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Na Solidão dos Campos de Algodão

Bernard-Marie Koltès
Um deal é uma transação comercial de valores proibidos ou estritamente controlados, e que se efectua, em
espaços neutros, indefinidos, e não previstos para este fim, entre fornecedores e solicitadores importunos,
através de acordos tácitos, sinais convencionados ou conversas com duplo sentido - a fim de evitar traições
ou vigarices que uma operação destas poderá implicar - , a não importa que hora do dia ou da noite,
independentemente das horas de abertura regulamentar dos locais de comércio homologados, mas
geralmente durante as horas de encerramento desses.

Traduzido Evolutiva da Edição de © 1990 Les …Éditions de Minuit


versão 13.01.99
Tradução e Adaptação
Nuno M. Cardoso

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O DEALER
Se andas cá· fora, a esta hora e neste local, é porque desejas qualquer coisa que não tens, e essa coisa,
eu, eu posso-ta fornecer; pois se estou neste lugar há mais tempo que tu e para ficar durante mais tempo
que tu, e se esta hora, a das relações selvagens entre os homens e os animais, não me afasta, isso é
porque eu tenho o que é preciso para satisfazer o desejo que passa à minha frente. É como um fardo que
sou obrigado a descarregar sobre alguém, homem ou animal, que passe diante de mim.
Por isso eu me aproximo de ti, malgrado a hora, que é aquela em que, em geral, homem e animal se
lançam ferozmente um sobre o outro. Aproximo-me, eu, de ti, de mãos abertas e com as palmas viradas
para ti, com a humildade daquele que propõe face aquele que compra, com a humildade daquele que
possui face àquele que deseja; e eu vejo o teu desejo como se vê uma luz que se acende numa janela, no
alto de um edifício ao crepúsculo. Aproximo-me de ti como o crepúsculo se aproxima dessa primeira luz,
docemente, respeitosamente, quase afectuosamente, deixando cá em baixo na rua o animal e o homem
arrancarem os seus açaimos e mostrarem ferozmente os dentes.
Não é que eu tenha adivinhado o que possas desejar, nem que tenha pressa de o saber, pois o desejo de
um comprador é a mais melancólica das coisas, que se contempla, como um segredo que não pede senão
que o desvendem e que não devemos ter pressa para o desvendar; como um presente que recebemos
embrulhado e que escolhemos o momento para o desembrulhar. É que eu próprio desejei, desde que me
encontro neste lugar, tudo aquilo que homem e animal podem desejar a esta hora obscura, e que os faz
saírem de casa, apesar dos grunhidos selvagens de animais insatisfeitos e homens insatisfeitos. Eis a
razão porque sei, melhor do que o comprador inquieto que conserva ainda um tempo o seu segredo, como
uma virgem criada para ser puta, que aquilo que me pedires eu já o tenho. Basta-te sem te sentires ferido
pela injustiça aparente que existe entre o que pede face ao que propõe, pedires-mo.
Pois não há verdadeira injustiça sobre esta terra senão a injustiça da própria terra, que é estéril pelo frio ou
estéril pelo calor e raramente fértil pela doce mistura do frio e do calor; não há injustiça para quem anda
sobre o mesmo pedaço de terra submetido ao mesmo frio ou ao mesmo calor ou à mesma doce mistura, e
todo o homem ou animal que pode olhar nos olhos para outro homem ou animal é seu igual porque
caminham sobre a mesma linha fina e plana de latitude, escravos dos mesmos frios e dos mesmos calores,
ricos da mesma riqueza e pobres de igual pobreza; e a únicafronteira que existe é entre o comprador e o
vendedor, porém incerta, os dois possuem o desejo e o objecto do desejo, às vezes vazio e rugoso, oco e
saliente, com ainda menos de injustiça do que há em ser macho ou fêmea entre os homens ou os animais.
Por isso aparento provisoriamente humildade, e permito-te a arrogância, para que nos distingamos um do
outro, a esta hora, que é, inelutavelmente, a mesma, tanto para ti como para mim.
Diz-me então, virgem melancólica, neste momento de surdos grunhidos de homens e animais, diz-me o que
desejas, para que eu te possa fornecer docemente, quase respeitosamente, talvez com ternura. E depois
de ter preenchido os vazios e aplanado os cumes que há em nós, afastar-nos-emos um do outro, em
equilíbrio sobre o plano e fino fio da nossa latitude. Satisfeitos, no meio de homens e animais, insatisfeitos
de ser homens, insatisfeitos de ser animais; mas não me peças que adivinhe o teu desejo! Ver-me-ei
obrigado a enumerar tudo o que possuo para satisfazer os que passam por mim desde que aqui estou, e o
tempo que seria necessário para essa enumeração endureceria o meu coração, e aborreceria sem dúvida a
tua esperança.

O CLIENTE
Não caminho num certo local e a uma certa hora. Caminho, simplesmente, indo de um ponto a outro, por
questões privadas que se tratam nesses pontos e não no trajecto. Não conheço nenhum crepúsculo nem
nenhuma espécie de desejo, e vou ignorar os acidentes de percurso. Ia, desta janela iluminada atrás de
mim, ali em cima, àquela outra janela iluminada além, à minha frente, segundo uma linha bem direita que
passa por ti, pois deliberadamente colocaste-te em cima dela. Ora não existe nenhum meio que permita a
quem vai de uma elevação a outra, não evitar ter de descer para ter de subir novamente, com o absurdo de
dois movimentos que se anulam e com o risco, entre os dois, de pisar os dejectos lançados pelas janelas.
Quanto mais alto se vive mais o espaço é saudável, mas maior é a queda. E logo que o ascensor nos traz
para baixo, condena-nos a caminhar pelo meio de tudo o que não queríamos, no meio de uma pilha de
recordações apodrecidas, como no restaurante quando o empregado faz a conta, e enumera aos ouvidos
agoniados todos os pratos digeridos.
Seria preciso que a obscuridade fosse ainda mais espessa, e eu nada me pudesse aperceber do teu rosto;
então, talvez me enganasse quanto à legitimidade da tua presença, e ao desvio que fizeste para te pores no
meu caminho, e eu, por meu lado, fazer um desvio que se coadunaria com o teu; mas qual seria a
obscuridade suficientemente espessa que te faria parecer menos obscuro do que ela? Não há noite sem lua
que não pareça ser meio-dia quando tu passas. E esse meio-dia mostra-me bem que não foi o acaso dos
ascensores que te colocou aqui, mas uma imprescritível lei da gravidade que te é própria, que tu trazes
visível, aos ombros como um saco, e que te prende a esta hora, neste local, onde tu avalias, suspirando, a
altura dos edifícios.

