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O Dom de Alton

Tradução: Dagoberto Alton & Rubi Elhalyn


Edição: Rubi Elhalyn
Tradução feita de fã para fã sem fins
lucrativos com o intuito de suprir a
carência da obra na língua portuguesa
(BR)

Conheça mais sobre a saga em


Darkover BR
The Alton Gift
Edited by
Marion Zimmer Bradley
Deborah J. Ross
The Marion Zimmer Bradley Literary Works Trust
PO Box 193473
San Francisco, CA 94119
www.mzbworks.com
Copyright © 2007 Marion Zimmer Bradley Literary Works Trust.
DARKOVER® é uma marca registrada de Marion Zimmer Bradley Literary Works Trust.

Todos os direitos reservados All Rights Reserved.


Arte de capa por Romas Kukalis.
DAW Book Collectors No. 1403.
Publicado por DAW Books, Inc.
375 Hudson Street, New York, NY 10014.

Todos os personagens e eventos deste livro são fictícios.


Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é coincidência.

DAW TRADEMARK REGISTERED


U.S. PAT. AND TM. OFF. AND FOREIGN COUNTRIES
—MARCA REGISTRADA
HECHO EN U.S.A.
DEDICAÇÃO
A todos aqueles fiéis amantes de Darkover que agora descansam em paz.
Agradecimentos
A mais profunda gratidão a Ann Sharp, da Marion Zimmer Bradley Literary Works
Trust; a Adrienne Martine-Barnes, por todas as suas maravilhosas contribuições ao longo
dos anos; aos meus leitores de confiança, Sue Wolven, Susan Franzblau e Catherine Asaro;
a Marsha Jones, extraordinária catadora de ovos; e, especialmente, à minha editora, Betsy
Wollheim, por ouvir com uma mente aberta minhas ideias malucas sobre como cortar a
história e montá-la corretamente.
ÍNDICE
Introdução ..................................................................................................................... 9
Prólogo ........................................................................................................................ 10
Capítulo 01 ................................................................................................................... 16
Capítulo 02 ................................................................................................................... 22
Capítulo 03................................................................................................................... 33
Capítulo 04 ................................................................................................................... 41
Capítulo 05 ................................................................................................................... 47
Capítulo 06 ................................................................................................................... 57
Capítulo 07 ................................................................................................................... 68
Capítulo 08 ................................................................................................................... 76
Capítulo 09 ................................................................................................................... 87
Capítulo 10 ................................................................................................................... 97
Capítulo 11 ................................................................................................................. 111
Capítulo 12 ................................................................................................................. 125
Capítulo 13 ................................................................................................................. 135
Capítulo 14 ................................................................................................................. 141
Capítulo 15 ................................................................................................................. 152
Capítulo 16 ................................................................................................................. 159
Capítulo 17 ................................................................................................................. 167
Capítulo 18 ................................................................................................................. 174
Capítulo 19 ................................................................................................................. 183
Capítulo 20 ................................................................................................................. 193
Capítulo 21 ................................................................................................................. 200
Capítulo 22 ................................................................................................................. 213
Capítulo 23 ................................................................................................................. 223
Capítulo 24 ................................................................................................................. 231
Capítulo 25 ................................................................................................................. 244
Capítulo 26 ................................................................................................................. 255
Capítulo 27 ................................................................................................................. 264
Capítulo 28 ................................................................................................................. 273
Capítulo 29 ................................................................................................................. 282
Capítulo 30 ................................................................................................................. 290
Capítulo 31 ................................................................................................................. 296
Capítulo 32 ................................................................................................................. 305
Capítulo 33 ................................................................................................................. 311
Capítulo 34 ................................................................................................................. 317
Capítulo 35 ................................................................................................................. 325
Capítulo 36 ................................................................................................................. 333
Capítulo 37 ................................................................................................................. 341
Capítulo 38 ................................................................................................................. 353
Capítulo 39 ................................................................................................................. 363
Capítulo 40 ................................................................................................................. 373
Capítulo 41 ................................................................................................................. 381
Capítulo 42 ................................................................................................................. 387
Capítulo 43 ................................................................................................................. 395
Epílogo ....................................................................................................................... 402
Bônus do Editor ......................................................................................................... 406
O Dom de Alton |9

Introdução

Minha "voz" pessoal nos romances de Darkover sempre foi o primeiro personagem
que eu criei para eles: Lew Alton. Lew Alton foi o herói do primeiro esboço de fantasia pré-
Darkover que escrevi quando jovem. É muito difícil diferenciar meu ponto de vista dos de
Lew… Admito que de vez em quando tenho curiosidade em saber como Lew, que não é,
pelo menos na superfície, um personagem muito atraente, apareceria do lado de fora. É
bastante difícil para mim vê-lo, exceto de dentro de sua própria pele, e eu me afastei, antes
disso, de tentar vê-lo através de outros olhos.
- Marion Zimmer Bradley

Eu acho que a única maneira de escrever sobre personagens criados por outra pessoa
é se apaixonar por eles. Assim como cada relacionamento amoroso é único, cada visão
criativa também é. Por tudo o que é bom e verdadeiro nessas páginas, agradeço àqueles
cuja visão formou uma base para a minha. Os lapsos e deficiências são minhas.
- Deborah J. Ross
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Prólogo

Quatro anos após a morte de Regis Hastur e a partida da Federação Terráquea, nas
Hellers…

O grande sol vermelho de Darkover subiu acima dos picos das montanhas, lançando
uma luz sombria através do banco de cristais de gelo das nuvens. Embora o pior das
tempestades de inverno tivesse passado, o vento ainda carregava força como uma faca. Um
homem de meia idade parou de subir a encosta rochosa caída e apertou a capa puída com
mais força ao redor de seus ombros. Uma rajada de vento arrancou seu fôlego.
Virando as costas para o vento, ele olhou para o vale protegido, com seu conjunto de
casas de pedra, estabulos de gado, celeiros para armazenamento dos alimentos. Seu povo
tnha cultvado aqui, ha tempos imemoriais, cuidando de seus rebanhos, pescando nos
córregos e coletando nozes na foresta alinhada, trocando peles comerciais e queijo em
Nervasin por aquelas coisas que eles não podem fazer. Uma vez, a comunidade tnha
apoiado uma dúzia de famílias ou mais.
Agora, Garin pensava com tristeza indizível, há apenas um punhado de nós. Uma onda
única de fumaça ergueu-se das casas, os estabulos estavam vazios, exceto por um par de
chervines de idade, e o telhado do maior celeiro tnha caído pro si mesmo.
Garin levantou seu olhar para a encosta, uma vez grossa com árvores que davam
nozes, âmbar, resinas e madeira aromátca, agora um emaranhado de farpas enegrecidas.
Alguns dos danos eram velhos, do fogo de uma geração atrás. Garin tnha sido apenas uma
criança, mas parecia que o intervalo das Hellers todo tinha sido consumido em chamas.
Regis, Lorde Hastur, tnha enviado comida e mudas para reflorestar as encostas. Os anos
seguintes foram magros, mas as árvores tinham prosperado e o rebanho de caprinos
aumentou. Garin tnha casado com uma garota de Rockraven, perto da fronteira de Aldaran,
e semeado feliz para criar seus flhos.
Então, três verões passados, os incêndios vieram de novo, como sempre fizeram. Só
que desta vez, nenhuma ajuda havia chegado, nem produtos químicos de combate a
incêndios, nem equipes enviadas pelo Comyn. Garin e os outros homens defenderam suas
casas o melhor que puderam. Eles salvaram a aldeia e a maior parte do gado, mas
perderam a foresta.
As cabras morreram, uma por uma, então todo o rebanho, e aqueles que comeram da
carne adoeceram. O irmão de Garin, Tomas, chorou sobre os túmulos de seus dois flhos e
disse que devia ser uma maldição enviada pelos deuses. Garin respondeu: - Que Deuses
buscam punir crianças pequenas desta forma?
As coisas iriam melhorar. Tinham que melhorar.
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Ele agarrou-se a essa esperança, mesmo quando sua própria flha mais jovem fugiu e os
outros cresceram magros e fracos. No inverno passado, mataram metade dos chervines
para usar como alimento, mas não foi o sufciente. Com o frio e umidade veio a febre do
pulmão. O último dos avós morreu, e depois também a esposa de Garin.
Agora só dez deles permaneciam, nenhum muito joven ou muito velho. Eles tinham
algumas maçãs e um pouco de peixe salgado, nozes e feijão da colheita do verão passado.
Não sobrou nada para plantar, pois eles tinham comido mais de sua colheita de sementes.
Melhor ir agora, na primavera, enquanto ainda podemos. O pensamento cortou o
coração de Garin. Ele nunca poderia ver novamente o vale vivo com flores e risos, o som
espumante da água, o ruído de cabras e crianças passeando nas encostas. Ele tinha vindo
até aqui para fazer sua despedida, sozinho, preparando-se para a próxima jornada.
Podemos morrer na estrada, mas certamente vamos morrer se ficarmos.
Na casa de campo, onde eles se reúnem em busca de calor e uma refeição tardia,
Garin encontrou uma enxurrada de atividades. Lina endireitou-se para amarrar um lenço de
malha em um dos flhos menores, um menino de cerca de seis anos. Ela era a mãe de todos,
embora apenas dois fossem seus, uma menina com dez anos e adolescente com gado,
ainda estavam vivos. Como outras duas mulheres sobreviventes, ela era viúva e parenta de
Garin. Em pouco tempo, ela tinha todas as crianças vestidas.
Lá, o filho de Lina, Raymon, carregava dois chervines com barracas e cobertores, peles,
água, todos os seus alimentos restantes e um pacote pequeno de peles para negociar.
Garin pôs no nos seu próprio pacote e eles partem. Duas das crianças fungaram e uma das
mulheres soluçou. Como uma trilha era tortuosa através de fendas nas montanhas, uma
aldeia estava perdendo a vista.
Enquanto viajava para além dos lugares que tinham conhecido, um terreno ficou ainda
mais estranho. Passou por trechos de floresta queimada, terra com sulcos de erosão,
deslizamentos de terra e quedas de penhascos, e uma vez que um emaranhado de ossos de
animais amontoados como madeira morta. Uma das crianças mais jovens acorda pesando
alguns dias depois. Às vezes, uma trilha fica lavada ou obscurecida por detritos. Uma vez,
eles se perdem tentando recuperar-se novamente e passam a noite em tendas sob uma
saliência da rocha fragmentada, ouvindo ou uivo dos ventos abaixo nos picos.
- São banshees? - Elena, uma menina menor, perguntou a Garin.
- Veja, eles estão muito longe. - Ele respondeu. - Eles vivem acima da linha de neve,
então estamos seguros aqui. - No entanto, com tantos acontecimentos estranhos, por
períodos, ou o que ele poderia dizer? Ele colocou uma menina nos braços de Lina e foi
mandar Raymon ficar de vigia, alternando com ele durante a noite. O que eles fariam se um
banshee atacasse? Ele não sabia. Eles não tinham armas contra tal predador.
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Eles fizeram um progresso lento por causa dos filhos, mas depois de quatro ou cinco
dias, um terreno parecia menos provável. Eles chegaram a um abrigo de viajantes em uma
clareira. Raymon monta armadilhas e almoça um coelho-de-chifres cozido com grãos
tostados dos estoques do abrigo. Garin não reclamou do atraso naquela manhã. De barriga
cheia, ou medo de aliviar, assim como a fome.
Na manhã seguinte, eles viajaram pela floresta, estranhamente atrativa. Aqui e ali,
uma árvore totalmente crescente se erguia acima das outras. Garin se perguntou que tipo
de objeto havia caído sobre um terreno, mas ele não disse nada. Ele estava perdido em
seus pensamentos quando Lina, que estava andando atrás dele, carregando pouco Elena,
gritou: - Olha! Lá, lá na frente, o que é?
Garin ficou alerta. Uma trilha curvada para baixo estava nua, pendurando ramos onde
as folhas amontoadas da pedra estavam espalhadas. Onde Lina apontou, viu uma massa
irregular escura, meio deitada na pista.
Por um instante, ele pensou que poderia ser uma criança vestida com pele manchada.
Quando ele se aproximou, viu que era algum tipo de animal. Ele diminuiu o ritmo,
cauteloso.
Lina veio depois dele, deixando os filhos para trás. - É um kyrri ferido?
Garin franziu a testa. Ele nunca tinha posto os olhos em uma das criaturas não
humanas, mas sempre pensava neles como menores e cobertos com pele cinza espessa. -
Isso é outra coisa.
Ao som da voz de Lina, uma criatura mexicana, seus custos estremecem. Ele deu um
grito agudo, como um pássaro assustado. Lina recuou. Garanta pressionar para trás, mas
ela segue perto. Juntos, eles deram outro passo.
- Está tudo bem, não queremos causar nenhum dano. - Garin usar sua voz soar suave e
moderada. Se uma criatura estava ferida, ela pode atacar sem terror.
Eles se aproximaram e ele viu costelas saltando através da pele pálida coberta de pelos
escassos e grosseiros. Em um movimento convulsivo, a criatura rolou em direção a eles.
Olhos avermelhados brilhavam em um rosto largo e sem queixo. Lágrimas escorriam do
rosto da criatura e ele olhou o brilho do dia. Ela abriu a boca e deu outro grito. Ao mesmo
tempo, estendeu um braço, muito longos e finos para um ser humano. À vista dos dedos
alongados, o gesto inconfundível de socorro, o coração de Garin balançou.
- É… Eu acho que é um homem da foresta. - Ele explicou.
- O que ele está fazendo aqui, tão longe de sua casa? - Lina murmurou. O povo da
floresta sempre se mantinham perto de seu próprio território, as florestas entre o rio
Kadarin e as Hellers.
Com um gemido, a criatura deixou cair seu braço, sem graça. Garin caminhou em
direção a ela.
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- Não toque! - Lina gritou, agarrando seu braço. - Parece doente. Poderia passar-lhe a
febre!
- Eu não penso assim. - Garin estava com o coração palpitando em seus ouvidos, mas
ele não conseguia desviar o olhar da pobre criatura. - Houve febre.Mas não a febre do
povo da floresta que não acontece desde o tempo de nossos pais. Alguma magia Terranan
trouxe um fim a ela. Este deve estar morrendo de fome. Veja como ele está magro? Suas
florestas devem ter queimado, assim como a nossa.
- O que podemos fazer por ele? Temos preocupações demais. As crianças dependem
de nós.
- Nós podemos viver em outros lugares. - Ele disse. - Nos campos, nas planícies, em
Nervasin... Ou, Aldones nos ajude, até mesmo em Thendara. Mas essas bestas... - Ele parou
e se corrigiu, - ...essas pessoas não têm para onde ir. Eles não podem viver sem suas
árvores. E se fosse um dos nossos, deixaríamos morrendo sozinho em um lugar distante?
Certamente, este merece a nossa pena, se não a nossa ajuda.
Lina olhou de Garin ao homem da foresta. Uma névoa passou sobre seus olhos. Ela
disse com a voz embargada: - Eu tenho vergonha das minhas palavras egoístas. Pensei só
em nossas próprias tristezas. Você acha que ele aceitaria comida de nós?
Garin pensou por um momento e então pediu a Raymon para trazer-lhe algumas
maçãs secas e água. O menino veio rapidamente com a comida. Lina disse para ficar para
trás e Garin se aproximou do homem.
- Veja, eu trouxe-lhe comida e água. - Garin se agachou ao lado da criatura.
Ele tinha parado choramingando e parecia respirar com difculdade. Uma película
revestia seus olhos vermelhos. Seu braços estavam estcados para Garin, as palmas
erguidas.
Garin não achou que a criatura pudesse segurar o copo d’água, nem mesmo que sabia
como beber nele. Ele teria de erguer a cabeça e manter o copo em sua boca.
Ele pegou um pedaço de maçã, umidecendo-a na água e colocou-a na mão aberta. A
pele estava seca, como folhas velhas. - Alimento. Comer, comer. Bom.
O homem da foresta não respondeu, exceto pela ondulação, lenta, hesitante do peito.
Garin colocou a maçã na frente do nariz chato, esperando que o cheiro despertasse a
criatura. Nada aconteceu. Seu intestno apertou. Ele cuidou o sufciente de seus próprios
parentes por inanição para reconhecer as fases fnais.
As respirações desaceleraram, as pausas alongaram-se. Uma convulsão percorreu os
pequenos músculos ao redor da boca, então cessaram. A criatura estava completamente
imóvel.
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Garin se recusou a deixar o corpo para os animais selvagens devorarem. Com a ajuda
de Raymon e Lina, eles o carregaram um pouco para fora da trilha, o puseram em uma
depressão rochosa e cobriram o corpo com as pedras soltas que puderam reunir.
Eles ficaram em silêncio por um tempo.
A trilha mergulhou para baixo, as colinas se abriram em torno deles, e chegaram à
estrada para Nervasin. Pouco tempo depois, uma caravana entrou em sua vista, uma dúzia
de carroças puxadas por mulas peludas e um pequeno rebanho de ovelhas! A caravana
parou quando viram Garin e seu povo. Um homem em um cavalo marrom resistente
andava ao encontro deles. Ele carregava um bastão grosso.
Em um movimento rapido, Garin afastou-se dos outros. Ele segurou suas mãos longe
de seu corpo, de modo que o homem montado podia ver que ele estava desarmado. -
Somos viajantes inocentes e não bandidos! - Ele falou.
O condutor cutucou seu cavalo para frente. O animal respondeu placidamente,
claramente mais acostumado a puxar uma carroça de se envolver em uma batalha.
- Quem é você, eo que você está fazendo nesta estrada? - O homem perguntou. - O
que você quer?
Garin engoliu uma afronta. Eles estavam em menor número e se ele causasse uma
briga eles não teriam chances com apenas ele mesmo e um menino. Eles pareciam gente
honesta. Se ele falasse suavemente, eles podem deixar a família viajar com eles e
compartlhar um pouco de comida...
Ele contou sua história de forma simples: os incêndios e inundações, a fome, o inverno
passado terrível, e, fnalmente, a sua decisão de sair de casa.
O condutor acenou com a cabeça, pensativo, abaixando o bastão. - Ouvi essa historia
dez vezes desde que estou na estrada. Meu nome é Dougal. Saímos na estrada, minha
mulher e eu. Os grandes incêndios nos atngiram e nos últimos cinco anos tem sido uma
coisa atrás da outra. Nem as Torres, nem produtos químicos fabricados, nem ninguém veio
nos ajudar. Agora é cada um por si .
Garin balançou a cabeça em simpata. Um olhar passou entre eles, no entendimento
sem palavras dos camponeses. Com exceção do sotaque desconhecido, eles poderiam ter
sido vizinhos.
Dougal puxou o queixo sobre o ombro. - Minha mulher morreu de parto, assim que
saímos. Encontramos essas pessoas na estrada e decidimos que seria mais seguro para
todos irmos juntos. Há todo tipo de escória na estrada nestes tempos difíceis que teriam
cortado a garganta de qualquer um por um pedaço de pão.
Garin estremeceu. - Ficaríamos muito gratos se você nos deixasse viajar com você.
- Não há necessidade de pedir. - Dougal mostrou o rosto enrugado em um sorriso
largo.
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- Parece que alguns dos seus são jovens. Nós vamos deixá-los andar nas carroças um
pouco. Sua mulher parece que não teve uma refeição decente desde o último outono.
Garin se voltou para os outros e fez um gesto para a frente. - Está tudo bem, eles são
amigos. Estaremos viajando com eles por segurança. Dougal, onde você está indo?
- Para Nervasin, para a família de minha esposa. Vamos procurar trabalho na cidade.
Isso soou esperançoso. Se eles pudessem ganhar o sufciente para comprar sementes e
algumas cabras, poderiam ser capazes de voltar para casa.
Lina colaborou para eles, pondo Elena em seus braços. Ela olhou para Dougal e disse: -
Somos gratos por sua ajuda.
Dougal corou e abaixou a cabeça. Garin, ao observá-los, pensou que não seria um
solitário por muito tempo.
Juntos, eles rumaram para Nervasin, a cidade das Neves. Antes de chegarem aos
arredores, Elena começou a tossir. Quando Garin tocou sua pele percebeu que ela ardia
como se estivesse em chamas. Lina, metade de sua mente com a preocupação, pediu a
Dougal para se apressar, porque pouco podia fazer por ela na estrada. Em Nervasin,
haveriam curandeiros, comida quente, cobertores e segurança.
O homem idoso de guarda às portas da cidade dirigiu o grupo para a Guilda, a
Sociedade das Renunciantes, que mantinha um hospital para os viajantes. As renunciantes,
mulheres com cabelo cortado e anéis de ouro em suas orelhas, usavam roupas masculinas,
como se elas não tivessem vergonha ou pudor. No entanto, elas levaram a menina ao seu
cuidado. Os homens não podiam ficar dentro de suas casas, elas disseram, mas Lina podia
permanecer e elas teriam notícias de como a criança estava no dia seguinte.
Garin passou a noite no estábulo alugado. Era tudo que ele podia pagar. Quando ele
bateu na Casa da Guilda na manhã seguinte, ele foi informado de que a menina não havia
melhorado. Não só isso, mas Lina também tinha adoecido.
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______ ______
LIVRO I

______ ______

Capítulo 01

O ano anterior...

No dia em que sua avó morreu, Domenic Alton-Hastur passou a manhã no solário da
Edelweiss, lendo em voz alta para ela. Apesar do frio ainda se agarrar às sombras pela neve
à deriva, o pouco espaço com suas grossas janelas gradeadas estava brilhante e quente. A
casa era modesta, acolhedora, em comparação com a grande propriedade da família em
Armida, com antgos quartos íntimos, móveis usados, amorosamente decorados e recantos
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que ainda ressoavam debilmente com o riso das crianças. Aqui Javanne passou os anos
mais felizes de sua vida. Quando ela ficou gravemente doente, com pouca esperança de
recuperação, o marido a tinha levado para casa para Edelweiss, entregando a
administração de Armida para seu filho mais velho.
Javanne Lanart-Hastur estava em um sofá, apoiada em travesseiros costurados em um
padrão de margaridas e flores kireseth. Contra o bordado colorido, sua pele parecia pálida,
os lábios secos e rachados. A idade e a dor tinham secado seu corpo, tornando a mão
descansando sobre o cobertor tão frágil como um pássaro de pé.
Domenic sentou-se em seu lugar de costume, uma cadeira de espaldar alto colocada
de modo que ele podia facilmente levantar uma taça de água para os lábios se ela ficasse
agitada. Aos vinte anos, ele era alto e graciosamente constituido, em vez de uma massa
muscular, com um traço de rara beleza masculina dos Hasturs em seus olhos e boca. Seu
cabelo penteado para trás de sua testa como uma desacoplada cascata cor de ébano, como
ele sempre preferiu usá-lo. Seus olhos eram de ouro salpicado de cinza, a íris rodeada de
preto. Um livro estava aberto em seu colo, entre seus graciosos dedos longos das mãos. Era
uma das traduções de sua mãe de contos de pescadores e letras de músicas de Tétis,
escolhidos porque os ritmos musicais suavemente acalmavam a velha mulher.
Não faltava muito agora, Domenic pensou com uma pontada de dor. Ele deveria dizer
a Dom Gabriel.
Quão fácil seria perder esse tempo juntos, Domenic pensava. Ele tinha todas as razões
para se ressentr de sua avó. A partr do momento da concepção de Domenic, a velha tinha
se colocado como o inimiga de seu pai, Mikhail Lanart-Hastur. Nenhum membro da família
tinha sido imune a seus ataques ferozes. Até o momento em que a leronis de Arilinn havia
identificado a causa de sua debilidade crescente, o dano ao seu cérebro era irreversível.
Outra consequência por estar aos pés dos Destruidores de Mundos, Domenic pensou.
As partculas geradoras de tumor tinham ficado escondidas até que fosse tarde demais. Que
outras armas permanecem silenciosas, esperando apenas serem acionadas?
Às vezes, Domenic podia sentir uma mancha persistente no solo e rocha. Desde que
seu laran tinha despertado durante a sua adolescência, ele tinha sido capaz de perceber as
mudanças sutis na crosta planetária. Seu Dom, ele aprendeu com seus professores na Torre
Neskaya, estava relacionado com a capacidade de detectar metais preciosos abaixo da
superfície, usado em operações de mineração com laran. Seu talento lhe permitiu chegar
mais fundo e mais longe. Às vezes parecia que Darkover em si cantava para ele.
Domenic fechou o livro e passou as pontas dos dedos sobre o pulso de sua avó. O
toque monitor trouxe uma onda de impressões em seu laran. As forças de vida dela tinham
caído muito, como uma vela em sua hora final. Apenas um fogo de energia fluía através de
seus canais. Focalizando sua mente através da pedra da estrela que pairava sobre a sua
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corrente de prata, nua contra seu peito, Domenic abraçou-a com uma onda de amor e
sentiu a resposta, fraca, mas pungente de gratidão.
O impulso que o levou até ali tinha sido uma rebelião, a fuga de uma vida de
responsabilidade cortês prevista por ele pelos mais velhos, ao invés de qualquer predileção
por sua avó, distante e crítca. Por que ele deveria cuidar dela, quando ela tinha feito tudo o
que podia prejudicá-lo?
E ainda assim...
A primeira vez que sentou ao lado dela e, silenciosamente, segurou-lhe a mão, algo
tinha mudado. Ela olhou para ele com olhos crivados de dor e, por alguma razão, e uma
visão totalmente inesperada, ele tinha vislumbrado a jovem que tinha sido uma vez, alta e
elegante, dotada com laran, pressionada por sua família e casta para se casar com um
homem que ela mal conhecia e dar-lhe um grande número de crianças. Ela viu o seu talento
ser desperdiçado, seus sonhos destruídos, o amor que ela tinha derramado sobre os seus
flhos, os pequenos momentos redentores de contentamento. Em seguida, vieram dúvidas
rastejantes, roendo os temores sobre os seus sanguessugas da alma, os momentos de
choque, como se a sua própria voz vomitasse veneno sobre aqueles que ela amou uma vez.
Finalmente, o seu próprio corpo tinha virado um traidor e ela fugiu aqui para Edelweiss,
para o único lugar que tinha conhecido a felicidade.
Esse momento de compaixão tocou um acorde no fundo de Domenic. Todo o
ressentimento dele às exigências do seu posto, o seu desejo de escolher o seu próprio
caminho, tudo isso tinha caído. Ele tinha visto a si mesmo no espelho do sacrifício Javanne.
Uma batida na porta chamou Domenic do devaneio. Ele colocou o livro de lado e foi
calmamente até a porta. O condom de Edelweiss estava ali, um olhar ansioso em sua face. -
Mestre Domenic, um cavaleiro com o uniforme da Guarda da Cidade chegou de Thendara.
Ele insiste em entregar sua mensagem apenas para você.
-Eu vou vê-lo. - Domenic respondeu. - Poderia ter uma das empregadas sentadas com
minha avó e que me avisem se houver alguma mudança?
Domenic foi para as portas antigas de madeira. Mesmo no pátio coberto, delimitada
por estábulos e as paredes de pedra da própria casa, o vento cortava como uma faca
afiada. Um guarda, com o rosto vermelho, ficou segurando as rédeas de um cavalo
ensebado. O animal deu patadas no chão de neve.
- Tenho ordens de entregarar a você e nenhum outro. - O guarda estendeu um
envelope amassado.
Domenic agradeceu. - Entre e vá se aquecer. Vou mandar a cozinheira enviar-lhe algo
quente para beber.
Tendo feito o homem e o cavalo serem devidamente atendidos, Domenic levou a
carta para a sala pequena e familiar de leitura. Era um antigo quarto no fundo da casa, os
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quatro antigos deuses pintados cruamente nas paredes, luzes acesas ante eles, mesmo
durante o dia.
Instantaneamente, Domenic reconheceu a escrita angular de sua mãe. Ela tinha
aprendido a ler e escrever darkovano quando adulta e ela nunca tinha dominado a caligrafa
suave.
"- Nico meu querido…", a carta começava. Domenic sorriu ao ler seu apelido de
infância. "…Espero que esta carta o encontre bem, apesar de eu entendo que essa é uma
probabilidade pequena, e o mesmo é verdade para Domna Javanne. Não posso te dizer
como estou orgulhosa de sua bondade em estar com ela. Espero, de todo meu coração,
que vocês dois tenham sido capazes de conseguir alguma medida de entendimento em
nome de todos nós. Ninguém deve terminar sua vida com tal amargura e feridas não
curadas. "
Como admirava sua mãe por pensar em uma reconciliação. Ao longo dos anos,
Marguerida havia suportado o peso da raiva de Javanne e tinha feito o seu melhor para
proteger seu marido das maquinações cruéis da velha.
"… Temos orgulho de sua visita, e seu pai e eu esperamos que a sua ausência não seja
longa."
Domenic olhou por cima da carta. Mesmo a luz cinzenta fltrada através da janela
parecia muito brilhante. Na superfície, ele percebeu lembrete gentil de sua mãe de que ele
estava perdido. Ela já havia dado a ele mais liberdade do que ele tinha o direito de esperar
sendo o Herdeiro de Hastur e, muito provavelmente, o regente seguinte de Darkover. A
maioria de seus últimos três anos foram gastos em estudos na Torre Neskaya, com visitas
ocasionais em casa ou aos amigos Aldaran de sua mãe. Ele adorava a maneira como as
montanhas cantarolavam em sua mente, a quietude doce e selvagem dos picos glaciais, a
dança ritmada dos fuxos de degelo.
- Você deve tomar todo o tempo que você precisar para resolver as prioridades em sua
vida. - Marguerida tinha dito na noite anterior à ida dele para Neskaya. - Por favor,
considere isso, Nico. Nós somos verdadeiramente livres para seguir nossos próprios
desejos. Sendo Comyn, temos grande poder de moldar o nosso mundo, mas, ao mesmo
tempo, nosso mundo nos molda. Há um velho ditado que nós somos como os deuses nos
fizeram, mas acredito que a verdade é que estamos constantemente a refazer-nos, nos
esforçando para cumprir o nosso destino.
"…Seu pai está ansioso para vê-lo antes da temporada seguinte do Conselho. Eu não
ficarei tranquila até que o tenha mais uma vez em casa.
Sua mãe amorosa,
Marguerida."
O D o m d e A l t o n | 20

Pensatvo, Domenic dobrou a carta. Havia algo mais nas palavras do que um mero
desejo de vê-lo novamente ou um indício de que a sua presença era esperada na
temporada Conselho no fnal do ano. Algo perturbava sua mãe.
Entre os talentos psíquicos Marguerida, tinha a capacidade de sentir o futuro ou pelo
menos como isso afetava aqueles que ela amava. Ela usou seu dom Aldaran? Será que ela
teve outra premonição? Será que havia alguma visão de desastre atrás de suas meias
palavras?

~o0o~
Javanne morreu em seu sono no mesmo dia. O mesmo mensageiro que entregou a
carta de Marguerida voltou a Thendara com a notícia de seu falecimento. Levou a maior
parte de um dia para concluir os preparatvos. Um caixão teve de ser construído e uma
carroça adquirida para levar seu corpo para Thendara, para que ela pudesse ser sepultada
no rhu fead ao lado de seus antepassados. Uma mulher comum pode descansar no
cemitério da família, mas Javanne era comynara, irmã de Regis Hastur, e mãe do atual
regente. Além disso, Domenic, como o herdeiro Hastur, não poderia viajar sem uma escolta
adequada. Suprimentos, animais de carga, roupas adequadamente quentes e servos. Tudo
deveria ser arranjado.
O velho Dom Gabriel estava quase fora de si com a dor. Ele não amava Javanne
quando se casaram, mas um profundo afeto tinha crescido entre eles ao longo dos anos.
Um arpejo itnha escapado de seus pulmões, e sua tosse ecoou pela casa à noite. Ele
sentou-se na pequena sala onde uma vez Javanne tinha cuidado de seus flhos e ficou
olhando para o fogo.
O estado de saúde do velho preocupava Domenic. Ele sentou-se no banquinho ao
lado da ampla lareira de pedras e tomou as mãos de seu avô na sua.
Por um longo momento não houve resposta. A luz do fogo reluzia nos olhos brilhantes
e febris do velho. Os ossos dos ombros se projetavam através do xale tartan. Os tapetes e
tapeçarias que uma vez tinham aquecido o quarto, agora pareciam esfarrapados.
- Eu sei, eu sei. - Gabriel murmurou. - Eu deveria estar presente à despedida. Mas...
Javanne... - Um espasmo de tosse cortou suas palavras.
Domenic esperou até que a tosse pasasse. - Você está doente...
- Eu já estava assim antes e vou ficar bem.
- Vovô, eu não quero ser impertinente, mas não há mais ninguém aqui para te dizer a
verdade. Você não está bem e viajar com esse tempo só vai fazer você piorar. Gostaria de
não ter sua morte em minhas mãos. A que propósito serviria colocar você na terra ao lado
da avó? Exceto trazer uma medida adicional de sofrimento para sua família.
O D o m d e A l t o n | 21

Domenic pensou que seu avô iria rebater seus argumentos. A tosse retumbou nos
pulmões de Gabriel e sua cabeça se afundou em seu peito. - Ela foi minha esposa por todos
estes longos anos, uma boa mãe e uma senhora nobre. Como eu não deveria mostrar-lhe o
devido respeito?
- Você vai honrá-la melhor cuidando de si mesmo, como ela teria feito. - Domenic
disse gentlmente. - Na verdade, minha mãe diria que você aprendeu o senso comum no
passado.
- Sim, ela diria? Ela sempre fala em sua mente.
- Quando o inverno tiver passado e você estiver recuperado, então pode vir a
Thendara. Vou andar com você até o rhu fead, e você poderá oferecer a avó uma
despedida adequada. Ela não iria querer que você arriscasse sua vida a fim de pronunciar
palavras cerimoniais.
- Em que túmulo ela vai ficar? Como vou saber onde ela se encontra, quando nenhum
tem qualquer marcação?
Acaso importa se você faz suas orações sobre restos da avó, ou os de Regis? Ou do pai
dela, ou de Lorill Hastur, ou de qualquer uma das gerações de Comyn que se encontram lá?
Eles estão todos em paz agora.
Um tremor passou pelo corpo de Gabriel e ele puxou o xale mais firmemente em
torno de seus ombros. - O dia virá, muito em breve, quando eu irei fazer essa viagem.
- Em alguns meses, mas deve ficar aqui agora, com segurança e conforto. - Domenic
disse. - As pessoas aqui cuidarão de você.
- Acho que um homem velho atrasaria a viagem. Eu não consigo cavalgar tão
rapidamente como eu já fiz.
Envolvido em pele, Gabriel desceu para se despedir de Domenic no dia da sua partda.
A égua cinza de Domenic, de ossos finos , um presente de sua mãe, empinou e puxou o
freio, ansiosa para ir embora. Os portões estavam abertos, o carroção pronto e atendentes
montados à espera. As respirações dos animais produziam baforadas brancas no ar frio.
Acima, nuvens se sucediam através de um céu brilhante.
- Você é um bom rapaz, – Gabriel disse, - e você vai ser um bom regente para os
Domínios em seu tempo. Seu pai deve estar orgulhoso de você. Agora andem enquanto
tem a boa luz do dia. Dê a sua mãe os meus cumprimentos. Volte no verão e nós vamos
caminhar juntos.
O D o m d e A l t o n | 22

Capítulo 02

A viagem para Thendara foi sem ocorrências, exceto pelas chuvas esperadas na
viagem no início da primavera. Na maioria dos dias, a chuva se fixava ao solo, mas houve
pouca neve, e Domenic e sua escolta foram capazes de encontrar um abrigo numa pousada
para viajantes a cada noite. Os cavalos, acostumados ao clima, arrastavam-se
estoicamente, com as cabeças abaixadas e caudas apertadas contra suas nádegas. A
carroça com o caixão de Javanne atolou na lama várias vezes, prolongando a viagem.
O D o m d e A l t o n | 23

No entanto, através da umidade e frio, Domenic sentiu uma melodia. Homens e


animais podiam até tremer, mas a terra se alegrava na dança fluida de renovação sazonal.
Nas colinas, eles contornaram áreas escurecidas onde os incêndios florestais
devastaram tudo no ano anterior, com pomares abandonados, sebes raquítcas, estábulos
vazios, e casas de fazenda cujos telhados tinham ruído. Aqui a canção sem palavras de terra
torcida, ficou dura, como gemidos de uma criatura viva e com dor.
Enquanto desciam para as planícies, eles encontraram viajantes dobrados sob fardos
pesados, às vezes famílias inteiras com crianças pequenas. Domenic perguntou ao guarda
por que essas pessoas estavam na estrada em tal tempo. O Guarda balançou a cabeça e
disse que eles estavam à procura de trabalho em Thendara.
O grupo chegou ruidosamente no pátio exterior do Castelo Comyn no final da manhã.
Tinha chovido constantemente desde o nascer do sol, as rajadas de vento trazendo pedras
de granizo, e eles estavam quase encharcados. Os animais respingados de lama até os
joelhos. O porteiro, que tinha estado abrigado em uma porta em arco, que parecia datada
desde os dias de Varzil, o Bom, gritou uma saudação.
Um momento depois, o pai de Domenic, Mikhail Lanart-Hastur, surgiu na porta,
enrrolado em um manto espesso. Em seus cinqüenta anos, Mikhail ainda tinha os mesmos
ombros fortes, o mesmo corpo mantido em forma pela prátca diária de esgrima , os
mesmos olhos azuis penetrantes. Os cabelos dourados, agora eram de um prata fosco, e as
linhas do rosto agora estavam vincadas em torno da boca. A pele ao redor dos olhos trazia
sombras, como contusões escondidas.
Por ordem gritadas de Mikhail, valetes aproximaram-se correndo,apressados em
atender os cavalos, carroça e bagagens. Sua voz soava rouca contra a confusão e o barulho
das rodas da carroça e cascos ferrados nas pedras do calçamento.
Domenic deixou seus pés livres dos estribos, deslizou para o chão e entregou as rédeas
para um valete que estava esperando. Ele virou-se apenas para ser pego no abraço firme de
seu pai.
- Filho, é bom ter você de volta com a gente de novo. Obrigado por trazê-la para casa.
Através do contato breve, Domenic sentiu a profundidade da tristeza de seu pai. Tudo
o que ele tinha feito na vida, tudo que esta mulher tinha lhe dado, cuidando dele, cantado
para ele... e o amado.
Lembranças, com notas de pungência, saltaram da mente de Mikhail para Domenic...
Mikhail deitado confortavelmente debaixo de seus cobertores em sua cama, com uma
consciência infantl e sonolenta dos ritmos da casa em torno dele...
Edelweiss, Domenic pensara, reconhecendo o caráter indelével do lugar, mas há muito
tempo atrás.
O D o m d e A l t o n | 24

