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Atenção.
O sofrimento da viúva
Precisava de absolvição.
Vazio.
Mas não havia ninguém. Ninguém para ver o que ela fizera, o
que a raiva e a devastação faziam quando eclodiam nela.
— O que aconteceu?
— Você o conhece?
Era Filipe.
Foi como se o corpo dela se congelasse e, em seguida,
pegasse fogo. A estaca escorregou de seus dedos frouxos e ela
deixou escapar um grito, quando ele a empurrou, derrubando-a no
chão. No tapete, engolindo poeira e, apavorada, respirando com
dificuldade, Vitória olhou para cima, na direção da figura que
pairava sobre ela. Como?
Nada aconteceu.
Ele era tão rápido, tão forte... ela não tinha chance.
A parte mais difícil foi que eu não tinha nada para fazer!
— Vitória ouviu sua voz se transformando em um gemido e
parou. Se Max estivesse aqui, teria feito algum comentário
sarcástico sobre como bons Venadores não conseguiam impedir que
suas emoções os dominassem, citando a si mesmo como perfeito
exemplo de alguém que evitasse isso.
Mas... talvez não. Na última vez que ela o vira, Max disse algo
que era um autoelogio, a considerar a origem. Ele a chamara de
Venadora. Como se a considerasse igual a ele.
— Talvez você não tenha tido muito o que fazer nos últimos
meses — sua tia disse —, mas o que fez nos primeiros meses como
Venadora superou de longe o que qualquer um poderia esperar. E
depois do que aconteceu... Vitória, você precisava de um descanso.
Precisa se curar.
Ou morresse tentando.
Eustácia respirou longa e profundamente... depois expeliu o
ar durante algum tempo, devagar, tranquilamente. Abriu os olhos
para se deparar com Kritanu, que a observava.
Ela sorriu para ele e, daquele mesmo jeito antigo, como fazia
quando eles eram bem jovens, Eustácia inclinou a cabeça dele na
direção de suas pernas cruzadas em lótus, olhando para o rosto
dele. Não importava que os joelhos dela já não alcançassem o solo
como outrora e que seus tornozelos artríticos vibrassem com o peso
da cabeça dele. Era familiar e, também, um conforto, tocá-lo.
Ela poderia ter ficado em St. Heath’s Row, a salvo atrás dos
portões decorados com cruzes e paredes de pedra. Ela poderia ter-
se permitido outra noite ou mesmo duas, depois da experiência no
Cálice de Prata. Ela até poderia ter esperado tia Eustácia receber
alguma informação de Wayren sobre o amuleto que encontrara.
Poderia, ainda, passar a noite debruçada sobre a coleção de
manuscritos e pergaminhos que sua tia guardava na casa dela,
procurando por alguma pista para ter uma ideia se aquilo fora
deixado pelo demônio que ela decapitara ou, seja lá o que fosse,
talvez pudesse ter sido perdido por Sebastian, meses atrás.
— Cê dêxa isso pra lá, num vai precisá. Nóis só qué suas
coisa di valô.
— Óia, cê pode num tê nada nos bolso, mas tem uma coisa
que a gente qué — o primeiro homem falou, atrás dela. Ele já não
estava mais cutucando Vitória com o que ela achou que fosse á
ponta de uma faca. Aparentemente, apesar de ela ter mostrado uma
arma, ele não parecia mais sentir necessidade de contar com uma
própria.
Ele era muito louco, e isso ficou claro quando ele procurou
por ela.
O arco traçado por sua faca, no ar, fez com que ele parasse e
ela o acertou no canto do queixo, se aproximando demais dele em
detrimento de seu próprio nariz, porque o homem fedia a chiqueiro.
Acabei com você, agora. Tenho coisas mais importantes a fazer do
que ficar brigando com vocês dois, seus loucos.
Ah!
— Madame! Senhorita!
— Senhor Starcasset!
— Lady Rockley!
Vitória não podia acreditar em seu infortúnio. Seu pretenso
salvador era o irmão de sua boa amiga Gwendolyn Starcasset. E ele
estava olhando para ela com compreensível preocupação, imóvel,
como se fosse incapaz de pensar no que fazer.
— Faiz um tempão que num vejo ocê usá uma cor diferente
do preto — Verbena cacareja enquanto ajusta o corselete de Vitória.
