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(C) 1995 – MORTIMER CODY

ESCLAVOS DE UNA VENGANZA


TRADUÇÃO DE LUIZ DE NAVARRO
EDITORA MONTERREY
OESTE CARGA DUPLA – 254
390910
CAPÍTULO PRIMEIRO
Gelson, Califórnia, 1853

Nathaniel Bolton olhou a seu redor e viu apenas alguns


civis entre os uniformes azuis do Exército dos Estados
Unidos.
Olhou também para o júri que decidiria sua sorte. Rostos
toscos, barbudos, alguns com ligeiro sorriso zombeteiro. Em
cada um podia-se ler a sentença antes mesmo de ser
pronunciada.
À sua esquerda, encontravam-se Paul, Clara e Inocêncio,
seus dois filhos e seu único criado fiel. Olhavam-no com
expressão de temor, talvez de reprovação, no caso de Paul.
Nat Bolton inclinou a cabeça, penalizado. Por que lhe
ocorrera aquilo? Não se importaria de suas terras, o seu
rancho “Esperança”, porém...!
O coronel Patterson, que presidia o julgamento. bateu na
mesa e se dirigiu a Bolton:
— O acusado pode falar em sua defesa, segundo um
privilégio que lhe concede este tribunal. Deseja falar?
Nat Bolton se empertigou.
— Sim. Que Deus confunda este tribunal e o governo dos
Estados Unidos.
Houve furioso clamor geral e muitos homens
pretenderam abalançar-se sobre o acusado, porém o coronel
se impôs:
— Silêncio, ou mandarei evacuar o recinto!
Diversos soldados circularam pela sala para demonstrar
claramente que o coronel tinha meios de cumprir sua
advertência e ele prosseguiu:
— Lamento dizer que seus insultos não produzirão bom
efeito no ânimo dos jurados.
— Bolton soltou uma risada seca, sarcástica.
— Acaso não está de antemão decidida a sentença.
coronel?
Nova gritaria, imediatamente desencorajada pelos
soldados.
O advogado de defesa de Bolton, um tenente recém-saído
da Academia Militar de West Point, olhou, assustado, para o
réu.
— Não fale assim, por Deus! — murmurou. — Vocês, os
descendentes de espanhóis...!
— Não sou descendente de espanhóis, tenente, o que
lamento bastante. Porém Clara, minha mulher, o era. Por que
lhe fizeram aquilo? Por quê?!
— Você a matou, Bolton — disse o tenente.
O acusado olhou-o, sem vê-lo. Pálido, de olheiras
escuras, fisionomia contraída, respondeu:
— Sim, eu a matei. Foi necessário, O senhor não a
conhecia, tenente. Era uma mulher de fortes princípios
religiosos, boa mas orgulhosa por origem e por princípios.
— Mas nada disso justifica que...
— Cale-se! — Cortou Bolton. — Essa mulher honrada
foi física e moralmente manchada. Eu conhecia bem Clara
Conde, tenente. Ela teria definhado até morrer de
humilhação e desgosto, martirizando-se e infernizando a vida
de nossos filhos! Compreende agora? Eu tinha de fazer
aquilo!
Nat Bolton tremia, porém seu tremor não se devia ao
medo, Coisa que ele jamais sentira à-toa.
— Foram aqueles quatro sórdidos chamados Larry
Gorget, Peter Sanders, Robert Groves e Clement Temple! —
prosseguiu. — E onde estão esses facínoras, que nem sequer
participam desta encenação?
Nova gritaria, porém o coronel Patterson, erguendo sua
voz, avisou:
— Se prosseguirem, serão retirados do recinto! O réu tem
o direito de expor seus argumentos! Está nas leis!
Todos silenciaram e Bolton continuou, agora em voz
baixa:
— Eles souberam de minha ausência e quiseram
aproveitá-la, porém regressei antes do que eles imaginavam
e, ao chegar, deparei com o pobre Inocêncio estendido no
chão. Tinha uma brecha na cabeça. Corri para dentro de casa
e ainda pude ver as costas dos quatro anormais que fugiam
pelos fundos, após perpetrar a monstruosidade. Minha Clara
estava caída, decomposta, esvaindo-se em sangue.
Fez ligeira pausa e sua fisionomia refletiu grande dor.
— Ao me ver, ela conseguiu forças para, chorando, me
implorar que a matasse. Afirmou que não poderia continuar
viva, depois de desonrada por quatro homens!
Calou-se de novo, baixando a cabeça. Como explicar, ali,
o que sentira naqueles minutos dramáticos.
Na verdade, nem ele próprio sabia. Teria sido compaixão
pela mulher o que o levava a pôr termo à sua vida? Teria
pensado nos dias, meses ou anos de amargor de Clara, cuja
desgraça se refletira inevitavelmente em seu comportamento,
prejudicando a criação dos filhos? Ou... teria sido o seu
orgulho de macho, ferido pela certeza de saber a sua fêmea
possuída por quatro homens, o que o levara a cometer aquele
ato desesperado? Não sabia dizer. Mas, de qualquer forma,
aqueles quatro homens eram os culpados de tudo.
Infelizmente, seria enforcado, não podendo vingar-se.
— Prossiga, Nathaniel Bolton — ordenou o juiz militar,
com voz autoritária.
Bolton estremeceu, voltando à realidade do momento, e
continuou, agora como se relatasse um fato corriqueiro:
— Bem, então, eu a matei. Mas foi no momento exato em
que meu filho entrou no quarto! Paul me viu matar minha
esposa e sua mãe!
Olhou para o filho, que respondeu com um olhar duro,
talvez eivado de ódio. O menino contava apenas sete anos e,
conquanto inteligente, não entendia que motivos tão sérios
poderiam ter levado seu pai a matar sua própria mie. Afinal,
o pai não acusava Clara de tê-lo enganado.
— Que fez em seguida? — indagou o coronel.
— Não sei... Não lembro de mais nada! — murmurou
Bolton, baixando a cabeça, sucumbido.
O mexicano Inocêncio se levantou.
— Eu sei, senhor juiz — declarou, encarando o coronel.
— Tivemos de recorrer a vários homens para separar o
patrão do corpo da pobre senhora. Ele chorava como criança.
Quando, finalmente, pudemos separá-lo, ele olhou para nós
com cara de louco e caiu de joelhos, soluçando. Seu corpo
sacudia muito.
— Chega, mestiço — cortou o promotor, um capitão do
exército. — Creio, senhores, que devem conhecer os
mestiços espanhóis e não ignoram sua propensão exaltada
para os detalhes mórbidos e as tragédias imaginárias. São
impulsivos, carentes de inteligência e... malvados. Não
medem as conseqüências de seus arrebatamentos e matam,
para depois chorar aos gritos, lamentando sua própria
brutalidade. Apelam para os sentimentos dos demais para
conseguirem um perdão e uma compreensão que não
merecem
Fez uma pausa e encarou os jurados para concluir:
— Senhores do júri, é um caso concreto de homicídio. Eu
acuso Nathaniel Bolton de assassino na pessoa de sua
esposa, Clara Conde Bolton, e peço a pena máxima, para que
se faça... Justiça!
O coronel Patterson bateu na mesa e ordenou que os
jurados se retirassem para deliberar, porém um deles, porta-
voz do júri, levantou-se e declarou, peremptório:
— Não será necessário, meritíssimo, porque estamos de
acordo com o senhor promotor: pena máxima.
Patterson olhou-o com severidade e apertou os lábios, nos
quais estavam fixos todos os olhares, à espera da sentença.
O coronel era um homem tranqüilo, ao mesmo tempo
cioso de seus deveres como militar e de suas obrigações
como cidadão. Leitor assíduo dos Livros Sagrados, temia
praticar injustiças e, sempre que possível, encaminhava suas
decisões pelos caminhos mais suaves. Talvez fosse o único,
naquele ambiente exaltado, a compreender perfeitamente o
drama vivido pelo réu. Bateu na mesa e, erguendo a voz para
ser bem ouvido, declarou:
— Senhores, eu não posso, honradamente, condenar esse
homem à morte — percebeu o espanto nos rostos
congestionados pela ira. — São inegáveis os atenuantes de
ordem moral e tentarei fazer justiça, segundo a minha
consciência, confiando em ser assistido pelo Todo-Poderoso!
Houve murmúrios apenas audíveis, porque, embora a
revolta fosse geral, o digno coronel invocara a Providência
Divina.
Patterson apoiou os cotovelos na mesa e a testa nas
pontas dos dedos, como se fosse orar, provocando sorrisos
nos cínicos. Foram minutos de grande tensão, pois os que
contemplavam a possibilidade de se apoderarem das terras
de Bolton viam desvanecerem-se as suas esperanças. Nessa
época, com o território mexicano da Califórnia recém-
incorporado à União, tornara-se corriqueiro que americanos
envolvessem mexicanos em crimes não cometidos para lhes
tomarem suas ricas propriedades. Ao que tudo indicava,
aquele caso era apenas mais um da série vergonhosa de
espoliações.
O juiz militar ergueu a cabeça, respirou fundo, bateu na
mesa e falou, com voz grave:
— Levante-se Nathaniel Bolton, para ouvir a sentença
deste Egrégio Tribunal de emergência.
Bolton se levantou, fazendo-se silêncio profundo.
“Será possível não me enforcarem?” — pensava ele.
— Este tribunal condena o réu Nathaniel Bolton, por
assassinato de sua esposa, a vinte anos de reclusão na
penitenciária de Tulare e à perda de seus bens, os quais
passarão a ser propriedade da União, que disporá deles como
lhe aprouver.
Gritos e aplausos. Afinal, o enforcamento de Bolton
perdera o interesse em face da desapropriação de suas terras,
as quais, segundo a prática na época, seriam distribuídas
entre os candidatos que mais pudessem aproveitá-las para o
bem comum, ou que... tivessem maior influência junto ao
Delegado de Terras da União.
— Deseja recorrer, Nathaniel Bolton? — indagou
Patterson, após impor silêncio.
— Não. Para quê? O governo provisório dos Estados
Unidos na Califórnia pode orgulhar-se de sua justiça. Estou
certo de que algum dia este triste episódio será relatado
como página vergonhosa de nossa história.
O juiz franziu a testa.
— Algo mais, Bolton?
— Sim, coronel Patterson. Que todos guardem de
memória os nomes de Gorget., Sanders, Groves e Temple,
porque vinte anos não é muito tempo e, assim que
transcorrerem, voltarão a ouvir seus nomes.
Fez uma pausa ultramaliciosa e, erguendo a voz,
declarou, com ódio:
— Esses quatro homens terão exatamente apenas mais
vinte anos de vida!
Foi retirado do tribunal pelos soldados, para ser
encaminhado à penitenciária de Tulare, após despedir-se de
seus entes queridos ali mesmo, O mexicano Inocêncio e a
menina Clara, de cinco anos, choraram abraçados a ele,
porém seu filho Paul apenas se deixou beijar, gélido. Bolton
olhou-o nos olhos, com tristeza, compreendendo que seu
filho. tão pequeno, era incapaz de entender seu ato
desesperado.
Esvaziou-se depressa o recinto do tribunal improvisado,
após serem ali pronunciadas quatro sentenças inapeláveis:
uma de reclusão, para Nathaniel Bolton, e quatro de morte,
para os violentadores de sua esposa Clara Conde Bolton.