Vozes, abafadas com emoções, além da compreensão do jovem Mikhail ... sua mãe ...
e um estranho ...
- Uma coisa mais, irmã. - Disse o homem. - Para onde eu vou, posso nunca retornar.
Você tem que me dar um de seus flhos para ser o meu herdeiro.
Javanne soltou um grito, baixo, aflito. - Venha então, Regis, e escolha...
Mãos se voltaram para Mikhail. Um rosto se inclinou sobre ele...
- Com este juramento, - Regis disse, - ele não será mais seu filho, mas sim o meu... e
esta afirmação nunca poderá ser renunciada por mim enquanto eu viver...
Mais tarde, enquanto Mikhail estava deitado, inquieto e ansioso, seus ouvidos
captaram o som de choro na noite.
A partir daquele momento, o menino Mikhail deixou de ser apenas o mais novo dos
três flhos de Gabriel e Javanne. Ele se tornou um Hastur em seu próprio direito, o herdeiro
de Regis, do Domínio e da regência do Comyn. E assim será com Domenic, seu flho mais
velho.
Domenic olhou nos olhos de seu pai, com o coração cheio demais de emoções para
falar. Ele entendeu por que Mikhail nunca o prendeu como Javanne e por que ela tinha se
voltado para ele, em detrimento de todos os seus filhos.
Uma sombra passou sobre a face de Mikhail, ainda bonita, mas borrada, como se o
espírito que ardia tão brilhantemente dentro dele estivesse momentaneamente
esmaecido. Vincos agora marcavam a sua fronte outrora suave e a boca carnuda, as
depressões das órbitas dos olhos e bochechas já insinuavam sua idade. O que havia
ocorrido nos últimos três anos, quando Domenic raramente tinha estado em casa por mais
tempo que as visitas nas breves férias, pesou tão fortemente sobre seu pai?
Não apenas três anos. Três anos como Regente após a partida do Império Terráqueo.
- Vamos entrar e nos aquecer. - Mikhail falou a Domenic. - Você está encharcado.
Quando você estiver quente e seco, vá cumprimentar sua mãe. Ficarei um tempo
certificando-me que o caixão seja colocado em local adequado.
Os guardas foram para seus próprios quartos. Domenic deu a cada um dos servos de
Edelweiss uma pequena bolsa de prata. Então fez seu caminho através do labirinto de salas
e corredores para a sua própria câmara nos aposentos da família. Esta parte do Castelo
sempre pareceu-lhe um conjunto de séculos de estilos arquitetônicos, todos misturados. As
escadas de pedra tinham sido usadas por séculos, polidas por gerações de pés. Aqui e ali,
uma nova parede ou um painel de pedra azul translúcida iluminava a passagem. Por fim,
Domenic atingiu a ala do castelo que era o abrigo da família.
Seu pai estava certo, ele estava completamente molhado. O contato breve por laran
drenou-o ainda mais. A qualquer momento, ele iria começar a tremer. Ele não queria
enfrentar sua mãe sem alguma antes ter alguma coisa para comer, tomar um banho, fazer
O D o m d e A l t o n | 25

a barba e mudar de roupa. A bebida podia não ser uma idéia ruim. Neste estado de
espírito, ele correu pelo corredor, cabeça baixa, batendo suas encharcadas luvas de
equitação contra sua coxa.
- Domenic! - Alanna Alar correu a partir de uma porta aberta e jogou os braços ao
redor de seu pescoço. Ele cheirava a perfume levemente floral, sentiu sua bochecha contra
a sua seda.
- Alanna! Não me abrace! Estou encharcado e sujo da estrada. Você vai estragar seu
vestido!
Alanna encontrou o olhar de Domenic com uma franqueza desconcertante. Ele a tinha
visto, mas pouco nos últimos três anos. De alguma forma, no tempo que eles estiveram
separados, ela tinha mudado de uma criança bonita para uma bela mulher, com o cabelo
farto cor de cobre e surpreendentes olhos verdes escuros, sob sobrancelhas arqueadas. Ele
notou um toque de sombra entre as curvas de seus seios no decote de seu vestido, a
cintura fina, a pele lisa como veludo.
- O vestido não importa! - Ela disse, fazendo beicinho. - Você não está feliz em me ver?
Eu esperei tanto por você! Eu sei que quase o perdi!
Algo dentro de Domenic, um nó de tensão, afrouxou. Ele e Alanna tinham sido irmãos
de adoção desde que eram crianças, quando ela tinha vindo para viver com sua família. Sua
mãe tinha sido muito insegura e neurótca, para não mencionar totalmente desprovida de
laran, para lidar com a grande força de vontade da filha tempestuosa, assim Marguerida se
ofereceu para educar a criança. Domenic tinha levado a menina desconsolada sob sua asa
e logo tornou-se mais proximo dela do que de seus próprios irmãos.
Domenic beijou o rosto de Alanna. - Eu também senti sua falta. Enviei uma mensagem
que você já deve ter ouvido falar… Avó Javanne morreu.
A expressão alegre de Alanna vacilou. Javanne e Gabriel eram seus avós, pois sua mãe
era a irmã mais nova de Mikhail.
- Eu deveria estar triste, - ela disse, baixando o olhar, mas não soando triste, - mas eu
mal conhecia a avó Javanne. Ela certamente transformou a vida de tia Marguerida numa
miséria, e ela não foi muito boa com você. Eu não posso acreditar que você foi ficar com ela
quando ela adoeceu.
Domenic hesitou e lembrou-a que a irritabilidade e desconfança de Javanne não era
culpa dela própria, mas um efeito de sua doença. Era muito complicado de explicar e ele
não tinha energia para uma longa discussão. Lembrou-se, também, o pouco sofrimento que
Alanna tinha mostrado após a morte de Regis Hastur, que sempre tinha sido gentil e amável
com ela.
- Foi a coisa certa a fazer, - disse ele, - e nós fizemos a nossa parte no final.
O D o m d e A l t o n | 26

Alanna deslizou sua mão na dele. Seus dedos a sentiram suave e macia. - Vamos lá.
Nós temos pouco tempo antes de tia Marguerida saber que você está de volta.
Enquanto caminhavam em direção a seu quarto, contou-lhe sobre as últimas
novidades: na rua da ópera haveria uma releitura das recalcitantes aventuras do burro de
Durraman. Domenic lembrou das vezes que tinham se escondido em vários lugares do
castelo, os jogos secretos que tinham compartilhado, brincando com contos de bandidos
das Cidades Secas. Uma vez, quando tinha cerca de dez anos, ela vestiu casaco e calças e
anunciou que ia cortar o cabelo e fugir com as Amazonas Livres.
Infelizmente, ele puxou sua mão livre. - Nossa reunião vai ter que esperar. Devo me
fazer apresentável para meus pais.
- Então? - Ela virou-se, as sobrancelhas levantadas como as asas finas de um pássaro-
da-chuva em vôo. Por um instante, ele sentiu como se estivesse se afogando na luz de seus
olhos.
- Então, - ele disse tentando não corar, - nenhuma mulher jovem de boa reputação
deve estar a sós com um homem que não é seu marido, especialmente em sua própria
câmara. Especialmente, caso você não tenha notado, quando estou necessitando
desesperadamente de um banho e fazer a barba.
Uma cor rosada inflamou pelas bochechas e garganta de Alanna. Ela baixou os olhos e
seu rubor se intensifcou. Domenic achava que ela era a criatura mais bela que já tnha visto.
- Por favor, - ele começou desesperado para dizer alguma coisa, - depois que eu
estiver limpo, devo ir ver minha mãe. Eu aprecio muito a sua companhia.
- Eu quero ver você depois, mas não me peça para ir ao encontro de tia Marguerida.
Ela está esperando você, não eu.
- Oh, Alanna, somos uma família! Você não vai se intrometer.
- Não é que... - Seus olhos escureceram e ela mordeu o lábio inferior. - Eu não quero
estragar o seu retorno para casa.
- Alanna, prima, qual é o problema?
Ela deu uma risada um pouco alta. Domenic ouviu o riso forçado, como se ela
estivesse tentando não fazer uma cara de brava para ele. - Ela não... não faz questão... ela
está sempre me dizendo... Não, eu não direi mais nada. Você está aqui e tudo vai ficar
melhor agora, eu prometo.
Com um sorriso que causou uma curiosa sensação de estômago vazio em Domenic,
Alanna saiu correndo.
Domenic saiu de sua câmara limpo e barbeado, vestindo um terno de camurça tingida
com o azul dos Hastur e bordado com prata trançada, e fez seu caminho para o pequeno
escritório de sua mãe, instalado em sua própria suíte. Uma lareira acesa aquecia o
ambiente e perfumava o ar com a fragrância familiar e reconfortante de bálsamo. Havia
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uma tapeçaria irregular, um trabalho de sua irmã Yllana, pendurada em um lugar de honra
nas paredes com painéis, e do outro lado da câmara um mobiliário amorosamente cuidado
estava exatamente como ele se lembrava. Através da porta teve um distante vislumbre de
um aparador construído especialmente para sua mãe.
Marguerida sentava-se à mesa de costume, repleta de papéis e livros abertos. Apesar
dela ter três filhos, agora jovens adultos, apenas um leve rendilhado de linhas entre as
sobrancelhas traia seus anos. Seu cabelo ainda era uma massa de cachos sedosos
vermelhos , os olhos de uma cor dourada curiosa. Usava um vestido de lã marfim suave,
envolto no alto da garganta para aquecer, as saias balançando de uma cintura graciosa, e
uma luva correspondentemente bordada em sua mão esquerda. A luva, cercada com um
rendilhado de cetim de flores costuradas, era tanto uma parte de seu vestuário que
Domenic não podia imaginá-la sem ela. Era o isolamento da matriz psicoativa embutido na
palma de sua mão, o restante de uma estranha batalha travada no Mundo Superior antes
dele nascer. Domenic a tinha visto apenas uma vez, na batalha da antiga estrada do norte.
Com um grito de alegria, Marguerida veio em direção a ele. - Nico, meu querido! Mik
enviou um servo para me avisar que você chegou. Aqui está, finalmente em casa!
Domenic retribuiu o abraço de sua mãe. - Me desculpe, eu me atrasei. O tempo estava
terrível e sempre leva mais tempo para viajar com um grupo grande. Avô Gabriel envia seus
cumprimentos, mas está demasiado frágil para fazer a viagem no início da temporada.
Uma expressão estranha passou sobre os olhos dourados de Marguerida. Domenic
sentiu a rápida sucessão de emoções. Tristeza, alívio com a passagem de Javanne, a
preocupação com a tristeza de seu marido, compaixão para com o homem velho que tinha
sido gentil com ela quando ela voltou para Darkover como uma jovem mulher e encontrou-
se presa em meio ao turbilhão polítco do Comyn.
- Vamos sentr falta dele, - ela disse, -mas é melhor que ele fique onde ele pode ser
cuidado. Tivemos mortes suficientes na família.
Ela apontou para o divã que havia sido colocado diante da lareira. Os dois se
instalaram confortavelmente ao redor do calor do fogo.
- E Domna Javanne...? - Marguerida perguntou. - Você aliviar o coração dela na
partida?
- Eu acredito que ela estava em paz no final. - Domenic disse. - Eu li para ela um de
seus livros, para aliviar sua dor.
- Sei que você a animou de fato. - Ela parecia satsfeita.
- Ela gostava especialmente da canção sobre o príncipe delfin e a filha da pérola.
- A passagem de Javanne marca o fim de uma era. - Marguerida disse, pensativa. - A
cada ano há menos pessoas daquela geração. Meu pai, é claro, o velho Gabriel.
- E Danilo Syrts-Ardais. - Domenic acrescentou.
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- Sim, embora ele se mantenha forte, mesmo nos dias de hoje, o vejo muito pouco. Ele
sentiu muito a morte de Regis. Foi muito difcil. Temo que ele nunca possa superar essa
perda. E recentemente Domna Linnea... ela nos deixou para ir para a Torre Arilinn. Ela foi
treinada como Guardiã quando ela era muito jovem, você sabe, e precisou sair para se
casar com Regis. Esse trabalho vai dar-lhe um sentido, um propósito, e leroni treinados
agora são tão poucos que ela vai ser uma contribuição valiosa. Mas aqui estamos nós,
fofocando como um casal de galinhas velhas!
Quando Domenic ouvindo ele percebeu o quanto ele tinha perdido. A vida tinha
seguido sem ele, em seus próprios ritmos. - É bom estar em casa novamente.
Ela tomou sua mão, um gesto incomum entre telepatas, mas característco dela. -
Espero que sua estada não seja tão breve desta vez...
Em sua mente, Domenic terminou seu pensamento. O tempo chegou e você deve
assumir responsabilidades. Você é o herdeiro de Hastur, da Regência de todos os Domínios.
- Eu tentei não impor essa obrigação a você muito cedo. - Marguerida disse. - As
pessoas precisam de uma liderança forte, e que necessita não apenas de talento, mas de
formação. Temos de garantr uma sucessão suave.
- Eu sei, eu sei. Na minha idade, meu pai já tinha anos de preparação. Tio Regis o
preparou para o trabalho dele. Agradeço a liberdade que você me deu...
Onde estavam as palavras para expressar o tumulto em seu coração? Como poderia
explicar?
Eu não quero ser o homem mais poderoso de Darkover. Eu vi o que isso fez com o tio-
avô Regis e o que está fazendo ao Pai!
Os olhos de Marguerida se arregalaram e Domenic percebeu que não tinha mantido
seus pensamentos privados. Ele se preparou para uma palestra sobre responsabilidades,
mas sua expressão se suavizou.
- Regis costumava dizer que, se não gostassemos da vida que tinhamos, deveríamos
ter escolhido os nossos pais de forma diferente. - Ela disse. - Você acha que ele ou seu pai,
ou eu, temos a vida que queriamos? Oh, Nico, eu teria dado qualquer coisa para ter uma
vida tranquila e privada com Mikhail, sem maior fama do que o que eu ganhei através da
minha música. Só Deus sabe… Eu tentei de tudo para evitar ser chamada de herdeira de
Alton quando cheguei em Darkover. Quando entreguei o meu direito de Armida ao velho
Gabriel, eu pensei que estava finalmente livre da política do Comyn. Mas a minha vida não
seguiu dessa maneira.
Nem perto da minha vontade, ela disse silenciosamente. Mas, como eu, você sempre
terá o apoio daqueles que o amam.
Marguerida levantou-se da mesa e ficou de pé ao lado da cadeira de Domenic,
descansando a mão enluvada no ombro dele. Quando ele saiu de Thendara há três anos,
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pensando em moldar uma nova vida para si mesmo na Torre Neskaya, ele não poupou
nenhum pensamento para o que custou a ela deixá-lo ir. Ele havia se concentrado apenas
em seus próprios desejos, suas próprias necessidades.
Na memória dela, ele viu Javanne como uma jovem mulher, deixando de lado suas
próprias esperanças, cumprindo seu dever para com sua casta e seu mundo. Lançando seu
próprio flho recém-nascido a um destino cruel. Seu olhar, firme e direto, desafiou-o a fazer
o mesmo. Ela convidou-o a pôr de lado os brinquedos e os sonhos de sua infância.
- Eu não sou o meu pai ou o tio Regis. - Ele disse, sua voz estranhamente grossa. - Mas
se eu não tenho escolha, então terei que fazer o meu melhor.
Os dedos de Marguerida se apertaram em seu ombro. - Eu sei que você vai, meu
querido, e eu tenho toda confança em você.
Quando ele forçou um sorriso, Domenic imaginou as paredes do Castelo Comyn
fechando-se sobre ele. Uma a uma, as portas de sua vida se fechando, deixando apenas
esta avenida estreita.
Como ele poderia reclamar? Já havia sido dado muito mais liberdade a ele do que
qualquer outro jovem em sua posição, certamente mais do que a seu próprio pai ou ao seu
tio Regis. Nenhum deles teve o luxo de estudar em uma Torre, ou nadar no mar de
Dalereuth, ou andar ao mercado no Carthon. Por que ele queria mais?
Se ao menos Darkover não cantasse para ele em seus sonhos...
Domenic encontrou seu pai mais tarde, na acolhedora sala que servia de sala de estar
da família e sala de jantar informal. A câmara de dormir usada por Marguerida e Mikhail
estava além e quartos de seus filhos seguiam por um corredor curto. O salão principal,
pouco utlizado, exceto para ocasiões formais, estava na direção oposta. O grande complexo
do Castelo Comyn continha muitos de tais apartamentos, uma área para cada Domínio. A
maioria era pouco utlizada, apenas quando as famílias chegavam a Thendara para reuniões
do Conselho Comyn. A família de Domenic era a exceção, pois os deveres de Mikhail como
Regente exigiam sua presença durante todo o ano.
Estas pequenas câmaras eram tão familiares para Domenic como quaisquer outras que
ele havia conhecido. Numa delas sua mãe tinha montado o escritório onde ela o havia
recebido em sua chegada, aqui ela entretinha amigos e compunha músicas. Mais adiante, o
corridor dava no escritório do pai que era parte refúgio, parte solário, parte biblioteca.
Quando Domenic entrou na sala, encontrou Yllana e Rory inclinando-se sobre uma
mesa baixa, jogando castelos. Marguerida estava dedilhando uma melodia antiquada em
uma rryl. Yllana abraçou Domenic. Ela tinha quinze anos agora, com os olhos amarelados e
a graça esbelta de uma menina. A partir do toque fugaz de seu laran, sabia que ela tinha
claramente herdado o raciocínio rápido de sua mãe e a cautela de seu pai.
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- Então o exilado retornou. - Rory disse, batendo no ombro de Domenic. - Por quanto
tempo desta vez?
- Eu não tenho certeza, pois há muito a ser resolvido. - Domenic sentiu os olhos
Marguerida sobre ele. Ele acrescentou: - Gostaria que o motivo de meu retorno tivesse sido
menos infeliz.
Na ausência de Domenic, Rory tinha crescido de um adolescente rebelde a um
homem, embora ecos da rebeldia da adolescencia ainda pairassem no brilho maroto dos
olhos. Uma onda no canto de sua boca lembrou Domenic da inclinação de seu irmão para o
errado, os murais que Rory tinha pintado com giz nas paredes do salão, as tortas roubadas
da cozinha. Rory agora se portava com uma postura contida que Domenic nunca tinha visto
nele antes. Claramente, a formação de Rory na Guarda havia lhe dado muito da necessária
auto-disciplina, bem como ombros musculosos e fexíveis de um lutador de espada.
Os alimentos tinham chegado da cozinha do castelo. Marguerida havia encomendado
uma refeição leve de final do inverno, ao estilo de Thendara , pãezinhos recheados com
carne e cebola, uma tigela de maçãs secas e outra de nozes tostadas, uma jarra de cidra
para regar, e um jarro do onipresente jaco. Domenic descobriu-se surpreendentemente
faminto.
Enquanto comiam, Mikhail entrou, arrastando uma rajada de ar que cheirava a couro
e chuva. - Aí está você, Domenic! Venha aqui, para um cumprimento adequado!
Depois de abraçar Domenic mais uma vez, Mikhail se inclinou para beijar Marguerida.
Domenic sentiu a firmeza do amor entre eles. Um anel brilhava na mão direita de Mikhail,
uma matriz misteriosa e extraordinária, dada a ele em uma viagem através do tempo pelo
lendário Varzil, o Bom.
Ao longo dos anos, Mikhail tinha aprendido a aproveitar a jóia psicoativa imensamente
poderosa para a cura, bem como para fins menos pacífcos. Com sua formação na Torre,
Domenic sentiu como o cristal do anel havia entrado em sintonia com a matriz pessoal de
seu pai. Uma das primeiras coisas que Domenic tinha aprendido em Neskaya foi nunca
permitir que ninguém tocasse em sua matriz. Apenas uma Guardiã treinada podia lidar
com a matriz de outra pessoa sem fazer agonizar, ou mesmo sem emitir choques fatais, no
proprietário. Como Mikhail era capaz de usar o anel não blindado, abrir-se ao toque casual
de outros, a pedra do anel não deve ter as mesmas limitações.
Os servos terminaram de servir a refeição na mesa e a família se sentou. Uma cadeira
permaneceu vazia e, um momento depois, Alanna entrou e sentou-se nela. Ela usava o
mesmo vestido de antes, mas seu cabelo estava arrumado, trançado como chamas contra
o creme de sua pele. Domenic notou que ela não ofereceu nenhuma desculpa por seu
atraso. Em vez disso, ela manteve os olhos em seu prato.
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- Alanna querida, você não vai cumprimentar Domenic de volta entre nós? -
Marguerida disse.
- Ela já fez isso. – Domenic disse, aceitando a travessa de nozes que Rory estava
passando para ele. - Nos esbarramos quando cheguei ao castelo.
Alanna lançou um sorriso brilhante como o sol depois de uma tempestade. O ar na
sala iluminou-se.
- Agora estamos todos aqui juntos, como uma família, - disse Mikhail, - mesmo que
seja para uma ocasião triste. Domenic, agradeço sua bondade para com minha mãe
durante seus últimos dias e por trazer seu corpo de volta para o enterro. Apesar da
infelicidade em sua vida, ela era comynara.
Domenic ouviu a ressonância pesada na voz de seu pai, como o pulsar distante de um
sino.
Como eu me sentiria se fosse minha mãe deitada naquele caixão, à espera de ser
colocada em uma cova sem marcação? Domenic estremeceu, incapaz de imaginar um
mundo sem Marguerida.
- …Não é? - Mikhail estava perguntando.
Domenic tinha perdido uma parte da conversa. Ele desculpu-se rapidamente
delarando seu lapso como resultado da fadiga da viagem.
- É claro. – Marguerida disse dando-lhe um sorriso terno.
A conversa mudou para o funeral de Javanne. A cerimônia em si, a necessária
preparação para a antiga tradição era simples, mas os arranjos deviam ser feitos pelos
familiares e dignitários que fossem capazes de fazer a viagem para Thendara nesta
temporada e em curto prazo. Lew Alton, pai de Marguerida, mandou dizer que ele chegaria
de Armida, onde vivia depois de ter se aposentado, a convite de Gabriel, que ia participar
também. As propriedades Elhalyn estavam perto o suficiente para que Dani Hastur, o filho
de Regis, sua esposa e família também pudessem estar presentes.
- Eu gostaria que alguns dos Aldarans pudessem estar aqui. – Marguerida disse.
Katherine, a mulher de Hermes Aldaran, era uma de suas melhores amigas.
- Nem mesmo um guardião do tempo poderia tornar as estradas através das Hellers
transitáveis nesta temporada. - Rory comentou.
- Você não está com medo de uma tempestade com um pouco de neve, não é? – Os
olhos de Yllana brilharam com a brincadeira afetuosa.
Rory deu de ombros, recusando-se a entrar na brincadeira. - Com um cavalo decente e
equipamento adequado, claro que não. Uma caravana de carroças e animais de carga é
outra questão.
- Nossos amigos vão estar aqui em breve, - disse Mikhail, - e então vamos terminar
nossa discussão sobre Yllana voltando com eles para ser criada no Castelo Aldaran.
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- Gostaria disso, irmãzinha? - Domenic perguntou. Esta foi a primeira vez que ele tinha
ouvido falar dos Aldarans adotando Yllana.
A menina levantou o queixo, repentinamente muito parecida com a mãe em um
estado de espírito resoluto. - Eu posso ter um pouco do laran de Aldaran, e mamãe diz que
seria melhor para aprender como usá-lo com aqueles que o conhecem bem.
Domenic assentiu. No tempo de seus avós, Aldaran ainda estava distante de outros
Domínios. Em isolamento, eles aprenderam novas técnicas para desenvolver seus talentos
psíquicos distintos. Alguns deles já trabalhados em Torres, mas o resto dos Domínios
sabiam pouco dos ensinamentos em Aldaran.
- Não é justo! - A expressão de Alanna escureceu. Uma ruga torceu sua boca bonita. -
Você me fez ir para Arilinn!
- Criança, foi para a sua própria segurança. – Marguerida disse. - Nós nunca teríamos
te mandado para lá se houvesse outra escolha.
- Mas Yllana vai viver com Domna Katherine...
- Yllana não tem suas habilidades de telecinese e pirocinese, uma combinação
perigosa. - Mikhail disse gentilmente. Ele sempre amou Alanna, mesmo quando ela estava
em sua idade mais tempestuosa.
- Eu odeio Yllana! - Alanna gritou. - Eu odeio todos vocês!
Yllana se encolheu sob a explosão psíquica de Alanna. Ela apertou a faca de jantar tão
fortemente que os nós dos dedos ficaram brancos. Ela olhou como se quisesse jogá-la
contra Alanna, mas o senso comum e um temperamento naturalmente constante a
contiveram.
- Alanna, você sabe que não quer dizer isso. - Marguerida lutou visivelmente para
manter a compostura. - Vocês são irmãs adotivas, antes de tudo, e não devem falar assim
uma da outra. Nós queremos o que é melhor para cada uma de vocês.
- Não foi tão ruim em Arilinn, foi, mocinha? - Mikhail perguntou. - Eles não te
ensinaram bem?
Alanna prendeu a respiração, claramente pronta para uma resposta cáustca. De
repente, ela se aquietou. A cor da agitação se esvaindo de suas bochechas. Sua respiração
desacelerou e o brilho em seus olhos verdes esmaeceu.
- Como você desejava, - ela disse em um tom neutro, sem emoção, - eles me
ensinaram a controlar meu laran. Não causo mais incêndios ou arremesso objetos com
minha mente.
- Agora é a vez de Yllana ir estudar, - disse Marguerida, gentilmente redirecionando a
conversa - e vamos sentir sua falta, tanto quanto sentimos de você, Alanna.
- Não é minha culpa que a vida em uma Torre não combine com você. - Yllana
continuou falando com Alanna em uma mistura de cautela e firmeza. - Eu gostaria que
O D o m d e A l t o n | 33

tivesse sido de outra forma, que você tivesse sido feliz lá. Você não pode me desejar o
bem?
Alanna parecia confusa. - É claro que sim, irmã adotiva. - Ela murmurou com a voz
suave. - Por que eu iria querer outra coisa?
Os servos vieram para retirar os restos da refeição. Rory desculpou-se; tinha que
voltar para o quartel da Guarda e ir em um compromisso anteriormente marcado com um
de seus companheiros. Yllana fingiu uma dor de cabeça, claramente para evitar tornar-se o
alvo para todas as explosões adicionais de Alanna.
Alanna também se levantou, mas Marguerida gesticulou para ela ficar.
- Minha querida, eu preciso de sua ajuda para organizar um pequeno jantar amanhã.
Venha ao meu escritório depois e eu vou dar-lhe uma lista de coisas a serem feitas.
- Como quiser, tia. - Alanna fez uma reverência antes de sair.
Domenic refletiu que, quaisquer que fossem as intenções de sua mãe, não seria nada
como uma pequena reunião. Ela conhecia muitas pessoas e ela e Mikhail eram
personalidades sociáveis e extrovertidas. Domenic suspeitava que, nesse aspecto, ele se
parecesse mais com o tio-avô Regis do que com seus pais. Ele, como Regis, era uma pessoa
essencialmente privada colocada em um papel público. Como Regis tinha conseguido fazer
isso?
Ele não conseguia se lembrar de Regis sem Danilo Syrts, seu irmão jurado e paxman
ao seu lado, ou Domna Linnea , emprestando-lhe sua força graciosa.
Olhando para seus pais, Domenic viu como eles também formavam um conjunto
harmonioso. Eles eram a direita e a esquerda, a escuridão e o amanhecer. Nesse momento,
ele soube que não poderia enfrentar o futuro que tinham planejado para ele se estivesse
sozinho. Mas ele não sabia onde encontrar a outra metade da sua alma.

Capítulo 03

Lewis-Kennard Alton estava na janela do salão principal na suíte Alton do Castelo


Comyn. Muitas tempestades já tinham atingido essas antigas paredes de pedra nos últimos
mil anos e os jardins ainda brilhavam. Mesmo assim, o pior do inverno já tinha passado, já
não havia neve grossa no chão e botões se abriam nos ramos nus do jardim.
Esta ala era uma das mais antigas do Castelo, as paredes com pedras luminosas de
cavernas profundas que se carregavam com a luz do dia e irradiavam um brilho suave à
O D o m d e A l t o n | 34

noite. Desde que Lew tinha visto o lugar pela última, alguém, provavelmente Marguerida,
cobriu os assentos de pedra antigos com almofadas de padrões de ondas marinhas de azul
e verde.
Lew suspirou. Em seus sessenta anos, com uma mão e seu rosto marcado com
cicatrizes, ele se sentia tão cansado em espírito como com o mundo frio e cinzento lá fora.
Ele tinha se refugiado em Armida, a propriedade da família, onde tinha um trabalho útil a
fazer, aconselhando o Gabriel mais jovem, domando cavalos, montando nos limites das
pastagens, saboreando a paz e a nostalgia de sua casa de infância. Marguerida tinha
especificamente pedido à ele para ir assistir ao funeral de Javanne Lanart-Hastur. Ele não
poderia ter ficado longe.
Este lugar é muito cheio de fantasmas. Ele pensou.
Memórias o deixaram agitado. Muitos anos atrás, Lew tinha montado com Regis
Hastur na estrada para Thendara para participar do Conselho. Regis tinha apenas 15 anos,
era magro e sério. Seu avô, Danvan Hastur, o estava preparando para tomar seu lugar como
regente do Comyn. Lew lembrava da fome nos olhos do homem mais jovem, enquanto
observava as naves do Império rugindo para o céu.
Isso foi quando a Federação ainda mantinha sua sede em Thendara, enquanto homens
de boa vontade de ambos os lados trabalhavam juntos - e também as mulheres, pois as
Renunciantes treinavam como parteiras do corpo médico Terranan e trabalhavam como
guias e tradutoras desde os dias de Madalen Lorne.
Antes da matriz ilegal, imensamente poderosa conhecida como Sharra levar todos à
loucura... Antes quando ele tinha amado e perdido Marjorie Scot...
Antes da guerra civil interestelar que rasgou o Império em duas partes, antes de
fechar sua Base em Darkover, antes do pesadelo na Estrada Velha do Norte e suas
consequências...
Mas tudo isso passou, melhor esquecer.
Um arrepio percorreu os ossos de Lew. Com o coto remanescente de sua mão, ele
agarrou a frente da camisa, onde sua matriz estava embrulhada em triplo isolamento de
seda. Ele não ousava olhar para suas luminescentes profundezas azuis.
O passado está ainda comigo.
- Pai, você está aqui, finalmente! - Marguerida entrou, usando um xale de tartan nas
cores de Alton sobre um vestido verde, como a sombra fresca debaixo de uma foresta de
pinheiros.
Ele se virou para ela, segurando sua mão. Ela sorriu, envolvendo-o com seu calor
especial e entrou em seu abraço.
Como é bom ter você conosco novamente. Ela falou com a mente dela para a dele.
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Lew afroxou o abraço, segurando-a à distância de um braço para olhar em seus olhos.
Apesar de sua postura forte, percebia-se a tensão em seus músculos.
- O que a incomoda, minha querida?
- Venha, sente-se. - Levando-o para a sala menor da família, ela apontou para o
assento almofadado ao lado da lareira. Os andirons eram novos, em forma Graciosa de
árvores entrelaçadas. O fogo tinha ardia em uma cama de brasas, irradiando um calor
delicadamente sedutor. Marguerida ofereceu seu pai a escolha entre jaco ou vinho quente
do aparador. Ele recusou ambos, mas ela serviu um copo da bebida amarga estimulante ,
com uma colher de mel perfumado, e sentou-se de frente para ele.
- Estou tão feliz por ter você aqui para conversar. Mikhail está se torturando com uma
mensagem que chegou há dois dias e não quer falar sobre isso, mas vai se juntar a nós mais
tarde.
Marguerida falou de ânimo leve, mas Lew sentiu sua angústia pelo segredo do marido.
Certamente, quaisquer pessoas casadas como Marguerida e Mikhail não podiam
compartilhar cada detalhe de suas vidas, mas sempre tinham sido abertos um com o outro.
Mikhail tem responsabilidades demais, acrescentou telepatcamente, então não
precisa ter medos infundados.
Isso era verdade. Mesmo em Armida, onde os Altons cultivavam e criavam seus belos
cavalos, e os cuidados desapareciam nas passagens rítmicas das estações, Lew sentiu o
quão difícil tinha sido para seu genro a Regência dos Domínios. Regis Hastur, que ocupara
esse cargo até sua morte três anos atrás, lançara uma longa sombra, que poderia perdurar
por gerações.
Mikhail tinha todas as características de um regente brilhante, treinado para o
trabalho desde a infância pelo próprio Regis. Lentamente, com sua deliberação habitual,
Mikhail foi moldando Darkover sem a presença dos Terranan. Os homens, por sua natureza
resistiram à mudança, mesmo quando ela foi para melhor. Se alguma vez a liderança de
Mikhail falhasse, mesmo assim muitos o apoiariam. No final, a paciência e o tempo iriam
vencer. Mikhail sabia disso e Marguerida também.
Então deve haver algo mais...
Sim, Marguerida respondeu e Lew captou uma centelha de medo em sua mente.
- Eu sou provavelmente muito sensível. - Ela disse, bebendo seu jaco e esfregando as
têmporas. - Eu tive uma das minhas dores de cabeça e foi muto intensa, não foi uma
comum, mas... Eu não posso dizer se é a minha premonição Aldaran ou apenas meus
nervos.
Lew levantou uma sobrancelha com o pensamento de Marguerida, por ela admitr tal
fragilidade.
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Marguerida franziu a testa. - Eu nunca confiei inteiramente nessas premonições. Por


um lado, elas mostram apenas o meu próprio futuro ou o de pessoas muito próximas a
mim. Quando Ariel Alar entrou em trabalho de parto pra ter Alanna, eu sabia que Alanna
ficaria bem porque nossas vidas se entrelaçariam, mas eu não tinha ideia do que
aconteceria com Ariel, como ela ficaria louca. Em segundo lugar, as previsões estão longe
de serem certas. Terceiro, e mais importante, eu me recuso a acreditar na predestinação ou
manter a superstição de que nossos destinos são selados pelos deuses. Deuses de qualquer
um.
Lew não pôde conter um sorriso. Se alguma vez uma pessoa eseve tão determinada a
criar o seu próprio destino, essa pessoa era sua filha teimosa. Desde o dia em que ela
voltou a Darkover, não, a partir do momento de seu nascimento, ela tinha enfrentado a
vida em seus próprios termos. Sua criação em Tétis lhe tinha dado uma independência e
uma abordagem direta para a vida incomum para uma mulher darkovana. Quando seus
parentes Alton haviam a pressionado para ela se casar e assumir seu lugar na sociedade
Comyn tradicional, ela forjou seu próprio caminho. Ela havia se casado, mas por amor, não
por imposição, ela tinha tomado sua herança e usou seu poder para expandir a
alfabetzação nas escolas de Darkover e para continuar com a música que era sua paixão.
Agora, ela estava ao lado de seu marido, um parceiro igual na defesa do mundo que tinha
aprendido a amar.
Marguerida continuou, - Quando Alanna ainda estava no útero, eu tinha uma visão de
sua selvageria e rebeldia, que certamente ela tem agora e que também será a causa de
grandes problemas. Na verdade, eu me lembro de pensar que ela deveria ser chamada
Deirdre, por toda a dor que ela traria.
- No entanto, você trouxe-a para sua própria casa e deu-lhe o carinho que a mãe não
podia dia. – Lew disse.
- O que mais havia para fazer? - Marguerida respondeu com algum calor. - Se
quisermos evitar um desastre, devemos guiá-la para um caminho diferente. Eu fiz o meu
melhor para ser paciente e compreensiva, para fazê-la se sentir aceita. Queria eu ter tido
mais sucesso. Ela não reagiu muito bem quando eu insisti que ela fosse para a Torre
Arilinn.
- A disciplina de Arilinn não é fácil. – Lew disse. - Não havia alternativa?
Marguerida balançou a cabeça. - Seu laran tinha se tornado muito perigoso. Seus
acessos foram piorando a cada dia. Mikhail e eu temíamos que sua mente fosse muito frágil
para resistir ao poder de seu talento. Eu não poderia salvá-la, então como eu não tive
escolha, tive que entregá-la para aqueles que podiam.
- Nesse caso, você fez certo ao mandá-la para lá. Se Arillin não pudesse ajudá-la, eu
duvido que alguém pudesse.
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- Sua temporada de treinamento realmente ajudaram a estabilizá-la. – Marguerida


disse. - Acredito que ela já passou pelo pior, apesar de seu temperamento ainda ser difícil.
Voltou para nós com a mesma teimosia, mas ela não iniciou incêndios ou jogou cerâmicas
na parede com sua mente. Na verdade, ela parecia ter efetivamente suprimido seu laran.
Ela não mais nos deixou afitos, então presumi que os Guardiões sabiam o que estavam
fazendo.
E sua premonição sobre ela?
Ela respondeu com um sorriso irônico. - Você me conhece muito bem, pai. Como você
pode ter suspeitado, nada nunca está inteiramente resolvido, e agora a sensação de que o
perigo se aproxima voltou. Eu não sei por quê. Alanna é como ela sempre foi. Ela é difícil, é
verdade, mas seu coração é bom. Ela pode ser doce e amorosa, assim como contrário. Eu
não posso ver como ela vai trazer qualquer ameaça maior agora do que antes.
Lew sentou-se, alisando o queixo. - Você tem certeza de que seu pressentimento está
relacionado com Alanna?
- O que mais seria? - Ela levantou-se em um movimento rápido, inquieto, puxando a
luva na mão esquerda, e começou a andar. - Os Domínios estão em paz, Francisco Ridenow
está em segurança no exílio, os terráqueos e o hediondo Lyle Belfontaine sumiram após a
batalha da velha Estrada do Norte e não é provável que volte em breve.
Memórias, como um enxame de fantasmas horríveis, levantaram-se na mente Lew. A
emboscada terranan na velha Estrada do Norte tinha sido o último ato teatral maldoso do
Chefe Lyle Belfontaine. O burocrata que fugiu quase tinha destruído o Conselho
governante enquanto cavalgavam para o funeral de Regis Hastur. O que poderia ter
signifcado para Darkover perder tantas mentes superdotadas em um único golpe era
terrível demais para contemplar. Combinando seus poderes psíquicos, canalizados através
do anel de Mikhail e da matriz de sombra de Marguerida, os dois tinham derrotado a
tentativa.
E depois... O intestino de Lew se apertou com a lembrança. Após a batalha, ele e
Marguerida tinham usado seu talento especial, o laran de Alton do contato forçado, para
apagar seletivamente a memória dos sobreviventes Terranan, de modo que eles não se
lembrassem de nada de extraordinário sobre a batalha.
Não havia outra opção, ele disse a si mesmo pela centésima vez. O Império nunca
descobriu o que o laran darkovano poderia fazer, nem como poderia ser usado como uma
arma. Qualquer esperança restante de manter seu mundo independente e livre
rapidamente chegou ao fim. Mais tarde Lew tinha chegado ao castelo bêbado pela primeira
vez em anos.
Marguerida estava certa. Eles tinham conquistado esta era atual de paz a um preço
terrível, mas os inimigos não permaneceram para ameaçar os Domínios. O Império foi
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consumido pela guerra interna. Alanna não oferecia nenhuma ameaça imediata. Ela tinha
espírito rebelde, sim, mas nada pior.
E jato…
E se Marguerida estIvesse percebendo a aproximação de outro perigo? Algo talvez
disfarçado como algo bom? Grandes males não tinham sido causados em nome de causas
nobres? Não é essa a grande história da Era do Caos? De Caer Donn e das chamas da
Sharra? Da Batalha da Estrada do Norte?
Fantasmas, ele pensou. Nada mais.
A conversa foi desviada para assuntos sem importância. Domenic e Yllana entraram,
conversando com a facilidade de irmãos afetuosos a muito tempo separados, algo sobre a
tentativa de Yllana para compor uma nova balada sobre o astronauta, o chieri, e a esposa
do fabricante de bebidas? Lew ficou surpreso ao ver como seus dois netos tinham crescido.
Domenic se inclinou educadamente, com apenas um traço do constrangimento
desengonçado de alguns anos atrás. Algo em sua reserva fez Lew se lembrar de Regis nessa
idade. Uma sugestão da vigilância com os olhos ao redor sugeriu que Domenic sentia as
coisas profundamente e que ele ainda não tinha encontrado seu lugar. Lew sorriu para o
menino, tão claramente lutando para se tornar um homem, com todas as incertezas,
emoções conflitantes e as demandas colocadas sobre ele.
Quanto a Yllana, ela não olhou diretamente para Lew, claramente se esforçando para
não olhar.
O que ela viu? Lew se perguntou. Ela sabia como ele era, um homem com aparente
idade além de seus anos, um aleijado com uma cara cheia de cicatrizes, uma boca cortada e
torcida em uma careta perpétua, um homem doente em sua própria alma...
- Ah, aqui está Mikhail. - Marguerida disse.
Mikhail entrou, conversando intensamente com o seu paxman, Donal Alar. Por cima
das habituais camisa e calça, ele usava uma túnica longa, sem mangas, decorada com pele
branca e faixas bordadas tecendo videiras em torno de uma representação estlizada do
pinheiro dos Hastur. Ele olhou para cima com a boca se curvando em um sorriso. Yllana
abraçou seu pai com o carinho de uma criança afetuosa. A tensão de Marguerida suavizou.
- Dom Lewis, você é muito bem-vindo. – Mikhail disse. - Talvez Marja fique mais dócil
para a próxima sessão, com seus olhos penetrantes para detectar qualquer problema. Você
é o nosso estadista, e nós valorizamos a perspectiva de sua experiência.
Lew não fez nenhum esforço para desviar o elogio, porque era verdade. Seu próprio
pai tinha o educado nos meandros da política dos tribunais e seus anos como senador no
Império haviam lhe dado ampla oportunidade de praticar essas habilidades.
Distraidamente, ele esfregou o coto de seu braço, que havia sido cortado após o desastre
de Sharra a fim de salvar sua vida.
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Yllana desculpou-se e, com um beijo de despedida para seus pais, deixou a sala. Donal
curvouse e seguiu-a, fechando a porta atrás de si. Domenic permaneceu atento em silêncio.
Quando Mikhail afundou em uma das cadeiras almofadadas, Marguerida lançou ao
marido um olhar preocupado.
Mikhail se inclinou para frente. - Você pode pensar que eu fui lisonjeiro, Lew, mas eu
não posso dizer como estou feliz por ter você aqui, especialmente neste momento.
- Por que neste momento? - Lew perguntou.
- O que aconteceu? - Marguerida disse, quase ao mesmo tempo.
Mikhail pôs a mão em um bolso interno de seu manto e tirou uma carta. - Isso chegou
há dois dias. Eu não mencionei antes porque tenho que pensar em como responder a isso.
Mikhail entregou a carta para sua esposa. O papel estalava quando ela estendeu-o
aberto. Ela leu, movendo os lábios como se formasse as palavras em roteiro darkovano. O
sangue foi sumindo de seu rosto.
É este o perigo que meu laran alertou? O pensamento correu em sua mente,
facilmente detectado por Lew.
- Você não pode estar falando sério. - Marguerida gaguejou em voz alta. - Mik, você
não pode concordar com isso!
- Vamos, deixe Lew ler a carta. – Mikhail disse. - Domenic já sabe o que ela contém.
Lew pegou o papel e leu devagar, tentando bloquear a angústa que irradiava da mente
de sua filha. A carta, dirigida a Mikhail em sua qualidade de Regente, começou com
expressões gentis de simpatia pela perda de sua mãe. O escritor tinha um comando
elegante dos maneirismos de etiqueta do Comyn, mas era respeitoso e íntimo.
Isso não poderia, Lew pensou, ser o que tinha preocupado Marguerida. Ele passou
para a próxima seção. A linguagem não era menos fluente, o desejo de reconciliação de
velhas brigas lindamente declarados. Era, na superfície, um pedido gentil de permissão para
o remetente se apresentar na próxima reunião do Conselho.
E vinha de Francisco Ridenow.
- Eu já respondi a carta. - Mikhail falou lentamente, como se tivesse escolhendo cada
frase com um cuidado especial. - Concedi-lhe licença para partcipar.
Com uma voz firme, Marguerida disse: - Eu queria que não o tivesse feito. Esse homem
não é de confança.
Lew sentiu uma onda de compaixão por sua filha. Perder Mikhail era a única coisa em
todo o mundo que Marguerida verdadeiramente temia.
- Dom Francisco está em uma situação difícil, mas temos que dar a ele uma chance. -
Mikhail respondeu. - Muito possivelmente ele está fazendo um grande esforço para
estabelecer uma boa reputação de novo.
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- Temo não ter sua fé persistente na natureza humana. - Os olhos de Marguerida