— Ocê já divia di tê passado pro meio-luto faiz uns seis meses,
usano esse bonito cinza pérola. Memo quando todo mundo tava
diluto pela princesa Charlotte, Deus tenha piedade da alma dela, o
pessoá passô pro cinza antes dos seis meses. Mais não ocê, não
memo, e eu num posso dizê que ocê tem culpa, porque nóis perdeu
o marquês daquele jeito horrívi, mais dona, a sua pele tá sentino
falta di cores bonitas como aqueles amarelo e pêssego. Tá certo,
memo, dá um poco de vida pras suas bochecha.
Vitória sabia muito bem que não deveria dizer uma só palavra
quando sua criada estava discursando. Provavelmente Verbena
estivesse falando nisso durante os últimos nove ou dez meses e não
poderia ser dissuadida de defender seu ponto de vista,
independentemente do que sua patroa poderia ter vontade de
objetar.
— Mas isso não qué dizê que ocê tem que sê uma monja.
Vitória esperou que ele falasse, mas ele não o fez; então ela
disse: — Agora que você conseguiu, graças a tão grande esforço,
tirar-me da cama, seguramente não me manterá em suspense por
muito tempo.
Ela percebeu que ele estava mais próximo. Ela podia ver os
longos cílios e a delicada linha de uma covinha que mal se
mostrava quando ele não estava sorrindo, como agora. —Sempre
existe uma escolha, Vitória.
— Nada.
—Ah... Então por que você a atribui a mim, se não sabe o que
é?
—Não.
Ela não podia ver o rosto dele, maldição! Como poderia saber
o que pensar. — Venha para a luz, onde eu possa vê-lo.
—Assuntos urgentes?
— Vou deixar que John Lhe conte a história, pois ele sabe de
todos os detalhes. Basta adiantar que eu não espero que esta seja
urna festa tranquila e segura. Alguém está aqui, a mando da
Tutela. Quem quer que seja, ele vai ficar no encalço de Polidori, e eu
não devo me afastar dele, até que saibamos de quem se trata.
Para baixo.
Vampiros Imperiais.
— Sebastian!
Soube, por Max, que você foi responsável pela evolução dos
fatos.
— Max e eu... uma das razões pelas quais ele voltou tão
rápido à Itália, depois dos acontecimentos do ano passado, foi o
crescente poder da Tutela. Então, Max vai matar Nedas.
— Por quem?
— Marca?
— Não sei. Minha tia disse que ele se mantém em silêncio por
mais de oito meses. Bem, nós chegamos — Vitória disse, olhando
para fora da janela. — Grata por me oferecer esta informação,
Sebastian. Vou aceitar sua sugestão e começar com Byron, quando
chegar a Veneza. Você poderia ter me mandado uma mensagem, em
vez de se dar ao trabalho de me visitar pessoalmente.
E quando ele olhava para ela, como agora, fazia com que ela
se sentisse, também mais que uma caçadora, uma guerreira. — Não
quero desapontá-la, minha querida — disse ele, com um tom
ríspido na voz — mas a minha benevolência era um pouco mais
egoísta do que você possa imaginar.
— Sei qui ieu faço meu mió, patroa — Verbena disse. — Não
qui seja muito difici fazê que a sinhora fique bonita. Tem essa pele
tão linda, como si fossi uma rosa clarinha, e esses grandes óios
verde escuro. Nossa... e todos esses cabelo! Quem é qui podia achá
algum defeito nesses cabelo?
Vitória, não.
Bem, poder até podia. Era possível e talvez até mesmo aquele
amor a encontrasse algum dia, porque ela ainda era jovem e
atraente, e se sua resposta a Sebastian fosse uma indicação, ela até
gostou de ser tratada assim por um homem.
Mas ela era uma Venadora. Sua vida era uma colcha de
retalhos de perigo e traição, patrulhas noturnas, caça incessante,
violência e confrontos com o mal. Um grande mal e que a maioria
das pessoas jamais haveria de encarar.
Ela não podia se permitir enamorar ou, pior, muito pior, ser
amada.
Suas últimas palavras para Max tinham sido que ele tinha
razão. Estava certa quanto ao fato de que não deveria ter se casado
com Filipe por todas as razões que ela agora sabia muito bem.
Vitória nunca encerraria o luto, porque jamais seria capaz de se
perdoar por ter se casado com ela, de qualquer forma.
