda de fraqueza tomando conta dela. Dessa vez a dor era
suficientemente grande para que ela sucumbisse, caindo em um
negro vazio, onde não havia dor nem sofrimento.
24
Lady Rockley tenta fazer correr sangue

Quando acordou, Vitória se encontrava sozinha no escuro.

Respirou fundo, surpresa ao constatar-se machucada em


todos os lugares; não estava acostumada a uma dor tão intensa e
debilitante. Seus braços estavam fracos demais e ela não conseguia
usá-los para se levantar, então permaneceu prostrada por um longo
momento, calculando suas respirações, tentando discernir as
sombras na escuridão.

Demorou para que ela recuperasse a memória, para em


seguida assaltá-la, sobrecarregando sua mente com todo aquele
sangue e morte. O ruído sibilado da lâmina em arco. As mãos sobre
ela, tateando, puxando e agarrando. Os olhos raiados de vermelho
da desumanidade. A dor profunda, de quando rasgaram seu
umbigo.

Não devia surpreender que ela se sentisse tão fraca e ferida.

Sem sua vis bulla, era uma mulher indefesa.

Acontecera havia pouco mais de um ano, e ela já havia


esquecido o quanto ela contava com seu amuleto de força, o quanto
ele governava sua vida e a liberdade que ele lhe dava. Sim, ela a
havia removido por vontade própria, mas tinha sido voluntária e
temporariamente e ela se sentira segregada e segura.

Mas isso que houve, agora, foi terrível.


Ela respirou e tentou mover os braços, novamente, surpresa
por ter conseguido. Não estava imobilizada. Suas pernas, também
liberadas, permitiam que seus pés se movessem ao redor, de
maneira a permitir que ela percebesse estar deitada no chão de
algum tipo de cômodo.

Mas por que eles não a amarraram? Ela já não representava


ameaça para eles.

Nenhuma ameaça.

De acordo com Max, ela não teria sido mesmo antes que lhe
arrancassem sua vis bulla.

O reavivamento de sua ira desequilibrou o ritmo de sua


respiração e parecia haver uma bala de canhão em seu estômago.
Vitória teve de fazer uma pausa e afastar, conscientemente, o
veneno. Iria lidar com Max na hora certa.

A primeira coisa a fazer era arranjar um jeito de sair dali.

Que horas seriam? Será que eles já estariam com o Obelisco


de Akvan, liberando todo o poder de sua maldade? Aquele evento
faria com que os Venadores se tornassem mesmo inofensivos, como
Nedas afirmara?

Cuidadosamente, apoiando-se nos pés e usando a parede


para se equilibrar, Vitória tentou se levantar, mas os joelhos e a
cabeça pareciam não cooperar. Ela resvalou para o chão, raspando
a mão na parede rústica.Estava escuro demais, porém ao sentir a
textura da parede e o chão de pedra calculou que estivesse em um
porão, no subterrâneo do teatro.

Ela se arrastou ao longo do espaço, esbarrando em algo que


tardiamente reconheceu como um catre ou uma grande cadeira,
concluindo que duas paredes eram de pedra e as outras duas, de
madeira, uma das quais com uma porta.

Tão logo ela tentou se erguer para localizar a maçaneta, às


cegas, e em vão, ela ouviu o que pareciam ser passos descendo
acima de sua cabeça, notando que estava em um cubículo sob uma
escada.
Não teve tempo para imaginar se os passos eram de alguém
que pretendia chegar a ela, porque instantes depois que chegaram à
base da escada, um raio de luz penetrou pela parte de baixo da
porta e, então, algo foi sacudido, fazendo um ruído suave e a porta
se abriu.

Max entrou e fechou-a atrás dele.

— Você! — Fraca como estava, Vitória se apoiou nos pés e se


levantou, usando o corpo e a parede para se equilibrar, de alguma
forma sustentada pela fúria que ardia em seu interior, despertando
sua audácia, de maneira a lhe garantir uma onda de força.

Ele segurava a lanterna o mais longe possível de si mesmo,


como se esperasse um ataque, e deixou que ela dirigisse alguns
golpes ineficazes contra seu peito e rosto, antes de arrebatar um de
seus braços, no ar.

—Já basta e, pelo amor de Deus, fique quieta — ele disse e se


inclinou para colocar a lanterna no chão.

— Você está desperdiçando tempo e energia. — Ele segurou o


pulso de Vitória quando ela tentou atingi-lo, passando uma rasteira
para que ela perdesse o equilíbrio, de maneira que a moça só não
caiu porque ele a mantinha suspensa.

— Por quanto tempo você está participando da Tutela? — ela


sussurrou. — Você é um traidor e um assassino.

O rosto dele estava inexpressivo. — Você ouviu Nedas. Eu era


da Tutela antes de ser um Venador.

— Você vai me matar, agora? — ela perguntou, ignorando os


pontos negros que dançavam diante de seus olhos e a forma como
seu corpo latejava de dor. A fraqueza e o medo a invadiam, mas não
permitiria que ele notasse. Seus músculos tremiam e ela precisava
se esforçar para compor as palavras. — Que recompensa Nedas lhe
dará para matar outra Venadora?

Ele a sacudiu, fazendo com que a cabeça dela pendesse e,


depois, como se tivesse de se recompor, ele a empurrou para longe,
mantendo-se afastado e olhando para baixo, enquanto ela desabava
sobre o catre. — Tenho exatamente dez minutos para levá-la
embora daqui ou você vai se ver numa situação menos desejável do
que a de sua tia. Jesus Cristo, você mal pode se manter em pé,
pode?

Este último comentário foi provocado pela tentativa dela de


fazer exatamente isso, sair do estreito catre, usando a mão para se
manter em pé. Ele se aproximou, mas ela se esquivou, caindo ao
chão vergonhosamente. — Não me toque.

Ele a ignorou e, sem cerimônia, a levantou e empurrou contra


o catre.

— Vitória, você tem de sair daqui. Não há tempo para brincar


de mulher desdenhada.

— Depois que eu matar você e Nedas, também, ficarei feliz em


ir embora deste lugar.

— A despeito do fato de que você nem sequer consegue ficar


em pé, deixe para lá a ideia de matar qualquer pessoa; não pode
assassinar Nedas. Não agora — ele disse rispidamente. — Haverá
tempo para isso, mas não agora. — Dedos longos estavam
desabotoando a camisa branca dela e Vitória ficou confusa,
tentando focalizar através dos pontos negros que obscureciam sua
visão.

— O que você está fazendo?

— Ele já começou a ativar o Obelisco, não pode parar. Você


será necessária depois, Vitória. Pense nisso e não em sua
necessidade de vingança, porque logo será algo polêmico.

Ele se aproximou e ela se encolheu, tentando evitar aquela


figura alta, ameaçadora. Nunca tivera medo de Max, mas algo na
expressão dele, a determinação visível na linha de sua boca e a
raiva em seus olhos negros, fizeram com que ela quisesse esquivar-
se.

Mas era uma Venadora. Maldição! Mesmo sem a sua vis


bulla, ela era uma Venadora.
Ela não sabia o que esperar, quando ele sentou perto dela, no
catre, mas não era senão para agarrar seu pulso e trazer sua mão
até ele. Conduziu os relutantes dedos dela sob sua própria camisa
desabotoada, a palma aberta, roçando sobre sua pele quente, os
pelos suaves e então a colocou contra meu mamilo, onde havia algo
duro. Metal. Ele fez com que a mão dela esfregasse o objeto.

Um instante depois que ela percebeu tratar-se da vis bulla


dele, pendendo da auréola daquele peito musculoso, Vitória sentiu
uma onda de força invadi-la inteiramente. Sua visão se iluminou,
afastando os pontos negros. O medo se dissolveu, transformado em
poças de irritação. Mesmo a dor em seu umbigo, de onde seu
próprio amuleto de força havia sido tirado, parou de latejar. Sua
mente ficou clara.

E enquanto a dor e a confusão desapareciam, Vitória foi


ficando mais consciente do fato de que sua mão estava aberta sobre
a pele nua de Max. Ela sentiu o roçar de sua camisa de linho sobre
a parte posterior de seu pulso, ao ritmo de sua respiração; sentiu o
bater forte do coração dele sob a palma e a força de seus dedos ao
redor de sua mão. Ele era quente e sólido, e uma breve olhada na
abertura da camisa dele indicou que seu peito estava repleto de
pelos negros.

Outro olhar para o rosto de Max lhe mostrou que ele estava
imóvel: os olhos fechados, a boca ainda firme e parada. Ela se
perguntou se o fluxo de energia que estava sentindo o enfraquecera.
Ele olhou para cima, novamente, e sua mandíbula se movimentou
uma, duas vezes, e, como se ele soubesse que ela estava
observando, abriu os olhos.

Ela desviou o olhar, subitamente consciente da posição de


ambos no catre; ele, meio inclinado sobre ela, seu joelho se
encostando no dela, seus dedos fortes agarrados ao pulso de
Vitória. A mão dela sobre a carne de Max de repente pareceu estar
queimando. A garganta dela, seca.

— Está se sentindo melhor? — perguntou; não solicitamente,


como se isso lhe importasse, mas como se não visse a hora de se
afastar dela.
— Suficientemente forte para lutar com você, agora. — Ela
afastou a mão e, imediatamente, sentiu a perda de energia.