escureceram como bronze. - Eu sei de toda mudança, que os homens podem melhorar os
seus caminhos, mas eu acho difícil perdoá-lo. Ele era nosso amigo. Nós confiamos nele! E
olhe o que ele fez!
Francisco Ridenow por muito tempo alegou que o anel de Varzil Ridenow, chamado O
Bom, que agora descansava no dedo de Mikhail, deveria ter vindo para ele como uma
herança familiar. Implacavelmente ambicioso, Francisco tinha usado a abertura criada pela
emboscada na velha Estrada do Norte e, no meio da confusão, tentou assassinar Mikhail.
- Você esquece, meu coração, que ele não conseguiu. – Mikhail disse. - Nenhum dano
permanente foi feito. Temos de dar a ele a chance de ter um lugar entre nós de novo, se é
isso que ele realmente quer. Não vai ajudar em nada se nós jogarmos suas ações passadas
em sua cara, ou se nos revoltarmos todos contra ele.
Se todos os homens fossem julgados por seu passado, sem qualquer possibilidade de
remissão, então, todos nós iríamos congelar no mais frio Inferno de Zandru, Lew pensou
severamente. Eu, acima de todos.
Por que Mikhail tinha permitdo que Francisco retornasse à propriedade da família em
Serrais após a tentativa de assassinato, Lew nunca conseguiria entender. Uma geração
atrás, Dyan Ardais teria caçado Francisco até o fim do mundo sem pensar duas vezes.
Talvez Mikhail achasse que havia ainda algo de bom em Francisco, algo que valia a pena
salvar, ou talvez ele fosse menos sanguinário que outros do Comyn.
No entanto, o que Mikhail fez foi remover Francisco como chefe do Domínio Ridenow,
ou melhor, obrigou o Conselho a fazê-lo. Muito do que, Lew suspeitava, foi em prol do filho
muito bravo e determinado. O filho de Francisco tinha assumido o Dominio, um posto para
o qual a sua formação como Capitão da Guarda o tinha preparado muito bem.
Mikhail foi sábio em concordar com o pedido de Francisco? Certo ou não, as tradições
eram rígidas. A posse do Domínio Serrais era antiga e honrosa, e Francisco tinha o direito
pleno ao Domínio. Por esta razão, ele teria partidários no Conselho. Se Mikhail negasse tal
pedido ele iria entregar uma arma poderosa a Francisco, a da diplomacia. Lew conhecia o
temperamento do Conselho muito bem. Javanne havia forjado uma variedade de alianças
em sua cruzada contra Mikhail, e seus inimigos estariam muito felizes em pintá-lo como
sedento de poder e vingativo.
- Eu acho que você não tinha escolha. - Lew disse lentamente. - Apesar de tudo o que
ele fez, Francisco ainda é um Comyn.
- Avô Lew está certo. - Domenic falou. - Seria difícil justificar uma recusa.
- Vejo que estão todos voltados contra mim. - Marguerida disse com um sorriso pálido.
- Eu entendo suas razões, mesmo que eu não concorde com elas. Mik, se você deu a sua
palavra, então eu tenho que fazer o melhor possível e ficar do seu lado. Não acho, no
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entanto, que vou ter uma única respiração mais fácil, até que esse homem esteja de volta
em sua própria propriedade.
O alívio passou sobre sobre o rosto de Mikhail. - Tudo pode vir para o melhor. Temos
amigos no Conselho, como seu pai e os Hasturs de Elhalyn, e outros que buscam uma
solução pacífica, unindo Darkover. Vamos ter tempo para nos preparar.
Mikhail pegou a mão enluvada de Marguerida na sua, e, por um instante, a jóia de seu
anel brilhava com a luz de seus poderes unidos.
Lew pensou que, enquanto esses dois estivessem juntos, nada poderia diminuir sua
felicidade. Mas se alguma coisa acontecer com Mikhail, se a premonição de Marguerida
acabasse por estar correta, o que aconteceria então?
O que, então?

Capítulo 04

No cair da noite, depois do jantar formal do funeral de Javanne, Domenic foi ao quarto
de Alanna. Ele estava mais do que um pouco bêbado, então ele tinha uma desculpa para
ignorar a sua consciência e todas as regras de decoro de sua mãe.
O dia tinha sido muito longo, mais emocionalmente desgastante que podia se lembrar.
O cortejo fúnebre partiu cedo em a uma garoa congelada, viajando de Thendara para Hali.
Cisco Ridenow, como Capitão da Guarda da Cidade, havia se encarregado das medidas de
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segurança com efciência impiedosa. Mesmo assim, as memórias da emboscada há três


anos, estava na memória de todos.
O jovem Gabriel Lanart-Alton, como filho mais velho da falecida, liderou a procissão.
Seu nome, assim como seu pai, tinha sido originalmente Lanart-Hastur, mas quando
assumiu o controle do Domínio de Alton, ele havia tomado esse nome também. Mikhail e
Marguerida seguiram, junto com o avô Lew, em seguida, Domenic e Rory, que havia sido
liberado de suas funções na Guarda para participar. Ylanna andava em um carro mais para
trás, junto com sua tia Ariel e seu marido Piedro Alar. Miralys Elhalyn andava ao lado do
marido, Dani Hastur, e seu xará, Danilo Syrts-Ardais. Kennard-Dyan Ardais não tinha vindo a
Thendara para o funeral, nem a irmã de Mikhail, a leronis Liriel. O cortejo não era tão
grande quanto o que tinha acompanhado o corpo de Regis Hastur, mas honrou a mulher
que tinha sido sua irmã.
Eles chegaram ao campo ao longo das margens do Lago Hali. Umaz neblina verde
pálida espalhava-se sobre a terra. A garoa parou e as nuvens se abriram, revelando o sol
vermelho inchado. Quando Domenic tomou seu lugar marcado, algo incomum despertou
seu laran. Um lamento silencioso subia e descia, reverberando através de seu crânio. Talvez
tivesse sido um resíduo da misteriosa nuvem do lago Hali que diziam ser o resultado de um
cataclismo antigo, ou talvez fosse apenas a acumulação de séculos de dor.
Domenic tentou bloquear as ondas de medo e suspeita que emanavam e que
pareciam ser algum tipo de sofrimento. Fosse qual fosse a causa, sua avó tinha sido
ambiciosa e uma mulher desagradável. Ao mesmo tempo, ela tinha formado uma aliança
com Francisco Ridenow para substituir Mikhail como Regente e Chefe do Domínio Hastur.
Metade dos enlutados aqui tinha sido forçada a tomar partido. Talvez agora, com a
passagem de Javanne, a velha briga pudesse finalmente ser colocada para descansar.
Familiares e amigos se reuniram em um círculo qaundo o caixão de Javanne foi
baixado em uma cova sem marcação. Uma por uma, cada pessoa tinha compartlhado uma
lembrança particular da falecida. Os dois flhos da mulher morta que tinham sido capaz de
aparecer avançaram em primeiro lugar. Após Gabriel, Mikhail falou brevemente da mãe
que nutriu-lo, sem qualquer menção de sua animosidade posterior. Ele concluiu com a
frase tradicional, "Deixe a memória aliviar a dor."
Quando chegou a vez de Domenic falar, sua garganta fechou-se. Ele desejou que
houvesse alguma maneira de dar voz à tristeza brotando aos montes em camadas, da terra
antiga.
- A coisa mais importante que eu sei sobre minha avó, - ele finalmente forçou as
palavras, - é que ela era amada.
Ele ofereceu as palavras como um presente para o seu espírito. Deixe-a ser lembrada
por isso e nada menos.
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Então, ele acrescentou: - Vamos aliviar a dor. - E nesse momento, ele fez.
Emocionalmente esgotado, Domenic tinha voltado com os outros para o jantar de
funeral, no Salão Nobre do Castelo, um vasto espaço ecoando mais adequado para uma
festa do Solstício de Verão do que uma ocasião tão triste.
Rosetas e fitas em azul e prata, afado com preto, intensificaram a melancolia. Parecia
que metade do Conselho partcipava da refeição, todos eles olhando para ele como se ele
fosse um cavalo alto de raça que queriam comprar. Alanna não esteve presente, nem
Yllana. Rory disse que tinha deveres na Guarda da Cidade naquela noite, mas Domenic
suspeitava que seu irmão pretendia passar a noite bebendo com seu amigo mais próximo.
Para piorar a situação, Domenic não conseguia afastar a sensação de lamento fúnebre,
como o grito de um banshee, ecoando agora através das fundações de pedra do Castelo.
Ele tinha aprendido com a experiência que ele poderia suprimir as manifestações mais
desagradáveis de seu dom com vinho. Na época, ficar bêbado parecia a melhor maneira de
lidar com a situação social, também.
A refeição pareceu durar uma eternidade, em meio a carnes, aves e queijo,
combinando com vinhos e doces, o café que tanto amava havia sido utlizado no festival
passado.
Apenas a perspectiva de ver Alanna novamente sustentava Domenic nessas horas
intermináveis.
Agora, de volta para os quartos dos Alton, Domenic parou do lado de fora de sua
porta, ergueu-se a uma aproximação de estabilidade, e levantou uma mão para bater. De
dentro vinha o som abafado de choro.
- Alanna? - Ele bateu suavemente e, como não houve resposta nem ouviu uma pausa
nos soluços, ele levantou o trinco e entrou. Sombras estavam alojadas densamente no
outro lado da sala, a mesma que Alanna tinha usado desde que chegara ali ainda criança.
Um pequeno fogo cintilava na lareira, lançando uma luz incerta. O tapete oval em frente à
lareira, normalmente um padrão alegre de rosa e vermelho, era agora como se estivesse
coberto com manchas escuras e irregulares.
Alanna estava enrolada em sua cama, de frente para a parede, completamente
vestida, segurando seu brinquedo favorito da infância, um coelho-de-chifres de pelúcia.
Embora ele não pudesse vê-la claramente, ele sentiu o seu tremor.
- Alanna?
- Domenic? - Ela sentou-se com um ruído de panos e correu para ele, terna e calorosa,
soluçando em seus braços. Quando ela pressionou sua bochecha contra a dele, ele sentiu a
umidade de suas lágrimas. Ele afastou-as com as pontas dos dedos.
- Breda, não chore. O que aconteceu?
O D o m d e A l t o n | 44

- Oh, Domenic, é tão horrível aqui sem você! Ninguém se importa comigo! Eles todos
me querem fora do caminho, ou morta!
Domenic colocou seu braço ao redor de Alanna e levou-a de volta para a cama. Ele
sentou-se ao lado dela e segurou suas mãos. - Isso não é verdade. Só parece assim porque
você está chateada. Eu te amo, assim como minha mãe e tia Liriel, e meu pai a ama
também. Lembra-se quando éramos pequenos, ele costumava dizer o quão brilhante você
era, como se sua própria estrela descesse ao chão?
Alanna deu um soluço, de alguma forma caivante. - Você, você me ama?
- Sim, claro... - A voz de Domenic sumiu. Sua cabeça girava de novo, só que desta vez
não pelo excess de vinho, mas pela proximidade de Alanna.
Ela ergueu o rosto para ele. Ele sentiu o calor de sua respiração em seu rosto, viu as
gotas minúsculas em suas pestanas. Seus olhos eram como piscinas verde-matizadas com
sombras de um profundo mistério. Seus lábios se separaram e se perguntou como seria a
sensação deles, como seria seu sabor, o cheiro de seu pescoço se ele enterrasse o rosto
naquelas curvas graciosas, a sensação de sua pele.
Assim que ele se inclinou para ela, Alanna se moveu envolvendo os braços em volta de
sua cintura. Seu rosto se encaixou na curva de seu ombro. Ela suspirou e outra emoção,
parte alegria, parte arrebatamento, elevou-se nele. Uma imagem veio à sua mente, eles
juntos e nus, como seria o corpo dela, como seria passar as mãos sobre os seios e coxas
dela e os lugares misteriosos entre eles...
Oh, deuses...
Uma sensação, como fogo aceso em sua virilha subiu para o seu rosto. Seu coração
batia como cascos galopantes.
Domenic ergueu suas barreiras laran. Como ele, Alanna era psiquicamente dotada;
eles haviam estudado em uma Torre, ele por quase três anos em Neskaya e ela por uma
breve temporada em Arilinn. Por qualquer padrão de comportamento adequado entre
telepatas, o que ele tinha acabado de fazer...seus pensamentos lascivos chegavam a beira
da agressão.
Como ele podia tratá-la assim? Domenic se perguntou, horrorizado. Como ele poderia
se comportar de tal maneira bárbara nesse momento, com uma jovem mulher adorável,
alguém que ele amava desde que eram crianças?
Oh, Alanna! Ele pensou, mesmo que ela não pudesse ouvi-lo. Eu não faria nada no
mundo para ofendê-la, mas eu não tinha idéia que eu me sentia desse jeito, ou o que você
poderia fazer comigo...
Alanna não deu nenhum sinal de que estava ciente do que acabara de acontecer. Em
vez disso, ela irradiava uma inocência quase infantil. No entanto, havia paixão, ele sentiu
O D o m d e A l t o n | 45

profundamente dentro dela, e laran também. Tanto a sexualidade dela quanto seus
talentos psíquicos pareciam estranhamente silenciados.
Domenic estremeceu, subitamente sóbrio. Ela estudou em Arilinn... que foi uma vez a
mais prestgiada de todas as Torres...
Arilinn, onde até agora preservava as velhas formas de treinamento para as Guardiãs.
Os mesmos canais de energia transmitiam o laran e o impulso sexual. As Guardiãs no
passado, suportavam um treinamento inimaginável, permanecendo não só castas, mas
incapazes de resposta sexual normal. Era tudo um absurdo, é claro. Dorilys Aillard, o Sino
de Ouro de Arilinn, tinha provado isso à gerações atrás.
Certamente, os trabalhadores de Arilinn não teriam... Hoje em dia ninguém mais
acreditava em tais superstições.
Gentilmente, como se ela fosse de vidro e prestes a quebrar, Domenic tomou o rosto
de Alanna entre as mãos. Na penumbra, seus olhos brilharam. Ele não conseguia ler o que
estava em suas profundezas - medo, vontade, desejo? Ou seria a sua própria esperança
colocando essas respostas lá?
Ela não resistiu quando ele inclinou a cabeça e tocou a boca com a sua. Seus lábios
estavam tão suaves como pétalas novas abertas, mas firmes e quentes.
Domenic beijou mais profundamente, movendo seus lábios nos dela. Ela tinha gosto
de mel, quente como chamas...
Ela fez um som no fundo de sua garganta, ou ele pensou que ela fez. Havia alguma
centelha de desejo em corresponder ao seu beijo? Ou ele tinha imaginado, criado a partir
de sua ânsia própria? Ele afastou-se, mais uma vez, olhando em seus olhos.
- Isso é desagradável para você? - Ele perguntou, esperando que sua voz não
tremesse.
Por um longo momento, ela ficou em silêncio, e se perguntou se ele a tinha realmente
ofendido. Seus sentidos giraram e ele mal podia ouvir sua própria voz sobre o bater do seu
coração.
Em resposta, ela estendeu a mão e puxou-o para ela. Seus lábios se moviam contra o
seu com uma estranha combinação de hesitação e ansiedade. O toque de seus dedos em
seu pescoço o excitou mais do que acreditava ser possível.
O beijo pareceu durar para sempre. Domenic sentiu o sangue cantar em seus ouvidos,
e ondas de tontura o sacudiram. Ele mal podia acreditar que aquilo estava acontecendo
com ele. Ele queria tocar seu pescoço, seus seios, suas coxas. No entanto, ele estava com
medo de fazer o menor movimento, com medo do movimento destruir o que estavam
construindo entre eles.
Alanna mudou, pressionando seu corpo contra o dele. Ele apertou seus braços ao
redor dela. Onde quer que eles se tocassem, sua pele parecia insuportavelmente sensível.
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Um pulso latejante começou a partir do núcleo mais profundo de sua bacia, espalhando-se
para cima ao longo de seus canais de laran através do intestno, pulmões e coração. Quando
Alanna abriu os lábios e correu a ponta da língua sobre o interior de sua boca, o contato
acendeu uma cascata de prazer derretido.
Domenic se afastou, ofegante.
- Es…está tudo bem? - Ela perguntou, sua voz um sussurro ofegante.
Deuses, sim! Quando ele se sentiu tão intensamente vivo, elevando seu espírito a cada
pulsação?
Ele recobrou-se o suficiente para perguntar: - Você quer ir em frente?
- Eu…eu me sinto tão estranha, Domenic, como se meu corpo pertencesse a outra
pessoa, e ainda estivesse tentando lembrar de algo. Algo forte e profundo. Alguma parte
quase perdida de quem eu sou. Você se lembra de como eu pensava que eu era duas
pessoas.
- Quieta, meu amor. Não pense nisso agora.
Alanna pegou sua mão e, maravilha além de maravilhas, colocou-a sobre seu peito.
Ele fechou os olhos, curvando os dedos em torno da carne macia. Através do vestido e
blusa, ele sentiu um ponto, como uma pequena noz, crescendo mais. Murmurou de prazer
e pensou em cada pequeno som reverberando através dele.
Domenic deslizou sua mão livre sob o cabelo Alanna, consciente de que nas tradições
dos Domínios, o único homem que podia ver ou acariciar a nuca de uma mulher era seu
amante. O suor umedecia sua pele. Ele segurou a parte de trás de sua cabeça e inclinou-a
para outro beijo. Quando seus lábios se encontraram ansiosamente ele entregou-se ao
aumento da alegria. Ele estava bêbado de vinho do jantar ou com sua proximidade? Ele não
se importava.
De alguma forma, sua boca escorregou da dela. Ele cobriu seu rosto com beijos, então
o lado de seu pescoço e descendo na encosta doce do ombro até as ondas de seu peito. A
fragrância de sua pele o envolveu, inebriante e convincente.
- Oh, Alanna... Oh, meu doce amor...
Ela sussurou, seus braços apertados ao redor dele. - Nunca me deixe. - Ela falou. - Não
me deixe ir.
Alguma coisa harmônica em sua voz, um tom de súplica infantil, rompeu sua excitação
crescente.
O que ele estava fazendo?
Domenic prendeu a respiração e sentou-se ereto, abraçando-a. Por um longo
momento, ele não conseguiu falar enquanto lutava para recuperar o auto-controle. Não
importava como ele se sentisse, quaisquer que fossem os impulsos que lhe ocorressem, ele
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devia isso a ela - sem mencionar todos os padrões de conduta decentes e adequados, e
tratá-la com todo o respeito devido a uma Comynara.
- Aconteça o que acontecer, - ele murmurou, sua voz tremendo com o esforço, - eu
vou cuidar de você. Nós estaremos sempre juntos.
Somente quando as palavras foram ditas e não poderiam mais serem trazidas de volta
Domenic percebeu que, como herdeiro de Hastur e o Regente seguinte do Comyn, ele não
tinha o direito de fazer tal promessa. Não à Alanna, não a qualquer mulher de sua própria
escolha. Além disso, eram parentes de sangue, mas e daí? Os primos há muito tempo eram
permitdos, até mesmo encorajados, a se casar.
Havia uma centena de razões pelas quais ele não devia pensar em Alanna como
amante. Nesse momento, com o peso de sua cabeça descansando contra ele, seu corpo
tremendo com fogo, excitação e coisas que ele não poderia nomear, mas que só ela
poderia compreender, ele não se importava.

Capítulo 05

Quando a primavera se transformou em início de verão, o clima ficou ameno, com


apenas algumas nuvens finas. Danilo Syrts-Ardais começou a andar pelas ruas de Thendara.
Em seu final dos cinquenta anos, ele ainda mantinha a forma, magra e Graciosa, de um
homem muito mais jovem. Seu cabelo, cortado como estava na moda, ainda era escuro,
mas sombras assombravam seus olhos, e os vincos ao redor da boca denotavam seu
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profundo sofrimento. Ele havia sido bonito quando jovem, bonito o suficiente para atrair
atenção não desejada, mas o tempo e a dor tinham afugentado a beleza, deixando seus
traços gritantes, mas não menos atraente.
A febre do pulmão no inverno anterior o deixou debilitado, mas agora, com a chegada
dos dias mais quentes e o verde crescente, um novo vigor surgiu nele. Envolto em sua capa
forrada de pele, ele andava pelos mercados, inalando a vitalidade da cidade. Virando o
rosto para o céu claro, ele sentiu o inverno afrouxando o aperto em seu próprio coração.
Quando Regis morreu, ele não conseguia imaginar como ir em frente. Agora, quando a
dor começava a diminuir, ele descobriu uma nova força.
Depois que compartilhamos o amor com outro ser humano, ele faz parte de nós para
sempre. Danilo não conseguia se lembrar quem tinha dito essas palavras, mas a cada dia
que passava, ele sentia a verdade nelas. Seriam anos ainda antes da dor como uma ferida
sangrenta dentro dele deixasse de assombrar seus sonhos, mas o tempo chegaria. Talvez
ele nunca se recuperasse dessa perda, talvez ele não devesse. Mas a vida seguia e ele
também.
Danilo parou em uma barraca ao ar livre, onde havia uma mulher com o rosto
vermelho por estar sobre uma panela de água quente, tirando bolinhos cozidos no vapor. A
barraca de comida oferecia salsichas envoltas em folhas verdes, maçãs assadas e espetos
de pequenas cebolas douradas. Um menino em roupas esfarrapadas esperava na parte de
trás da loja e Danilo viu como a mulher encher sua tigela de barro com os salgados.
Ele sabia que reuniões secretas estavam sendo realizadas dentro do castelo, esquemas
e mudanças de poder. Até agora ele não tinha lugar lá. Aqui, nos mercados, nos distritos de
artesanato, nos mananciais e nos pátios estáveis, pelas ruas residenciais mais pobres, ele
encontrava seu verdadeiro caminho. Ele já tinha começado a restabelecer a rede de
informantes que havia criado durante seus anos como paxman para Regis - proprietários,
cavalariços, viajantes, um ferreiro ou dois… pessoas que podiam ver e ouvir coisas
escondidas do Comyn.
Mas nem tudo estava pacífico na rua. Duas vezes agora, Danilo tinha observado
grupos de homens mal-vestidos sussurrando nos cantos, e que o olhavam com franca
desconfiança. Eles murmuravam palavras como "espião do Comyn!" seguido por uma
maldição, antes de se afastarem.
Ele viu Domenic na beira da praça do mercado, sombreado por dois guardas do castelo
uniformizados. Uma capa com capuz cobria o cabelo do rapaz, mas não havia como
confundir sua postura, um tanto cautelosa e animada, ou aqueles olhos de um cinza quase
luminoso, manchados de ouro. Algo na maneira de se mover de Domenic fez Danilo se
lembrar de Regis quando jovem, a maneira como ele se mantinha um pouco distante,
desconfiado e intenso.
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Danilo tinha tido pouco contato com Domenic ao longo dos últimos anos, mas o
menino parecia ter evitado as piores consequências de crescer com dois pais carismátcos,
ele não era nem um valentão nem uma criança auto-indulgente. Ele tinha um espírito
independente como um adolescente. E ele tinha estudado em uma Torre por cerca de três
anos. Depois de ter a liberdade tão cedo, não seria fácil de aceitar a presença de uma
escolta para proteção.
Domenic sorriu enquanto Danilo se aproximou e deu-lhe bom dia. O Guarda inclinou-
se para ele e recuou um passo ou dois, mantendo-se vigilante.
- É um belo dia para estar do lado de for a. – Danilo disse.
- Sim! - Domenic concordou. - Eu pensei que o inverno nunca fosse acabar.
Algum impulso levou Danilo a dizer: - Vamos caminhar juntos e fingir por um
momento que somos apenas dois homens comuns?
- Se isso fosse possível! - Domenic revirou os olhos na direção dos guardas.
- Algumas coisas nunca mudam. - Danilo caminhou em direção às bancas dos
trabalhadores de couro, deixando os guardas seguirem. – Em seu tempo Regis desejava
prestar contas apenas à sua própria consciência e não ao Comyn e todos os Sete Domínios.
Ele sonhava um dia viajar para as estrelas. Alguma vez ele lhe disse isso?
Domenic balançou a cabeça, sua expressão atônita. - Tio Regis? Não, ele nunca disse.
- É claro que, como herdeiro Hastur, Regis nunca teve a chance de deixar Darkover. -
Danilo continuou. A angústa surgiu nele, por sua própria perda, pelo sacrifício de seu
amado. Que escolha qualquer um deles teve? - Ele costumava dizer que não escolheu sua
paternidade com sabedoria.
- Minha mãe frequentemente repete esse ditado para mim. - Domenic fez uma careta.
- Infelizmente, sou culpado do mesmo lapso de julgamento.
- Você trocaria sua mãe e pai por outros pais? - Lembrando-se de Danvan Hastur,
aquele velho tirano irascível que fora avô de Regis, Danilo ergueu uma sobrancelha. – Por
quem?
- Qualquer um! Ninguém! Eu não sei! - Domenic pegou uma bainha de adaga de couro
trabalhada e, vendo o vendedor aproximar-se, recolocou-a às pressas na mesa e continuou
andando. - Não me entenda mal, eu não os trocaria por ninguém em nenhum mundo. Amo
muito meus pais e eles me amam. São pessoas maravilhosas. É só que... as coisas que eles
fizeram, as escolhas que fizeram, não são minhas.
Eu não posso ser eles.
- Eu duvido que eles esperem que você seja como eles. - Danilo disse levemente,
respondendo ao pensamento telepático Domenic.
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- Daqui a dez dias, - Domenic comentou, - a temporada do Conselho começará.


Francisco Ridenow vai chegar. Ele está trazendo sua flha! Há muito que tenho que aprender
ainda.
Mas aqui estou eu, andando pelas ruas…
- ...Desperdiçando uma manhã inteira.
Danilo olhou para o homem mais jovem, imaginando se o tempo e o esforço de
encontrar o próprio caminho na vida foram desperdiçados. Algumas coisas não podiam ser
apressadas. Esse garoto claramente precisava de alguém além de seus pais para conversar.
- Você já fez o desejum? - Danilo perguntou.
Domenic balançou a cabeça de um modo que indicava que ele não tinha interesse em
alimentos. Danilo franziu a testa, pois a perda de apetite era um sinal de doença do limiar.
- Vamos continuar essa conversa no meu quarto, - Danilo sugeriu - mas sem a sua
escolta. Você pode ficar sem o café da manhã, mas um homem velho como eu não pode.
Com um aceno de cabeça que poderia ter sido timidez ou gratidão, Domenic caminhou
ao lado dele. Entraram por um dos portões laterais do castelo, onde Domenic dispensou os
guardas e subiram uma escada dos fundos.
Embora ele não fosse mais o Regente, Danilo ainda mantinha um conjunto de quartos
na seção Ardais do castelo. A sala de estar, com sua lareira larga e sem adornos, continha
várias cadeiras estofadas em couro vinho-escuro com apoios para os pés, um aparador e
uma mesa baixa. Os móveis já estavam velhos quando Dyan Ardais entregou a Danilo.
Depois de se instalarem nos aposentos de Danilo, seu criado trouxe uma panela de
tisana de ervas.
- Devo tomar esta bebida revoltante duas vezes por dia para os pulmões. – Danilo
disse. - Voce gostaria de beber? Posso encomendar com facilidade jaco ou cidra com
especiarias, se você preferir. - Ele tomou seu lugar de sempre à beira da lareira e fez um
gesto para Domenic se juntar a ele.
- Jaco, por favor.
- Escolha inteligente. - Danilo bebeu a tisana amarga. Fazendo uma careta, ele
acrescentou uma colherada de mel em seguida.
- Você foi o amigo mais próximo do Tio Regis. - Domenic deixou escapar. - Se ele ainda
estivesse vivo, eu iria até ele, mas ele não está. Mas se ele ainda fosse o Regente, não o
meu pai, tudo seria diferente... Eu… preciso falar com alguém.
Danilo sentiu uma onda de compaixão para com o homem mais jovem, por muitas
vezes em sua própria juventude, ele também precisara falar com alguém.
O servo voltou com uma fatia de pão de nozes assado ao estilo da cidade e, ainda
quente dos fornos do Castelo, uma tigela coberta de coalhada fresca, outra de geléia de
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cereja e um jarro de cerâmica de jaco sem açúcar. Danilo espalhou uma fatia de queijo no
pão e entregou-a a Domenic.
- Primeiro coma isso e depois vamos discutir sobre as coisas.
As sobrancelhas de Domenic ficaram tensas, quase franzindo a testa, mas ele deu uma
mordida hesitante. Então, como se uma comporta de fome fosse subitamente aberta, ele
devorou o resto do pão, três xícaras de jaco, o queijo e a maior parte da geléia. A cor voltou
a aparecer em seu rosto. Ele soltou um suspiro profundo.
- Obrigado. - Visivelmente refeito, Domenic disse: - Eu queria perguntar-lhe como eu
devo fazer para escolher um paxman.
- Você precisa de um?
O jovem sentou-se, parecendo surpreso e um pouco escandalizado. - Eu sou o
herdeiro presumido de Hastur e da Regência. Não posso desempenhar minhas funções sem
um paxman!
- Pelo contrário, - disse Danilo - é exatamente a coisa certa a fazer. Certamente seria
preferível contratar uma secretária e deixar que os Guardas da cidade continuem a
caminhar a sua volta, em vez de ligar-se com o homem errado.
- Me unir? - Domenic franziu a testa. - Eu pensei que era o contrário.
Danilo se inclinou para frente. O couro da cadeira rangeu sob seu peso. - Por que
exatamente você precisa de um paxman? O que ele faria por você que algum mercenário
ou você mesmo, não poderia fazer muito bem?
Os olhos cinza salpicados de ouro de Domenic estreitaram-se em compreensão. O
rapaz era afiado. - Você está dizendo que não é necessário? Uma relíquia da época em que
cada Lorde Comyn tinha boas razões para temer uma adaga nas costas? E você e o tio
Regis? Você não o protegeu e aconselhou?
Eu fiz, Danilo pensou, isso e muito mais, mas nenhum deles por dever.
Em voz alta, Danilo murmurou: - Foi um presente que Regis me deu, não o contrário.
Não escolhemos ser Lorde e paxman. O destino e nossos corações nos fizeram bredin, - ele
usou a inflexão que significava uma intimidade ainda mais profunda que de irmãos jurados
- e o resto foi uma questão de tradição. Você não pode forçar esse vínculo profundo, assim
como não pode escolher a forma do seu laran. Se você quiser o meu conselho, esperará
que a pessoa certa apareça - se ele aparecer - e não se preocupe. Existem muitos outros
que podem desempenhar as tarefas necessárias e com a mesma capacidade.
Domenic afundou na cadeira. - É tudo tão complicado. Eu pensei que você poderia me
dizer o que procurar em um paxman, porque você tinha sido um. Você sabe… as
habilidades certas, o temperamento certo. Mas não é isso que significa ter um paxman… ou
ser um. É sobre amor, lealdade e honra, não é?
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Danilo ouviu a fome na voz do menino, a paixão e a solidão. Alguma coisa profunda
dentro dele respondeu. - Nós não somos uma sociedade de leis impessoais, como os
Terranan. São essas mesmas coisas… amor, lealdade e honra… que unem os Domínios.
Quando nos desviamos, esses princípios nos chamam de volta a nós mesmos.
Domenic assentiu. - Pensei que eu precisava de um paxman para me dar confiança.
- Ninguém pode lhe dar isso. Você deve encontrar dentro de si mesmo.
- Suponho que sim. Mas meus pais esperam muito de mim!
- Será que eles esperam mais de você do que eles esperam de si mesmos?
- Bem, - Domenic disse ironicamente, - minha mãe sozinha realiza mais do que cinco
pessoas normais.
- Isso não é tão ruim. – Danilo disse. - Talvez trabalho seja o que ela precisa, de
maneira que ela possa usar seu conhecimento e experiência. Domna Marguerida é uma
mulher muito competente.
- Eu que o diga! - Domenic explodiu e os dois riram.
- O que você prefere que ela faça? - Danilo perguntou. - Prantear-se em histeria, com
nada mais útil para fazer do que contar os buracos nas roupas? Ou levar adiante a visão que
ela divide com Mikhail, ajudando a moldar o futuro de Darkover?
- Por que ela tem que me moldar junto com isso? Eu nunca apreciei o costume de criar
filhos até agora. Sempre pensei que o tio Piedro e a tia Ariel estavam se esquivando do
dever aao enviar Alanna para nós. Agora, eu quase gostaria de ter ido morar com eles em
troca! Por que é muito mais fácil conversar com estranhos do que com meus próprios pais?
Será que você não poderia me adotar?
Danilo riu. - Acho que não. Você tem que idade, vinte anos? De acordo com todas as
nossas tradições, você não é mais uma criança. Uma geração atrás, você já teria uma
esposa e um herdeiro e estaria sentado nas Cortes ou administrando a propriedade da
família.
- Estes tempos são diferentes. – Domenic disse. - Há tanta coisa que eu tenho que
aprender primeiro, não menos do que como sobreviver à intriga política do Conselho.
Quero encontrar meu próprio caminho! Eu não quero ser como um daqueles bonecos-de-
corda do mercado.
- Nem Regis. - Danilo disse calmamente.
Ele se lembrava muito bem que Regis tinha estado sob intensa pressão para aceitar as
suas responsabilidades no Conselho e com seu Domínio. Ambos sabiam que era esperado
que se casasse e tivesse filhos, para ser tudo o que seu avô formidável exigia.
- No entanto, - Danilo disse em voz alta, - no final, Regis fez sua própria escolha. Ele
aceitou sua herança e obrigações livremente, não porque Lorde Danvan esperava isso dele.
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Você provavelmente já ouviu histórias de que Regis se foi líder da expedição para encontrar
uma cura para a febre dos Homens da floresta, usou a espada de Aldones para vencer
Sharra e ergueu-se contra os Destruidores de Mundos. Nenhuma dessas coisas foram idéia
de Lorde Danvan, e nenhum deles jamais havia feito isso antes. Regis aceitou a posição de
Regente de seu próprio destino, com sua própria visão, seus próprios talentos. Você vai
conseguir também...
Danilo ficou alerta com seu sentido telepátco. Havia outra pessoa próxima.
Domenic se levantou da cadeira, atravessou a porta em dois passos e a abriu
revelando uma jovem bonita e desconsolada. Danilo reconheceu a filha adotiva de
Marguerida, embora ele a tenha visto muito pouco nos últimos anos. Ela usava uma saia
laranja rendada e uma jaqueta de veludo cor de rosa, como se tivesse vestido as roupas
mais próximas à mão.
- Alanna! – Domenic disse.
Com um grito, a menina jogou-se nos braços de Domenic. Danilo disse: - Acho que é
melhor trazê-la para dentro.
Em pouco tempo, Alanna estava sentada em uma das poltronas de couro, e um
segundo café da manhã, com uma garrafa extra de jaco, tinha sido trazido para eles.
Domenic empoleirado ao lado dela em um banquinho esfregava as mãos dela entre as dele.
Ela estava pálida, exceto pelos pontos vermelhos que se agitavam em suas bochechas. Seus
cabelos estavam enrolados em mechas úmidas e rebeldes em seu rosto. Ela ainda não tinha
parado de tremer.
- Eu sei que foi errado segui-lo, - disse ela, entre soluços. - Mas não pude evitar.
As emoções da menina eram como uma turbulência visível. Arrancavam arrepios dos
nervos de Danilo. Seus olhares se encontraram por um instante quanto sua mente tocou a
dela. Nesse momento, Danilo não a viu como uma damisela delicadamente criada, mas
como uma criatura de fogo e gelo. Fios de luz, como chamas incolores, fluíam de sua
cabeça e das mãos. Ela vibrou com as correntes oscilantes, envoltas em uma confusão de
luz e movimento…
Com um soluço, Alanna escondeu o rosto entre as mãos. - O que ele está fazendo,
faça-o parar!
- Dom Danilo não fez nada com você, querida. - Domenic disse.
- Ele está na minha mente, eu sinto! Ele está colocando coisas lá!
A menina balançava em sua cadeira. Danilo pegou-a em seus braços antes que ela
caisse. As mãos dela roçaram o seu rosto e ele sentiu o cheiro de sua pele úmida. O contato
físico intensifcou a relação telepátca.
Ele ficou no meio de um turbilhão, não de ar comum, mas de luz e energia. As
imagens se sobrepunham, como reflexos de uma piscina de luzes coloridas.
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... ele se viu, segurando uma garota inconsciente nos braços, viu Domenic fazer o
mesmo...
... ele viu a sala vazia, se viu olhando para um coração frio, uma casca de tristeza,
segurando um punhal no peito...
Ele viu... Lew Alton entrando na sala, o fogo de Sharra queimando atrás de seus
olhos...
Com um grito suave, Alanna desmaiou em seus braços e as visões desapareceram
deixando apenas um profundo tremor na medula de seus ossos. Com a ajuda de Domenic,
ele levou a menina de volta para a cadeira.
Uma batida na porta anunciou a chegada de mais comida. Alanna se mexeu com a
entrada dos criados e devorou três pães espirais com laços de frutas, como se não tivesse
comido nada a dias.
- Pelos Sete Infernos Congelados de Zandru, Alanna, o que foi isso? - Domenic
perguntou com uma expressão de espanto.
- Você também viu? - Alanna choramingou.
- Eu acho que nós dois vimos, você nos enviou as imagens telepátcas fortemente. –
Domenic respondeu.
Alanna olhou como se estivesse prestes a explodir em lágrimas. - O que há de errado
comigo? Estou ficando louca?
- Dificilmente, - disse Danilo, tentando dar uma nota de calma e racionalidade para a
conversa - embora possa parecer assim, porque você não entende o que está acontecendo.
Há quanto tempo você esta tendo essas visões?
Alanna fungou e esfregou o nariz com a delicada mão. - Visões? Elas parecem mais
fluxos de água em um rio. Cada um me leva a um tempo ou lugar ligeiramente diferente.
Elas começaram na época do funeral da avó Javanne.
Ela virou os olhos molhados de lágrimas para Domenic. - O que está acontecendo
comigo?
O menino tomou-a em seus braços, de uma forma que nenhum homem podia fazer. -
Está tudo bem, minha querida.
- Não. - Alanna lamentou, ficando em pé. - Não está tudo bem! É horrível e eu quero
que pare!
- É certamente laran. - Danilo disse, embora ele nunca tivesse ouvido falar de tal dom.
Os Aldarans foram os primeiros a possuir precognição, mas, tanto quanto sabia, Alanna não
tinha sangue Aldaran. Além disso, a menina já havia passado da idade em que os talentos
psíquicos geralmente se manifestavam.
- Tia Liriel me testou quando fiz doze anos e disse que eu tinha muito potencial para
laran. – Alanna disse franzindo a testa. - Por um tempo, eu pude mover objetos pequenos e
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iniciar incêndios. Então tia Marguerida me fez ir para Arilinn. Eu odiava, odiava aquilo!
Nada além de regras, regulamentos e vozes ecoando na minha cabeça! Depois que Dom
Regis morreu eu me recusei a voltar. Se eles tivessem me feito, eu teria fugido, em vez de
passar minha vida enclausurada naquela velha torre abafada, com todo mundo tentando
me controlar.
- Passei quase três anos em uma Torre e não foi tão ruim. – Domenic disse.
Alanna balançou a cabeça, enviando ondas através de seus emaranhados cachos de
cobre. - Não quero falar sobre isso! Tudo que eu quero é fazer essa coisa na minha cabeça
parar!
Levantando-se, Alanna pegou a caneca, ainda meio cheia de jaco, e afastou o braço
para jogá-la na parede oposta.
Danilo pegou o braço dela, habilmente retirando a caneca de sua mão. - Acho que suas
energias seriam muito melhor aproveitadas, damisela, aprendendo a dominar suas visões.
Por outro lado, seria muito mais fácil quebrar a louça.
- Se você quer me mandar de volta para Arilinn, pode esquecer! - Alanna enfatizou.
- Isso é precisamente o que eu aconselho. - Danilo disse com firmeza. - Um telepata
destreinado é um perigo para si mesmo e todos ao seu redor.
- Eu não vou! - Alanna gritou. - Eu não vou, não vou, não vou! - Sua voz aumentou de
volume a cada repetição. Seu rosto ficou vermelho e lágrimas jorraram. Suas mãos
delicadas se fecharam em punhos.
Gentilmente, Domenic a tomou em seus braços e, surpreendentemente, ela se
acalmou quase imediatamente. Ele acariciou seus cabelos, murmurando: - Está tudo bem,
ninguém vai forçá-la.
- O que vamos fazer? - Ela perguntou, agarrando-se a ele.
- Nós vamos ter que encontrar alguém para ensiná-la. – Domenic disse.
- Você pode fazer isso?
- Não, ele não pode. - Danilo disse. Uma menina voluntáriosa, com laran tão forte,
precisava de um professor que não pudesse ser intimidado ou manipulado. Ele desejou
que Lady Linnea ainda estivesse em Thendara para pedir-lhe conselhos. Talvez, em um
ambiente menos formal do que uma Torre, ela pudesse dar à Alanna a orientação que a
garota tanto precisava.
Alanna levantou o queixo e alisou suas saias amarrotadas. – Então eu simplesmente
vou tartar isso como qualquer outro aborrecimento. É como doença do limiar, depois de
tudo, e que foi embora por conta própria.
- Damisela, você está propondo uma coisa muito tola. - Danilo disse severamente. -
Suas visões não vão embora por conta própria. Apenas uma Guardiã treinada como nos
velhos tempos poderia seguramente suprimi-las e não estou certo de que seja uma boa
O D o m d e A l t o n | 56