— Lord Byron, sou muito grata por seu amável convite. Estou
aqui há pouco mais de uma semana e começava a me perguntar se
eu nunca veria outra festa! Como tem sido desagradável, e que
adorável festa o senhor oferece! — Ela fez uma breve reverência,
ofereceu-lhe a mão, e sorriu para a mulher, esperando que Byron
fizesse as apresentações.
E ele fez isso, pouco depois, e assim que chegou sua atenção
dirigiu a Vitória.
— Deixaria.
— É mesmo?
— Como? Onde?
— Nós temos um pequeno... grupo. Encontramos os vampiros
e passamos algum tempo com eles; apenas alguns deles, calcule.
Porque nós os compreendemos. Eles são as criaturas mais
incompreendidas que eu já conheci.
Ele introduziu algo duro e liso na mão dela. — Esta será sua
prova de admissão. Vou avisá-la quanto à data e local.
Gratíssima, de fato!
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Lady Rockley desenvolve tremenda aversão à lavanda
— A senhora tem que se vesti que nem que fosse pra i numa
festa — Verbena insistiu. — Num pode se arrumá como se fosse
caçá vampiros. De mais a mais... o conde deve di querê exibi a
senhora pros vampiros! Tô certa que é mais bonita qui qualqué
outra muié da Tutela!
Claro que ela poderia estar exagerando, talvez não tivesse que
se preocupar com nada. Mas sua inquietação estava começando a
aumentar na mesma medida que o suor na testa de Alvisi. Ele falou
pouco durante a pequena viagem e Vitória, que tentava encontrar
indicações para lembrar o percurso, não tentou alimentar um
diálogo.
Não era uma coisa que ela pudesse reconhecer, nada que
fosse capaz de nomear ou mesmo de comparar; era fraco, mas
rançoso e repugnante. Fez com que sua barriga quisesse engulhar.
Ela nem sequer se lembrava de tê-lo sentido, até agora, mas a
memória retornou quando o inalou outra vez. A única vez em que o
havia sentido foi quando estava lutando com o demônio.
Ela não gostou. O cheiro fez com que ela desejasse fugir dali,
como se escapasse pelo ar, silenciosa e invisível, como uma teia.
— Vida imortal!
— Vida imortal!
— Vida imortal!
Vida eterna, essa era a dádiva da Tutela. Vida imortal até que
fossem afixados ou decapitados e... depois... a danação eterna.
— Aproxime-se.
Mas o que ela poderia fazer? Uma mulher contra uma sala
cheia de homens, contra seis vampiros. Sua mente ainda estava
confusa, os membros não queriam se mover. No momento em que
fosse descoberta como Venadora, ela seria morta antes que pudesse
iniciar a próxima respiração.
Ela teria levantado sua estaca, mas ele agarrou sua mão no
ar e a empurrou contra a parede. Estava fria e ela sentiu grãos de
poeira e a superfície da pedra sobre seus ombros nus.
Ele estava atrás dela, não longe, mas o suficiente para que
ela mantivesse a liderança. Tentou vasculhar sob sua saia para
pegar a última estaca, mas demorou demais e ela não conseguia
encontrar a arma enquanto estava correndo.
Agora ela já estava bem perto; já era uma fresta de luz. Ela
bateu contra a parede, que tinha de ser uma porta, tinha de ser, e o
sentiu chegar, atrás dela. Escarafunchando ao redor com os dedos,
novamente ela sentiu uma trava, rezando por luz do sol. Ela não
tinha ideia de quanto tempo havia se passado desde que viera para
a reunião, mas com certeza horas e horas .... Luz do sol, por favor.
Dois cavalheiros?
Não era Max. — O que você está fazendo aqui? — Ela parou
bem perto da porta.
— Sua criada disse que você tinha sido ferida, mas isso é
muito pior do que ela deu a entender.
— Não demais.
— Não pode haver outro. Você não entende; não pode saber
como é, Sebastian. Sou uma Venadora e isso jamais mudará.
— Oh, como você lutou contra sua atração por mim. Eu era
jovem demais, demais mesmo, e apenas um Comitador, um mero
treinador, não um Venador, então estava aquém de ser notado por
você.
— Não sei de tudo que se passou entre eles; temo que seja
mais do que eu gostaria e espero que o apego não seja duradouro.
