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Jack Liman matou pela primeira vez para defender sua

namorada. Mas afastou-se dela para enveredar por um


caminho de violência e morte, tornando-se um pistoleiro.
Porém, o destino faz com que Liman reencontre a mulher
amada sendo obrigado a usar as armas, novamente por ela.
Talvez, agora, pela última vez!

© 1991 - SILVER KANE


SEGURO DE ENTIERRO
Tradução de Luisa Maria
400225 / 430227
UM

Jack Liman entrou no salão empurrando as portas vaivém


com o peito. Tinha as mãos paradas na altura dos revólveres,
posição que para ele era habitual. Nunca afastava muito as
mãos das coronhas, e muitos diziam que por essa razão ainda
estava vivo.
O saloon se encontrava repleto das três coisas que ele
mais gostava: cheiro de whisky, fumaça de tabaco e gritos de
garotas que dançavam alegremente no palco, mostrando as
pernas. Liman sabia muito bem que nem o whisky nem o
fumo e muito menos as garotas eram bons para a saúde, mas
não se pode proibir um homem que está sempre na planície,
respirando ar puro e bebendo água, de gostar de farra de vez
em quando.
Mas, naquele momento, Liman estava ali por outro
motivo. E o homem encostado ao lado da porta, meio
escondido, também o esperava por outra razão.
Uma das garotas gritou do palco: — Jack!
Caso contrário, ele teria morrido. O sujeito que se havia
colocado às suas costas já estava pronto para disparar.
Liman se virou em frações de segundos. Foi tudo tão
rápido que nem os vaqueiros mais experientes puderam
seguir com os olhos o que aconteceu. O corpo de Liman
pareceu quebrar-se em dois. As pernas ficaram imóveis, mas
o tronco girou para trás com a velocidade de um raio. E com
o tronco girou um dos Colt.
As duas armas dispararam ao mesmo tempo.
Foi como um duplo trovão.
O homem que tinha tentado matá-lo pelas costas
estremeceu. Uma pequena mancha vermelha apareceu em
sua camisa, na altura do coração. Ele também conseguiu
apertar o gatilho, mas só no momento de soltar a arma,
quando já tinha sido atingido mortalmente.
De seus lábios saiu um grito de agonia, e caiu como um
fardo, de bruços na terra vermelha e batida que cobria o
piso do saloon.
Durante alguns segundos, Liman ainda ficou com o
revólver preparado, pronto para disparar de novo. Qualquer
pessoa que tivesse tentado alguma coisa contra ele teria ido
para o inferno com todas as despesas pagas. Mas ninguém
mexeu nem um dedo.
As garotas tinham parado de dançar e o homem da
pianola estava mais quieto que o defunto. O silêncio era tão
denso que se escutava até o gotejar de uma garrafa. Então
Liman se aproximou do morto e virou o corpo caído com a
bota.
— George Bannister — disse ao reconhece-lo. — Era um
traidor.
Depois olhou para a bailarina que havia dado o aviso. A
garota estava tão paralisada que ainda mantinha a saia
levantada, mostrando suas pernas tão bonitas que talvez
fossem a única coisa capaz de ressuscitar o morto.
— Obrigado por ter me avisado, boneca — disse ele. —
Se não fosse por você, neste momento estaria transformado
em um respeitável defunto.
— E se não fosse por você, eu também estaria morta —
replicou ela.
— Mesmo?
— Sim. Você me salvou de uma diligência que estava
sendo assaltada por uns bandidos.
— Ah... — recordou Liman. — Eram cinco, sim... Um
era muito gordo, o outro, zarolho, o terceiro tinha uma barba
de uma estranha cor amarela, o quarto era careca e o quinto
tinha uma cicatriz na orelha. Acertei o primeiro na barriga, o
segundo no olho, fiz a barba do terceiro com uma bala,
perfurei a peruca do quarto e acabei de estragar a orelha do
quinto. Foi uma sessão de grande gala.
A bailarina o olhou surpresa.
— Você se lembra de todos esses detalhes e não se
lembra de mim? — perguntou, com um tom de decepção na
voz.
— Acontece que só me lembro dos mortos, e não dos
vivos.
— E das vivas?
— Isso depende. Como saiu da diligência, boneca?
— De costas.
— Ora, diabo! Vire-se, por favor.
A garota obedeceu e Liman sorriu.
— Claro... — disse. — Lembro perfeitamente dessa
bunda. Que memória, hem?
Todos os que estavam no saloon soltaram uma
gargalhada. A bailarina ficou vermelha, e resmungou
contrariada:
— Vamos ver se também se lembra do meu rosto.
— Vou tentar, beleza.
Mas naquele momento teve de deixar de prestar atenção
aos encantos da garota, porque o xerife estava chegando e
tinha cara de quem estava de péssimo humor.
Grunhiu:
— Fora da cidade, Liman.
— Ora, que bela recepção...
— Não queremos pistoleiros, malandros e caçadores de
cabeças como você por aqui.
Liman arqueou uma sobrancelha.
— Obrigado, xerife — murmurou.
— Por que me agradece?
— Porque pelo menos não me chamou de maricas.
— Devo ter esquecido.
— Ah, bom...
— Já falei para se mandar daqui, Liman. E só não prendo
você, apesar de ter vontade, porque atirou em legitima
defesa.
— Vou ficar pouco tempo, xerife.
— O que veio fazer aqui? Por que Bannister quis matar
você?
— Porque devia ter alguma ligação com o pessoal que
assaltou o correio de Abilene. Mataram oito passageiros e
roubaram 100 mil dólares. Fui contratado para matar os
assassinos e recuperar o dinheiro. O fato de Bannister ter me
atacado pelas costas indica que estou no caminho certo.
— Quanto vai receber por isso, Liman?
— Dez por cento do dinheiro que conseguir recuperar e
mil dólares por cada homem morto.
— É quase mais interessante matar gente do que fazer
outra coisa qualquer.
Liman apontou com um gesto aborrecido o presunto que
estava no chão e perguntou:
— E o que acha que estou fazendo, xerife?
— Pensa em continuar liquidando cristãos?
— Todos os que puder, xerife. Portanto, se estivesse em
seu lugar, me afastaria da trajetória das balas.
Por prevenção, o xerife se afastou para um lado. A única
coisa que teve coragem de dizer em voz baixa, foi:
— Merda! Vá logo embora daqui!
— Só quero saber uma coisa — perguntou Liman em voz
alta. — Quem sabe onde Bannister passou as últimas horas?
Quem conhece seus contatos na comarca?
Um dos garçons disse:
— Eu sei. Ele tinha uma garota.
— Quem?
— O nome dela é Dolly.
— Onde posso encontrar essa mulher?
— Ela tem um negócio na rua High Street. A porta está
pintada com flores. Não tem como se enganar.
Liman grunhiu:
— Espero que ela não se engane quando tiver de me
responder algumas perguntas. Talvez as flores murchem.
E saiu do saloon.
Na verdade não foi difícil achar a casa na High Street.
Notava-se que ali morava uma “garota fina”, muito bem
paga por seus serviços. Liman ia bater na porta. Não tinha o
menor interesse no corpo da moça, por mais maravilhoso que
fosse. Só estava interessado em suas palavras.
Foi então que percebeu que a porta estava aberta. Era
estranho.
Em geral, lugares assim são bastante discretos e sempre
estão com a porta fechada.
Liman entrou em silencio. Seus pés não fizeram o menor
ruído. Viu uma luz no fundo do corredor, que começava logo
depois da entrada.
Ouvia-se um murmúrio afogado no quarto de onde vinha
a luz. Não gostou daquele som.
Dirigiu-se para lá, com todo o cuidado. Parecia um
verdadeiro gato.
Dirigiu-se à entrada da porta, olhando atentamente para
tudo, com o revólver engatilhado.
Então viu alguma coisa da qual não gostou.
Na verdade, nem um pouco.
A garota era maravilhosa e a seu lado havia um sujeito.
Os dois estavam deitados na cama, mas o homem não
parecia ter a menor intenção de fazer amor com ela.
Muito pelo contrário. Estava enfiando o cano do revólver
na boca da moça.

DOIS

Por um momento, Liman pensou que aquele sujeito fosse


um sádico que desejava ter prazer vendo o pavor nos olhos
da moça. Afinal, o mundo é cheio de loucos. Mas logo
percebeu que aquilo era um interrogatório.
— Diga onde Bannister havia estado — falou entre os
dentes. — Fale logo ou disparo... E todas as paredes do
quarto vão ficar cheias dos miolos de sua linda cabecinha.
Ela fez um gesto desesperado, indicando que com o cano
do revólver dentro da boca não podia falar. O sujeito o tirou
com tanta brutalidade, que deixou um rastro de sangue nos
lábios da aterrorizada garota.
— Não... não sei onde Bannister esteve... Juro que não
sei. Vinha aqui para se divertir, nunca me deu nenhuma
explicação. Também não entendo por que deseja saber por
onde ele andou... Não entendo, mesmo...
— Porque ele pode saber onde está escondida uma grande
quantia de dinheiro. E eu quero minha parte. E quero já.
Acha pouco?
E acrescentou com maldade.
— Você esteve com ele na cama e deve saber alguma
coisa. Vou arrebentar sua boca, sua vagabunda de merda.
Não vão sobrar nem os dentes.
Estava claro que aquela besta humana cumpriria a
ameaça. A moça fez um movimento como se quisesse levar
as mãos à boca, mas elas estavam amarradas às costas. O
animal levantou a coronha disposto a bater no rosto e na
boca da jovem. Em pouco tempo não sobraria nada daqueles
belos traços femininos, a não ser um angustiante picadinho
de sangue.
Ela deu um grito desesperado e rouco, apesar de saber
que ninguém a escutaria. Depois fechou os olhos.
Foi nesse momento que Liman decidiu interferir.
Apareceu na porta e disse ao sujeito:
— Ei, compadre!
O outro se virou.
Seu rosto ficou amarelo.
Tentou girar o revólver, mas Liman não lhe deu
oportunidade. Esperou que o outro pudesse se defender.
Depois, com um gesto que parecia de aborrecimento, apertou
o gatilho duas vezes com uma velocidade surpreendente.
Não errou o alvo. Duas balas terríveis e quase simétricas
se cravaram em cada uma das faces do inimigo.
Ele caiu. A mulher na cama estava tão apavorada que não
conseguia nem gritar. Olhou como uma alucinada para o
revólver de Liman, que perguntou:
— Você é Dolly?
— Sssss... sim.
— O que esse sujeito queria?
— Fazer algumas perguntas sobre um tal Bannister.
— E por que não respondeu? Esse Bannister é tão seu
amigo que estava disposta a ter o rosto arrebentado só para
protegê-lo?
Dolly cuspiu, ou pelo menos fez um gesto como se
tentasse cuspir com todas as forças.
— Bannister? — perguntou. — Eu, amiga de Bannister?
Dessa hiena feroz?
— Mas se deitava com ele — disse Liman.
— Por dinheiro! Por essa merda de dinheiro! Preciso dele
para viver!
— Vive só disso, Dolly?
— E do que espera que eu viva? — gemeu ela.
Estava a ponto de chorar.
— Então, se tem tanto desprezo por Bannister, se ia para
a cama com ele só por dinheiro, por que diabos tentava
proteger o cara? Por que não respondeu às perguntas desse
bandido?
— Por uma simples razão: Esse sujeito não me mataria,
ele esperava que eu falasse. Mas Bannister, tenho certeza
que me mataria. E ainda vai fazer isso! Por isso não posso
falar! Não posso! Não posso!
Dolly estava a ponto de ter um ataque histérico, e seu
medo não era fingido. O pistoleiro deu uns passos pelo
quarto sem que seu rosto, que parecia talhado a ferro,
sofresse a menor alteração. Depois se virou tranqüilamente
para a jovem.
— Bannister nunca mais vai incomodar você — disse.
— Por quê?
— Porque acabo de matar o desgraçado no saloon.
Arranquei a tampa de seu cérebro, se prefere que fale com
mais clareza. Sabia que eu estava atrás dele e me preparou
uma armadilha. Bem... Mas não adiantou nada. Espero que
encontre garotas tão divertidas como você no inferno.
Dolly percebeu que ele estava falando a verdade. Bastava
olhar para aquele homem para sentir que ele era uma
máquina de matar. De repente, foi invadida por uma infinita
sensação de alívio.
— O que quer saber? — perguntou ela.
— Se Bannister participou do assalto ao correio de
Abilene.
— Acho que sim. Uma vez, quando estava bêbado, falou
alguma coisa sobre esse assunto.
— Também acha que ele sabia onde está o dinheiro?
— Talvez soubesse, mas nunca falou disso. Nem quando
estava bêbado. Parece que era o mais cuidadoso da
quadrilha.
— Então, não tem nada para me contar?
— Não... Juro que não. E acredite que estou dizendo a
verdade. Já não tenho motivos para mentir.
Liman fez um gesto de resignação, mas a batalha ainda
não estava perdida. Por isso insistiu:
— Exceto você, ele se dava com mais alguém por aqui?
— Não sei. Nos víamos apenas na cama.
— Ele contou onde esteve antes?
— Bem... — sussurrou ela, pensativa —, ele não gostava
de falar de sua vida, mas parece que tinha trabalhado um
tempo, talvez uma ou duas semanas, em um rancho chamado
Koplan, que não fica muito longe daqui.
Liman fez um gesto de gozação.
— Trabalhar? Aquele sujeito? Não me diga!
— Talvez tenha sido um disfarce. Tinha de justificar
algum meio de vida perante o xerife.
— Isso é verdade.
— E não sei mais nada. Mesmo que me matasse, não
poderia lhe dizer mais coisas.
— Onde fica o rancho Koplan?
— Em direção ao norte. Pode tomar o caminho que vai
para o povoado de Little Falle. À direita achará outro
caminho com uma indicação.
— Obrigado, garota.
Já estava indo embora, quando ela perguntou:
— Escute, o que vai fazer com esse morto? Ou melhor,
que diabos eu faço com ele?
— Acho que poderia dar de presente a uma salsicharia.
— Você é uma pessoa estranha. Parece que não tem
sentimentos...
— Talvez não tenha mesmo.
— Nunca amou uma mulher?
Liman, que já ia cruzar a porta, parou de repente com um
sorriso imperceptível nos lábios.
— Só uma vez — disse. — Mas já faz muito tempo. É
como se houvesse ocorrido em outro planeta.
— E o que aconteceu?
Liman levantou os ombros.
— Nada.
— Você gostava muito dela?
— Talvez demais. Mas isso já não importa...
E saiu dali deixando o presunto no quarto da jovem.
Talvez o quisessem em alguma salsicharia...