idéia. É provável que elas fiquem cada vez piores, a menos que você aprenda a controlar o
seu dom.
- Você só está dizendo isso porque você me odeia! Você quer se livrar de mim! - Ela
virou-se novamente contra ele.
Danilo olhou para a jovem mulher perturbada, ciente de que ele sentia muito pouca
simpatia por ela. Como Guarda e mais tarde como paxman e guarda-costas de Regis, ele
lidou com bêbados e ladrões, assassinos e seqüestradores. Ele não era um estranho para a
violência física. Mas as mulheres jovens em vias de acessos de raiva eram outra questão.
Ele queria pegar a menina e dar algum juízo à ela, mais só intensificaria sua resistência.
- Querida, eu concordo com Dom Danilo. - Domenic disse, parecendo desconfortável. -
Eu não acho que é uma boa idéia ignorer suas visões. Nós dois vimos como elas angustiam
você. Certamente, a leronis de Arilinn tem as habilidades para ajudá-la.
- Enquanto você estiver perto de mim, eu estarei bem. - Alanna deslizou sua mão na
de Domenic. Sua voz se suavizou e seus olhos brilhavam quando ela sorriu para ele. Danilo
sentiu a centelha da paixão física entre eles.
- Na verdade... - Ela murmurou. - Prometa-me que você vai esquecer tudo sobre o
meu desabafo.
Quando Domenic tranquilizou-a, Danilo desejou que o garoto não tivesse cedido tão
facilmente. Alanna era uma mulher extraordinariamente desejável e jovem. Mesmo que
Danilo nunca tenha sido atraído por mulheres, uma vez que ele tinha dado seu coração a
Regis, ele entendeu o poder de atração sexual. Da maneira como Domenic olhou para ela,
sentiu que ele estava completamente encantado.
Não é bom que uma pessoa tenha tal influência sobre outra. Danilo não pensou no que
aconteceria se essa pessoa, com tão pouco autocontrole, se sentisse rejeitada. Por
experiência própria, ele sabia muito bem quão facilmente a paixão, desprezada, poderia se
transformar em vingança.
- Marguerida sabe sobre o seu relacionamento? - Danilo perguntou. - Será que Mikhail
sabe?
Domenic ficou claramente constrangido. - Não, tivemos o cuidado de nunca aparecer
juntos ante meus pais. Eles não devem descobrir até que estejamos prontos para lhes dizer.
Até então, você vai manter o nosso segredo?
- Ele não é meu para dar de presente. - Danilo deu de ombros.
Alanna já tinha recuperado a compostura. Danilo a sentiu em seu laran, como um
entrelaçamento de luz incolor, de repouso, mas pronta para incendiar-se novamente. Era
uma pena que ela era tão contrária à formação em uma Torre, porque ela precisava
desesperadamente da disciplina.
O D o m d e A l t o n | 57

Uma geração atrás, Danilo pensou, Alanna teria sido mandada para um marido e
bebês sem nenhum Segundo pensamento. Ela seria apenas uma respeitável jovem mulher
pronta para se casar e não havia nenhum questionamento sobre seu laran.
Mas um homem na posição de Domenic precisava demais de uma esposa para ficar ao
seu lado, não para se sentar a seus pés.
Como Linnea foi para Regis. Como Marguerida é para Mikhail.
Domenic amava Alanna e, no calor de seu amor, ele parecia não notar seu
temperamento infantil e doente. Talvez com o tempo ela também pudesse crescer para se
tornar a mulher que Domenic tão claramente queria que ela fosse.

Capítulo 06
O D o m d e A l t o n | 58

No dia da sessão de abertura do Conselho Comyn, Lew acompanhou Marguerida


através das amplas portas duplas que formavam a entrada principal da Câmara de Cristal. O
Guarda de cada lado das portas mantinha estrita atenção. Um deles parecia vagamente
familiar, talvez Lew houvesse conhecido seu pai. Antigamente, Lew teria parado para uma
palavra amiga, um costume de sua época como um ofcial da Guarda. Durante seus anos
fora do planeta, no entanto, ele se tornou um estranho.
A luz do sol atravessava os prismas colocados no teto da Câmara. Lew ficou
impressionado, como havia ficado muitas vezes antes, pela sensação de se mover através
do coração de um arco-íris. Os oito lados da Câmara incluíam uma parede composta por
portas de madeira entalhadas através das quais Lew e Marguerida haviam passado, e sete
seções, uma para cada Domínio. Trilhos separavam cada área com seus bancos e gabinetes
com cortinas. Haviam faixas nas cores de cada Domínio penduradas nas paredes: Elhalyn,
Hastur, Ardais, Aillard, Alton e Ridenow. A faixa de águia dupla marcava o Sétimo Domínio.
Aldaran havia sido exilado do Comyn, mas agora estava reunido com outros.
Em sua mente, Lew se lembrou de estar de pé nesta mesma câmara há muitos anos,
esperando o Comyn se reunir para julgar sua aptidão para ser nomeado herdeiro de seu
pai. Seus nervos estremeceram com o resíduo de todas as coisas terríveis que aconteceram
aqui, vidas destruídas e depois devolvidas, casamentos decididos, feudos declarados e
terminados.
O passado foi cruel comigo. Meu pai... Sharra... deuses me ajudem, a morte de
Marjorie! A Batalha da Estrada Velha do Norte... Será que algum dia estarei livre deles?
Lew forçou sua atenção para o presente. Dani Hastur já estava aqui, representando o
clã Elhalyn de sua esposa. Ele estava conversando com alguns membros do Domínio
Aldaran, procurando ser acolhedor e descontraído, aparentemente se divertindo. Cerca de
dez anos mais jovem do que Marguerida, Dani era um homem de aparência agradável.
Faltava-lhe a beleza intensa, carismátca, que muitas vezes caracterizavam os homens
Hastur, mas era calmo e descontraído em sua maneira. Ao contrário de Regis, que havia
sido criado por um avô irascível, Dani olhou para o mundo a partir da segurança de uma
família amorosa. Regis e Linnea tinham feito o seu melhor para protegê-lo da tirania de sua
herança e se tivesse escolhido um lugar menor no mundo, ele tinha um nicho de sol na
sombra de seu pai.
Lew olhou em volta para o homem que era xará de Dani, paxman de seu pai e melhor
amigo. Danilo Syrts-Ardais raramente comparecia nas reuniões do conselho, mas lá estava
ele, em uma conversa séria com Kennard-Dyan Ardais, talvez para discutir qual dos muitos
descendentes ilegítmos devia ser nomeado herdeiro do Domínio Ardais. Lew refletiu que
um herdeiro nedestro não seria necessariamente uma coisa ruim para o Comyn, porque
tinham nascido muito poucos herdeiros puros nas últimas gerações.
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Uma cadeira pesada que servia de trono tinha sido colocada para Mikhail na seção dos
Hastur, com outra ao lado para Marguerida. Como sempre, Donal Alar serviu de sombra
para Mikhail. Mikhail usava as cores de Hastur, azul e prata, sua capa enfeitada com pele
branca, e hoje ele parecia real o suficiente para um rei. Seu cabelo prateado, enfeitado com
fios de ouro pálido, brilhavam como uma coroa natural. Quando Regis tinha formalmente
designado Mikhail como seu herdeiro, Mikhail legalmente tornara-se um Hastur, com o
direito de sentar-se sob a bandeira do pinheiro. Desde que se tornou Regente, Mikhail
tinha usado as cores azul e prata dos Hastur em funções do Conselho como um emblema
de sua autoridade.
Lew acompanhou a filha ao seu lugar e cumprimentou genro. Aos poucos, mais
homens e mulheres chegavam, organizando-se sob as bandeiras de seus respectvos
Domínios. Istvana Ridenow, que era a Guardiã da Torre Neskaya e amiga querida de
Marguerida, tomou um assento na seção de sua família. Istvana também era parenta da
segunda esposa de Lew, madrasta a muito falecida de Marguerida, Diotma Ridenow. A
leronis não perdeu sua aura de grande autoridade com a idade. Seus olhos cinzentos ainda
estavam claros e firmes, embora o passar dos anos houvessem curvado seus ombros
estreitos e acrescentado novas linhas ao redor da boca.
Nestes dias, todo o conjunto era preenchido apenas com uma fração do espaço
disponível. No auge dos poderes do Comyn, no entanto, a Câmara devia ter sido pequena
para todos os que poderiam reivindicar direito de Domínio, bem como representar seu
pleno laran. Por tradição, amortecedores telepáticos ainda eram colocados na Câmara em
intervalos estratégicos. Antes de o Conselho começar suas deliberações, eles eram
ajustados de modo que nenhum truque de laran poderia ser usado para infuenciar as
mentes de outros homens. Ao mesmo tempo, os Altons eram tão temidos pelo seu dom de
contato forçado, que um dos amortecedores supostamente aleatórios, eram sempre
colocadas diretamente acima de seu gespaço na câmara. Embora ele entendesse a lógica,
Lew não conseguia evitar se sentir meio cego e meio surdo.
O contingente oficial dos Ridenow chegou com uma onda de interesse, entrando não
por sua passagem privada, mas através das portas principais. Cisco Ridenow, como Regente
de seu Domínio, foi precedido por seu pai. Cisco parecia em forma, um homem fortemente
constituído com o cabelo cor de linho e olhos distintamente na característico de sua
família, usando seu uniforme de capitão da Guarda da Cidade.
Francisco Ridenow entrou na câmara como se lhe pertencesse. Ele era um homem
alto, alguns anos mais velho que Mikhail, seu cabelo vermelho escuro com tons de cinza,
seus traços outrora bonitos agora eram marcados com linhas que sugeriam dor e decepção
ao invés de alegria. Ele parou no centro da sala, seus olhos observando a assembléia. Um
fogo queimou nele, inflamando todos os seus movimentos. Ele usava um gibão justo e
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calças em verde e enfeitadas com ouro, as cores de Ridenow, com nenhum dos babados
tão populares naquela temporada. Apenas uma leve hesitação, uma rigidez quase
imperceptível em uma perna, permanecia do ferimento que ele havia sofrido durante seu
ataque malsucedido a Mikhail. Pelas aparências, o ataque parecia nunca ter ocorrido.
Francisco sempre foi encantador e ambicioso, com a aparência de um homem jovem.
Por um tempo, ele tentou conquistar Marguerida com seu charme, mas seu coração já
havia sido dado a Mikhail, e o seu para ela. Por este motivo, Lew não podia dizer o quão
profundamente a rejeição de Marguerida teve efeito em Francisco e o deixado
amargurado. Esperanças frustradas, aspirações frustradas, ciúmes, ressentimentos, tudo
tinha se inflamado dentro dele.
Quando Francisco se aproximou, Marguerida colocou sua mão no braço do marido.
Francisco se inclinou para eles, uma fração menos profunda do que a verdadeira cortesia
necessária, mas não o sufciente para constituir um insulto total, e depois tomou seu lugar
atrás de seu filho. Da parte de trás das cortinas do gabinete, uma mulher jovem e esbelta
com cabelo vermelho-ouro escorregou em um dos bancos das senhoras.
- Ele está tramando algo, eu posso sentir. - Marguerida tinha se curvado para perto de
seu marido. - Tenha cuidado, cario!
- Meu amor, tudo ficará bem. – Mikhail disse. - Veja, a filha deles está sentada ao lado
de Cisco. Certamente, ele não arriscaria a segurança dela por qualquer ação precipitada.
Lew fez alguns comentários irrelevantes, desculpou-se e foi para o seu lugar sob a
bandeira de Alton, ao lado da cadeira vazia designada para o jovem Gabriel. Uma cadeira
acolchoada fora colocada dentro do parapeito. Marguerida devia ter arranjado. Como ela,
considerava o conforto de um velho. O jovem Gabriel apareceu alguns minutos depois.
Gabriel parecia o mesmo de sempre, um homem robusto, moreno, em vez de justo, como
seu irmão Mikhail. Claramente, os desafios de administrar uma propriedade enorme como
Armida combinavam com ele, ou talvez fosse um casamento feliz com uma viúva com dois
filhos crescidos. Gabriel brincou que, ao adotar os filhos dela, ele estava compensando o
tempo perdido. As parteiras haviam determinado que seu primeiro filho, uma menina,
chegaria no outono.
Uma porta deslizou na parte de trás do gabinete de Alton e servos ofereceram copos
de vinho com água. Gabriel pegou um, mas Lew acenou dispensando. Ele não havia tocado
em álcool desde sua longa farra depois da Batalha na Velha Estrada do Norte, uma
tentativa desesperada de esquecer o que ele havia feito para proteger Darkover.
A reunião do Conselho foi aberta com as cerimônias tradicionais. Mikhail, como
Regente dos Domínios e Lorde Hastur, presidia com sua graça habitual. No passado, como
Lew bem sabia, a chamada havia sido a ocasião para um desafio, especialmente quando a
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sede de um Domínio estava vazia. Não era inédito outro requerente se apresentar. Se
Francisco fosse desafiar seu filho por Ridenow, agora seria o momento.
A chamada prosseguiu, começando com Elhalyn como o Domínio de mais alto escalão.
Dani Hastur respondeu nomeando os membros de sua família que também estavam
presentes, sua esposa, Miralys Elhalyn, e seu filho, Gareth. Hastur foi o próximo, com o
próprio Mikhail respondendo e apresentando Domenic. Domenic já havia sido confirmado
como herdeiro, mas não havia comparecido a uma reunião do Conselho desde então.
Cabeças se viraram quando ele se adiantou e curvou-se respeitosamente. Um zumbido se
elevou entre as senhoras presentes, e Lew imaginou seus sussurros. O rapaz era atraente o
suficiente e, com sua posição e laran comprovado, seria um esplêndido partido para uma
de suas filhas.
Lew esperou atento a qualquer movimento da parte de Francisco. Mas ele sentava-se
calmamente em silêncio, acompanhando o processo com toda a aparência de interesse
cortês. Quando Mikhail chamou "Ridenow", Cisco se levantou e fez uma reverência.
- Vai domyn, Dom Mikhail, eu respondo como Regente de Ridenow no lugar de meu
pai, que é proibido de servir como chefe do seu Domínio neste momento. No entanto, ele
está conosco hoje, com a sua permissão, e eu peço que ele seja autorizado a sentar-se
entre nós, de acordo com as antigas tradições de direito do Domínio.
- Dom Cisco, seu pai é bem-vindo neste Conselho. - Mikhail disse. - Dom Francisco,
velhas brigas já nos dividiram por muito tempo. Mesmo enquanto o Domínio Aldaran, há
tanto tempo banido desta câmara, agora se senta aqui como um membro valoroso e igual,
espero que encontre novamente um lugar entre nós.
Foi, pensou Lew, um discurso gracioso, ainda que imprudente, dando uma abertura
para Francisco. Quando o Lorde Ridenow deu um passo à frente, um murmúrio percorreu a
assembléia.
- Estou grato e honrado com suas boas-vindas, Dom Mikhail, tanto por si memsmo
como em nome do Comyn. – Francisco disse. - Desde os dias de nossos antepassados, nós
nos encontramos dessa maneira, resolvendo nossas diferenças e trabalhando juntos para o
benefício de todos. Dizem que, mesmo na Era do Caos, antes de meu parente Varzil, o Bom,
instituir o Pacto, os grandes Lordes do Comyn deixavam de lado suas desavenças quando se
reuniam no Conselho. Não podemos fazer menos, nós que vivemos nestes tempos de paz.
Mikhail inclinou a cabeça graciosamente. - Congratulo-o em nome de todos nós com
sua presença e com uma irmandade renovada no futuro.
Francisco curvou-se novamente e sentou-se. Lew relaxou um pouco. Talvez Mikhail
estivesse certo e Francisco estivesse agora preparado para tomar seu lugar e honrar a si
mesmo. Seus anos de exílio poderiam muito bem ter lhe concedido tempo para refletir,
para um homem melhor surgir.
O D o m d e A l t o n | 62

Durante essa troca de gentilezas Cisco permaneceu de pé. - Vai domyn, – ele disse -
tenho a honra adicional de apresentar minha irmã, que já atingiu a maioridade. Damisela
Sibelle Francesca Ridenow.
A garota de cabelo vermelho-dourado avançou, com os olhos discretamente baixos,
quando seu irmão parou de falar. Ela parou no parapeito e fez uma reverência profunda.
Lew já a achara bonita antes, quase tão impressionante quanto Alanna Alar. Quando ela
levantou o rosto, a luz prismada banhou-a por um momento antes recuasse na sombra.
Antigamente, assim como na memória de Lew, as brigas haviam sido resolvidas pelo
casamento. Ele notou o modo como mais de um Lorde olhou da garota Ridenow para
Domenic.
Uma solução perfeita para esse conflito prolongado.
Qualquer outra coisa ele poderia ser, mas Francisco não era bobo.
O Conselho aprovou a agenda de Mikhail para os negócios da temporada, com apenas
algumas mudanças. A sessão terminou finalmente, e os amortecedores telepáticos foram
desligados. Lew sentiu uma onda de alívio quando seu laran voltou ao normal. Alguns
Comyn se levantaram, se preparando para sair, mas a maioria conversava amigavelmente
com seus vizinhos, discutindo os eventos sociais que viriam ou outros assuntos cotidianos.
Dadas as distâncias entre os Domínios e a dificuldade de viajar com exceção do melhor
clima, a maioria não se via desde o verão passado. Fofocas e danças, as últimas modas e
diversões, um turbilhão de shows e festas, um noivado ou dois, talvez até um sopro de
escândalo, tudo isso gerava tanto interesse quanto os eventos oficiais.
Quando Lew contou a Marguerida sobre seu plano de fazer uma visita de cortesia a
Francisco Ridenow, ele não esperava a aprovação dela. Ele abordou o assunto com ela e
Mikhail naquela noite no pequeno salão de família dos aposentos Alton. Depois do jantar,
Domenic se desculpou e saiu, deixando os adultos mais velhos ao redor da lareira
desfrutando de seus shallan.
- Pai, você não pode estar falando sério! - Marguerida colocou sua xícara com força
sobre a mesa. O licor pálido de mel espirrou sobre a borda. Ela esfregou o guardanapo no
local, depois ficou inquieta.
Querida criança, por favor, acalme-se, ele disse telepaticamente. Não há motivo para
pânico.
Eu estou calma. Marguerida sentou-se novamente. É você quem está fora de si.
- Francisco não tem motivos para me machucar... - Lew começou.
- Exceto para se vingar de Mikhail. Ou de mim.
- …e eu tenho todos os motivos para ser cortês com ele. - Lew continuou, ignorando o
comentário dela. - Ele era, afinal, parente de Dio.
O D o m d e A l t o n | 63

Mikhail parecia pensativo. - Se queremos dar a ele a chance de se restabelecer na


sociedade Comyn, é preciso fazer uma abertura. Com o Conselho de hoje, demos o
primeiro passo para resolver esse problema, mas não podemos esperar uma reconciliação
instantânea. Se Lew estiver disposto a fazer isso, acho que o esforço pode ser proveitoso.
- Não vejo sentido em tal visita, exceto para abrir feridas antigas ou dar a essa cobra a
oportunidade de criar novas! - Marguerida insistiu.
- Não vejo outra escolha honrosa. – Lew disse. – Se nos recusarmos a chamá-lo, dados
os laços de parentesco por casamento, seria um insulto.
Marguerida convocou um pequeno sorriso. - Não sei o que aconteceu comigo esses
dias. Naturalmente, você está certo, Mik. Pequenos e lentos passos são essenciais para
reconstruir a confiança e o entendimento. Pai, tenha cuidado.
Lembre-se da advertência do meu dom Aldaran...
Após um intervalo adequado, Lew enviou uma mensagem aos apartamentos Ridenow
dentro do Castelo. Uma resposta veio prontamente, dizendo que Francisco ficaria honrado
em receber Lew o mais cedo possível.
O próprio Francisco cumprimentou Lew na porta da suíte Ridenow. Lew sentiu nele
uma mistura de agradável surpresa, simpatia e ansiedade. Como alguns dos Ridenows,
Francisco não possuía laran, mas mesmo assim desenvolveu boas barreiras naturais. Ele
devia ter aprendido em tenra idade a viver entre telepatas sem transmitir seus
pensamentos.
A suíte Ridenow não tinha sido muito usada desde que Cisco havia se alojado perto do
quartel da Guarda. Os esforços da equipe de limpeza, sob a supervisão rigorosa de
Marguerida, não conseguiram dissipar inteiramente um traço de mofo dos cantos. No
entanto, a câmara em que Francisco conduziu Lew estava bem iluminada por velas, bem
como a luz natural do dia se inclinando através das grossas janelas de vidro, aquecida por
uma pequena lareira e agradavelmente decorada. As almofadas pareciam novas, mesmo
que os tapetes fossem antigo, datados da época de Damon Ridenow.
Graças à Aldones pelas formalidades e etiquetas, Lew pensou ao concluírem as
gentilezas iniciais e tomarem seus lugares. Francisco conhecia Diotima apenas um pouco,
sendo de outro ramo da família, mas recebeu com agrado a visita de Lew em nome de todo
o Domínio Ridenow.
Se Francisco pretendia se apresentar como o legítimo herdeiro de Varzil, o Bom,
estudara bem a parte histórica também. Talvez bem demais. Sob o charme polido, havia
uma arrogância de bordas amargas e uma sensação de privilégio indiscutível. Mas o orgulho
ainda não era crime.
Não pela primeira vez, Lew se perguntou o que teria acontecido com os parentes de
Dio. Parecia que convenientemente, ou pela ambição de Francisco, muitos haviam morrido.
O D o m d e A l t o n | 64

Talvez, Lew pensou, ele tivesse se tornado muito desconfiado. Afinal, o Comyn não
havia sido criado desde o nascimento com o conhecimento de seu lugar na aristocracia
dominante de Darkover?
A filha de Francisco entrou, carregando uma bandeja de vinho de Carthon e bolos em
formas de diamante pequenos, cravejados com mel cristalizado. Ela usava um vestido
esvoaçante de tecido levemente iridescente, e seu cabelo vermelho-dourado pendia em
ondas soltas até a cintura. Ela serviu aos dois homens com uma graça fácil, para não
perturbar a conversa deles, e então se sentou.
A conversa transcorreu suavemente por questões irrelevantes, condições nas
estradas no Domínio Ridenow, o clima e o próximo baile. Os olhos de Sibelle brilharam.
- Será a primeira oportunidade de minha filha na sociedade com jovens de sua idade e
posição. – Francisco disse. - Temo que Serrais não tenha nada a ver com as delícias e
diversões de Thendara. Somos um lar entediante.
- Você acha que irá gostar dos bailes formais, damisela? - Lew perguntou.
Sibelle baixou o olhar. - Acredito que vou gostar, Dom Lewis, mesmo que eu deva me
limitar a dançar com meus próprios parentes.
- Você gosta de dançar, então? - O coração de Lew se elevou com o simples prazer de
discutir uma dança com uma jovem tão encantadora.
Quando Sibelle sorriu, uma covinha apareceu em um canto da boca. - Muitíssimo!
- Então devemos ter certeza de apresentá-la aos jovens certos. – Lew disse.
- Você vai dançar comigo, vai dom? - Ela olhou para o pai. - Isto é, se papai considerer
apropriado.
- Mas é claro, - disse Francisco - pois ele é seu parente por casamento e um homem de
honra e bom caráter, conhecido por mim.
- Oh, meus dias de dança há muito se foram. – Lew disse. - Você não gostaria de
arrastar os pés pelo salão de baile com um homem velho. Você verá que não faltarão
parceiros muito mais animados e jovens.
- Mas você é Dom Lewis-Kennard Alton! – Sibelle disse. - Você foi quem derrubou a
matriz Sharra em Caer Donn! Eles ainda cantam baladas sobre isso!
O humor eufórico de Lew evaporou-se. Sharra de novo! Será que ele nunca estaria
livre dela?
- Há algo errado, Dom Lewis? – A cor desapareceu das bochechas de Sibelle.
- Não, não importa. – Lew disse, afastando os protestos com a mão única. Ele ouviu
sua própria voz, rouca e tensa devido aos danos permanentes nas cordas vocais, um
lembrete pungente de que mais do que seu rosto havia sido marcado em Caer Donn.
- Você não fez nada errado, filha. - Francisco disse suavemente. - Tire o vinho e deixe-
nos agora. Temos negócios a discutir.
O D o m d e A l t o n | 65

- Como quiser, papai.


- Ela não foi indelicada. - Lew disse quando ficaram sozinhos novamente. - Como ela
poderia saber que coisas como Sharra são melhores quando esquecidas?
- Coisas como Sharra... - Francisco repetiu, com o rosto sombrio. - Você está certo, é
claro. O que qualquer jovem poderia saber sobre esse horror?
- Todos nós oramos para que nunca haja necessidade para eles adquirirem esse
conhecimento. - Lew disse fervorosamente.
Francisco balançou a cabeça. - É difícil acreditar que, mesmo em nosso tempo, depois
de tanto tempo, nós que juramos cumprir o Pacto, possamos abandoná-lo com tanta
facilidade. Varzil, o Bom, meu ancestral, entendeu as tentações da necessidade. Quando
estamos desesperados, diante de um adversário avassalador, como o Império Terranan e
sua tecnologia hedionda, por exemplo, quão fácil é justificar o uso do nosso laran.
- Você está se referindo ao círculo que libertou Sharra? - Lew atirou de volta,
machucado. Francisco havia tocado um nervo cru, o núcleo da verdade. No começo, o
círculo de Caer Donn sonhava em usar seus poderes de laran para negociar em pé de
igualdade com o Império. Só mais tarde, quando eles já estavam em seu alcance horrível,
eles perceberam que Sharra nunca poderia ser usada como qualquer outra coisa, exceto
uma arma.
- Em parte. - Francisco assentiu, seus olhos escuros e ilegíveis. - E outras coisas.
A Batalha da Velha Estrada Norte…
- Dom Lewis? - Francisco estava inclinado para a frente e Lew percebeu que vagara em
seus próprios pensamentos por um instante.
- Perdoe-me. – Lew disse. - Você estava dizendo?
- Fico feliz que você tenha tido a chance de ver Sibelle por si mesmo e não tenha
mágoa contra ela por um comentário tão pequeno.
- Como eu disse, não considero que ela tenha dito algo censurável.
Francisco sorriu. – Então você a aprova?
- Que pessoa razoável não o faria? Ela é uma jovem encantadora, um verdadeiro
trunfo para sua família. - Ele não perguntou se ela tinha laran. Ao longo dos séculos, muita
miséria resultou em valorizar as mulheres apenas pelos dons psíquicos que elas poderiam
transmitir aos seus filhos.
- Perdoe minha audácia em aproveitar esta oportunidade. – Francisco disse. - Gostaria
de falar com você sobre a vantagem mútua de nossas famílias e de todos os Comyn.
- Estou ouvindo. – Lew disse.
- Como homem do mundo, você sabe aonde o atual estado de coisas entre Mikhail
Lanart-Hastur e eu poderia levar. Nunca chegamos a travar uma guerra definitiva entre
O D o m d e A l t o n | 66

Domínios, mas enquanto o motivo de uma briga de sangue persistir, esse potencial
permanece.
Lew entendeu a ameaça velada de Francisco. Certa vez, no tempo de Allart Hastur
Elhalyn, Hastur e Ridenow haviam sido inimigos amargos. Isso foi antes do Pacto, e aquelas
mesmas armas às quais Francisco havia aludido - fogo que queimava um homem até os
ossos, pó-derrete-osso que deixava a terra em si estéril, ervas daninhas, feitiços que
distorciam a mente e muito mais - foram lançadas um contra o outro pelos reinos em
guerra. Levou gerações para resolver o conflito e encerrar a era dos Cem Reinos.
O que Francisco estava insinuando? Ele estava procurando um meio de reconciliação
sem perda de honra de ambos os lados? O exílio provocou tanta mudança em seu coração?
- Por favor continue. – Lew disse. - Se você tem uma proposta que encerre essa
discussão, estou ansioso para ouvi-la.
- Certamente, você deve ter adivinhado que eu trouxe Sibelle a Thendara para mais do
que uma temporada bailes e flertes. Proponho abordar Mikhail Lanart-Hastur com uma
aliança por casamento de seu filho, Domenic, com minha filha.
Então, o primeiro pensamento de Lew ao ver Sibelle estava correto. Ele quase desejou
que não fosse assim, pelo bem da garota. Na verdade, esse era o caminho para que
famílias resolvessem sua hostlidades desde o início dos tempos. Mas desde que Derik
Elhalyn tentara forçar um casamento político entre a Guardiã Callina Aillard e Beltran,
Lorde Aldaran, ninguém tinha considerado algo assim seriamente.
E veja no que resultou… Callina morta, deixando o Domínio de Aillard sem um
Herdeiro… Sharra ameaçando mais uma vez ficar fora de controle…
Chamas em sua mente, em sua alma ...
- Sibelle concordou? - Lew perguntou, colocando seus pensamentos sob controle.
Será que Domenic concordaria?
- Como uma filha obediente, ela entende o que está em jogo. Quantas Comynara
podem prestar esse serviço a seus Domínios? Considerando o benefício para suas famílias,
as obrigações do dever e a adequação dos próprios jovens, o casamento tem todas as
chances de ser feliz. Domenic tem a reputação de ser um belo jovem, nem dissoluto e nem
cruel. Você vê por si mesmo que Sibelle seria uma esposa exemplar. É claro que, - Francisco
deu de ombros, como se para provar o quanto ele era razoável - se eles se acharem
repugnantes, não podemos forçá-los. Acredito que há um outro filho.
- Sim, Rory. - Lew não conhecia bem o outro neto, além das brincadeiras de infância do
menino. Talvez o tempo e o treinamento na Guarda da Cidade o tivessem estabilizado,
como muitos outros.
- Sibelle trará um rico dote e sangue novo para Hastur. Com o tempo, Cisco se casará,
e serão seus filhos, não os dela, que herdarão Serrais.
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- Você pensou bem no assunto.