CAPÍTULO SEGUNDO
Gelson, Califórnia, 1871

O “Ferradura” era um bom saloon para homens desejosos


de diversão e fortes emoções: mulheres, bebidas, música,
pôquer.
A morte era freqüentadora assídua do “Ferradura”. Num
dos quatro cantos do amplo salão, uma mesa de jogo, com
seu pano verde discretamente iluminado por um cone de luz.
Ao redor da mesa, quatro homens de fisionomias tensas,
disputando uma vultosa partida e rodeados de curiosos,
dentre os quais Clara Bolton, que esfregava as mãos com
nervosismo.
O pensamento da jovem estava bem distante dali, com
sua amiga Jane, que lhe dissera várias vezes:
— Inocêncio já está velho e qualquer dia destes será
apanhado em flagrante, Clara. E você já sabe o que acontece
aos trapaceiros. Trapacear no jogo é um dos piores delitos no
oeste.
Dois anos naquela vida! Dois anos de angústia, temendo
serem colhidos em seu delito.
Inocêncio, aparentando grande tranqüilidade, embora
com os músculos faciais contraídos, fumava um enorme
charuto. Seus olhos semicerrados, para que ninguém pudesse
seguir seus olhares, estavam quase sempre fixos em Clara,
para colher informações da jovem sobre as “mãos” dos
adversários, que eram quase os melhores jogadores de
pôquer e também os mais temidos no lugar.
Naquela noite, algo andava errado, porque os jogadores
eram derrotados no jogo sem se enfurecer, sem perder a
compostura. Somente um deles mostrava-se um pouco
nervoso.
— Não compreendo — disse, a certa altura. — Esse
mestiço parece adivinhar minhas jogadas...
Inocêncio fingiu não ouvir e olhou discretamente para
Clara, notando-a excessivamente nervosa. E, como também
pressentia algum acontecimento desagradável, sorriu,
dizendo:
— Bem, senhores, estou cansado.
Levantou-se, estendendo o braço, e seus dedos já
tocavam o monte de dólares quando uma voz rosnou às suas
costas:
— Deixe esse dinheiro aí, mestiço do diabo!
Ele obedeceu, lívido, e fez menção de se virar para ver
quem falara, porém uma forte pancada na nuca lançou-o
sobre a mesa. Os curiosos recuaram, pressentindo o que iria
acontecer. Todos conheciam Inocêncio e sua fabulosa sorte
no jogo.
— Esse dinheiro é meu — disse ele, esforçando-se para
imprimir firmeza à voz. — Ganhei-o jogando e...
— E com que facilidade, hem? — cortou o outro. —
Acredite, velho mexicano, eu me diverti à grande vendo os
sinais que lhe fazia essa mulher — indicou Clara Bolton, que
deu um gritinho e pretendeu recuar, mas foi tolhida por outro
homem.
— Espere, delícia — murmurou este. — As mulheres têm
a cabeça vazia... Sabe o que vai acontecer? É uma pena,
querida, porque há poucas mulheres deliciosas como você no
“Ferradura”. Quieta!
Clara Bolton tentara escapulir, porém ele, alcançando-a
de um salto, pusera o pé no caminho, fazendo-a cair. Ela
ficou no chão, soluçando.
Agora, formara-se estreito círculo ao redor daquela mesa.
Todos somam, certos de que testemunhariam o enforcamento
de um trapaceiro. Lamentavelmente, para eles, era um
simples mexicano, pois não consideravam um “latino-
mexicano” digno de enforcamento, devendo morrer a
chicotadas ou com um tiro no meio da cara morena.
— Sabe o que acontece aos trapaceiros, mestiço? —
indagou o indivíduo que o denunciara, com um sonso
zombeteiro.
Inocêncio, pálido mas controlado, respondeu, com voz
firme:
— Sei.
— Parece valente... Sim, todos vocês são iguais.
Mostram-se indiferentes à morte. Mas esperneará como
todos os de sua raça quando esticarmos a corda...
Inocêncio continuou imperturbável. Com um sorriso
cheio de dignidade, virou a cabeça para onde se encontrava a
jovem e aconselhou, paternalmente:
— Tente fugir, Clara.
O grito que se seguiu deixou os presentes
momentaneamente atônitos, o que permitiu a Inocêncio levar
as mãos aos seus Colts e sacá-los com extrema rapidez.
Porém, como ocorre onde há muita gente, sempre há alguém
com nervos de aço. Ali se confirmava essa verdade, porque
um dos homens, não se deixando assustar, segurou-o pelas
costas, imobilizando-lhe os braços, antes que o mestiço
semeasse a morte a esmo, vendendo caríssimo sua vida.
Seguiu-se um espancamento brutal, assim que todos
compreenderam a situação. Clara aterrorizada, a tudo
assistia, sem forças sequer para gritar.
— Chega! — gritou alguém. — Ele vai morrer antes de
ser enforcado. Deve espernear na corda...
Todos pararam, deixando Inocêncio caído, imóvel,
ensangüentado.
— Não temos corda e ele poderá morrer a qualquer
momento! — gritou um dos linchadores, temendo perder o
gozo do enforcamento.
— O cinturão dele! — lembrou outro linchador.
— Não alcançaria a viga do teto — argumentou o
primeiro.
— Mas alcança a nossas mãos... — murmurou o segundo
linchador, sendo prontamente entendido por todos, uma vez
que prorromperam em ensurdecedora gritaria.
Os dois linchadores que haviam assumido o comando do
ato apressaram-se em tirar o cinturão de Inocêncio, com
movimentos bruscos, passando-o imediatamente ao redor de
seu pescoço e através da fivela.
— Já! — gritou um deles, exultando de alegria.
Seu companheiro também se aferrou ao cinturão de couro
cru, enquanto outros quatro, sendo dois em cada perna,
puxavam em sentido contrário.
Ouviu-se um estalido tétrico, quando a espinha dorsal do
mexicano se partiu, seguindo-se um silencio pesado. Todos
se entreolharam. Estranhamente, havia em seus rostos uma
expressão de espanto, como se somente após saciada sua
ânsia de matar tivessem caído na realidade, compreendendo
que haviam praticado uma verdadeira monstruosidade.
— Agora, a mulher — disse uma voz.
— Mas.. é uma mulher! — murmurou o individuo que
havia denunciado a trapaça. — Não se enforcam mulheres,
porém eu sei como tratá-la. Nunca mais se esquecerá...
Vamos, garota.
Clara estremeceu ante o olhar frio do rapaz e alguém quis
saber:
— Que vai fazer com ela, James?
— Laçá-la como a uma potranca e talvez até marca-la
com ferro em brasa, como faço com minhas éguas.
Aterrorizada ante essa perspectiva, Clara Bolton
levantou-se de um salto, como uma gata, tentando alcançar a
saída do saloon, porém James saltou atrás dela, dando-lhe
um murro nas costas que a fez cair de bruços, quase sem
fala, gemendo de dor. Segurando-a pelo braço, o jovem
canalha rosnou:
— Venha comigo. Vocês aí, me acompanhem.
***
Quase do extremo da rua, o cavaleiro viu o espetáculo e
arqueou as sobrancelhas. Parecia que todos, naquele
povoado, tomavam parte na brincadeira, tal a gritaria.
Chegou diante do “Ferradura”, disposto a ignorar aquela
algazarra, pois sentia a garganta seca e cavalgara muitas
milhas sonhando com um trago de uísque.
Encontrava-se em Gelson com um propósito específico e
não iria meter-se com babados. Porém o círculo de homens
se abriu e ele pôde ver o alvo de suas risadas obscenas: uma
jovem, cuja beleza lhe pareceu clássica à luz da lua. E
aqueles alcoólatras estavam machucando com apertões
imorais, dando-lhe palmadas e tentando levantar-lhe a saia.
Por que a infeliz não reagia? Estaria igualmente embriagada,
ou simplesmente...
Suas considerações foram interrompidas, quando um
jovem, alto, louro, ordenou que os demais se afastassem e,
saltando para a sela de um cavalo, começou a rodar o laço.
“Diabo! Vai laçar a mulher! Brincadeira besta...” —
pensou, empurrando o chapéu para o alto da cabeça.
— Vamos, James, que espera? — gritou um indivíduo.
— Soltem a moça, selvagens! — implorou, chorosa, uma
mulher que se aproximou correndo. — Ela é ainda uma
criança!
— Não se meta nisso, Jane! — irritou-se um dos
participantes da estupidez — Lugar de mulher é em casa ou
no saloon... Agora, James!
A tal Jane tapou os olhos com as mãos e o cavaleiro
recém-chegado compreendeu: aquele rapaz pretendia esfolar
a jovem por arrastamento!
— Vai esfolar Clara Bolton, a trapaceira... — murmurou
um sujeito que estava perto do ginete, antegozando o prazer
de assistir à tortura.
“Clara... Bolton!” — disse o rapaz, mentalmente.
O jovem linchador esporeou o cavalo, que saiu na
disparada, justamente quando se ouviu uma detonação. O
primeiro solavanco derrubou Clara e o linchador estacou seu
animal mais adiante, espantado.
— Cortaram a corda! — gritou alguém, decepcionado.
— Cortaram a corda!
Todos os rostos voltaram-se para o lugar de onde partira
o disparo e viram o forasteiro. De costas com as luzes do
saloon, era apenas uma silhueta alta, esguia, de pernas
longas, ligeiramente arqueadas. Empunhava um Colt e outro
continuava no coldre esquerdo. A silhueta falou com voz
firme, meio rouca:
— Cuide dela, Jane.
A mulher não esperou nova ordem, correndo para
socorrer Clara. James saltou do cavalo e, em menos de um
minuto, a rua ficou inteiramente livre para os dois homens.
Porém James já havia sacado seu Colt, enquanto saltava da
sela e, esquecendo a tradição entre os homens do oeste,
disparou a arma para colher o desconhecido de surpresa.
Fred Colman, o forasteiro, já havia viajado e vivido
bastante por este mundo e aprendera a rolar pelo chão,
quando se fazia necessário. Foi o que ocorreu naquele
momento. A bala disparada por James passou exatamente à
altura em que estaria o seu peito, caso ele tivesse
permanecido de pé, e os curiosos, ao vê-lo rodar,
convenceram-se de que um estranho passara desta para
melhor.
Porém tiveram de mudar imediatamente seu ponto de
vista, porque, enquanto o forasteiro se levantava de um salto,
James caia e rolava, gritando de dor.
Quando, finalmente, James se refez e conseguiu ajoelhar-
se, quase bateu de cara no cano do Colt de Fred Colman.
— Agora, suma daqui! — ordenou o forasteiro.
Dois sujeitos se aproximaram de James para ajuda-lo a
levantar-se e um deles advertiu:
— Fez muito mal em se meter, forasteiro, cuide de sua
pele...
— Sei muito bem cuidar dela. Fora!
A ordem foi reforçada por um movimento significativo
do Colt e os dois camaradas se afastaram, apoiando James,
que recebera uma bala no ombro direito.
Fred recuara habilmente, a fim de ficar de costas para a
parede do saloon, para evitar surpresas, mas logo se
convenceu de que aquela gente não gostava de brincar com
fogo. E ele era a própria fogueira quando decidia entrar em
ação... Meteu o revólver no coldre e, enrolando um cigarro,
aproximou-se das duas mulheres
— Como está ela? — dirigiu-se a Jane.
— Estou... estou bem — quem respondeu foi a própria
Clara.
— Você foi valente, rapaz — admitiu Jane, uma trintona
cuja vida nos sallons lhe emprestara aspecto de uma mulher
mais velha. — Porém agora se criou um problema:
Clara não pode mais voltar para o “Ferradura”.
— Trabalha naquilo? — indagou Fred, arqueando as
sobrancelhas.
— Sim — admitiu Clara, baixando a cabeça e
enrubescendo.
Ele se desconcertou.
— Bem... Eu não falei com o intuito de ofender. Eu...
sim, eu me referia ao saloon e não a você pessoalmente.
entende? Eu...
— Não precisa desculpar-se, moço — cortou Clara, com
altivez. — Afinal, eu lhe devo a vida e está no direito de me
dizer o que quiser, ficando eu na obrigação de baixar a
cabeça.
— Salvar uma vida não equivale a tomar-se proprietário
dessa vida, Clara Bolton. Fui infeliz na escolha das palavras
e lhe suplico perdão.
“Caramba!” — pensou Jane. — “É valente em tudo!
Tem coragem moral...”
— Se ficarmos aqui, talvez surjam novos perigos —
lembrou.
— Não tenho para onde ir — lamentou-se Clara. — Com
Inocêncio morto, fiquei sozinha no mundo.
Um sorriso muito discreto distendeu os lábios finos de
Fred, que pensou: “Imagina ter ficado sozinha... Acho que
cheguei no momento exato”
— Não diga tolices, Clara! — falou Jane, com carinho.
— Enquanto eu tiver um teto, você terá onde morar. Venha
comigo.
— Oh, não, Jane, eu não posso continuar em Gelson!
— Deve ficar para me ajudar a... — deixou escapar Fred,
interrompendo-se a tempo.
Clara e Jane olharam-no de frente, intrigadas, e Clara
indagou:
— Eu, ajudá-lo?
— Bem... — desconcertou-se Fred. — Talvez conheça
uma pessoa com a qual eu deveria encontrar-me aqui.
Falaremos disso mais tarde. Na verdade, não tenho pressa
alguma de encontrá-la. Essa pessoa me deve um dinheiro e
não quero que pense... Esqueça!
Fred julgou ter conseguido despistar a jovem. Caramba.
Paul Bolton não lhe mentira! Sua irmã era de fato linda!
— Desculpe a franqueza mas... certas pessoas não
conseguem mentir — rebateu Clara, olhando-o nos olhos.
Desta vez, Fred Colman sentiu-se duplamente abalado.
Fora colhido na lorota e... sentia-se fascinado por aqueles
olhos escuros, grandes e românticos.
CAPÍTULO TERCEIRO
Uma chegada bem marcante