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Quanto ao que eu desejo, se desejo há que me possa lembrar aqui, na obscuridade do crepúsculo, no meio
de grunhidos de animais dos quais não vemos sequer a cauda, além deste indubitável desejo que tenho de
ver-te esquecer a humildade, e de que não me presenteies com a arrogância- pois se fraquezas tenho,
sendo arrogante, detesto a humildade, em mim e nos outros, é uma troca que me desagrada - aquilo que eu
desejaria, não o terias certamente. O meu desejo, se o tenho, se to exprimisse, queimar-te-ia o rosto, far-te-
ia afastar as mãos com um grito, e lançar-te-ias na obscuridade como um cão que corre tão rápido que não
lhe vemos sequer a cauda. Mas não, a perturbação deste local e desta hora faz-me esquecer todo o desejo
que me pudesse ocorrer. Não! Só tenho ofertas a fazer-te. E vai ser preciso que faças um desvio para que
eu não o tenha de fazer, vais ter de te afastar do eixo que eu seguia, vais ter de te anular! Porque esta luz,
ali em cima, no alto do prédio, aproximando-se da obscuridade, continua imperturbável a brilhar. Ela
penetra a obscuridade como um fósforo inflamado penetra o farrapo que o pretende apagar.

O DEALER
Tens razão em pensar que não desço de nenhum lugar, e que não tenho qualquer intenção de subir, mas
fazes mal em acreditar que sinto mágoa por isso. Evito os ascensores como um cão evita a água. Não é
que me recusem a abrir a porta nem que me repugne a entrar neles, mas os ascensores em movimento
fazem-me cócegas e perco a minha dignidade; e mesmo gostando que me façam cócegas, gosto que
parem quando a minha dignidade o exige. Os ascensores são como certas drogas; demasiado uso faz-nos
flutuar, nunca se sobe, nunca se desce, tomam-se as linhas curvas por linhas rectas, ressecando com as
entranhas a arder em fogo gelado. Desde que estou neste local que sei reconhecer as chamas que, de
longe, por detrás das vidraças, parecem geladas como crepúsculos de Inverno, mas dos quais basta
aproximarmo-nos suavemente, talvez afectuosamente, para nos lembrarmos de que não há chama
definitivamente fria, e o meu objectivo não é extinguir-te, mas abrigar-te do vento, e secar a humidade da
hora ao calor desta chama.
Porque seja o que for que digas, a linha sobre a qual caminhas, de direita que talvez fosse, tornou-se
tortuosa, assim que me avistaste. E percebi a altura em que me avistaste, pelo momento preciso em que o
teu caminho se tornou curvo, não curvo para te afastares de mim, mas curvo para vires até mim. De
contrário, nunca nos teríamos encontrado. Ter-te-ias afastado de mim pois caminhavas à velocidade
daquele que vai de um ponto ao outro. Eu nunca te alcançaria, pois ando lentamente, tranquilo, quase
imóvel. É a marcha daquele que não vai de um ponto a outro, mas que tem sempre o mesmo local, que
espreita quem passa diante de si e espera que altere ligeiramente o trajecto. E se eu digo que fizeste uma
curva, e que sem dúvida afirmarias que era um desvio para me evitar, e afirmando eu, por minha vez, que
foi um movimento de aproximação, isso acontece, sem dúvida, porque, afinal, não te desviaste; porque toda
a linha recta não existe senão relativamente a um plano, e nós movemo-nos em dois planos distintos; e que
afinal de contas, o facto é que tu olhaste para mim, e eu interceptei o teu olhar. Ou o contrário. E por mais
absoluta que fosse, a linha pela qual te deslocavas, tornou-se relativa e complexa; nem recta, nem curva,
mas fatal.

O CLIENTE
Neste momento, não tenho para te satisfazer, desejos ilícitos. O meu comércio, faço-o às horas
homologadas do dia, em locais de comércio homologados e iluminados por luz eléctrica. Talvez eu seja
uma puta, um devasso, mas se o sou, o meu bordel não é deste mundo. Ele decorre à luz da legalidade e
fecha as portas à noite, autorizado pela lei e iluminado pela luz eléctrica, pois nem mesmo a luz do sol é de
fiar e tem condescendências. Que esperas de um homem que não d· um passo que não esteja homologado
e autorizado e legal e inundado de luz eléctrica em todos os seus mais pequenos recantos? E se aqui
estou, no caminho, à espera, suspenso, em deslocação, fora do jogo, da vida, provisório, praticamente
ausente, por assim dizer em lado nenhum - porque é que se diz que um homem que atravessa o Atlântico
de avião, está num determinado momento na Groenlândia. Está-lo-á realmente? Ou estará no centro
tumultuoso do oceano? - e se fiz um desvio, apesar da minha linha recta, do ponto de onde venho para o
ponto para o qual vou, não ter quaisquer razões para se torcer de repente, isso acontece porque me
obstruis o caminho, cheio de intenções ilícitas e de presunções a meu respeito, de intenções ilícitas. Fica
sabendo que se há coisa que me repugna, mais ainda que a intenção ilícita, mais do que a própria intenção
ilícita é o olhar daquele que nos presume cheios de intenções ilícitas. Não é só por causa desse olhar em si
mesmo, tumultuoso por tanto ao ponto de tornar tumultuosa uma torrente da montanha - o teu olhar faria
subir lama do fundo de um copo de água - mas por que só o peso desse olhar sobre mim, faz desde logo
com que a pureza que existe em mim se sinta de súbito violada, a inocência culpada. E a linha recta, que
supostamente me levaria de um ponto luminoso a outro, fica embaraçada por tua causa, labirinto obscuro
no território obscuro em que me perdi.