Isso fez com que ela procurasse outro lugar no navio, que
permitisse maior mobilidade. Mais precisamente, ela mandou Oliver
procurar esse tipo de espaço para ela. Ele tratou de localizar uma
área dedicada a armazenamento, porque como a viam demorava
menos de uma quinzena, a embarcação não tava lotada com
materiais necessários para longos trajetos.
Certo dia, ela havia praticado por mais de uma hora, usando
as caixas espalhadas pelo cômodo, como parte de seus movimentos.
Ela girava e chutava, lançando-se em cima desses objetos,
rodopiava utilizando a energia do próprio movimento, e pulava por
todos os cantos.
— ... sou uma Venadora. Sim, sim, estou ciente disso. — Ele
ficou em pé no centro do cômodo. — Vou me arriscar. — Olhou
para ela, onde ela ainda permanecia. — Você não deseja duelar
comigo? Ou já terminou o treino por hoje?
— Nem eu.
— Meu pai.
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A senhora Withers se diverte em dobro
Ela não teve de perguntar o que ele queria dizer; seu coração
estava batendo muito depressa no peito e ela se sentia inteiramente
quente e úmida.
— Estou completamente preparado para ir até onde e quando
você quiser, Vitória. A única coisa que nos separa do que ambos
queremos é você.
— Eu gostaria de ir.
Ele pegou a mão dela, levou-a até seus lábios para um beijo
muito suave, como eram os beijos de Sebastian. — Espero que
continue grata, quando tudo isso acabar.
Vitória deu uma olhada pela sala, para buscar uma saída; a
última coisa que precisava naquela noite era ser escoltada por
outra jovem tola. Tinha um trabalho a fazer. — Grazie por sua
hospitalidade, signorina...
—De fato, não — ela respondeu a George, logo depois que ele
fez a pergunta. — Exceto, talvez, porque eu esteja com um pouco dc
sede. Será que você...? — Ela fez com que sua voz fosse diminuindo
de intensidade, enquanto lhe oferecia um olhar convenientemente
enviesado, de maneira a parecer uma fêmea indefesa.
Ele teria passado por ela direto, mas ela bloqueou seu
caminho.
Como não tinha sido assim, Vitória mesma trataria de lhe dar
o fora. Ela realmente não estava a fim de ter companhia, como sua
mãe diria. Mas quem tinha assumido o risco de aparecer sem ser
convidado era Sebastian. E também de mandá-la a uma festa
sozinha. E, ainda, de não lhe dizer tudo o que sabia.
Ele estava pedindo por isso. — Espero não tê-lo feito esperar
demais — disse ela, à guisa de saudação.
— Seu amigo?
— Você sabe.
— Sua capitulação assim tão fácil. Você falou com ele? — Ele
manteve os dedos apertados sobre suas costelas, um pouco abaixo
dos seios, mas eles estavam quietos e sua boca distante e fina.
— Ele vai se casar com a filha de Regalado. Não me diga que
não sabia disso.
— Tia Eustácia...
Wayren vira muita coisa ao longo dos anos; talvez nada fosse
chocante para ela.
Foi tão rápido, que Vitória não tinha certeza de ter visto,
mesmo; porém, ela poderia jurar que havia um toque de humor ou
admiração ou algo que aliviou a dureza ali presente, algo do velho
Max... mas aconteceu tão depressa, que ela talvez estivesse
enganada, porque aquele olhar terrível e arrogante estava de volta.
— Compreendo. Bem, adorate mio, por você eu levaria isso em
consideração.
—Mas se assim for, você pode juntar sua luva solitária com
esta e terá um par completo. E então... bem... talvez eu encontre
uma companheira para esta, também. — E a colocou em seu bolso.
— Boa-noite, Maximilian.
Vitória não podia dizer mais nada sobre sua luva sem chamar
atenção, então teve de se contentar com um olhar fulminante na
direção de Sebastian e tirar sua outra luva, o que,
afortunadamente, não era um crime tão grave como seria em
Londres. Os italianos são um pouco menos rígidos sobre essas
convenções do que os ingleses.
E irritada.
Não, por outro lado ela teria vindo de qualquer forma, porque
não parava de pensar nem em sua boca sensual e em seus dedos
habilidosos, e no fato de que era uma pena que ele tivesse sido tão
frio e convencional com ela. E que preferisse ficar sentado ao lado
de uma das gêmeas. Além de acompanhá-la até lá fora.
Ele estava tentando fazer com que ela não se movesse por
alguma razão.
Max.