Não lhe seria possível continuar ocultando de Clara


Bolton o verdadeiro motivo de sua visita a Gelson.
— Estou neste lugar por sua causa — soltou, buscando,
mentalmente, a melhor forma de dar a triste notícia.
Clara percebeu, instintivamente, que algo de mal
ocorrera. Esfregou as mãos nervosamente, à espera de que
Fred Colman resolvesse falar.
— Trata-se de Paul.... — disse ele, contrafeito. — Ele me
pediu... Eu lhe prometi...
— Paul! Que lhe aconteceu?
Fred inclinou a cabeça. Não poderia continuar ocultando
definitivamente. Aquele era o momento para falar. Respirou
fundo e revelou suavemente:
— Ele morreu.
Clara recuou um passo, com as mãos na boca e os olhos
muito abertos.
— Paul!... morto! — gemeu. — Dez anos sem dar
noticias e agora...! Eu sempre tive a esperança de que ele
voltasse...
— Ele pretendia voltar, Clara. Na verdade, vivia falando
nisso. Ele me contou tudo, sabe? Uma história que estragou
sua infância e amargou sua mocidade. Acabou
compreendendo que seu pai agira do melhor modo e decidiu
vir ajudá-lo em sua vingança, mas... Antes de morrer me fez
prometer que vinha em seu lugar.
— Vingança! — exclamou Clara, com voz contida.
— Por causa dessa vingança Inocêncio morreu. Ele era,
para mim, tão importante quanto meu próprio pai.
Fred arqueou as sobrancelhas num gesto de
incompreensão e ela prosseguiu:
— Inocêncio e eu vivemos dezoito anos pendentes de
meu pai, que só pensava em vingar-se, sempre preparando
um plano do qual parece muito orgulhoso. Ele necessita de
muito dinheiro para esse plano e foi por isso que Inocêncio e
eu... nos prestamos a fazer trapaças no jogo. Reconheço que,
para satisfazer a sede de vingança de meu pai, arrastei
Inocêncio para a morte!
— Para que seu pai necessita de tanto dinheiro?
— Ele tem acompanhado, por meio de informantes a vida
dos quatro homens... você já sabe. Esses quatro homens, isto,
três deles, porque um já morreu, mas o filho tomou seu lugar
por ser tão sórdido quanto ele. Os quatro estão na fazenda
“Esperança” que nos pertenceu e os quatro criminosos
repartiram entre si.
Ao saber que eles tinham conseguido a fazenda, valendo-
se de truques, de influências e das leis da época, meu pai nos
pediu que Inocêncio e eu viéssemos para Gelson e...
— Onde estavam vocês antes disso?
— Oh, por aí, aos tombos, sempre nas proximidades da
Penitenciária de Tulare.
— Ah... Mas...
— Sei o que vai perguntar — cortou Clara. — Não é
necessário muito dinheiro para matar quatro bandidos, porém
meu pai não nos revelou parte de seus planos.
Fred olhou-a com doçura. Aquela jovem mulher, bela, de
aspecto romântica, era uma vítima da sorte, escrava de uma
vingança. Teria sido feliz alguma vez?
— Bem. Creio que ainda faltam dois anos para o seu pai
sair...
— Não, não. Mereceu comutação da pena, graças ao seu
bom comportamento. Creio que não tardará a chegar a
Gelson. Segundo as últimas notícias,já deve estar chegando.
— Ah!...
— Eu lhe fico muito grata, senhor...
— Fred. Fred Colman. Pode me chamar Fred...
— Pois bem, Fred, eu lhe fico imensamente grata e não
quero que se meta em mais encrencas por minha causa. Já
prejudiquei muita gente para satisfazer ao meu pai e chega!
Sabe? não entendo como o meu pai conseguirá lutar sozinho
contra esses quatro pistoleiros escorados por matadores
profissionais. Será morto, Fred. Mataram a todos os que
estejam ligados a meu pai.
— Esqueça, isso por enquanto, querida — interveio Jane,
vendo-a muito nervosa. — Agora, vamos pra casa.
— Volte para o “Ferradura” Jane. Conheço o caminho e
você não pode ficar sem o seu emprego.
— Não estou assim tão acabada que não consiga trabalho
em outra espelunca. Sam, o ferreiro, é caído por mim e eu já
estava pensando em aceitar a sua corte...
Fred sorriu. Aquela mulher de saloon valia mais, como
criatura humana, que muita dama de boa família.
— Estarei por perto — declarou. — Talvez não seja
difícil encontrar hospedagem.
— A hospedaria de Carlos Sanchez é uma casa de
respeito — revelou Jane.
— Obrigado. Quando nos veremos de novo? — dirigiu-se
a Clara.
Ela sorriu.
— Poderá ver-me diariamente à hora da chegada da
diligência, porque venho sempre esperar por meu pai.
Fred também sorriu e, levando a mão à grande aba do
chapelão ten-gallon de texano, inclinou-se respeitosamente e
se afastou, com as esporas de rosetas mexicanas tilintando.
Era um tipo atraente. Coisa que não passou despercebida
para a vivida Jane, que deu um sorriso e olhou com uma cara
muito sem-vergonha para Clara Bolton. As duas riram.
Fred continuava com uma “sede” dos diabos e por isso se
encaminhou diretamente para o “Ferradura”, cujas portas de
vaivém empurrou com o peito, ouvindo uma voz idosa às
suas costas:
— Ei, rapaz, gostei do que fez ao tal do James.
Fred estacou, com as folhas da porta lhe apertando o
corpo, e virou a cabeça.
— Se gostou, por que não tomou a iniciativa antes de
mim? — indagou, com um sorriso cínico.
— Oh, eu cheguei quando a coisa já estava acabando.
Mas sabia que teria feito o mesmo.
— É? — fez o rapagão, segurando as folhas da porta que
o incomodavam e fixando os olhos cinzas no desconhecido.
Era um velho de cabeça branca, vestido como os mineiros
que ainda acreditavam na existência de ouro naquelas terras.
— É. Meu nome é Rawlins — estendeu a mão, que Fred
apertou.
— Bem, Rawlins, prazer em conhece-lo. Agora, se me dá
licença, vou molhar a goela...
— Ótima idéia, rapaz. Infelizmente...
Fred deu uma risada.
— Já sei: está sem dinheiro. Pelo visto, essa história de
mineração está velha, hem?
O velho retribuiu a brincadeira.
— As coisas velhas também causam surpresas.
— Não creio que, a estas alturas, ainda haja ouro por ser
descoberto na Califórnia.
— É possível. Mas espere e verá...
Fred arqueou as sobrancelhas. Seria aquele o tipo do
mineiro fracassado que passava a vida sonhando com
montanhas de ouro? Seu olhar não parecia o de um demente
e seu sorriso era franco e simpático.
— Está bem, velho, você me ganhou. Vamos tomar um
gole.
— Obrigado. Eu sabia.
— Sabia?
— Claro. Eu o estava esperando.
— Esperando? A mim? Por que?
— Para vê-lo de perto.
— Ah... — fez o rapaz.
Afinal de contas, aquele mineiro talvez fosse mesmo
doido. Viu Rawlins erguer um pesado saco, pondo-o às
costas para entrar no saloon, e ficou ainda mais intrigado.
Que diabo haveria naquele saco?
— Seja franco, Rawlins: você é mesmo um caçador de
ouro? Pode falar a verdade, porque lhe pagarei uísque do
mesmo modo.
— Sou. Ninguém pode declarar-se um fracassado,
enquanto não chegar o seu minuto final.
— Bem, isso é certo. Vamos.
Entraram no “Ferradura” e Fred notou que sua figura era
observada por todos. Sua roupa de texano, inteiramente
negra com adornos e esporas de prata, tomava mais
destacados seu rosto curtido pelo sol, seus olhos cor de ouro,
de olhar penetrante e seus cabelos escuros, ligeiramente
ondulados. O nariz fino, o queixo retangular e os lábios
delgados falavam de uma energia à toda prova. E aqueles
Colts 45 em coldres atados às coxas por tiras de couro
fizeram muita gente imaginá-lo um pistoleiro.
E sua atitude não foi menos conducente a tais suspeitas,
porque, ao se aproximar do balcão, ele estendeu os braços,
de mãos juntas para mete-las em cunha entre os que ali
bebiam, separando-os como se fossem bonecos.
— Uísque para dois — ordenou, com voz metálica,
contundente, quase ameaçadora.
— Lugar bonito... — comentou Rawlins, como meio de
reduzir a tensão. — Faz tempo que não ponho os pés num
lugar assim. Sempre nas montanhas... Cheguei hoje a
Gelson, sabe? Farejei bons negócios nestas paragens.
Sem lhe dar muita atenção, Fred se apoderou da garrafa e
serviu as doses, atento a possíveis surpresas.
— A sua saúde, rapaz. Como se chama?
— Fred.
— Fred... Sabe, Fred? Você terá futuro se me ajudar.
— Ajudá-lo? — indagou Fred, olhando-o de frente, após
sorver seu uísque. — Na busca de ouro?
Um sorriso malicioso torceu os lábios finos do velho.
Chegou a boca perto do ouvido de Fred, para o que teve de
ficar nas pontas dos pés.
— A semeá-lo — sussurrou
Fred sorriu, julgando ter compreendido Tratava-se de
velho truque que consista em enterrar pedaços de quartzo
quase à flor da terra e depois espalhar a notícia da descoberta
de rico filão, vendendo as terras a preços extorsivos. Muitos
incautos tinham perdido suas fortunas e suas economias em
golpes desse tipo. Mas aquela gente de Gelson já devia
conhecer de sobra o truque para se deixar iludir.
— Acho que você está louco, Rawlins — murmurou —
Faz muito tempo que o mundo inteiro conhece esse golpe.
O velho ficou muito sério.
— Você não me compreendeu bem, Fred. Se concordar,
eu lhe explicarei detalhadamente o que faremos
Fred olhou-o demoradamente antes de responder:
— Está bem. Trate de beber. Falaremos disso em outro
dia.
— Não posso esperar, Fred.
O rapaz arqueou as sobrancelhas, acabando por
compreender que a única forma de se livrar do maluco seria
concordar com ele.
— Está bem. Rawlins, e reio que não perderei nada
ouvindo a sua história.
Meteu a mão no bolso e, quando ia pagar, o barman
sacudiu a cabeça negativamente, dizendo:
— Está pago.
— Pago? Quem pagou?
— O senhor Gorget.
Seguindo o olhar do barman, Fred deparou com um
homem de cinqüenta anos, elegantemente vestido de preto
como os cavalheiros do leste, camisa branca e bonita gravata
formando grande laço, também preta. Não portava armas
ostensivamente, mas podia-se notar o vulto de uma em seu
paletó. O homem lhe sorriu, fazendo-lhe um sinal. Fred
compreendeu que aquele homem estava acostumado a
mandar e não se importou de atender ao seu chamado,
caminhando a passos largos. firmes, com as rosetas
tilintando no assoalho. Rawlins caminhou trás dele.
Os dois homens se olharam nos olhos e Fred declarou,
com voz dura:
— Obrigado pelo convite para beber, senhor Gorget,
embora não saiba ao certo de quem se trata.
— Deixe isso de lado, rapaz — falou Gorget, com a auto-
suficiência dos mandões. — Contaram-me o que fez a James
e isso me agradou. Ele merecia.
— Pelo visto, o tal James goza de grande popularidade,
hem? — ironizou Fred. — Ouso deduzir que o fato de eu ter
salvado aquela moça não o comoveu tanto quanto ter eu
despedaçado o ombro desse homem.
Gorget deu uma risada, olhando Fred com mais interesse.
— Vejo que é sagaz. Eu diria inteligente. Sabe que um
homem inteligente sempre pode arranjar boas colocações?
Naturalmente, as possibilidades são maiores quando ele
maneja as armas como você.
Fred sorriu. Começava a perceber as intenções de Gorget.
— É possível... Mas não estou procurando emprego. Na
verdade, encontro-me em Gelson de passagem.
— Ah... Lamento. De qualquer forma, procure evitar que
sua permanência neste lugar não se tome... “excessivamente
curta”. James Temple não perdoa, sabe? Ele...
Gorget interrompeu-se para observar Rawlins, que
movera as mãos de modo um tanto estranho.
— Quem é esse? — indagou.
— Rawlins, um caçador de ouro. Está convencido de que
algum dia encontrará a fortuna.
Gorget ostentou de novo seu riso fácil, sonoro, olhando
com simpatia para Rawlins.
— Entendo — disse. — Embora considere isso um tanto
anacrônico, eu lhe desejo sorte.
Em vez de mostrar-se melindrado, Rawlins indagou
mansamente:
— Creio que mencionou o nome James Temple... Estarei
enganado?
— De fato. Por quê?
— Oh, nada cm particular. Apenas que esse nome me faz
lembrar o de Clement Temple.
Gorget franziu a testa, mas logo sorriu, explicando:
— Tem razão. Clem Temple morreu há pouco tempo e
seu filho James, como seu único herdeiro, ficou com a sua
parte na fazenda “Esperança”.
— Ah...
Gorget olhou-o fixamente e indagou, com absoluta
naturalidade.
— Conhecia Clem?
— Sim. Era um patife. Se o filho herdou seus defeitos,
não é de estranhar que seja odiado por todo mundo.
— Tem razão, Rawlins — admitiu, Gorget,
acrescentando: — Se é mineiro, não entendo como veio a
conhecer Clem Temple. Por ventura, ele lhe roubou alguma
jazida?...
— Oh, não... não! Na verdade, não o conheci
pessoalmente. Apenas ouvi um bom amigo falar dele.
— Entendo. Bem, nem sempre se pode levar muito a
sério o que dizem a respeito de terceiros, não acha?
A despeito de aparentar tranqüilidade e sorrir
ininterruptamente, notava-se que ele se tomara irrequieto,
especialmente por mover as mãos nervosamente, ora
enfiando-as nos bolsos, ora alisando o peito do paletó.
— Lamento que não aceite minha proposta, rapaz —
disse, por fim. — Volto a adverti-lo de que deverá
resguardar-se de James Temple e seus homens. A propósito,
creia que me faria um favor especial quem tirasse James de
meu caminho. Meus amigos também ficariam imensamente
gratos a quem fizesse esse favor a Gelson.
Sem esperar resposta, fez um sinal a dois homens que
estavam molemente apoiados no balcão e saiu com eles.
Porém, antes de sair, dirigiu uma olhadela muito
significativa a Rawlins.
— Parece que esta noite você não arranjou emprego,
hem, Fred? — sorriu o velho.
— Parece.
— Fez bem em não aceitar a oferta desse indivíduo. Não
gostei de sua cara. Desconfio dos homens que vivem com os
dentes à mostra.
— Tem motivos para isso’?
— Quem sabe...
Fred Colman deu uma risadinha e comentou:
— Rawlins, você ficou com medo de que eu trocasse a
sua proposta pela dele.
— Absolutamente. Não obstante, estou certo de que não
terá de que se arrepender. A propósito: ainda não me disse
por que se encontra em Gelson. É verdade que não pretende
demorar-se?
— Depende.
— Algo relacionado com aquela jovem?
Fred arqueou as sobrancelhas, olhando-o nos olhos.
— Deixe isso de lado, vovô. Será melhor tratarmos do
seu assunto. Afinal, simpatizo com você e talvez cheguemos
a um acordo.
— Ótimo!
CAPÍTULO QUARTO
Ele não voltaria atrás

Rawlins pareceu satisfeito com a resposta de Fred


Colman. Pegou o copo de uísque, no qual não tocara, a
despeito de protestar grande amor à bebida, respondendo:
— Sem dúvida alguma chegaremos a um acordo, mas eu
gostaria de conversar em outro lugar. Você está hospedado
no hotel?
— Pretendo me instalar na hospedaria de Carlos. E você?
Rawlins sorriu.
— Meu teto é o céu, Fred. Não se preocupe com isso,
porque estou acostumado.
Fred Colman franziu a testa. Que negócio lhe proporia
um vagabundo sem teto? Mas acabou sorrindo. Afinal, não
lhe custaria nada ouvir o velho.
— Vamos até a hospedaria — disse. — Não ficarei na
miséria, pagando-lhe uma noite de pousada. Se a proposta
for interessante...
— Não zombe, Fred! — cortou o velho. — Duvida de
mim?
O rapaz não respondeu e saiu andando, seguido pelo
velho Rawlins, que sorriu. Era um sorriso estranho,
aparentemente perverso. Fred puxava seu cavalo pelas rédeas
e Rawlins caminhava ao seu lado.
— Sabe, Fred? Antes de conversarmos, eu gostaria que
você respondesse àquela pergunta: sua presença em Gelson
está relacionada com a moça chamada Clara Bolton?
— Está. Mas não compreendo o seu interesse pelo
assunto, Rawlins. Trata-se de uma história longa e bem
antiga. Eu era amigo... amicíssimo de Paul, irmão de Clara.
— Era...?
— Era. Paul morreu, mas antes de expirar me fez
prometer que viria a Gelson para proteger sua irmã. Bem,
não creio que isso possa interessá-lo.
Fred não olhava para o velho e, por isso, não viu a
transformação operada em seu rosto. Foi uma contração que
podia ser ao mesmo tempo interpretada como ódio e pesar.
— Ao chão, Rawlins!
Com esse grito, Fred derrubou o velho e já ajoelhado, viu
os dois lampejos, seguidos de fortes detonações. Colts 45!
Surpreendeu-se ao notar que as balas silvavam longe dele,
mas logo entendeu que tentavam eliminar Rawlins.
— Diabo! — rosnou. — Que lhes pode ter feito esse
vagabundo? Devem estar enganados...
Enquanto falava, seus Colts vomitavam fogo e chumbo,
admirando-se de ver como Rawlins rolava pelo chão,
disparando habilmente seu pequeno Deringer.
A despeito de demonstrar habilidade no manejo da arma,
Rawlins não conseguiu acertar um só tiro. Porém os disparos
de Fred Colman foram fatais.
Um dos atiradores desconhecidos, que cometeu o erro de
correr das sombras de um alpendre para se entrincheirar atrás
de uma carroça, ergueu os braços e, ainda correndo,
executou uma dança que se tornou macabra ao luar prateado.
Tropeçou várias vezes e acabou caindo de bruços, a fio
comprido, com a cabeça enfiada entre os raios de uma das
pequenas rodas dianteiras da carroça.
O outro, sem dúvida por se ver sozinho, tentou buscar
proteção atrás do bebedouro de cavalos, peça respeitável
feita de pesado tronco escavado. Conseguiu percorrer
velozmente a distância que o separava do bebedouro e já se
dispunha a dar um salto que o poria a salvo das balas,
quando uma delas atingiu-lhe o ombro, fazendo-o perder o
equilíbrio. Com espetacular salto mortal, o desconhecido
ficou no alto, de pernas para cima e cabeça para baixo. Bateu
de costas no bebedouro e caiu de cabeça, permanecendo
imóvel. Fred, empunhando os Colts, correu para junto dele,
ajoelhou-se ao seu lado e murmurou, no momento exato em
que Rawlins chegava:
— Quebrou o pescoço...
— O outro também morreu — declarou o velho,
chateado.
— Sinto muito, Rawlins, eu não pretendia matar os dois.
Agora não temos como saber quem lhes deu a incumbência
de acabar com você. Ou serão seus inimigos pessoais?
— Nunca vi esses sujeitos antes. Mas esteja certo de que
vieram para me liquidar.
— Quanto a isso, não cabia a menor dúvida. Mas... Por
quê? Por quê, Rawlins? São os dois que acompanhavam
Gorget.
— Não sei, Fred — mentiu o velho.
Fred coçou a nuca, intrigado, admitindo:
— Bem, afinal ficou provado que você tinha razão: o tal
Gorget é um sujeito hipócrita e mau. Sempre exibindo os
dentes...
— Foi o que eu disse — sorriu Rawlins. — Vamos?
— Um momento, Rawlins!
O velho parou e virou-se, arqueando as sobrancelhas
imundas.
— Confio em que não volte atrás, hem, Fred? Eu me
refiro a uma noite na hospedaria. A idade não me permite
mais saliências...
— Não me refiro a isso, seu estúpido! A verdade é que
você deve saber algo a respeito desse atentado.
Rawlins sorriu, com simpatia.
— Você é teimoso, Fred. Texano?
— Texano e teimoso como meu pai, que era texano e
teimoso como o meu avô e... Insisto em que você está
informado.
Rawlins hesitou momentaneamente, inventando uma
resposta:
— Bem. Só me ocorre a possibilidade de Gorget,
sabendo-me um mineiro, ter imaginado que eu estivesse com
este saco cheio de ouro.
— Hummm...! E uma idéia. Vamos.
Não se falaram até entrarem na hospedaria de Carlos, que
era realmente limpa em todos os sentidos.
Carlos, um mexicano com cem quilos de gordura
acolchoando os ossos, usava grande bigode e sorria, exibindo
dentes enormes, amarelados. Atendeu os recém-chegados
com mesuras exageradas e lhes arranjou dois quartos.
Rawlins preferiu ficar no térreo porque, disse, estava velho
demais para enfrentar escadas. Fred subiu ao primeiro andar.
***
Enquanto se barbeava, Fred olhou pela janela e sorriu.
Afinal, aquele lugarzinho até que era bem agradável e
acolhedor, com gente de bom aspecto andando de um lado
para outro, todos muito atarefados. Devia haver duas
populações bem distintas em Gelson: uma, sórdida, surgia
com o pôr do sol; outra, distinta, trabalhadora, saía às ruas ao
amanhecer.
Tomou um demorado banho numa tina, vestiu-se e
desceu, deparando com o imenso Carlos atrás do balcão.
— O velho já acordou, Carlos?
— Buenos dias, señor Fred. No, ei señor Rawtins no ha
saudo de sus habitaciones. Puedo ir a despertaríe?
— No, no — rebateu Fred, para mostrar que falava
espanhol. — lré yo mismo.
Foi até o corredor e bateu na porta do quarto de Rawlins.
— Ei, velho preguiçoso, já é quase meio-dia!...
Nada.
Fred lembrou-se do atentado e, aflito, girou o trinco,
constatando que a porta não estava trancada por dentro.
Abriu-a e assomou a cabeça, curioso.
Ninguém!
A cama não fora sequer usada. Voltou ao vestíbulo.
— Tu, Carlos — falou ao dono do hotel. — No viste salir
ai viejo? No lia pasado ia noche aqui...
— Eso deve ser, señor — admitiu Carlos, encolhendo os
ombros, — Yo no te he visto más y...
— Bah! — fez Fred, chateado. — Olvidalo.
Ao diabo Rawlins e suas propostas malucas! Tinha coisas
mais importantes a fazer do que cuidar de um velho caduco.
Empurrando o chapelão para frente, a fim de proteger os
olhos contra o sol intenso, ao sair da hospedaria era o tipo
perfeito do pistoleiro texano. As fivelas dos cinturões de
balas, cruzados nos quadris. os adornos das botas e as
esporas, tudo de prata, cintilavam ofuscantes. Os Colts 45,
com casquilhos de madrepérola, emitiam lampejos. E as
rosetas, tilintando no barro vermelho, ajudavam a dar a todos
a impressão de que um demônio negro tivesse baixado em
Gelson com propósitos infernais. E não estavam longe da
verdade.
Porém havia um catalisador negativo para a ferocidade
latente em Fred Colman e lá estava ela, diante da agência da
Wells & Fargo com muita gente por perto, aguardando a
chegada da diligência diária. Aproximou-se, devagar.
— Fred...! Ah... Senhor Fred...
— Fred — corrigiu ele, tocando a aba do chapéu preto
com as pontas dos dedos enluvados em negro. —
Maravilhosa... — murmurou.
— Que disse?
— Bem. Eu estava começando a indagar se não considera
uma temeridade expor-se tão abertamente após os
acontecimentos de ontem à noite — mentiu ele,
descaradamente.
Fred Colman era alto, enxuto e não chegava a ser um
homem bonito, mas tinha algo que enlouquecia as mulheres.
Clara não era uma exceção. Sentiu o coração bater
descompassado.
— Oh, não se preocupe... Fred — pronunciou o nome
carinhosamente. — Os que andam pelas ruas durante o dia,
em Gelson, nem sequer conhecem seus freqüentadores
noturnos.
— Foi o que imaginei.
— Estive pensando em nossa conversa de ontem à noite,
Fred. Não quero que por minha causa lhe suceda algo.. sei
lá!
— Eu prometi a seu irmão cuidar de você e não voltarei
atrás, Clara. Especialmente agora. Quer fazer-me o favor de
me revelar os nomes dos quatro homens que... Bem, você
sabe.
— Paul não lhe disse?
— Não se lembrou no momento de morrer.
— Não entendo como meu próprio irmão pôde esquecer
os nomes dos homens que...!
— Não o censure, Clara. Por muitos anos, Paul fui contra
a idéia de vingança de seu pai e, conforme eu lhe disse,
acabou entendendo e tinha até resolvido romper
momentaneamente nossa sociedade para vir em seu auxilio.
É natural que, sendo contrario à vingança, não tenha
guardado esses nomes de memória.
— Tem razão. Pobre Paul! Bem, esses homens se
chamam Sanders, Groves, Temple e Gorget. Na verdade, o
velho Temple morreu, mordido por uma cascavel, no
deserto, e seu filho James tomou seu lugar na fazenda
“Esperança”. Vivem ali como senhores feudais, cercados de
matadores profissionais e mantendo Gelson sobressaltada
com suas arbitrariedades. Não entendo como meu pai poderá
vingar-se desses homens, Fred. Eles criaram quatro
quadrilhas de malfeitores e meu pai sozinho...
— Estarei com ele — cortou Fred.
— Ainda assim, Fred. Serão dois contra muitos.
Sem dar importância à observação de Clara, ele
perguntou:
— É verdade que seu pai ocultou de você e de Inocêncio
parte de seus planos?
— É. E afirma que terá êxito, Fred. Aliás, creio que
talvez Inocêncio conhecesse todo o plano de meu pai mais...
— Se Inocêncio não lhe revelou detalhes é porque deve
ser coisa muito perigosa, Clara. De qualquer forma, o
máximo que podemos fazer, por enquanto, é aguardar a
chegada de seu pai — sorriu. — Enquanto isso,
possivelmente, terei uma conversa com esse Temple. Ele não
se conformará com a humilhação a que o submeti diante de
todos. Quanto a Gorget... — sua fisionomia se contraiu. —
Eu gostaria de lhe cortar as beiçolas para que ele não tivesse
de fazer força quando quisesse sorrir. Estaria sempre
sorrindo.
Clara ficou boquiaberta. Como aquele rapagão amigo de
Paul, tão corajoso, o homem que se arriscara para salvá-la
das garras de James Temple, podia imaginar tal
monstruosidade?
— Você... você conhece Gorget? — indagou em voz
baixa.
— Conheci o patife ontem à noite no “Ferradura”. É um
sujeito repugnante, capaz de tudo.
— De fato. Porém os outros três são iguais a ele e creio
que só estão juntos por causa da fazenda, pois todos sabem
que são inimigos de morte.
— Isso é interessante — animou-se Fred. — Talvez nos
favoreça.
— Falou no plural, Fred. Devo entender que...?
— Que entrei nesta briga e só sairei dela quando houver
um vencedor definitivo. E, diga-se de passagem, não
pretendo ser o vencido.
Clara engoliu em seco. Vivera toda a sua infância e sua
mocidade sob tensão, à espera do dia em que seu pai
conseguisse vingar-se, colaborara com ele, chegando a
descer até a trapaça no jogo para ajudá-lo, porém, agora,
chegado o momento, começava a se assustar. Especialmente
porque, após uma vida de constante angústia, o bravo
forasteiro negro surgira como verdadeiro príncipe encantado.
Respirou fundo por várias vezes para conseguir falar.
— Eu... eu gostaria de esquecer por enquanto essas
coisas. Diga como conheceu Paul. Que fazia o meu irmão
quando se conheceram?
— Paul e eu vivemos dentro da lei e não há o que ocultar
— tranqüilizou-a Fred, percebendo que também ela o
supunha um temível pistoleiro texano. — Conheci Paul há
dois anos. Foi ocasional, porque conseguimos emprego de
vaqueiros no mesmo rancho do Texas. A amizade surgiu
porque nenhum dos dois gostava dos saloons e, enquanto
nossos companheiros iam gastar o pagamento da semana no
povoado mais próximo, ficávamos Lendo ou trocando idéias
no rancho, principalmente falando de um sonho: possuir uma
propriedade e criar gado. Conseguimos economizar dinheiro
e, ao vencermos, em dupla, uma competição de tiro,
conseguimos reunir o necessário para comprar nosso próprio
rancho. A essa altura, já havíamos decidido tornar-nos
sócios. Compramos o rancho e tudo ia muito bem, mas
surgiram os ladrões de gado. Quando eles invadiram nossas
terras e lhes demos combate, Paul foi baleado, porém eu
consegui eliminar os ladrões. Antes de morrer, em meus
braços, Paul me fez prometer que ajudaria seu pai e você.
— Ah... — fez Clara, triste. — E o rancho?
— Espero voltar algum dia para continuar nossos
trabalhos. Nosso capataz é homem honrado e, por certo,
manterá tudo em ordem. Você e seu pai são agora meus
sócios e...
— A diligência! — exclamou a jovem, olhando o pesado
veículo que entrava na rua principal, com grande
estardalhaço do cocheiro. — Tomara que ele chegue desta
vez...
— Vamos ver.
Encaminharam-se para o local de parada.
CAPÍTULO QUINTO
Esperava uma boa colheita