O DEALER
Queres cravar-me sorrateiramente um espinho sob a sela do meu cavalo, para que ele se enerve e tome o
freio nos dentes! Mas se o meu cavalo é nervoso e por vezes indócil, eu dou-lhe rédea curta e ele não fica

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desenfreado assim tão facilmente. Um espinho não é uma lâmina. Ele conhece a espessura da sua pele e
consegue habituar-se à comichão. Mas, quem é que conhece completamente os humores dos cavalos?
Umas vezes suportam uma agulha no flanco, outras, uma poeira no arnês é capaz de os pôr a escoucear, a
rodar sobre si próprios e a atirar com o cavaleiro ao chão!
Fica sabendo que se falo contigo a esta hora, assim, brando, talvez com respeito, não sou como tu; pela
força das circunstâncias, com uma linguagem que mostra que tens medo, um medo pungente, insensato,
demasiado visível, como o de uma criança com medo de levar uma bofetada do pai; eu, ao menos, tenho a
linguagem daquele que não se d· a conhecer, a linguagem deste território e desta arte do tempo em que os
homens pisaram o risco, e em que os porcos batem com a cabeça contra a cerca; eu tenho tento na língua,
como se segura um garanhão pelas rédeas para que não se lance sobre a égua, pois se lhe desse rédea,
se afrouxasse ligeiramente a pressão dos meus dedos e a tracção dos meus braços, as palavras sacudir-
me-iam, e lançar-se-iam para o horizonte com a violência de um cavalo árabe que sente o deserto e mais
nada o consegue deter.
Foi por isso que, sem te conhecer, te tratei correctamente desde a primeira palavra, desde o primeiro passo
que dei em direcção a ti, um passo humilde e respeitoso, sem saber se mereces um tal respeito, sem nada
saber de ti que possa levar-me a supor que a comparação dos nossos dois estados autorizaria, em mim, a
humildade, e em ti, a arrogância, pois eu permiti-te a arrogância devido à hora do crepúsculo que nos
aproximámos um do outro, pois a hora do crepúsculo em que te aproximaste de mim é a hora em que a
correcção deixa de ser obrigatória, e se torna, portanto necessária; em que nada é obrigatório, excepto uma
relação feroz na obscuridade. Eu podia ter caído sobre ti como um farrapo sobre a chama duma vela, podia
ter-te agarrado pelos colarinhos, de surpresa. E essa correcção, necessária, mas gratuita, com que te
presenteei, liga-te a mim... E não foi só porque podia, por orgulho, ter-te tratado como uma bota trata um
papel sujo, esmagando-o, porque eu sabia, devido ao tamanho, que é a nossa primeira diferença - e a esta
hora e neste local, só o tamanho faz a diferença -, nós sabemos os dois quem é a bota e quem é o papel
sujo.

O CLIENTE
Se o fiz, fica sabendo que preferia não ter olhado. O olhar passeia-se e pousa e acredita estar em terreno
neutro e livre, como uma abelha num campo de flores, como o curral duma vaca no espaço cercado de uma
pradaria. Mas que hei-de fazer com o olhar? Olhar para o céu deixa-me nostálgico e fixar o chão entristece-
me, faz-me lamentar de qualquer coisa e lembrar-me de que não a tenho, ambas as maneiras são
prostrantes. Por isso, há que olhar em frente, à nossa altura, seja qual for o nível em que o pé está
provisoriamente pousado. Por isso é que, quando caminhava pela força das circunstâncias, onde
caminhava há pouco, e onde estou neste momento parado, o olhar tinha de ir ao encontro, mais tarde ou
mais cedo, daquilo que caminhava à mesma altura que eu. Ora, pela distância e pelas leis da perspectiva,
qualquer homem e qualquer animal está, provisoriamente, e aproximadamente, à mesma altura que eu. De
facto, talvez a única diferença que nos resta para nos distinguir, ou a única injustiça, se preferires é a que
faz com que um tenha algum medo dum possível bofetão do outro. E a única semelhança, ou única justiça,
se preferires, é a ignorância que temos do grau, segundo o qual, este medo é partilhado, do grau de
realidade futura desse bofetão, e do grau respectivo da sua violência.
Assim, nada mais fazemos senão reproduzir a relação ordinária dos homens e dos animais entre si nas
horas e nos locais ilícitos e tenebrosos em que nem a lei nem a electricidade investiram. Por isso é que, por
ódio aos animais e aos homens, eu prefiro a lei e a luz eléctrica. E tenho razão em pensar que a luz natural,
o ar não filtrado e a temperatura não corrigida das estações tornam o mundo perigoso. Com efeito, não há
paz nem há direito nos elementos naturais, não há comércio no comércio ilícito, só há ameaça e fuga, e o
golpe, sem nada para vender nem nada para comprar, sem moeda válida nem escala de preços, trevas,
trevas dos homens que se abordam na noite. E se me abordaste, foi porque me querias bater. Se te
perguntasse porque razão me querias bater, responder-me-ias, sei-o, que era uma razão secreta, tua, que
não havia necessidade que eu a conhecesse. Por isso, não te pergunto nada. Alguém fala a uma telha que
cai do telhado e nos despedaça a cabeça? Tu és uma abelha que pousou sobre a flor errada, ou uma vaca
que quis pastar para lá da cerca electrificada. Ou nos calamos ou fugimos, lamentamos, esperamos,
fazemos o que podemos, motivos insensatos, ilegalidade, trevas!
Pus o pé num rego de estábulos onde correm mistérios como dejectos de animais. E é desses mistérios
que são os teus e dessa obscuridade, que saiu a regra que decreta que entre homens que se encontram
seja sempre preciso escolher ser aquele que ataca. Sem dúvida que, a esta hora e por estes sítios, conviria
aproximarmo-nos de qualquer homem ou animal sobre o qual pousou o olhar, bater-lhe e dizer-lhe: não sei
se tencionavas bater-me, por uma razão insensata e misteriosa que, de qualquer forma, não terias achado
necessário dar-ma a conhecer, mas desse para onde desse, preferi fazê-lo primeiro, e a minha razão, se é
insensata, não é por isso, menos secreta: era isto que pairava, pela minha e pela tua presença, e pela
conjugação acidental dos nossos olhares, a possibilidade de me bateres primeiro, e eu preferi ser a telha
que cai a ser a cabeça; a cerca electrificada, à vaca.

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Senão, se é verdade que somos, tu o vendedor na posse da mercadoria tão misteriosa que recusas revelar
e que eu não tenho nenhum meio de a conhecer, e eu o comprador com um desejo tão secreto que eu
próprio o ignoro e que seria necessário, para me assegurar que tenho um, esgaravatar a minha memória
como se coça uma crosta até ela deitar sangue; se isso é verdade, porque continuas a esconder a tua
mercadoria, se eu me detive e aqui estou à espera? Como num grande saco fechado que trazes às costas,
como uma impalpável lei da gravidade, como se ela não existisse e não devesse existir senão tomando a
forma de um desejo; semelhante aos angariadores de clientes, à porta das boîtes de strip-tease, que
agarram as pessoas pelos colarinhos, quando à noite voltam a casa para dormir, e que lhes segredam ao
ouvido: ela está cá, esta noite. Se me mostrasses a mercadoria, se desses um nome ao que me ofereces,
lícita ou ilícita, mas com um nome, podendo assim ser apreciada, se ma revelasses, eu saberia dizer não.
Deixaria de me sentir como uma árvore sacudida por um vento vindo não se sabe de onde e que lhe abala
as raízes. Éque eu sei dizer não e gosto de dizer não, seria capaz de deslumbrar-te com os meus nãos, de
fazer-te descobrir todas as formas que há de dizer não, que começam por todas as maneiras de dizer sim,
como as coquetes que experimentam todos os sapatos e camisas para não levar nada, e o prazer que têm
em provar tudo está no prazer de tudo recusar. Decide-te, mostra-te: és um bruto ou um comerciante?
Mostra a tua mercadoria e deter-nos-emos a vê-la.