Ele ergueu a sobrancelha, olhando para ela enquanto


abotoava sua camisa. — Levante-se.

Ela ficou em pé; conseguiu fazer isso. Mesmo sem o poder de


sua vis bulia, ela já se sentia muito melhor. O quarto não estava
mais rodando e sua visão se aclarara. Seus ferimentos começaram
a doer, de novo, mas não tanto como antes.

— Quando você deixar este aposento, siga à direita. Três


portas abaixo desse longo corredor você encontrará uma escada que
conduz ao piso principal do que restou do teatro. — Ele pegou uma
estaca e um revólver e jogou-os no catre. — Pegue isso e saia daqui.
Tenho de ir embora antes que sintam minha falta e confio, Deus
sabe a razão, que você se vá agora, enquanto estou lhe dando a
oportunidade. De novo.

— Odeio você, Max. É preciso que saiba disso. — Vitória


pegou a estaca e a pistola, engatilhou-a e apontou para o peito dele.

Ela se tornara muito familiarizada com armas de fogo desde


que fora forçada a usá-las, quando teve de fugir de Lilith, no ano
anterior. — Não farei nada para beneficiá-lo. — A arma era pesada,
mas ela não permitiu que tremesse em seu punho. Um pouco antes,
ela teria atirado sem hesitar.

— Não tem mais importância o que você pensa a meu


respeito — ele respondeu. Com fadiga e impaciência impregnadas
na voz. — Vá agora, Vitória. Matar-me aqui não beneficiará
ninguém. E se você puxar esse gatilho, todos eles descerão aqui
mais rápido do que possa imaginar. — Um sorriso zombeteiro
brilhou rapidamente em seus lábios. — Por que você pensa que lhe
dei uma pistola e não uma faca?

— Por que fez aquilo? — Para seu horror, Vitória sentiu seus
olhos começarem a arder.

— Era ela ou você. — Max se virou e saiu do cômodo,


fechando a porta atrás dele, com um ruído surdo.
Secando as lágrimas de surpresa, ela pegou a estaca e se
aprontou para segui-lo, ouvindo, novamente, os passos dele sob
sua cabeça, mas a porta não estava aberta. Ela a puxou, outra vez,
e conseguiu abri-la, saindo para um corredor escuro. Max havia
deixado a lanterna, então Vitória a pegou do chão e começou a se
esgueirar para fora. Não foi, entretanto, para a direita, como ele
indicara. Subiu as escadas na esteira dele, tentando reduzir a luz
da lanterna o mais que pudesse, procurando ouvir os passos dele,
para que pudesse segui-lo. Ela precisava ficar fora de alcance,
segura... mas tinha de ver o que estava acontecendo. Tinha de
verificar se o que Max dissera era verdade. E... tinha de haver algo
que pudesse fazer.

Não podia ir embora.

Um suave rangido a distância fez com que ela entrasse no


corredor, no topo da escada. Não precisava mais da lanterna; não
estava mais escuro, como onde ficara presa, mas sim sombrio e
seus olhos foram se acostumando com as formas e tons de cinza,
de maneira que ela apagou a lanterna e abandonou-a. Passou uma
porta entreaberta, e uma espiada permitiu que ela vislumbrasse
cabides de roupas, provavelmente figurinos, pendurados lá dentro.
O cheiro de fumaça impregnava o lugar, enquanto ela corria sem
fazer ruído, na tentativa de alcançar Max.

Depois de um tempo, ela percebeu que o perdera. Tudo ficou


em silêncio e imóvel.

Frustrada e se sentindo fraca de novo, Vitória retrocedeu,


demorando um pouco mais para explorar a área. Definitivamente,
estava no andar inferior do teatro, obviamente usado para
armazenagem. Figurinos, adereços, cadeiras, instrumentos,
partituras... os cômodos estavam perfeitamente organizados com
esses itens.

Vitória encontrou outra escadaria, mais larga, que parecia


destinada a um trânsito mais pesado e subiu lentamente, ouvindo.
A parte de trás de seu pescoço nunca cessara de estar fresca, mas
agora começava a esfriar mais, então ela redobrou o cuidado com
suas explorações. Ela segurou a estaca com uma das mãos e
colocou a pistola na cintura de suas calças. Pesava e balançava,
enquanto ela andava, mas queria manter sua outra mão livre.

No topo da escada ela se encontrou em um corredor e, atrás


dele, estava o palco. Não aquele onde tia Eustácia havia sido
executada algumas horas antes; este era o grande, mais alto, onde
a ópera se apresentara, três noites atrás.

Havia panos de fundo chamuscados, um diante do outro, e


mesas dispostas nas coxias, sobre as quais se amontoavam
adereços e figurinos. E ela ouviu vozes.

Alguém estava no palco. Esperava que fosse Nedas.

Rastejou para frente, aguçando os ouvidos, e quase trombou


com uma escada de madeira. Olhou para cima, sua pele formigando
com uma ideia. Parecia conduzir para uma escuridão infinita, ao
mesmo lugar onde ficavam as cordas que seguravam os panos de
fundo e as cortinas.

Ela subiu os degraus tomando cuidado para que a pistola


não escorregasse de sua cintura e caísse no chão, lá embaixo. Ela
decidiu enfiar sua estaca no outro lado de suas calças, para ficar
com as duas mãos livres, e desejou estar ainda com seu arco e
flechas de madeira.

Uns nove metros acima do palco, os degraus continuavam,


mas ela encontrou uma passarela que conduzia às sombras, além
da parte lateral das coxias, onde ela estivera, e, presumivelmente,
em cima do palco. Lá em cima, o cheiro de fumaça era mais intenso
e ela viu manchas escuras no alto dos cenários, e até mesmo na
passarela e nas cordas que funcionavam como redes. Era
surpreendente que o teatro não tenha sucumbido ao incêndio. A luz
que vinha do palco a ajudava a encontrar o caminho de maneira
mais fácil.

À medida que ela rastejava silenciosamente ao longo da


estreita ponte de madeira que tendia a fazer ruído, as vozes ficavam
mais altas e claras. Sua nuca se tornou mais fria e ela sentiu a
mesma sensação repulsiva e transbordante que experimentara
antes, quando viu Nedas. Finalmente, ela se movimentou além das
cortinas pretas que bloqueavam as laterais das coxias e a visão do
público, e se encontrou em cima da parte principal do palco.

A primeira coisa que viu foi o Obelisco de Akvan.

Estava colocado sobre uma mesa redonda a cerca de um


metro de altura e era exatamente como ela o havia imaginado: um
objeto de obsidiana, brilhando em tons de azul e preto à luz de
cinco lanternas que estavam dispostas em um círculo em torno
dele. Estreito, com a parte superior pontiaguda, tinha a espessura
do braço de um homem, aproximadamente, e talvez a altura de
uma perna masculina. Estava fixado em um ângulo levemente
inclinado, longo, brilhante e malévolo.

O palco em si estava um pouco precário para uso, por causa


do fogo. Um dos lados, perto da plateia, estava carbonizado e havia
caído, deixando um buraco negro com bordas irregulares. Uma
fileira de poltronas queimadas estava ali, naquele mesmo lado do
teatro, e os camarotes acima — aquele onde Vitória havia visto o
Imperial — também jaziam destruídos. No entanto, os outros dois
terços da arena estavam apenas cobertos de cinzas e manchas de
fumaça, não apresentando nenhum outro dano. Metade daqueles
assentos estava lotada, com vampiros e membros da Tutela.

Em cinco lugares ao redor do palco, com o Obelisco e sua


mesa, havia recipientes em formato de bacia. Havia fogo dentro
deles, e dessas chamas se desprendia uma fumaça com o cheiro
adocicado que, desagradavelmente, lembrou Vitória da reunião na
Tutela. O teatro era tão grande, que o incenso não inundava o
recinto, como então, mas mesmo assim ela sentia o aroma e, junto
com ele, veio a sensação de estar quase impotente, sob as garras e
presas dos vampiros.

Vitória fechou os olhos e balançou a cabeça, afastando a


lembrança de que ela estava ainda mais indefesa agora, nessa
noite. Voltando sua atenção para o palco, ela examinou as pessoas
que ali estavam.

Perto da mesa onde repousava o Obelisco, havia cinco


homens. Ela reconheceu Nedas, por sua menor estatura e pele
escura e devido à forma como seu corpo inteiro se revolveu, quando
ela se concentrou nele. Max era o mais alto, com os longos cabelos
presos atrás e sua camisa branca se destacando naquele mar de
roupas pretas e cabelos escuros. A careca de Regalado brilhava
como uma caveira cor de carne, e sua barba espessa se expandia
tanto, que Vitória podia vê-la mesmo quando ele estava bem
embaixo dela. Os outros dois homens, que ela acreditava serem
vampiros, ela não reconheceu.

Parecia que Max se tornara, de fato, um dos integrantes do


círculo de absoluta confiança de Nedas, por estar diretamente
envolvido no que estava prestes a ocorrer. O estômago de Vitória se
revolvia ao pensar que preço ele pagara para aliar-se a Nedas. Tia
Eustácia. E por que ele estava tão determinado a impedir que ela
permanecesse ali? Por que ele se importava? Era ela ou você. Mas
por que estar entre eles? Por que ele abandonaria os Venadores? Da
Tutela para Venador para Tutela. Será que seus anos como Venador
tinham sido apenas um estratagema para uma só coisa... este final?
Conquistara a confiança de sua tia para levá-la à morte? Mas por
quê?