As sapatas de ferro dos freios, atritadas contra as talas de


ferro das rodas, produziram um ruído estridente,
ensurdecedor, fazendo a diligencia parar, envolta numa
nuvem de poeira amarelada, sufocante.
Assim que a poeira assentou, o cocheiro saltou da boléia
e abriu a porta. Os passageiros começaram a desembarcar e
os curiosos se aproximaram. Terminado o desembarque,
Clara voltou-se para Fred, com expressão desconsolada.
— Não chegou, Fred! Mais um dia de angústia...
— Sinto muito, Clara. Será melhor você voltar para casa.
— Que mais posso fazer?
Fred segurou-a pelo braço, a fim de conduzi-la através do
aglomerado de gente empoeirada que vociferava,
manifestando contentamento ou decepção. Porém, ao virar-
se, constatou que teria de passar por onde se encontrava
James Temple, acompanhado de dois pistoleiros, sorrindo
ironicamente James tinha o ombro vendado e o braço direito
numa tipóia. Largou o braço da jovem e caminhou ao
encontro de James, que o aguardava de pernas separadas e
expressão zombeteira.
— Pensei que já estivesse longe de Gelson, rapaz — disse
ele.
— Por quê? — rebateu Fred, irônico.
— Não é saudável enfrentar James Temple, sabe? Ontem
me colheu de surpresa, mas hoje não terá outra oportunidade.
Oh, aí está a minha amiguinha trapaceira...!
Clara fora imprudente, avançando até colocar-se ao lado
de Fred Colman.
— Trapaceira, bem? — rosnou Fred. — É possível, mas a
crítica jamais poderia partir de um completo canalha. Você é
tão canalha quanto o foi seu pai.
Essas palavras surtiram um efeito surpreendente.
Enquanto o rosto de James passava de risonho a contraído, o
aglomerado de gente ao redor da diligência se dispersou
como por encanto. Em poucos minutos, restaram apenas
James Temple e seus dois pistoleiros, de um lado, e de outro,
Fred Colman com Clara Bolton, defrontando-se os dois
grupinhos.
— Fez mal em me insultar, rapazola. Conheceu o meu
pai? Afinal, quem são vocês na realidade?
— Herdou os remorsos de seu pai, James Temple? —
indagou Fred, entredentes, com malícia. — Na realidade,
esta é Clara Bolton, a “trapaceira”, e eu sou Fred Colman, o
“forasteiro”.
— Mentira! Quem é você?
Fred semicerrou os olhos e apertou os lábios.
— Não gosto que me considerem mentiroso, ainda mais
quando a pessoa que ofenda esteja ferida, incapaz de se
defender. Repito a pergunta: herdou os remorsos de seu pai?
James Temple agora tremia ligeiramente, muito pálido,
fisionomia contraída. Seus dois pistoleiros estavam atentos a
uma ordem de ataque.
Porém a ordem não veio e James pareceu dominar-se,
chegando a sorrir.
— Agora estou em inferioridade de condições, Fred —
declarou. — Porém não me esquecerei de busca-lo. Claro
que poderia ordenar aos homens que o liquidassem, mas
quero ter o prazer de matá-lo pessoalmente. Além disso,
pretendo arrancar-lhe a língua, como deve ser feito a todo
falador. Quanto à sua amiguinha...
Deu uma gargalhada, mostrando-se novamente seguro de
si.
— Sua amiguinha me agrada bastante. Eu lhe reservo
uma sorte digna dela.
A fisionomia de Clara Bolton se contraiu. Não,
James Temple não faria, com ela, o que seu pai, Clement
Temple. fizera à sua mãe, Clara Conde Bolton. Teve de se
controlar para não declarar isso a James.
Foi quando Fred Colman, separando bem as pernas e
levando as mãos a oscilar perigosamente junto aos Colts,
ordenou:
— Dê o fora, James Temple, enquanto é tempo. Da
próxima vez que nos encontrarmos eu o matarei, ainda que
continue meio inutilizado como agora.
James deu uma gargalhada e fez um sinal para os seus
homens, decidindo:
— Vamos, rapazes.
O mal de muita gente, ao longo da larga e extensa faixa
de terra entre o Texas e a Califórnia, nessa época, foi
subestimar a vivacidade mental de um vaqueiro texano,
magro e alto, chamado Fred Colman. Quase todos baixaram
à sepultura e os restantes, se não tiveram inutilizado as mãos
que empunhavam as armas, tiveram um ombro esfacelado.
Assim que James e seus pistoleiros giraram nos
calcanhares, Fred deu em Clara um empurrão que a fez
tombar de bruços e, caindo sobre o joelho direito, sacou os
Colts com tal rapidez que as poucas testemunhas jurariam de
pés juntos terem visto as armas saltarem, de moto próprio,
dos coldres para as mãos enxutas do perigoso “Vaqueiro
Negro”, como ficou conhecido Fred, na região, por se vestir
inteiramente de preto.
A velha experiência no trato com malfeitores...
Aqueles três homens, ao darem o terceiro passo, viraram-
se vertiginosamente, empunhando suas armas. James Temple
atirava tão bem com a direita quanto com a esquerda.
A saraivada de chumbo que passou silvando pouco acima
da cabeça de Fred daria para liquidar dez homens.
As armas trepidaram mortalmente nas mãos do “Vaqueiro
Negro”.
Um dos pistoleiros de James gritou desesperadamente,
largando as armas para aferrar-se à coxa esquerda baleada, O
outro simplesmente não entendeu como os revólveres lhe
saltaram das mãos e James Temple, experimentado em
tiroteios, Conseguiu livrar-se de ser atingido pelas balas de
Fred porque se atirara ao chão. Além disso, rastejara
velozmente para colocar o cano de seu colt na testa de Clara
Bolton.
A jovem suou frio e arregalou os olhos, compreendendo
que, em poucos segundos, estaria morta.
Fred girou para balear James, cuja arma lhe saltou da
mão, antes que o “Vaqueiro Negro” pudesse apertar os
gatilhos. O disparo salvador partira de um alpendre e os
jovens olharam para lá, surpresos.
— Olá, meninos — saudou-o, sorridente, o velho mineiro
Rawlins. — Meteram-se em outra enrascada, bem?
James Temple não conseguiu, da posição em que ficou,
perplexo, ver quem atirara contra ele. Levantou-se
desconcertado e Fred lhe ordenou com dureza:
— Fora! E leve seus capangas. Da próxima vez não terei
contemplações. Você vai morrer, James Temple.
James ajudou um de seus capangas a carregar o que fora
baleado na coxa e os três se afastaram, sentindo-se
humilhados. Fred ajudou Clara a se levantar.
— Desculpe, Clara, mas foi necessário.
— Eu sei. E o mineiro?
— Aqui — respondeu Rawlins. saindo para o meio da
rua. — A idade estraga a vista da gente! Apontei para a
cabeça daquele sujeito e só consegui arrancar-lhe o revólver
da mão...
Fred arqueou as sobrancelhas.
— Jura que apontou para a cabeça? — indagou.
— Claro, rapaz. Para que mentir? Oh... essa é a jovem de
ontem à noite, não? É o retrato de alguém que... —
interrompeu-se.
— Retrato de quem, senhor Rawlins? — indagou Clara,
ansiosa.
— Oh, não consigo lembrar o nome. A idade também
estraga a memória, sabe?
— Faça um esforço, senhor Rawlins.
— Sei que é a cópia fiel de alguém, mas não consigo
lembrar de quem.
— Não faça caso, Clara. Esse velho está meio louco —
interveio Fred, lembrando-se de que o velho desaparecera da
hospedaria de Carlos.
Rawlins deu uma risada.
— É verdade, moça. Não ando lá muito bom da cabeça.
A idade também estraga o cérebro. Bem, vou andando,
porque tenho um trabalho importante a fazer.
Antes que os jovens pudessem impedir, Rawlins afastou-
se agilmente, carregando o mesmo saco imundo. Fred coçou
o queixo. Que diabos andaria fazendo o maluco com aquele
saco às costas? Seria a primeira coisa que perguntaria a
Rawlins após deixar Clara na casa de Jane. Sopravam maus
ventos por aquela amaldiçoada Gelson!
— Vamos, Clara. Não é prudente continuarmos no meio
da rua, porque seria fácil nos atacarem de qualquer janela ou
esquina.
— Ah? Oh, sim, sim...
Ela estava impressionada com as palavras de Rawlins.
Teria aquele velho conhecido sua mãe? Sim, porque diziam
que ela era o retrato de Clara Conde quando solteira.
Começaram a andar.
— Fred...
— Sim?
— Esse velho... Oh, nada. Não tem importância.
Continuaram andando, sem que ele insistisse em saber o
que ela pretendia ao se referir a Rawlins, e, chegando diante
da casa de Jane, Fred pediu:
— Clara, quero que me prometa uma coisa
— Quê...?
— Que não sairá de casa por nada deste mundo.
Compreenda que é perigosíssimo. Entrarei em contato com o
seu pai assim que ele chegar e tentarei convencê-lo a
abandonar a idéia de vingança. Afinal, a metade de meu
rancho pertence a vocês e...
— E teremos novas brigas por causa de terras —
interrompeu-o Clara.
— Não haverá brigas, Clara, porque...
Ela percebeu o que ele iria dizer e se acovardou:
— Por favor, conversaremos a respeito mais tarde. Agora
estou muito nervosa. Prometo não sair de casa.
Olharam-se nos olhos e Fred, um dos sujeitos mais
teimosos de todo o oeste, voltou ao tema que ela tentara
evitar:
— Não brigaremos por causa de terras, porque estou
certo de que saberei fazê-la feliz.
As pernas de Clara Bolton tremeram como varas verdes.
Para não cair, ela se apoiou no “Vaqueiro Negro” e ele, sem
perda de tempo, sapecou-lhe um beijo na boca. Foi um beijo
demorado, violento, do qual ela participou intensamente.
Depois, Clara encostou a cabeça em seu peito e admitiu,
emocionada:
— Sim, meu amor, eu sei que você me fará feliz.
De repente, afastou-se, correu e, da porta, gritou, feliz da
vida:
— Não demore, querido!
Fechou a porta e Fred Colman olhou em redor, vendo
tudo azul. Até mesmo a poeira amarelada da rua principal de
Gelson!
***
Cinco saloons e dez copos de uísque representavam, até
aquele momento, o balanço da busca realizada por Fred para
localizar o velho Rawlins.
Avançou resignadamente para as portas de vaivém do
sexto saloon, certo de não encontrar também ali o velho
mineiro, quando estacou, voltando-se na direção de uma voz
muito sua conhecida:
— Olá, rapaz. Aposto que me procurava.
— Rawlins, velho dos diabos! Onde se meteu?
— Calma, rapaz. Eu estava por aí. Adoro os prados.
sabe?
— Por que não dormiu na hospedaria?
— Eu já disse: adoro os prados. Aquele cubículo me
sufocava e eu resolvi dar uma voltinha.
— Uma voltinha?
— Foi o que eu disse.
— Bem, esqueçamos isso. Na realidade, não sei por que
me interesso por você...
— Bem. Você me disse que lhe sou simpático — sorriu o
velho.
— Sim, é verdade. Mas ainda assim começo a desconfiar
de que você tem algum plano inconfessável. Que histeria é
essa de semear ouro?
— Fred... Não me convida para um gole?
— Velho dos diabos — rosnou Fred, segurando-o pela
gola do casaco de couro. — Começo a suspeitar de você!
Estou certo de que conhece Clement Temple e Clara
também. A quem mais conhece, seu impostor?
O sorriso não desaparecera dos lábios de Rawlins.
— Que é isso, rapaz! Não esqueça que um velho
minerador conhece muita gente, graças a vagar por este
mundo de Deus. É lógico, não? Faz muitos anos que
palmilho a Califórnia.
— Você não fala como essa raça de analfabetos que são
os mineiros — rosnou Fred, largando o velho.
— A gente vai aprendendo as coisas com a idade, Fred.
— Está bem. Vamos beber.
Entraram juntos. Era um lugar mal iluminado, de péssima
freqüência; servido pelo que havia de pior em matéria de
mulher perdida. Fedor de bebida, fumo e perfume, tudo
ordinário, somado ao de suor de homens barbudos, imundos,
de fisionomias obscenas e vocabulário sórdido. As piadas
fariam corar um frade de pedra.
Os dois se encostaram ao balcão, graças ao expediente de
empurrar os que ali se apoiavam. Ninguém reagiu, por dois
motivos imperiosos: todos estavam bêbados de cair e temiam
o “Vaqueiro Negro”.
— Você gosta daquela garota, não, Fred? — indagou
Rawlins, referindo-se a Clara Bolton.
— Bem... — fez o rapaz, meio sem jeito. — Ela é linda,
não acha?
— Sim, tão linda como... — ligeira pausa de Rawlins —
como uma deusa — corrigiu, em tempo.
— Por que se interessa?
Rawlins sacudiu a cabeça. Estava triste.
— Coisas de velho, Fred. Todo velho é tradicionalmente
muito curioso e...
— Você não me engana — cortou Fred. — Está
ocultando algo importante. Diga-me uma coisa: que fez com
aquele saco? Que história era aquela de semear ouro?
Rawlins bebeu em silêncio.
— Você é, de fato, um rapaz inteligente. Fred. O canalha
do Gorget percebeu e lhe fez aquela proposta. Confesso que
cheguei a temer...
— Tolice! — cortou Fred. — Sabe muito bem que estou
em Gelson para defender Clara e tentar, se possível impedir
seu pai de cometer loucuras quando ele chegar a este
povoado. Agora cabe a você falar, e não me venha com
mentiras descaradas!
Rawlins deu uma risada.
— Acho que seria difícil ocultar por mais tempo, Fred.
Você é muito vivo. Aquele saco continha quartzo aurífero
escolhido. Quanto ao ouro... já está semeado. Espero
magnífica colheita...
Fred olhou-o de frente e não entendeu a transformação
operada em seu rosto, que se tornou granítico. O olhar de
Rawlins lhe pareceu firme, decidido, dotado de um brilho
singular. Que estaria realmente tramando aquele velho
maluco?
CAPÍTULO SEXTO
Ouro mais ambição, igual a sangue