O DEALER
É porque quero ser um comerciante, e não um bruto, mas um verdadeiro comerciante, que não te digo o
que tenho e te proponho. Não quero sofrer recusas, que é o que o comerciante mais teme, pois é uma arma
da qual ele não dispõe. Eu nunca aprendi a dizer não e não quero aprendê-lo, e possuo todo o tipo de sim.
Sim, espera um pouco... espera muito... espera comigo uma eternidade. Sim, eu tenho-o, tê-lo-ei, tinha-o e
tê-lo-ei de novo. Nunca o tive, mas tê-lo-ei para ti. Se me viessem dizer: suponhamos que tenho um desejo
que o confesso e que não tens nada para o satisfazer? Eu diria: eu tenho o que convém para o satisfazer;
se me dissessem: imagina, no entanto, que não o tens?- mesmo imaginando-o, eu tenho-o.. E se me
dissessem: suponhamos que o desejo é tal que, afinal, não fazes sequer ideia do que é preciso para o
satisfazer? Pois bem, mesmo não fazendo ideia, apesar disso, mesmo assim tenho o que é preciso!
Mas quanto mais um vendedor é correcto, mais o comprador é perverso. Todo o vendedor procura
satisfazer um desejo que ainda não conhece, ao passo que o comprador sujeita sempre o seu desejo à
satisfação de poder recusar aquilo que lhe propõem. Assim, o seu desejo inconfessado é exaltado pela
recusa, e esquece o seu desejo no prazer que sente em humilhar o vendedor. Mas eu não sou da raça de
comerciantes que invertem os letreiros para satisfazer o gosto dos clientes pela cólera e pela indignação.
Não estou aqui para dar prazer, mas para lembrar o abismo do desejo, obrigar o desejo a ter um nome,
arrastá-lo por terra, dar-lhe uma forma e um peso, com a crueza obrigatória que existe em dar forma e peso
a um desejo. E pela forma como vejo o teu surgir, como saliva no canto dos teus lábios que os teus lábios
engolem, esperarei que ela te corra pelo casaco ou que a cuspas, antes de estender-te um lenço, porque
se to estendesse cedo de mais, sei que mo recusarias. E esse é um sofrimento que não quero ter.
Tudo o que o homem ou o animal temem, a esta hora em que o homem caminha à mesma altura que o
animal, em que todo o animal caminha à mesma altura que o homem, não é tormento, pois este mede-se, e
a capacidade de infligir e tolerar o tormento mede-se. O que temem acima de tudo, é a estranheza do
tormento, e de ser levado a sofrer o tormento que lhe não é familiar. Assim a distância que se manterá
sempre entre os brutos e as donzelas que povoam o mundo, não vem da respectiva avaliação de forças,
porque senão o mundo dividir-se-ia simplesmente em brutos e donzelas. Qualquer bruto se poderia lançar
sobre uma donzela e o mundo seria simples. Mas o que mantém o bruto e o manterá por muito tempo
ainda, distante da donzela, é o mistério infinito, e a infinita estranheza das armas, como essas bombinhas
que elas trazem na carteira e que atiram líquido aos olhos dos brutos para os fazer chorar. Bruscamente
vemo-los chorar diante das donzelas. Toda a dignidade destruída, quer homem, quer animal, tornarem-se
nada... senão lágrimas de vergonha na terra de um campo. Por isso brutos e donzelas se temem e
desconfiam tanto uns dos outros. Só se infligem tormentos que nós próprios podemos suportar, e não
tememos senão os tormentos que não conseguimos infligir.
Portanto, não me recuses dizer, peço-te, qual é o objecto da tua paixão, da tua febre, do teu olhar sobre
mim. Se se trata de não ferir a tua dignidade, pois bem, diz-mo como quem diz a uma árvore, ou face a um
muro de uma prisão ou na solidão de um campo de algodão, no qual nos passeamos nus, à noite. Diz-
mo, sem sequer olhar para mim, pois a únicae verdadeira crueldade desta hora do crepúsculo em que nos
encontramos os dois não está em um homem ferir o outro, ou em o mutilar, em o torturar, ou em lhe
arrancar os membros ou a cabeça, ou mesmo em o fazer chorar. A verdadeira e terrível crueldade é a do
homem, ou do animal, que torna o homem, ou o animal, incompleto, que o interrompe como as reticências
no meio de uma frase, que se desvia dele depois de o ter visto, que faz do homem, ou do animal, uma
ilusão do olhar, um erro de julgamento, um erro, como uma carta que se iniciou e se amarrotou brutalmente,
logo a seguir a ter escrito a data.

O CLIENTE

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És um bandido muito estranho, que nada rouba ou tarda demasiado em roubar, um larápio excêntrico que
se introduz à noite no pomar para sacudir as árvores, e que parte sem apanhar os frutos. A ti é que estes
sítios são familiares, não a mim. Eu sou aquele que teme e tem razão em temer. Eu sou aquele que não te
conhece nem pode conhecer-te, que só pode adivinhar-te a silhueta na obscuridade. Eras tu que devias
descobrir, nomear qualquer coisa, e então, talvez com um movimento de cabeça, eu tivesse aprovado; com
um sinal terias sabido. Mas não quero que o meu desejo seja derramado por nada, como sangue numa
terra estranha. Tu não corres nenhum risco, conheces a minha inquietude, hesitação e desconfiança. Sabes
de onde venho e para onde vou. Conheces estas ruas, conheces esta hora, sabes quais são os teus
planos. Eu não sei nada, e eu, eu arrisco tudo. Diante de ti estou como diante desses homens travestidos
de mulheres que se disfarçam de homens, no fim, já não se sabe onde está o sexo.
A tua mão pousou sobre mim como a do bandido sobre a vítima, ou como a da lei sobre o bandido, e desde
então sofro, ignorante, desconhecendo a minha fatalidade, ignorando se sou juiz ou cúmplice, de não saber
daquilo que sofro. Sofro por não saber que ferida me fizeste, e por onde se me esvai o sangue. Talvez não
sejas de facto um estranho, mas um espertinho, talvez não passes de um funcionário disfarçado de lei,
como a lei em segredo à imagem do bandido para o perseguir. Talvez sejas, afinal, mais leal que eu. E
então, por nada, por acidente, sem que eu nada tenha dito ou querido, pois eu não sabia quem tu eras,
porque sou o estrangeiro que não conhece a língua nem os costumes, nem o que é mal ou conveniente, o
direito ou o avesso, e que age como seduzido, perdido... É como se te tivesse pedido qualquer coisa, como
se te tivesse pedido o pior que pode haver, e fosse culpado de to ter pedido. Um desejo como sangue a
teus pés, correu para fora de mim, um desejo que não conhecia nem reconhecia, que só tu conheces e
julgas. Se assim é, se procuras com a diligência suspeita de traidor, impelir-me a agir contigo ou contra ti,
para que em qualquer caso, eu seja culpado, se assim é, então reconheces ao menos que não agi por ti
nem contra ti, que não há ainda a censurar-me, pois mantive-me honesto até este momento. Prova que já
não estou na obscuridade em que me detiveste, que eu só me detive porque puseste a mão sobre mim.
Prova que chamei pela luz, que não resvalei para a obscuridade, como um ladrão, de minha livre vontade e
com intenções ilícitas! E que fui surpreendido, que gritei como uma criança na sua cama, cuja lamparina, de
repente, se apagou.