Francisco deu um sorriso auto-depreciativa. - Eu tive bastante tempo para considerar
essas coisas. Quando atingimos uma certa idade, nossa perspectiva muda. Coisas que
pareciam tão urgentes em nossa juventude assumem muito menos importância.
Percebemos que devemos deixar velhas lutas para trás e olhar para o futuro.
Deixar velhas lutas para trás… Lew repetiu silenciosamente. Se fosse assim tão
simples!
- Vejo que você me entende. – Francisco disse. - Você vai transmitir a minha proposta?
Acredito que receberá melhor recebida do que se eu a apresentasse. Mikhail pode reagir a
qualquer gesto da minha parte com desconfiança.
Francisco claramente queria Lew para atestar sua sinceridade? Como Lew poderia
recusar? Francisco não havia lhe dado razões para desconfiar de seus motivos... isto é,
nenhum motivo aparente. Lew sentiu como se estivesse mantendo duas conversas com o
Lorde Ridenow, uma sincera e esperançosa, a outra disfarçada em referências
perturbadoras e ameaças sugeridas.
- Por mais que eu espere por um retorno às relações amigáveis entre as nossas casas, -
disse Lew cuidadosamente, como aprendera a fazer durante seus anos como senador de
Darkover no Império Terranan, - não posso atuar como seu agente, mesmo que
indiretamente. Ficarei feliz em comunicar sua disposição de entrar em negociações para
uma aliança de casamento, mas mais do que isso não posso em sã consciência empreender.
Tenho certeza de que você entende o porquê.
- Perdoe minha ansiedade. - Francisco inclinou a cabeça um pouco, para esconder sua
expressão. Sua voz, no entanto, era calorosa e cordial. - Eu não abusaria de sua boa
vontade, colocando você em uma posição tão difícil.
- Nenhuma ofensa foi cometida e nenhum perdão é necessário. É um negócio difícil,
mas com tempo e boa vontade de ambas as partes, tudo pode ficar bem. - Lew respondeu,
acrescentando que, mesmo que o casamento não acontecesse, o esforço não seria
desperdiçado.
Com sorrisos e garantias, Lew se despediu.
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Capítulo 07

Marguerida olhou do outro lado da mesa do café para o homem que compartilhava
sua vida por esses longos anos, desfrutando de um dos poucos momentos de paz juntos
desde a notícia da morte de Javanne. O sol se infiltrando pela janela entreaberta brilhava
nos cabelos de Mikhail, quase tão brilhantes quanto no dia em que o vira pela primeira vez.
No entanto, mais brilhante era o amor deles, tanto pelas crises que haviam sofrido juntos
quanto pelos mil eventos cotidianos minúsculos que, como fios de seda, uniram seus
corações em um só.
Ele sentiu o humor dela, como sempre, e os vincos formaram um sorriso ao redor de
seus olhos azuis. Sem necessidade de palavras ditas, eles compartilharam um pulso de
profunda compreensão, mas só por um momento, pois os negócios do dia não podiam
esperar.
Uma batida na porta do lado de fora quebrou o momento. Lew entrou. Seus cabelos
estavam penteados, suas roupas impecáveis, mas Marguerida notou instantaneamente os
círculos profundos sob seus olhos, as cicatrizes gravadas em seu rosto como canais
erodidos.
Pai, qual é o problema?
Mikhail, sempre mais ponderado, convidou Lew para sentar-se com eles. Lew fez isso,
mas recusou o jaco ou a tisana de ervas.
- Eu vim discutir sobre minha reunião ontem com Francisco Ridenow. - Lew disse
pesadamente.
- Sim, pensei nisso. – Mikhail disse, sentando-se à frente na cadeira. - Como você não
enviou uma mensagem ontem à noite, presumi que o assunto não devia ser urgente. É
como esperávamos, e Francisco deseja se restabelecer entre nós?
A expressão de Lew se apertou minuciosamente. Marguerida conhecia muito bem o
pai para disfarçar sua inquietação, apesar de ele ter protegido seus pensamentos com uma
barreira.
- Seja o que for, vamos ouvi-lo. - Suas palavras saíram mais ásperas do que ela
pretendia. - É sempre melhor ir direto ao ponto.
- Muito bem. - Lew assentiu. - Omitindo todas as cortesias e sugestões indiretas,
Francisco propõe acabar com a animosidade entre vocês com um casamento entre
Domenic e sua filha, Sibelle.
A indignação explodiu em Marguerida. Em que século o homem pensa que estamos
vivendo para trocar nossos filhos por ganhos políticos?
Anos de vida entre os Comyn, no entanto, a ensinaram a respirar fundo antes de abrir
a boca. O que Francisco propôs não era irracional em termos darkovanos. Ainda hoje,
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muitas famílias nobres arranjavam casamentos para seus filhos e filhas e, ela tinha que
admitir, muitos desses casamentos eram tão bem-sucedidos quanto os conquistados pelo
amor.
Marguerida não sabia o que pensar sobre esse novo desenvolvimento. Era uma coisa
boa? Um erro terrível? Era mesmo possível? Estando em ligeira sintonia com Mikhail, como
costumava estar, ela sentiu a surpresa dele rapidamente dar origem a sérias considerações.
Ele encontrou seu olhar atônito. - Preciosa, acalme seus medos. Aconteça o que
acontecer, nunca pressionarei nosso filho por um casamento.
Domenic , Rory e Yllana devem ser livres para se casar onde seus corações os ditarem!
Ela insistiu.
- Nenhum de nós é totalmente livre para fazer isso. - Mikhail respondeu gravemente. -
Nós Comyn não podemos escolher nossas vidas da maneira que as pessoas comuns fazem.
Mesmo que os casamentos arranjados não sejam mais usados coma finalidade de
reproduzir os talentos de laran, há outras considerações. Com o poder vem a
responsabilidade, e não podemos deixar de lado nosso dever para agradar a nós mesmos.
- Nós dois… - ela começou, sua mente cheia de lembranças da oposição ao crescente
amor deles. O antagonismo de Javanne alimentando a maioria dos obstáculos, mas
também houveram outros problemas. Como herdeira de Alton, Marguerida atraído mais de
um pretendente, incluindo Francisco Ridenow. Por um momento, ela se perguntou se
Francisco queria superar a dor da própria rejeição, unindo seus filhos.
Mikhail disse: - No meio de tudo o que tivemos de enfrentar, nós dois éramos do
Comyn, filhos legítimos, dotados de laran, com plenos direitos aos Domínios por herança.
Nenhum de nós poderia ter se casado com um pastor de chervines ou uma empregada da
copa.
- Não, eu posso imaginar o escândalo que isso teria causado. – Ela disse rindo.
E nem Domenic, ele enviou o pensamento gentil. Ele é um verdadeiro filho de Hastur,
ou seja, o lendário ancestral dos Comyn.
As têmporas de Marguerida latejavam, um pulsar doentio muito diferente de uma dor
de cabeça natural. O Dom de Aldaran de novo? E alertando sobre algum perigo para
Domenic, em vez de Mikhail?
Tenho que pensar com clareza, caso contrário não serei de nenhuma utlidade para
ninguém!
Reunindo forças, ela se virou para o pai. - Francisco falou sério sobre esse casamento?
Você acha sábio? Como a filha dele se sente sobre isso?"
- Ele diz que ela entende seu dever, então eu diria que sim, ela está disposta. Quanto
aos motivos dele... - A expressão de Lew escureceu. - Passei metade da noite revirando as
O D o m d e A l t o n | 70

diferentes possibilidades em minha mente e não estou mais perto de nenhuma conclusão.
Ele poderia ter uma dúzia de esquemas diferentes.
- Poderia ser uma armadilha? - Ela perguntou. - Um ardil para nos convencer a confiar
nele?
- Qualquer coisa que um Comyn faça pode ser uma armadilha. - Lew respondeu
secamente. - Tivemos mais de mil anos para aperfeiçoar essa arte.
- Por outro lado, a oferta poderia ser exatamente como apresentada, – Mikhail disse -
um esforço sincero para estabelecer laços mais estreitos, para que daqui a uma geração,
essa briga e todo o seu potencial para uma rivalidade de sangue sejam esquecidos.
Devemos dar ele essa chance.
- Ou poderíamos estar colocando Domenic ao alcance de Francisco. - Marguerida
murmurou, e viu nos olhos de seu pai que ele havia considerado a mesma coisa.
- Não permitiremos que Domenic sofra qualquer dano, aconteça o que acontecer. –
Mikhail disse.
- É muito provável que o Conselho Comyn considere a oferta genuína. – Lew disse. - De
fato, devemos considerar a possibilidade de eles decidam que esse acordo é do seu
interesse e forçar o casamento.
- Eles não poderiam! - Marguerida chorou. - Eles não se atreveriam!
- Receio que eles possam e devam fazer. – Mikhail disse. - Lembre-se, mesmo em
nosso tempo, o herdeiro de um Domínio não podia se casar sem o consentimento deles.
Não permitiremos isso, não se Domenic for adverso à proposta. Mas é melhor que a
questão não seja levantada no Conselho. Essa luta pode nos custar aliados de que
precisamos para outras batalhas mais importantes.
Marguerida se perguntou o que poderia ser mais importante que a felicidade de seu
filho, mas percebeu que era uma noção impossivelmente romântica. Em Darkover, o dever
para com a família, as responsabilidades de posição e o bem-estar do Domínio tinha mais
importância.
- O casamento não apenas reconciliaria Mikhail e Francisco, mas garantiria o futuro de
Hastur e da Regência. - Lew disse. - O Conselho argumentaria, entre outras coisas, que
Domenic está em idade de se casar e gerar filhos para governor depois dele. O que é o
certo. Quando Regis tinha a idade dele, ele já era pai de vários filhos nedestros…
- Você está sugerindo que Domenic faça o mesmo? - Marguerida perguntou,
horrorizada. Às vezes, a falsa moral do Comyn era mais do que ela podia tolerar. Uma coisa
era alguém como Kennard-Dyan espalhar sua semente por toda parte, com mais filhos
ilegítimos do que ele poderia contar, e outra coisa era seu próprio filho, criado
adequadamente. Ela olhou para Mikhail. - Você não se comportou assim!
O D o m d e A l t o n | 71

- Suspeito que Domenic é como eu a esse respeito. - Ele respondeu com um sorriso
gentil. - Poucos telepatas são capazes de intimidade com alguém que não ame, alguém que
não possa tocar com a mente e compartilhar nossos sentimentos mais profundos.
Como nós temos feito, minha querida, ele acrescentou.
Ela derreteu por dentro, como sempre fazia no calor de sua ternura.
- Você está me dizendo que, quer eu goste ou não, Domenic estará sob pressão para
se casar, - disse ela, reunindo seu juízo mais uma vez, - se não por Francisco, então pelo
Conselho.
- Admita, amor, você adoraria vê-lo feliz, bem casado e produzindo netos para você
estragar. – Mikhail brincou.
- Sim, mas eu não esperava que isso acontecesse de uma maneira tão insensível e
calculista! Sério, Mik, eu não posso concordar com nenhum acordo que envolva Domenic
sem o consentimento dele. Ele pode não se importar com Sibelle Ridenow. Ela é linda, com
certeza, mas ela pode fazê-lo feliz?
- Eu conheci a jovem. – Lew disse. - Suspeito que ela tenha levado uma vida protegida
e esteja pronta para se apaixonar por qualquer homem que cumpra suas noções
românticas.
- Hummm. - Marguerida franziu o cenho, sem saber ao certo o que Domenic
considerava em uma mulher. - Nós não perguntamos a opinião de Nico sobre isso. Ele pode
considerar a idéia absurda. Pelo que sei, ele já pode estar apaixonado por outra pessoa!
- Ele está? - Mikhail levantou uma sobrancelha expressivamente.
- Não, é claro que não! Eu só disse isso para fazer um ponto. Oh, ele gosta de Alanna
no como companheiros de infância, mas ele nunca demonstrou nenhum interesse sério em
uma jovem.
- Precisamos colocar o assunto diante dele e ouvir o que ele tem a dizer. - Lew
acrescentou. - Ele pode nos surpreender ao entender o que está em jogo aqui.
Marguerida recostou-se na cadeira. - Eu poderia viver com isso. - Eu acho. – Contanto
que você me prometa, Mik, que se ele disser não, não o pressionaremos.
- Isso é evidente, mas se isso te tranquiliza, eu prometo. – Mikhail disse. - Isso criará
uma situação embaraçosa para Francisco, mas podemos lidar com isso.
- Não acho que devamos apressar-nos em acordo, mesmo que Domenic se apaixone
perdidamente por essa garota. – Marguerida disse. - Ela pode ser inocente, mas eu ainda
não confio em Francisco.
- Temos que tomar cuidado. – Lew disse. – Dada a situação, o senso de honra de
Francisco pode ser volátil. Uma rejeição direta será tomada como uma afronta. Francisco
pode estar procurando uma desculpa para se ofender.
O D o m d e A l t o n | 72

Marguerida balançou a cabeça. Durante todos os anos que viveu em Darkover, as


intrincadas e honestas convoluções bizantinas de honra ainda a deixavam perplexa. Por que
essas pessoas não podiam simplesmente dizer o que queriam dizer?
- Isso é certamente verdade. – Mikhail disse. - Como Marja apontou, mesmo que os
jovens se casem, esse casamento seria um assunto diplomático complexo.
Marguerida mordeu o lábio. Por mais que ela não gostasse da ideia de Domenic ter
algo a ver com Francisco Ridenow, ela não podia recusar sem criar uma crise onde não
existia. Por mais difícil que fosse, ela devia confiar que o marido e o pai, que tinham muito
mais experiência na política do Comyn do que ela, agissem com cautela. Afinal, eles
também amavam Domenic e não o colocariam em risco.
- Vamos prosseguir, mas devagar. – Mikhail disse. - Lew, se você estiver disposto a
oferecer uma resposta em nosso nome para Francisco, talvez possamos seguir um caminho
intermediário, sem nos comprometermos até sabermos mais. Deixe que ele saiba como
estamos honrados com sua proposta e quão profundamente apreciamos o espírito em que
ela foi feita. Lembre-o da complexidade de organizar casamentos nestes dias. Diga a ele
que, independentemente do resultado, consideramos isso apenas o primeiro de muitos
passos juntos. Os tempos mudam, Darkover muda, e convidamos sua participação na
construção do futuro juntos. Ou algo assim, em frases adequadamente diplomáticas.
- Farei o que puder. – Lew disse com um sorriso cansado. - É estranhamente
apropriado que as habilidades que aprendi no Senado do Império sejam tão úteis agora.
- Marja, você vai discutir o assunto com Domenic? - Mikhail perguntou. - Acho que ele
aceitará melhor ouvindo de você, e não posso adiar mais a sessão do Conselho desta
manhã. Você não precisa comparecer, pois sei como é chato participar de negociações
comerciais.
- Não mesmo! - Ela exclamou com uma risadinha. - Fico feliz por uma desculpa para
não ter que ouvir mais um longo discurso sobre nada em particular. Este seria um excelente
momento para uma conversa tranquila com Domenic.
Mikhail e Lew se despediram de Marguerida. Ela preferiria ver o pai descansar, mas
sabia que se a ideia partisse dela o quão inútil sugerir uma coisa dessas.
Se não tomar cuidado, deixarei que minhas próprias ansiedades caiam sobre todos ao
meu redor!
Depois que um dos criados pediu a Domenic para se juntar a ela, Marguerida tentou
acalmar seus pensamentos. Ela descobriu, para sua surpresa, que, embora não gostasse
muito da noção de Francisco Ridenow como sogro, tinha mais do que um pouco do
casamenteira em si mesma. Mais de uma vez, ela se perguntou onde encontraria uma
esposa adequada para Domenic ou, nesse caso, para seu selvagem e imprudente Rory.
O D o m d e A l t o n | 73

Por que as coisas não podem ser simples? Por que Nico não pode se casar com alguém
que ele ama e ter alguma felicidade, como eu tenho com Mikhail?
Ao mesmo tempo, a pergunta de Mikhail ainda doía. Por todas as suas belas palavras
sobre dar uma escolha livre a Domenic, como ela se sentiria se ele escolhesse alguém que
ela desaprovava?
Alguém como Alanna?
Marguerida continuou em seu auto-exame implacável. Alanna era de boa família, ela
certamente possuía laran e, sob muitos aspectos, era uma escolha adequada; no entanto, a
própria idéia provocou um sentimento de horror desesperado em Marguerida. Desde antes
do nascimento de Alanna, o laran Aldaran de Marguerida a advertira sobre um desastre.
Desde então Marguerida fizera tudo o que podia para moderar esse destino, ela nunca
poderia permitir que Domenic fosse atraído para ele.
Domenic merece mais de uma esposa do que uma dor de cabeça constante.
Não havia dúvida de que Alanna traria tristeza. E se Domenic tivesse posto seu coração
nela, afinal? A cabeça de Marguerida doía, anunciando uma dor pior por vir. Distraída, ela
esfregou as têmporas.
Talvez a oferta de Francisco fosse uma oportunidade oculta, uma chance de desviar a
atenção de Nico para longe de Alanna. Ele tinha ficado demais na companhia da garota, e
Marguerida respeitava o poder da atração hormonal. Se não fosse Sibelle, então poderia
ser uma dentre várias pretendentes adequadas, moças jovens com espírito e inteligência
para fazê-lo feliz. Uma delas certamente o agradaria. Tudo o que seria necessário era um
pouco de incentivo e o ambiente certo.
Marguerida havia chamado Domenic em seu escritório, onde podia ter certeza de que
eles não seriam ouvidos. Ela fechou as portas, sabendo que os servos haviam sido bem
treinados para nunca interromper seu trabalho. Mais cedo, ela havia adicionado um
punhado de balsâmico ao fogo, de modo que a fragrância enchia a sala aconchegante. As
chamas refletiam nas paredes com painéis e iluminavam as cores de seu tapete favorito.
Lembrou-se de estar sentada nesta mesma mesa, compondo sua primeira ópera ou
estudando a história darkovana enquanto embalava um bebê no peito. Agora o bebê
estava crescido, era um homem. Para onde foram os anos?
Domenic ouviu em silêncio enquanto Marguerida explicava a proposta de Francisco.
Ela não pôde ler a reação dele, pois ele manteve seus pensamentos cuidadosamente
protegidos. Por mais que tentasse apresentar a situação objetivamente, suas próprias
dúvidas continuavam surgindo. Ela não conseguia ver nenhuma boa solução entre se
dedicar aos planos de Francisco ou deixar Domenic vulnerável a Alanna.
- Eu esperava algo assim. - Ele disse quando ela terminou.
- É mesmo?
O D o m d e A l t o n | 74

Ele fez uma careta. - Você viu como os mais velhos de ambos os sexos no Conselho
olharam para mim no dia da abertura das reuniões. Mesmo com os amortecedores
telepáticos, eu podia ouvi-los planejando um casamento Hastur.
- Oh, Nico! Conheço bem a sensação de que o Conselho não tem nada melhor para
fazer do que planejar a vida dos outros! Todo mundo espera que o herdeiro de um Domínio
se case cedo e, goste ou não, há razões para isso. Algum dia Darkover pode ter um governo
democrático, mas, por enquanto, o antigo sistema feudal está profundamente arraigado. -
Ela estava balbuciando, sabia, mas o nervosismo fazia isso com ela. A qualquer momento,
ela faria uma piada de mau gosto.
- Sinto muito, Nico. - Ela se forçou a desacelerar e respirar fundo. - Eu tenho que falar
menos daqui em diante, não é? Isso não é mais fácil para mim do que para você.
Domenic deu de ombros, fingindo indiferença. - Não posso esperar permanecer
solteiro indefinidamente. Se algo acontecesse comigo, Rory seria o próximo da fila e... -
com um sorriso travesso - ...se eu já não estivesse morto, ele viria atrás de mim e faria o
trabalho para um herdeiro.
- Suponho que sim. - Marguerida respondeu com uma risada. - Não o vejo feliz
sentado em todas aquelas reuniões do Conselho.
- Eu também sei… - disse Domenic, num tom mais sombrio - …que o Conselho terá
uma opinião sobre com quem devo me casar. Eles ainda precisam dar seu consentimento,
já que sou o herdeiro de um Domínio.
Ele parecia tão triste que o coração de Marguerida doía por ele. Ela desejou poder
usar uma varinha mágica dos contos de fada infantis e fazer desaparecer todos os
problemas dele.
Ela tentou parecer encorajadora. - Certamente, a aprovação do Conselho é apenas
uma formalidade. Afinal, seu pai e eu não nos casamos por amor? Miralys Elhalyn e Dani
Hastur? Acredite em mim, todas as famílias envolvidas tinham opiniões muito fortes e, no
entanto, o amor prevaleceu no final. Não desista da esperança. Estou certa de que o
mesmo será verdadeiro para você.
- Para dizer a verdade, mãe, não sei se algum dia encontrarei alguém que combina
comigo tão bem quanto você e o pai.
- Espero que sim… eu sei que sim! Enquanto isso, você não dará uma chance a Sibelle
Ridenow? Se você não gostar dela, há outras - Marguerida se apressou a acrescentar, não
querendo encorajá-lo muito nessa direção. - Francisco dificilmente pode opor-se caso suas
afeições estejam voltadas para outro lugar. Algumas moças muito agradáveis e elegíveis
estarão na cidade para a temporada. Se você passar tempo suficiente com elas, pode ser
que você goste. Eu ficaria surpresa se algumas delas não se apaixonassem por você.
O D o m d e A l t o n | 75

Domenic desviou o olhar e apertou as mandíbulas. Marguerida reconheceu a


expressão teimosa, pois já a vira várias vezes em seu próprio espelho.
Ela suspirou. - Não quero vê-lo infeliz ou casado com alguém que você não respeita.
Teria quebrado meu coração se Mikhail e eu não tivéssemos encontrado uma maneira de
ficar juntos. Mas sua situação é diferente. Você não precisa se separar de alguém que já
ama. O que estou sugerindo - ela colocou um peso especial na palavra - é que você
mantenha a mente aberta. Seu pai e eu gostaríamos muito de vê-lo resolvido.
Domenic não enfrentou seu olhar. Ela desejou poder tocar a mente dele com a dela,
como havia feito tantas vezes no passado, mas os escudos de laran dele estavam bem
firmes. Ele estava infeliz e escondendo algo, ela podia ver isso em sua expressão, em cada
linha tensa de sua postura.
- Você está certa, mãe, é claro. - Domenic disse finalmente. - Há considerações
maiores em jogo aqui do que minhas próprias preferências. Esforçarei-me para cumprir
meu dever da melhor maneira possível.
Marguerida sorriu quando se levantava, um sinal de que a reunião terminara. Uma vez
que ela estava sozinha novamente, o sorriso desapareceu. Lágrimas subiram aos olhos.
Além das palavras, esperava vê-lo tão feliz no casamento quanto ela, e esperava que um
dia não houvesse mais segredos entre eles.
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Capítulo 08

Domenic estava na sacada da janela do segundo andar, observando a rua abaixo,


vendo seu próprio estado interior refletido em sua turbulência: cavaleiros tecendo seu
caminho entre carroças e pedestres, criados de libré trotando junto com liteiras, mulheres
padeiras carregando cestas, babás cuidando de crianças pequenas, homens em trajes
comuns, vendedores ambulantes vendendo fitas e bugigangas de cabelo, dois mendigos na
esquina, meninos de rua esfarrapados entrando e saindo da multidão, um guarda da cidade
ou dois vigilantes.
Desde que Domenic falou pela primeira vez com Danilo Syrtis, o homem mais velho se
tornou seu mentor informal. A conversa foi tão animadora que Domenic confidenciou sua
confusão de emoções conflitantes sobre o assunto de seu casamento. Danilo ouvira
seriamente, com simpatia, talvez se lembrando da época em que Regis Hastur foi
pressionado a produzir herdeiros. Eventualmente, Regis se casou com Linnea Storn. Como
os três - Regis, sua esposa e seu amante de toda a vida - haviam enfrentado os inevitáveis
ciúmes, Domenic não podia imaginar. O que ele sabia era que sua mãe não ficaria feliz com
seu relacionamento com Alanna, nem Allana aceitaria que ele desse atenção à Sibelle
Ridenow ou qualquer outra mulher, e ele não tinha ideia de como abordar o assunto com
nenhuma delas.
Mesmo que ele não tivesse intenção de aceitar um casamento político arranjado pela
política, ele resolveu fazer um esforço para ser cortês com a filha de Dom Francisco. Seu
instinto dizia que Alanna não iria gostar disso. Com seu temperamento, não havia como
prever o que ela poderia fazer. A fim de adoçar seu humor, Domenic tinha trazido Alanna
com ele para o passeio desta manhã.
Domenic tinha começado o dia acompanhando Danilo pela cidade e, em várias
ocasiões, foi apresentado a algum comerciante, lojista ou viajante. Muitas vezes, esses
encontros aconteceram em salas privadas, contratadas por ele, para os homens falarem
mais livremente, longe do Castelo Comyn. Danilo conhecia um número surpreendente de
pessoas na cidade. Cada vez, Domenic havia aprendia algo novo.
Domenic e Alanna tinham caminhado juntos na rua, com a mão dobrada em seu
cotovelo, uma demonstração pública de afeto bastante imprópria para um casal solteiro.
Talvez inconscientemente ele quisesse ser pego e ter seu segredo revelado. Ele começou a
sonhar com ela, os dois juntos na cama. Tais pensamentos eram perigosos. Numa dessas,
eles poderiam se tornar tão tentadores que ele podia não ser capaz de se conter.
Quanto a Alanna, o passeio era um tratamento especial, pois raramente ela tinha
permissão para passear pela cidade, mesmo com uma escolta. Ela apontou animadamente
para as mercadorias expostas nas várias lojas e estandes de comércio, rolos de seda e linex,
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cintos de couro, botas de camurça suave e jóias filigranadas de prata. Até uma briga do
lado de fora da padaria, rapidamente interrompida pela Guarda da Cidade, despertou sua
curiosidade ao invés do medo.
Ela torceu o nariz ao entrar na taberna, com seu teto baixo, paredes sem adornos e
mesa de pinho limpo e sem retoques, as cadeiras de madeira e espaldar reto sem uma
única almofada fina entre eles, os aromas de baixa qualidade de mingau de aveia cozido e
jaco simples emanvam da cozinha abaixo. Para Domenic, o local tinha um apelo espartano,
limpo e simples e, acima de tudo, livre da ostentação dos ambientes da corte.
Agora Alanna sestava sentada ao lado de Domenic na janela. Ele deslizou sua mão ao
redor da cintura dela.
- Temos tão pouco tempo a sós. - Ele disse. - Não vamos desperdiçá-lo.
Alanna aconchegou-se em seu abraço. Os lábios dela encontraram os dele, quentes e
úmidos. Seu corpo pressionado contra ele. Domenic não conseguia manter suas mãos longe
dela. Através das camadas de seu xale e vestido de tartan, ele sentiu a maciez de seus seios.
Seu pulso soou em seus ouvidos.
Domenic inclinou-se para beijar seu pescoço, seguindo a curva suave até a borda da do
casaco. Quando ele respirou fundo sentiu o cheiro natural de sua pele. Naquele momento,
nada mais importava.
Com uma batida na porta o momento foi quebrado. Eles se afastaram. A porta se
abriu. Danilo Syrtis entrou, vestindo uma capa com capuz que escondia seu rosto. Logo a
seguir vieram outros três homens. Pelo corte de suas botas e coletes, Domenic imaginou
que dois deles eram pequenos agricultores das Colinas Kilghard. Os cabelos claros do
terceiro sugeriam ascendência das Cidades Secas. As roupas do terceiro homem, embora
de lã de boa qualidade, quentes e bem feitas, revelavam apenas que ele não era nem pobre
e nem rico, mas não dizia nada em particular sobre seus negócios.
Danilo jogou o capuz para trás. O frio da manhã trouxe uma onda de cor às bochechas,
dando-lhe a aparência de um homem muito mais jovem. - Dom Domenic Lewis-Gabriel
Alton-Hastur, - Danilo disse formalmente – permita-me apresentar Zared e Ennis de suas
próprias terras em Alton, e este é Cyrillon, que comercializa peles e ouro de Carthon.
- Z'par servu, vai dom. - Os dois homens de Alton se curvaram para Domenic e e
Alanna, embora nenhum deles olhassem diretamente para ela, como era apropriado.
Domenic perguntou quanto tempo eles estavam em Thendara e fez pequenos comentários
para deixá-los à vontade.
Os homens de Alton, que pareciam ser parentes da região do Lago Mariposa, haviam
chegado a Thendara esperando uma audiência com Gabriel, como chefe do Domínio de
Alton, durante a temporada do Conselho. No entanto, os plebeus não tinham legitimidade
O D o m d e A l t o n | 78

no Conselho Comyn, e seus esforços para falar com Gabriel ou qualquer outra pessoa no
castelo tinham profundamente rejeitados.
Seu tio-avô havia morrido sem deixar herdeiros sobreviventes, pois seus filhos haviam
morrido de uma maneira ou de outra, parte da febre do pulmão que atingira a área após as
destruição da colheita causada pelos Destruidores de Mundos. Outro caiu num ataque de
bandidos e outro havia morrido no período de revolta após a Batalha na Velha Estrada do
Norte. Isso deixou em dúvida a questão da herança, e o administrador interino que ficou
encarregado de Mariposa foi incapaz de resolvê-la. Vários pretendentes já haviam chegado
às vias de fato.
Domenic ouviu a história com um crescente sentimento de desconforto.
Tradicionalmente, cada propriedade principal no Domínio Alton era governada por um
ramo diferente da família. O avô Gabriel morava em Edelweiss, raramente saindo. O jovem
Gabriel havia assumido a gestão de Armida. Rafael se casara com Gisela Aldaran e dividia
seu tempo entre a casa dela, na distante Hellers e o Castelo Comyn.
Mariposa foi deixada à cargo de outros. Tais homens podiam administrar bem as
terras e o gado por algum tempo, mas não tinham nenhuma relação de lealdade com o
povo. Eles não podiam formar tropas, julgar ou lidar com nenhuma das mil coisas que um
Lorde e seu povo deviam um ao outro.
Não havia nada que Domenic pudesse dizer em defesa de sua própria família. Esses
homens eram vassalos de Alton e tinham todo o direito de esperar um Lorde ágil e
responsável, alguém que os conhecesse, suas famílias e preocupações. O que alguém em
Thendara, por mais bem-intencionado que fosse, poderia saber de seus problemas diários?
Na verdade, os atuais Comyn eram uma pequena fração do seu número antes dos
assassinatos orquestrados pelos Destruidores de Mundos anos antes. A morte de Regis
Hastur os enfraquecera ainda mais. Agora parecia que o poder estava concentrado nas
mãos de poucos, com muitas propriedades ficando sem um mestre. Alguns Domínios
estavam a um passo de um destino semelhante. Aillard estava nas mãos de uma mulher
idosa, Marilla Lindir-Aillard. Kennard-Dyan Ardais ainda não havia se casado ou nomeado
um herdeiro. Dani Hastur havia abdicado de sua própria posição para governar Elhalyn por
sua esposa.
Devemos levar este assunto na reunião do Conselho, Domenic pensou. Não há o
suficiente de nós para cumprir nossas responsabilidades; isso está claro.
Zared e Ennis se mexeram em seus assentos, claramente desconfortáveis. Nenhum
dos dois olhou para cima. Num piscar de olhos, Domenic trocou olhares com Danilo. Eram
homens do campo, por natureza e educação eram conservadores. Ele duvidava que algum
deles tivesse posto os pés fora de suas próprias terras antes.
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- Se você me apresentar o assunto – Domenic disse inesperadamente comovido com a


situação desses homens – tratarei disso da melhor maneira que puder.
Zared abaixou a cabeça e disse em um casta arcaico: - Vai dom, nos colocamos em
suas mãos.
Domenic pensou que não era digno de tal gesto de lealdade, que nunca poderia tomar
uma decisão sozinho. Certamente ele deveria ter alguém para aconselhá-lo, mais velho e
mais experiente. O instinto o manteve calado. Somente para ele esses homens haviam
dado sua confiança. Somente ele devia cumprir essa obrigação.
O que tio-avô Regis teria feito? Em um momento de insight, Domenic percebeu que
havia mais do que uma simples questão de legalidade. Os direitos de propriedade eram
simples em comparação com as complicadas linhas de sucessão do Comyn. Não houve
casamentos entre linhagens nesse caso, nem herdeiros nedestros anteriormente não
suspeitos, nem parentesco contestado.
Qual seria a resposta certa, a que beneficiaria todos os envolvidos? O que impediria
que a injustiça se infundisse em ressentimentos e até mesmo em contendas definitivas? O
que melhor promoveria a harmonia entre esses parentes, para que eles cuidassem um do
outro e da terra?
Dois dos reclamantes receberam parcelas de sua própria terra, férteis o sufciente para
sustentar suas famílias. Depois de alguma refexão, Domenic decidiu que os mais ricos
deveriam fazer a divisão da propriedade em porções bem determinadas. O homem mais
pobre deveria, então, ser autorizado a escolher um pedaço de terra, procedendo segundo
uma ordem, com os mais ricos escolhendo por último. No entanto, acrescentou, qualquer
requerente que desejasse uma parte de terra devia adicionar a sua própria parcela de terra
para ser dividida. Quando Domenic terminou de explicar a sua ideia, os dois homens
concordaram e foram embora, claramente satsfeitos.
- Temos a palavra de um Lorde Alton. – Um comentou ao sair.
- Sim. - O outro disse. - A ganância não haverá de nos separar. Teremos nossa própria
terra e nenhum dos nossos filhos vai passar fome.
- Isso foi bem feito. – Danilo disse depois que a porta se fechou atrás dos dois homens
de Mariposa. - Agora, vamos ouvir o que Cyrillon tem a dizer.
O terceiro homem, que estava ouvindo atentamente, disse que ele não precisava de
conselhos para o seu negócio. Ele prosperava, mas o lorde, ele indicou Danilo, tinha dito
que ele deveria vir e contar sua história.
Ele disse que era descendente de pessoas dos Domínos e das Cidades Secas, e que
passara a vida nas fronteiras aproximadas entre as duas terras, abastecendo cada um com
o que sobrava ao outro. No momento, ele carregava peles, couro, ervas medicinais das
O D o m d e A l t o n | 80

Colinas Khilgard para Carthon e voltara com enxofre, sal e joias fligranadas de ouro. Às
vezes, ele era conseguia comprar rubis em Ardcarran também.
- E que notícias você traz de Shainsa? - Domenic perguntou.
- Ah, muita coisa, como sempre. – Cyrillon respondeu. - Os grandes chefes rosnam um
para o outro como cães de caça com um osso. Ninguém nunca ganha a não ser pelo kihar.
Cyrillon respondeu às perguntas Domenic sobre o comércio entre as Cidades Secas e
os Domínios, como os senhores de Shainsa viram a partida dos Terranan, e as perspectivas
para a continuação de uma paz inquieta. Pareceu a Domenic que, enquanto os chefes
brigassem entre si não poderiam coordenar uma batalha eficaz. Ataques pequenos e
incursões em territórios dos Domínios sem dúvida continuariam, quando um cabeça quente
ou outro tentasse provar sua masculinidade.
- E sobre as condições da estrada? - Domenic perguntou, pensando no número de
camponeses que havia notado na rua. Dois desses homens, mal vestidos e abatidos, tinham
se envolvido na briga do lado de fora da padaria naquela manhã.
A sobrancelhas grossas de Cyrillon se juntaram. - Sim, eu tenho visto mudanças, e não
para melhor. Sempre os piores tipos de vagabundos têm mais interesse em arrancar seu
sustento do meu ou do seu bolso do que fazer qualquer trabalho honesto.
- Isso é verdade, - disse Domenic - ou ferreiros não teriam compradores para as suas
espadas.
Cyrillon balançou a cabeça em uma concordância sem palavras de que tal tempo
nunca chegaria. - Este ano tenho visto muitas pessoas carregando tudo o que possuíam em
suas costas, mas é difcil de dizer. O degelo da primavera muitas vezes os faz viajar.
- Eles não vão melhorar sua sorte em Thendara. - Domenic disse, pensando em como
os Guardas da cidade havia reprimido a briga. É verdade, alguns trabalhos podiam ser
encontrados em Thendara, tarefas doméstcas como carregar carroças ou limpar estábulos,
mas Darkover não era como outros mundos do Império, com uma base grande e centros
urbanos industrializados.
Danilo estendeu uma pequena bolsa em que moedas tilintavam e a colocou
suavemente na palma da mão do comerciante. - Isso é por seu serviço, bom mestre, e
haverá mais na próxima vez que estiver em Thendara. Venha falar conosco, mesmo se não
houver notícias. Talvez possamos ter outros usos para suas habilidades.
Radiante, o comerciante saiu. Domenic esperou até não sentir a presença de Cyrillon
no corredor antes de falar para Danilo: - Então você acha que devo contatar homens como
este?
- Acho que quanto mais fontes de informação que você tiver, é mais provável que você
possa ouvir a verdade. – Danilo disse.
O D o m d e A l t o n | 81

Alanna permaneceu sentada silenciosamente durante as conversações, com os olhos


brilhando. - Isso foi esplêndido! - Ela bateu palmas de alegria. – Titia Marguerida nunca me
deixa fcar quando há algo importante acontecendo.
- Então você achou a conversa interessante? - Danilo se virou para ela. - Porque?
- Acho que... - Querendo ser levada a sério, Alanna respondeu lentamente, sua testa
enrugando-se em concentração. - Talvez seja melhor não confiar na palavra do comerciante
inteiramente. Um homem como esse só pensa em seus próprios interesses. Se ele passar
por algum pobre na estrada, sua única preocupação é a de proteger seus bens e se precaver
de outros problemas que ele possa ter. Além disso, - ela acrescentou com um certo desdém
e movimento da cabeça - não gostei desse Cyrillon. Ele olhou para mim como se quisesse
me levar embora para vender em um mercado de escravos em Ardcarran.
Domenic riu, mas Danilo ficou pensativo. - Deixemos de lado as impressões pessoais, -
Danilo disse - nós ainda não sabemos toda a história. Também tenho notado uma crescente
agitação nas ruas.
Domenic pensou na luta do lado de fora da padaria, os mendigos na esquina, a forma
como as pessoas andavam na rua, às vezes saindo correndo quando ele se aproximava. Ele
tinha passado muito tempo longe de Thendara para saber se isso era incomum e havia
atribuído a seu próprio senso de inquietação, a seu descontentamento da vida e com as
multdões em geral.
- Esse comportamento é novo? - Ele perguntou. - Está pior do que antes?
-Acho que sim. – Danilo respondeu. - Desde o início desta temporada Conselho, algo
foi despertando um sentimento público contra o Comyn, e o Regente em particular.
Algo, Domenic repetiu para si mesmo, pensando agora nas premonições de sua mãe.
Ou alguém.
- A situação exige um olhar mais atento. – Danilo disse. - Mesmo queixas legítimas
podem ser manipuladas para um propósito. E não seria a primeira vez que algum
descontente ou outro recebeu apoio popular para culpar o Conselho. Mas as pessoas
sempre se voltaram para nós quando necessário, para ter um homem para falar por muitos.
Nos pensamentos de Danilo, Domenic captou a imagem fugaz de um homem jovem,
leve e intenso, brilhando com poder tácito. Mas não o poder do punho ou da espada. O
poder de inspirar, de acender as chamas do idealismo, da dedicação. A energia do coração.
Tão rapidamente quanto veio, a visão desapareceu. Danilo estava falando agora sobre
como o Império tentou impor sua própria forma de governo sobre Darkover, com suas
próprias leis e economia.
- Isso aconteceu muito. - Alanna tentou colocar no contexto. – A partida deles
funcionou para o nosso bem, não foi?
O D o m d e A l t o n | 82

- Isso ainda deve ser analisado. – Domenic disse. Em algum lugar, lá fora, nas estrelas,
os planetas guerreiavam ou com o outro. Talvez eles ainda não estivessem em guerra ou
talvez eles se bombardeassem até deixar o outro em ruínas. Ele não queria pensar no que
isso signifcaria para Darkover, se homens como Lyle Belfontaine viessem descendo dos
céus, empenhados em tirar tudo o que fosse necessário, usando Darkover para seus
propósitos.
- No entanto, - Danilo disse - os Terranan perturbaram os velhos costumes e nós ainda
não encontramos novos. Homens como Zerede e Ennis procuram os seus lordes para
resolver suas diferenças.
- Foi uma sorte para eles que você os trouxe até aqui, onde Domenic poderia dizer-
lhes o que fazer. - O humor de Alanna virou petulância, como se os homens tivessem
viajado léguas até Thendara, a fim de irritá-la. - Será que eles acham que poderia marchar
até a Câmara de Cristal e colocar seus problemas aos pés do Conselho?
- Certamente não do Conselho. - Domenic teve vontade de rir.
- Nós preferimos lidar com nossos assuntos localmente sempre que possível. - Danilo
explicou para Alanna. - Em Syrtis, onde nasci, nosso povo sempre procurava meu pai para
resolver suas diferenças.
- Quem resolve por eles agora já que você está aqui em Thendara? - Alanna parecia
genuinamente curiosa.
- A propriedade é administrada por um intendente e eu visito sempre que posso. E é
sempre assim em toda parte. Gostaria de poder fazer mais, mas os deveres que me
mantiveram em Thendara eram mais urgentes e não posso estar em dois lugares ao mesmo
tempo. - Danilo trocou um olhar com Domenic. Há muito poucos de nós agora.
Algum dia, Domenic pensou, ele teria que dividir-se entre a Regência e o Domínio. E
não tenho filhos para assumir essas funções depois de mim...
Gostando ou não, sua mãe havia lembrado uma verdade incontornável. Ele deviaaaa
se casar. Devia ser alguém aceitável, não só para seus pais, mas para o próprio Conselho.
- Qual é o propósito do Conselho, se não pode se pronunciar sobre todos? - Alanna
perguntou.
- Com o tempo, os poderes do Conselho foram reduzidos ao básico. – Danilo explicou.
- Agora principalmente resolve disputas entre os Domínios, políticas de comércio e direitos
de herança. Uma vez o Conselho foi muito mais poderoso, mas ainda hoje alguém como
você ou Domenic ainda deve obter a aprovação do Conselho para se casar.
Alanna lançou um olhar para Domenic. – O Conselho pode proibir um casamento com
alguém que não aprova? Ou forçá-lo a se casar com outra pessoa?
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Domenic estendeu a mão para tranquilizá-la. - Claro que não. Isso é um pouco da
história antiga da Era do Caos, quando o Comyn usava endogamia seletiva para desenvolver
e fortalecer seus dons de laran.
- Lamento dizer isso, mas o Conselho ainda tenta manter esse direito. – O rosto de
Danilo ainda bonito escureceu e ele desviou o olhar. – Mesmo Regis não ficou imune.
- Ninguém hoje gostaria de sugerir uma coisa dessas. - Domenic repetiu, sentindo a
histeria crescente de Alanna. - Sua aprovação é uma questão de formalidade, sem
nenhuma consequência.
A cor votou para as faces da menina e sua boca tremia. - Domenic, não me diga que
não teria nenhuma consequência! Diga.... – A voz dela tremeu, cada sílaba subindo quase
em frenesi.
- Qual é o problema? - Domenic perguntou.
- Eu não sei qual visão é a verdadeira, nem o que vai acontecer!
- Você teve outra visão do futuro? - Danilo perguntou. - Qual é esse futuro?
Alanna reuniu um esforço para falar. - Você estava certo, Dom Danilo, as visões não
irão embora. Elas estão ficando piores. Às vezes... Eu tenho duas ou três de uma vez, tão
misturadas que não posso dizer qual é real. Eu vi você, - ela levantou os olhos com lágrimas
brilhantes para Domenic - de pé ao lado de uma menina, vestida como uma rainha nas
cores de Ridenow e as catenas sendo fechadas em seus pulsos, enquanto Tia Marguerida e
Dom Mikhail obsevavam. Quem é ela, Domenic?
Senhor da Luz! Ela me viu casar Sibelle Ridenow!
- Outra vez... - Alanna continuou antes que ele pudesse responder - Vi você com uma
mulher diferente. Ela parecia familiar, mas não sei dizer se a conheço. Vocês estavam rindo
juntos. Você estava muito feliz e eu não estava lá! Estarei morta? É isso que vai acontecer?
Acho que devo estar enlouquecendo!
- Não, não. - Domenic disse com uma garantia que não sentia. - Eu não vou te
abandonar. Já não te prometi?
- Damisela, parece que seu laran está cada vez mais forte. – Danilo disse esfregando o
queixo, pensativo. - Suspeito que você não veja um futuro único e inevitável, mas uma série
de futuros possíveis.
- Esse certamente deve ser o caso. – Domenic disse, tentando manter sua voz leve. -
Eu não posso me casar com as duas ladies.
- Não, claro que não. - Alanna disse. Seus dedos apertados ao redor dele, ligando-os
em relação telepátca. Não quando você vai se casar comigo.
O coração de Domenic acelerou. Até o momento, palavras não foram ditas, só
presumidas. Ele havia se comportado em relação a ela como se estivessem noivos. Ela tinha
todo o direito de esperar uma declaração formal depois. Embora não tenham realmente
O D o m d e A l t o n | 84

consumado sua paixão, eles haviam se tocado e beijado de uma forma que não há muito
tempo teria consttuído um compromisso inquebrável. Ela não era uma prostituta, serva
doméstca, ou leiteira, mas sim um comynara com quem poucos ousariam flertar.
Devo manter minha promessa a ela. A palavra de um Hastur é um vínculo tão forte
quanto qualquer juramento.
- Que outras visões você teve? - Danilo perguntou Alanna.
- Piores. - Ela admitu. - Esta manhã, quando estava acordando, pensei que estava
numa rua em Thendara, onde Tia Marguerida costumava me levar quando eu era pequena.
Tinha amigos lá e eles riam juntos. Só que desta vez, ninguém estava rindo. Em cada casa e
fora, também, deitadas na rua, haviam pessoas doentes. Uma mulher atravessou a rua com
um bebê nos braços. Ela batia em todas as portas e ninguém a deixava entrar. Acho que o
bebê estava morto.
Domenic estava ouvindo Alanna tanto com seus sentidos de laran como com seus
ouvidos. Agora, em um flash de visão interior, vislumbrou um padrão de energia. Em torno
de seu corpo, linhas do tempo fluíam para fora como fios de luz com figuras se movendo
para trás e para a frente sobre eles. Algumas eram claras, outras emaranhadas, e outras tão
turbulentas que ele não podia observar nenhum detalhe.
- Dom Danilo o que isso pode signifcar? – Ele perguntou.
Danilo balançou a cabeça, seus olhos escuros tinham uma expressão grave. - Eu não
sei. Que o Santo Portador dos Fardos permita que nunca venha a acontecer!
- A visão não precisa ser um presságio do que está por vir. - Domenic procurou
desesperadamente por uma feliz explicação. - Talvez Alanna tenha visto algo do passado.
- Eu não sei dizer. – Alanna disse. - Oh, Domenic, o que eu devo fazer? Como posso
suportar isso? Não me diga para voltar a uma Torre! Quero levar minha própria vida e não
ficar longe de toda a diversão.
- Tenho pensado muito sobre o assunto desde a primeira vez que discutimos isso, -
Danilo disse a ela - e concordo. Claramente, você precisa de treinamento adicional para
dominar seu laran. Ao mesmo tempo, não seria bom ir para uma Torre contra a sua
vontade. Todos sabemos o que é adequado para essa vida. Regis não estudou em uma
Torre, como a maioria de nós. Ele sentiu-se chamado a viver no mundo, embora por razões
muito diferentes. Uma vez que ele fez as pazes com ele mesmo por ter bloqueado seu dom,
não havia necessidade.
- Tio Regis...bloqueou seu dom? Como foi possível? - Domenic perguntou, atordoado.
Danilo deu-lhe um olhar enigmátco. - Muitas coisas podem bloquear o uso do laran ou
deformar a sua totalidade, como condicionamento, crenças religiosas e até mesmo o amor.
Às vezes, também, o amor é a chave para destravá-lo.
O D o m d e A l t o n | 85