Fred Colman olhou fixamente para Rawlins, como se


pretendesse devassar-lhe o cérebro pelos olhos.
— Está bem, Rawlins, não sei o que pretende, mas
imagino que essa jogada estúpida não lhe trará bons
resultados. O engano cedo se descobre.
— Basta que dure uns dias, Fred. É o suficiente.
Fred respirou e tomou um gole de gim puro. Bolas! Que
lhe importavam os êxitos ou os fracassos daquele velho?
Nada. Não lhe importava absolutamente nada.
Não obstante, sentia-se interessado. Algo superior às suas
forças, à sua razão, o empurrava, não sé para o convívio com
aquele minerador fracassado, como também para as suas
tramas inexplicáveis. Afinal, não lhe custaria muito trabalho
alimentar as falsas esperanças daquele infeliz, enquanto
aguardava a chegada do pai de Clara. A lembrança da jovem
fez o “Vaqueiro Negro” sorrir e Rawlins já se dispunha a
indagar qual o motivo de sua alegria, quando o grito ecoou
no infecto saloon: OURO!!!
A palavra mágica.
Em menos de um minuto, a bebedeira da maioria se
esfumou milagrosamente e o homem que entrara com a
notícia foi agarrado, sacudido, levado de um lado para outro,
espremido.
— Que disse, seu estúpido? — urrou um homenzarrão,
quase estrangulando o pobre coitado.
— Ouro! Ouro! — repetiu o infeliz, com a voz presa na
garganta pelas ganas do brutamonte.
— Mentira! Onde está esse ouro? Essa brincadeira lhe
custará a pele!
— Juro! — gritou o homem da notícia sensacional, assim
que o outro o largou. — Mickey viu com os seus próprios
olhos...! Quero respirar! Ai!
A afirmativa de que Mickey vira ouro galvanizou todo o
mundo, porque Mickey não mentia. Após respirar fundo por
várias vezes, o homem prosseguiu:
— Vocês já sabem que Mickey está trabalhando para
Sanders. O velho pão-duro encontrou ouro em suas terras.
Um veio de quartzo riquíssimo, quase puro...
Muitos dos que o rodeavam pareceram ter perdido o
interesse. Se o ouro fora descoberto nas terras do miserável
Sanders, não havia como explorá-lo sem o seu
consentimento, coisa que ele não daria nem que tivesse de
vender a alma ao diabo. Não obstante, muitos,
aparentemente, ignoravam esse detalhe e gritavam como
loucos, sentindo-se ricos. Dentre eles, havia o homenzarrão
que sacudira o recém-chegado. Esfregava as mãos e seus
olhos verdes faiscavam de cobiça.
Fred Colman. encostado ao balcão, estava perplexo, sem
compreender aquilo. Sabia ser obra de Rawlins, mas... por
que teria o velho semeado ouro justamente nas terras de
Sanders? Pensara que o velho pretendesse beneficiar-se do
truque, mas agora constatava que isso seria impossível.
Enquanto isso, os baralhos de pôquer eram abandonados
e os homens tremiam, acometidos da terrível febre do ouro.
Se aquilo era realmente uma façanha de Rawlins, talvez o
velho tivesse armado um pandemônio para si próprio.
Quando aqueles ambiciosos descobrissem... Voltou-se para
comunicar suas conclusões a Rawlins, porem não o
encontrou no balcão. Na verdade, não o encontrou em lugar
algum no meio daquele aglomerado de loucos. O velho
buscador de ouro simplesmente se esfumara!
A notícia chegou a todos os cantos de Gelson, deixando o
povoado em polvorosa.
O homem que sacudira o portador da grande notícia
elevou a voz, para lembrar a todos:
— Se há ouro nas terras de Sanders, forçosamente haverá
nas terras que cercam a fazenda!
Foi um berreiro dos diabos, seguido de uma correria que
teve de primeiro saldo duas mortes e vários feridos. Só havia
uma porta e aqueles loucos decidiram passar ao mesmo
tempo por ela, sendo muitos pisoteados. O segundo resultado
foi que naquela mesma noite um punhado de alucinados
começou a esburacar aloucadamente a terra ao redor da
“Esperança”, especialmente na parte pertencente a Sanders.
Fred Colman, depois de espremido, empurrado e quase
pisoteado no saloon. decidiu que o melhor seria meter-se na
cama para descansar.
Foi o que fez.
Estirado na cama da hospedaria, com as mãos embaixo da
cabeça, esteve pensando intensamente em qual poderia ser o
verdadeiro propósito de Rawlins. Por ventura o velho sabia,
de antemão, que seu truque desencadearia verdadeira
tempestade em Gelson?
Após meditar longamente, concluiu que sim. Mas com
que finalidade específica?
Adormeceu sem encontrar uma resposta.
***
Peter Sanders, ainda sem acreditar na sorte, contemplava
o veio aurífero quase à flor da terra. Como era possível ter
vivido quase dezoito anos naquele rancho sem suspeitar da
riqueza e, de repente... Bem, essas coisas podem acontecer a
qualquer mortal e ele não era uma exceção.
— O fato ê que sou rico, Walt. Isto é, sou milionário...
— Sim. patrão, milionário.
Sanders voltou-se para o seu capataz, não gostando da
entonação de sua voz.
— Está rindo de mim, Walt? Será que não viu direito o
veio aí, diante de sua cara! Já pensou no que pode estar
embaixo de minhas terras?
— Sim, patrão, eu já pensei nisso.
— Bolas! Você não passa de um imbecil! Não
compreendo como lhe dei o lugar de capataz!
— Sim, patrão, eu sou um imbecil.
Sanders cerrou os punhos, furioso. Não fosse o medo que
sentia do agigantado Walt e lhe quebraria a cara.
Um cavaleiro se aproximou voando e saltou do cavalo em
movimento.
— Patrão!
— Fale, Ed.
— Más notícias, patrão! Centenas de homens estão pelos
arredores do rancho, buscando ouro.
A gargalhada de Sanders ecoou nos prados.
— Isso não o preocupa, patrão? — espantou-se o
pistoleiro.
— Claro que não, rapaz. Enquanto não invadirem o
rancho, nada teremos a temer.
— Sim, mas queira Deus que encontrem algo, patrão. Do
contrário, a coisa ficará feia para nós. Eles não se
conformariam...
— Que pretende dizer?
— Bem... São muitos e, se ficarem cegos, ninguém
conseguirá detê-los.
— Hummm! Acho que você tem razão. Trate de vigiá-
los, Ed.
Preocupado, Sanders montou em seu tordilho e seguiu
para a casa principal do rancho. Era solteirão e dizia
satisfazer-se com poucas coisas, porém os anos fizeram dele
um velho comodista, grande apreciador do conforto. Já
estava começando a amaldiçoar o momento em que
encontrara ouro em suas terras. Isso perturbaria a sua paz,
justamente quando ele se considerava um homem realizado.
Aqueles cretinos estavam estragando a digestão do seu café
da manhã!
Aproximava-se da casa, disposto a meditar sobre os
últimos acontecimentos, quando ouviu um tropel. Teria
visitas.
— Quem pode ser? — rosnou.
Walt não respondeu, limitando-se a esperar que se
dissipasse a bola de poeira na qual chegavam envolvidos os
cavaleiros. Os três se aproximaram, sorridentes.
— Vocês — rugiu Sanders, subindo ao alpendre da casa.
Os três homens desmontaram e também subiram ao
alpendre. Dois deles se instalaram em cadeiras e o terceiro se
encarrapitou na balaustrada.
— Qualquer um diria que não se alegrou de nos ver, Peter
— protestou James Temple. que estava na balaustrada.
— Pois é verdade, Temple. Não me alegro em absoluto.
Gorget deu sua risadinha sarcástica.
— Era o que temíamos, não é verdade, rapazes? —
zombou. — Nem bem encontra ouro em nossas terras e
Sanders esquece...
— Podemos refrescar-lhe a memória — cortou Groves,
com voz profunda, quase insuspeita, vinda da garganta de
um esquelético.
Era o único dos três que se vestia como mendigo e
parecia jamais ter penteado os cabelos avermelhados.
Prosseguiu:
— Agora, como aconselha a mais elementar
hospitalidade, nosso amigo Peter Sanders nos convidará a
entras e nos brindará com um uísque escocês dos mais puros.
Não é verdade, Sanders?
Peter Sanders não se atreveu a negar. Estava nervoso,
pálido, pois conhecia muito bem a escória que o visitava em
momento tão inoportuno. Isso simplesmente porque era um
deles... e como eles.
— Está bem. Venham para dentro. Faz muito calor cá
fora.
— Estão vendo, garotos? — sorriu o porcalhão do
Groves. — Peter é o mesmo de sempre: um cavaleiro.
Os três entraram no salão do rancho que, forçoso é
admitir, fora decorado com muito gosto, graças ao
inteligente aproveitamento de mobiliário rústico, O
candelabro era uma roda de carroça, pendurada pelo cubo e
com lampiões no aro. Uma sela, instalada sobre quatro pés
de pau-de-mato, formava gracioso tamborete. Outras peças
revelavam igual bom gosto. Na verdade, Peter Sanders fora
educado no leste e tinha boas maneiras. Estava intensamente
pálido, quando colocou os copos e a garrafa de uísque na
mesinha rústica, situada bem no centro de um semicírculo
formado por um sofá e quatro poltronas também rústicas, de
couro. Tentou sorrir.
— Bem, aqui está o uísque de primeira que recebi
diretamente da Escócia... Bebam e falem à vontade.
Groves, o ruivo imundo, serviu-se de uma dose cavalar e
bebeu ruidosamente, dando uma cusparada no chão, como se
estivesse no pior dos saloons.
Enxugou os beiços com as costas da mão, estalou a língua
e comentou cínico:
— Isto, sim, é passar bem!
— Falem de uma vez! — gritou Sanders, descontrolando-
se
Gorget armou um sorriso irônico.
— Está bem, amigo Sanders, viemos falar com você, mas
primeiro deverá confirmar a existência de um veio aurífero
em nossas terras.
— Ah!... Era isso, hem? Pois bem, é certo que existe ouro
em minhas terras! — frisou possessivo.
— Maravilhoso! — exclamou James Temple com
cinismo — Não acham, rapazes? É a nossa oportunidade de
enriquecer
— Não! — gritou Sanders, com a fisionomia
congestionada. — Está em minhas terras e me pertence,
entenderam? — Esse ouro é todo meu!
Os outros três se olharam, fazendo cara de perplexos.
— Não entendo essa atitude de Peter! — quase gemeu
Groves. — Afinal...
— Eu não disse? Continua o mesmo egoísta de sempre...
— falou Gorget. — Sempre fomos seus amigos e protetores,
cedemos-lhe parte de nossas terras quando... Bem para que
lembrar aquilo? Durante dezoito anos, gozou de uma
situação formidável, graças a nós, e agora...
Gorget fingia estar profundamente magoado pela
ingratidão de Sanders, e Groves passou a brincar com um
longo punhal, cravando-o repetidas vezes no tampo da
mesinha. De repente, o punhal silvou no espaço e se cravou
no braço de uma cadeira, a poucos centímetros da mão
esquerda de Sanders, que a recolheu instintivamente,
encolhendo-se todo. Groves se levantou, arrancou o punhal
do braço da cadeira e tomou a sentar-se, como se nada
tivesse acontecido.
— Está bem — gemeu Sanders. — Que me propõem?
— Oh, não exigiremos absurdos, amigo Peter. Apenas
repartiremos essa fortuna, como sempre fizemos com tudo
desde que “ganhamos” a fabulosa fazenda “Esperança”.
Lembra-se de que até lhe deixamos aquela mulher gostosa
e...
— Era uma senhora! — cortou Sanders, sem dúvida
arrependido do crime que praticara dezoito anos antes. —
Era uma senhora casada, mãe de família, e nós fomos uns
canalhas da pior espécie!
— Sim, talvez, Peter, mas graças a isso você saciou seu
apetite carnal e passou a viver com todo conforto que se
pode esperar no oeste — argumento James Temple.
— Isso não importa. Eu jamais tomaria a cometer
tamanha sordidez. Até hoje acordo dentro da noite
sobressaltado, julgando ver aqueles olhos negros enormes,
suplicantes, transtornados pela demência que nós causamos
com uma brutalidade sexual. Clara Conde Bolton era uma
dama, cuja honradez nós, sim, nós quatro, manchamos
impiedosamente!
James Temple deu um assobio agudo.
— O garoto ficou moralista... — zombou.
— Isso é do passado, Sanders — interveio Gorget. —
Graças a isso, pudemos apossar-nos da fazenda “Esperança”
e, agora, encontrar ouro.
— Que me pertence — murmurou Sanders, nesse
momento inteiramente dominado pelos remorsos.
— Caramba, Peter, você se nega a repartir conosco o que
possa encontrar nessas jazidas?
— Acertou.
— Bem. Se é assim, contemos um pouco a história.
Lembra-se de Nathaniel Bolton? Claro... Já esqueceu o que
esse homem prometeu na sala do júri, ao ser condenado?
— Claro que me lembro. A que vem isso?
— Muito simples, amigo Peter Sanders. Dentro em breve,
esse mesmo homem terá cumprido a sua pena de vinte anos e
virá para este lugar, disposto a vingar-se. Ele jurou... Só nos
resta saber por onde ele começará. E quem melhor do que
Peter Sanders para Nathaniel Bolton começar sua vingança,
se foi o homem que teve o privilégio de ser o primeiro, que
exigiu ser o primeiro a violentar sua esposa?
O suor escorreu pela testa de Peter Sanders.
— Acha que isso me amedronta? Ele não conseguirá
chegar até mim.
Gorget deu uma risadinha.
— E se alguém lhe facilitar a ação? — indagou, com
malícia.
As gotas de suor tornaram-se mais numerosas na testa de
Sanders, para se transformarem imediatamente em filetes
que corriam por todo o seu rosto. Ele piscou, evitando que
elas lhe entrassem nos olhos.
Gorget prosseguiu, friamente:
— Por outro lado, se nos mantivermos bem unidos como
até o presente...
— Cínico! — berrou Sanders. — Nunca fomos unidos! E
nunca fomos amigos! Aquela foi a nossa mais covarde
aventura e desde então procuramos destruir-nos
mutuamente!
Gorget, Temple e Groves se olharam. Era tudo verdade,
porém agora, cegados pela febre do ouro, pretendiam unir-se
em benefício mútuo.
— É possível que você tenha razão, Peter — admitiu
Gorget. — Não obstante, agora unidos, poderíamos desfazer-
nos facilmente desses suposto vingador e desfrutar
placidamente de nossa riqueza. Não acha que estou certo?
— Não — negou Sanders, num suspiro angustiado. —
Saberei enfrentar esse homem, quando ele chegar.
— Está bem, Sanders — sorriu Gorget. — A despeito de
tudo, nós lhe concederemos um prazo de vinte e quatro horas
para que você reconsidere suas palavras. Afinal, viveu horas
emocionantes com a descoberta de nossas jazidas e não pôde
raciocinar friamente. Acabará se convencendo de que o mais
conveniente para você será aliar-se aos seus velhos
companheiros de patifarias.
— Não necessito de prazo algum, Gorget. Já decidi.
— Como queira — cortou secamente James Temple, que
era o único jovem do grupo. — Mas não esqueça que lhe
oferecemos nossa amizade no momento oportuno.
— Besteira! Fora! Fora daqui, seus invejosos!
— Não lhe será assim tão fácil livrar-se de nós —
prosseguiu James Temple. — Saiba que estamos
absolutamente convencidos de nosso direito sobre parte
dessa fortuna.
— Falou pouco, mas bonito — opinou Groves,
apoderando-se da garrafa de uísque. — Caso tivesse sido eu
o afortunado, teria corrido para comunicar aos meus três
sócios que a fortuna acabara de bater à nossa porta...
Peter Sanders deu uma risada.
— Continua o sujo de sempre, Graves. Moral e
fisicamente sujo. E nunca...
Calou-se, ao receber uma garrafada na cabeça. Caiu
sentado no chão, permanecendo encostado na beira do
assento da poltrona, de olhos em branco.
— É só um aviso, Peter Sanders — falou Groves, com
ódio na voz. — Apenas um aviso. Vamos, meninos.
Os três saíram ao alpendre, montaram e se afastaram a
galope desenfreada, temendo, por certo, que o agigantado
Walt, o pistoleiro Ed ou qualquer dos outros homens de
Sanders, ao ver o patrão naquele estado, começasse a atirar
loucamente. Com tanto ouro ao alcance da mão, seria
inconcebível morrer.
Peter Sanders se refez do impacto. Enxugou com o lenço
o sangue que lhe escorria da cabeça para a têmpora esquerda.
Ouro e sangue. A dupla inseparável nos domínios da
ambição. Sacudiu a cabeça, decepcionado com a vida.
Ainda por cima, dentro em breve, chegaria Nathaniel
Bolton, cujo lar honrado, ele, Peter Sanders, ajudara a
macular... por ambição.
— Amaldiçoado ouro! — urrou. — Terras amaldiçoadas!
CAPÍTULO SÉTIMO
Resolvendo por eliminação.