TRÊS

Montou no cavalo e se dirigiu para o Rancho Koplan.


Quando o xerife o viu sair da cidade fez um gesto de alívio,
pensando que não voltaria. Mas estava enganado. Liman era
do tipo de pessoa que sempre volta, mesmo morto.
Não demorou a encontrar as terras que Dolly havia
indicado. Percebeu que eram férteis, mas que estavam
malcuidadas. O gado nem era vigiado. Em vez de
trabalharem, os poucos vaqueiros que viu dormiam apoiados
nas selas que haviam tirado dos cavalos.
Liman fez um gesto de tristeza, pois ele amava o Oeste e
o trabalho bem-feito. Depois encolheu os ombros. Afinal de
contas, o rancho não era seu.
Aproximou-se da casa, que era grande e parecia ter
conhecido dias de esplendor. Mas agora estava em
decadência. Um homem ferrava um cavalo em um lugar
coberto, perto da porta.
Liman o cumprimentou.
— Olá, amigo.
— Olá, perdeu alguma coisa por aqui?
— Gostaria de falar com o dono do rancho. É você
mesmo?
— Não. Sou apenas o empregado mais antigo, e acho que
o único que trabalha por aqui. Sobre o que deseja falar com o
sr. Koplan?
— Sou empregado de uma companhia de seguros da
capital — mentiu ele —, e gostaria de fazer algumas
perguntas a ele.
— Ah, certo... Desmonte e descanse um pouco... Ei... sr.
Koplan!
Logo depois um homem apareceu na varanda. Era alto, de
boa aparência e bem vestido. Liman calculou que devia ter a
mesma idade que ele, ou seja, uns 25 anos.
— O que deseja, forasteiro?
— Conversar um pouco, sr. Koplan. Sou agente de
seguros da Companhia Ocidental, cuja sede fica em Dodge
City.
Nem a Companhia Ocidental existia nem ele nunca havia
estado em Dodge City. Mas isso não tinha a menor
importância. Tinha de conseguir fazer algumas perguntas a
Koplan.
De qualquer jeito, o homem fez um ar de dúvida.
— Para dizer a verdade, não parece um agente de
seguros, e sim um pistoleiro — disse.
— Estas terras são muito perigosas. Precisamos andar
armados, mesmo que a gente não goste disso.
— E sobre o que deseja falar?
— Sobre a epidemia que houve em suas manadas.
Isso era verdade. Nos últimos tempos uma epidemia tinha
atacado todo o gado bovino daquela zona. Koplan
demonstrou um repentino interesse.
— Sim. Eu fui muito afetado — confirmou.
— Não tinha nenhum seguro?
— Não. Nenhum.
— A Companhia Ocidental está oferecendo seguros pela
metade do preço do prêmio, mas para isso teria de dar uma
olhada nos animais que tem no rancho. Se quiser conversar
sobre o assunto, sem nenhum compromisso...
— Certo. Podemos conversar. Entre.
A casa, por dentro, também estava muito desarrumada.
Dava a impressão de um lugar mal administrado. Koplan
tomou um gole de whisky, sem oferecer à visita, e depois
indicou um lugar para que ele se sentasse.
— Quanto tempo levaria para olhar o rancho? —
perguntou.
— Uns dois dias.
— Só isso?
— Só — confirmou Liman.
— É que não gosto de pessoas estranhas em meu rancho.
— Por quê? Tenho certeza de que não tem nada a
esconder.
— Claro que não. Mas vamos falar do que interessa.
O falso agente sentiu umas gotinhas de suor na testa, pois
não entendia absolutamente nada de seguros. Um duelo não
teria lhe causado a menor emoção nem inquietação, mas
aquela conversa lhe causava ambas as coisas. Tinha medo de
dizer alguma besteira que fizesse Koplan perceber que estava
no rancho por um motivo bem diferente.
— Bem, o que tem para me dizer? — Koplan perguntou.
Liman ia começar a falar quando a porta se abriu e uma
mulher entrou silenciosamente na sala.
Ele sentiu que ficava sem ar. Era alta e bonita. Cheia de
curvas bem-feitas. Seus cabelos longos e ondulados cobriam
parte das costas, caindo sobre os ombros. Tinha os lábios
carnudos e vermelhos e os olhos muito parados. Aqueles
olhos estavam fixos em Liman. E ele ficou mais pálido que a
morte. Porque aquela mulher não era como as outras. Não
era uma desconhecida para ele. Nela estava a chave de sua
vida.
Apesar de fazer o máximo esforço para aparentar
naturalidade, abriu e fechou a boca num gesto de espanto.
A mulher que acabava de entrar o conhecia. Podia mudar
tudo com uma só palavra, mas não era isso o que importava
a Liman.
Era outra coisa, que habitava no mundo de suas
lembranças. Porque aquela mulher tinha sido o único amor
de sua vida, a única pessoa neste mundo que havia
significado algo para ele. A única mulher por quem teria
dado tudo... E sem dúvida havia feito isso, quando se afastou
de seu caminho. Não quis que ela se transformasse na
mulher de um pistoleiro, cujo futuro mais provável era um
túmulo.
Balbuciou:
— Bom dia.
Ela continuava a fitá-lo, com os olhos grandes e parados,
sem mudar de expressão. Isso deixou Liman desconsolado.
Será que ela não se importava? Será que nem sequer o
reconhecia?
Haviam se separado fazia apenas dois anos. Dois anos
que pareciam um século. E esse tempo não era suficiente
para que Clara tivesse se esquecido dele. Liman sentiu que
uma espécie de mão gelada apertava seu peito.
E então Koplan disse:
— Minha esposa.
— Ah...
— Vejo que olha para ela com um ar muito estranho.
Sem dúvida já notou que é cega, não é?
O pistoleiro ficou atônito. De novo aquela sensação
gelada lhe cortou a respiração.
— Cega? — murmurou.
— Sim... Mas, o que há? Parece que está vendo um
fantasma...
Quando seus caminhos se separaram, Clara enxergava
muito bem. Por isso perguntou, disfarçando a voz para que
ela não a reconhecesse.
— Desde quando ela é cega?
— Faz pouco tempo. Ela caiu do cavalo e o médico diz
que o nervo óptico foi lesado. Não sei para que serve esse
nervo óptico, mas o doutor diz que ela nunca mais voltará a
enxergar.
A indiferença, ou talvez o fatalismo com o qual haviam
sido ditas aquelas palavras, gelaram o sangue de Liman.
Nunca mais... Ele tinha abandonado Clara, e agora sabia que
para ela nunca passaria de uma sombra. Essa idéia produziu
o efeito de uma porrada.
— Santo Deus... — murmurou.
Koplan olhou para ele com curiosidade.
— Parece abalado — disse. — Está passando mal?
— Não... Não... E que os cegos me impressionam muito,
sabe? Mas isso é bobagem. Desculpe.
Ela se aproximou, guiando-se pela voz, e lhe estendeu a
mão.
— Meu nome é Clara — disse. — Muito prazer, senhor...
— Ray — disse ele, inventando o primeiro nome que lhe
veio à cabeça. — Meu nome é Ray. Encantado em conhece-
la, se... senhora.
— Eu também. Espero que fique à vontade aqui.
— Não vou ficar aqui, senhora.
— Ah, não...?
— Trata-se de um agente de seguros — explicou Koplan.
— Veio só para me oferecer um negócio. Logo irá embora.
E ficando em pé, acrescentou:
— Vou lhe mostrar o rancho rapidamente, amigo Ray.
Disse que esse é seu nome, não é? Depois me informará em
que condições poderia fazer um seguro contra as epidemias.
E lhe indicou a porta. Liman se dirigiu para ela, fazendo
um esforço desesperado para não olhar para Clara. Se
Koplan percebesse alguma coisa estranha, teria de dar
explicações... E ele não podia dar nenhuma! Foi então que
ela disse a Koplan:
— Louis...
Louis Koplan se virou.
— O que foi?
— Você se lembra daquele relógio que eu tenho desde
solteira? Aquele que havia sido de meu pai?
— Claro que me lembro. E daí?
— Ele parou.
— Então coloque ele em uma caixa e guarde como
lembrança. Não voltará a funcionar porque é muito velho.
Não serve para nada.
— Eu sei... — disse ela torcendo os dedos como uma
criança tímida —, mas é que você não pode imaginar o que
ele significa para mim. Ouvi seu tique-taque durante toda a
minha vida, e agora é como se me faltasse alguma coisa
muito importante.
— Isso é bobagem.
— Mas...
Koplan já estava saindo sem se importar com a
inquietação da mulher, quando o visitante se atreveu a falar,
mesmo correndo o risco de estragar tudo:
— O que ela diz é verdade, Koplan. Para os cegos, os
sons são muito importantes. E a única companhia que eles
tem.
— Eu compro outro relógio — disse. — Como é, vamos?
Tenho muito interesse nesse seguro, Ray. No ano passado
morreram muitos animais por aqui.
E saíram. A falta de cuidados com as terras ficava cada
vez mais evidente. Liman não sabia o que pensar, enquanto
caminhavam a pé, em direção às cercas onde se encontravam
as plantações.
Tudo parecia rodar em sua cabeça.
Estavam chegando às cercas, quando viram o homem que
esperava o dono do rancho. Era alto, magro e estava todo
vestido de preto. Parecia um espectro recém-saído do
túmulo. Seus olhos fixos soltavam uma espécie de luz
prateada na penumbra.
Klopan estremeceu.
Sem dúvida conhecia aquele homem.
E Liman também o conhecia. Era um dos pistoleiros de
aluguel mais importantes do Estado. Não era desses
fanfarrões que falam demais, mas um cara de poucas
palavras. Simplesmente matava e pronto.
Riu baixinho ao ver Klopan. Depois apontou para o falso
agente com um gesto cheio de desprezo e perguntou:
— Quem é esse? Algum de seus palhaços?
— É... é um agente de seguros.
— Pois não parece.
— Isso não é de seu interesse, Lyndon. Ele logo irá
embora. Quero saber o que está fazendo em meu rancho.
Lyndon voltou a rir. O desprezo se acentuava na curva de
seus lábios.
— Estava de passagem e resolvi ficar — disse. — Queria
perguntar uma coisa a você.
— O que?
— Quando vai pagar o que deve ao sr. Dalton?
— Ele sabe que vou pagar — disse Klopan, com voz
trêmula. — É só uma questão de tempo... Precisa ter um
pouco mais de paciência... Eu vou pagar tudo.
— Klopan... você perdeu mais de 15 mil dólares no tapete
verde. E esse tipo de dívida se paga logo.
— Ele sabe que não tenho esse dinheiro vivo. Mas é coisa
de pouco tempo. Eu conseguirei.
Já que o assunto não era com ele, Liman havia ficado
calado todo o tempo. Agora percebia que Klopan era um
jogador e que, por isso, ia perdendo pedaços de seu rancho.
Então Lyndon falou, rindo:
— Ah! Ah... Mas Dalton tem uma idéia melhor.
— Que idéia?
— Está cansado de esperar, sabe?
— Já disse que.
— Deixe de desculpas. O sr. Dalton quer alguma coisa
por conta. E ele já sabe o que é.
— O quê?
— Você vai emprestar sua mulher a ele enquanto a dívida
não for paga. Depois ele devolve. Bem... Devolve o que
restar dela. Mas sempre sobrará alguma coisa para que você
possa aproveitar. Eu acho uma solução maravilhosa.
— Você acha uma... solução maravilhosa?
— Claro. Porque espero que de vez em quando o sr.
Dalton permita que eu também me divirta com ela. Sua
mulher é muito bonita, Klopan... Realmente muito bonita.
O rancheiro só conseguiu dizer:
— Mas ela é cega...
— Melhor... Ah! Ah! Assim não vai perceber quem está
tocando nela.
Liman rangeu os dentes. Até aquele momento tinha
ficado quieto, mas de repente alguma coisa começou a ferver
dentro dele. Pequenas gotas de suor frio começaram a surgir
em sua testa.
Klopan apenas disse:
— Pensarei em tudo isso. Mas não acredito que Dalton
sinta muito prazer com ela. É muito sem graça.
Os dentes de Liman voltaram a ranger, e ele disse com
voz tensa:
— Sr. Klopan.
— Sim?
— Sabe o que deveria fazer com esse sujeito?
— O quê?
— Dizer a ele que é um grande filho da puta.
— O que está dizendo?
— E sabe que recado devia mandar ao patrão dele, o tal
de Dalton?
— Qual?
— Devia mandar dizer que o pai dele é um corno.
QUATRO