Já estariam de posse do Obelisco de Akvan havia tanto


tempo?

Os pensamentos giravam na cabeça de Vitória; ela estava se


sentindo fraca novamente, e parecia que o incenso das bacias
estava indo direto para seu nariz, envolvendo seus sentidos e
tornando-os tão obscuros como a névoa de Londres. Talvez sem a
vis bulla ela fosse mais suscetível à essência. Ou talvez fosse porque
seus ferimentos simplesmente a tornassem mais frágil e facilmente
confusa.

Ela começou a notar algum tipo de canto, lá embaixo. Partia


dos vampiros que estavam sentados na plateia, suficientemente
distantes para que pudessem ver o que acontecia, mas sem se
envolver ou interferir.

Com uma ideia em mente, Vitória passou alguns minutos


observando os espectadores, à procura de Sebastian. Ela deveria
estar tão brava com ele como estava com Max, mas não.
Sim, ele a raptara e aproveitara a oportunidade para fazer
amor com ela. Felizmente, Vitória não esperava nada além, dele,
porque temia desapontar-se. Sim, ele desaparecera no momento
mais fortuito — para ele. E, sim, ele a havia deixado sozinha para
enfrentar os vampiros. Mas ao menos ele tinha sido sincero. Não
era um homem de violência e não atacaria e mataria. Nem mesmo
um vampiro. E certamente não tinha os poderes de um Venador
para se proteger.

Claro, isso significava que ele tinha necessidade de se esvair,


como fumaça, nesses momentos perigosos; se não o fizesse
provavelmente seria capturado, também. Mas eles não iriam
machucá-lo, se tudo o que dissera sobre Beauregard fosse verdade.
Será que não, mesmo? Ou talvez o ferissem, se Beauregard e Nedas
eram rivais. A cabeça de Vitória estava um turbilhão e seu corpo
latejava, de dor. Ela não podia impedir que os pensamentos
girassem em sua mente, entupindo-a, impedindo que pudesse fazer
qualquer julgamento claro. O canto havia se elevado, para um tom
mais alto e profundo, e o incenso não se dispersava, mas parecia
continuamente voltado para cima.

Aquela fumaça era colorida, ela notou vagamente. Espirais


negras e azuis, em volutas mescladas, subindo juntas até a
passarela superior, insinuando-se em suas narinas e em seus
pulmões. Sentiu que teria um acesso de tosse e então manteve a
manga da túnica sobre o nariz e a boca, tentando respirar o ar
filtrado; talvez tivesse esperado muito tempo para tomar essa
providência, mas ajudaria a atenuar um pouco o perfume. Como é
que ela conseguiria detê-los? Ele não pode ser interrompido. Tinha
de haver uma maneira. Ela tratou de clarear a mente.

Vitória respirou fundo e expirou, longa, lenta e


silenciosamente, entre os lábios franzidos, tentando afastar a
fumaça, fazendo com que se dissipasse longe do espaço onde
aspirava o ar.

Os cenários pendiam de pesados postes de madeira. Ela


poderia soltar um deles, de maneira que caíssem em cima dos
homens lá embaixo. Ao menos isso os deteria, momentaneamente.
Ela talvez fosse capaz de atacá-los de surpresa, saltando para fincar
a estaca em um ou dois. Nedas seria seu primeiro alvo. Mas...
haveria pouca ou nenhuma chance de que ela pudesse levar o
Obelisco embora, mesmo que Nedas estivesse morto. Ela não
conseguia calcular quanto tempo levaria ou o que teria de acontecer
para que os poderes do Obelisco fossem transferidos para outro ser.
E ela já não estava mais com a vis. Não podia pular sem se ferir;
teria sorte se tivesse força suficiente em seu corpo combalido para
dirigir a estaca a um vampiro comum, de olhos vermelhos; não o
filho de Lilith.

Havia cordas enroladas nos postes dos quais pendiam os


cenários de lona. Bloqueando o som do canto interminável, Vitória
analisou as possibilidades que teria ao manipular aqueles pesados
cenários, desenhando um plano em sua mente; achou que poderia
mover-se cuidadosamente na direção de um que pendia exatamente
no lado oposto àquele onde Nedas parecia estar. Talvez ela pudesse
deslizar para baixo, na corda, usando o elemento surpresa. Se ela
oscilasse na direção correta, poderia pousar em Nedas e esfaqueá-
lo, antes que ele soubesse o que estava acontecendo. Claro, depois
disso, ela ficaria à mercê do resto dos vampiros e dos membros da
Tutela e, enfraquecida como estava, seria incapaz de lutar contra
eles. E o Obelisco ainda estaria disponível para alguém mais usar.

O desejo de cravar a estaca no coração de Nedas e fazê-lo


virar pó era tão forte, que ela considerou a possibilidade de correr o
risco. E o que dizer de Max? Foi ele que brandiu a espada! Aquele
que realmente fez a façanha.

Ele também merecia morrer.

Ela poderia ter atirado nele, os vampiros que se danassem!

Sua boca se contraiu quando ela percebeu a ironia daquele


pensamento. Em seguida, ela se endireitou, porque aquele não era
um momento adequado para o humor. Não com sua tia morta.

Ela não podia atirar em Max de onde estava. A ideia a invadiu


e ela chegou a puxar a pistola da cintura. Poderia matá-lo e correr
pelas plataformas antes que percebessem o que acontecera ou onde
ela estava.
Ao menos uma parte de sua vingança estaria realizada.

A arma de fogo era pesada, muito pesada. Ela avistou Max,


tentando focalizar sua alta estrutura com um olho apertado, e o
outro focado nela. Nunca parado, ele se movia com o poder e a
confiança de que tinham sido tão valorizados pelos Venadores. Era
o melhor deles. Como ele poderia ter enganado a todos?

De repente, chamas eclodiram lá embaixo, desviando sua


atenção do alvo. Eram labaredas altas, em tons de preto e azul,
substituindo as espirais de fumaça dos cinco recipientes. Elas se
dirigiam, em linha reta, para cima, delgadas e quentes, como
inquietantes colunas de fogo; uma delas, poucos centímetros abaixo
do lugar onde Vitória estava empoleirada. Era por isso, então, que
Nedas precisava da câmara do grande teatro.

O canto prosseguia, mesclando-se ao cenário, enquanto


Nedas, que permanecia em pé dentro do círculo formado pelas
bacias de fogo, começou a falar, gesticulando com os braços, como
se quisesse criar um espaço arejado ao redor do Obelisco. Ele
agitava, graciosamente, os dedos no ar, desenhando pequenas
ondas em direção à mesa e seu conteúdo, como se estivesse
enviando o calor naquela direção.

Vitória não conseguia entender as palavras, mas não


precisava saber o que ele falava. Sabia o que Nedas estava fazendo.

O cheiro doce refluíra, substituído pelo calor e pelo som


ensurdecedor do crepitar das chamas. Max, Regalado e os outros
dois vampiros permaneciam fora do círculo, assistindo. Enquanto
Vitória olhava para baixo, viu as chamas começarem a se inclinar
em direção ao centro, acima do Obelisco de Akvan. Nedas
continuou a cantar, cercado pelas chamas pretas e azuis que
refletiam a mesma cor do objeto malévolo, e as colunas de chamas
se aproximavam cada vez mais, unindo-se.

Finalmente, elas se tornaram uma só, na ponta do Obelisco:


cinco labaredas fundidas em uma só, imensa e delgada, que
chegava à parte mais alta do teto em arco, sobre o palco.
As chamas bramiam, e Vitória podia ver, bem na sua frente, o
preto e o azul se entrelaçando e se contorcendo, como cobras
raivosas, ao mesmo tempo sentindo um calor escaldante no rosto,
vindo de metros de distância.

O Obelisco de Akvan começou a brilhar e a ficar empapado de


um líquido semelhante ao suor. Faíscas verdes e azuis dele
irradiavam, para todos os lados, com um padrão aleatório. Nedas
estendeu a mão para tocar uma delas e riu, quando a faísca estalou
em seu dedo. Ele continuava a cantar sobre o fogo ardente, fazendo
com que o Obelisco brilhasse mais e mais em verdes e azuis.
Pequenos grânulos brilhavam na superfície da obsidiana,
resvalando e escorrendo e caindo, com suaves ruídos, no chão.

O teatro inteiro ficou iluminado por aquelas estranhas


chamas azuis e negras, lançando sombras coloridas e raios por toda
parte. Os vampiros que estavam na plateia pararam de cantar e
ficaram olhando fixamente para as chamas, como se quisessem
atrair o poder para si.

Agora as chamas estavam se alterando, e grandes gotas


pretas desciam mais rápido que as de água, durante uma chuva
torrencial. As gotas desceram pela torre de chamas longas e se
fundiram ao Obelisco de Akvan, em ondas sucessivas.

Vitória notou um súbito movimento lá embaixo... algo


estranho. Olhou, adiante do incêndio que prendia sua atenção e,
com espanto, viu que Max atravessava as chamas, com algo muito
brilhante na mão.