O DEALER
Se me julgas animado de desejos de violência para contigo, e talvez tenhas razão para isso, não
classifiques demasiado cedo essa violência. Nasceste a pensar que o sexo de um homem se oculta num
local preciso e aí se mantém, e guardas acauteladamente esse pensamento. No entanto, sei, apesar de
nascido da mesma forma que tu, que o sexo de um homem, com o tempo que passa a esperar e a
esquecer, sentado, na solidão, desloca-se lentamente de um lugar para o outro, nunca se ocultando num
local preciso, mas visível onde não é procurado, e que nenhum sexo, depois de o homem ter aprendido a
sentar-se e a repousar tranquilamente na solidão, se parece com qualquer outro sexo, tanto como um sexo
masculino, se parece com um feminino. Não há disfarces neste tipo de coisas, mas uma doce hesitação,
como as estações intermediárias que não são nem o Verão disfarçado de Inverno, nem o Inverno de Verão.
Entretanto, uma suposição não merece que nos perturbemos por ela. H· que conter a imaginação tal como
uma noiva. Se é bom vê-la vagabundear, é tolo deixá-la perder o sentido das conveniências. Não sou
manhoso, mas curioso. Pousei a mão no teu braço por pura curiosidade, para saber se a uma pele com a
aparência da de galinha depenada, corresponde o calor da galinha viva ou o frio da galinha morta. Agora
sei. Sofres, isto sem querer ofender-te, de frio, como a galinha viva sai depenada, como a galinha doente no
sentido estrito do termo, de tinha. Quando era pequeno, corria atrás delas na capoeira, para as apalpar e
descobrir, por pura curiosidade, se a temperatura delas era a da morte ou a da vida. Hoje, que te toquei,
senti em ti o frio da morte, mas senti também o sofrimento do frio, como um ser vivo pode sofrer. Por isso te
estendi o casaco para te cobrir os ombros, uma vez que eu não sofro de frio, nem nunca sofri; sofri tanto
por não conhecer esse sofrimento, que a únicacoisa com que sonhava quando era pequeno, era conhecer
o frio que é o teu sofrimento. Se te emprestei o meu casaco, não é porque não soubesse que não sofres de
frio, não só na parte superior do corpo mas, isto sem querer ofender-te, de cima a baixo, e talvez mesmo
mais ainda. Sempre pensei que devia ceder ao friorento a peça de roupa correspondente ao sítio em que
ele tem frio, correndo o risco de ficar nu, de alto a baixo, e talvez mesmo mais ainda. A minha mãe, que não
era avarenta e tinha o sentido das conveniências, disse-me que sendo louvável dar a camisa, o casaco, ou
qualquer outra peça que cubra a parte superior do corpo, convinha sempre pensar bem antes de dar os
sapatos. E que não era conveniente em caso algum dar as calças. Ora, como sei, sem que mo digam, mas
com uma certeza absoluta, que a terra na qual fomos postos, tu, eu e os outros, está ela própria equilibrada
sobre o corno de um touro, e é mantida nesta posição pela mão da Providência, da mesma forma procuro
sem saber perfeitamente porquê, mas sem hesitação, manter-me nos limites do conveniente, evitando o
inconveniente, como uma criança deve evitar debruçar-se na borda de um telhado antes de compreender a
lei da queda dos corpos. E tal como a criança pensa que lhe proíbem debruçar-se de um telhado para a
impedirem de voar, assim eu julguei muito tempo que proibiam a criança de dar as calças, para que não
descobrisse o entusiasmo ou o langor dos sentidos. E hoje que compreendo melhor as coisas, que

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reconheço melhor as coisas que não compreendo, que estou neste lugar, a esta hora, há tanto tempo, que
vi tantos passantes, os observei e, por vezes, lhes pus a mão sobre o braço, tantas vezes, sem nada
compreender, e sem nada querer compreender mas sem renunciar, por isso, a observá-los e a procurar
pôr-lhes a mão no braço. De facto, é mais fácil apanhar um homem que passa do que uma galinha numa
capoeira. Sei bem que não há nada de inconveniente, nem o entusiasmo nem o langor que é preciso
esconder, e que há que seguir a regra sem saber porquê. Além disso, isto sem querer ofender, esperava,
ao cobrir-te os ombros com o meu casaco, tornar-te mais familiar aos meus olhos. Demasiada estranheza
pode tornar-me tímido. Ao ver-te vir para mim há pouco, perguntei-me por que se vestia o homem saudável
como uma galinha atingida pela tinha, e que perde as suas penas, e continua a andar na capoeira, com as
penas distribuídas ao acaso pela sua doença. E sem dúvida que por timidez, sentir-me-ia satisfeito por
coçar a cabeça, ou fazer um desvio para te evitar, se não tivesse visto no teu olhar fixo em mim, um
vislumbre de quem vai no sentido estrito do termo, pedir qualquer coisa; e esse vislumbre distraiu-me da
tua roupa.

O CLIENTE
Mas que esperavas tirar-me? Qualquer gesto que tomo como um golpe termina como uma carícia. É
inquietante ser-se acariciado quando se devia ser sovado. Exijo que, ao menos, desconfies de mim se
queres que me detenha! Já que pretendes, por ventura, vender-me qualquer coisa, porque não pensar
primeiro se tenho com que pagar? Talvez tenha os bolsos vazios! Teria sido honesto que me pedisses
primeiro que pusesse o dinheiro sobre o balcão tal como se faz com os clientes duvidosos. Não me pediste
nada disso. Que prazer tens em ser enganado? Não vim aqui para encontrar doçura. A doçura faz em
pedaços, dilacera as forças como a um cadáver numa sala de medicina. Eu preciso da minha integridade. A
malevolência, ao menos, há-de guardar-me inteiro. Ofende-te, se não onde colherei a minha força? Irrita-te.
Ficaremos mais próximos dos nossos negócios, e teremos a certeza de que tratamos os dois do mesmo
negócio, pois se sei de onde tiro o meu prazer, não sei de onde tiras tu o teu.