Klopan estremeceu. Talvez não entendesse aquela


linguagem, e nunca tinha ouvido ninguém pronunciar
tamanhas ofensas diante de um pistoleiro como Lyndon.
Ainda mais com aquele tom de desprezo mortal.
Ele estava aterrorizado. Sabia que aquilo acabaria em
morte, e grossas gotas de suor começaram a escorrer por sua
testa. Lyndon se afastou um pouco da cerca, enquanto olhava
para Liman com fria curiosidade.
— Quem é você, anão? — perguntou.
— Anão coisa nenhuma! Meço 1,80.
— Estou falando do que vai sobrar de você, quando for
colocado no caixão. Vai virar picadinho.
— Já que tem intenção de me mandar para o túmulo,
espero que pague minha lápide.
— Ora, mas com muito prazer.
— Minha inicial é L. Quero que seja gravada.
— Claro... Como é seu nome?
— Liman.
— Trabalha para esse manca do Klopan?
— Não.
— Pior para você. Ah! Ah! Vai morrer sem ter nada a ver
com a história. Imbecil! E agora vou dizer qual é a última
coisa que pode fazer.
— Mesmo? Qual é?
— Rezar.
E Lyndon se mexeu.
Não era dos que perdem tempo. Todo mundo dizia que
era um pistoleiro eficiente e rápido. A velocidade com que
usou a mão direita foi impressionante.
Poderia ter surpreendido qualquer homem,
principalmente porque Liman não estava preparado. A bala
devia entrar em sua carne antes que ele tivesse sacado seu
revólver.
Mas se era isso o que Lyndon esperava, teve a última
surpresa de sua vida. De repente percebeu que seus olhos se
enchiam de pequenas luzes cor de laranja. Nunca soube o
que estava acontecendo. A não ser quando já chegava no
inferno.
A bala atingiu o pistoleiro no meio da testa.
Liman quase não havia se mexido.
Soprou o cano do revólver, e disse com voz tranqüila:
— Acho que esse sujeito não está muito bem de saúde,
Klopan.
— Quem... quem é você?
— Já disse, um agente de seguros.
— Não... não acredito.
— Bem... talvez tenha me esquecido de um pequeno
detalhe. Não disse o tipo de seguros que eu faço.
— Que seguros faz?
— Seguros de morte.
Koplan murmurou:
— Meu Deus...
Não tinha mais uma gota de saliva na boca.
E foi então que ambos ouviram alguém saindo da casa e
se dirigindo para lá. Como a edificação estava perto,
distinguiram aquela figura humana. Liman ficou sem
respiração ao ver que era Clara quem se aproximava.
Vinha em linha reta. Sem dúvida a cegueira havia lhe
dado um sexto sentido, e ela avançava guiada pelo rumor da
respiração dos homens e pelo cheiro de pólvora.
Mesmo assim não deixou de tropeçar em alguma coisa, já
que nenhum dos dois homens havia se atrevido a avisá-la. A
jovem esbarrou no corpo sem vida de Lyndon e quase caiu
em cima dele.
Seus dedos trêmulos encostaram naquele rosto que não
conhecia.
Com um fio de voz perguntou:
— Ouvi um disparo. O que... O que é isto?
Liman sentia a garganta queimar. Por um momento que
pareceu interminável esteve a ponto de dizer a verdade. Mas,
afinal, murmurou:
— Ouça, senhora. Esse era um bandido que se atreveu a
insultá-la. Seu marido foi mais rápido e deu a ele o que
merecia.
Virou de costas. Alguma coisa lhe doía no fundo dos
olhos.
Guardou o revólver e se perdeu entre as sombras.

CINCO

Tempos atrás havia feito algo parecido, quando resolveu


se afastar para sempre do caminho de Clara. Naquela vez
também havia sentido aquela dor nos olhos e desaparecido
nas sombras. Tinha certeza de que nunca mais voltariam a se
ver. Mas o destino os tinha colocado frente a frente de
novo.., e da forma que ele menos esperava.
Sentado em um canto do saloon, diante de um copo de
whisky, teve a impressão de estar revivendo aquele tempo.
Agora era um pistoleiro, porque havia começado a matar
para defender uma mulher. E já sabia que a violência gera a
violência. O homem a quem havia liquidado tinha amigos
sedentos de vingança, e Liman, que era pouco mais que um
garoto, não teve outra alternativa a não ser continuar
matando.
Isso fez dele um pistoleiro, um homem cujo rosto
começou a aparecer em cartazes com uma cifra embaixo,
uma cifra que cada vez ficava mais alta.
E Clara era uma boa garota. Boa demais, talvez. Não
merecia unir seu destino ao de um profissional do Colt que,
sem dúvida, acabaria em um túmulo ainda jovem.
Por isso tinha abandonado aquela mulher, chegando à
conclusão que seria melhor afastar-se dela para sempre.
Exatamente por amor, Liman havia resolvido não vê-la
nunca mais em sua vida.
Até aquele momento.
Seus dedos tremeram ao levantar o copo de whisky.
O saloon estava cheio de fumaça. Era quase impossível
enxergar a certa distância. Em um pequeno palco, uma
garota mexia as pernas freneticamente, mostrando as coxas
de uma exuberância nunca vista. O homem da pianola
martelava o teclado como se fosse a última coisa importante
que tinha a fazer na vida.
Liman bebeu um gole.
A garganta queimava, mas não era por causa do whisky.
Imaginava Clara nos braços do marido, daquele maldito
covarde. Se ele não estivesse presente, talvez tivesse
concordado até em entregá-la a Dalton, para que ele fizesse
com ela o que bem entendesse.
Havia pensado em tirar Clara daquele lugar, mas não
podia. Era uma mulher cega e precisava pelo menos de um
local onde se refugiar. E ele continuava sendo um pistoleiro,
mais procurado e indesejável do que nunca.
Naquele instante viu aqueles três sujeitos no balcão.
Os três olhavam para ele.
E como Liman estava completamente absorvido em seus
pensamentos, talvez nem tivesse percebido os homens, a não
ser por uma circunstância estranha: todo mundo se afastava
deles. Era como se sofressem de alguma doença contagiosa.
Compreendeu de imediato o que estava acontecendo. Eles
não tinham nada de contagioso, mas traziam a morte. Eram
três assassinos profissionais, e ninguém queria estar perto
deles quando a batalha final começasse.
As pessoas também se afastaram de Liman.
As mesas que estavam a sua volta ficaram vazias.
Mesmo assim terminou de tomar seu whisky com
tranqüilidade.
Um dos três sujeitos que estavam perto do balcão
grunhiu:
— Ei, palhaço, como é seu nome?
— Liman.
— Fique em pé quando eu falar com você.
— Acontece que estou muito cansado.
— Está cansado do quê?
— De falar com cornudos.
Os três homens tremeram por um momento. Pelo visto,
nunca tinham enfrentado um sujeito como aquele.
Mesmo assim riram com raiva, antes que um deles
declarasse:
— Bem, se quer morrer sentado, o problema é seu. Para
nós dá no mesmo.
— E por que diabos acha que vou morrer?
— Porque tivemos péssimas informações de você, amigo.
— Que tipo de informações?
— Há pouco tempo alguém trouxe um cadáver à cidade.
O coitado estava bem estragado. Não se podia aproveitar
muita coisa dele.
— Mesmo? E de quem era o cadáver?
— De um bom homem chamado Lyndon.
— E quem trouxe o presunto?
— Foi Koplan, o dono do rancho onde o coitado do
Lyndon morreu.
— É? E o que esse tal de Koplan disse?
— Que o culpado pela morte do cara era um homem
chamado Liman. E pelo visto esse tal de Liman é você. Olhe
só que sorte...
Liman apertou um pouco os lábios, pensando em Koplan
e sua delação. Disse para si mesmo, bem baixinho:
— Filho de uma cadela.
Ele só tinha feito isso para se livrar de ser acusado. Não
passava de um maldito cagão. Mas o pistoleiro não deixou
que esses pensamentos se refletissem em seu rosto, que
continuava sem nenhuma expressão.
A única coisa que fez foi perguntar em tom glacial:
— E agora, o que vai acontecer?
— Vamos ajustar as contas com você, boneco.
— Vamos deixar você grudado na cadeira.
— Vai soltar todo o whisky que bebeu pelos buracos que
vamos fazer em você.
Liman riu.
— Se soltar todo o whisky que já bebi na vida, acabarei
inundando o saloon — disse.
E ficou em pé.
Afastou um pouco a mesa, com um movimento do
quadril.
Seu rosto se transformara numa máscara de metal.
Os três pistoleiros haviam pensado que seria muito fácil
acabar com ele, mas de repente perceberam algo de estranho
no ambiente. Viram que o homem a quem tinham desafiado
não era igual aos outros. Por seus corpos, como se fosse uma
corrente elétrica, passou um leve tremor.
Sem que ninguém esperasse um deles gritou, como se
desse uma ordem ao companheiro que tinha ao lado.
— Acabe com ele!
Os homens se contorceram ao mesmo tempo. Os
revólveres brilharam sob a luz. A bailarina, que não havia
saído do palco, soltou um gritinho.
Liman parecia não ter sequer se mexido.
Estava tranqüilo.
Rígido.
Apenas dobrou o cotovelo direito e levantou um pouco os
quadris, e o revólver pareceu saltar sozinho do coldre.
Cinco dedos de ferro seguraram a arma no ar. Uma
espécie de mola do inferno começou a disparar.
Os três homens que estavam no balcão não entenderam
nada. Nem precisavam. Acabavam de cometer o erro de ficar
muito perto um do outro. E esses erros costumam ser pagos
com a vida. As balas de Liman pareciam um leque
sangrento.
O dono do saloon disse:
— Não...
Nunca tinha visto nada parecido. A cabeça de um dos
pistoleiros pareceu se transformar em duas, ao receber o
terrível impacto da bala. Outro corpo caiu sobre o balcão e
ali ficou, tragicamente dobrado. O terceiro homem parecia
querer dar uma volta pelo Saloon, derrubando mesas e
garrafas por onde passava, deixando um rastro de sangue.
Afinal caiu. Seus dois colegas já estavam no chão como
farrapos.
Liman baixou um pouco o cotovelo.
Seu rosto continuava impenetrável. Não olhou para os
mortos. Os olhos acinzentados se dirigiram para o homem da
pianola.
— Ei, amigo — disse.
— O quê, senhor?
— Esses três sujeitos tão bem-educados, que estão
deitados no chão, trabalham para um tal de Dalton?
— Sim... sim, senhor. Na verdade, trabalham para Dalton.
Fazem parte de sua equipe.
— Equipe? Qual é o trabalho dele?
— Tem muitos negócios... Ninguém sabe bem quais são,
mas dão muita grana. Também tem uma grande casa de jogo.
Liman sorriu de leve. Agora sabia onde o idiota do
Koplan perdia seu dinheiro.
— Sei — Comentou. — Pois que jogue com esses três
mortos. Escute amigo, não sabe tocar uma música fúnebre na
pianola? Sabe, é só por respeito...
— Claro que sim. Conheço uma canção muito bonita e
sentimental para estas ocasiões.
— E como se chama?
— Vá para o Inferno.
— Então comece a tocar, amigo. Se os mortos
reclamarem, mude o repertório.
A garota que estava no palco perguntou:
— E eu, o que vou dançar?
— Não se preocupe com isso. Você mostra as pernas e já
é o suficiente.
Os respeitáveis fregueses do saloon, que já nem se
lembravam dos presuntos jogados no chão, gritaram todos
juntos:
— Vivaaaaaaaa!
SEIS