Saltou dentro do círculo, girou em posição vertical, e dirigiu a


lâmina para a torre de obsidiana, descrevendo o mesmo arco que
usara antes.

O Obelisco crepitou e, em seguida, explodiu — as chamas se


extinguiram e o grito de fúria de Nedas reverberou no teatro
repentinamente silencioso.
25
Tudo se esclarece

Quando Max sentiu a espada conectada com o Obelisco de


Akvan, uma onda de puro alívio o invadiu.

Está feito!

O poderoso arco da espada fez com que ele oscilasse por um


instante, mas quando recobrou o equilíbrio os vampiros estavam
correndo em sua direção.

Max vislumbrou o chocado e feroz Nedas e foi dominado pela


fúria; raiva pelo que havia feito, pelo que fora forçado a fazer por
aquela criatura. Ele girou com a espada, que era feita de prata
pura, e decapitou todos os vampiros que o cercaram.

Outro se aproximou e ele o recebeu da mesma forma, depois


outro e mais outro.

Eles estavam subindo ao palco, vindos da plateia, sob o


comando frenético de Nedas. Havia muitos a encarar e ele sabia que
não ia demorar muito para que o sobrepujassem, mas até que esse
momento chegasse ele usaria o amargor da culpa e da tristeza como
combustível para levar sua vingança ao nível máximo.

Ele faria o que se preparara para fazer durante quase um


ano.

Um ano — uma eternidade — de observação sobre essas


criaturas do mal, esses amantes de vampiros que constituíam a
Tutela, um tempo em que teve de viver entre eles, atuando de
maneira semelhante, fingindo que estava alinhado a eles e que
sentia amor por alguém do grupo. Teve de submergir em aversão e
asco, e em alguns dias era tudo o que podia fazer para não explodir.

Ele tinha se saído bem, em sua desventura. Morreria com


uma clara consciência disso e deixaria que Beauregard e Nedas
lutassem entre si.

E Vitória havia de liderar os Venadores, para derrotar os dois.

A espada zunia em sua mão, mas mesmo com aquela arma


forjada especialmente para vencer o mal, abençoada e contendo um
frasco de água-benta em sua alça, ele não poderia enfrentar todos
eles, com sucesso. Estava exausta demais, física e mentalmente,
para ser capaz de usar suas habilidades no qinggong, saltando em
pleno ar, como um vampiro Imperial faria.

Mas seu corpo estava condicionado a lutar; embora soubesse


que não sairia vivo dali, porque selara sua sentença de morte
quando desembainhou a espada de prata depois que as grandes
gotas de exsudação negra começaram a escorrer do Obelisco, ele
chutou e girou e feriu como se ainda houvesse esperança.

Por fim, caiu, estatelando-se no chão do palco, e ainda assim


usou as pernas para empurrar os mortos-vivos que invadiam o
palco em sua direção e, deitado de costas, lutava para se levantar,
quando viu algo que fez tudo o mais desaparecer.

Acima do palco.

Vitória.

Algo o atingiu, trazendo-o de volta; e o mundo caiu, ficou


escuro e depois retornou com a vingança de mãos que rasgavam e
punhos que socavam. E a realidade é que Vitória ainda estava ali.

A espada estava perdida; ele a deixara cair e estava à mercê


dos mortos-vivos.

Ela não lhe dera ouvidos. Depois de tudo o que ele tinha feito,
do que fora sacrificado, ela não fizera a única coisa que lhe
competia.
Mãos o agarravam, presas brilhavam, olhos vermelhos
ardiam. Eles o arrastaram, colocando-o em pé diante de Nedas, no
centro do palco.

E, a qualquer momento, o príncipe vampiro iria decapitá-lo,


ou permitiria que os mortos-vivos o destroçassem. Eles nunca
haviam tocado nele antes, mesmo quando não tinham certeza se
deviam confiar em Max, por causa das marcas de Lilith. Aquela
duvidosa proteção não o salvaria desta vez.

E quando ele se fosse, não haveria ninguém para ajudar


Vitória.

Ele olhou diretamente para o nariz de Nedas, tendo o cuidado


de ficar longe daqueles olhos cativantes.

— Como você sabia? — ... a voz de Nedas era ardilosamente


suave e macia. O auditório tinha ficado em silêncio, atento. O único
som audível era a entrecortada respiração de Max. — Eu sou o
único que sabe como o Obelisco de Akvan pode ser destruído.

Max não se atrevia a olhar para cima, embora ardesse de


vontade para saber onde ela estava, o que fazia naquele momento.
Se ao menos tivesse percebido a situação... Ele queria gritar para
ela, dizendo que tinha de correr, de escapar. Ele queria mesmo era
sacudi-la até quebrar aquele seu longo e alvo pescoço.

Em vez disso, teve de se concentrar em Nedas; distraí-lo pelo


máximo de tempo que pudesse.

— Mas ele foi destruído, e não por você. — A voz de Max


soava como se estivesse oca até para seus próprios ouvidos. Ele
respirou profunda e fortemente, antes de acrescentar: — Você,
obviamente, calculou mal.

A mão de Nedas avançou e se fechou na garganta de Max.


Longas unhas se enterraram na delicada pele de ambos os lados de
seu pescoço e Max sentiu que elas cortavam sua carne.

— Quem lhe contou?


— Minha presença na Tutela não foi um presente para você?
O aperto no pescoço tornava sua voz rouca. — Talvez você deva
olhar na direção da pessoa que o ofereceu.

Levou um instante para que Nedas compreendesse.

— Lilith? — O vampiro ficou tão chocado, que libertou Max


com um empurrão e a cabeça dele fez um brusco movimento para
trás, dolorosamente. — Minha mãe mandou um espião para
destruir o Obelisco de Akvan?

— Por que outra razão ela daria um presente a um filho como


você? — Max respondeu com um sorriso zombeteiro.

— Ela tem tanto amor por você como você por ela.
Aparentemente, ela não o perdoou pelo incidente em Atenas.

— Como ela ousa! Com o Obelisco eu teria governado o


mundo. E o que ela prometeu a você, em troca? A vida eterna?

Bem, eu vou pôr fim nessa possibilidade agora mesmo!

Max previra aquele ataque. Ele recuperou a força dos


músculos de suas pernas, enganosamente flácidos, e, usando seus
captores vampiros como alavanca, soltou-se com todo o vigor de
sua plena força e atingiu Nedas, que girou no ar, caindo fora do
palco.

E então, como se tivesse sido ensaiado, algo veio voando com


toda a velocidade, lá de cima, e se abateu sobre o grupo de
vampiros que estava atrás de Max. Levou apenas um instante para
perceber que um dos cenários de lona pesada, com seu rolo de
madeira maciça, tinha sido lançado diretamente nos quatro
vampiros, lançando-os ao chão. Vitória, é claro.

Max se libertou daqueles que o seguravam e procurou por


sua estaca, mas ela não estava com ele. Lembrou que dera a
Vitória, mais cedo. Tratou de chutar um vampiro, arremetendo
contra outro, de maneira a impedir seu avanço e girando para
procurar um espaço de fuga, na tentativa de encontrar Vitória.

— Max! — ele a ouviu gritar e olhou para cima a tempo de ver


que ela oscilava e deslizava para baixo, usando uma corda.
Estava acima dele, indo em direção ao lado do palco.

Quando se aproximou, ela deixou cair alguma coisa e ele


pegou a estaca, como se eles tivessem praticado bastante aquele
movimento, de maneira que Max a enfiou no coração de um
vampiro que estava agarrando seu braço. Correndo na direção dos
lados das coxias, onde Vitória desembarcara como um estranho
amontoado, Max viu Nedas subindo pela borda do palco. Ele se
sentiu tentado, só por um segundo, mas continuou seguindo em
direção a Vitória. Era mais importante tirá-la dali com segurança do
que sucumbir ao seu desejo de vingança.

Mas que tentação de enviar aquela criatura para o inferno...


os dedos apertados em volta da estaca.

Ele olhou para trás. Nedas vinha se aproximando dele, os


olhos raiados de azul e vermelho ardendo de ódio. Ele praticamente
voou pelo palco, e os outros vampiros saíram de seu caminho. Max
viu um flash de prata, no canto de seus olhos, e se virou para ver
que Vitória segurava uma espada a espada. O rosto dela estava
determinado, seus olhos escuros sombrios por causa da mesma
mescla de dor e também de raiva que a alimentava.

Mesmo sem sua vis bulla, ela parecia uma guerreira.

— Eu quero ele! — Vitória gritou, correndo adiante sem nada


de sua habitual graça e força. Max hesitou; ele entendia o quanto
ela precisava daquilo, porém mal conseguia erguer a espada. Com o
canto do olho, ele viu o movimento e se virou para enfrentar dois
vampiros que haviam dado a volta e vinham por trás.

Ele não tinha escolha senão lutar com eles, e percebeu que
seus movimentos foram desacelerando e que sua respiração tornou-
se mais difícil. Em uma primeira investida, ele inclusive perdeu o
alvo ao tentar atingir o coração de um vampiro e teve de perder
preciosos segundos e energia para levantar o braço, de novo, e
atingir corretamente o morto-vivo.