Domenic captou o pensamento do homem mais velho, poderia o mesmo ser verdade
para Alanna?
- O que mais, então? - Alanna chorou, cada vez mais agitada conforme o tempo
passava. – Devo simplesmente deixar que as visões venham quando querem e não fazer
nada?
Danilo ergueu uma sobrancelha. - Essa é uma opção.
Alanna olhou profundamente surpresa, pois claramente ela esperava outra discussão
sobre ir para uma Torre. Domenic abriu a boca para protestar. O comentário de Danilo não
fazia sentido.
Danilo se inclinou para Alanna, sem tocá-la. Em voz baixa e suave, ele disse: - A única
razão convincente para ir para uma Torre é aprender a disciplina interna necessária ao ter
um dom como o seu. É um fardo pesado de fato, bem como um talento tão raro que
ninguém mais nos tempos atuais tem. Não acho que a leronis possa ensinar o que fazer
com ele, mas podem instruí-la em como manter-se calma e focada. Você pode aprender a
dominar os seus medos.
- Você passou uma temporada em Arilinn. - Domenic disse, encorajador. - Certamente
algo que você aprendeu como a meditação básica e técnicas pode ajudá-la agora.
A emoção foi drenada do rosto Alanna. Ela parecia congelada, exceto pela rápida
ascensão e queda de seu peito. Quando falou, um frio sobrenatural surgiu através de sua
voz. – Prefiro não pensar naqueles tempos. Nunca. Nunca mais.
Domenic franziu a testa. O que poderia ter acontecido com ela em Arilinn? Ele hesitou,
com medo de causar seu distanciamento e provocar outra explosão.
- Eu preferia morrer a voltar para Arilinn! - Alanna estremeceu e seus olhos se
concentraram mais uma vez. - Por isso, tenho que fazer o meu melhor agora, como você
falou, e dominar meus medos... Para não ser tão assustador.
Domenic descobriu-se estranhamente movido por suas palavras. Ele virou-se Danilo. -
Isso é seguro?
- Não sei dizer. Eu não sou Guardião ou qualquer coisa assim. – Danilo disse. - Embora
possa ser um erro terrível, não sei mais o que sugerir. Pessoas como Alanna não deveriam
ter de escolher entre a vida em uma Torre e se sentir abandonanda seus parentes. Quem
sabe quantos estão lá fora, os descendentes do Comyn, ao longo dos séculos?
Domenic lembrou de Illona Rider, a menina Viajante que conheceu durante as
aventuras que antecederam a Batalha na Antiga Estrada do Norte. Apenas um acidente do
destino os uniu fazendo seu dom ser descoberto e alimentado. Só mais tarde foi que soube
que ela era a filha nedestra de Kennard-Dyan Ardais, embora ele ainda não a tivesse
legitmado ou a qualquer um de seus outros filhos ilegítmos. Ela e Domenic tinham
estudado juntos na Torre Neskaya, onde ele permaneceu, enquanto ela se transferiu depois
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de uma temporada para Nervasin. Em sua mente, Domenic viu suas feições doces, a cabeça
de cabelo famejante, a boca generosa e a face pálida, olhos quase luminosos, ouviu a sua
risada espontânea. Por tudo o que sabia, ela poderia ser sub-Guardiã agora.
E se ele nunca tivesse conhecido Illona? Ela teria passado toda a sua vida com medo de
seu talento, com Darkover mais pobre ainda dele? O Comyn tinha poucos membros e
precisavam de pessoas como Illona agora mais do que nunca.
- Como vamos encontrá-los? - Ele perguntou à Danilo. - Que tipo de treinamento
podemos lhes oferecer? E que trabalho irão fazer? Que lugar eles vão encontrar na
sociedade?
- Eu não sei as respostas para qualquer uma dessas perguntas. – Danilo disse, seus
olhos escuros e pensativos. - Mas acho que é hora começamos a procurar.
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Capítulo 09

Na noite do Festival de Verão, Domenic lembrou que raramente tinha visto o Grande
Salão do Castelo Comyn tão resplandecente. Folhagens enfeitadas com flores e fitas em um
arco-íris de cores penduradas em todos os lugares. O piso e os lustres de cristal tinham sido
polidos ao brilho semelhante a um espelho, inundando o espaço com luz refletida. Espelhos
adicionais, muitos deles importados dos Terran, tinham sido colocados ao redor da entrada
por Marguerida para aumentar o efeito de brilho e cores vivas.
No centro da longa parede interior havia uma pequena orquestra com violas, harpas,
flautas de madeira, e vários instrumentos mais recentes tocando uma melodia cadenciada.
Domenic a reconheceu como uma das composições de sua mãe. Ela chamava de Música da
Câmara.
Mais tarde, à noite, entre as danças, um quarteto de vocalistas iria executar canções
da ópera que ela tinha concluído no ano passado.
Apesar da festa ser tradicionalmente uma reunião de todos do Comyn, era também
aberta aos plebeus. Marguerida atuou como anfitriã, supervisionando as decorações,
arranjos da música, verificando listas de hóspedes e ordenando os refrescos. Agora ela e
Mikhail esperavam na entrada principal para dar as boas-vindas a todos os convidados.
Domenic tomou seu lugar ao lado de seus pais.
Marguerida usava um vestido glorioso elaborado em camadas, seda de aranha
iridescente azul, enfeitado com rendas de Temora. Ao seu lado, Mikhail brilhou em um
terno de noite de brocado nas mesmas tonalidades luminosas, gibão costurado com fios de
prata, mangas cortadas para revelar uma camisa de pluma-de-vagem tão fina e branca que
brilhava. A capa comprida que envolvia elegantemente os ombros era de pele de leopardo-
das-neves e forrado com o mesmo tecido de seda de aranha de Marguerida.
Que visão nós somos! Domenic pensou, refletindo com tristeza que nenhum de seus
pais parecia no mínimo desconfortável com suas melhores roupas. De seus sorrisos e
postura, eles eram a visão da pompa e comemoração do Festival. Seu prazer residia não só
em sua vestimenta pessoal, mas no sentido de celebração compartilhada. Bonitos para
homenagear seus amigos e parentes.
Domenic arqueou seus ombros para trás e tentou respirar. Ele não podia pensar em
seu traje como nada além de um traje, porque ele nunca teve antes de usar algo tão
complicado e brilhante. Ele não tinha ideia do custo da camurça aveludada macia, nem dos
escandalosamente caros rubis de Ardcarran. Em vez de uma espada comum, ele carregava
uma espada ornamental cravejada de joias.
A sala encheu-se rapidamente de Comyns e comynaras em trajes elegantes. Muitas
das mulheres carregavam seus presentes tradicionais de flores, fosse como pequenos
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buquês ou incorporados artisticamente em seus coques requintados. Domenic tinha


deixado uma cesta de frutas do lado de fora das portas de Alanna, pêssegos-de-mel doces
das montanhas que lhe lembravam de sua pele. Suas ofertas para a sua mãe e irmã tinham
sido mais modestas, pequenos ramalhetes amarrados com ftas de flores de dorylis.
Katherine e Hermes Aldaran já haviam chegado, bem como seu avô Lew. Marguerida
abraçou a amiga e as duas mulheres conversaram de forma animada por vários minutos.
Domenic olhou em torno a procura de Alanna, mas ela ainda não havia chegado.
- Um belo rapaz você tem aqui, vai domna. - Dom Marcos MacAnndra disse, depois de
Marguerida ter feito as apresentações. Ele possuía terras férteis no litoral de Temora, e,
tanto quanto Domenic sabia, nunca tinha participado de uma sessão do Conselho Comyn. -
Você vai deixar todos nós orgulhosos, rapaz. Disso não tenho nenhuma dúvida.
Domenic endureceu quando Dom Francisco se aproximou com sua filha em seu braço.
O Lorde Ridenow se destacava mais por seu traje alegre e colorido. Sua espada parecia mais
funcional do que ornamental. No verde e ouro das cores de seu Domínio, Sibelle parecia um
jardim iluminado pelo sol.
Após as habituais cortesias serem trocadas, Mikhail disse: - É bom tê-lo entre nós mais
uma vez. Esta noite, vamos celebrar a alegria desta temporada juntos.
- Poucas coisas me dariam mais prazer. - Francisco fez uma pausa, lançando a
Marguerida um olhar estranho, ilegível. - Nós fomos amigos uma vez.
- E podemos ser novamente. – Ela disse, sua voz cuidadosamente neutra.
- Lorde Domenic, creio que você não tenha sido devidamente apresentado a minha
filha, Sibelle Francesca. - Francisco disse.
- Para Servite. - Domenic respondeu educadamente. - Vai dom, vai damisela.
Sibelle Ridenow fez uma reverência e olhou para Domenic sob os cílios. Ela era, ele
admitiu, extremamente bonita, com cordões de pérolas e jade torcidos pelo cabelo.
- Que esse recomeço seja uma bênção para todos. - Sibelle disse em uma voz clara de
soprano doce.
O que lhe disseram? Que se ela casasse comigo iria governar Darkover como fosse uma
rainha?
Rapidamente, Domenic reprimiu o pensamento. Sibelle Ridenow era uma menina
adorável, delicadamente criada, sem nenhuma mácula em sua honra. Na verdade, em um
momento de reconhecimento, ele não pôde encontrar qualquer falha nela. Ele sorriu,
curvou-se novamente e perguntou se ela iria honrá-lo com uma dança mais tarde.
- Oh! Oh, sim, eu gostaria muito.
Obviamente, ninguém tinha dito à Sibelle para não parecer muito animada. Seu pai,
sorrindo, levou-a para longe, ainda mais pessoas do Comyn vieram para a frente para
cumprimentar Mikhail.
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Domenic ficou instantaneamente alerta quando Alanna entrou, acompanhada por seu
irmão, Donal. Em seu vestido de cetim cor de creme, atravessado por um tartan nas cores
de sua família, ela parecia equilibrada e elegante. Ela chamou a atenção de Domenic no
meio da sala, mas ambos foram cercados por grupos de pessoas e foi impossível fazer seu
caminho até ela. O ar brilhava à vista de Domenic, ou talvez fosse o calor subindo nele. Ele
sofria por querer estar com ela.
Dani Hastur chegou um pouco mais tarde, acompanhando sua esposa. Gareth estava
com eles.
Em dado momento, Domenic não estava mais preso à linha de recepção com os pais.
Mikhail tinha levado Lew para um lado, falando sobre copos de ponche de vinho.
Marguerida saíra com sua cunhada Gisela e com Katherine, a mulher de Hermes Aldaran. As
três estavam tendo uma conversa animada sobre outros mundos. Domenic olhou para Rory
que estava em um canto, perto de outro jovem Guarda. Eles estavam tão aabsortos um no
outro que nem notaram a aproximação de Domenic.
- Boa Noite do Festival. - Domenic disse. Os dois pararam a conversa e se
aproximaram. - Me desculpe se estou interrompendo. Você não vai me apresentar ao seu
amigo? - Ele flexionara a palavra de modo que poderia significar algo mais íntimo.
Rory encontrou o olhar de Domenic e um brilho de compreensão passou entre eles. -
Nico, este é Niall MacMoran. Nós nos conhecemos desde nossos primeiros dias como
Cadetes.
Niall tinha os ombros musculosos de um espadachim, quadris estreitos e olhos
castanho-avermelhados.
Domenic inclinou a cabeça. - Eu sou o irmão menos capaz de Rory.
- Vai dom. - Seus olhos brilharam quando ele se curvou em resposta.
- Você pensa muito mais do que fala. - Domenic disse a Rory, gentilmente provocando.
- Ele é a razão de você ter se tornado menos selvagem?
Rory deslizou um braço ao redor dos ombros Niall. - Isso depende de como você define
razão.
- E boas maneiras. - Niall acrescentou.
Domenic riu abertamente. - Você falou com a mãe?
- Não, ainda não. - Rory respondeu.
Domenic estremeceu, então, vendo o sorriso bem-humorado do irmão, encolheu os
ombros em sinal de rendição. - Acho que ela será muito compreensiva no seu caso.
- Isso pode ser verdade. – Rory disse, passando de divertido para sério. - Mas todos
nós precisamos de uma parte de nossas vidas que seja só nossa. Há tempo para falar
francamente e tempo para fcar em silêncio. Sou só o segundo filho, não o herdeiro de
Hastur e da Regência. Quem eu escolher para meu coração e cama não afeta ninguém além
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de mim. Os Domínios não cairão em ruína se eu me recusar a tomar uma mulher e produzir
descendentes numerosos. Você, por por outro lado... - Deixando cair o braço, tocou a parte
de trás do pulso de Domenic. - Você não tem essa liberdade. Lamento dizer isso, irmão, mas
o mundo vai como ele quer.
- E não como você ou eu gostariamos. - Domenic completou o velho provérbio.
Deixando Rory e Niall, Domenic continuou seu caminho para onde Gareth estava ao
lado de sua mãe, Miralys Elhalyn. Os meses desde seu retorno a Thendara haviam lhe dado
ampla prática nos gestos e frases de cortesia. Quando circulou pela sala, ele reconheceu
uma série de Lordes e Ladies menores, vários claramente ansiosos para apresentar suas
filhas a ele. Ele evitou ser arrastado para a conversa com qualquer um deles.
Quatro anos haviam deixado Gareth alto e um pouco desajeitado, como se ele ainda
não estivesse acostumado com o novo tamanho de suas pernas. Tanto quanto Domenic
sabia, ele não tinha servido como Cadete na Guarda e agora, aos dezoito, estava muito
velho para começar. Ele curvou-se com polidez impecável para Francisco Ridenow, que se
curvou de volta para Lady Miralys com a cortesia devida. A grosseria tinha passado para
insulto total, pois Lorde Ridenow tinha tratado Gareth como se ele fosse uma criança.
Gareth podia ter agido mal, há quatro anos, mas ele é um adulto agora e o herdeiro de
seu Domínio, Domenic pensou com uma intensidade que o surpreendeu.
- Domna Miralys, Dom Gareth, como é bom ver vocês dois de novo. - Domenic colocou
mais do que o calor necessário em suas palavras. Ele se curvou, dando-lhes um sinal de
cortesia da maior categoria.
Miralys retribuiu a saudação com uma inclinação graciosa de sua cabeça. - Eu não tive
a chance de falar mais do que uma ou duas palavras com seus pais. Como eles estão?
- Muito bem, obrigado. - Domenic virou-se para Gareth. - É bom ver você de novo.
Vamos tentar a dança da espada, esta noite, como costumávamos fazer?
A expressão rígida de Gareth derreteu em um sorriso genuíno. - Você ainda vai brilhar
mais que eu, tenho certeza.
Danilo Syrtis emergiu da multdão, com Alanna descansando os dedos levemente em
seu braço. Domenic lutava para abster-se de olhar para ela, porque seria uma rudeza bruta.
Ele queria tomá-la em seus braços, devorá-la com beijos. Sua presença o castigava. Cada
nervo seu tremeu como se em chamas quando ela inclinou a cabeça, balançando seus
cachos cuidadosamente arrumados.
Quando Danilo cumprimentou os Elhalyns, seu xará se juntou a eles.
- Tio! - Dani Hastur gritou, recebendo um abraço de parente. - Eu esperava que você
viesse hoje à noite.
- Nunca me importei com ocasiões formais, - disse Danilo - mas é bom ver velhos
amigos de novo e bom para os jovens se divertirem.
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A orquestra, terminando a última das composições de Marguerida, tocou a introdução


de uma das baladas mais simples. Casais formaram linhas no meio do salão e o restante foi
para as paredes da câmara.
- Essa é uma balada maravilhosa! E os músicos são esplêndidos! - Alanna olhou para
Gareth, incisivamente esperando ser convidada para dançar. Olhando encantado, ele a
cumprimentou e levou-a para o salão.
Domenic assistu com uma mistura de frustração e alívio. Claramente, Alanna tinha
visto ele conversando com Sibelle Ridenow e decidiu retaliar. Pelo tempo de uma música ou
duas, Alanna ficaria feliz ocupada, tentando deixá-lo com ciúmes.
Domenic viu sua tia Liriel, graciosa e imponente em uma tiara de esmeraldas e prata.
Ela chamou sua atenção com a ousadia de uma trabalhadora das Torres e piscou para ele.
Ele sempre gostou dela e a tiraria para uma dança ou duas, como era perfeitamente
adequado com uma parenta. Embora grande e amplamente rodada, ela era uma bailarina
graciosa, leve aos seus pés, com um impecável senso de ritmo. Esta noite, o prazer teria
que esperar.
Lembrando-se de sua promessa, Domenic procurou a filha de Francisco. Ele não podia
pedir uma dança a uma mulher a quem ele não tivesse sido devidamente apresentado, mas
ele não tinha nenhuma dúvida de que dentro de um curto espaço de tempo, os pais
presentes e irmãos de todas as jovens ladies elegíveis tratariam de remediar isso.
Sibelle aceitou o convite com um sorriso tímido. Não havia muita oportunidade para
falar, com os casais circulando um em torno do outro e trocando de lugar com seus vizinhos
através dos passos da dança. Quando ele a acompanhou de volta até seu pai, ele
encontrou-o tão agradável como a sua primeira impressão, bem educado, dócil, adorável.
Não havia, de fato, nenhuma boa razão para que ele não devesse concordar em se casar
com ela... Exceto sua promessa para Alanna e o fato de que ele não amava Sibelle. Ele não
tinha ideia se, com o tempo, ele poderia. Alanna o atraía como um ímã, o que tornou
impossível para ele imaginar-se com qualquer outra mulher na sua cama.
A noite continuou, uma dança após o outra, uma jovem adorável parceira após a
outra. Eram todas de boas famílias, com fortes ligações políticas, educadas, mas não
excessivamente intelectuais. Ele sentiu sua mãe olhando para ele de vez em quando e, no
fundo, Danilo se movendo sobre ao salão. Danilo não dançou, mas parecia estar envolvido
em muitas conversas, especialmente com as pessoas vindas das Torres.
Quando as pessoas mais velhas terminaram as danças, a música ficou mais animada.
Melodias simples e imponentes deram lugar a danças menos contidas, um secain, uma
valsa Terran, e outro tipo de dança, que pretendia ser de Vainwal, que envolveu uma
grande quantidade de bailarinos balançando em estreita proximidade com o parceiro, sem
qualquer contato físico. A parceira de Domenic, uma baixinha morena, apresentada como
O D o m d e A l t o n | 92

sobrinha de Dom Lorril Vallonde de Valeron, fingiu tropeçar, de modo que ele não teve
escolha a não ser pegá-la em seus braços. Por um instante, ela se agarrou, pressionando
seu corpo contra o dele. Ele sentiu a redondeza de seus seios, inalou seu perfume
almiscarado e o cheiro de vinho em seu hálito. Tremulando os cílios, ela murmurou que a
dança a tinha deixado tonta.
- Então é melhor você se sentar, damisela. - Controlando sua irritação, Domenic a
levou a um assento. - Eu não correria o risco de me ferir em uma queda.
Só vai piorar, ele pensou, já que fizera todas as cortesias adequadas e até que um
noivado fosse anunciado, fosse ou não com Sibelle, seria com alguma outra jovem beldade.
Os casamenteiros não desistiriam até que, esgotando as possiblidades, ele fosse fisgado.
Mesmo quando as catenas estivessem trancadas em seus pulsos para sempre, ele não
tinha certeza de que algumas dessas jovens senhoras e suas famílias não contnuariam
tentando. Não muito tempo atrás, muitas mulheres jovens considerava uma honra ter um
filho de um Lorde do Comyn, mesmo fora do casamento. Ele provavelmente poderia ser pai
de uma dúzia de crianças nedestras com barraganas ansiosas pela aprovação de todos.
Mas eu não tenho vontade de deitar com uma mulher que não amo.
- Por que está tão triste? Você não está apreciando a dança? – Alanna surgiu em um
redemoinho de cetim creme, ignorada por ele até agora. Ela claramente terminara uma
dança inteira, assim como várias antes. O exercício trouxe uma cor para suas faces. Mechas
de cabelo cobre úmido emolduravam seu rosto. - Ou você está poupando a si mesmo para
a famosa dança da espada? Você vai surpreender a todos com o seu desempenho?
O calor inundou o rosto de Domenic. - Talvez se eu estivesse a meio caminho de ficar
embriagado, como alguns outros, eu poderia sentir mais prazer nesta noite.
Alanna balançou a cabeça. - Faça como quiser, então, mas não espere que ninguém vá
se comportar como Cassilda ou algum cristoforo esta noite. Como está quente! Estou quase
sufocada! Vamos, vamos tomar um ar fresco antes de ficarmos ranzinzas com essa
discussão. - Antes que ele pudesse opor-se à indiscrição pública, ela deslizou seus dedos
através dos dele e levou-o para as portas abertas que davam para o pátio do castelo.
Na varanda, os casais passeavam de braços dados e ele não tinha dúvida de que, entre
as sombreadas colunas, outros casais estavam envolvidos em intímidades ainda maiores.
Sua mãe ficaria indignada com o seu filho sendo visto em tal ambiente com sua prima, e o
pensamento lhe trouxe uma emoção e apelos rebeldes.
O ar da noite estava fresco e doce. Ao inalar, Domenic sentiu rosas e alguma erva
picante dos jardins. Três das quatro luas estavam penduradas como joias na varredura de
veludo do céu. Segurando a mão dele, Alanna atraiu-o através do pátio. Assim que
chegaram do outro lado, ele percebeu onde iam. A torre onde haviam brincado
frequentemente quando crianças.
O D o m d e A l t o n | 93

Domenic esperava que, uma vez lá, Alanna fizesse uma cena sobre todas as senhoras
com quem ele dançou. Ela poderia chorar ou gritar com ele, mas seu temperamento não
era de guardar rancor. Seu momento de tempestade iria passar assim como a noite. Na
privacidade da torre, eles estariam sozinhos na noite do Festival de Verão... Seu coração
acelerou em seu peito e sentiu o calor através de sua virilha.
Domenic pegou uma lanterna na entrada, acendeu a chama, e segurou-a no alto.
Nenhum dos dois falou enquanto subiam a velha escadaria de pedra familiar. Respirando
com difculdade, Alanna levantou o trinco da porta, atravessou a sala e deixou as persianas
abertas. Abaixo, a cidade brilhava com a luz. Música e risos flutuavam no ar da noite.
Haviam festividades em todos os locais e folia nas principais ruas e praças.
Alanna segurou-se no parapeito da janela e inclinou-se para fora. Domenic estava
atrás dela, à espera de suas acusações. Em vez disso, ela parecia ter crescido, focada
internamente. Ela girou em direção a ele, com os olhos brilhando, como se iluminados por
dentro.
Incapaz de se conter por mais tempo, ele se inclinou para beijá-la. Seus lábios eram
suaves, seu hálito doce com os cheiros misturados de vinho e flores. Um perfume
inebriante surgiu de sua pele. Ele sentiu-se tonto, embriagado, voraz. Sob seus beijos, os
lábios dela se separaram, abrindo o calor liso de sua boca para ele.
Com uma intensidade surpreendente e fome, Alanna beijou de volta. Ela pegou a mão
dele e colocou-a sobre o peito. Murmurios pequenos de prazer e desejo mistos, subiram
em sua garganta. Ela sentiu-se tremer quando ele fez o mesmo.
O beijo continuava numa eternidade de emoções. O coração de Domenic martelava
em seus ouvidos. A respiração queimava em seus pulmões.
Ele se atrapalhou com os laços complicados de seu vestido, então ela recuou apenas o
suficiente para desatar os laços ao longo do decote. Uma leve torção e seu peito nu encheu
sua mão.
Ele podia sentir seu coração batendo como louco, ou talvez fosse o seu próprio. Os
pensamentos sumiram o afogando em sensações. Seu toque enviou uma onda de fogo
elétrico através do centro de seu corpo. Vagamente, ele percebeu que o que estavam
fazendo poderia ter apenas uma conclusão.
Por que não? Era o Festival de Verão, quando todas as regras eram esquecidas. Uma
dúzia de outros casais não estavam fazendo o mesmo em todo o jardim e nas sombras do
Salão?
Eles não estavam secretamente noivos? Será que ela não queria o mesmo que ele?
Gemendo, arranhando um ao outro, eles escorregaram para o chão. Suas mãos em
seus cabelos. O fecho fligranado saiu, liberando uma cascata de ondas sedosas.
O D o m d e A l t o n | 94

Ela mordeu seu pescoço, ele sentiu a linha dura de seus dentes, a umidade de sua
língua.
Oh deuses, ela sabia o que ela estava fazendo com ele, o que ele estava fazendo com
ela?
Ele estava deitado parcialmente em cima dela, uma de suas pernas entre as dela. Ela
empurrou seu quadril para trás e enfiou a mão entre eles, o acariciando. O toque excitava
além de qualquer coisa que ele tinha experimentado e era quase dolorosamente difícil
parar agora.
Domenic reuniu um punhado de suas saias. O cetim amassado estava quente, vivo.
Seus dedos deslizaram sobre suas coxas. Ofegante, ele se obrigou a abrandar, para
saborear as curvas suaves, apenas por um momento. Alanna gemeu novamente e moveu
seu corpo, abrindo as pernas para seu toque. Através da seda de sua roupa de baixo, sua
virilha estava quente e úmida. Ele libertou uma mão para desatar o laço de suas calças.
Com um grito repentino, rouco, Alanna jogou a cabeça para trás, suas costas
arquearam em espasmo, seus músculos endurecerem e ela ficou rígida.
Atordoado, Domenic retirou a mão. Choque invadiu seu corpo, como se ela o atingisse.
Por um momento muito terrível, ele temia que ela tivesse parado de respirar. Em seguida,
um estalar ósseo fez seu corpo tremer.
Domenic segurou a cabeça de Alanna e baixou-a suavemente para o chão, depois a
segurou quando seu corpo se contorceu e se debateu. O último resquício de sua excitação
desapareceu no terror.
Convulsão! Doença do limiar?
Alanna era muito velha para isso e tinha estudado em Arilinn onde a Guardiã tinha
reprimido o seu talento perigoso. E se os seus sentimentos sexuais estivessem ligados ao
seu dom?
O treinamento de Domenic na Torre Neskaya voltou para ele. Lembrou-se de um de
seus primeiros professores, um monitor idoso de Valeron, explicando que os mesmos
canais transmitiam tanto a energia sexual quanto a psíquica. Ambos despertam na
puberdade, às vezes resultando na revolta física e emocional chamada de doença do limiar.
Ele tinha tido um caso leve, mas poderia ser mortal.
Abaixando seus escudos de laran, Domenic estendeu a mão para ela. Ele sentiu apenas
um turbilhão de energia, irradiando-se a partir de um núcleo de luz girando loucamente.
Nesse caos em mutação, figuras eram formadas e dissipadas. Algumas delas pareciam
humanas, outras disformes como os homens das árvores ou altas como deuses. Suas
imagens se afastaram como fantasmas em uma tempestade.
Alanna! Alanna, responda!
O D o m d e A l t o n | 95

Ela devia estar em algum lugar dentro dessa loucura revolta. Não admirava que ela
pensasse que estava ficando louca.
Desesperadamente, Domenic forçou contra as barreiras mentais de Alanna.
Profundamente dentro do caos, ele sentiu uma presença familiar. Ele chamou de novo, em
silêncio, com toda a sua força mental. Houve uma resposta fraca?
Vozes rugiam através de sua mente, mas se se tratavam de alegria ou raiva, ele não
poderia dizer. Ele ouviu muitas águas e depois o crepitar de chamas, como se toda uma
gama de montanhas arborizadas estivessem em um inferno.
Ele não era bom. Ele não podia alcançá-la através do poder de seu laran
descontrolado. E não viu nenhuma forma de criar uma ligação entre suas mentes.
Preciso criar um contato...
Sangue Alton, bem como Hastur, corria nas veias de Domenic. Ele tinha laran e fora
treinado para usá-lo. Além disso, ele tinha o dom de Alton, embora nunca o tivesse usado
antes, nunca tinha tido motivo. O dom de Alton era forçar o contato. Sua mãe tinha a
capacidade, embora ela raramente usasse. Assim como seu avô Lew...
Devo salvá-la, mesmo que eu não saiba como.
Domenic tinha ouvido falar de explosivos Terran, totalmente ilegais de acordo com o
Pacto, mas poderosos. A imagem sugeria uma maneira de começar. Ele abandonou seus
esforços para chamar Alanna. Em vez disso, concentrou toda a sua força através da parede
de luz crescente. Ele imaginou ondas de choque que estouravam através do tumulto,
fraturando a barreira entre eles.
Nada parecia acontecer. Ele não sentiu nenhuma mudança nos fluxos ao bater na luz.
Seu plano era mesmo possível?
Mais uma vez, ele empurrou para a frente. A luz se separarou por um momento.
Exultação encheu-o. Sim, estou conseguindo!
A mudança, brilhante e caótca da visão que era Alanna foi se fechando em torno de
Domenic. Uma sensação ordinária surgiu. O turbilhão de laran o esbofeteava. Ele sentiu-se
como uma energia pequena naquele meio.
Domenic perdeu o senso de direção, usou toda a sua concentração para lembrar quem
ele era e o que deveria fazer.
Ele estava preso.
Como podia ter sido tão imprudente, tão arrogante em pensar que poderia conseguir
sozinho, sem as garantias de um monitor e uma Guardiã? Agora, ele tinha jogado fora a sua
própria vida, bem como a dela. Agora a tempestade psíquica estava rasgando a sua
consciência e suas barreiras.
O D o m d e A l t o n | 96

Domenic se viu desabado sobre Alanna, frio e ainda no quarto da torre, seus olhos
vazios, seu corpo uma concha vazia. A imagem se afastou, carregando pedaços de sua força
de vida.
Em algum lugar de uma distância inimaginável, ouviu um tambor batendo o tempo
todo e depois vacilando. Era seu coração. O brilho da tempestade estava desbotando para o
cinza. Ele quase podia ver o céu incolor do Mundo Superior, vasto e abrangendo toda a
distância. O batimento cardíaco caiu em silêncio. Estranhamente, ele não sentiu medo.
Uma sensação se apoderou de Domenic, tanto psíquica como real. No momento
seguinte ele viu-se na superfície cinza. Algo era puxado para ele ao longe. As pessoas
esperavam por ele, chamando-o. Ele ainda não podia ver suas faces, só sabia que muito em
breve, ele pertenceria a elas. Nada no mundo, nem o amor, nem o dever, nem honra,
poderia segurá-lo por mais tempo.
O D o m d e A l t o n | 97

Capítulo 10

Marguerida sentiu o coração apertar de súbito. Ela perdeu uma batida da promenada
e tropeçou. Somente os anos de treinamento em dança darkovana a mantiveram em pé.
- Marguerida? Tem alguma coisa errada? - Seu cunhado, Rafael Lanart, com quem ela
estava dançando, perguntou.
- Eu... Ainda não tenho certeza. - Piscando forte, Marguerida vacilou em seus pés. Uma
dor lancinante atravessava sua testa, como se a dor de cabeça sentida nos últimos dez dias
de repente se fundissem em um ponta de lança alojada em seu crânio.
- Você não parece bem. - Rafael puxou-a para longe da linha dos dançarinos.
A música e o movimento faziam sua cabeça rodar... Uma lady em um vestido rosa-
coral... Yllana dançando com outras mulheres jovens... Rory rindo... Tartans em uma dúzia
de padrões coloridos...
Sua memória voou de volta para três anos atrás, quando ela tinha experimentado um
momento semelhante de desorientação. Na época, algo tinha acontecido algo com Regis
Hastur. Foi no momento em que ele sofreu o derrame fatal.
Oh, não! De novo não!
Seu primeiro pensamento foi, como sempre, para Mikhail. Ela virou-se, procurando
por ele do outro lado da massa efervescente de dançarinos. Rafael tentou contê-la. Ela
afastou-o e tropeçou no salão. Poucos passos a levaram para onde ela podia vislumbrar a
cabeça dourada de seu marido através de uma ruptura na formação da dança. Ele estava de
pé ao lado de seu paxman e um grupo de nobres menores das Colinas Venza.
Mikhail!
Preciosa, eu estou aqui. Ele respondeu. O que está errado?
Meu dom de Aldaran está agindo novamente. Eu não sinto tão fortemente desde que
Regis morreu.
Consegue dizer quem é o foco?
Marguerida balançou a cabeça. O movimento perturbou seu equilíbrio. Ela mal sentiu
as mãos de Rafael, orientando-a para uma cadeira almofadada ao longo de uma parede. A
música, uma música tradicional que ela sabia de cor, se dissolvendo em notas discordantes.
O mundo se quebrou em cacos de cor e som. Rafael, inclinado sobre ela, seu rosto
pálido de preocupação. Pai! Ela pensou, mas o que viu foi um rosto jovem, sem cicatrizes.
Gareth dançando com Sibelle. Donal Alar com uma menina que ela não conhecia, de cabelo
escuro e olhos dourados estranhamente familiares...
Regis! Mas Regis morreu há três anos! E a menina...
Marguerida percebeu que estava vislumbrando sua própria mãe como uma mulher
jovem. De alguma forma, ela tinha ficado presa no tempo...
O D o m d e A l t o n | 98

Isso não está acontecendo comigo! É com alguém... Mas quem?


Por pura força de vontade, Marguerida deixou sua mente livre. Ela não tinha
sobrevivido a uma infância terrível em um orfanato em Thendara e sido ofuscada pela
antiga Guardiã Ashara, só para alguém lhe mandar um pesadelo agora!
Mas quem...?
- Onde está Domenic? - Ela não tinha certeza se sussurrou as palavras ou as gritou.
Imediatamente, ela sentiu a resposta de Mikhail. Eu não o vejo.
- Rafael, me ajude. Eu preciso encontrar meu filho.
- A última vez que o vi, ele estava dançando com a filha de Dom Francisco.
Francisco, aquela cobra! A fúria sacudiu-a. Se ele fez alguma coisa para prejudicar
Nico...
Mikhail fez o caminho mental através do salão para ela. Querida, Francisco e sua filha
ainda estão aqui. Domenic não está com eles.
Danilo emergiu da multidão, o passo tão firme como o de um espadachim. A
preocupação sombreava os seus olhos. - Domna Marguerida, você está bem?
Eles reuniram-se em torno de Marguerida. A última coisa que ela precisava agora era
que todos no salão testemunhassem o seu sofrimento, principalmente quando ela ainda
não sabia o que era.
Mas quem... É claro!
Ela alcançou Mikhail. - Mik! - Ela chorou. - É Alanna! Sempre soube que ela iria trazer
desastre para alguém próximo a mim!
- Para Domenic? - Mikhail perguntou. - Ou para si mesma?
- Eu não sei! - Marguerida lutou para controlar seu pânico crescente e pensar
racionalmente. - Talvez o mesmo perigo ameaçe os dois.
- Vou encontrá-los. - Rafael caminhou em direção às portas abertas, seguido por
Donal.
A visão Marguerida empalideceu novamente. - Rafael não vai encontrá-los... - Sua voz
soava como se viesse de muito longe, através de um túnel oco. - Eles não estão na varanda,
nem no jardim...
Nico! Ela chamou com sua mente.
Para sua surpresa, ela sentiu uma impressão persistente de onde Domenic tinha ido.
Sua mente, a essência do que era seu filho, já havia deixado o plano físico.
A dor de cabeça se dissolveu em uma onda de medo avassalador. Domenic era o
tesouro que ela e Mikhail tinham trazido de sua estranha jornada através do tempo. Ele era
o herdeiro de seus espíritos unidos, assim como de sua carne. Rory e Yllana eram crianças
doces e ela os adorava, mas ela só tinha um primogênito.
O D o m d e A l t o n | 99

Com todo o amor em sua mente desesperada e todo o poder de seu laran, Marguerida
gritou: Volte! Volte para mim!
Para sua surpresa, ela sentiu suas palavras fazerem contato. Era como se tivesse
jogado uma tábua de salvação para um homem submerso sob um mar tempestuoso e
sentiu o puxão leve como seus dedos se fecharam ao redor de uma corda.
Nico! Onde você está?
...Não tenho certeza... Veio a resposta silenciosa. O contato produziu uma
reverberação estranha, como se ele passasse por uma barreira dimensional.
Sem se importar com o perigo para si mesma. Marguerida derramou mais energia para
a ligação entre eles. Ela podia ter apenas uma chance de salvar seu filho antes que ele
escapasse para além de qualquer esperança de resgate. As cores cintilaram em sua mente e
desapareceram dando lugar ao cinza do Mundo Superior. Sim, isso explicaria a
reverberação sutil.
Mãe dos Oceanos! Como ele chegou lá?
Ela não teve tempo para especular sobre a resposta. A partir de sua própria
experiência, bem como de seu breve treinamento formal em uma Torre, ela compreendia
os perigos que o atemporal e imaterial mundo detinha e que eles estavam despreparados.
Não importava como ou por que Domenic havia se transportado para o Mundo
Superior. Ela devia fazê-lo voltar para o plano físico o mais rapidamente possível.
Segure-se em mim. Ela chamou. Estou indo busca-lo.
Por um momento que poderia ter sido longo ou curto, ela não sabia dizer, Domenic
não respondeu. Quando o fez, sua voz mental era mais forte.
Não. Tenho que encontra-la... Seu traço mental desapareceu, mas só porque ele voltou
sua atenção para outro lugar. Estou bem mãe. Você me mostrou o caminho de volta. Sei o
que fazer a partir daqui.
Antes que Marguerida pudesse insistir que o retorno de Domenic era urgente, sua
mente tocou a dela novamente. Desta vez não houve dissonância resultante da diferença
entre a realidade normal e o Mundo Superior. Ela sentiu sua presença, clara e real.
Eu estou bem. Estou de volta.
Entre um batimento cardíaco e o próximo, o mundo se firmou. A pressão nas
têmporas de Marguerida desapareceu. Sua visão estalou em claridade. Mikhail se inclinou
sobre ela, o atrito de suas mãos contra as dela. Algumas pessoas se reuniram sobre eles
com expressões ansiosas, entre elas Lew. Danilo dispersou-os com habilidade tranquila,
sem dúvida aprendidas nos anos em que protegeu Regis. Francisco assistu a uma distância
com uma expressão pensativa em seus olhos.
Rafael voltou, sacudindo a cabeça. - Eu não consegui encontrar qualquer um deles lá
fora.
O D o m d e A l t o n | 100

- Nico fez tudo direito. - Seus joelhos ameaçaram vergar sob o peso dela. Sentia-se
fraca como se tvesse acordado de uma febre de dez dias. Seus olhos não se concentravam
corretamente. Ela reconheceu os sintomas de exaustão por uso do laran.
Mikhail pegou seu cotovelo. - Querida, o que houve?
Oh, Mik! Ele estava perdido no Mundo Superior!
Mas você o encontrou, amor.
Sim, isso é verdade. Ele está fora de perigo agora.
- Deixe-me pegar um pouco de vinho. – Rafael disse.
- Não! Nada de vinho. - A última coisa que ela precisava era de álcool. Ela estava tonta
o sufciente.
- Pegue água. - Lew disse com firmeza. – E algo para comer. Você está perigosamente
esgotada e precisa descansar.
Era inútil protestar quando seu pai usava esse tom de voz. Fracamente, Marguerida
assentiu. Obrigou-se a saborear a taça e mordiscar as nozes açucaradas que Danilo lhe
entregou. Com o tempo, ela conseguiu tranquilizar Mikhail de que não iria desmaiar.
Depois de ter certeza que Domenic estava ileso, ela iria voltar para seus aposentos e se
deitar.
Ela ouviu gritos entrando pelas portas abertas, vindo da direção das ruas. Donal veio
em direção a eles, movendo-se com eficiência e rapidez. Ele já tinha servido como paxman
de Mikhail. Sua expressão não tinha nenhum traço da alegria do Festival.
- Dom Mikhail, há problemas nos portões do castelo. O senhor precisa vir comigo!