Na manhã do dia seguinte Liman voltou ao rancho de


Koplan. Queria deixar as coisas bem claras.
Não encontrou nenhum trabalhador nem os vigias em
seus postos. Pelo visto, lá ninguém se ocupava de nada.
Entrou com tranqüilidade na casa e encontrou Koplan
fumando um cigarro na varanda de trás.
Vendo o visitante, Koplan teve um sobressalto.
— Você aqui... — balbuciou.
— Se tivesse a intenção de matar você já teria conseguido
— disse Liman.
— O pessoal não vigia muito bem, isso é verdade —
reconheceu o rancheiro.
— Nem se matam de trabalhar. Nunca vi um rancho tão
abandonado quanto este. Por quê?
— O que você tem a ver com isto?
— Eu fiz uma pergunta. É melhor que responda...
A expressão metálica dos olhos de Liman fez com que
Koplan obedecesse. O homem murmurou:
— É porque não pago pontualmente. E quando não se
paga os empregados em dia, eles ficam com vontade de
dormir na hora do trabalho.
— E por que não paga? Porque perde todo seu dinheiro
na mesa de jogo, não é? Se ganha 100 com o rancho, perde
110 no jogo. E agora que o lugar não está rendendo nada,
continua perdendo os 110. Está completamente arruinado.
— Isso é problema meu.
— E meu também.
— Não entendi. Veio aqui só para me dizer isso, Liman?
Só isso?
— Não. Também vim para dizer mais alguma coisa.
— O que?
— Que é um filho de uma vaca.
Koplan empalideceu por um momento, mas não reagiu.
Não sabia responder às ofensas com socos. Era mesmo
um covarde.
— Por que diz isso? — perguntou.
— Ontem não perdeu tempo, e logo arranjou as coisas
para que ninguém pudesse acusar você da morte de Lyndon.
Mandou o cadáver do pistoleiro para Dalton, e disse que eu
tinha dado a ele o passaporte para o inferno. Sabia muito
bem que Dalton poria seus cães de caça atrás de mim. E foi o
que aconteceu.
— Ora... Sinto muito.
— Seu plano não deu certo, Koplan. Eram três e mandei
todos para o inferno. Pensou que não ia me ver nunca mais e
acontece que vai ter de comprar uns óculos para me ver
melhor. Que falta de sorte, não?
O rancheiro sentiu o corpo todo tremer.
— O que esperava que eu fizesse com o morto? —
sussurrou. — Que comesse no jantar?
— Eu ajudei você, Koplan. E o mínimo que podia ter
feito era não me prejudicar. Podia ter levado o cadáver para
qualquer lugar longe de seu rancho. Ninguém teria sabido
quem acabou com ele.
— Sinto muito. Não tive esse idéia.
— Não teve essa idéia porque é um porco, Koplan. E vou
dizer uma coisa: cuide melhor deste rancho e de sua mulher.
Ela merece uma vida bem melhor do que a que está levando.
— Por que tanto interesse por minha mulher?
Koplan falou em tom de desafio, mas ao perceber o olhar
glacial de Liman, logo mudou de atitude.
— Porque ela é totalmente indefesa — disse Liman. —
Só por isso. E não se esqueça de minhas advertências,
Koplan. Se não mudar de vida agora é bem possível que não
tenha outra chance.
Deu meia-volta e andou pelo mesmo caminho que havia
usado ao chegar, ou seja, atravessou a casa por dentro e
chegou à entrada dianteira. Quanto passava por uma grande
sala ouviu a voz:
— Sr. Liman.
Ele estremeceu. Reconheceu a voz e, de repente, foi
como se o tempo parasse.
— Olá, sra. Koplan — disse num sussurro.
— O... Olá.
Dissimulando a voz, perguntou:
— Como sabe que me chamo Liman?
— Talvez tenha falado seu nome ontem... Ou pode ser
que meu marido tenha me contado. O caso é que sei.
— Pois é melhor que esqueça.
— O que veio fazer aqui, sr. Liman?
— Queria falar com o dono do rancho.
— Sobre seguros?
— Bem... Mais ou menos...
— Nunca foi agente de seguros, não é verdade?
— Sou agente de seguros de enterro.
— Imaginei alguma coisa assim. Qual é seu aspecto?
— Sou baixinho, careca e com cara de enfezado —
Liman grunhiu para tornar suas palavras mais convincentes.
— Não acredito.
— Por que não?
— Porque sua voz me chega do alto. Em relação a seu
rosto... por que não me deixa tocá-lo?
O pistoleiro ficou muito tenso e disse:
— Não... Não faça isso.
— Desculpe... Só queria dizer que sempre será bem-
vindo a esta casa.
— Por quê? Não me devem nada. Não fiz nenhum favor a
vocês.
— Como não? O senhor matou aquele homem. Meu
marido nunca teria coragem para fazer isso. Diz que não
gosta de brigas. E, se não fosse por sua causa, algo de
terrível poderia ter acontecido no rancho.
— Como sabe disso?
— Por dedução. Acho que Dalton queria que me
levassem para sua casa. Mesmo que seja cega e que as
pessoas façam de tudo para não falar na minha frente, de vez
em quando ouço algumas frases soltas. E sei que meu marido
deve tanto dinheiro a esse Dalton, que não pode recusar nada
que ele peça.
Liman tentou improvisar uma risadinha, mais falsa que a
de Judas.
— Que bobagem — exclamou. — Nunca ouvi falar que
seu marido tivesse alguma dívida com Dalton. Talvez tenha
escutado alguma coisa, mas não se esqueça de que as
pessoas falam demais. Não há razão para se preocupar,
senhora.
Liman deu alguns passos para ir embora. Não podia
suportar a visão da mulher. Não agüentava a idéia de estar
tão perto dela e ao mesmo tempo tão longe.
Tinha a sensação de que o tempo voltara atrás, e que os
dois ainda eram garotos cheios de ilusões para os quais a
vida apenas começava. Aquele pensamento era tão real que
mais de uma vez sentiu a tentação de beijá-la.
Mas era um sonho tão maldito quanto inútil, O tempo
nunca volta atrás. Eles nunca mais seriam garotos, porque
havia uns olhos sem luz na vida de Clara e uma boa lista de
homens mortos na vida de Liman.
Por isso queria ir embora.
Mas ela murmurou:
— Escute...
— O que é, senhora?
— É muito estranho o que está acontecendo comigo.
— E o que está acontecendo?
— Não sei... Tenho a impressão de que conheço sua voz.
De que já ouvi em outro lugar...
Ele ficou agitado.
Tinha tentado disfarçar ao máximo seu tom de voz, mas
agora percebia que talvez ela tivesse adivinhando alguma
coisa. Não suportou essa idéia.
— Existem muitas vozes parecidas — disse, tentando
falar com tom de indiferença. — Não pense mais nisso.
— Mas é que...
Ele perguntou, prendendo a respiração.
— O que?
— Nada... E uma coisa que aconteceu há muito tempo.
Tanto tempo que às vezes tenho a impressão de que nunca
existiu. Talvez esteja ficando louca.
E cobriu o rosto com as mãos. Havia lágrimas naqueles
olhos que já não enxergavam. Liman sentiu que sua mão se
levantava lentamente, para tentar acariciar as faces de Clara.
Era como se uma força distante o empurrasse. Um gesto
no qual sua vontade não interferia.
Mas se conteve a tempo. Se tocasse de novo a pele da-
quela mulher, não conseguiria se controlar, e qualquer coisa
poderia acontecer. Não queria perder, em um minuto, todo o
sacrifício que tinha feito ao abandonar Clara.
Apenas sussurrou:
— Não vai ficar louca. Pode ter certeza. Eu... eu farei
qualquer coisa para que isso não aconteça.
E deu meia-volta para ir embora. Não tinha a menor
condição de continuar na frente dela. Antes de sair ainda
ouviu a voz de Clara que o chamava:
— Espere!
Ele não se virou. Cravou as unhas nas palmas das mãos,
até que sangrassem.