Um grito às suas costas fez com que Max se virasse a tempo


de ver Vitória correr na direção de Nedas, desajeitada e
atrapalhada, com sua espada. A lâmina era de prata pura, e o
vampiro parou diante dela, mas não recuou. No mesmo instante em
que ela o encarou, as mãos dele se estenderam para agarrá-la e, por
causa de sua falta de prática, Vitória tropeçou. Max assistiu,
horrorizado, a cena em que ela parecia que deixaria cair a espada,
que perigosamente balançou em sua mão, a ponta resvalando no
chão... mas, então, inacreditavelmente ela usou seu próprio
movimento para passar por baixo do braço de Nedas, girando às
suas costas com surpreendente destreza, e Max percebeu, com
surpresa e admiração, que ela fingira o tropeção.

Com um evidente esforço óbvio e grande prazer, ela se


levantou atrás do príncipe vampiro antes que ele se virasse, e
desceu a lâmina pesada em um movimento mais lento, porém
igualmente letal, semelhante ao que Max fizera algumas horas
antes.

A espada decepou o pescoço de Nedas antes que ele


percebesse que ela estava às suas costas e, em um surpreendente,
gélido movimento, ele explodiu em cinzas de cheiro fétido.

Max correra até Vitória para interferir; agora ele tentava levá-
la embora, antes que os seguidores de Nedas compreendessem o
que tinha acontecido.

Ele passou um braço em volta da cintura dela, levantou-a,


com espada e tudo, e saiu correndo entre dois vampiros, que
estavam ali, estáticos, como se tivessem virado estátuas de pedra, e
escapou pelas laterais do palco. Ouviu-se um grito atrás deles;
parecia Regalado conclamando os mortos-vivos à ação, e Max
diminuiu o passo.

Eles correram pelas coxias, com Max praticamente


carregando Vitória, pois ela não estava em condições de
acompanhá-lo e ele tinha certeza de que, naquele momento, os
efeitos produzidos pelo toque dela em sua vis bulla já teriam
terminado.

Felizmente, ele conhecia o caminho, pois os corredores


tinham curvas e terminavam em outros que se ramificavam, mas
ele sempre sabia onde estavam. O som de vampiros se aproximando
ecoava pelas paredes vazias, atrás deles, mas sempre em sua
esteira.

Quando eles finalmente chegaram à porta de trás, aquela que


os vampiros usavam por causa dos arbustos e árvores e do pequeno
outeiro que obstruíam a visão do teatro, Max soltou Vitória.

Ela deu um passo atrás, ainda segurando a espada, mas eles


se olharam, respirando ofegantemente, na relativa segurança de
estarem a alguns palmos de distância da saída. Tudo estava em
silêncio — mesmo os sons da perseguição haviam sumido.

Bastou um olhar para que ele tivesse certeza do que já sabia:


ela podia ter salvo sua vida, mas na cabeça dela era apenas uma
questão de princípio.

Ela não seria capaz de perdoá-lo, da mesma forma que ele


também não se perdoaria.
26
Um caso de identidades trocadas

Vitória se esquivou do olhar intenso de Max, para alcançar a


porta com a mão, levantando a trava. A espada ainda pendia de
seus dedos dormentes

Ela estava sem fôlego, fraca e instável, mas apesar de tudo


isso, havia uma onda de satisfação. Ela matara o príncipe vampiro
sem a sua vis bulia, usando apenas sua frágil força feminina e sua
mente ágil — algo que Kritanu havia de classificar como o mais
imprevisível golpe que ela jamais realizara.

Mas quando olhou para Max, isso tudo se apagou, virando


uma mistura de emoções vacilantes: dor, náuseas e choque.

E ela sabia que ele vira a raiva cintilando em seus olhos.


Percebera que ela não sabia como olhar para ele; como se sentir
diante dele. Como poderia? Ele passara um ano vivendo com a
Tutela, fingindo ser um deles com tanta habilidade, que ele nem
sequer havia questionado sua lealdade... mesmo assim, no fim ele
destruíra o Obelisco e salvara todos os seus.

Exceto tia Eustácia. Será que ela seria capaz de perdoá-lo por
isso?

— Que diabos você achou que estava fazendo?

As palavras dele — não as repletas de humildade que ela


esperava — a surpreenderam, mas quando ela o fitou, a raiva nos
olhos escuros dele foi suficiente para fazê-la recuar.

Ele estava bravo com ela?


— Eu estava salvando sua vida miserável — ela gritou de
volta, as mãos trêmulas tateando a trava. — Você destruiu o
Obelisco e eu queria...

— Você queria? Sim, tudo se resumia a você, não é? ele


rosnou. — Você não se importou com nada, senão com o que
queria. Vingança — de mim, de Nedas, de qualquer um que esteja
em seu caminho. Não importa o fato de que você estivesse indefesa
como uma criança, agora, de que eu tenha arriscado meu maldito
pescoço para fazer com que saísse daqui, quase pôs a perder a
única chance que eu tinha de parar Nedas. Se você não
sobrevivesse, tudo o que realizamos esta noite estaria em perigo.

Ele permaneceu ali, alto e ameaçador sobre ela, seus cabelos


escuros caindo sobre o rosto, olhos injetados de raiva, os dedos
apoiados firmemente na parede perto dela, como se quisesse evitar
a tentação de esganá-la. — Você é A Gardella, agora, Vitória. Tem
um dever diante do Consilium e dos demais Venadores. Não pode
mais ficar pensando apenas em si mesma, em suas necessidades e
desejos, mas nas consequências a longo prazo de suas ações. Ou de
sua passividade. — Ele se afastou e se empertigou, enquanto os
sons de gritos e pés correndo novamente eram ouvidos à distância.
— Chegou a hora de você aprender a se sacrificar.

— Como minha tia se sacrificou? — Vitória se debatia entre a


raiva, a tristeza, o choque, tudo se misturando dentro dela,
tornando-a fraca e confusa. Sua animosidade aumentou, ardendo
ao longo de seus nervos. —Você fez essa escolha por ela, Max. Eu
decidi salvar sua vida, quando você teria morrido lá atrás.

— E fazendo isso, você me obrigou a viver com o que eu fiz.


Você não me fez nenhum favor e nada contribuiu para o Consilium.

— Por que não me disse que planejava destruir o Obelisco?

— Hummm... Talvez fosse porque você poderia me perguntar


como e haveria de querer saber cada detalhe, e insistiria em
participar, ou porque não acreditaria em mim. Eu lhe disse, de
todas as formas possíveis, que você precisava ir embora e,
aparentemente, mesmo a mais explícita grosseria não deu
resultados.
— Por isso você fez com que Sebastian me raptasse. Mas por
que não me contou quando veio me libertar? Poderia ter me dito,
naquele momento.

— Sim, e você teria ido embora, não é? Iria sair porta fora
com a estaca e a pistola como uma boa menina e ficaria por isso
mesmo.

— Eu não fui, não é? Você podia ter me contado mais,


quando veio a mim.

— Vitória, eles estavam esperando por qualquer coisa —


qualquer sinal ou minúcia a meu respeito que lhes dessem uma
razão para não confiar em mim. Eu não podia correr o risco de que
eles imaginassem que haveria qualquer outra coisa em curso,
senão... bem... havia a questão de que eu não queria vê-la morta.
Não importa qual fosse a razão... — acrescentou rispidamente.

— Eu deixei que pensassem isso, porque era a melhor


alternativa. Suspeitei que tivessem me dado a oportunidade de
libertá-la na esperança de me ouvir dizer a você algo que
confirmasse suas suspeitas. Não ousaria. Não poderia correr esse
risco.

Os vampiros ainda estavam quase em cima deles. Não havia


mais tempo a perder. Poderia ser dia ou noite; certa liberdade ou
mais perseguição. Vitória virou a fechadura. A porta se abriu para
uma noite escura. As estrelas se espalhavam pelo céu como um
largo cordão de diamantes da largura de um cachecol que,
normalmente, Vitória teria achado bonito, mas esta noite,
particularmente, achou decepcionante. Ela esperava encontrar tons
rosados e alaranjados. Seu corpo deu uma súbita guinada, quando
Max a empurrou e ela cambaleou, caindo no solo poeirento, lá fora.
Ouviu a porta fechar atrás dela e se virou no chão. Mas não, ele
estava lá, em pé na porta, olhando através dela. Imóvel.

Vitória girou, olhando em torno, de joelhos, agarrou a espada


na mão, ofegante. Um par de botas saiu das sombras e parou na
sua frente.
Ela olhou para cima e viu a sombra de um queixo elegante,
com um halo prateado, da lua, envolvendo seus cabelos
encaracolados.

— Sebastian. — A acusação em sua voz era inconfundível.

— Mais uma vez, sua noção de tempo é impecável.

As botas pararam perto e a sombra dele pairou sobre a mão


de Vitória, que segurava a espada. — Vejo que você esta bem
familiarizada com a propensão de meu neto a desaparecer nos mais
inoportunos — ou, neste caso, fortuitos — momentos.

Vitória esticou o pescoço para olhar o terreno em volta dela e


notou vários outros pares de botas saindo das sombras. Seu
pescoço estava frio novamente, mas ela ainda estava segurando
aquela abençoada arma. Ela se ergueu, devagar e o melhor que
podia. Suas calças ainda estavam grudadas nos joelhos,
exatamente onde eles haviam batido na terra fria e úmida. —
Beauregard, eu presumo. Eu ia começar a imaginar se você era
apenas um fruto da imaginação de seu neto. — Ela olhou por cima
do ombro e viu que Max ainda estava lá, em pé, com a porta do
teatro fechada atrás dele.