Ao entrar mal-humorado no “Ferradura”. Fred quase


derrubou um sujeito meio bêbado que se dispunha a sair.
Desculpou-se com um grunhido e chegou até o balcão, após
abrir caminho aos empurrões.
Estava amolado com o clima criado em Gelson pela
repentina febre do ouro, pois sabia perfeitamente que tal
fortuna não existia e estava amaldiçoando o velho Rawlins.
Afinal, por onde andaria o maluco? Tomara que já tivesse
ido diretamente para o inferno!
A essa altura dos acontecimentos, Fred Colman se
considerava um imbecil por ainda não ter dado o fora
daquele povoado. Sentia-se seguro de que, se pedisse, Clara
o acompanharia para o seu ranchinho texano. Não obstante,
seria impossível ignorar que ela passara a vida aguardando a
chegada do pai e sofreria bastante se desaparecesse de
Gelson justamente quando ele já estava para chegar.
A propósito: o que ocorreria quando Nathaniel Bolton
chegasse? O povoado estava dominado por uma alucinação e
qualquer um morria ali pelo mais insignificante motivo, dada
a alta tensão nervosa reinante. Em boa situação o metera seu
amigo Paul.
Pediu um uísque.
— Olá, rapaz. Não se deixou seduzir pelo ouro?
Fred reconheceu prontamente a voz de Gorget e, virando-
se surpreendeu-se bastante, vê-lo quase de mãos dadas com
James Temple e Groves, o magricela cruel dos cabelos
vermelhos.
— Em compensação, você parece fascinado, bem? —
zombou.
Gorget sorriu, como sempre.
— Que pretende dizer com isso?
Estavam separados por dois bêbados e Fred os empurrou,
antes de rebater:
— Por que mandou seus homens contra aquele velho
caçador de ouro? Que esperava ganhar?
— Eu lhe garanto que...
— Não minta, Gorget — cortou secamente Fred. — Eu
mesmo tive de matá-los. Que buscavam?
— Ah... Agora compreendo. Pareceu-me ilógico que
aquele velho, sozinho, liquidasse aquela dupla de imbecis.
— Isso não é uma resposta, Gorget.
— Bem. Na verdade, pareceu-me que aquele velho
ocultava algo, sabe? Sempre com um saco volumoso. Seria
ouro? Espero que não fique ressentido por isso. Era muito
seu amigo?
Fred grunhiu algo ininteligível. Amigo do velho Rawlins?
Bah!
— O que você fez só pode ser classificado como
canalhice, Gorget. Ah! Vejo que James Temple é seu bom
amigo... E quem é esse fantasma enferrujado?
Groves apertou os lábios, acariciando o cabo do punhal, e
Gorget, sempre sorrindo, explicou:
— Esse é Groves. Nós três somos velhos amigos.
— Quando me falou, no outro dia, não me pareceu que
assim fosse. Você é um cínico, Gorget.
James Temple se mexia, inquieto, pois não ignorava que
aquele rapagão esguio, todo de preto, era um relâmpago com
as armas nas mãos e dotado de uma coragem quase suicida.
Estava absolutamente certo de que, ferido ou não, levaria a
pior num confronto leal. O certo seria colher de surpresa o
“Vaqueiro Negro”.
Groves passou a beber sofregamente, dirigindo olhares
furtivos de ódio a Fred Colman.
Os três canalhas pareciam unidos com algum firme
propósito. Por outro lado, o velho “semeara” ouro nas terras
de Sanders. Que podia significar tudo isso em conjunto?
Aqueles homens eram, incluindo Sanders e substituindo-se
Clement Temple pelo filho James, os quatro que haviam
destruído a vida dos Bolton, Justamente os que Nathaniel
Bolton prometera matar.
— Lamento o que meus rapazes tentaram contra o
mineiro, porque isso voltou você contra mim rapaz —
declarou Gorget. — Quero ser seu amigo; mais do que isso,
seu aliado. Necessito muito de você, sabe?
— Para matar James Temple?
Gorget riu desconcertadamente, olhando de soslaio para
James.
— Oh, não, não. Por enquanto, não. Trata-se de outra
coisa. Neste assunto, Temple e Groves são meus amigos.
— Ah... — fez o “Vaqueiro Negro”, vergando os olhos.
— Então, suponho que será algo relacionado com Sanders,
não?
Gorget franziu a testa. Seus olhos brilharam e o sorriso
cínico que o caracterizava desapareceu de seus lábios.
— Por que mencionou Sanders? Que sabe dele e de suas
relações conosco?
— O que todos sabem, Gorget. Vocês são quatro grandes
canalhas.
Graves começou a extrair lentamente da cintura seu
punhal afiado e os freqüentadores do “Ferradura” se
colocaram a uma distância prudente, fora da possível linha
dos tiros e... do punhal. James Temple mostrava-se tenso, na
expectativa de um embate.
— Eu gostaria que você fosse mais explícito, jovem —
disse Gorget, sério. — Quem é você? Que sabe de nós?
— Eu sou Fred Colman e sei que vocês nasceram para
serem enforcados. São criminosos de nascença...
— Tolices que a ninguém beneficia — cortou Gorget.
— Eu lhe ofereço uma boa “fatia” para livrar-nos de
Sanders. Na verdade, é um direito que nos assiste, sabe? —
baixara a voz para continuar. — Esse descarado sempre
viveu às nossas custas, pois repartimos com ele a fazenda
“Esperança”, sem obrigação alguma de fazê-lo. Portanto,
esse ouro nos pertence a todos em partes iguais e o usuário
se nega a entender isso.
— Por que você não o mata pessoalmente Gorget?
O velho deu uma risadinha.
— Todos ficariam sabendo imediatamente. A coisa deve
ser feita por um desconhecido.
— Entendo. E depois de Sanders quem morrerá de vocês
três? Ninguém, em sã consciência, acreditaria numa
harmonia entre três canalhas da pior espécie.
A pergunta e o insulto levaram os três a trocarem olhares
entre receosos e feridos. E Fred Colman compreendeu tudo,
soltando uma estrondosa gargalhada, que deixou a todos
boquiabertos, inclusive os curiosos que, vencendo o temor da
morte, tinham permanecido no saloon. O fato era que todos
esperavam um tiroteio, principalmente iniciado pelo
forasteiro e, no entanto, era ele quem parecia manter
absoluto controle dos nervos, a ponto de rir gostosamente.
— Ainda não respondeu, Gorget — declarou Fred,
parando de rir. — Quem morrerá depois de Sanders7
Desta vez, os três homens não se entreolharam,
permanecendo imóveis, tensos, cada qual calculando suas
possibilidades de ser o próximo, pois não lhes cabia dúvidas
de que Fred acertara em cheio sua previsão.
— Está dizendo tolices, Fred Colman — tentou sorrir
Gorget. — Por que há de morrer mais gente?
— Não devemos dar atenção a esse sujeito — interveio
James Temple, ligeiramente pálido. — Ele pretende semear a
desconfiança entre nós.
Fred deu um passo, colocando-se diante dele.
— Eu lhe disse no outro dia que, da próxima vez que nos
encontrássemos eu o mataria, James Temple — declarou,
com as mãos oscilando a pouca distância dos Colts, fazendo
Temple empalidecer mais. — Mas não pretendo fazê-lo
neste momento. Creio que os três já estão marcados para
morrer. Há muito tempo que estão marcados...
— Mar... marcados? — gaguejou Gorget, intensamente
pálido.
— Foi o que eu disse. E pare de brincar com esse punhal,
Groves, se não quer saborear alguns gramas de chumbo.
A mão direita de Groves saltou do cabo do punhal para
bem longe, indo parar ostensivamente no balcão.
— Que sabe de nosso passado? — indagou. — Por que
falou desse modo?
O tom de voz de Groves e as fisionomias dos três
canalhas fizeram os poucos curiosos entenderem que aquele
diálogo resvalava perigosamente para um desfecho fatal e
ninguém duvidava de que o “Vaqueiro Negro” saísse
vencedor, a despeito de estar em minoria, dada a sua
espantosa agilidade com as armas. Alguns homens ainda
tiveram ânimo para se apoderarem de seus copos antes de se
afastarem; porém a maioria simplesmente correu para bem
longe, quase se amontoando a um canto do saloon.
— Ainda não adivinharam?
A pergunta viera da porta do saloon, e Fred olhou de
soslaio, deparando com Sanders, que avançava acompanhado
de três homens, dentre os quais seu capataz Walt, seu
pistoleiro Ed e outro matador profissional, desconhecido no
povoado.
— Sanders! — exclamou Temple.
— Sim, eu imaginei que os encontraria reunidos aqui —
disse ele, dando uma gargalhada de boçal, embora fosse
normalmente educado. — Não se surpreendam rapazes. A
verdade é que estive pensando longamente na proposta que
me fizeram e resolvi aceitar a módica importância de cem
mil dólares pela minha parte na fazenda “Esperança”. Até já
trouxe a escritura preparada. Vejam.
Sorria, vendo a cara de assombro de seus três comparsas
de canalhices.
— Enlouqueceu! — indagou Gorget, com voz apagada.
— Claro que não. Mas estou absolutamente certo de que
acabaria doido varrido se continuasse aqui. Vocês acham que
todo o ouro deste mundo vale a vida de um homem?
— Podemos defender sua vida, Sanders — argumentou
Gorget. — Nunca fomos covardes.
— Estou velho! — declarou Sanders, parecendo sincero.
— Mas... não compreendo... — balbuciou James Temple.
— Vocês me abriram os olhos. Lembram-se de Nathaniel
Bolton com sua promessa de vingança? Pois acho que...
Enfim, estou com medo e disposto a dar o fora o mais cedo
possível. Cem mil dólares e ficarão com todo o ouro do meu
rancho. Seguirei para o leste.
Temple deu uma risada, após sobrepor-se ao espanto.
— Por mim, negócio feito, Sanders. Creio que os demais
também estão interessados.
— Claro — disseram, em coro, Gorget e Groves. —
Podemos concluir o negócio ao amanhecer.
— Terá de ser agora mesmo.
— Mas... — sorriu Gorget, sem compreender. — Não
dispomos de tanto dinheiro neste momento, Peter.
— Nesse caso, terei de arranjar outro comprador, porque
estou decidido a sumir daqui hoje mesmo.
— Espere! — exclamou Gorget, temendo perder a
oportunidade. — Podemos ir à casa de Smiles expor a
situação. Como diretor do Banco, ele nos pode adiantar esse
dinheiro.
— Bem pensado — admitiu Sanders. — Aproveitarei
para retirar meus depósitos, o que, na verdade, já pretendia
fazer após uma conversinha com Smiles.
Pesado silêncio imobilizava por completo o “Ferradura”,
porque Sanders falara o tempo todo bem alto e ninguém
compreendia como lhe ocorrera a idéia maluca de vender
suas jazidas auríferas por apenas cem mil dólares. E Fred
dava tratos à bola. Teria o velho Sanders descoberto o truque
de Rawlins? Só assim se entenderia aquela jogada.
— Vamos, Sanders — convidou Gorget, eufórico. —
Tudo estará terminado em poucos minutos. Ainda está em
tempo de desistir e se aliar a nós na exploração das...
— Vamos! — corou Sanders, encaminhando-se para a
saída.
— Só espero que não se trate de alguma jogada suja
declarou Groves, desconfiado, namorando o punhal.
— Eu não perdoaria, sabe? — riscou o ar com o punhal,
quase decepando a ponta do nariz de Sanders, que recuou a
cabeça instintivamente, empalidecendo.
— Será a mais limpa jogada de minha vida, Groves.
Graças a ela, além de garantir a minha vida, ainda por cima
terei cem mil dólares para recomeçar rio leste.
— O mesmo covarde de sempre... — murmurou Temple,
torcendo o nariz.
Antes de sair, James Temple fez um sinal discreto a seus
homens que bebericavam no balcão. Groves e Gorget
perceberam e sorriram com maldade,
Fred, impressionado com a astúcia de certo homem, saiu
atrás do grupinho, para não perder o espetáculo. Os
pistoleiros de Temple não perceberam sua saída.
A rua estava solitária, quando Sanders e os outros três
caminharam nas sombras, buscando a casa de Smiles.
— Pensando bem, você esta agindo certo, Sanders —
falou Gorget. — Afinal, podia ter vendido o rancho a outro
qualquer, mas se lembrou dos velhos companheiros.
— Com isso, espero que me esqueçam para sempre —
sorriu Sanders.
— Parece realmente assustado — comentou Groves.
— E estou. Confesso que não gostaria de estar na pele de
vocês.
— Besteira! — irritou-se Groves.
Dito isso, o ruivo olhou para Gorget e Temple, lendo nos
olhos de ambos o mesmo pensamento que lhe ocorrera. Sim,
a coisa seria rápida. Todas as portas e janelas das casas de
gente decente estavam fechadas, não havendo pessoa alguma
nas ruas. Não haveria testemunhas...
Gorget fingiu ajeitar a bota após tropeçar, atrasando-se
um pouco, sem que Sanders atribuísse importância ao fato.
De repente, empunhou uma faca de vaqueiro e, de um salto,
cravou-a nas costas de Sanders, atravessando-lhe o coração.
Sanders despencou, sem um suspiro, e Groves se limitou
a comentar, com absoluta frieza:
— Era um imbecil. Vir ao nosso encontro trazendo a
escritura já assinada...
— Agora é só apanhá-la e fazer desaparecer o cadáver —
disse Gorget, tranqüilamente.
— Certo — aprovou Groves, inclinando-se para revistar
os bolsos do defundo até encontrar a escritura.
— Bem, aqui está. Vou guardá-la comigo.
— Por que você? — indagou James Temple, com voz
sibilante.
— Tanto faz, não acham? Terá de ficar com um de nós, a
menos que seja cortada em três pedaços...
Enquanto ele falava, Temple virou-se, supondo ter ouvido
o ruído de passos no extremo da rua. Groves sorriu,
empunhando o punhal. James Temple também sorriu. No
momento exato em que Groves ergueu o braço para feri-lo
pelas costas, depois de piscar o olho para Gorget. o
imprevisível Temple virou-se e disparou seu pequeno
revólver que trouxera oculto na tipóia. Foram dois
estampidos secos.
— Mi...serável! — gemeu Groves, despencando de olhos
arregalados, morto.
Sem guardar a arma, James Temple ordenou, incisivo:
— Vamos, Gorget, recolha a escritura.
Gorget empalidecera porque, embora Temple não lhe
apontasse o pequeno revólver, seria capaz de matá-lo
friamente.
— Primeiro guarde a arma, James — exigiu. — Ela me
deixa nervoso...
James Temple deu uma risadinha zombeteira.
— Bobagem, Gorget. Agora necessitamos um do outro.
Tenho o pressentimento de que um perigo se aproxima.
Juntos, poderemos enfrentá-lo.
— Está bem.
Gorget, tateando o cadáver de Groves, mas com o olhar
fixo em James Temple, acabou encontrando a escritura.
Ergueu-se ligeiro e respirou fundo, ao constatar que James
mantinha a arma apontada para o chão.
— Agora, vamos depressa ordenar aos rapazes que
removam estes corpos — disse James, ocultando o revólver
na tipóia. — Embora seja natural que suspeitem de nós,
sempre caberá a possibilidade de duvidarem. Os dois podem
ter-se eliminado a tiros, não?
— Claro.
— Meus rapazes se aproximam, Gorget. Eu já estava
prevenido.
Os olhares dos dois patifes se chocaram duramente.
Odiavam-se demais, sem poder evitar esse sentimento.
Afastaram-se dos cadáveres e olharam para os dois extremos
da rua.
Silencio absoluto. O fato de terem sido feitos três
disparos não era suficiente para arrancar ninguém da cama,
porque os tiros faziam parte das noites de Gelson.
Recuaram até se ocultarem num portal escuro.
— Quem será o próximo?
Temple e Gorget estremeceram, sobressaltados.
— Fred! — gemeu Gorget. — Você... nos seguiu?
— Claro. E vi tudo.
Os dois patifes sentiram-se gelar.
— Está... está enganado, Fred — conseguiu balbuciar
Gorget. — Esses homens se mataram e...
— Com a boa ajuda de vocês, não? Que sorte, bem,
rapazes? Repito a pergunta: qual será o próximo?
Os dois homens permaneceram imóveis, desconcertados,
até que novamente Gorget se animou a argumentar:
— Por que um de nós teria forçosamente de morrer,
Fred? Como aliados, nada devemos temer.
— Nem a vingança dos Bolton?
Gorget conseguiu sufocar um gemido de terror e James
Temple estremeceu violentamente.
Estariam diante de Paul Bolton, o filho de Nathaniel
Bolton e Clara Conde Bolton? Se assim era, podiam
considerar-se mortos, porque aquele rapagão era o próprio
Satanás com as armas nas mãos. Moveram a cabeça
lentamente para se olharem, buscando apoio mútuo.