O DEALER
Se eu tivesse duvidado por um instante que não terias o suficiente para pagar o que vieste procurar, teria
feito um desvio quando te aproximaste de mim. Mesmo o vulgar comércio exige dos clientes provas de
solvabilidade; mas as lojas de luxo reconhecem e não perguntam nada, nem se rebaixam a verificar o
montante do cheque ou a conformidade da assinatura. H· tantos objectos para vender e para comprar, que
a questão não está em saber se o comprador poderá pagar, nem quanto tempo ele levará a decidir-se. Por
isso sou paciente; porque não se ofende quem se afasta, quando sabemos que vai arrepiar caminho. Não
podemos voltar atrás com o insulto, mas com a gentileza sim. Vale mais abusar desta que usar uma vez
que seja o outro. Por isso não me zangarei ainda, pois tenho tempo para não me zangar e tenho tempo
para me zangar e talvez me zangue quando o tempo se tiver esgotado.

O CLIENTE
E se, por hipótese, eu confessasse que só fui arrogante, sem prazer, porque me pediste que o fosse,
quando te aproximaste de mim, por certos desígnios que não adivinhei ainda, pois não sou dado a
adivinhar, e que me retém entretanto aqui? se, por hipótese, te dissesse que o que me retém aqui é a
incerteza relativamente aos teus desígnios e o interesse que tenho nisso, na estranheza da hora e na
estranheza do lugar, e na estranheza do teu avanço para mim, eu teria avançado para ti, movido por este
movimento conservado em todas as coisas de forma indelével, enquanto lhe não for imprimido um
movimento contrário? e se fosse por inércia que me aproximei de ti? levado pelo abjecto, não por vontade
própria, mas por aquela atracção que experimentam os príncipes quando vão acanalhar-se nos albergues,
ou a criança que desce às escondidas à cave, atraída para o objecto minúsculo e solitário, para a massa
obscura, impassível, que permanece na sombra... Teria vindo até ti, medindo tranquilamente a brandura do
ritmo do meu sangue nas veias, querendo saber se essa brandura ia ser excitada ou exaurida. Lentamente,
talvez, mas cheio de esperança, despojado de desejos enunciáveis, disposto a satisfazer-me com o que me
propusessem porque, fosse o que fosse que me propusessem, teria sido como um sulco num campo estéril
por abandono - este não faz distinção entre os grãos que caem nele - disposto a satisfazer-me com tudo na
estranheza da tua aproximação, de longe, teria pensado que te aproximavas de mim... de longe, teria tido a
impressão que me observavas... Então ter-me-ia aproximado de ti, teria olhado para ti, teria estado perto de
ti, esperando de ti muita coisa, muita coisa... Não que adivinhasses, pois eu próprio não sou capaz de
adivinhar, mas esperava de ti o gosto de desejar, a ideia de um desejo, o objecto, o preço e a satisfação.

O DEALER
Não há vergonha em esquecer à noite aquilo que lembrarmos de manhã. A noite é o momento do
esquecimento, da confusão, do desejo tão quente que se torna vapor! A manhã, porém, apanha-o como
uma grande nuvem acima do leito. Seria tolice não prever à noite a chuva da manhã. Se, por hipótese, me
dissesses que não tens nenhum desejo a exprimir, por cansaço ou por esquecimento, ou por excesso de

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desejo, que leva ao esquecimento, por hipótese de retorno, dir-te-ia que não te cansasses mais, tomasses o
de qualquer outro. O desejo furta-se, mas não se inventa. Ora, a roupa de um homem mantém ainda o calor
usada por outro, e um desejo toma-se mais facilmente que um hábito. JÁ· que eu devo vender a qualquer
preço, e a qualquer preço terás de comprar, pois bem, compra para outros que não para ti! Seja qual for o
desejo, apanha-o, e isso bastará; para agradar por exemplo e satisfazer os que acordam junto a ti, de
manhã, nos teus lençóis; uma noiva que desejará, ao acordar, algo que não tens ainda, que terás prazer em
lhe oferecer, e que gostarás de possuir porque mo terás comprado.É a fortuna do comerciante existirem
tantas pessoas diferentes, tantas vezes noivas a tantos objectos diversos, de tantas maneiras diferentes,
que a memória de uns é substituída pela memória de outros. E a mercadoria que me irás comprar poderá
servir a qualquer outro, se, por hipótese, não lhe tiveres dado uso.

O CLIENTE
Quer a regra que um homem que encontre outro acabe sempre por lhe bater no ombro e falar-lhe de
mulheres. Quer a regra que a recordação da mulher sirva de último recurso aos combatentes cansados.
Quer a regra, a tua regra...! Não me submeterei a ela. Não quero que encontremos a nossa paz na
ausência da mulher, nem na recordação duma ausência, nem na recordação do que quer que seja. As
recordações chateiam-me, e os ausentes também, ao alimento digerido, prefiro os pratos que ainda não
foram tocados. Não quero uma paz vinda de onde quer que seja; não quero que a paz seja encontrada.
O olhar do cão não supõe outra coisa senão que tudo, à sua volta, é cão. Assim, tu pretendes que o mundo
em que nos encontramos, tu e eu, é mantido na ponta do corno de um touro pela mão da Providência? Ora,
eu sei que ele flutua pousado no dorso de três baleias, que não é ponto de Providência ou de equilíbrio,
mas sim o capricho de três monstros. Os nossos mundos não são os mesmos e a nossa estranheza,
misturada com a nossa natureza, tal como a uva no vinho... Não, não erguerei a pata diante de ti, no
mesmo local que tu. Não sofro da mesma gravidade que tu. Eu não vim da mesma fêmea pois não é pela
manhã que desperto, nem é em lençóis que durmo.