O vampiro mais velho riu, lembrando-lhe


desconfortavelmente de Sebastian. — Fico muito surpreso com o
simples fato de ele ter falado com você a meu respeito. Agora... uma
vez que você está aqui, devo supor que não tenha tido êxito em sua
tarefa esta noite? Nedas ativou o Obelisco de Akvan? — No instante
em que ele se movimentou, e foi iluminado pelas estrelas e pela lua,
ficou claro que não se tratava de Sebastian. Havia uma
semelhança; seus cabelos consistiam na mesma massa de cachos
indisciplinados, embora a de Beauregard fosse mais loira,
comparada com a cor de mel de seu neto. Ele também era mais
velho, porém não idoso. Talvez estivesse com quase cinquenta anos,
quando foi transformado em vampiro por uma criatura do sexo
masculino que o enganou. Seu rosto tinha o mesmo traço de
elegância aristocrática que Sebastian ostentava, mas o nariz era
mais largo e os lábios não tão convidativos. Já os olhos eram
completamente diferentes; mesmo que não fossem de um vermelho
brilhante, era óbvio que eram mais escuros que os de Sebastian e
se assentavam com maior profundidade em seu crânio, conferindo a
ele um olhar de pálpebras mais fechadas, que a fez recordar de
Filipe. Ainda assim, na verdade, ele era um homem suficientemente
encantador para um vampiro com séculos de idade e avô.

Ele estava olhando para Max, que permanecia contra a porta.


Talvez estivesse apoiado nela, Vitória não tinha certeza. Ele ainda
segurava uma estaca na mão que pendia ao lado de seu corpo.

— O Obelisco de Akvan foi destruído — Max lhe contou.

Beauregard ergueu o queixo. — Então, você conseguiu. Eu,


como Lilith, não desejava que Nedas tivesse um poder imenso. E
você ainda está viva? Muito conveniente para mim.

— Não por nenhuma falha dele mesmo — Vitória respondeu.


Ela se moveu e a espada brilhou ao luar.

Isso chamou a atenção de Beauregard e ele sacudiu,


impositivamente. — Você não vai mais precisar disso. Onde está
Nedas?

Sebastian saiu de trás do grupo de vampiros, olhando


firmemente para Vitória, enquanto caminhava em sua direção.

— Não — disse ela, recuando para se aproximar de Max,


segurando a espada diante de si.

— Nedas está morto — respondeu Max para Beauregard.

— Entendo. Agora, Vitória... — Sebastian ordenou. Ela não


podia ver seu rosto muito bem, mas aquele tom metálico em sua
voz era incomum para sua encantadora personalidade.

Max se movimentou atrás dela. Ele se aproximou e segurou


seu punho, puxando-a com o outro braço em volta da cintura dela,
enquanto Sebastian arrancava a espada da enfraquecida mão de
Vitória.

— O que você está fazendo? — Vitória se debateu em seus


braços, dando chutes para trás, na direção de Max, e para frente,
destinados a Sebastian, até que Max a soltou de repente e ela caiu
no chão.

— Calma, Vitória. — Sebastian estava ao lado de seu avô,


olhando para ela. — Você não deveria estar aqui nem era esperada.
— Ele não estendeu a mão para ajudá-la a se levantar.

— Devemos agradecer à sua incompetência nossa atual


situação, Vioget — Max comentou com sarcasmo, ainda encostado
na porta.

Sebastian ergueu uma sobrancelha, — Vejo que você,


também, teve de se esforçar para mantê-la sob controle.

— Eu tinha outras tarefas a realizar.

Vitória lutou para se erguer, tentando não pensar em


quantas vezes, naquele dia, ela teve que fazer isso. E em como
estava ficando cada vez mais difícil. — Ela realmente mandou você?
— perguntou a Max.

— Sim, Lilith me mandou. Ostensivamente, como um


presente para seu filho — um Venador de estimação, como disse.
Aquele que entregará os segredos dos Venadores à Tutela e aos
vampiros, apoiando-os quando o Obelisco de Akvan fosse ativado.
Eu era o candidato perfeito, por ter sido da Tutela, antes. Há muito
tempo.

— Quando...

— Silêncio. — Beauregard andou na direção dela, os olhos


repentinamente brilhando como rubis rosados, as longas e letais
presas à mostra. Até agora, não sabia que ele era um vampiro
Guardião. — Você não está no controle, aqui. Agora, vocês dois,
voltem para dentro! — Virou-se para Sebastian, olhando com
desaprovação para a espada. — Tire isso da minha vista.

Vitória não se moveu, então Beauregard deu uma ordem a


dois dos vampiros que estavam a seu lado. Eles a agarraram pelos
cotovelos e facilmente empurraram-na para a porta, que Max havia
aberto.
Três vampiros saltaram para fora, as presas estendidas, os
olhos vermelhos, prontos para a batalha. Havia muitos mais,
apinhados na porta atrás deles.

No entanto, quando viram Beauregard, eles congelaram.

Vitória olhou para trás e viu Beauregard sorrindo, diante dos


recém-chegados. Não era um sorriso agradável, algo que ela havia
visto em muitas outras expressões desse tipo de criatura que lhe
provocava uma sensação íntima desagradável.

Nós detivemos aqueles que atacaram e mataram Nedas, esta


noite — ele anunciou, dando um passo à frente com um ar de
comando. Como seu novo líder, eu devo impor uma retribuição
imediata.

Em alguns aspectos, era uma cena familiar, lembrava aquela


em que Sebastian havia conduzido, não fazia muito tempo, Vitória
para aquele palco, onde fontes do mal ardiam e chiavam. Era
irônica a forma como tudo havia sofrido uma tremenda
metamorfose, da brilhante cena de uma alta apresentação, alguns
dias antes, com a música e a clara vibração de uma canção, para
um lugar enegrecido, com metade do piso destruído e os assentos
não tomados por espectadores, mas por mortos-vivos esperando e
observando seu próprio desempenho.

Ela desistira de escolher se se irritava com Sebastian ou se


resignava com suas ações, de maneira a ficar com raiva de si
mesma. Então, ela desde sempre não soubera que ele não era uma
criatura confiável, mesmo quando faziam amor? E agora ali
estavam ambos, sem nenhuma outra pergunta sobre onde ele se
situava e o que considerava importante.

Bem diante dela.

E Max... onde é que Max ficava, em tudo isso? Ele destruíra o


Obelisco, mas a forçara a dar a espada para Beauregard... e
Sebastian. Com certeza, eles estavam em situação de inferioridade
numérica e nunca seriam capazes de lutar para abrir caminho
naquele grupo de vampiros. Mas mesmo assim ela se sentia
insegura.
Beauregard estava sentado no centro do palco, em urna
grande cadeira que Vitória reconheceu como vinda da área de
adereços. Ele parecia majestoso e poderoso, com os olhos cintilando
e as presas superiores pressionando suavemente a carne de seu
lábio inferior.

— O que ele quer de mim? — Vitória perguntou em voz baixa,


olhando para Beauregard de onde ela eslava, nas coxias com
Sebastian.

— Estou surpreso que você ainda não tenha percebido,


Vitória — ele respondeu, com seu habitual sotaque.

— Beauregard e Nedas foram rivais por muito tempo, pela


liderança sobre os vampiros. Meu avô não poderia estar mais
satisfeito que você não apenas destruiu o Obelisco de Akvan, como
também o livrou de Nedas.

— Então, ele deveria estar gritando de alegria e liberando-nos


em vez de planejar uma retribuição.

— É claro. E no momento em que ele optou por não executar


dois Venadores, que são inimigos mortais de seus seguidores, por
quanto tempo você acha que ele manteria o controle da Tutela e dos
vampiros? Independentemente dos favores feitos a ele hoje,
Beauregard não está prestes a renunciar ao poder que tem
buscado, simplesmente por poupar a vida de dois Venadores.
Agora, venha comigo e fique quieta. Apenas permaneça lá e fique
bonita; felizmente, meu avô tem uma queda por mulheres bonitas.

— Parece que você impressionou indelevelmente meu neto —


disse Beauregard a ela, quando Sebastian a levou para ficar ao lado
dele. — Você fez uma excelente escolha — acrescentou ao neto. —
Eu posso ver agora o porquê de sua atração pela mulher. Ela é
muito graciosa.

— Peço que você poupe a vida dela, simplesmente porque ela


me agrada — disse Sebastian com uma leve reverência. — Ela foi
desarmada e já não usa o símbolo dos Venadores. É uma pequena
ameaça.
Vitória teve de lutar para manter o rosto branco. Ela podia
ser uma pequena ameaça agora, mas assim que voltasse para o
Consilium, passaria a usar uma nova vis bulla e estaria de volta as
ruas.

Presumiu que Sebastian poderia fazer charme para seu avô


de forma tão eficaz como a encantava.

— Eu posso ver isso. Seria simples preservar a beleza dela


por toda a eternidade, Sebastian. Ela poderia ser a sua concubina
para sempre, permanecendo tal como é hoje. — Os olhos de
Beauregard brilharam com aquela pitada de sedução que seu neto
sempre ostentava, mas, neste caso, fez o estômago de Vitória se
revolver. — E seria um grande prazer, para mim, fazer isso.