CAPITULO OITAVO
Um só homem pode ser o estopim

Fred Colman viu os dois homens estremecerem


violentamente.
— Bolton... Bolton está na penitenciaria... — murmurou
Gorget, interrompendo-se para encarar Temple.
Compreendeu que seu comparsa tivera o mesmo
pensamento. Sanders agira tão ligeiro por saber de algo...
algo que estaria para acontecer.
— Tolice! — exclamou James Temple, confirmando que
Gorget adivinhara seu pensamento. — Até o momento não
vimos Bolton e ele não se atreveria a nos enfrentar.
Fred deu uma risadinha.
— Por ventura você... você...! Amaldiçoado! Você é Paul
Bolton!
— Não, Gorget, eu não sou Paul Bolton. Eu...
Interrompeu-se, ao perceber que vários homens
avançaram, e Temple, dando um grito de júbilo, lançava-se
ao chão, ordenando:
— Fogo, rapazes! Encham os dois de chumbo!
Porém Gorget também se atirou ao chão e os dois rolaram
em busca de proteção, enquanto os homens de Temple se
separavam em leque, dominando por completo a situação.
Fred continuou de pé no portal escuro, mas, furioso,
sacou os Colts e fez vários disparos, com o que denunciou
sua presença. Uma chuva de balas transformou em paliteiro
o portão de madeira, no momento exato em que Fred,
prevendo essa reação, tocou o solo com o joelho direito, pai-
a fazer novos disparos. Dali, correu abaixado e atirou de
vários pontos diferentes, desconcertando os atacantes o
suficiente para escapar vivo. Os pistoleiros de Temple se
haviam espalhado demais e agora trocavam tiros entre si,
imaginando dar combate ao inimigo.
Mas onde estavam James Temple e Gorget? Fred os vira
correr para um dos extremos da rua, pelos alpendres, rentes
as fachadas das casas. Sorriu, Os imbecis tinham imaginado
que os seis pistoleiros de Temple seriam suficientes para
liquidá-lo e agora os matadores se liquidavam
estupidamente.
Ouviu passos ligeiros e se virou, com os dedos nos
gatilhos.
— Não, Fred, sou eu, Jane!
Ele retirou os dedos dos guarda-gatilhos, rosnando:
— Que faz aqui, sua maluca! Não está vendo chover
chumbo?
— Fred! Você está ferido!
— Conseguiram acertar-me de raspão na coxa esquerda,
mas isso não me imobiliza. Trate de dar o fora, Jane. Deve
tranqüilizar Clara, porque ela sabe que gosto de andar pelas
ruas à noite e deve ter ouvido os disparos.
— Sim, está certo, mas insisto em que me acompanhe,
porque, do contrário, vai-se esvair em sangue. A perna está
sangrando muito e...
Levou um empurrão e caiu na calçada de tábuas de um
alpendre, com a impressão de que seus ouvidos iriam
estourar porque Fred fez dois disparos rentes à sua cabeça.
Um pistoleiro que os ouvira tentara alvejá-lo. Jazia com o
corpo na poeira da rua e as pernas no piso de tábuas do
alpendre.
— Vamos, Jane, porque meus disparos atrairão outros
pistoleiros.
— Faremos uma volta para chegar à minha casa — disse
ela, levantando-se depressa.
Era perfeita conhecedora do lugar e, graças a isso,
conseguiram mover-se silenciosamente por entre as casas,
sem serem vistos.
— Cretinos! — exclamou Fred, a certa altura, apoiando-
se em Jane, para caminhar ligeiro. — Se soubessem que
estão lutando pelos homens que mataram Sanders e Groves...
Quando ia bater na porta, esta se abriu.
— Meu Deus! — gemeu Clara, afastando-se. — Entrem.
Fechou a porta e Fred deixou-se cair sentado no sofá,
com a perna estendida.
— Como foi isso, querido?
Sem entrar em detalhes, Fred lhe contou o que se passara
minutos antes.
— E... e meu pai?
Fred, surpreso, murmurou:
— Você também já sabe?
— Sim, eu sei, Fred. Ele veio me visitar.
— Ah... Deve estar orgulhoso de sua astúcia, não? Como
se poderia suspeitar de um vagabundo caçador de ouro, de
um minerador fracassado? O velho Rawlins... Bem, creio
que tudo chegou ao fim, Clara.
— Sim, mas onde está ele agora?
Fred pensou seriamente no assunto e murmurou,
preocupado;
— Não sei ao certo, mas imagino, Clara. Há de querer
testemunhar o desfecho de sua vingança. Caramba, agiu
como só poderia ter feito um homem que teve dezoito anos
para idealizar todos os detalhes!
Jane e Clara se olharam, preocupadas. Fred perdia muito
sangue e, conquanto não mostrasse estar enfraquecido, cedo
começaria a fraquejar, e elas necessitavam dele. Entregaram-
se à tarefa de tratar de sua perna e Clara quis saber:
— Que opina sobre a idéia de meu pai de se manter
incógnito até mesmo para mim, durante esses dias?
— Muito simples: se você soubesse, talvez se deixasse
trair por uma reação instintiva, ao vê-lo em perigo. Seja
sincera e responda se poderia controlar-se, vendo-o
espancado ou coisa parecida.
Clara sorriu.
— Não, eu não suportaria.
— E daria um desses gritinhos que vocês, mulheres,
empregam para... nos proteger.
— Não seja bobo!
Jane deu uma risada.
— Será que nunca fica de mau humor, Fred? —
perguntou.
— Para quê? Não resolveria nada.
— Certo. Conte como descobriu que Rawlins é o pai de
Clara.
— Desconfiei quando ele me disse que pretendia semear
ouro. Trata-se de velho truque do qual vocês já devem ter
ouvido falar. Mas de início não relacionei o golpe às pessoas
visadas. Porém, quando Gorget, Temple e Groves se uniram
para se apoderarem do ouro repentinamente surgido nas
terras de Sanders, compreendi tudo. Só não entendo como
conseguiu comprar tanto quartzo aurífero.
— Usou o dinheiro que Inocêncio e eu ganhamos
trapaceando no pôquer.
— Ah... Então, foi assim, hem? Ele sabe como
arranjaram o dinheiro?
— Eu lhe disse quando me visitou e ele só faltou chorar
de desgosto, afirmando que, se tivesse sido informado, teria
sido capaz até de abandonar a idéia de vingança.
— Teria sido melhor... — murmurou Fred.
— Sim, teria, querido, mas agora é tarde e só me
interessa saber onde ele se meteu. Ele pode estar em perigo,
Fred!
— Oh, ninguém poderá suspeitar de que aquele velho
imundo e mentiroso seja o implacável Nathaniel Bolton.
Fred aprovou com um sorriso o curativo feito pelas
mulheres e se levantou.
— Onde pretende ir? — sobressaltou-se Clara.
— Vou buscar seu pai. Creio saber onde, se encontram
ele, Gorget e Temple.
— Mas... não pode sair assim ferido. Além disso, as ruas
estão cheias de pistoleiros à sua procura.
— Ela tem razão, Fred — aprovou Jane.
— Dificilmente darão comigo.
— Se você for, eu também irei — declarou Clara,
fazendo beicinho.
— Não.
— É meu pai e tenho o direito. Já imaginou se ele morre
sem nos falarmos uma vez mais, após tantos anos de...
— Está bem — cortou Fred, compreendendo seus
motivos, mas visivelmente contrariado. — É um risco que
me vejo forçado a correr. Vamos!
— Vocês não podem ir a pé! — disse Jane, com uma cara
muito gaiata — Pretendem andar a pé nesse inferno de
pistoleiros? Tenho um bom cavalo lá nos fundos. Está na
pequena estrebaria. Enquanto Fred sela o animal, arranjarei
uns sanduíches de toucinho de fumeiro frito para o caso de
terem de passar a noite fora. De acordo?
— Não me faça sentir buracos no estômago! — gemeu
Fred, esfregando a barriga.
Os três riram e ele gostou disso, porque atenuou a tensão.
Selou um bonito cavalo castanho-escuro, enquanto Jane
foi até a estrebaria com Clara, levando alguns sanduíches
cheirosos. Fred montou com Clara na garupa e partiram.
— Por que está indo para a fazenda “Esperança”? — quis
saber Clara, falando-lhe ao ouvido.
— Ou muito me engano, ou seu pai está esperando a
chegada de Gorget e Temple na falsa jazida que ele semeou.
— Mas... por que, Fred?
— Ele sorriu.
— Seu pai lhe explicará melhor, querida. Agora, agarre-
se com força, porque este pobre animal vai ter de galopar até
pôr um palmo de língua para fora.
Esporeou o animal, afastando-se ligeiro do povoado onde
reinava um pandemônio. Cheios de álcool e movidos pela
valentia suicida de que ficaram possuídos os homens ante a
perspectiva de encontrar ouro, vários freqüentadores do
“Ferradura” teriam saído à rua, empunhando suas armas,
acabando por meter-se num tiroteio com os pistoleiros de
Temple e Gorget.
Vários morreram estupidamente.
Tudo por causa de um só homem que fizera da vingança
o motivo único de sua existência: Nathaniel Bolton.
CAPÍTULO NONO
No fim de tudo, um desrespeitador!

Enquanto os homens de Temple, agora ajudados pelos de


Gorget, mantinham a distancia o perigoso “Vaqueiro
Negro”, os dois canalhas montaram em seus cavalos,
lançando-os em furioso galope rumo à fazenda “Esperança”.
— Você acha mesmo que aquele sujeito é Paul, filho de
Nat Bolton? — indagou a certa altura Gorget, ofegante.
— Claro! — rosnou Temple. — Quem mais pode ser?
Acha que algum maluco compraria a sua briga conosco?
— Tem razão. Sabe? Estou ansioso para ver, para segurar
nas minhas mãos aquela riqueza!
— Eu também. Será um veio tão rico quanto afirmava o
estúpido do Sanders? Só vendo...
— É o que vamos fazer, amigo Temple.
“Amigo Temple... Cretino! Pensa que não sei que na
primeira oportunidade tentará livrar-se de mim para ficar
com tudo!” — pensava Temple.
O pensamento de Gorget não era muito diferente do seu:
“Amigo. Sim, no momento está sendo amigo, ajudando-me a
tomar posse da riqueza. Pensa que acredito nele. Na
primeira oportunidade me meteria chumbo no bucho. Mas
sou mais esperto. Veremos quem fica com tudo...”
Foi alimentando tais pensamentos malignos que a dupla
entrou na parte da fazenda “Esperança” em que Sanders
erguera o seu rancho. Ao chegarem a pequeno bosque, os
patifes desmontaram, por sugestão de Gorget, que havia
proposto:
— Seguindo o curso do riacho, teremos a sensação de
estarmos nós mesmos descobrindo o ouro...
— É — fez Temple, entusiasmado. — Como nos velhos
tempos, segundo me contava meu pai.
“Nos velhos tempos! Aquele canalha nunca foi mineiro
na vida dele. Sempre preferiu roubar as minas dos outros. O
filho é igual a ele!”
“Esse canalha pensa que me engana com essa história de
descobrir ouro. Nunca descobriu nada. Meu pai me contava
que esse ladrão se limitava a esperar que os mineradores
dessem com um veio para ir na frente registrá-lo em seu
nome. Mas desta vez será diferente...”