Max estava ali. Com certeza, não deixaria que eles realmente
a ferissem.
Seu pulso batia mais forte, ela tentou girar, de alguma forma
permanecendo em silêncio... sem saber se era ou não proposital.
Houve outro grito, mais alto, agora que a porta estava aberta.
Vitória se libertou de Sebastian, pois todas as suas reflexões a
respeito de seguir os alertas de tia Eustácia evaporaram,
subitamente. Ela se movimentou entre as cadeiras, procurando pela
porta e foi pega pelos olhos escuros de Max. Quando viu a sombria
expressão no rosto dele, parou.
Ela ouviu o grito atrás dela, mas não atentou para ele... o que
prendeu sua atenção foi o frio em seu pescoço, o barômetro que lhe
dizia onde os vampiros estavam.
Ela não sabia por quanto tempo ficou abrindo caminho entre
aquele monte de gente nem mesmo, com exatidão, para onde se
dirigia, ao vagar para cima e para baixo das escadas, pulando
muitos degraus. Mas conforme o tempo foi passando, a fumaça
ficou mais densa e ela podia escutar partes do prédio caindo e o
abafado rugido das chamas.
— Com certeza você não vai me dar ouvidos, não vai mesmo.
Você é danada de ingênua. E cabeça dura. Fique quieta. senão vou
machucar você — ele disse ferozmente no ouvido dela, antes de
libertá-la. Vitória girou e o encarou.
— Então, é como você bem pode ver. — Ele olhou para ela e
deu um passo atrás. — Mais uma razão para que volte a Londres.
— Depois do quê?
— Si, e mais dois antes dele, perto da porta por onde você
entrou. E outro na abside, diante da estátua, no alto destas
escadas. Você não os viu, porque não são visíveis mesmo, porém
estavam lá. — Ela sorriu, seu rosto elegante marcado por linhas
finas, ao lado de sua boca. — Wayren e São Quirino garantem que
estamos bem protegidos aqui. Mesmo que os vampiros ou a Tutela
soubessem que esta igrejinha conduz ao nosso Consilium, não
poderiam cruzar a entrada. As portas são revestidas de prata e
cobertas com crucifixos: água-benta é espalhada por toda parte,
várias vezes ao dia. E nossos Comitadores, embora não sejam
Venadores, são muito bem preparados para lidar com os intrusos.
Isso fez com que Vitória olhasse para seu próprio traje com
desalento. De fato, seu cabelo estava penteado, os grossos cachos
presos em um conjunto bonito, mas não ornado com pérolas ou
pedras preciosas. Nem ao menos uma fita fora imaginada Verbena,
entretanto, havia introduzido uma delgada estaca, para ser usada
em caso de necessidade. O vestido de Vitória não passava de um
modelo simples, para a tarde, feito com seda amarela e com uma
sobreposição modesta de renda creme.
Vitória a seguiu.
Ele riu e a puxou mais para o seu lado, de maneira que ela
esbarrou em seu braço, vigoroso como um tronco de árvore. Ela mal
podia imaginar quão tremendamente forte ele era. — Eu achei que
você diria isso, mas não resisti ao desejo de fazer a oferta. É tão
raro ser honrado com a presença de uma mulher, que até me
esqueço de mim mesmo.
— De fato.
—Porque?
Ela abriu a boca para falar, mas então decidiu algo melhor.
Não havia mais ninguém capaz de levar a cabo a missão. Os outros,
ali presentes, certamente seriam reconhecidos mais facilmente, do
que ela, como Venadores.
— Merci, ma chére.
E menos confiável.
Vitória queria chegar mais perto dele, mas seus braços ainda
estavam presos às suas costas. — Sebastian... — ela começou a
dizer, mas o resto se perdeu, quando ele cobriu sua boca com a
dele, silenciando tudo, menos o suave gemido de Vitória, enquanto
as mãos dele subiam sob seu vestido, para tocar sua vis bulla.
—Porque?
Quando Vitória voltou a si, a primeira coisa que notou foi que
sua nuca estava fria.
Vitória fez uma pausa. Sim, fazia sentido. Max lhe dissera
para deixar Roma, sabia que ela não lhe dera ouvidos (algo que, na
certa, não deveria fazer mesmo) e resolvera decidir por si mesmo.