—Não, obrigado, meu avô. Mas peço que você a poupe.

— Vou poupá-la, só porque você pediu, Sebastian. Mas,


apenas nesta ocasião. Se houver uma chance de que nos
encontremos novamente, em diferentes circunstâncias, não posso
manter a promessa. — Ele lançou seu olhar de rubi sobre Vitória,
que sentiu toda a força do poder dele, o jugo de sua autoridade e a
leve e breve curiosidade, de como seria se permitisse que ele
cravasse as presas em seu pescoço.

Ele sorriu abertamente, quando intuiu o questionamento


dela, depois se voltou para Sebastian. — Você tem bastante
certeza? Bem, então, vou voltar minha atenção para o outro.
Tragam-no.

Vitória engoliu, a garganta seca e apertada.

Max.

Tinha um sentimento terrível, girando em espiral, a respeito


do que estaria reservado para ele. Particularmente depois que
Sebastian deixou seus sentimentos em relação a ela absolutamente
claros. Ela parou, puxando o braço de Sebastian. — E quanto a
Max?
— Não posso — nem vou — salvá-lo, também — disse a ela,
fazendo com que o seguisse.

— Seu avô vai matá-lo. Mas por quê? Depois que ele me fez
dar a espada a você, eu pensei...

— Não, Maximilian no gosta de Beauregard mais do que de


mim. Ele apenas estava protegendo você, quando fez com que me
entregasse a espada. Mesmo juntos vocês não poderiam vencer uma
luta com Beauregard, e agora que ele sabe que eu vou garantir sua
segurança, ele aceitará sua própria sentença. Agora, trate de se
apressar, antes que meu avô mude de ideia.

Sebastian a estava conduzindo rapidamente para fora do


palco quando, de repente, algo passou zunindo por eles, vindo de
cima e pousando com um baque ruidoso e pesado, no palco, no
espaço que havia entre eles e Beauregard.

Vitória pulou para trás e olhou para cima, encontrando


brilhantes olhos vermelhos na passarela onde ela estivera, horas
antes; alguém tinha feito exatamente a mesma coisa que ela,
lançando outro dos cenários, direto para o chão.

Tudo virou um caos. Vampiros iniciaram uma invasão, por


todos os lugares, em novas levas ou talvez já fossem as anteriores,
de bandos que ficaram à espreita, nas sombras do auditório,
atacando os seguidores de Beauregard. — Venha, Vitória!

— Sebastian estava obviamente surpreso e alarmado, e, pela


segunda vez na mesma noite, ela se viu sendo puxada para fora do
palco, repentinamente transformado em campo de batalha.

Ela viu Max, quando Sebastian a puxava em direção à saída.

Ele estava parado em uma das beiradas do palco, sem armas,


defendendo-se de um só vampiro, enquanto outros lutavam ao seu
redor. Não levaria muito tempo para que fosse subjugado ou
sobrepujado.

Vitória parou, automaticamente olhando ao redor, à procura


de algo que pudesse ser usado como arma, e Max olhara para ela.
Seus olhares se encontraram em meio ao corpo a corpo, e ela leu a
mensagem que estava estampada ali: a mesma que ele lhe dava
desde que haviam se encontrado na vila de Regalado.

— Vitória! — Sebastian tratava de puxá-la, mas ela havia


agarrado a barra de uma cortina de veludo que estava pendurada
na beirada do palco, e a usou para manter-se ali, meio escondida.

Ela engoliu em seco, viu como Max tentou girar para se


afastar do vampiro que pulou sobre ele... notou que ele vacilava e,
em seguida, se equilibrou.

Ele olhou para ela novamente, e seu rosto era uma máscara
de raiva e determinação. Tinha de ir embora. Mas ela não conseguia
fazer com que seus pés se movimentassem.

Apesar do que ele fizera... ela não poderia abandoná-lo. Ele


era um Venador. Ela não podia deixá-lo morrer. Ela não podia fazer
esse sacrifício! Ela precisava de Max.

Na falta de tia Eustácia, precisava dele. De alguém em quem


pudesse confiar.

Vitória se livrou do pulso de Sebastian, cambaleou por causa


da repentina liberação, perdeu o equilíbrio e caiu no chão do palco.
De joelhos, por um breve instante, ela notou que algo brilhava sob a
cortina. Procurando alcançá-lo, arrastando-o com a ajuda do veludo
pesado e logo percebeu o que veio à sua mão.

Era um caco do Obelisco de Akvan. Seu diâmetro não


superava a largura de dois dedos, e seu comprimento era menor do
que o de seu antebraço. O fragmento tinha o cheiro do mal, parecia
que emanava um chiado, quando ela o pegou e o segurou,
colocando-o sobre a mesa. A energia se expandia ao longo de seu
braço.

Ela usou a cortina para ficar em pé e olhou para trás,


esquadrinhando o palco. Max ainda estava lá, mas, enfraquecendo,
e se desconcentrou para olhar em sua direção, na tentativa de se
certificar de que ela estava indo embora, mesmo.

Ela precisava ir.


Tinha de deixar de lado seus sentimentos, disposta ao
sacrifício.

—Vitória! — Sebastian estava agarrando o pulso da mão com


a qual ela segurava o fragmento e, desta vez, com um último olhar
para trás, na direção de Max, ela permitiu que fosse arrastada.

— O que você está fazendo com isso? — ele disse sobre seu
ombro, enquanto saíam.

— Vou levá-lo para Wayren — Vitória respondeu, puxando


sua mão, para liberá-la da mão de Sebastian.

Eles correram pelo teatro, desta vez sem vampiros em seu


encalço. Os sons da violência ainda rugiam e ecoavam pelo edifício
meio queimado.

Sebastian parou na porta que levava ao exterior. — Tenho de


voltar.

— O quê? O que está acontecendo?

— É Regalado. Ele está lutando para conquistar a liderança


dos vampiros. Não posso deixar meu avô encará-lo sozinho. Você
está salva, veja que o sol está nascendo, e precisa ir embora.

Antes que ela pudesse protestar mais, ele a empurrou contra


a parede, seus dedos se enterrando nos ombros dela através do fino
tecido de sua túnica. Sua boca desceu sobre a dela, faminta e
quente, pedido de desculpas, desejo e despedida, tudo misturado
com lábios sensuais e uma língua forte e hábil.

Ela retribuiu o beijo por um momento, sua respiração


arfando entre eles, e então afastou a boca. — Mas você não mata
vampiros.

— Sei. Mas até eu tenho um resquício de honra. — Ele a


beijou novamente, encaixando sua boca de volta, na dela, depois
fechou os olhos e inclinou sua testa, junto à de Vitória. Respirou
profundamente. — Fique em segurança. Agora vá.
Ele a empurrou para fora da porta, fechando-a com um
baque. O céu estava em tons de rosa e laranja, do jeito que ela
esperava que estivesse, algumas horas antes.

Ela piscou sob a luz brilhante e se virou, olhando para trás.

Ela queria voltar para dentro. Deus do céu, queria retornar.

Mas fez a coisa certa.

Por tudo o que sabia... Max estaria morto, agora.

E ela esperava que Sebastian não tivesse o mesmo destino.

Mesmo assim, ela não conseguia ir embora. Não podia


simplesmente seguir adiante, encontrar uma carruagem e voltar
para a vila.

Ela ficou ali, na grama úmida de orvalho, congelada como


uma pedra.
27
Maximilian assume um débito desagradável

Max estava pronto.

Absolutamente exausto, mal podia enxergar direito.

Observou quando Vitória saía com Vioget e soube que, por


tudo que acontecera, ele não estava disposto a deixar que algo
acontecesse a ela. Trataria de mantê-la em segurança.

E ela seguiria em frente. Seria uma líder tão formidável como


Eustácia.

O vampiro saltou sobre ele, pois Max finalmente caíra no


chão, e o pé quebrado de cadeira que ele tinha usado como estaca
rolou de sua mão. Os dedos dos mortos-vivos estavam curvados,
ameaçadores, munidos de garras letais e suas presas brilhantes
pareciam sabres amarelos.

Lilith não teria ninguém para atormentá-la, agora que Max


estava prestes a sumir do mapa. O pensamento fez com que sua
boca se torcesse com um ricto de humor irônico e ele fechou os
olhos, pronto.

Mas a dor não surgiu.

Ao abrir os olhos, encontrou Vioget em pé, sobre ele, de


estaca na mão. Ele se inclinou para ajudar Max a se levantar,
enquanto os vampiros se digladiavam no palco atrás dele. Max
sacudiu, ao sentir sua aproximação.

—Vitória?

— Segura. Lá fora.
Um grito de alerta chamou a atenção deles para dois
vampiros, que lutavam com presas e unhas, rolando em sua
direção.

— Vá — Sebastian disse.

Max já estava se movimentando nas coxias, em direção à


saída. Voltou-se, olhando para trás.

— Não lhe devo gratidão por isso, Vioget.

— É precisamente essa a razão por que fiz isso. Disse a


Vitória que não me importava se você vivesse ou morresse.

Max parou, olhando para ele da beirada de uma cortina


queimada. — Então, por que não me deixar entregue minha
miséria? Por que bancar o herói? Isso vai contra sua índole.

— Não fiz isso por você. Fiz por ela. — E Sebastian se virou
para a batalha que havia às suas costas.