Caminhavam com as botas metidas na água fresca e


ambos sabiam muito bem que apenas um sairia vivo daquela
visita noturna. Qual dos dois? Cada um se imaginava o
sobrevivente.
— Ali, Gorget! — gritou Temple, exultante. — Está
assinalado com piquetes!
Os dois correram fazendo a água salpicar, sem
perceberem que, sentados no chão, encostado-se a um dos
altos piquetes, encontrava-se alguém.
— Olá...
Temple e Gorget estacaram, sentindo o sangue lhes sair
milagrosamente do corpo por efeito do susto.
— Que faz aqui, velho amaldiçoado dos infernos! —
rugiu Gorget, furioso.
— Vim apenas ver isso, amigo. Há anos que venho
tentando e nunca cheguei a encontrar um veio.
— E como chegou até aqui? — quis saber Temple.
— Bem. Ninguém impediu e eu me limitei a vir andando
pelo riacho. É de vocês?
— Claro — jactaram-se Temple e Gorget, juntos.
— Sou profundo conhecedor de jazidas e sei que isto aqui
contém uma fortuna incalculável.
Levantou-se e, só então, Gorget o reconheceu:
— É o velho Rawlins...!
— Sim, sou eu, o mineiro fracassado. Não queria morrer,
sem antes ver um veio de primeira, como este.
— Espero que não guarde ressentimentos por eu ter
mandado aqueles dois homens contra você — sorriu Gorget.
— Eu o tomei por outra pessoa, sabe?
Rawlins sorriu, com a mais santa inocência.
— Ah... Bem que me estranhou o seu interesse por um
velho que não tem onde cair morto.
— Bem, agora que já matou seu desejo de ver ouro, trate
de dar o fora, porque está em propriedade alheia — meteu-se
Temple.
Rawlins sacudiu a cabeça afirmativamente, deu uma
última olhadela para as estacas e começou a andar para uns
penhascos que beiravam o riacho.
— Espere! — chamou-o Gorget. — Este veio é mesmo
tão rico quanto afirmou?
— Talvez um dos mais ricos do mundo. Claro que não o
examinei detidamente, com picaretas e tudo mais, porém
estou convencido de que passarão longos anos antes que ele
se esgote.
— Está bem. Agora, desapareça.
Rawlins se afastou humildemente e os dois homens se
olharam, com olhos cintilantes de cobiça.
— Você ouviu o que disse esse entendido, Temple?
— Claro.
— Vamos dar uma olhadela.
O falso minerador, sorrindo de um modo que gelaria o
sangue nas veias dos dois patifes, começou a meter-se entre
os penhascos vizinhos. Sentou-se numa pedra, disposto a
aguardar os acontecimentos. Seus dezoito anos na
penitenciária lhe haviam servido para tornar-se perfeito
conhecedor do comportamento dos canalhas, pois se vira
forçado a conviver com esse tipo de gente.
Sorriu com tristeza. Agora, chegado o momento supremo
da vingança tão longa e angustiosamente esperada, não
sentia a satisfação que imaginara. Por sua causa, o pobre
Inocêncio fora assassinado e seu filho, sem os pais, saíra por
este mundo de Deus para tentar sozinho a sorte e terminara
seus dias, bem cedo, defendendo seu próprio rancho contra
patifes como Sanders. Groves. Temple e Gorget. Só lhe
restava a filha Clara, a qual logo se casaria Com Fred
Colman e partiria para o Texas, deixando-o sozinho, sem ter
onde cair morto. Sim. porque ele já causara muitas desgraças
e não iria apingentar-se no genro. E sua bela fazenda...
Olhou em redor e pelas frestas entre es penhascos divisou
boa parte da “Esperança”. onde outrora ele fora imensamente
feliz com a mulher e os filhos.
Por que não deixara sua esposa viva? Talvez ela se
refizesse do choque e... Não, impossível. A sua adorada
Clara havia enlouquecido e acabaria cometendo um desatino,
Com grande risco para os filhos. Agira corretamente,
metendo-lhe uma bala na cabeça, perdendo tudo, inclusive
sua fazenda.
Ouviu um grito e apurou os ouvidos!
— É verdade, Gorget! Ouro quase à flor da terra!
De seu esconderijo. Bolton viu os dois homens se
ajoelharem para enterrar os dedos no chão. Riam
nervosamente, como se soluçassem.
De repente, James Temple intuiu que nem tudo ia bem.
Compreendeu que fora um estúpido, voltando as costas a
Gorget. Virou-se e sentiu-se paralisado, hipnotizado pelo
revólver que apontava para a sua cara.
— Cretino... sorriu Gorget. — Acreditou mesmo que eu
repartiria isto com você?
— Gorget... Há ouro suficiente para enriquecer um
povoado inteiro e seremos só nós dois para desfrutar dele —
argumentou Temple, esforçando-se para tocar a razão do
inimigo. — Juntos poderemos defende-lo... Confiei em você
porque acredito em sua inteligência, Gorget. Pense bem e
entenderá que...
— Tão estúpido... — ironizou Gorget. — Acha que não
saberei defender o que é meu? Não entende que com tanto
ouro eu poderei contratar os melhores pistoleiros da União e
viver tranqüilo? É, James Temple, a mocidade tem dessas
surpresas. Os jovens só aprendem apanhando.
James Temple começou a suar frio, mas se apegou ao fato
de que Gorget não iria liquidá-lo imediatamente.
— Gorget, entenda que devemos unir nossas forças para
enfrentar Nathaniel Bolton. Ele já deve estar a caminho.
— Meus homens cuidarão do cretino.
— Mas há também o filho, Paul, que é o demônio em
figura de gente, e a filha. Clara, que por certo também nos
odeia e não hesitaria em nos matar a tiros.
— Besteiras. Quantas besteiras! Antes que qualquer dos
três possa dar o ar de sua graça. meus homens lhes terão
levado os meus cumprimentos amistosos... Com chumbo.
Temple calou-se momentaneamente e, olhando para o
chão. murmurou:
— Gorget, fomos enganados! Este veio é falso!
— Besteira!
— É falso, Gorget. Acabo de atinar com a verdade, acabo
de descobrir quem nos enganou, mas não lhe direi uma
palavra. Sei que de qualquer forma me matará e quero
morrer com a satisfação de sabê-lo fracassado.
Gorget ficou muito sério, começando a transpirar.
— Solte logo essa história. Temple!
— Não Gorget, eu não lhe direi uma palavra a respeito.
Claro como água! Se eu tivesse conhecido Nathaniel Bolton,
sem dúvida teria atinado com a verdade a tempo de me livrar
desta, mas sé meu pai e vocês três conheceram. Não tem
importância. Vou morrer satisfeito. Mas você... Você,
Gorget, além de ficar com um falso veio nas mãos, será
perseguido e morto pelos Bolton. Sim, é isso!
De repente, James irrompeu em estrondosas gargalhadas
nervosas.
— Cale-se! Pare de rir! — gritou Gorget, começando a
crer na história.
— Você... Ah, ah, ah, ah! Você...
James Temple parecia ler enlouquecido e Gorget,
totalmente dominado pela idéia de ter sido ludibriado e ante
a perspectiva de lutar sozinho contra e vingador Nathaniel
Bolton e seus filhos, recuou alguns passos. berrando a plenos
pulmões:
— Pare de rir! Chega! Chega!
Descontrolado, apertou o gatilho várias vezes.
O corpo de James Temple foi sacudido pelos impactos e
tombou de bruços no riacho.
Gorget olhou ao redor, com cara de louco, respirando
ruidosamente. Transpirava demais. Deixou-se cair de joelhos
e cravou os dedos na terra, erguendo as mãos de quartzo
aurífero em pó.
— Não é falso! Não, não é falso! E verdadeiro! E tudo
meu! Agora nada me deterá neste mundo!
— Nem a vingança dos Bolton?
A pergunta, gélida, pausada, grave, parecia ter sido feita
pela própria noite.
— Vamos, Gorget, responda.
Abobalhado, Gorget levantou-se devagar, esquecendo de
recolher seu revólver do chão. Virou-se lentamente, e
murmurou, quase sem forças:
— Você, Rawlins?
— Não, Gorget: eu, Nathaniel Bolton. Gorget ficou
boquiaberto e Bolton sorriu, com ódio.
— Como vê, o velho Rawlins soube aproveitar a luta
entre lobos para vingar-se. Usou a peçonha dos próprios
inimigos, Gorget.
— Você... você é... você é Nathaniel Bolton?
— Está custando a acreditar, hem, canalha?
— Mas... você devia estar em Tulare e...
— Bom comportamento, canalha. Lancei mãos de tudo
para conseguir minha vingança no menor tempo possível,
adiantando-a de três meses, com o meu comportamento
exemplar na Penitenciária de Tulare.
— Ah...! Bo... Bolton, de que servirá a vingança agora,
Bolton! — quase chorou Gorget.
— De muito, canalha. Servirá de muito mais do que você
poderia imaginar. É algo que devo à minha adorada esposa
Clara, aquela que você e seus iguais desonraram.
— Bolton, juro... juro por Deus que não fui eu. Foi
Sanders. Ele exigiu... Foi ele quem conseguiu a informação
de que sua mulher era mexicana e que, com isso, poderíamos
inventar um golpe para nos apoderarmos de sua fazenda.
Mas exigiu, em troca, ser a primeiro...
— O primeiro — repetiu Bolton. com uma entonação
capaz de gelar uma brasa. — E você, Gorget? O segundo? O
terceiro? O quarto? Qual foi a sua vez, canalha?
— Bolton! não me olhe assim! Eu...!
Lembrando-se de seu revólver caído ao chão, inclinou-se
para apanhá-lo. Conseguiu agarrá-lo, mas levou um pontapé
no costado e tombou, recebendo por cima o corpo tenso de
Nathaniel Bolton, que se aferroa à sua mão armada,
travando-se violento forcejo pela posse da arma.
Os dois homens, ambos com quase sessenta anos,
revelaram um vigor raro até mesmo em adolescentes.
Rolaram pelo chão engalfinhados, agredindo-se a joelhadas e
dentadas. Suas respirações eram ruidosas, porque, além de
disputarem a arma, com uma das mãos, com a outra
tentavam estrangular-se!
Nathaniel Bolton deu uma cabeçada na cara de Gorget e
ele, atônito, afrouxou momentaneamente as garras em sua
garganta. Pretendendo aproveitar-se da oportunidade para
lhe arrebatar o revólver. Bolton também o largou. Foi seu
erro, porque, nesse instante, Gorget recobrou o controle da
vontade e, sem vacilar, apertou o gatilho.
Nathaniel Bolton amoleceu em cima dele. Era a vitória, a
riqueza, um futuro esplendoroso. Mas também superestimou
sua situação: empurrou o corpo de Bolton com as duas mãos
e a arma lhe escapou dos dedos. Com um filete de sangue no
canto da boca, Bolton empurrou o revólver para longe e,
reunindo as forças que lhe restavam, agarrou Gorget pelos
cabelos e os dois rolaram até o riacho, onde Bolton
mergulhou a cabeça de Gorget e trepou em cima dele,
disposto a também morrer, se necessário, para finalizar sua
vingança.
Gorget esperneou inutilmente, durante dois ou três
minutos, agitando os braços, mas de repente se imobilizou e,
de sua boca, subiram bolhas de ar.
Morto por afogamento.
Nathaniel Bolton conseguiu arrastar-se para a beira do
riacho, que tinha pouco mais de meio metro de profundidade
naquele trecho. Com um último esforço, arrastou-se, até se
encostar a um dos piquetes e, depois de contemplar os dois
cadáveres, olhou para longe, para a sua fazenda “Esperança”.
— Papai!
O grito fez tremer Nathaniel Bolton, porque ele
reconheceu a voz do sangue. Virou a cabeça e viu Clara se
aproximar correndo, acompanhada pelo “Vaqueiro Negro”,
que puxava de uma perna.
Sorriu.
— Papai, você está... está ferido no peito!
— Não tem importância.
— Como não tem importância, Rawlins... digo, senhor
Bolton!
— Agora, não tem mais importância. Estamos vingados.
— Evite falar, senhor Bolton — aconselhou Fred, depois
de examinar o ferimento e se convencer de que era fatal. —
Quanto menos falar, melhor para o senhor.
— Engana-se, meu filho. Quero falar o mais que puder,
porque estou no fim e desejo saborear minha vingança. É por
mim, por minha querida esposa e por meu filhinho, que eu
nunca mais tomei a ver.
Clara ajoelhou-se ao seu lado e, abraçando-se a ele,
soluçou convulsivamente.
— Não chore, minha filha. Papai está relativamente feliz.
Agora o papai vai para o lado da mamãe e do seu
irmãozinho. Vai satisfeito, sabe? Satisfeito porque vingou a
desonra de nosso lar, vingou sua pobre mãe, vingou...
Você... será feliz com ele, filha, Fred é um bom... um bom...
aaah!
Sua cabeça caiu sobre o ombro de Clara Bolton, que
chorou em silêncio, vencida pela realidade: seu pai estava
morto.
— Vingança! — gemeu. — Sempre a vingança!
Fred Colman, penalizado, segurou-a pelo braço,
obrigando-a a se levantar.
— Sei que a vingança é contra os princípios de Deus, mas
seu pai era assim, minha querida — falou com doçura. —
Cada um é como é e não como os outros querem que seja,
entende? Ele era assim: morreu feliz porque conseguiu
vingar-se. Agora, voltemos ao povoado, a fim de comunicar
o fato e providenciar a remoção do seu pai. É o máximo que
poderemos fazer por ele.
Clara se deixou levar como um autômato. Fred colocou-a
na garupa e lançou o cavalo a galope.
***
— Você está absolutamente certo de não poderem reaver
a fazenda “Esperança”, Fred? — indagou Jane.
— Naturalmente. Ela foi transferida aos quatro canalhas
pelo governo da União e nada podemos fazer. Além disso,
não me agradaria a idéia de continuar num lugar onde os
Bolton foram tão infelizes. Sei que prefere ver-nos por peito,
mas a vida é assim. Jane. Por que não vem conosco? Já
insistimos tantas vezes...
— Venha, Jane — pediu Clara. — Eu a quero como a
uma irmã.
Jane Berger sorriu, com tristeza.
— Cada qual tem seu destino. O meu é alegrar os homens
nos saloons. Querem saber de uma novidade? O cretino do
Sam quase se ajoelhou aos meus pés, implorando que eu
voltasse para o “Ferradura”. E sabem o que eu fiz?
— Na melhor das hipóteses, deu-lhe uma bofetada —
opinou Fred.
— E perder essa oportunidade? Oh, não! Gritei com ele o
quanto quis e exigi cinqüenta por cento da renda de meus
números.
Fred deu um assobio.
— Sabe o que o sem-vergonha respondeu? Que só me
daria cinqüenta por cento dos lucros se eu fosse sua esposa!
Já pensaram na ousadia?
— De fato... — murmurou Clara, sorrindo. — E você?
— Cinqüenta por cento da renda do “Ferradura”, minha
filha! Eu, que já gostava do sem-vergonha, aceitei o pedido
de casamento.
Fred e Clara deram uma risada. Na verdade, todos sabiam
do romance de Jane com o maneiroso cavalheiro do leste que
se estabelecera em Gelson com o único saloon decente do
lugar, o “Ferradura”. Porém estavam longe de imaginar que
acabariam se casando.
Samuel Porter, do alpendre do saloon, via Jane muito
agitada junto da diligência e não foi preciso ouvi-la para
saber o motivo.
“A sem-vergonha acabou me fisgando...” — pensou.
sorridente.
O tratamento entre ambos não era lá muito recomendável,
mas o fato era que se amavam realmente e o casamento
talvez acabasse com suas brigas memoráveis em Gelson. Ou
servisse para tomá-las ainda mais notórias. Só o futuro diria.
***
A diligencia partiu ruidosamente. Fred e Clara, pondo a
cabeça de fora, acenaram para o povaréu que fora se despedir
deles.
— O cavalheiro não poderia ser mais respeitoso?
A pergunta, feita com uma voz cansada mas firme, foi um
gelo na alegria do casal. Fred olhou para a senhora magra,
toda de preto, que lia a Bíblia, movendo os lábios com uma
velocidade inverossímil. Depois, olhou para baixo e
compreendeu: estava com as pernas dos lados dos caniços da
velhota e ela sentia-se praticamente desonrada.
— Perdão, senhora...
— Senhorita!
— Oh! Perdão, senhorita! Eu me entusiasmei,
despedindo-me dos amigos que...
— Pois agora que já se despediu, seja respeitador.
Fred Colman olhou para Clara Bolton com cara de
desamparado e ela, contendo o riso, disse-lhe baixinho:
— Quem mandou ser tão comprido? Bem feito...
Beijaram-se para não rir na cara da velhota e ela,
escandalizada, tapou o rosto com a Bíblia, orando em voz
alta.
Seria uma viagem na base do sermão! Enfim, era último,
preço que pagavam Fred e Clara pelo direito de serem felizes
num racho do Texas.
De coração limpo, porque a vingança ficara para trás.

A seguir: PISTOLEIRO SOLITÁRIO

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