SETE

Liman sempre havia andado pelas cidades tomando


precauções e atento a tudo, por isso era muito difícil pegá-lo
desprevenido. Mas, naquele momento, estava desnorteado e
não olhava para nada. Não chegava a parecer um bêbado,
mas tinha o ar de um homem que havia tomado uns goles a
mais.
Por esse motivo, esbarrou naquele sujeito. Estava tão
absorto em seus pensamentos que nem percebeu que ele se
aproximava, e muito menos que existia.
Era um homem que andava pela rua com extremo
orgulho, como se fosse o dono de tudo. Vestia-se muito bem
e usava um magnífico chapéu Stetson preto, que devia custar
pelo menos 20 dólares. Na esquina de uma ruela, os dois se
chocaram. E se Liman foi culpado por sua distração, o outro
também teve parte da responsabilidade, pois parecia que a
cidade era pequena para ele.
Liman disse:
— Desculpe.
— Saia de meu caminho, lixo!
— Eu já pedi desculpas. Talvez estivesse distraído, mas
não foi de propósito. Não precisa me ofender por causa
disso.
— O que disse, maltrapilho?
— Não sou maltrapilho. Me deixe seguir meu caminho, e
pode ir para o inferno. Repito que não tive a intenção de
incomodar.
O desconhecido tentou dar uma bofetão no pistoleiro,
mas ele conseguiu se livrar e a mão do outro se perdeu no
vazio. A paciência de Liman já estava no fim.
Ouviu o sujeito dizendo:
— Maldito bastardo!
E em seguida levou a mão ao revólver. Parecia fora de si
porque Liman não se havia deixado esbofetear. Percebeu que
o negócio não estava para brincadeiras.
Aquele homem era um verdadeiro louco e um filho de
uma cadela, mas um louco e um filho de uma cadela podem
matar com a mesma rapidez que qualquer outro.
Liman resmungou:
— Sinto muito.
E mexeu o braço direito. Tudo aconteceu com a rapidez
de um relâmpago. O Colt brilhou na luz.
O outro já estava a ponto de disparar. Mas não teve
tempo.
Liman fez com que sua arma cuspisse fogo novamente.
De repente, o sujeito vacilou como se acabasse de tropeçar
em um obstáculo invisível.
Uma mancha vermelha apareceu no lado esquerdo de seu
peito, e o sangue começou a jorrar.
O matador disse com voz de pouco caso:
— Bom proveito.
Naquele momento já estava tomado pela raiva. Não teria
se importado em matar mais três homens.
Mas o silencio era total. Percebeu que o sujeito estava
morto e que ninguém havia visto nada. Liman já tinha
matado muita gente, mas nunca em segredo como dessa vez.
Era melhor se afastar dali. Um presunto sempre traz
problemas. Mas quando estava pronto para ir embora,
observou melhor o belíssimo chapéu do morto.
Sem dúvida, era uma magnífica peça. E como o seu
chapéu já estava um pouco estragado e totalmente coberto de
pó, disse .ao defunto:
— Sei que não vai precisar dele no inferno.
Deixou o seu lá, e colocou na cabeça o soberbo Stetson.
Ficou ótimo nele. Além disso, tratava-se de um chapéu com
o qual se podia atravessar desertos e pântanos, sol e chuva,
sem que ele perdesse seu fantástico brilho.
Portanto, quando saiu da ruela, estava transformado em
um verdadeiro cavalheiro, pelo menos da testa para cima.
Atravessou a rua e alguém chamou:
— Ei, sr. Mortimer!
Liman se virou. Nunca tinha usado aquele nome, mas
sem dúvida estavam falando com ele.
Viu que o tipo que chamava estava na porta de uma
elegante construção branca e vermelha, em cuja varanda se
lia o nome Gambling House. Ou seja, tratava-se de uma casa
de jogo e, pelo visto, era a mais elegante da cidade.
Liman se aproximou.
Era evidente que o sujeito que tinha acabado de chamá-lo
não o conhecia.
— Sr. Mortimer — disse o homem —, ia passar por aqui
sem entrar? Será que já se esqueceu de nossa casa de jogo,
onde passou tão bons momentos?
A única coisa que Liman se atreveu a dizer, foi:
— Ah...
— Estávamos a sua espera, sr. Mortimer.
— Como sabe que sou Mortimer? Tenho a impressão de
que nunca me viu na vida.
— Ah, ah! Que pergunta! Reconheci o chapéu. Todo
mundo fala dele e diz que é a melhor peça que existe neste
lado do Oeste. Fabricado especialmente para o senhor.
Liman logo se arrependeu da péssima idéia de pegar o
Stetson. As complicações já tinham começado. Mas era tarde
para voltar atrás. Portanto limitou-se a dizer algo muito
profundo:
— Ah...
— Vamos, sr. Mortimer, entre. O jogo não pode começar
sem a sua presença.
Esteve a ponto de ir embora, mesmo correndo o risco de
ser descoberto. Só tinha 50 dólares no bolso. Mas o outro já
o estava empurrando discretamente até o fundo da elegante
casa.
Muitas mulheres borboleteavam lá dentro. Mulheres
estupendas e meio fluas, que mostravam tudo o que as
senhoritas não costumam mostrar na rua. Liman deduziu que
o lugar era algo mais que uma simples casa de jogo, e que o
que o homens ganhavam na mesa, se é que alguma vez
ganhavam, era gasto logo depois nos quartos de cima.
Mas sua maior surpresa foi quando chegou à sala
posterior, onde só havia uma mesa de jogo.
Um sujeito, com cara de assassino elegante, vigiava o
lugar. Uma bela prostituta seminua balançava as pernas,
sentada em uma cadeira. Um homem gordo, com dentes de
ouro e colete de seda, o observava por detrás da mesa com
um sorriso adocicado.
— Olá, sr. Mortimer — disse aquele homem. — Sou
Dalton. Claro que já ouviu falar de mim.
Liman tremeu.
— Quer dizer que aquele era Dalton... O assassino sujo
que tinha Koplan nas mãos e, como conseqüência, sua
mulher.
O porco que queria se divertir na cama com uma cega...
Era como ele tinha imaginado. Ostensivo, coberto de ouro,
gordurento e com cara de porco. Sentiu vontade de cuspir,
mas conseguiu manter o rosto impassível.
— Olá, sr. Dalton.
— Chegou um pouco tarde.
— É que me distrai por aí.
— Ah, sim... Mulheres?
— Talvez.
— Se for por isso, não se preocupe. Veja, aqui está
Sheila. Até agora tem sido minha favorita, mas já estou me
cansando dela — disse grosseiramente. — Se ganhar o jogo,
pode levar a garota de presente. Bem, vamos ao que
interessa. Já deve saber que só jogo como clientes muito
importantes, assim como o senhor. Portanto, as apostas
devem estar de acordo com nossa categoria.
Liman sentiu o suor na testa, mas apenas disse:
— Certo.
Sentia um enorme desejo de desafiar Dalton.
— A aposta mínima será de 500 dólares — disse o
homem.
— Ah, não... Eu sempre começo com 50.
— Não me diga! O senhor gasta essa quantia em menos
de dez minutos com qualquer garota.
— Mesmo assim.
— Ah, já entendi... Capricho de milionário. Bem, pois
comecemos com 50. Soube que gosta muito de black black.
É verdade?
— Mais ou menos.
— Adoro esse jogo. Meu amigo vai dar as cartas.
E apontou para o pistoleiro elegante. Liman logo
imaginou que aquele sujeito devia ser um trapaceiro, e dos
grandes. Disse com indiferença:
— Prefiro que Sheila faça isso.
— Mas...
— Ou ela dá as cartas ou não vai haver jogo, Dalton.
— Certo. Vamos, Sheila, comece. É melhor que não o
deixe ganhar, hem? Senão vai ter de ir para a cama com ele.
Cada um se sentou de um lado da mesa verde, enquanto a
jovem pegava um baralho novo em silêncio. Distribuiu as
cartas. Liman já sabia que no começo o deixariam ganhar até
que as apostas subissem, e que seu adversário fingiria jogar
mal. De fato. Dalton pediu muitas cartas e perdeu. O
pistoleiro ganhou e duplicou seus 50 dólares.
— Jogo tudo — disse.
— Ah, ah... Já tinham me contado isso, Mortimer.
Sempre joga na próxima partida tudo o que ganhou na
anterior.
— É verdade. Vamos lá.
O falso Mortimer estava convencido de que o dono da
casa o deixaria ganhar mais algumas partidas, para que
adquirisse confiança. A partir de então, as coisas seriam
diferentes. Na realidade ganhou e chegou aos 400 dólares.
Ele sabia que assim que perdesse uma só partida teria de
abandonar o jogo e então descobririam que ele não era
Mortimer. Mas tinha de confiar na boa sorte e em seus
conhecimentos do black black. Como bom jogador, sabia
muito bem que, pela lei das probabilidades, nem sempre se
repetem os números altos ou os números baixos.
Isso o ajudou muito. E ganhou de novo, apesar de Dalton
ter jogado com muito cuidado desta vez. Já tinha 800
dólares.
Dalton riu. Mas olhou para a garota discretamente.
Era o sinal para que ela começasse a entregar alguma das
cartas que, sem dúvida, escondia nas mangas. Liman havia
adivinhado que o pistoleiro era um trapaceiro, mas não havia
pensado na possibilidade de Sheila também ser.
Começou a ficar um pouco nervoso e a transpirar na testa,
mas não mudou de expressão. Dalton não sabia, mas naquela
mesa havia muito mais em jogo do que o dinheiro. Colocou
os 800 dólares sobre o tapete verde.
— Como de hábito — disse.
— Ah, muito bem...
Dessa vez Liman dependia muito da lei das
possibilidades. Chegou um momento em que, se não
recebesse um dois, perderia o jogo. A jovem lhe entregou um
dois.
Dalton franziu a testa.
Mas sabia que acabaria ganhando.
Já havia 1600 dólares sobre a mesa. A quantia começava
a se tornar importante.
— Tudo — disse o falso Mortimer, com indiferença.
— Muito bem... Vejo que mantém seus hábitos.
— Pois é.
As notas brilhavam sob o facho de luz. As cartas também,
como se tivessem vida própria. Agora os dois homens
jogavam tensos. Liman voltou a arriscar... e voltou a ganhar.
A mesma coisa aconteceu com as duas partidas seguintes,
que deixaram uma autêntica fortuna de seu lado no tapete
verde. Dalton estava cada vez mais pálido. Tentando não
perder o controle, disse entre os dentes:
— Bem... amigo Mortimer, parece que teve muita sorte.
Sempre recebeu a carta que precisava no momento certo,
enquanto eu só tive cartas muito altas. Espero que continue
assim. Suponho que vai jogar tudo.
— Não.
— O que disse?
— Estou cansado de jogar, Dalton. É muito chato.
Voltarei outro dia, mas agora vou embora?
— Como... Vai embora.
— Foi o que eu disse.
— Ganhou a noite toda, Mortimer. As pessoas não se
retiram do jogo nessas condições. Tem de me dar a revanche.
— Eu dei a revanche desde o começo. Coloquei a soma
total sobre o tapete em todas as jogadas. Acha que teve
poucas chances?
E se levantou.
Mas o pistoleiro da casa, que até então não tinha aberto a
boca, falou de seu canto de cão de guarda:
— Não vai embora assim, amigo.
— Não mesmo?
— Não. Já escutou o sr. Dalton: terá de dar uma nova
oportunidade a ele.
— E o que vai acontecer, se eu não fizer isso?
— Bem... Pode acontecer qualquer coisa.
E acariciou significativamente a coronha do revólver. A
garota se afastou, porque sem dúvida não queria se sujar com
o sangue da vítima. Tinha certeza de que a vítima seria o
visitante, pois o pistoleiro tinha fama de invencível.
O falso Mortimer disse, enquanto guardava o dinheiro.
— Ora, me deixe em paz...
Ainda bem que tinha guardado o dinheiro com a mão
esquerda. Sabia o que fazia. Se tivesse usado a direita, teria
caído duro lá mesmo, porque o pistoleiro se mexeu com uma
rapidez diabólica.
Tudo aconteceu em um instante. Como uma faísca. As
armas brilharam sob a luz. Liman teve de se mexer como um
raio para não morrer. Conseguiu disparar desde seu quadril,
com a precisão de um autentico profissional da morte. Seu
adversário parecia ter se chocado com algo invisível. Depois
caiu. O Colt escorregou de seus dedos. Uma espécie de
sinistro botão vermelho estava marcado no meio de sua testa.
Liman olhou para Dalton, que tremia como se estivesse
possuído por algum ente estranho. Abria e fechava a boca,
mas não conseguia pronunciar uma palavra.
Estava a ponto de desmaiar. Liman murmurou:
— Não tem um bom sistema para animar seus
companheiros de mesa a voltar aqui, Dalton. Desse jeito vai
perder os clientes.
— Eu não sabia que...
— O que?
— Que atirava tão bem.
— Treino todos os domingos — disse com tranqüilidade
e um certo ar de gozação.
— Sr. Mortimer...
— Sim...
— Desgraçado. Vai pagar por isto. Vai pagar mesmo.
— No momento quem está pagando não sou eu. Ganhei
uma bela grana. Ah... Já estava me esquecendo. Também
ganhei sua garota, por isso ela vai comigo. Não disse que se
ganhasse o jogo poderia ir para a cama com ela?
— E a empurrou, dizendo.
— Vamos beleza.
Mas a empurrou por um lugar muito especial, que
começa no final das costas.
Que diabos! Uma coisa assim não acontece todos os dias.
Além disso, aquele lugar tão especial da garota era
maravilhoso...
E ele era um homem.