— Meu avô não foi afastado de mim. Acho que ele é quem é e
tem sempre sido, e eu o amo. Se fosse morto por alguém como você,
seria condenado por toda a eternidade. — Ele se endireitou,
olhando para ela com uma expressão desconhecida. Condenado por
toda eternidade, Vitória, sem nenhuma chance de reconciliação.
Você compreende o que isso significa? — Ela nunca o vira tão
categórico e destituído de humor. — Cada vampiro antes foi uma
pessoa querida pelos seus... a mãe, a filha, o pai, o filho.... Vitória.
Como você deve muito bem saber. Enviar um deles para a morte
equivale a fazer um julgamento.
— O vampiro somente é condenado se escolhe se alimentar
de um mortal; se nunca fez isso, pode ser salvo da danação eterna.
E Venadores são chamados a julgar como parte de sua missão —
Vitória disse ferozmente, tentando não pensar no homem que ela
poderia ter matado nas ruas de St. Giles, quando se permitiu julgar
quando isso não lhe era permitido. — Fomos agraciados com esse
dom e devemos usá-lo para erradicar o mal neste mundo. — Ela
havia tentado condenar um mortal e se odiava por ter feito isso.
Em vez disso, ele passou sua longa e fria língua sobre o lugar
que havia cortado. Vitória virou a cabeça, o estômago dando saltos,
suas costas arquearam, e ela esperou que qualquer proteção que
Sebastian tivesse colocado à sua disposição, funcionasse direito no
momento em que o vampiro sentiu o cheiro de seu sangue e o
provou.
O furioso pulsar de seu coração era tão forte, que o peito dela
se sacudia ritmadamente, de maneira que ela mal ousava respirar.
Os olhos do vampiro cintilavam em vermelho, depois em vermelho
mais intenso, para se suavizar em seguida, enquanto ele parecia
estar calculando suas opções.
Mas no fim, ele se afastou. — Felizmente, para você,
Venadora, eu dou mais valor à minha existência do que às delícias
que você promete — disse, olhando para ela. — Talvez mais tarde,
quando Vioget se cansar de você.., mas, por ora... devo,
lamentavelmente, declinar. — Ele disse a frase por cima do ombro,
à medida que se afastava e ela relaxou, observando quando ele saiu
porta afora.
— Sinto muito, mas acho que não sei do que você está
falando — Vitória falou calmamente, embora tenha sido pega de
surpresa. Ao menos eles estavam indo na direção que ela queria.
— Que você fosse uma Venadora, claro. Nem tente negar isso,
minha querida — ele disse, fechando a porta atrás deles,
permitindo que a pistola se inclinasse um pouco, ficando mais
distante dela, quando fez o movimento. — Tínhamos nossas
suspeitas, mas uma vez que Lilith foi embora de Londres e levou
seu povo com ela, como poderíamos ter certeza?
Não era nada parecido com sua mãe, cuja pele era quase
transparente, de tão pálida, enquanto seus cabelos pareciam
cachos de cobre polido e rubi, brilhantemente vermelhos.
Foco.
Não teria sido por isso que George não se surpreendeu ao vê-
la? Ela até pensou que o próprio Max a traria, mas também seria
bom se ela chegasse sozinha.
Vitória ficou tensa. Seu estômago se revirava em dúvidas, a
despeito de si mesma. Não. Se Max quisesse tanto que ela viesse,
não a teria ajudado a escapar do teatro havia apenas duas noites.
Tia Eustácia.
Olhou para Max. O rosto dele estava pálido, mais ilegível que
nunca. Ele ficou impávido, alto e repleto de maus pressentimentos,
de frente para tia Eustácia e Nedas.
— Execute a mulher.
A traição de Max.
Mas ela não deixaria. Sua tia fora tão corajosa, tão altiva e
forte enquanto caminhava para o que sabia que seria sua morte. O
corpo de Vitória estava tremendo de choque e exaustão, e com uma
série de ferimentos que latejavam no compasso de seu pulso
cardíaco.
Sua túnica foi levantada antes que ela pudesse notar o que
estava acontecendo e depois, a súbita e intensa dor em seu umbigo,
quando um deles — seguramente alguém da Tutela — arrancou a
vis bulla de sua pele. Ela gritou; depois deu um gemido baixo,
quando sentiu a instantânea evaporação de sua energia e força e
uma onda de fraqueza tomando conta dela. Dessa vez a dor era
suficientemente grande para que ela sucumbisse, caindo em um
negro vazio, onde não havia dor nem sofrimento.