Quando a porta do teatro se abriu e Max saiu, piscando sob a


luz brilhante, Vitória não conseguia parar de olhar.

Ele parou quando se viu diante dela. —Você ainda está aqui!

Vitória se levantou. E eles ficaram ali, em pé, diante das


sombras esguias lançadas pelas árvores, quando o sol mal se
levantava no horizonte.

Ela não sabia o que dizer a ele. Havia assassinado sua tia e,
no entanto, lutaram lado a lado.

Ele destruiu o Obelisco de Akvan e a ajudou a escapar. Ela


foi embora, deixando-o à mercê da morte.

— Como...

— Não é importante. — Ele colocou as mãos na cintura,


abatido e claramente esgotado. — Eu lhe disse que sua vingança
seria discutível, mas nunca esperava caminhar para longe do palco
onde, uma vez, eu manejei aquela espada.

— Mas você fez isso. E eu o salvei.


— Então, eu tenho outra razão para ser grato a você, é isso?
Você não podia estar mais enganada.

— Com certeza, havia outra maneira.

Ele ergueu os olhos. — Para estar lá com o objetivo de


destruir o Obelisco no preciso momento que poderia ser destruído,
eu tive de provar que era confiável, para fazer a coisa mais
repugnante que se possa imaginar. Não havia outro caminho,
Vitória.

O silêncio se estendeu, longo e inquietante. Uma brisa leve


roçou o rosto dela e Vitória notou que as sombras já estavam
começando a diminuir.

— Você disse que Lilith iria liberá-lo de seu cativeiro, se você


se aliasse à Tutela.

O riso dele foi curto; suas palavras, amargas. — Você não


acha que eu acreditei nisso, não é? Ela falou, com certeza, mas não
acreditei realmente nela. Achei que haveria uma esperança... — Ele
riu de novo. — Não, obviamente, não. E era discutível, da mesma
forma que eu não esperava viver se tivesse, ou não, sucesso na
meta de destruir o Obelisco de Akvan.

Eles ficaram olhando um para o outro, e Max se aproximou


dela, estendendo as mãos para segurar seus ombros. A
emaranhada trança de Vitória ficou presa nos dedos dele, que a
apertavam enquanto ela erguia OS olhos para Max. —— Você
nunca vai me perdoar pelo que fiz à sua tia e eu nunca vou perdoá-
la por me forçar a viver. Você acha que eu posso esquecer o que fiz?

Ela se afastou e ele deu um passo atrás, como se tivesse sido


queimado. E, então, ele procurou algo sob sua andrajosa camisa,
por um momento. Quando suas mãos voltaram para fora, ele lhe
estendeu uma coisa. Sua vis bulla.

— Não, Max.

— Sim. Está decidido. Estou fora.

— Não, você não pode.


Ele estava com raiva, agora. — Você acha que eu alguma vez
serei capaz de encarar o Consilium, de novo, depois disso? Não
posso sequer pensar em viver comigo mesmo. Eu matei minha
mentora, minha professora, minha amiga. — Seus olhos cintilavam
e ele desviou o olhar.

— Max.

— Você conta com Wayren, Kritanu e os outros. Talvez


mesmo com Sebastian, se ele conseguir sair vivo dali. Não precisa
de alguém cuja lealdade estará em questão para sempre. Por Deus
do céu, pense no Consilium e em seu futuro, não em suas emoções.
Adeus, Vitória. Andare com Dio.

Pela segunda vez, ela deixou que ele fosse embora. Observou-
o, enquanto caminhava para o amanhecer, alto, escuro e sozinho.
28
Um amargo presente

Na manhã seguinte, um dia depois de ela ter emergido do


teatro e observado Max ir embora, um pequeno pacote chegou para
Vitória. Dentro, havia uma peça de seda e uma mensagem.

Encontrei isso, depois que a batalha terminou e pensei que


você poderia querer recebê-lo.

Talvez possa substituir aquele que arrancaram de você, porque


embora eu tenha procurado, não consegui encontrar. Cuide-se,
porque não sei quando nos encontraremos de novo. S.

Envolta na seda estava a vis bulla de sua tia.


EPÍLOGO
Wayren tranquiliza Illa Gardella

— Desde o momento em que ela colocou os pés em Roma,


sua tia sabia que não a deixaria novamente.

Vitória e Wayren estavam sentadas na pequena sala de estar


de sua vila. Vitória havia superado o choque inicial, no dia em que
emergiu do teatro.

Muitas coisas haviam acontecido e ela procurou controlar o


sofrimento, a raiva e a tremenda sensação de estar perdida. À
deriva e sem rumo.

Ela aceitou o desafio da imensa e sinistra responsabilidade


que tinha diante de si e estava pronta para isso. Sim, ela ficou de
luto. Sentia como se fosse ontem que ela experimentara a mesma
sensação de estar oca, que a invadira com a morte de Filipe... mas
ela encontrara uma forma de controlar isso, da mesma forma que
acharia, agora.

Ela era uma Venadora.

Ela era Illa Gardella.

— Houve uma profecia, há muito tempo, de Lady Rosamund.


Eustácia a conhecia bem, mas não sabia exatamente o que
significava, até que aconteceu. A era dourada do Venador vai
repousar aos pés de Roma — é a tradução correta. Faz sentido,
agora, porque sua tia era verdadeiramente a Venadora Dourada,
Vitória, e você vai seguir os passos dela.

— Ainda não posso aceitar a escolha de Max. Tinha de haver


outro caminho!
Wayren olhou para ela com seus tranquilos olhos azuis. Sua
face mostrava uma expressão de compaixão. — Ele não queria fazer
isso, Vitória. Ele não queria. Faria qualquer coisa, menos isso.
Eustácia ordenou que ele fizesse.

Os olhos dela marejaram. — O que? Como ela pôde?

— Ela fez o que tinha de ser feito, Vitória. Se Nedas fosse


bem-sucedido ao ativar o total poder do Obelisco de Akvan, haveria
destruição e morte de um jeito bem pior do que vimos em Praga. Ela
se sacrificou de bom grado, para dar a Max a oportunidade — a
única oportunidade — de parar Nedas. Uma vida em troca de
muitas outras. Ela confiava que ele conseguiria. E ele o fez, de fato.
Contra todas as probabilidades. Ele teve sucesso, porque tinha de
destruir o Obelisco naquele exato momento ou a chance estaria
perdida.

Vitória pegou o lenço que Wayren lhe ofereceu. Cheirava a


lírio do vale e menta e, de alguma forma, a mistura a acalmava.

— Max não esperava sobreviver.

— Estou certa de que não. Você salvou a vida dele quando


estava em seu estado de maior fraqueza, uma prova de sua força e
criatividade. Você é a Gardella, agora.

Wayren a tocou com sua delgada e fria mão e Vitória sentiu


uma onda de conforto. — Quem você acha que teve a tarefa mais
difícil — sua tia, indo para a execução? Ou Max, que teve de
encarar e matar alguém que ele amava, admirava e respeitava?
Deve causar surpresa que ele não queira viver com essa lembrança,
esse conhecimento, dia após dia? Para sua tia, tudo acabou em um
instante; estou certa que Max garantiu que fosse rápido e indolor.
Mas ele...

— Ele terá de viver com a escolha feita a cada dia e ficar


imaginando se haveria algo diferente que pudesse ser feito.

— Vitória relembrou aquele horrível período, um ano atrás,


quando fez a escolha, e podia ter matado o homem no beco de St.
Giles. — Ele sabia como seria muito mais difícil ter de matar
alguém que ele amava.
— De fato.

— Ele me deu sua vis bulla. — Ela a mostrou a Wayren.

— Você não removeu sua vis bulla quando temia não poder
usá-la mais, Vitória?

Ela balançou a cabeça, rememorando.

— Temos de dar tempo a ele, Vitória. E espero que ele


retorne.

FIM

Continua em 03 : The Bleeding Dusk


Na mitologia nórdica, as valquírias eram deidades menores, servas de Odin. O termo deriva do nórdico
antigo valkyrja (em tradução literal significa "as que escolhem os que vão morrer.)

As valquírias eram belas jovens mulheres que montadas em cavalos alados e armadas com elmos e lanças,
sobrevoavam os campos de batalha escolhendo quais guerreiros, os mais bravos, recém-abatidos entrariam
no Valhala. Elas o faziam por ordem e benefício de Odin, que precisava de muitos guerreiros corajosos para a
batalha vindoura do Ragnarok.

As valquírias escoltavam esses heróis, que eram conhecidos como Einherjar, para Valhala, o salão de Odin. Lá, os
escolhidos lutariam todos os dias e festejariam todas as noites em preparação ao Ragnarok, quando ajudariam a
defender Asgard na batalha final, em que os deuses morreriam. Devido a um acordo de Odin com a deusa Freya,
que chefiava as valquírias, metade desses guerreiros e todas as mulheres mortas em batalha eram levadas para o
palácio da deusa.

As valquírias cavalgavam nos céus com armaduras brilhantes e ajudavam a determinar o vitorioso das batalhas e
o curso das guerras. Elas também serviam a Odin como mensageiras e quando cavalgavam como tais, suas
armaduras faiscavam causando o estranho fenômeno atmosférico chamado de Aurora Boreal.

Você também pode gostar