O DEALER
Não te irrites, pá, não te irrites! Não passo de um pobre vendedor que conhece apenas este pedaço de terra
onde espero para vender, que não sabe senão o que a mãe lhe ensinou, e como ela não sabia nada, ou
quase, eu também não sei nada, ou quase. Mas um bom vendedor procura dizer aquilo que o comprador
quer ouvir. E para o procurar adivinhar, há que lambê-lo um pouco para lhe reconhecer o odor. O teu odor
não me foi familiar. Nós não saímos, de facto, da mesma mãe. Mas para poder aproximar-me, supus que
tinhas saído de uma mãe, tal como eu. Supus que a tua mãe te tinha dado irmãos, tal como a mim, em
número incalculável, como uma crise de soluços depois de um lauto banquete, e o que nos aproxima, em
todo o caso, é a ausência de raridade que nos caracteriza aos dois. E foi a isso, pelo menos isso que temos
em comum, que me agarrei, pois pode viajar-se muito tempo no deserto, desde que se tenha algures um
ponto de ligação. Mas se me enganei, se não saíste de uma mãe, ninguém te deu irmãos, e não tens noiva
que desperte contigo pela manhã, nos teus lençóis, peço-te perdão.
Dois homens que se cruzem não têm outra escolha senão a de se bater, com a violência do inimigo, ou a
doçura da fraternidade. E se eles escolhem, por fim, na desolação desta hora, evocar aquilo que não está
presente, o passado, o sonho ou a falta dele, é porque não se defrontam directamente por demasiada
estranheza. Diante do mistério, convém que nos abramos e nos revelemos completamente, a fim de obrigar
o mistério por sua vez a revelar-se. As recordações são as armas secretas que o homem guarda consigo
quando é despojado, a última franquia que obriga à franquia em compensação, a nudez última. Não tiro
daquilo que sou nem glória, nem confusão, mas porque me és desconhecido, e mais desconhecido ainda a
cada momento, como o casaco que tirei e que te estendi, como as minhas mãos que te mostrei,
desarmadas... Se eu sou o cão e tu o humano, ou eu sou o humano e tu outra coisa, da raça que sou ou da
raça que tu és, a minha, ao menos, dou-a ao olhar, deixo que lhe toques, tacteies, te habitues a mim, como
um homem se deixa revistar para não esconder as armas.
Por isso te proponho, prudentemente, grave e tranquilamente que me olhes com amizade já· que se fazem
melhores negócios a coberto da familiaridade. Não procuro enganar-te nem te peço nada que não queiras
dar. A única camaradagem em que vale a pena empenharmo-nos não implica que actuemos de certa forma,
mas que não actuemos. Proponho-te a imobilidade, a infinita paciência e a injustiça cega do amigo. Porque
não há justiça entre quem não se conhece, nem amizade entre quem se conhece, tal como não há pontes
sem ravinas. A minha mãe sempre me disse que era estupidez recusar um guarda-chuva quando se sabe
que vai chover.

O CLIENTE
Prefiro-te astucioso a amigável. A amizade é mais somítica que a traição! Se fosse esse o sentimento de
que necessitava, ter-to-ia dito; ter-te-ia perguntado o preço e teria comprado. Mas os sentimentos só se
trocam pelos seus semelhantes. … um falso comércio com moeda falsa, um comércio de pobres que
fingem comerciar! Alguém troca um saco de arroz por outro saco de arroz? Tu não tens nada a propor; por

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isso atiras os teus sentimentos para cima do balcão, como os maus comércios fazem saldo sobre a
fancaria, e depois já não é possível queixarmo-nos do produto. Eu não tenho sentimentos para dar em
troca; dessa moeda estou eu desprovido, não pensei em trazê-la comigo, podes revistar-me. Então, Guarda
a tua mão no teu bolso, deixa a tua mãe na tua família, guarda as tuas recordações para a tua solidão. … o
menos que podes fazer!
Nunca quereria essa familiaridade que procuras às escondidas estabelecer entre nós. Não quis a tua mão
no meu braço, não quis o teu casaco, não quero correr o risco de ser confundido contigo. Fica sabendo que
se há pouco te surpreendeste com a minha roupa, e julgaste por bem esconder a surpresa, a minha
surpresa foi também grande ao ver-te aproximar de mim. Mas em terra estranha, o estrangeiro tem sempre
o hábito de esconder a surpresa, pois qualquer extravagância é lhe apresentada como costume local, ele
faz bem em habituar-se, como acontece com o clima ou um prato regional. Mas se te levasse para junto dos
meus, que fosses tu o estranho, obrigado a esconder a surpresa, e nós, os autóctones, livres de a mostrar,
rodear-te-íamos apontando-te o dedo. Tomar-te-íamos logo por um carrossel de feira, perguntando onde se
compram os bilhetes.
Tu não estás aqui para comerciar. Antes te arrastas pela mendicidade, e pelo roubo que se lhe segue,
como a guerra às conversações. Não estás aqui para satisfazer desejos, pois desejos, tinha-os eu, e eles
caíram à nossa volta, espezinhámo-los; grandes, pequenos, complicados ou fáceis, ter-te-ia bastado
baixares-te para os apanhares às mãos-cheias, mas deixaste-os rolar para a valeta, pois mesmo os
pequenos, mesmo os fáceis, não tinhas com que satisfazê-los. És pobre e estás aqui, não por gosto, mas
por pobreza, necessidade e ignorância. Eu não finjo comprar imagens piedosas, nem pagar acordes
remelosos de uma viola ao canto de uma rua! Faço caridade se a quiser fazer, ou pago o preço das coisas!
Mas os mendigos, que mendiguem, que ousem estender a mão. E os ladrões que roubem!
Não quero nem insultar-te, nem agradar-te. Não quero ser bom, nem mau, sovar ou ser sovado, seduzir ou
ser seduzido. Quero ser um zero. Receio a cordialidade, não tenho vocação de parentela, e mais que a dos
golpes, temo a violência da camaradagem. Sejamos dois zeros, bem redondos, impenetráveis,
provisoriamente justapostos, e que rolam cada um na sua direcção. Aqui, que estamos sozinhos, na infinita
solidão desta hora e deste lugar, que não são nem hora nem lugar definíveis, pois não há razão para que
eu te encontre aqui, nem razão para te cruzares comigo, nem razão para a cordialidade, nem valores
razoáveis para nos precederem e que nos dêem um sentido, sejamos simples solitários e orgulhosos zeros.

O DEALER
Mas agora é tarde demais; está iniciada a conta e terá de ser apurada. É justo roubar a quem não quer
ceder e guarda ambiciosamente o cofre, para seu único prazer, mas é grosseiro roubar quando tudo está
para vender e para comprar. E se é provisoriamente conveniente dever a alguém, que não é mais do que
um prazo acordado, é obsceno dar e obsceno aceitar que nos dêem gratuitamente. Encontrámo-nos aqui
para o comércio e não para a batalha; não seria pois justo haver um perdedor e um vencedor. Não partirás
como um ladrão de algibeiras cheias. Esqueces o cão que guarda a rua e que te morderá o cu.
Já que aqui vieste, em meio da hostilidade dos homens e dos animais, colérico, para nada procurar de
tangível, já que queres ser esmagado por não sei que obscura razão, terás, antes de virar costas, pagar, e
esvaziar os bolsos, a fim de nada se dever nem nada ser dado. Desconfia do comerciante: o comerciante
roubado é mais ambicioso que o proprietário pilhado; desconfia do comerciante: o seu discurso tem a
aparência do respeito e da doçura, a aparência da humildade, a aparência do amor, a aparência apenas.