~o ⭐ o~
A visão lentamente voltou para Domenic. Ele virou para se deitar de lado, apertando
Alanna inconsciente contra ele. A ligação mental de sua mãe permanecia ainda brilhando
no fundo de sua mente. Ele duvidou que poderia ter encontrado seu caminho de volta sem
ela.
Cuidadosamente, desembaraçou-se de Alanna sem acordá-la e foi até a janela do
quarto da torre. A fraqueza percorreu seu corpo como se ele tvesse corrido todo o caminho
de Edelweiss até Thendara. Ela iria passar em um momento, era o que ele esperava.
Respirando fundo para vencer a náusea, ele inclinou-se no parapeito da janela. As imagens
sobrepostas da visão de Alanna e do Mundo Superior desapareceram para revelar a cidade
abaixo.
Uma multdão se reuniu em uma das ruas mais amplas que levavam ao Castelo Comyn.
E não era para festividades inocentes, disso ele tinha certeza. Ele estava muito esgotado
para detectar suas emoções com seu laran, mas algo em sua formação massiva deixou-o
O D o m d e A l t o n | 101

em alerta. Tochas acesas fervilhavam em direção as portas do castelo. Ele ouviu vozes,
embora não pudesse entender quaisquer palavras.
Alanna agitou-se e chorou, um soluço abafado. - Nico, eu me sinto tão estranha. O
Que aconteceu comigo? Estou doente?
Domenic ajoelhou-se ao seu lado, com medo de tocá-la e acabar desencadeando outro
ataque. - Está tudo bem. - Ele murmurou. - Seja o que for, não pode atingi-la agora.
Alanna levantou cambaleando. Ela olhou para seu vestido, as saias em desordem, um
seio exposto. - Oh! Oh, querido! Oh, vire-se até que eu esteja decente!
Domenic voltou-se para a janela para dar-lhe um pouco de privacidade. Ele ouviu o
farfalhar suave de cetim e, quando ele olhou para trás, ela já estava coberta, reorganizando
seu vestido amarrotado, e foi reatar os laços sobre o decote do vestido.
O barulho da multidão lá fora tinha aumentado sinalizando que ela devia estar se
aproximando. Ele deveria dar o alarme e chamar os guardas? Será que ele deveria deixar
Alanna neste estado? Ele poderia chegar até alguém com seu laran? Ele não tinha certeza
se poderia chamar alguém que estivesse tão longe e podia ser perigoso tentar logo após
sua viagem astral e o excesso de trabalho.
- Domenic, o que é? O que está acontecendo?
- Tenho que ir para baixo. – Domenic disse.
- Não! - Rápida como um leopardo-das-neves, ela agarrou seu braço, seu aperto como
aço. - Não me deixe!
Ele não queria machucá-la puxando seu braço para longe e, ainda assim ele não
poderia permanecer ali. - Alanna, meu lugar é lá embaixo. Você consegue andar? Não
quero deixá-la sozinha, mas não tenho escolha.
Os olhos de Alanna estavam apagados. - Não sei o que eu estava pensando.
Naturalmente, é o nosso dever. Devemos mesmo ir. Só um momento. - Ela terminou de se
arrumar, pegou o fecho caído e arrumou seu cabelo de volta no lugar com alguns
movimentos hábeis. Por alguma magia feminina, seus cachos pareciam encantadores, e não
desordenados. Ele não tinha ideia de como ela tinha feito isso.
Ele pegou a lanterna e, juntos, se apressaram para descer. Os portões do Castelo
estavam abertos, como era tradicional durante a Noite do Festival. Tochas estavam
colocadas em ambos os lados do portão, assim como uma dúzia ou mais nas mãos da turba,
emitindo luz através da soleira. Guardas tomaram posição entre a multidão e o Castelo.
Domenic empurrou-se para a frente, tentando entender o que estava acontecendo.
Quem eram essas pessoas? O que elas queriam?
- Por minha autoridade como Capitão da Guarda da Cidade, - Cisco gritou - Eu ordeno
que dispersem! Vão para casa, todos vocês, antes que alguém se machuque!
- Não até que tenhamos sido ouvidos!
O D o m d e A l t o n | 102

Aos ouvidos de Domenic, o homem parecia mais do que um pouco bêbado. Seus
companheiros murmuraram em acordo, embora nenhum deles avansasse. Por um
momento, houve um impasse desconfortável.
- Onde está o Regente? – Um homem gritou na parte de trás da multidão.
- Sim, ele deve vir até nós! - A multidão rugiu como uma tempestade a ponto de
desabar.
- “Pelos infernos congelados de Zandru! - Um dos guardas gritou, percebendo Alanna.
- Vai damisela, este não é lugar para uma Lady. Deve voltar para dentro, onde estará
segura!
Alanna agarrou o braço de Domenic e o olhou com um misto tão grande de horror e
desespero que ele se perguntou se ela tinha visto esta noite em uma de suas visões.
- Fique perto de mim. - Ele disse a ela, então se voltou para o guarda. - Eu vou cuidar
dela.
- Se vocês têm uma queixa - Cisco gritou para a multidão - tragam-na para as Cortes de
forma adequada! Esta é a Noite do Festival.
Domenic tinha ouvido falar que bastava uma faísca para que as árvores de resina e
campos, pesados com a seiva infamáveis, explodissem em chamas. Então, agora, a multidão
hesitante estava prestes a pegar fogo. Para Domenic metade deles parecia muito bêbada
com o vinho do Festival para saber o que estavam fazendo, mas outros estavam
genuinamente irritados.
- Nós vamos fazer o que viemos fazer! Não recebemos nenhuma ordem de... - O resto
das palavras do homem foram perdidas em um rumor crescente.
Os guardas levantaram suas espadas em posição de defesa. O aço refletia a luz das
tochas.
Eu sou o Herdeiro de Hastur, Domenic pensou. Tenho que fazer alguma coisa.
Ele não podia pensar em que ação tomar, a não ser saltar entre a multidão e os
defensores do castelo, e que bem poderia vir disso? A espada cerimonial em seu cinto seria
de pouca utilidade em uma luta real. No entanto, ele não poderia deixar o confronto
aumentar e virar um derramamento de sangue.
No momento em que pegou sua espada inútil, Domenic tirou a mão. O que ele estava
pensando? Esses homens não eram seus inimigos, eram seu próprio povo. Por tudo que
sabia, Zerede e Ennis estavam entre eles, os homens com quem ele tinha uma obrigação de
honra. Embora sua energia de laran estivesse esgotada por sua jornada pelo Mundo
Superior, ele sentiu as emoções que surgiam. Sua primeira impressão tinha sido correta:
descontentamento e confusão, tangidas pelo medo, ofuscadas pela bebida e chicoteando
em frenesi, alguns gritando palavras de ordem.
O D o m d e A l t o n | 103

- Morte ao Comyn! - Uma voz perto da borda da multidão trovejou. - Abaixo o Regente
tirano!
- Espere aqui. - Domenic empurrou Alanna para as mãos do guarda mais próximo e
avançou.
- O que está acontecendo? - Domenic gesticulou para o homem mais próximo,
pensando que se ele pudesse argumentar com um deles, poderia acalmar o clima volátil. -
Você, por que está aqui, em vez de em casa, comemorando? Você não tem esposa ou
namorada, nenhuma irmã ou mãe, para honrar com frutas e flores? Nenhum parente para
compartlhar música e dança?
O homem com quem Domenic tinha falado abaixou a cabeça. Domenic deu mais um
passo para frente. Ele baixou a voz, dirigindo-se apenas ao homem com um tom calmante
como se fosse acalmar um cavalo rebelde.
- Meu amigo, - Domenic continuou - independentemente das suas tristezas, isso não
pode ser resolvido aqui, na rua, e na Noite do Festival. Este deve ser um momento de
comunhão e alegria, não de brigar nas ruas. Volte para sua família, vá oferecer sua devoção
a sua mulher como Hastur fez com Cassilda.
- Quem é esse cachorro? Esse cãozinho eloquente? – Um homem alto e esguio com
aparência de um soldado, gritou. A luz das tochas brilhavam em seu cabelo pálido. Domenic
não o tinha visto claramente antes, mas a sua era uma das vozes mais altas ao desejar a
morte do Comyn.
Domenic enfrentou o louro diretamente. - Eu sou...
- Nós não vamos ser postos para fora! - O homem loiro interrompeu. - Queremos que
o Regente venha agora mesmo!
- Sim, tragam-no para fora! - Outro homem gritou.
- Peguem o menino! - Alguém gritou. - Façam o tirano nos ouvir!
- Não há necessidade de força! - Domenic gritou sem se importar com o perigo. -
Ouçam-me. Nós não somos seus inimigos!
Algo cinza do tamanho de um punho passou ao lado do seu rosto e as coisas foram
acontecendo tão rápido que Domenic não tinha certeza se conseguiria narrar. Atrás dele,
um dos guardas soltou um grito abafado e caiu de joelhos.
O cheiro do medo estava espalhado pelo ar, misturado com o cheiro forte de sangue
fresco, metal e adrenalina. Dois dos companheiros da Guarda, as espadas já sacadas,
avançaram. Cisco Ridenow gritou para que parassem.
- Basta!
Uma única palavra, dita com confiança inabalável, brilhando com o poder, cortou a
escalada de tensão. Como uma, a multidão hesitou.
O D o m d e A l t o n | 104

Domenic virou-se junto com os outros. Seu pai estava ali, em silhueta contra o brilho
do Castelo. Atrás dele vinha uma meia dúzia de Lordes Comyn em suas roupas formais
brilhantes. Domenic reconheceu Danilo Syrtis, seu tio Rafael e Francisco Ridenow. Sua mãe
veio para a frente, apoiando-se no braço de Lew. Rory correu para ficar ao lado de seu
companheiro da Guarda.
- Abaixo o Regente! - O homem loiro gritou. Em um lampejo de luz de tochas, Domenic
viu seu braço levantar para jogar alguma coisa.
A segunda pedra atingiu a cabeça de Mikhail e ele cambaleou sob o impacto.
Marguerida e Lew pegaram em seus braços e o abaixaram até o chão. Domenic correu de
volta até os portões, pensando apenas em ficar ao lado de seu pai.
Marguerida endireitou-se ao lado do marido caído. Ela estendeu a mão esquerda e o
sangue manchou o fino tecido bordado da luva.
Domenic sentiu a raiva feroz de sua mãe através das ondas de exaustão, pois tinha lhe
custado muito esforço para alcançá-lo. Seu rosto era duro e definido, seus olhos dourados
em chamas, o peito arfando. Não havia lugar em Darkover ou além que ela não pudesse
alcançar, nada que ela não tentasse fazer, para salvar os que ela amava. Por Mikhail e por
aqueles que amava, ela poderia explodir o seu caminho através dos Sete Infernos
Congelados de Zandru.
Tremendo visivelmente, Marguerida se atrapalhou com a luva manchada de sangue.
Debaixo dela estava a matriz de sombra, um dispositivo imensamente poderoso que ela
usou, junto com o anel de Mikhail, para derrotar os Terran na emboscada na Velha Estrada
do Norte.
MARJA, NÃO!
Domenic não podia ter certeza se ouviu o grito angustiado de seu avô ou se apenas
sentiu dentro de sua mente. Fracamente, como se vindo de uma longa distância, ouviu os
soluços inconsoláveis de uma mulher, uma voz rouca de tanto gritar. Do fundo de sua
mente, o fogo se alastrou pelas alturas. A forma de uma mulher de fogo estendeu os braços
na direção da multidão...
No momento seguinte, Lew agarrou a mão livre de Marguerida, imobilizando-a.
Não, Lew pediu em silêncio outra vez. Não contra nosso próprio povo.
Mikhail levantou e ficou nos degraus. O sangue, liso e escuro à luz das tochas, estava
encharcando o lado de sua testa, mas seu olhar permaneceu estável, seu porte orgulhoso.
Os defensores do castelo ficaram como se congelados, todos, exceto o guarda ferido,
que estava segurando o ombro.
Domenic preparou-se para outro discurso do homem de cabelos claros ou um dos
outros que tinham sido tão beligerantes, mas o ataque não veio. A multidão murmurou
entre si, soando mais envergonhada e confusa do que com raiva. Ele sentiu que não tinha
O D o m d e A l t o n | 105

mais signifcado o confronto se transformar em violência porque o sangue deveria ser


derramado.
- Meu povo! - A voz de Mikhail soou. - Não vamos brigar um com o outro nesta época
festiva. Independentemente de suas preocupações, com certeza elas merecem a nossa
consideração mais séria e cuidadosa. - Com o menor movimento de uma mão, ele indicou,
não assim, de cabeça quente e com vinho demais para o pensamento claro. A animosidade
diminuiu na multidão com cada frase.
Um dos homens, aquele que primeiro pediu para ser ouvido, se manteve firme. -
Como sabemos que o Conselho vai ouvir-nos e não nos ignorar, como já fizeram antes?
Domenic o reconheceu como um homem das montanhas, de roupas puídas e botas
gastas, peles desgastadas e cabelo longo trançado com tiras de couro tingido e penas de
águia. A pele do homem era curtda e áspera pela idade.
- Qual é seu nome? - Mikhail acenou para o homem a se aproximar. A multidão ficou
em silêncio, como se estivesse segurando a respiração. Devagar, o homem arrastou-se para
frente.
- Maury, vai dom. Esse é meu primo, Raymon, e o parente de sua esposa, Arnat. Nós
viemos do Kadarin do outro lado das Colinas Venza. Estamos desesperados, vai dom.
Nossas crianças estão morrendo. Mas o juiz da Cortes disse que o assunto não era para ele,
ele não tinha poder para nos ajudar, e ninguém mais quer nos ouvir.
- Agora, alguém vai ouvir. Apresentem-se no Castelo, no terceiro dia da sessão do
Conselho Comyn, e qualquer que seja o assunto vamos ouvi-lo. Eu os ouvirei. Prometo. Eu,
Mikhail Lanart-Hastur, Guardião de Hastur e Regente do Comyn, dou-lhe a minha palavra
solene. Será que isso o satisfaz?
- É o próprio Regente...
- É Lorde Hastur!
- Hastur... - Sussurravam no meio da multidão.
Domenic lembrou o temor quase supersticioso com o qual as pessoas comuns
consideravam Regis Hastur. Não a muito tempo ainda se acreditava que o Comyn descendia
dos deuses, e os descendentes de Hastur, o filho de Aldones, que era Senhor da Luz. O
folclore mais comum ainda considerava o laran como semelhante à feitçaria.
O homem acenou com a cabeça. - A palavra de um Hastur é tudo que meu povo
precisa."
A palavra de um Hastur ... era um juramento inquebrável.
O espanto passou pelo rosto de Maury. Ele inclinou a cabeça novamente e deu um
passo para trás. Ele falou algumas palavras à multidão e os outros homens começaram a
dispersar. Domenic olhou novamente para o homem de cabelos claros, o que tinha jogado
O D o m d e A l t o n | 106

as pedras e incitado a multidão à violência, mas ele havia desaparecido. Sem a sua
incitação, a luta tinha acabado.
Soluçando, Alanna correu para Marguerida. Cisco levou o homem ferido para o lado e
mandou-o para a enfermaria da Guarda.
- O resto de vocês, para dentro. – Mikhail disse. - Festival de Verão ou não, tranquem
os portões. Vamos, Capitão.
Cisco emitu uma série de ordens, rescindindo a licença concedida a vários oficiais para
o baile do Festival. Rory e seu amigo voltaram para o quartel para se uniformizarem
corretamente. O restante da Guarda entendia sua posição, mas ele iria ficar em estado de
alerta durante a noite, enquanto uma busca era feita pelo homem que atirou as pedras.

~o ⭐ o~
Lew olhou como se estivesse prestes a tombar, não por qualquer lesão fsica, mas pelo
choque psíquico.
Danilo passou uma mão sob o cotovelo do homem mais velho para firmá-lo. - Dom
Lewis, você precisa descansar.
- Mik, vá andando. - Marguerida disse enquanto tentava consolar Alanna. Sua voz soou
com fadiga. - É preciso deixar um curandeiro olhar sua cabeça.
- Haverá tempo para isso mais tarde. - Mikhail respondeu suavemente. - Não estou em
perigo no momento. Feridas no couro cabeludo sempre parecem piores do que realmente
são. Primeiro, eu preciso ver como está a Guarda do Castelo.
Eu posso fazer meu trabalho melhor, sem me preocupar com você, pois deverão haver
mais problemas. Domenic sentiu o pensamento tácito de seu pai. Marguerida claramente
entendendo, correu para Alanna no interior do Castelo. Os lordes do Comyn foram pegar
suas espadas e os seguiram para dentro.
Mikhail fez um gesto para Domenic se aproximar. - Você agiu bem lá fora, meu filho.
Domenic fez uma careta e abaixou a cabeça. - Não bem o suficiente.
- Não subestime a si mesmo. Você lidou com uma situação muito difícil e perigosa
como poucos homens poderiam lidar, mesmo aqueles treinados por muitos anos. Muitos
mais teriam sido feridos, talvez até mesmo mortos, se você não acalmasse a multidão como
fez. Você mostrou verdadeira liderança e estou orgulhoso de você.
Domenic não sabia o que dizer. Ele gostou do louvor de seu pai, mas não tinha certeza
se realmente merecia. Ele havia feito apenas o que precisava ser feito, e, no final, foi seu
pai que havia assumido a liderança.
Talvez, ele pensou, liderança seja a capacidade de inspirar cada pessoa fazer a sua
parte. A minha, a da Mãe, do Pai, do Capitão Cisco, e até mesmo o avô Lew... Nenhum de
nós poderia ter resolvido o confronto sem os outros.
O D o m d e A l t o n | 107

- Há outra coisa que você precisa saber. - Domenic disse e contou a seu pai sobre seu
encontro com os homens de Mariposa, como eles tinham vindo para Thendara de tão longe
para o Conselho e como ele tinha decidido seu caso.
Mikhail assentiu, pensativo. - Nós tivemos um coridom em Mariposa. Ele é um gestor
competente, mas é limitado em muitos aspectos. Você lidou bem com a situação de
Mariposa, filho. Acho que nem mesmo Regis teria feito melhor. Também concordo com
você, só não há mais coisas acontecendo esta noite porque estão todos bêbados demais
com o vinho do Festival. Enquanto isso, - Mikhail continuou - há muito a ser feito. Domenic,
quero que você olhe o interior do Castelo. Certifique-se de que todos estão em segurança
em seus quartos. Aqueles que vivem na cidade devem permanecer aqui esta noite. Sua mãe
vai fazer todos os arranjos. - O rosto de Mikhail suavizou. - Você sabe que ela vai se
preocupar até que eu esteja ao seu lado novamente. Certifique-se de que ela está cuidando
de si mesma. Você é provavelmente a única pessoa além de mim que ela vai ouvir.
- Vou fazer o meu melhor, pai.
- Isso é tudo que qualquer um de nós pode fazer.
No salão, muito pouco restava das festividades. A equipe do Castelo já estava
limpando as mesas de comida e ponches de vinho, e os músicos tinham arrumado seus
instrumentos. Domenic falou com eles, seguindo as instruções de seu pai. Todos olharam
menos ansiosos quando ele explicou o que estava sendo feito para garantir a sua
segurança. Yllana, que havia sido ordenada a permanecer no interior, recebeu a notícia da
lesão de Mikhail com calma e praticidade. Apenas a súbita palidez de seu rosto revelou sua
angústia. Ela deu um abraço rápido em Domenic e, em seguida, correu para ajudar
Marguerida.
Francisco ainda estava presente, de pé na porta em arco que conduzia para os
aposentos do castelo, conversando seriamente com Sibelle. Seu rosto estava vermelho e
inchado. Quando Domenic se aproximou, ela desabou, chorando: - Não gosto deste lugar,
papai, eu quero ir para casa! - Ela parecia tão assustada quanto uma criança e Domenic se
perguntou quantos anos ela realmente tinha.
Francisco disse algo a ela, com uma voz muito baixa para Domenic entender todas as
palavras, apenas frases isoladas. - Você vai se comportar com dignidade, entendeu... Não
como uma menina chorona ainda mamando! – Sibelle ficou branca e silenciosa. Francisco
continuou: - Você é uma comynara, de uma casa antiga e nobre... Tal exibição traz desonra
para todos nós!
Francisco viu Domenic e se virou para ele, rapidamente moldou suas característcas
para entregar uma reverência formal. Depois ele perguntou sobre Mikhail e o Guarda
ferido. Domenic respondeu que seu pai estava bem o suficiente para exercer suas funções
como Regente, protegendo o castelo e todos dentro de seus muros.
O D o m d e A l t o n | 108

- Estou chocado que tal barbaridade estrague a mais importante de todas as festas. –
Francisco disse. - É lamentável que a paz desta data não seja mantida na cidade.
- Sim, muito lamentável. - Domenic respondeu, irritado com a implicação de que a
incompetência de seu pai resultou em um colapso da paz civil. Se ele não tivesse visto
Francisco no baile antes, suspeitaria que ele criara a perturbação.
Sibelle, com a mão segurando o braço de seu pai, deu um pequeno gemido. Francisco
olhou do rosto branco para Domenic. Percebendo o brilho calculista nos olhos do homem
mais velho, Domenic amaldiçoou-se silenciosamente. O próximo movimento de Francisco
seria sem dúvida pedir para Domenic escoltar sua filha chorosa, sedutora e bonita para seu
quarto.
Essa loucura deve acabar agora!
Depois de seu ato de amor abortado com Alanna e sua consequência quase
desastrosa, a própria ideia de cortejar essa criança perturbada adoeceu Domenic.
Considerações políticas que se danassem, ele não podia, não iria jogar esse jogo.
Domenic lembrou o que Danilo tinha dito sobre Regis, que ele forjou seu próprio
caminho através das demandas e pressões intensas de sua família. Como ele encontrou
uma maneira de casar por amor, para manter aqueles que ele realmente valorizava perto
dele.
Se Regis poderia fazê-lo, Domenic pensou, então também poderia ele!
- Dom Francisco, - disse Domenic - sua filha está exausta. Deve levá-la para casa. Nesse
momento, aqui não é lugar para tão tenra flor.
Francisco respondeu com um sorriso condescendente. - Na parte da manhã, as ruas
estarão limpas e a ralé controlada. Pelo menos, presumo. Minha filha ficará feliz assim que
a ordem estiver devidamente restaurada. Não é, Belle?
- Sim, papai.
Os músculos da mandíbula de Domenic se apertaram. Sibelle olhou para ele com os
cílios tremendo, e ele recusou-se a sorrir em resposta.
- Você me entendeu mal. - Domenic enfrentou Francisco de frente. - Eu não quis dizer
a casa de Serrais. Eu me referi aos esquemas do Conselho e todos os seus membros. Uma
menina tão inocente não deve ser trocada num casamento como um pedaço carne...
Exatamente quantos anos você tem, chiya?
- Quatorze.
Um ano mais nova que Yllana! Domenic deixou suas palavras pairarem no ar por um
momento. Então, ele acenou para uma das servas do castelo, uma mulher com bochechas
redondas, já avó que estava ajudando a limpar os restos do buffet.
- A damisela está perturbada, como pode ver. Faria a gentileza de escoltá-la de volta
para seus aposentos na seção Ridenow?
O D o m d e A l t o n | 109

A mulher fez uma reverência e estendeu os braços para Sibelle. - Você pobre criança,
eu sei a coisa certa para acalmar seus nervos. Nós vamos colocá-la confortavelmente na
cama em alguns momentos.
Fungando, Sibelle olhou para seu pai. - Pode ir, criança. Vou estar com você em breve.
– Ele murmurou.
Sibelle inclinou-se sobre a mulher mais velha enquanto se apressavam para fora do
salão. A última coisa que Domenic ouviu delas foi a velha criada perguntando: - Você gosta
de leite quente com mel?
- Você está fazendo um barulho desnecessário. – Francisco disse, assim que Sibelle e a
serva passaram pela porta. - Ela é uma mulher em idade para se casar. Estou certo disso.
Sem a preocupação de Sibelle se sentir chocada, Domenic não sentiu necessidade de
medir as palavras. - E estou certo de que nem você, nem o Conselho, nem todos os
demônios das forjas de Zandru, vão induzir-me a casar por qualquer razão que não o meu
próprio desejo, certamente não com uma menina da mesma idade que a minha irmãzinha!
- A diferença de idade é de pouca importância. Algumas temporadas vão remediar
isso.
Domenic sentu o calor subindo em seu peito, incapaz de acreditar que Francisco ainda
estava perseguindo seu esquema de casamento. Domenic deixou a si mesmo mais alto e
deu um passo para o homem mais velho. Francisco se manteve firme, olhando triste agora,
e sutilmente perigoso, mas Domenic estava muito irado para se importar.
- Posso colocar minha posição de forma mais clara? - Domenic disse. - Eu não vou ser
seu fantoche e nem Sibelle deveria ser. Ela é sua própria filha! Você não se importa com a
felicidade dela?
- Eu tenho toda a consideração pelo bem-estar do Domínio Ridenow e de todos nós. -
Francisco respondeu com igual fervor. - Você ficou enclausurado em uma Torre por muito
tempo ou você mesmo veria a necessidade dessa união. Quanto a felicidade da minha filha,
ela sabe qual é o seu dever. Ela sabe o que a honra exige dela. E você?
Francisco fez uma pausa, deixando sua capacidade de torcer as palavras invadir de
forma alarmante a mente de Domenic e lhe causando um frio na espinha. - Ou você está
dizendo que não está apto para se casar? Você está mentalmente prejudicado, ou é
dissoluto e cruel, ou talvez você seja simplesmente incapaz de consumar um casamento?
O temperamento de Domenic normalmente calmo quase incendiou e ele respondeu
que não ere nenhuma dessas três coisas coisas. Rapidamente, ele percebeu que era
exatamente o que Francisco pretendia, incitá-lo a uma explosão, a deixar escapar coisas
que não poderiam ser ditas, talvez até prendê-lo na escolha entre um duelo de honra ou
um casamento.
O D o m d e A l t o n | 110

- Nós não estamos vivendo na Era do Caos, quando os casamentos eram arranjados
pelo Conselho. - Domenic manteve seu mesmo tom de voz, embora seus nervos
estremecessem com indignação. - Sibelle merece um marido que possa ama-la e ela deve
escolher um com seu próprio coração. Nunca deveria concordar com menos. Vou escolher
a minha própria noiva no devido tempo. Se você acha isso impróprio, é livre para fazer
acusações contra mim no Conselho! Explique-lhes o que você planejou para voltar ao
poder, sacrifcando uma menina que ainda mal tem feminilidade!
Ele respondeu com um silêncio atordoado. Antes que Francisco pudesse dizer mais
alguma coisa, Domenic se afastou. Quando saiu da sala, Domenic se perguntou se tinha
feito uma coisa muito tola, confrontando Francisco assim. O homem era capaz de qualquer
coisa! Seria apenas um dos vários riscos idiotas que Domenic aceitara naquela noite: se
entregar a Alanna, a sua jornada imprudente no Mundo Superior, se colocar ao alcance da
multidão nos portões, e, agora, provocar um homem conhecido por guardar
ressentimentos mortais. Sem dúvida, o Lorde Ridenow encontraria alguma maneira de usar
o incidente para sua própria vantagem.
Aldones, devo estar cansado, para ver tramas em todos os lugares!
Ou ele estava finalmente aprendendo a pensar como um Comyn?
O D o m d e A l t o n | 111

Capítulo 11

Domenic encontrou sua mãe e Alanna na sala ao lado de um fogo recém aceso. Yllana
já tinha comido e saído para supervisionar as tarefas que não podiam esperar. Vários pratos
cobertos com migalhas e pedaços que sobraram de uma refeição apressada estavam sobre
a mesa onde ele sentou. Um prato de nozes, frutas secas e biscoitos diversos estava quase
intocado.
Delicadamente, Marguerida lambeu o último rolinho de mel que estava entre seus
dedos. Os doces, tinham restaurado um pouco de sua vitalidade depois de seus esforços
com o laran. Ela já olhava de forma mais forte e mais alerta.
Os aromas deliciosos deixaram Domenic com água na boca. De repente ele começou a
comer vorazmente, tomou um gole de jaco e deixou o fluxo da doçura espalhar-se em sua
língua. Sua mente firmou com a comida que reabastecia seu corpo.
Alanna, no entanto, ainda estava quieta e pálida. Ela pegou a mão de Domenic,
infantil, quando ele se sentou ao seu lado no sofá.
- Não posso ficar por mais tempo. - Marguerida disse. - Nico, querido, veja se você
consegue obrigar Alanna a comer. - Ela saiu para encontrar quartos para os hóspedes de
sua cidade no castelo. Quando Mikhail finalmente retornasse, ele iria encontrar uma
refeição quente e um curandeiro esperando por ele.
- Alanna? - Domenic olhou para o seu rosto, com medo do que pudesse ver.
- Sim, Domenic? - Ela disse com placidez alarmante.
- Você está bem? Você pode tentar comer alguma coisa?
Um tremor passou por ela. - Estou um pouco mal do estômago.
- O curandeiro vai estar aqui em breve. - Mesmo quando falou, Domenic sabia que
nenhum curandeiro comum poderia ajudá-la. Isso era mais do que um choque físico ou
medo do confronto com a turba.
Em Neskaya, ele tinha aprendido o que devia ser feito. Descanso, alimentação, kirian e
o cuidado de um monitor treinado. Ele poderia fazer o monitoramento, uma vez que cada
novato na Torre recebia o treinamento básico. Mas seria seguro tocá-la, mesmo apenas
com a mente? Especialmente da mente dele para a dela? Não, seria melhor alguém sem
envolvimento emocional para fazer o trabalho.
- Sinto muito por minha participação em... no que aconteceu com você. - Ele
acrescentou, vendo o olhar de confusão. - Sua visão.
- Oh. - A consciência infiltrou de volta em seus olhos. - Sim, eu tive outra, não foi? Foi
bastante desagradável. Acho que você deve ter se assustado, mas eu não me sinto tão mal
assim agora. Eu me sinto...cansada.
O D o m d e A l t o n | 112

Ela levantou-se, segurando-se no encosto da cadeira. - Vou descansar melhor na


minha própria cama.
- Alanna, prometi a minha mãe que eu iria fazer você comer. Você sabe que precisa
para repor a energia drenada por seu laran.
- Mas eu não estou com fome. - Alanna choramingou.
- Isso é porque o seu apetite foi fechado e não é um bom sinal.
- Estou cansada. Quero deitar-me.
Domenic sentiu um lampejo de impaciência. Ela não tinha ouvido nada que ele disse?
Com toda a certeza, dados os acontecimentos da noite, nenhum deles estava totalmente
racional. Ele pegou uma fatia de bolo, partiu-a e estendeu uma metade para ela.
- Aqui, sinta o gosto. - Ele colocou a outra metade em sua própria boca. - É bom, assim
como as que roubávamos da cozinha.
Com um sinal de consentimento, Alanna aceitou o doce e mordiscou um pouquinho.
Um momento depois, ela estava mastigando avidamente, pegando um biscoito atrás do
outro. Um punhado de balas em seguida seguida e então ela fez uma pausa.
- Você estava certo. - Ela admitiu. - Eu estava com fome. Mas estou tão cansada que
sinto como se eu fosse desmaiar a qualquer momento... Por favor, Nico, deixe-me ir para o
meu quarto. Vou levar algumas maçãs secas e comê-las mais tarde, eu prometo.
Não tendo certeza se estava fazendo a coisa certa, Domenic deixou-a ir.
A apatia de Alanna o preocupava. Ela sempre tinha sido tão intensa, tão cheia de vida.
Agora parecia retraída, como se os acontecimentos da noite houvessem acontecido com
outra pessoa. Será que ela se lembrava do que estava fazendo antes que a visão agarrou-a?
Talvez, ela estivesse se bloqueando, mantendo longe uma parte de si mesma.
Alguns momentos depois, a curandeira do castelo, uma mulher de meia-idade
chamada Charissa, chegou. Tinha o cabelo ruivo já ficando grisalho que sugeria que ela
tinha um pouco de laran, o suficiente para aumentar sua sensibilidade para seus pacientes.
Ela carregava uma cesta de suprimentos: ataduras, compressas de gaze, garrafas de anti-
séptco, tinturas entorpecentes para a dor, bem como agulhas e materiais de sutura.
- Meu pai ainda não voltou. - Domenic disse. - Como pode ver, estou bem, mas Alanna
parece tonta e confusa. Ela foi descansar em seu quarto. Pode ver como ela está?
- Sim, mas claro, já que ela é a única pessoa aqui que precisa de meus cuidados. -
Charissa disse, claramente irritada por ter sido convocada no meio da noite, apenas para
descobrir que as pessoas que ela foi atender estavam em outro lugar. - Quando Dom
Mikhail retornar, peça-lhe para fazer a cortesia de ficar no mesmo lugar até que eu possa
examiná-lo.
O D o m d e A l t o n | 113

Charissa foi para dormitório de Alanna e voltou um tempo depois, franzindo a testa.
Quando Marguerida entrou, Charissa levou-a de lado e falou brevemente em voz baixa e
urgente. Marguerida enviou um servo em busca de Istvana Ridenow.
Domenic ficou aliviado. Istvana não era apenas uma querida amiga de sua mãe, mas a
Guardiã da Torre Neskaya. Ela saberia o que fazer com Alanna.
Istvana chegou ao mesmo tempo que os tabuleiros de comida e bebida quente.
Pequena e de cabelos prateados, Istvana era uma autoridade viva. Ela ficou apenas um
momento antes de ir ver Alanna.
Um momento depois, Mikhail entrou. Charissa o fez sentar-se enquanto ela lavou e
enfaixou sua cabeça.
- Feridas no couro cabeludo muitas vezes sangram livremente, e esta provavelmente
irá deixar uma cicatriz. Eu gostaria que me permitsse fazer uma sutura. - Charissa franziu a
testa. - Não posso dizer se houve algum dano mais profundo.
- Istvana deve monitorá-lo o mais rápido possível para ter certeza. - Marguerida disse.
- Amor, não foi o muro que caiu sobre mim. - Mikhail disse.
- Muro? Mik! Você poderia ter uma fratura de crânio, uma hemorragia cerebral, uma
concussão...!
Mikhail levantou as mãos. - Se isso vai tranquilizá-la, então vamos deixar Istvana
monitorar minha cabeça. Obrigado por seu cuidado, Mestra Charissa.
Com um sorriso simpátco, Charissa disse: - Vou pedir a vai leronis para examina-lo.
- Assim que possível, - Marguerida disse, acrescentando: - e você sempre tão amável,
mestra.
Mais tarde, Domenic estava em seu próprio quarto, à espera do sono. Estava tentando
relembrar de tudo lentamente. Seus pensamentos saltando de uma coisa para outra,
repassando os acontecimentos da noite. Quem era o homem de cabelos claros que tinha
incitado a multidão à violência? E se a pedra que atingiu seu pai fosse um pouco maior ou
menor? E se Charissa estivesse errada e Mikhail houvesse sofrido uma lesão grave?
Eventualmente, ele se convenceu de que seu pai estava bem. E, pelo menos,
Marguerida não tinha perguntado o que Domenic estava fazendo no Mundo Superior.
Quanto a Alanna... Pessoas sobreviviam a doença do limiar, não é? Alanna não poderia
estar sobre melhores cuidados do que de Istvana. Domenic tinha certeza de que nada
aconteceria para desencadear outra crise.
Agora que as emoções se acalmaram, ele considerou as implicações das atitudes de
Alanna. Ela poderia se recuperar com o tempo, mas o que impediria um outro ataque,
possivelmente fatal, da próxima vez que eles tentassem fazer amor? Uma vez que
estivessem casados, como isso poderia ser evitado? Eles seriam capazes de ter filhos? Ele
O D o m d e A l t o n | 114

poderia ficar ao seu lado, noite após noite, tão casto como um monge cristoforo? A visão e
o cheiro dela tinha sido o suficiente para deixa-lo meio louco.
Que tipo de casamento eles teriam se ele não se atrevesse a tocá-la de novo? No
entanto, que escolha ele tinha? Ele havia feito uma promessa e não podia abandona-la
agora.
Marguerida, satisfeita que as tarefas mais urgentes haviam sido atendidas, permitiu-se
um momento de silêncio em seu escritório. Com um suspiro de alívio, ela sentou-se em sua
cadeira favorita.
Uma fragrância leve e reconfortante de bálsamo ainda pairava no ar. As lareiras não
tinham sido acesas, mas o ar estava quente o suficiente. Ela precisava de luz, mais do que o
brilho suave do candelabro que tinha trazido com ela, mas, em qualquer caso, ela poderia
ter encontrado seu caminho em torno do mobiliário no escuro de tão familiar que era o
cômodo.
Ela estava administrando o Castelo Comyn há um bom número de anos, gradualmente
assumindo os deveres mais onerosos de Lady Linnea enquanto Regis ainda estava vivo. Os
servos e administradores sabiam o que fazer, mesmo cansados dos preparativos para o
baile do Festival, tinham ventilado câmaras para aqueles que viviam na cidade, preparado
refeições quentes para os convidados e alojado seus cavalos, e cem outras coisas que
Marguerida não precisava especificar. Todos que tinham sido ferido estavam sendo
tratados, todos os outros tinham sido informados e tranquilizados, ninguém estava com
fome ou sem uma cama para dormir e o Castelo estava seguro para a noite.
Fechando os olhos, esfregou as têmporas e tentou decidir se essa dor de cabeça em
particular era simples estresse, o resultado de exaustão do laran, ou ainda outra forma de
seu dom Aldaran. Os acontecimentos da noite certamente foram qualificados como uma
crise, mas ela tinha certeza de que o pior ainda não havia acontecido.
O constante estado de apreensão estava deixando-a para baixo, tornando mais difícil
pensar sobre as coisas. Ela precisava de uma boa noite de sono. Mais precisamente, ela
precisava de uma boa noite de sono nos braços de seu marido. Só de pensar nele, seu
hálito quente em seu cabelo, seu amor sustentando-a, sentiu uma onda de relaxamento
passar através de seu corpo. Ela pensou em ir até ele com seus pensamentos, falar com ele
de mente para mente, como fez tantas vezes, mas ele estava ferido, cansado e ainda tinha
trabalho a fazer esta noite. Eles estariam juntos em breve.
Enquanto isso... Havia muitos acontecimentos desta noite que ela não entendia. Ela
tinha sido pega de surpresa pela multidão. Ela estava familiarizada com várias queixas de
agricultores e pastores, havia sempre alguma difculdade: episódios de seca ou chuva, o
perigo sempre presente de incêndios, doenças do gado ou condições comerciais. O que
poderia ter levado o povo a agir assim? Com tanta violência?
O D o m d e A l t o n | 115