OITO

Parecia que o único objetivo de Liman era se aproveitar


da garota. Mas, assim que chegaram à rua, sua atitude
mudou e ele disse:
— Obrigado, garota.
— Não vai me levar para a cama?
— Para que?
— Para cobrar o que ganhou no jogo. Eu fazia parte dele.
Liman sorriu com tristeza.
— Acha que eu seria capaz de fazer isso? — murmurou.
— A única coisa que eu queria era tirar você daquele
antro.
— Por que?
— Sabe muito bem, garota. Se ficasse lá estaria correndo
perigo. Aquele porco do Dalton nunca vai perdoar você. Ele
não é idiota, e deve ter percebido suas trapaças. Só que não a
favor dele, como tinha ordenado, mas a meu favor. Por isso
ganhei tanto dinheiro.
E acrescentou, sussurrando:
— Por que fez isso?
— Porque não agüentava mais... Queria me livrar desse
verme. Já estou cheia de ser tratada como uma mercadoria.
— Pois se vingou muito bem. Agora aceite um conselho:
vá embora da cidade. Vá para bem longe, onde os homens de
Dalton nunca possam achar você, e comece uma nova vida.
Na sua idade isso não é tão difícil. Tome.
E lhe deu 500 dólares.
Ela balbuciou:
— Por que está me dando esse dinheiro?
— Porque você merece e vai precisar dele. Agora finja
que está me abraçando enquanto nos afastamos daqui.
Dalton vai achar que estaremos fazendo amor nas próximas
duas horas. Aproveite bem esse tempo para fugir.
Ela o olhou fixamente.
Havia uma intensa emoção em seu semblante.
Com um fio de voz, murmurou:
— Obrigada, Mortimer. E a primeira vez que me tratam
como um ser humano.
— Meu nome não é Mortimer.
— Não?
— Não. As pessoas que gostam de mim me chamam de
filho de uma cadela.
— E as que não gostam?
— Imagine...
Tornou a empurrá-la pelo traseiro, fingindo que iam para
um lugar bem fácil de se imaginar. Enquanto caminhavam,
disse em seu ouvido:
— Não perca nem um segundo, garota.
Assim que a jovem se afastou, ele compreendeu que
também não podia perder tempo, pois logo descobririam
tudo a respeito do falso Mortimer.
Montou em seu cavalo e foi direto para o rancho de
Koplan, que estava selando um animal quando o pistoleiro
chegou.
— Olá, Koplan.
O rancheiro o olhou com desprezo.
— Que diabos quer aqui de novo? O que veio fazer em
meu rancho?
Vim trazer algo de que precisa muito. Por isso não seja
tão petulante.
— Não preciso de nada. Que droga, desde que apareceu
por aqui só me causou problemas.
— Está enganado. Está precisando muito do que eu
trouxe.
— O que é?
— Isto.
Colocou um maço de notas na mão do rancheiro.
Tudo o que havia ganho, exceto os 500 dólares que havia
dado a Sheila.
Sem dúvida era uma bela fortuna...
Koplan olhou para ele, perplexo.
— Mas... o que significa isto?
— Significa que estou pagando suas dívidas. Sei muito
bem que está encrencado com Dalton. Não esqueça que ouvi
sua conversa com Lyndon, antes de acabar com ele. Agora
pode se livrar desse pesadelo de uma vez por todas. Pague o
homem e não volte a se aproximar de um pano verde. A
partir desse momento verá que tudo pode ser diferente.
— Mas, por que está fazendo isso?
Liman sorriu com amargura.
— Por nada — sussurrou.
— Ora, por nada... Não é meu amigo. Nem sequer me
conhecia, Por que está me ajudando? Deve haver algum
motivo.
O sorriso de Liman tornou-se ainda mais amargo.
Virou de costas e falou:
— Porque quero que haja paz nesta casa. Porque não
desejo a desgraça de algumas pessoas que moram aqui. E
agora não perca mais tempo fazendo perguntas. Diga a
Dalton que fez um bom negócio e pague sua divida. Eu... Eu
tenho outras coisas para fazer.
— Onde?
— Bem longe daqui.
E continuou de costas para que o outro não pudesse ver a
luz cinza de seus olhos. Para que ninguém percebesse em sua
expressão que estava se despedindo da melhor parte de sua
vida.
Despedindo-se para sempre.
Só conseguiu acrescentar:
— Diabo!
E se afastou da casa.
Liman estava disposto a não ficar mais tempo na cidade.
Quanto antes fosse embora dali, melhor. Tentaria ir para bem
longe e esquecer... mesmo sabendo que nunca conseguiria
apagar aquela mulher de suas lembranças.
Comprou alguns mantimentos na General Store para a
longa viagem que pretendia fazer. Não suportava mais ficar
naquele lugar, pois isso significava a possibilidade de um
novo encontro com Clara. Havia resolvido até abandonar as
investigações sobre o roubo do trem. E desejava tentar
começar uma nova vida.
Achava impossível, mas precisava tentar.
O dono do armazém lhe disse:
— Parece muito triste, amigo.
— É... As coisas não andam bem.
— Está indo embora?
— Sim. Vou procurar novos ares.
— Escute... Todo mundo sabe que está aqui para
investigar o assalto do trem. O que aconteceu? Desistiu do
caso?
— Tenho uma pista em Outro lugar — mentiu. — Acho
que vou ter de fazer uma longa viagem.
— Bem... O pessoal da funerária vai sentir muito.
— Imagino...
— Os negócios deles vão piorar com sua partida.
Liman pagou e foi para o hotel onde havia alugado um
quarto. Antes de ir embora para sempre, precisava pagar a
conta. Além disso, era indispensável pegar as coisas que
havia deixado lá, como camisas limpas, uma garrafa de
whisky e uma provisão de balas.
— Alguém veio me procurar? — perguntou ao
encarregado do hotel?
— Não, ninguém.
— Feche minha conta. Pretendo ir embora em menos de
meia hora, assim que terminar de arrumar as minhas coisas.
Não demore, por favor.
— Certo, amigo... ouça, onde arranjou esse chapéu tão
maravilhoso?
Liman levou a mão à cabeça e só então percebeu que
ainda estava usando o chapéu do morto, o mesmo que tinha
servido para que Dalton o confundisse com Mortimer.
Encolheu os ombros e disse:
— Ganhei de presente em uma funerária.
E subiu para o quarto.
Não havia ninguém esperando por ele lá dentro, mas
qualquer um que tivesse essa idéia teria uma surpresa. Liman
sempre entrava nos quartos onde se hospedava com a mão
sobre a coronha do Colt. Teria sido mais rápido do que
qualquer um que estivesse esperando para matá-lo.
No entanto, os dedos que estavam fechados sobre a
coronha escorregaram como se não tivessem força. Alguma
coisa falhou. Foi como se ele tivesse acabado de receber uma
boa paulada na cabeça.
Seus joelhos vacilaram por um momento.
Seus olhos ficaram nublados.
Naquele momento teria sido muito fácil acabar com ele.
Tão simples como atirar em um alvo..
Mas ninguém tentou. Não havia gente no quarto. Pelo
menos nenhuma pessoa viva.
Mas havia uma pessoa morta. E estava na cama de
Liman, estendida ali, com os olhos revirados e a boca torcida
num gesto patético, o gesto do Além. A língua pra fora da
boca indicava que havia sido estrangulada.
Ele só conseguiu murmurar:
— Santo Deus....
Porque conhecia aquela mulher. Era a garota que havia
feito trapaças a seu favor, e a quem ele dera os 500 dólares
para que fugisse. Era a bonita prostituta. A mulher que fez
Liman perder o controle e soltar um grito.

NOVE

Sim.
Naquele momento teria sido muito fácil acabar com ele.
Sem dúvida, os dois sujeitos que acabavam de surgir na
porta, as costas dele, também pensavam assim. Pensavam
que era tão fácil que não valia a pena ter pressa.
Um deles disse:
— Uma surpresa bem agradável, não é, Liman? Aposto
que não esperava por essa.
Liman nem se virou.
— Isso significa que Dalton já conhece minha verdadeira
identidade, não é? — perguntou com voz gelada.
— Mas é claro! Ficou meio confuso por causa do chapéu,
e confundiu você com o outro. Mas, afinal, alguém disse a
verdade a ele. Veja que ótimo...
— Sim, foi ótimo — respondeu com uma voz que parecia
vir de um túmulo.
O que acabava de falar às suas costas murmurou:
— A garota cometeu a burrice de mostrar o dinheiro por
aí, antes de se mandar. Também cometeu a imprudência de
perder tempo comprando um vestido novo. Essas mulheres...
Pigarreou e acrescentou:
— Enfim... Pior para ela... Dalton fez questão de que a
garota fosse encontrada morta em sua cama. Afinal de
contas, como pode comprovar, Dalton é um homem honesto.
— Mesmo? Por quê?
— Não se lembra? Ele disse que, se você ganhasse o
jogo, essa garota iria parar na sua cama.
Os dentes de Liman rangeram. Mas ele não se virou.
Sua voz parecia chegar de muito longe quando
perguntou:
— Quem de vocês fez isso.
— Nenhum dos dois.
— Não? Então quem foi?
— E o que você tem com isso?
A voz do companheiro do sujeito que havia acabado de
falar, replicou com desprezo:
— Ora... Joe. Por que não podemos contar quem foi? Isso
não tem a menor importância, já que ele também vai morrer.
E continuando, dirigiu-se a Liman:
— O trabalho foi feito por Marlon. Ele tem as mãos tão
fortes que é capaz de estrangular um touro.
Liman apenas comentou:
— Puxa, que bom!
— Escute, seu desgraçado, levante as mãos e se vire bem
devagar. Acho que prefere morrer de frente, não é? Ou será
que é tão covarde que prefere morrer de costas?
Liman levantou um pouco as mãos e, assim, deixou de
tocar a coronha de seu revólver. Sem se virar, perguntou com
um tom de voz um pouco estranho:
— Pelo menos posso tirar o chapéu? Não gostaria que
ficasse sujo de sangue.
— Tem razão. E um magnífico Stetson. Vai ficar ótimo
em algum de nós.
— Claro — disse o pistoleiro.
E tirou o chapéu.
Foi tudo tão rápido quanto um raio.
Os dois homens que estavam às suas costas não tiveram a
oportunidade de ver o que havia acontecido.
Quando Liman girou o chapéu, e com ele todo o seu
corpo, a faca voou. Era uma arma curta, porém mais afiada
que a navalha de um barbeiro, com um belo contrapeso no
cabo.
Liman já tinha tido chance de comprovar essa maravilha
quando roubou o chapéu. Estava escondida em um forro
falso. Ninguém compra um Stetson por um preço tão alto, só
para enfeitar a cabeça.
Tratava-se de um esplêndido chapéu que carregava uma
armadilha de morte.
O homem que estava mais adiantado recebeu o impacto
inesperado no meio do peito. Realmente não soube o que
aconteceu. Soltou um gemido surdo, olhando para seu
companheiro como se este tivesse culpa do que ocorria.
Ainda teve tempo de balbuciar:
— Não...
Mas só ele estava à beira da morte. O outro teve tempo de
sacar a arma. E também teve tempo de dar um grito de
surpresa e de ódio, enquanto apontava o Colt para o
adversário.
Mas não teve tempo para mais nada. Só para morrer
Liman havia disparado duas vezes. Foram dois impactos
certeiros porque cada olho recebeu uma bala.
Ele caiu no chão. O outro estava completamente quieto,
com as duas mãos segurando o cabo da faca.
Liman disse:
— Sinto não poder enfiar vocês na cama junto com a
garota. Não cabem...
E saiu dali. Tinha outras malditas coisas para fazer. Tinha
de fabricar mais mortos.