24
Lady Rockley tenta fazer correr sangue
Nenhuma ameaça.
De acordo com Max, ela não teria sido mesmo antes que lhe
arrancassem sua vis bulla.
Outro olhar para o rosto de Max lhe mostrou que ele estava
imóvel: os olhos fechados, a boca ainda firme e parada. Ela se
perguntou se o fluxo de energia que estava sentindo o enfraquecera.
Ele olhou para cima, novamente, e sua mandíbula se movimentou
uma, duas vezes, e, como se ele soubesse que ela estava
observando, abriu os olhos.
— Por que fez aquilo? — Para seu horror, Vitória sentiu seus
olhos começarem a arder.
Está feito!
Acima do palco.
Vitória.
Ela não lhe dera ouvidos. Depois de tudo o que ele tinha feito,
do que fora sacrificado, ela não fizera a única coisa que lhe
competia.
Mãos o agarravam, presas brilhavam, olhos vermelhos
ardiam. Eles o arrastaram, colocando-o em pé diante de Nedas, no
centro do palco.
— Ela tem tanto amor por você como você por ela.
Aparentemente, ela não o perdoou pelo incidente em Atenas.
Ele não tinha escolha senão lutar com eles, e percebeu que
seus movimentos foram desacelerando e que sua respiração tornou-
se mais difícil. Em uma primeira investida, ele inclusive perdeu o
alvo ao tentar atingir o coração de um vampiro e teve de perder
preciosos segundos e energia para levantar o braço, de novo, e
atingir corretamente o morto-vivo.
Max correra até Vitória para interferir; agora ele tentava levá-
la embora, antes que os seguidores de Nedas compreendessem o
que tinha acontecido.
Exceto tia Eustácia. Será que ela seria capaz de perdoá-lo por
isso?
— Sim, e você teria ido embora, não é? Iria sair porta fora
com a estaca e a pistola como uma boa menina e ficaria por isso
mesmo.
— Quando...
Max.
— Seu avô vai matá-lo. Mas por quê? Depois que ele me fez
dar a espada a você, eu pensei...
Ele olhou para ela novamente, e seu rosto era uma máscara
de raiva e determinação. Tinha de ir embora. Mas ela não conseguia
fazer com que seus pés se movimentassem.
— O que você está fazendo com isso? — ele disse sobre seu
ombro, enquanto saíam.
—Vitória?
— Segura. Lá fora.
Um grito de alerta chamou a atenção deles para dois
vampiros, que lutavam com presas e unhas, rolando em sua
direção.
— Vá — Sebastian disse.
— Não fiz isso por você. Fiz por ela. — E Sebastian se virou
para a batalha que havia às suas costas.
Ele parou quando se viu diante dela. —Você ainda está aqui!
Ela não sabia o que dizer a ele. Havia assassinado sua tia e,
no entanto, lutaram lado a lado.
— Como...
— Não, Max.
— Max.
Pela segunda vez, ela deixou que ele fosse embora. Observou-
o, enquanto caminhava para o amanhecer, alto, escuro e sozinho.
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Um amargo presente
— Você não removeu sua vis bulla quando temia não poder
usá-la mais, Vitória?
FIM
As valquírias eram belas jovens mulheres que montadas em cavalos alados e armadas com elmos e lanças,
sobrevoavam os campos de batalha escolhendo quais guerreiros, os mais bravos, recém-abatidos entrariam
no Valhala. Elas o faziam por ordem e benefício de Odin, que precisava de muitos guerreiros corajosos para a
batalha vindoura do Ragnarok.
As valquírias escoltavam esses heróis, que eram conhecidos como Einherjar, para Valhala, o salão de Odin. Lá, os
escolhidos lutariam todos os dias e festejariam todas as noites em preparação ao Ragnarok, quando ajudariam a
defender Asgard na batalha final, em que os deuses morreriam. Devido a um acordo de Odin com a deusa Freya,
que chefiava as valquírias, metade desses guerreiros e todas as mulheres mortas em batalha eram levadas para o
palácio da deusa.
As valquírias cavalgavam nos céus com armaduras brilhantes e ajudavam a determinar o vitorioso das batalhas e
o curso das guerras. Elas também serviam a Odin como mensageiras e quando cavalgavam como tais, suas
armaduras faiscavam causando o estranho fenômeno atmosférico chamado de Aurora Boreal.