O CLIENTE
O que é que perdeste afinal que eu não ganhei? Porque eu bem posso esquadrinhar a memória, eu não
ganhei nada, eu. Eu bem quero pagar o preço das coisas, mas não pago o vento, a obscuridade, o nada
que há entre nós. Se perdeste alguma coisa, ou a tua fortuna é mais leve depois de me teres encontrado,
do que o era antes, o que é que se passou que nos falta aos dois? Mostra-me! Não, não usufruí de nada,
não pagarei nada.

O DEALER
Se queres saber o que estava escrito desde o início na tua factura, e que terás de pagar antes de me virar
as costas, dir-te-ei que é a espera, e a paciência, e o artigo que o vendedor elogia ao cliente, e a esperança
de vender, sobretudo a esperança, que faz com que qualquer homem que se aproxima doutro, com uma
proposta no olhar, seja logo um devedor. De toda a promessa de venda deduz-se a promessa de compra,
havendo multa para quem rompe o contrato.

O CLIENTE
Não estamos os dois, tu e eu, sós, perdidos no meio do campo. Se eu chamasse deste lado face a esta
parede l· para cima, para o céu, verias luzes brilhar, passos aproximar-se de socorro. Se é duro odiar um,
vários, torna-se um prazer. Atiras-te aos homens, mais que às mulheres, pois temes o grito das mulheres, e
supões que qualquer homem julgará indigno ter de gritar; contas com a dignidade, a vaidade, o mutismo

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dos homens. Presenteio-te com essa dignidade. Se é mal que me queres, clamarei, gritarei, pedirei
socorro, far-te-ei ouvir todas as formas de pedir socorro, pois conheço-as todas.

O DEALER
Se não é a desonra da fuga, porque não foges então? A fuga é um meio subtil de combate. …s subtil,
devias fugir. …s como aquelas mulheres gordas nos salões de chá, que andam por entre as mesas
derrubando as cafeteiras. Arrastas o teu cu como um pecado pelo qual sentes remorsos, e viras-te para
todos os lados para fazer crer que não o tens! Mas por mais que faças, hão-de morder-to.

O CLIENTE
Não sou da raça daqueles que atacam primeiro. Eu peço tempo. Talvez valha mais a disputa entre nós que
mordermo-nos. Peço tempo, não quero sofrer um acidente como um cão distraído. Anda comigo,
procuremos gente, pois a solidão cansa-nos.

O DEALER
Está aqui o casaco que não quiseste quando to estendi; e agora, terás de baixar-te para o apanhar.

O CLIENTE
Se desprezei alguma coisa, foram só generalidades, e um casaco que não passa de um casaco, e se foi na
tua direcção, não era contra ti; e não tinhas de fazer qualquer movimento para te esquivares; e se fizeste
algum movimento para o receberes de feição, por gosto, por perversidade, ou por cálculo, o desprezo que
mostrei foi apenas por esse monte de trapos, e um monte de trapos não pede contas. Não me vergarei
diante de ti. Isso é impossível. Não tenho a subtileza de um fenómeno de feira. H· movimentos que o
homem não consegue fazer, como o de se lamber o seu próprio cu. Não pagarei por uma tentação que não
tive.

O DEALER
Não convém que um homem deixe insultar o seu hábito. Pois se a verdadeira injustiça do mundo está no
acaso do nascimento, no acaso do lugar e da hora, a única justiça está naquilo que se veste. O hábito de
um homem é, mais que ele próprio, aquilo que há de mais sagrado: ele próprio, que não sofre; o ponto de
equilíbrio em que a justiça equilibra a injustiça, e não se deve desprezar esse ponto. Por isso se deve julgar
pelo hábito, não pelo rosto, os braços, ou a pele. Se é normal desdenhar o nascimento, é perigoso
desprezar a sua revolta.

O CLIENTE
Pois bem, eu proponho-te igualdade. Um casaco cheio de pó, pago-o pelo preço de um casaco cheio de pó.
Sejamos iguais, igualdade de orgulho, igualdade de impotência, igualmente desarmados, sofrendo
igualmente de frio e de calor. A tua semi-nulidade, a tua semi-humilhação, pago-as com a metade das
minhas. Ainda nos resta um meio, chega bem para que ousemos voltar a olhar-nos e para esquecermos o
que perdemos, os dois, por inadvertência, por risco, por esperança, por distracção, por acaso. A mim restar-
me-á a inquietude persistente do devedor que já pagou.

O DEALER
Porque é que aquilo que pedias abstractamente, intangivelmente, a esta hora da noite, porque o pedirias a
outro, por que não mo pediste a mim?

O CLIENTE
Desconfia do cliente. Quando ele parece procurar uma coisa, quer outra de que o vendedor não suspeita e
finalmente acabará por tê-la.

O DEALER
Se fugisses, seguir-te-ia; se caísses sob os meus golpes, ficaria ao pé de ti, esperando que despertasses; e
se não despertasses, ficaria ao pé de ti, no teu sono, na tua inconsciência. Por isso, não desejo bater-me
contigo.

O CLIENTE
Não temo bater-me, mas receio as regras que não conheço.

O DEALER
Não há regras. Não há senão meios, não há senão armas.

O CLIENTE

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Se procuras atingir-me, não conseguirás; experimenta ferir-me. Se o sangue correr, será dos dois lados, e
inelutavelmente, unir-nos-á como dois índios a uma fogueira, fazendo um pacto de sangue no meio dos
animais selvagens. Não há amor, não há amor. Não, não conseguirás nada que já· não exista porque um
homem morre primeiro, e depois procura a sua morte, e finalmente encontra-a, por acaso, no trajecto
arriscado de uma luz a outra luz, e diz: então era só isto?

O DEALER
Se faz favor, no tumulto da noite, não disseste nada que desejasses de mim e que eu não tenha percebido?

O CLIENTE
Eu não disse nada! Eu não disse nada! E tu, na noite, numa obscuridade tão profunda que precisamos de
tempo para a ela nos habituarmos, não me propuseste nada que eu não tivesse adivinhado?

O DEALER
Nada!

O CLIENTE
Então, qual é a arma?

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