DEZ

O hoteleiro estava subindo a escada. Quando viu a cara


de Liman deu um grunhido de horror.
— Mas... O que aconteceu aqui? — balbuciou.
Liman acariciou seu revólver.
— Disse que ninguém havia procurado por mim — falou,
em tom de acusação.
— E é verdade... As únicas pessoas que entraram no hotel
durante a última hora foram os novos hóspedes, três homens
e uma mulher... A garota eu já conhecia. Era uma empregada
da casa de jogo de Dalton.
Liman apertou os lábios em um gesto sinistro.
— Disse que eram três homens? — perguntou.
— Sim... E pelo menos um deles eu também já havia
visto. Era outro empregado de Dalton.
— Suponho que possa se lembrar desses sujeitos...
— Claro que sim.
— Então, venha comigo.
Quando o homem chegou à porta do quarto, quase
desmaiou. O que viu ali fez seus joelhos dobrarem.
— Santo Deus... — gaguejou.
Liman o segurou pelo colarinho, furioso.
— A garota era essa? — grunhiu.
— Claro... claro que sim!
— Chegou com eles?
— Sim...
— E que aspecto ela tinha?
— Bem... Estava muito pálida. Não disse uma só palavra.
— Devia estar apavorada — disse o pistoleiro, falando
consigo mesmo. — Talvez tenham prometido poupar sua
vida se ficasse calada. Mas, quando chegaram aqui mataram
a coitada... Queriam deixar a garota em meu quarto, como
um troféu.
Voltou a perguntar ao hoteleiro:
— Escute, perguntaram o número do meu quarto?
— Não... Ah, mas agora me lembro que deram uma
olhada no livro de registros e que pediram um quarto... ao
lado deste.
— Queriam me pegar de surpresa quando eu chegasse —
continuou Liman, como se falasse sozinho —, mas ainda
falta um. Um tal de Marlon. Viu esse homem?
— Claro que sim. Foi um dos que entrou com a moça.
— E onde ele está agora?
— Não sei... Eu juro. Só sei que alugaram um quarto ao
lado deste aqui. Talvez Marlon tenha ido embora. Não
consigo vigiar todos os que entram e saem.
— Que tipo de lugar esse Marlon costuma freqüentar?
— Não... não tenho certeza. Só falei com ele umas duas
vezes em toda minha vida. Mas parece que anda pelos
saloons e cantinas. E um briguento miserável.
Liman disse entre os dentes:
— Comece a rezar pela alma dele.
Deu um empurrão no homem, que caiu sobre os mortos
soltando um grito de horror. Depois saiu.
Esteve em dois ou três saloons procurando por Marlon.
Queria acabar com ele com as próprias mãos. Já não se
lembrava de sua enorme vontade de sair da cidade.
Mas em nenhum daqueles lugares o tal Marlon havia sido
visto. Só uma garota mulata que estava meio adormecida
sobre a mesa, murmurou:
— Ele esteve aqui... Parecia muito contente. O grande
porco disse alguma coisa sobre ter dado a uma mulher o que
ela merecia...
Liman sorriu de maneira sinistra.
— Eu também vou dar a ele o que merece — disse. —
Sabe para onde foi?
— Falou alguma coisa sobre a funerária.
— O que?
— Isso mesmo. A funerária.
Não conseguiu entender o que o sujeito pretendia, mas foi
até o lugar indicado pela moça. E era verdade. Marlon, o tipo
das mãos de estrangulador, estava lá, falando com o dono do
alegre estabelecimento. Os dois pareciam muito animados.
Até demais...
Os negócios deviam andar muito bem. Mas Liman viu
mais alguma coisa.
Algo que não entendia e que, por um momento,
conseguiu gelar o sangue em suas veias.
Ele havia encontrado a garota morta em sua cama. Isso
era verdade. Mas estava morta há pouco. Então, como aquilo
era possível? Como era possível que uma estátua com seu
rosto já estivesse pronta na funerária? Uma estátua como as
que são colocadas nos túmulos de luxo em cima das lápides.
Naquele momento, Marlon estava dizendo:
— Muito bem... Ficou pronta na hora certa. Podemos
enterrar a moça agora mesmo.
— Fiz a estátua exatamente como você me pediu.
— Ótimo... Vou pagar já.
Quando ia tirar um maço de notas do bolso os dois
escutaram a voz gelada de Liman:
— Gostaria de perguntar uma coisa.
— O que?
Era óbvio que ainda não haviam reconhecido o visitante.
Talvez por que estivesse contra o sol.
Jack murmurou:
— Não entendo por que encomendaram uma estátua
dessa jovem, quando ela ainda estava viva.
— Porque ela precisava morrer — respondeu Marlon
com tranqüilidade.
— Estava condenada à morte? Por que?
Marlon não conseguia entender bem o motivo de tantas
perguntas. Então resolveu olhar com mais atenção para o
homem que falava.
Ficou atônito. Estava frente a frente com o único homem
desse mundo ao qual não esperava ver com vida. Aquele
homem, por mais incrível que parecesse, era nada mais nada
menos que Liman.
Soltou um grito surdo.
Sua direita voou em direção ao Colt.
Mas era um idiota se pensava que conseguiria ser mais
rápido que Liman, que com um único disparo estraçalhou a
mão do estrangulador.
Marlon deu outro grito, desta vez de dor.
O sangue jorrou. E o revólver pulou de sua mão como um
traste inútil.
Liman avançou pouco a pouco.
— Parece que você deu à moça uma morte divertida —
disse. — Uma obra de arte.
— Eu... eu sempre estrangulo as pessoas com minhas
próprias mãos. Quer experimentar?
O sujeito ainda conseguia se mostrar petulante. O
pistoleiro sorriu e disse:
— Acho que vai ser um pouco difícil. Sua mão direita
está uma verdadeira porcaria.
E continuou a se aproximar. O rosto de Marlon, que até
então tinha refletido uma certa petulância, começou a
expressar o medo.
Percebeu que a morte esperava por ele.
Mas ainda tinha um trunfo. Se sua mão direita já não
prestava para nada, a esquerda ainda estava em forma. F com
ela tentou lançar a faca que levava no cinturão.
Fez isso com uma rapidez incrível. Não havia dúvidas de
que se tratava de um autêntico profissional da morte.
Acontece que Liman também era. E bem melhor!
Percebeu o movimento do inimigo quando ele ainda estava
começando a fazê-lo.
Um terrível pontapé no rosto jogou Marlon no chão. Ele
conseguiu lançar a faca, mas sem a menor pontaria. A lâmina
de aço se cravou em uma das paredes de madeira. Liman
comentou:
— Parece que está querendo que eu acabe também com
sua mão esquerda, amigo.
E a arrebentou com um golpe seco do salto de sua bota.
Quando precisava matar um assassino daquela espécie, não
sentia a menor piedade. O grito de dor deve ter sido escutado
na rua toda.
Então, Liman. virou-se para o dono da funerária, que
olhava tudo aquilo com expressão de horror, sem se atrever a
fazer nenhum movimento.
— Espero que tenha uma corda por aqui — disse ao
homem apavorado.
O cara da funerária gaguejou:
— Tenho... tenho de procurar.
— Bem, não tem importância. Esse malandro deveria
morrer enforcado, mas acabarei com isso mais rápido.
Conheço um sistema que nunca falha.
Marlon estava tentando fugir. Toda sua imponência havia
desaparecido. Passou perto de Liman, dando as costas para
ele. Outro pontapé violento atingiu os rins do estrangulador,
que uivou como um desesperado antes de começar a cair.
Mas Liman não deixou que ele caísse. Pegou o homem
pelas costas e apertou seu pescoço com o antebraço
esquerdo. Aquilo era uma autêntica alavanca mortal. Não
havia necessidade de cordas.
Marlon gaguejou algo incompreensível.
A língua brotou de sua boca.
Liman apertou mais um pouco. Aquela máquina de
matar, que era seu braço, funcionava como uma argola.
— Sinto muito, amigo — disse. — Aqui se faz, aqui se
paga.
O corpo de Marlon estremeceu. Estava sendo
estrangulado por uma espécie de máquina infernal. Ele havia
estrangulado uma mulher, e agora sentia na própria carne o
mesmo suplício. Uma espuma vermelha começou a brotar de
sua boca.
Liman apertou mais um pouco. Seus dentes rangeram.
Então se ouviu um estalo. O corpo de Marlon acabava de se
quebrar como uma cana. O pistoleiro o soltou com desprezo.
Durante a infernal cerimônia de estrangulamento, não
havia deixado de observar o dono da funerária. Era possível
que aquele sujeito tentasse defender o capanga.
Mas o homem não se mexeu. Estava tão apavorado que
não conseguia nem respirar. Quando viu Marlon morto,
quase caiu junto com ele.
Liman grunhiu:
— Quer seguir o mesmo caminho que ele, amigo?
— Não... não vou reagir... Fa... farei o que quiser.
— Então me conte o que está acontecendo aqui. Vou
fazer algumas perguntas chatas, mas se não responder vai
ficar mais chateado ainda. Você tem todos os motivos para
saber que o túmulo não é um dos lugares mais agradáveis.
— Res... responderei tudo o que quiser saber.
— Quero saber por que a estátua dessa coitada estava
pronta antes dela morrer.
— Foi... foi uma encomenda de Marlon.
— Por quê?
— Não sei muito bem... Eu me limito a fazer o que me
encomendam. Acho que mandou fazer essa estátua porque já
pensava em acabar com ela.
— Por ordem de Dalton?
— Isso eu juro que não sei.
— Seria melhor ter conversado com Marlon antes de
acabar com ele — disse pensativo. — Uma boa massagem
no pescoço, como a que eu fiz, sempre ajuda a soltar a
língua. Mas agora já é tarde demais. Vou conversar com
Dalton... se ele viver para falar.
Havia algo de sinistro em sua voz. O outro tremeu até os
ossos. Seus dentes não paravam de bater.
— Es... escute... — murmurou. Eu juro que não fiz
nada...
— Foi o que salvou você até agora. Caso contrário, já
teria se transformado em seu próprio cliente.
— O que... o que eu devo fazer, sr. Liman?
— Primeiro enterrar Marlon. Mas não em uma sepultura
luxuosa. Ele merece uma sepultura de cachorro.
— Com certeza, amigo. Eu também não gostava dele.
— Depois enterre a moça da estátua, que está em meu
quarto no hotel. Parece que Marlon havia encomendado uma
bela sepultura para ela, não é?
— Sim, é verdade. Era uma lápide com uma estátua em
cima. Pode ver que a estátua é quase em tamanho natural.
Tudo isso no melhor lugar do cemitério, um local bem
ventilado, tranqüilo e com uma linda vista para a colina.
— Você acha que a morta vai aproveitar tudo isso?
— Bem, pelo menos é o que esperamos. Se não sair do
túmulo para usufruir de tudo isso, o problema é dela.
— Certo. Enterre a moça lá. E coloque a estátua em cima
da lápide. Já está pronta mesmo...
— Claro que sim, sr. Liman.
— Ah..., quem pagou tudo isso?
— Eu recebi de Marlon. Se havia alguém por detrás de
tudo, não tenho a menor idéia de quem seja.
— Mas eu tenho — falou Liman. — Escute, prepare o
ataúde mais luxuoso que tiver aqui.
— Pa... para mim?
— Por enquanto não. É para o sr. Dalton. Não vai
demorar nem um dia para estrear o presente.
Depois disso Liman saiu dali. Seu trabalho ainda não
tinha acabado.
O dono da funerária balbuciou:
— O... olhe... Se encomendar tantos caixões e enterros
posso fazer um bom desconto.
Mas Liman nem escutou.
E na verdade pouco importava.
Afinal, não tinha a menor intenção de pagar.

ONZE

A idéia que guiava os passos de Liman era muito simples:


precisava matar Dalton. Mas, enquanto caminhava pela rua
principal da cidade, outro pensamento mais forte venceu o
primeiro e fez com que mudasse de rumo.
Não queria ir embora daquela cidade sem ver Clara pela
última vez. Mesmo que fosse de longe, mesmo que ela nunca
soubesse daquela última homenagem muda, queria vê-la e
ter certeza de que estava bem. Depois iria embora. Era uma
tentação tão difícil de resistir, que pegou o cavalo e se dirigiu
outra vez para o rancho de Koplan. Como de costume, estava
tudo vazio e sem o menor sinal de qualquer tipo de trabalho.
Parou na varanda, amarrou o cavalo e avançou um pouco
para entrar na casa. Apesar de não haver nenhum barulho lá
dentro, imaginava que Clara estivesse lá.
Com todo o cuidado, olhou por uma das janelas.
E então ouviu uma voz atrás dele, como um sussurro.
— O senhor deve ser o agente de seguros.
Liman se virou, prendendo a respiração.
Clara estava ali, quase encostada nele. Era incrível que
tivesse conseguido deslizar como uma sombra.
Ele respondeu, tentando dissimular a voz:
— Sim. De seguros de enterros.
— E o que está fazendo aqui?
— Queria ver você.
Apesar da tristeza que sempre estava presente em seu
rosto, por um momento a bela mulher deu a impressão de
que ia sorrir.
— Espero que não esteja pensando em me fazer um
seguro de enterro — murmurou.
— De jeito nenhum. Espero que viva muitos anos,
muitos. Desejo isso do todo o coração.
Ela pareceu um pouco alterada.
— O senhor me surpreende, sabe?
— Por que?
— Existe alguma coisa no senhor que me lembra... Não
sei. É como se há muito, muito tempo, já tivesse feito parte
dos melhores momentos de minha vida. Mas sei que é
absurdo, que só pode ser um sonho.
— Clara...
— O quê?
— Alguma vez já esteve apaixonada?
— Sim... Uma vez.
— Por quem?
— É tão difícil de explicar... Parece que tudo aconteceu
há séculos. Eu era outra mulher. Pensava que minha vida
seria muito diferente.
— Mas amava alguém?
— Sim. Amava loucamente um homem chamado Liman.
Com certeza nunca ouviu falar nele, não é? O nome é igual
ao seu.
— Não, nunca...
— Ele desapareceu... Nunca soube o porque. De repente
minha vida mudou. Tudo afundou a minha volta. E percebi
que a partir daquele momento muita coisa não valia mais a
pena.
A jovem falava com uma voz baixa, distante, como se
estivesse sozinha. Liman não se atrevia a mexer um dedo. A
tentação de abraçá-la e beijá-la era tão forte que chegava a
sentir tonturas.
Afinal conseguiu murmurar:
— Mas se casou com outro...
— Sim. Com Koplan.
— Por que?
— Por causa da solidão. Tinha acabado de ficar cega... E
já não acreditava no amor. Casei com ele como teria casado
com qualquer outro, ou com o próprio diabo. Dava no
mesmo. A única coisa que não conseguia suportar eram as
sombras que me rodeavam noite e dia. Todas aquelas
sombras...
Sua voz tinha ficado patética. Havia abaixado a cabeça
como se não conseguisse sustentá-la. Liman não percebeu,
mas, sem que pudesse evitar, uma de suas mãos tocou de
leve a mão de Clara. Naquele instante sentiu uma descarga
elétrica percorrer seu corpo.
— Clara...
Não tinha mudado sua voz.
Ela ficou tensa.
— Quem é você? — perguntou em um murmúrio.
— Ora... Apenas um estúpido agente de seguros de
enterro... Vou embora para bem longe e nunca mais voltarei
a vê-la. A única coisa que gostaria de saber é se tem sido
feliz.
— Não.
— Mas seu marido... Já pagou suas dividas. Lutou por
você.
Clara ficou em silêncio. Deu alguns passos pela varanda e
de repente parou, como se não tivesse mais forças.
— O que está querendo me dizer? — perguntou ela.
— Que deve tentar ser feliz com ele. Os dois juntos
podem reerguer este rancho. Sua vida está aqui.
— E o que vai fazer de sua vida?
— Vou embora para bem longe.
— Nunca voltarei a escutar sua voz?
— Não.
Liman sentiu um nó na garganta. Nunca tinha sentido
nada parecido. A única coisa que conseguiu murmurar foi:
— Adeus.
Andou até seu cavalo, montou e se afastou. Queria acabar
logo com Dalton. O revólver queimava em sua cintura.
Mas o que mais teria gostado naquele momento, seria de
ter a coragem de disparar contra si mesmo.

DOZE

Não sabia muito bem onde procurar Dalton, já que ele


possuía muitos negócios na cidade. Mas Liman teve a
intuição de que existia um lugar por onde poderia iniciar as
investigações.
Esse lugar era a funerária. Era bem possível que ele
tivesse aparecido por lá depois de saber que Marlon, um de
seus pistoleiros, havia sido liquidado.
De qualquer forma, assim que chegou à cidade, Liman
não parou na frente da funerária. Seria muito perigoso.
Deixou o cavalo a uns 100 metros de distância e foi a pé até
“o negócio mais alegre da cidade”.
A funerária tinha pelo menos uma qualidade indiscutível:
poucas pessoas gostavam de passar por ela e por isso era um
lugar tranqüilo. Mesmo assim, estranhou o silêncio absoluto
que reinava no lugar.
Parecia que naquele estabelecimento dos mortos todas as
pessoas também haviam morrido.
Entrou, sabendo que ia ver o cadáver de Marlon, mas
também o da garota assassinada. Foi esse último motivo que
o obrigou a voltar. Queria ter certeza de que iam
proporcionar a ela pelo menos um enterro digno.
Achou estranho não ver ninguém.
— Ei! — chamou.
O silêncio era total. Ninguém respondeu. Sua voz pareceu
ecoar de maneira estranha na meia dúzia de ataúdes de luxo
que estavam apoiados verticalmente na parede.
— Ei! Que droga! Será que morreram todos?
De novo nenhuma resposta. Aquele estabelecimento
sinistro parecia abandonado. Então Liman percebeu que
havia uma porta junto à parede dos ataúdes.
Abriu e encontrou uma sala ainda mais macabra que a
outra, na qual havia três mesas para arrumar os cadáveres
antes da cerimônia final. Em uma delas estava o cadáver de
Marlon, na outra o de Sheila, com o rosto maquiado pela
metade.
Era muito esquisito que tivessem deixado o trabalho sem
fazer. Jack olhou com receio ao seu redor, captando alguma
coisa da qual não gostou. Algo que não conseguia entender.
Voltou à outra sala.
“O que está acontecendo? Foram jogar baralho com os
mortos?”, perguntou-se.
O silêncio continuou a ser a única resposta.
Não entendia o que ocorria por ali.
E então viu algo que mexeu com seus nervos, algo que no
primeiro instante fez com que perdesse a respiração. Seu
olhar acabava de se fixar em um ponto determinado.
Era um dos ataúdes. Estava fechado... mas por baixo da
tampa escorria um fiozinho de sangue.
A mandíbula do pistoleiro rangeu.
O tempo pareceu parar.
Foi até lá com o revólver em punho e abriu o caixão. O
corpo do dono da funerária caiu sobre ele como se tivesse
sido empurrado por uma mola.
A camisa do homem estava encharcada de sangue.
Havia levado duas punhaladas na altura do coração.
E fazia pouco tempo. Cinco minutos no máximo, porque
a ferida ainda sangrava.
Deu um pulo para trás e o corpo caiu no chão. Enquanto
girava o revólver, soltou um bruto palavrão.
Porque acabava de ver mais alguma coisa. Acabava de
ver uma sombra. Alguém que surgiu por detrás das cortinas,
no fundo da sala... e que tentava fugir!
Liman repetiu o palavrão. Estava completamente
convencido de que aquele era o sujo assassino. La apertar o
gatilho com raiva, mas de repente parou.
Abriu e fechou os olhos.
Não podia acreditar no que via. Porque o homem que
tinha diante de seu ponto de mira era... era Koplan, o marido
de Clara. Koplan!
TREZE

Koplan logo se acovardou. Quase caiu de joelhos


enquanto gaguejava:
— Não... Não dispare.
A mandíbula de Liman rangeu de novo, por causa do
esforço que teve de fazer para não apertar o gatilho.
— Talvez não consiga controlar minha mão —
murmurou com raiva. — Mas talvez tenha uma possibilidade
de continuar vivo, se ficar quieto e começar a falar.
— Falar o... o quê?
— Você matou esse homem.
Koplan não negou.
Estava tão apavorado que não tinha forças para nada.
Parecia, mais do que nunca, um sujo covarde.
A voz de Liman soou como uma chicotada.
— Por que fez isso, Koplan?
— Ele... ele sabia demais.
— Mesmo? E o que ele sabia?
— Isso é... um problema meu.
— E meu também, amigo... Claro que não tem nenhuma
obrigação de falar. Mas nesse caso sua carcaça vai parar em
uma das mesas, lá dentro. Escolha.
— Cer... to... Eu falarei.
— Quem encomendou esse assassinato? Porque tenho
certeza de que não foi idéia sua.
— Foi... foi Dalton.
Liman precisou engolir a saliva. Todos os músculos de
seu corpo ficaram rígidos diante daquela declaração.
— Quer dizer que você segue as ordens daquele
bastardo? — grunhiu com ódio.
— Não tive outra alternativa.
— Por que não?
— Ainda devo dinheiro a ele.
— Eu dei mais do que o suficiente para que liquidasse
sua dívida com ele — disse, cuspindo as palavras.
— Sim, mas voltei a jogar... Pensei que... pensei que
poderia duplicar aquela quantia.
— Achou que podia ganhar?
— Claro que sim! Tinha certeza disso. Era meu dia de
sorte. Tinha certeza! Certeza!
Liman sentiu um profundo nojo daquele sujeito, capaz de
apostar até a própria mulher. Deu um belo pontapé em
Koplan, que caiu no chão. E de novo teve de fazer um
grande esforço para não apertar o gatilho.
Tentando recuperar a calma, disse:
— Quer dizer que voltou a perder e ficou, mais do que
nunca, nas mãos de Dalton...
— Sim...
— O que ele pediu? Sua mulher de novo?
— Não... Bem, também falou nisso, mas havia algo mais
importante... Ele me mandou matar esse sujeito, o dono da
funerária. Era verdade que ele sabia demais...
— Sabia demais sobre o que?
O pistoleiro não esperou mais. Apoiou o cano da arma
sobre um dos olhos daquele rato.
Percebia-se que estava disposto a atirar. Que nada o
deteria.
— Fale — disse com voz dura. — O que esse cara sabia?
— Onde estava o di... o dinheiro de...
Ele ia continuar a falar. De seus lábios ia sair a frase que
Liman mais desejava ouvir. De novo, teve a impressão de
que todos os relógios paravam e que o tempo se detinha.
E o disparo chegou como se fosse uma alucinação.
Durante alguns décimos de segundo que pareceram eternos,
Liman não conseguiu acreditar. Quando viu a cabeça de
Koplan estourar, sem que ele tivesse atirado, achou que
estava ficando louco.
Mas logo reagiu e levantou o revólver. Viu a silhueta do
sujeito que acabava de matar Koplan. Seus olhos se
arregalaram enquanto soltava um palavrão e gritava:
— Dalton!

QUATORZE

Dalton deu um pulo para trás e conseguiu sair da


funerária. Estava tão assustado que deixou escapar um grito
rouco. Enquanto disparava com desespero, tentou chegar até
onde seu cavalo estava amarrado.
Liman via o sujeito através da porta, que serviu para
protegê-lo das balas que ricocheteavam ao seu redor.
— Dalton! — gritou.
Viu que ele saltava. Aquele assassino tinha o adversário
pela direção de sua voz. Distinguiu o revólver que traçava
um rápido giro.
Dalton tinha todas as vantagens para ser mais rápido, mas
elas não serviram para nada diante de um homem como Jack
Liman, que disparou apenas uma vez.
Foi o suficiente.
A bala pareceu desenhar um rastro no ar, enquanto um
pequeno botão vermelho surgia junto a um dos olhos de
Dalton.
O dono da casa de jogo pareceu ficar suspenso no ar. De
repente deu uma espécie de salto. E caiu, murchando como
um saco vazio. O revólver caiu sob sua boca, e o aço
começou a ficar vermelho.
Liman avançou lentamente.
Escutava o som das próprias esporas, como as badaladas
de um lento funeral.
Ninguém tinha coragem de se aproximar. A cidade
parecia vazia. Mas isso pouco importava a Liman. O que
interessava era a sensação que tinha de que, com a morte de
Dalton, acabava de romper o último elo da corrente. Dalton
tinha fechado para sempre a boca de Koplan, e ele tinha
fechado para sempre a boca de Dalton. Por esse caminho
nunca chegaria a saber a verdade.
Guardou a arma.
E mordeu o lábio, pensando no próprio fracasso. Que
diabos era aquilo, pelo qual tanta gente tinha morrido? E
como chegaria a saber de tudo? Como?
Pegou o cadáver de Dalton por uma das botas e, sem
nenhum respeito, arrastou-o para dentro da funerária.
Sempre pagava os enterros das pessoas que matava. Não
queria que dissessem que não era um bom rapaz.
Olhou a sua volta, procurando um bom lugar para deixar
o presunto. E então compreendeu tudo. Diabo...! Como não
tinha imaginado isso antes?
Parecia uma alucinação... Viu a estátua funerária da
jovem assassinada, a obra que Marlon havia encomendado
antes de matá-la. Isso explicava tudo... Claro! Por todos os
demônios! A chave estava ali! Havia encomendado a estátua
da moça antes de matá-la!
Aproximou-se daquele bloco de mármore. Os detalhes do
corpo pareciam pré-fabricados, mas o rosto estava perfeito.
Colocou a estátua em posição horizontal. E conseguiu ver
que na base havia uma espécie de tampa de mármore, que se
soltava através de um movimento de rosca.
Retirou a peça e enfiou a mão no interior da estátua. Seu
rosto não refletia a menor surpresa. E também não se alterou
quando os dedos entraram em contato com aquela massa
suave e rangente de notas novas de dinheiro. Assim que a
estátua fosse colocada sobre a lápide, ninguém poderia
descobrir aquele esconderijo. Só quem o conhecesse.
E agora ele sabia. E sabia alguma coisa muito mais
importante: que acabava de descobrir o dinheiro que haviam
roubado do trem. Sua missão havia acabado com um banho
de sangue, mas pelo menos havia acabado.
Tirou as notas e as guardou sem contar. Durante muito
tempo tinha sonhado com aquele momento, mas de repente
percebeu que aquilo não causava o menor entusiasmo. Era
estranho, mas o sucesso que havia conseguido pouco
importava. O que havia em seu coração era outra coisa, e
essa coisa tinha um sabor muito amargo. Jamais poderia
arrancá-la dele.
Agora sim, nunca mais veria Clara.
Não poderia dizer a ela que tinha matado o cachorro do
seu marido. E também não podia contar nada a respeito do
resto da história. E ela ficaria sozinha para sempre.
Assustadoramente sozinha.
Liman abaixou a cabeça.
No momento de seu triunfo sentia mais amargura do que
nunca, sentia uma profunda e invencível tristeza.
Foi até a porta.
E então deparou com aquele rosto imóvel.
Mas os lábios daquele rosto tremiam. Encontrou-se com
aqueles olhos.
Balbuciou:
— Sinto.., sinto muito, senhora... Acho que seu marido
sofreu um acidente.
Não entendeu como Clara tinha chegado até ali, mas
precisava dizer alguma coisa. Mais uma vez estava a ponto
de perder o controle diante daquela mulher. Então
murmurou:
— Não se preocupe, eu cuidarei de tudo. Se me permite,
posso levá-la para casa.
Ela não se mexeu.
E então a voz dela disse:
— Não é preciso, Liman.
Era uma voz que parecia vir de muito Longe. Uma voz na
qual se resumia sua vida inteira.
Liman estremeceu.
Viu que a mulher se aproximava dele.
Uma mulher que não esbarrava em nada. Que tinha os
olhos fixos nele. Que... que o via!
Enquanto a força parecia abandoná-lo pela primeira vez
na vida, Liman murmurou:
— Mas, Clara...
— Há tempos que meus olhos têm melhorado dia a dia —
sussurrou ela, sem deixar de se aproximar —, mas não quis
contar nada a meu marido porque assim poderia conhecer
melhor todas as suas mentiras e manipulações. Sentia tanto
nojo que... que às vezes pensava que não iria resistir. E se
você não tivesse chegado, isso teria acontecido. Reconheci
você desde o primeiro momento, claro que sim... Mas tinha
de continuar fingindo. Fui uma testemunha silenciosa de sua
aventura, seu sacrifício, de... de tudo. E também assisti à
última briga, porque estava seguindo meu marido. Liman, eu
imploro que... que...
Não conseguiu continuar. Seus olhos estavam marejados
de lágrimas. De repente sua cabeça, já sem força, caiu sobre
o peito de Liman.
E ele apenas sussurrou:
— Parece que vão acontecer muitos enterros nesta cidade,
querida. Mas em outro lugar celebraremos um casamento.
Um casamento com a noiva de véu e grinalda.
E, enquanto a beijava na testa, acrescentou:
— Acho que vou deixar a profissão de agente de seguros
de enterro, meu amor. Todos os meus clientes estão
morrendo...

A seguir: A MARCA DE SATÃ

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