Em sua mente, Marguerida reviveu aquele momento de parar o coração, quando a


rocha navegou através do ar, o som nauseante que golpeou Mikhail, a maneira como seu
corpo inteiro tremeu com o impacto, como se ela mesma tivesse sido atngida. E quando ela
olhou para sua mão e viu o seu sangue...
Ele poderia ter morrido!
Com um soluço, Marguerida escondeu o rosto entre as mãos. Ela não tinha percebido
a força estava fazendo para manter suas emoções sob controle.
Tenho que começar a pensar em mim mesma. Há muito ainda a ser feito. Meus filhos
precisam de mim... Mik precisa de mim. Eu não posso quebrar assim!
Se Mikhail não tivesse sido atingido, ela pensou, nem o guarda tivesse sido ferido, ela
e seu marido iriam enfrentar o dia seguinte juntos, e o seguinte, como sempre tinham feito.
Eles tinham sobrevivido a Batalha na Antiga Estrada do Norte, a tentativa de assassinato de
Francisco, a ameaça de Ashara, a morte de Regis, para não mencionar as manipulações de
Javanne.
Assim, quando Marguerida estava começando a sentir-se melhor, ela ouviu uma
batida na porta.
- Pai! - Ela correu para a porta, abriu-a e o deixou entrar. Quando ele tomou o assento
oferecido, ela percebeu como ele parecia cansado e sombrio.
- Tem algo mais acontecendo? Você não deveria estar em sua própria cama,
descansando? - Ela perguntou ansiosamente.
- Sim, eu deveria. Mas há uma questão da mais importância que temos de discutir
primeiro.
Naquele momento ele parecia tanto com o pai distante e crítico de sua infância que
Marguerida segurou sua língua com esforço.
De repente, o momento após a rocha ter atingido Mikhail passou diante de seus olhos.
Marja, não! A voz mental Lew reverberou novamente através de sua mente. Ela tinha
parado de usar sua inteligência com o desespero no momento, mas suas palavras a haviam
deixado imóvel no momento crucial. Não contra nosso próprio povo!
Lembrando, seu olhar voou para a luva na mão esquerda. Ela não tinha tido um
momento livre para mudar de roupa e as manchas de sangue na palma da mão e dedos
estavam secos. Quando Lew gritou, lá nos degraus do castelo, ela estava lutando para
remover a luva, para desnudar a matriz de sombra incorporada em sua pele, para usá-la...
...Como ela tinha usado na Batalha na Antiga Estrada do Norte?...
Marguerida engoliu em seco. Essa foi realmente a sua intenção? Explodir os homens
de seu próprio povo, como ela teve de fazer com os soldados de Belfontaine? Era
impossível, pois para causar a bola de fogo que pôs fim à batalha tinha sido necessário o
poder combinado da sua matriz e do anel de Mikhail.
O D o m d e A l t o n | 116

Mas a visão do sangue de Mikhail expulsou todo pensamento racional. Ela agiu por
puro instinto. Se Lew não tivesse impedido...
- Eu não sei o que deu em mim. - Ela gaguejou. - Não sou uma pessoa violenta. Eu
sempre tentei usar meus dons - seus olhos se voltaram mais uma vez para a mão enluvada -
apenas para o bem.
Lew balançou a cabeça e, por um instante, seus olhos assumiram um olhar estranho e
distante. Marguerida lembrava das histórias sobre como ele tinha de bom grado se juntado
ao círculo de Sharra, com esperança de usar a grande matriz para o comércio de tecnologia
Terran e obter a independência darkovana. Objetivos dignos, de fato, mas no final,
impossíveis. Sharra só podia ser usada para a finalidade original. Nunca para outro uso e
sua única função possível era ser uma arma. A grande matriz de nono nível deformaria
qualquer outra finalidade, era muito poderosa para controlar e foi onde Lew encontrou a
sua tristeza.
A matriz de sombra tinha sido impressa na palma da mão de Marguerida durante uma
batalha selvagem no Mundo Superior com o espírito desencarnado de Ashara, a leronis
antiga que a tinha sobrepujado quando criança. Ashara havia prolongado sua existência,
tomando e usando outros corpos e mentes. Marguerida tinha lutado para se libertar de sua
infuência maligna, tinha quebrado a Torre Espelhada de Ashara e o resultado foi o cristal
estar em sua própria carne.
E se... O pensamento horrível ocorreu na mente de Marguerida... se a matriz sombra
está contaminando meu espirito com o espírito venenoso de Ashara? Não, não pode ser
possível! Ashara foi destruída! O estreasse dos eventos da noite, o terror de perder Mikhail,
naquele momento de pânico, tinham colocado a noção em sua mente. É um medo
infundado, nada mais!
- Seu coração é bom, - disse o pai, não dando sinal de que tinha percebido seus
pensamentos - mas você não pode apreciar plenamente o poder com que está lidando. Isso
- ele apontou para a mão enluvada - não é brinquedo. E é um tipo de laran perigoso, mais
precisamente, é o Dom de Alton.
- Eu certamente não preciso ser lembrada disso! - Com esforço, Marguerida controlou
sua irritação. Seu pai não era seu inimigo e ele sempre foi mais duro com ele mesmo do que
com ela. Ele merecia paciência e compreensão, e não uma explosão de temperamento.
- Eu não vim aqui para ensinar você. - A voz de Lew normalmente era baixa e rouca. -
Vejo que fiz um mau começo de conversa.
- Nós dois estamos cansados. – Ela disse com uma onda de simpatia. - Isso faz com que
seja mais difícil. O que você quer falar? E tem que ser hoje à noite?
O D o m d e A l t o n | 117

- Sempre prática a minha Marja. Há duas coisas em minha mente, nenhuma das quais
podem ser imediatamente resolvidas, mas não quero que elas caiam no esquecimento
agora. A primeira é o uso adequado do laran.
- O Dom de Alton, você quer dizer? - Ela levantou uma sobrancelha.
- Você não usou seu laran para conter a multidão nas portas essa noite, e você tem
trabalhado muito para dominar o seu temperamento.
E trabalhado muito mal, Marguerida refletiu cuidadosamente, mantendo suas dúvidas
para si mesma.
- Não há nenhum ponto em comum sobre os acontecimentos desta noite. No entanto,
lembro-me que Yllana e Domenic possuem o dom Alton, bem como... Como é o nome dela,
a menina Viajante?
- Illona Rider. Ela ainda está na Torre e provavelmente se tornará Sub-Guardiã lá.
Certamente, seus professores não teriam deixado de notar o seu progresso que até agora
se mostrou sem qualquer instabilidade.
Lew assentiu. – O treinamento de Nico na Torre também deve ter feito bem.
- Yllana tem um temperamento excepcionalmente firme, como seu pai. - Marguerida
acrescentou com um sorriso. - Hoje à noite, ela foi uma maravilha de eficiência sob pressão.
Não sei o que eu teria feito sem ela. Não tenho reservas sobre qualquer um deles.
- Sem dúvida, você está certa. Todos os três são bons jovens. Você os conhece melhor
do que eu. Entretanto... - Lew fez pausa. - Talvez eu seja muito antiquado sobre a nossa
responsabilidade no Comyn, mas eu me sentiria melhor com a certeza de que Nico e Yllana
entendem a responsabilidade decorrente de ter o dom de Alton.
- Não tenho objeções ao ensino do que você acha que eles precisam saber. -
Marguerida se mexeu, um pouco desconfortável. Havia mais alguma coisa, ainda não dita,
uma sombra por trás das palavras de seu pai. Ela se lembrou de como ele tinha olhado
abalado para a multidão que dispersava.
De maneira típica, ela enfrentou o problema diretamente, colocando uma mão
suavemente em seu braço. - Pai, o que mais aflige você? Porque trouxe essa preocupação
sobre a ética do laran?
Ele balançou a cabeça, seus olhos sombreados, e por um longo momento não
respondeu. – Fantasmas. - Ele disse finalmente, meio sussurrando. - O passado é muito
intenso comigo neste lugar. Não sei por que minha mente continua a trazer recordação de
memórias antigas. Eu gostaria de ter ficado em Armida, mas não tenho certeza de que
poderia encontrar a paz lá também. - Ele suspirou e balançou os ombros, como se estivesse
tentando alcançar o que o incomodava.
- Você não pode nos deixar agora, não no meio de uma crise! - Suas palavras saíram
mais acentuadas do que ela pretendia.
O D o m d e A l t o n | 118

- Não tenho intenção de ir a lugar algum. Ainda não, de qualquer maneira. Você não
precisa me convencer de que sou necessário aqui. É só que... Fui lembrado de muitas coisas
que eu queria esquecer. E não sou tão estúpido para pensar que posso simplesmente fugir
delas. Nem mesmo em meus sonhos.
- Devo pedir a Charissa para atendê-lo? Ou Istvana? - Marguerida perguntou,
genuinamente preocupada com a saúde dele. - Alguma coisa para ajudar a dormir, talvez?
Ele chegou mais perto. - Ah, minha Marja. Algumas coisas não podem ser resolvidas
com uma conversa simpática e uma tintura de ervas. Vivi com essas memórias por muitos
anos e sem dúvida vou continuar a suportá-las.
Com essas palavras, ele se inclinou para beijar o rosto dela, e depois a deixou.
Marguerida permaneceu em sua cadeira, olhando as chamas das velas, agora fixas e
estáveis. Parecia que todos os lugares para onde ela se virava, as pessoas que amava
abrigavam segredos dolorosos. Nico e agora seu pai.
Era meio-dia quando Marguerida conseguiu reunir a família para o almoço do dia
seguinte. A luz do sol entrava clara e brilhante através das janelas semi-abertas do salão da
família.
Mikhail chegou por último. Na noite anterior, Istvana examinou-o com seu laran. Por
baixo da escoriação escurecida ela não encontrou nenhum dano a seu crânio ou
hemorragia em seu cérebro, mas o golpe o tinha deixado com uma leve concussão. Apesar
de suas instruções para ele permanecer parado, ele levantou logo ao amanhecer, depois de
dormir apenas algumas horas.
Marguerida sentiu a luta de seu marido para se concentrar através da náusea e fadiga.
Deixe-o trabalhar, Marguerida pensou se repreendendo. Ele não vai se curar mais
rápido para o meu bel prazer.
Pelo menos, a cidade estava tranquila naquela manhã. Os Guardas da Cidade
patrulhavam as ruas e ficaram do lado de fora dos portões fechados. Não houve nenhum
novo relatório de desordem nas ruas. Ela se preocupou um pouco com Rory, em serviço de
patrulha, mesmo que não houvesse nada que pudesse fazer para protegê-lo.
A refeição começou mal. Todos pareciam preocupados ou irritáveis. Domenic serviu
sua comida, sua expressão fechada, seus escudos mentais firmemente no lugar. Yllana tinha
círculos escuros sob seus olhos e continuou se mexendo nervosamente até Marguerida
dispensa-la para praticar sua música.
Istvana deslizou para a sala, usando um vestido de verão muito fino, de lã amarelo
claro com bordados em volta do pescoço e punhos com as cores dos Ridenow. Ela foi até
Marguerida e a abraçou.
- Como está, Marja minha querida? - Istvana perguntou em seu tom de bom senso. -
Mikhail, você não está descansando o suficiente, o que é muito claro.
O D o m d e A l t o n | 119

Bem feito para você! Marguerida pensava. Talvez agora ele ouça.
- Quando houverem menos assuntos urgentes que requerem a minha atenção, irei
descansar mais. - Ele disse com suavidade enganosa.
Marguerida suspirou. Às vezes, seu amado podia ser irritantemente teimoso.
- Sente-se, Isty. – Ela disse, apontando para o lugar vazio. - Estamos bem,
considerando a noite passada. Como está Alanna esta manhã? Ela já se recuperou de seu
medo?
Istvana se sentou e começou a colocar comida no prato. - Eu lhe disse ontem à noite,
Marguerida, a menina não sofre de medo mais do que você. O que há de errado com ela
não é tão simples.
Domenic olhou bruscamente para cima. Marguerida notou que ele estivera
empurrando seu café da manhã ao redor de seu prato sem comer mais do que um bocado
ou dois.
- Alanna é um mistério. – Istvana disse entre mordidas. - Eu sei que ela estudou por
um tempo em Arilinn.
- Estudou. – Marguerida confirmou.
- Isso explica tudo, então. - Istvana assentiu.
- Eu não entendo. – Mikhail disse, franzindo a testa. Seus olhos azuis refletiam sua
profunda preocupação. - Ela ficou apenas uma temporada. Depois disso, ela se recusou a
voltar. Como ela parecia estar melhorando, não a forçamos. - Suas sobrancelhas estavam
apertadas, puxando o hematoma em sua testa inchada, e ele fez uma careta.
- Marja me disse que Alanna demonstrou talentos emergentes de iniciar o fogo e
telecinese, uma combinação muito perigosa para o seu fraco auto-controle. – Istvana
comentou. - O círculo em Arilinn deve ter se sentido compelido a lidar com a situação de
imediato, para a própria segurança de Alanna, bem como a de todos à sua volta.
A expressão de Istvana escureceu. Por causa de sua amizade, Marguerida quase
esquecieu que Istvana tinha toda a autoridade e poder de uma Guardiã.
- Sei que posso confiar em você para não repetir isso, - Istvana disse - mas desde que
Jeff Kerwin se afastou, não sei o que a Torre Arilinn tem feito. Aldones sabe, somos poucos
com a força e talento suficientes para fazer o trabalho. Às vezes, porém, me pergunto se
não poderiam ter encontrado alguém além de Loren MacAndrews para ser sucessor de Jeff
como Guardião. Não tenho o direito de criticar outra Guardiã e não sou a guardiã de sua
consciência. No entanto, na minha opinião, ela está levando a Torre para trás.
Cabeça de Mikhail se aproximou e pegou na mão de Marguerida que sentiu um
arrepio de alarme. - O que quer dizer com ‘para trás’?
- Só isso. Arilinn tem sido conhecida como a mais conservadora das Torres. Seus
costumes e arquivos devem datar da Era do Caos de tão velhos.
O D o m d e A l t o n | 120

- Mas de valor histórico incalculáveis, não é mesmo? - Como estudiosa, Marguerida


apreciava o valor de uma biblioteca.
- É verdade. - Istvana concordou e espetou um pedaço de carne. - Mas não são apenas
registros obsoletos. Eles representam um tesouro de técnicas esquecidas, à espera de
serem redescobertas.
- Incluindo coisas que é melhor deixar em paz? - Mikhail disse, balançando a cabeça
como se seguisse o pensamento de Istvana.
Marguerida mordeu o lábio, lembrando seu tempo breve e infeliz em Arilinn. Ela tinha
sido mais velha que o resto dos alunos, e, tendo sido levada para fora do planeta e
possuindo o dom de Alton, tinha se tornado um objeto de hostlidade velada. Loren, uma
das mais antigas estudantes naquele tempo, tinha ficado abertamente aliviada quando
Marguerida partira.
- Eu me lembro que Loren era fascinada pela tradição que eu já conhecia bem. -
Marguerida se perguntou se o ressentimento de Loren não tinha sido enraizado na inveja. -
Ela não era exatamente amigável, mas parecia competente. E ambiciosa.
- Oh, isso ela é. - Istvana fez um gesto com o garfo. - Eu não quis dizer o contrário. As
Guardiãs de Arilinn sempre foram altamente qualifcadas e Loren não é exceção. Eu quis
dizer que ela poderia ter tentado um dos velhos métodos em Alanna como uma medida de
emergência, presumindo que Alanna permaneceria por algum tempo em Arilinn e assim
haveria tempo de sobra para reintegrar seus talentos quando ela alcançasse uma maior
auto-disciplina.
- Velhos métodos? - Marguerida perguntou. - Não tenho certeza se entendi o que você
quer dizer.
- Alguém em Arilinn, e só posso supor que foi a Guardiã, implantou certas garantias
involuntárias dentro da mente de Alanna. Com efeito, Loren isolou as partes mais perigosas
do laran de Alanna, a fim de proteger a sua sanidade mental.
- Você quer dizer que eles destruíram seu laran? - Mikhail engasgou. Marguerida
sentiu seu recuo instintivo. O laran tinha sido reverenciado pelo Comyn desde tempos
imemoriais. Há pouco tempo, não poderia se casar com Comyn ou herdar sem demonstrar
que o possuía.
Istvana rapidamente assegurou a Mikhail que o talento Alanna não foi destruido, só
bloqueado.
Como um câncer em remissão, Marguerida pensava.
- O pirocinese e a telecinese não eram os únicos talentos de Alanna. - Istvana
continuou. - Ela também teve...tem...uma forma de premonição confiável. Não, Marja, não
é nada como o dom de Aldaran. Na verdade, ela se vê diante de vários futuros possíveis e
isso não é uma maravilha para a mente de uma criança, que pode quebrar completamente.
O D o m d e A l t o n | 121

Felizmente, esse parece ser um desenvolvimento recente e me pergunto se não foi em


resposta à repressão de seus dons naturais em Arillin.
- Como ervas daninhas brotando em novas partes do jardim. - Marguerida franziu a
testa. - Então, se essa capacidade é isolada, quem sabe onde o Dom de Alanna pode chegar
um dia?
- Ela não está fazendo isso de propósito! - Domenic explodiu.
Istvana lhe deu outro olhar atento. - Não, tenho certeza que nada disso é voluntário
por parte dela. E Loren fez o que achou melhor. Nós não podemos questionar a decisão de
uma Guardiã.
Istvana passou a explicar que a noite passada, algo havia interrompido as salvaguardas
de Alanna, resultando no ressurgimento de sintomas da doença do limiar. Com o canto do
olho, Marguerida notou a mudança inquieta de Domenic na cadeira, mas ela não podia
sentir nada de seus pensamentos.
- Será que ela... - Domenic gaguejou - ...que ela ainda está em perigo?
Istvana balançou a cabeça. - A mente de Alanna está estável por enquanto. Eu seria
capaz de reforçar as salvaguardas de Arilinn. Mas não ouso mexer com o que Loren fez, não
até eu compreender todas as implicações, então pensei que seria melhor deixá-la sozinha
por precaução. Quanto as premonições, ela pode achar que são um incômodo, mas não
deve representar nenhum perigo direto para ela ou qualquer um ao seu redor.
Mikhail parecia infeliz. - Devemos envia-la de volta para Arilinn? Ela não teria ido
voluntariamente antes, mas talvez agora...
Ele se culpa, Marguerida pensou, com seu coração dolorido por ele, por não ter
insistido para ela retornar depois que primeira temporada. Oh, Mik! Não tinhamos como
saber o que iria acontecer e Alanna estava tão contrária a isso. Quem sabe o que ela
poderia ter feito se não tivéssemos cedido... Ela poderia fugir, encher os estábulos do
castelo de chamas como ela ameaçou fazer, causando mal ainda maior.
- Uma pessoa com o temperamento forte de Alanna e com um laran volátil iria se sair
melhor no ambiente disciplinado de uma Torre. - Istvana disse com um suspiro. - Não
Arilinn de novo, mas talvez com Laurina MacBard em Dalereuth. A decisão, no entanto,
deve ser dela, e ela teria que se submeter ao treinamento de boa vontade e de coração.
Seu consentimento não pode ser forçado. Dada a sua resistência anterior, coagir ela teria
mais danos do que benefícios. Por enquanto ela está equilibrada o suficiente, se não for
submetida a outro incidente desestabilizador.
A expressão de preocupação de Domenic se intensificou. Que bondade a dele,
Marguerida pensou distraidamente, por estar tão preocupado com sua amiga de infância.
Pelo menos, não vou ter que mandá-la embora, de volta para a mãe que não a ama. Isso
iria arruinar sua confiança. Talvez com este incidente, qualquer que fosse a causa do
O D o m d e A l t o n | 122

problema, podia ter ensinado a Alanna como evitá-lo. Alanna parecia dócil o suficiente
neste momento.
- O que devemos fazer, então? - Mikhail perguntou. - Como podemos evitar que ela
provoque outro incidente?
- O laran de Alanna é extraordinariamente complexo. – Istvana disse. - Vocês sabem
que os mesmos canais de energons carregam a energia do laran e a sexual.
Mikhail assentiu. - É por isso que muitas vezes surge a doença do limiar na puberdade,
quando os dois se tornam ativos.
Domenic corou e desviou o olhar. Istvana educadamente ignorou.
- Ao mesmo tempo, - explicou Istvana para o benefício de Marguerida - pensava-se
que ninguém trabalhando em um círculo de matriz, poderia ser sexualmente ativo. Ou não
haveria energia suficiente para o sexo, o homem se tornaria impotente e a mulher não
responderia, ou então os canais sobrecarregariam com resultados potencialmente fatais.
- Superstição absurda! - Marguerida exclamou. - Nunca, mesmo usando nosso laran,
nos sentimos impedidos de... - Ela parou de falar quando o rosto de Domenic corou ainda
mais. Pobre garoto, ele não estava acostumado a seus pais discutindo assuntos tão íntimos.
Istvana assentiu. - É claro que sabemos disso agora. Mas, durante séculos, Guardiãs
foram obrigadas a permanecer virgens e em nenhum lugar isso era tão rigoroso como em
Arilinn. Você sabe que Guardiãs carregam níveis muito mais elevados do que os
trabalhadores das Torres e, para seu próprio bem, bem como para a segurança de todos em
seu círculo, seus canais menores deve permanecer livres.
Domenic mexeu-se inquieto em sua cadeira. - Certamente, isso não se aplica a Alanna.
Istvana olhou atentamente para ele. - No caso de Alanna, suas primeiras
manifestações dos seus talentos e sua sexualidade surgiram por volta da mesma época.
Suspeito, pelo que encontrei em sua mente, que Loren usou as técnicas antigas para
desligar os dois.
- Oh! - Marguerida exclamou, erguendo uma mão à boca. - Que terrível! E ainda sim...
Isso faz todo sentido. Quando voltou de Arilinn ela me pareceu infantil e, curiosamente,
livre dos hormônios habituais nos adolescentes. Eu estava realmente agradecida por não
ter que lidar com o seu temperamento.
Marguerida conteve suas palavras seguintes. Loren podia ter agido no que achava que
era para o melhor interesse de Alanna, mas isso não poderia justificar o que equivalia a
castração psíquica. Antes que ela pudesse colocar seus pensamentos em palavras, Mikhail
falou de novo.
- Essas garantias são temporárias, não são? Alanna será capaz de viver como uma
mulher normal e... bem, se casar e ter uma família?
O D o m d e A l t o n | 123

Balançando a cabeça, Istvana deu um pequeno empurrão em seu prato vazio. - Seria
melhor adiar, até que possamos avaliar as coisas corretamente. Eventualmente, pode ser
possível remover as salvaguardas. Uma vez que ela amadureça e tenha auto-controle. Ou
então, a inibição sexual em si pode ser liberada, talvez através da administração cuidadosa
de kireseth. Seu uso era proibido nos círculos das Torres, mas foi redescoberto
recentemente num relato de rituais de fim de ano. - Istvana fez uma pausa, os olhos
pensativos. - Você disse que Arilinn estará enviando um representante para o Conselho
nesta temporada. Espero que seja Loren e que possamos discutir o que ela fez. Por
enquanto, vamos deixa-la bem confortável e sozinha. A não ser que... A menina não está
noiva, não é?
- Não, graças a todos os deuses! - Marguerida respirou de alívio.
- Se você diz que Alanna não está em perigo, - Mikhail disse - não vejo o que mais
podemos fazer.
- Onde está Dom Lewis? - Istvana, tendo se satisfeito, mudou de assunto. - Eu esperava
vê-lo esta manhã.
- Eu também. – Mikhail disse entre goles de jaco sem açúcar. - Quero pedir seu
conselho sobre como lidar com os homens da noite passada.
- Você quer dizer, como o tirar da situação que você fez para si mesmo. - Marguerida
disse, gentilmente o provocando. - Acredito que meu pai tomou café da manhã em seu
próprio quarto. Não foi, Darna? - Ela olhou por cima do ombro para uma das criadas.
- Sim, vai domna. Cecilia levou uma bandeja para ele há pouco tempo. - A menina
começou a retirar os pratos do desjejum. Istvana desculpou-se e foi verifcar Alanna
novamente antes de atender a seus próprios deveres.
- Acho que a noite passada foi cansativa para um velho. - Mikhail disse quando ele,
Domenic e Marguerida estavam sozinhos novamente.
- Ele não é tão velho. - Marguerida parou a si mesma. Lew não tinha 70 anos ainda,
mal saíra da meia-idade pelos padrões Terrans. Os anos tinham sido duros com seu pai. Um
olhar para seu pobre rosto marcado ou o jeito que ele esfregava o toco de seu braço
quando pensava que ninguém estava vendo, a lembrava do quanto ele tinha sofrido.
O que farei quando ele se for? Por que estou entregando a tais pensamentos
mórbidos? O pai estará conosco por um longo período de tempo.
- Eu não iria perturbar o descanso de Lew, - disse Mikhail - mas devo me preparar para
receber esses homens no Conselho no dia depois de amanhã. Eu preferiria não entrar em
tal reunião sem saber tanto quanto posso sobre sua situação. Já terei dificuldade suficiente
para convencer o Conselho a aceitar uma violação de protocolo. Prefiro não me fazer de
bobo por minha própria ignorância.
O D o m d e A l t o n | 124

- Você poderia perguntar a Danilo Syrtis. – Domenic disse. Todas as três cabeças se
voltaram para ele.
- Essa é uma sugestão interessante. – Mikhail disse. - Danilo já foi parte do
funcionamento interno do Conselho, através de sua associação com Regis, sua regência de
Ardais e, mais tarde, seu serviço para nós. Ele se retirou tanto esses últimos anos e depois
esteve tão doente no inverno passado, que fiquei surpreso ao vê-lo na sessão de abertura.
Hesitante, como se revelasse um segredo, Domenic disse que Danilo havia organizado
uma série de reuniões para ele em Thendara com vários tipos de pessoas. - Comerciantes,
artesãos, alguns lordes menores. Aprendi muito mais sobre a cidade e as terras
circundantes do que teria aprendido por trás dessas paredes. Dom Danilo passa muito
tempo fora do castelo, creio. Ele pode ter ouvido falar desses homens.
Então, esse deve ser o segredo que Domenic estava escondendo. Marguerida não sabia
se devia se orgulhar de seu filho ou ficar furiosa com ele por assumir riscos desnecessários.
Thendara, como qualquer cidade grande, incluia distritos onde um jovem não estaria
seguro sozinho. Posses que Domenic tinha como normais, como um manto finamente
tecido ou um cinto com uma fivela de metal, poderia tentar um ladrão. Até mesmo um
homem treinado em autodefesa poderia ser superado por números suficientes ou ser pego
de surpresa.
Ela tentou se lembrar do que era ter 20 anos e como ela teria sentido se seus pais a
proibissem de se desviar para além de uma fortaleza armada ou pior ainda, se alguém a
seguisse em todos os lugares, relatando o que ela fazia para eles. Ela ficaria muito brava e
teria saído para fazer a coisa mais escandalosa que pudesse imaginar.
Mas eu era uma estudante universitária, ninguém de importância. Nico é o herdeiro da
Regência e do Domínio mais poderoso de Darkover. Ele não tem o direito de se arriscar.
- Eu concordo que é imprudente se arriscar. – Mikhail continuou. - Mas, se Domenic
vai governar, ele deve conhecer a cidade e seu povo. Ele deve aprender a avaliar esses
riscos para si mesmo, confiar em seu próprio julgamento, nem focar ou confiar apenas em
sua proteção, não importa o quão tentadora e forte seja. Não acho que ele poderia ter um
guia melhor que Danilo Syrtis.
Quem, Marguerida lembrou a si mesma, manteve Regis seguro por muitos anos, contra
os Destruidores de Mundos, assassinos e muitos outros perigos.
Ela suspirou internamente. Quando Domenic nasceu, ela queria que ele fosse
independente, confiante em suas habilidades e capaz de tomar suas próprias decisões.
Agora, ela refletia com tristeza, era tarde demais para mudar de ideia.
O D o m d e A l t o n | 125

Capítulo 12

Domenic passou o dia seguinte em meio à frustração. Alanna dormia a maior parte do
tempo. Ele sabia que isso era um bom sinal, de que seu corpo e mente precisava de
descanso, mas o pensamento não tornava as coisas mais fáceis. Quando, finalmente,
acordou, ela se recusou a discutir os acontecimentos que levaram a crise. Claramente feliz
em vê-lo, ela conversou animadamente sobre seu noivado secreto. O que Istvana tinha dito
era realmente verdade, ele percebeu. Alanna recuou emocionalmente para a condição que
os trabalhadores de Arilinn haviam criado nela, espirituosa e caprichosa, mas sexualmente
alheia. Ela poderia ter sido transformada em emmasca de tão indiferente. A paixão que
tinham compartilhado tinha desaparecido como se nunca tivesse existido. Quando ele a
beijou, ela virou a cabeça, para que seus lábios pressionassem contra sua face.
O castelo se movimentava com mais do que a atividade habitual da temporada do
Conselho e a família de Domenic parecia estar no centro de tudo. Marguerida, com a ajuda
Yllana, conseguiu manter a limpeza até que todos os convidados inesperados pudessem
voltar com segurança para suas casas, bem como de todas as disposições necessárias para a
temporada habitual Conselho. Danilo se reuniu várias vezes com Mikhail, indo e vindo com
a sua calma e discrição habitual. Domenic não teve a oportunidade de falar mais do que
algumas palavras com ele, pois seu pai o havia delegado uma quantidade surpreendente
chata de trabalho, mas que era essencial.
Domenic não viu muito nem mesmo seu avô. Lew apareceu para uma ou duas
refeições em família, falando pouco e comendo menos ainda. Apenas um olhar severo de
Mikhail conteve Marguerida de reclamar com ele.
O tumulto nos portões do Castelo concedeu um indulto inesperado a Domenic.
Francisco Ridenow não enviou sua filha para casa, mas ele parecia ter desistido da ideia de
uma aliança de casamento, pelo menos por enquanto.
Yllana mencionou de passagem, que ela tinha visto a menina Ridenow jogando aros e
fâmulas com a filha Katherine Aldaran, Térese, que tinha a mesma idade. Yllana falou do
jogo de forma tão melancólica que Marguerida sugeriu que fizesse uma pausa de seus
deveres domésticos para se juntar a elas. Yllana felizmente saiu para fazê-lo, parecendo
mais uma damisela despreocupada que uma jovem mulher lutando com novas
responsabilidades. Domenic esperava que a amizade fosse uma coisa boa para todos eles.
Pelo menos, ele não duvidava que Francisco poderia explorá-la para um noivado político.
Além disso, Térese tinha passado a primeira década de sua vida na Terra, entre diplomatas,
e era extraordinariamente sofisticada para sua idade.
Quanto às reuniões do Conselho, uma vez que o furor inicial havia diminuído em
tentativas de encontrar um culpado pelo incidente, os assuntos voltaram ao de costume.
O D o m d e A l t o n | 126

Discussões de cada lado que disputavam vantagens, independentemente dos méritos do


caso. Domenic esperava ansioso pela audiência com os homens do Kadarin. Pelo menos,
algo real poderia acontecer em seguida.
A multidão às portas do castelo poderia ter exagerado, estimulada por uns
descontentes e uns poucos gritos, mas eles tinham queixas legítimas.
Danilo sentou-se na Câmara de Cristal e ouviu os homens do Kadarin contarem sua
história. Como havia relatado para Mikhail, que tinham chegado na cidade desde que as
passagens ficaram abertas na primavera. O que eles disseram também era verdade, que
haviam tentado uma audiência na Cortes e nada conseguido. A informação não foi difícil de
confirmar. Os homens contaram sua história ao longo das áreas mais pobres da cidade,
gerando simpatia e indignação. Infelizmente, o deles foi um caso isolado.
No dia da sua audiência, os dois irmãos estavam juntos, vestidos com seus trajes de
montanha. Suas camisas de pele pareciam ainda mais surradas no brilho opulento da
Câmara. Eles eram um povo orgulhoso e nada menos do que a mais grave ocorrência teria
os trazido até aqui para pedir ajuda.
Eles contaram uma história tão antiga quanto a própria floresta de Darkover:
incêndios, seguidos inevitavelmente por deslizamentos de terra e erosão, em seguida, seca.
O ciclo natural de fogo e inundações era uma parte essencial da ecologia de Darkover. Em
áreas de assentamento, tanto os do Comyn quanto os agricultores mais pobres se uniam
para controlar os piores incêndios, pois as florestas fornecem alimentos para o homem e os
animais, bem como combustível e abrigo para a fauna e, portanto, peles e carne. Mesmo
nos tempos modernos a importância do combate a incêndios era tão grande que a
penalidade por quebrar a trégua do fogo era o exílio ou a morte.
Na memória de Danilo, outra cena surgiu com outros homens. Foi no início do tempo
dos Destruidores de Mundos, quando souberam que a destruição da floresta e do solo e os
assassinatos que visavam dizimar o Comyn, eram parte de uma conspiração deliberada e de
longo alcance, para reduzir Darkover a uma situação desesperada em que eles aceitariam a
ajuda do Império a qualquer custo.
Regis tinha estado sentado sob a bandeira azul com o pinheiro dos Hasturs, ouvindo
um homem grisalho com um perfil como um rochedo de dentes afiados.
- Eu jurei trinta anos atrás que eu morreria de fome antes de me arrastar até as terras
baixas da para pedir ajuda ao Comyn. – O velho tinha dito.
No final, Darkover não teve escolha a não ser negociar com a Federação Terran. Regis
tinha sido inflexível sobre não colocar-se em dívida com os Terranan, e ele usou sua fortuna
pessoal para importar alimentos e também medicamentos, para pessoas enfraquecidas
pela labuta e a fome que ficaram especialmente vulneráveis à doença.
O D o m d e A l t o n | 127

Mesmo as áreas mais fortemente danifcadas foram recuperadas e trouxeram


equipamentos especiais para acelerar a recuperação do solo e da floresta. No entanto, o
ciclo natural de fogo e inundações continuou, e aí estava o problema atual. Mesmo que
Darkover permanecesse independente, capaz de comprar o que precisava, nunca adquiriu
tecnologia avançada. O planeta era muito pobre em minerais para apoiar a industrialização.
A população estava muito mal distribuída e não era educada nem treinada para
arregimentação de fábricas. Tudo sempre seriam coisas muito caras ou difíceis para
Darkover produzir e pouco poderia oferecer em troca.
Agora, o Império tinha ido embora, se retirado para lutar sua guerra civil interestelar.
Onde pessoas como esses homens do Kadarin poderiam recorrer, exceto junto ao Comyn
que sempre os guiou?
Danilo piscou e já não era mais Regis que estava sentado do outro lado da sala, mas
sim Mikhail. Mikhail tinha feito bom uso do conhecimento prévio das queixas e tinha uma
resposta pronta para eles. Seu plano era inovador, mas de efeito. As doenças que afligiam
estranhos, animais e plantas podiam realmente representar alguma ameaça nova ou ser
apenas uma recorrência de doenças mais antigas. Um técnico de matriz treinado e as
curandeiras renunciantes que trabalhavam ao lado dos Terrans, como parte da Sociedade
da Ponte, iriam acompanhá-los para determinar que tipo de ajuda seria mais eficaz.
Humilhados, mas claramente emocionados pela resposta ponderada de Mikhail, os
irmãos se retiraram. O Conselho concluiu o resto de seus assuntos do dia e a sessão foi
suspensa.
Quando os membros do Conselho se levantavam para sair, alguns poucos
permaneceram brevemente para discutr a sessão. Os irmãos de Mikhail, Rafael e Gabriel, se
reuniram com Marguerida e Gisela Aldaran, esposa de Rafael.
Como eram um grupo pequeno, o lugar mais conveniente para conversar era a
antecâmara entre o gabinete principal dos Hastur com uma entrada privativa. Membros do
Domínio usavam o lugar para falar sem serem perturbados antes de fazer uma aparição
formal no Conselho. A antecâmara não tinha sido muito usada desde a época de Danvan
Hastur. Paineis de madeira estavam escuros com a idade, mas ricamente detalhados,
esculpidos com ramos de pinheiros e veados pulando. Os bancos que cobriam as paredes
tinham sido recentemente remodelados e coberto com longas almofadas lisas. O ar
cheirava a madeira e ervas.
Quando Danilo se juntou a eles, Marguerida estava dizendo a seu marido: - ...foi muito
bem feito, amor.
- Sim, mas havia mais de uma centena de tais homens do lado de fora de nossas portas
na outra noite. - Gabriel ainda não tinha tomado seu lugar. Ele estava andando de um lado
para outro, com o punho contra a palma da mão aberta para dar ênfase. - Para cada um
O D o m d e A l t o n | 128

que se atreveu a vir para a frente, há outros tantos, fomentando descontentamento e


rebelião. - Ele fez uma careta para Marguerida, que abriu a boca para responder. - Não olhe
para mim desse jeito, cunhada. Falo apenas o que todos sabemos.
- Eu os vi nas ruas quando montei esta manhã. - Rafael comentou.
- Gabriel, por favor, sente-se. - Marguerida disse, estendendo-lhe a mão. - Há espaço
aqui no banco e você esatá deixando todos nós nervosos andando dessa forma. - Com um
grunhido de anuência, Gabriel sentou.
- Danilo, - disse Mikhail, suavemente, mudando de assunto - você tem os meus mais
profundos agradecimentos. Duvido que a audiência tivesse ido tão bem sem a sua
informação.
Do seu lugar no canto, Danilo inclinou a cabeça e disse que estava feliz por estar ao
seu serviço, mas o crédito era inteiramente devido ao manuseio hábil de Mikhail da
situação.
- Sempre modesto. - Mikhail respondeu gentilmente. - Eu, no entanto valorizo o seu
sábio conselho.
- Você pode sempre tê-lo.
- Mikhail, você não pode seriamente propor uma audiência para todos os
descontentes em Thendara. – Gabriel disse, retornando ao tópico anterior. Ele sempre
tinha sido o de mentalidade mais conservadora dos três irmãos. - Você sabe tão bem
quanto eu que o Conselho apenas tolerou a audiência de hoje. Se você pressioná-los ou
abusar de sua paciência, vai perder seu apoio em questões de importância real.
- E isso não é importante? - Marguerida perguntou.
- O que mais devemos fazer? - Domenic perguntou. - Não podemos mandar essas
pessoas embora. Somos do Comyn, temos uma responsabilidade para com elas.
- Fala o idealismo da juventude. – Rafael disse, mas não em tom malicioso.
- Tenha certeza - Mikhail disse - que não vou subestimar a gravidade do problema. É
por isso que eu quero saber como você vê a situação e se tem sugestões de como proceder.
Marguerida correu os dedos sobre a capa de almofada bordada e ficou pensativa. -
Como diz Gabriel, os homens em nossas portas são apenas a ponta do iceberg. Os velhos
costumes estão acabando. Nós precisamos colocar algo novo em seu lugar ou correr o risco
de seguir o caminho dos dinossauros.
- O quê? - Gabriel disse. - O que são dinossauros?
- Esqueci que não houve nenhum em Darkover. Basta pensar neles como grandes e
lentos lagartos, dragões sem asas, pesados e alegremente caminhando para a extinção,
como alguns membros do Conselho. - Marguerida disse com uma risada, depois ficou séria.
- O que precisamos agora é da melhor maneira de usar nossos recursos existentes.
O D o m d e A l t o n | 129

- Você claramente tem algo em mente, - disse Mikhail, sorrindo para a esposa - algum
projeto que, sem dúvida, vai deixar os tradicionalistas no Conselho em apoplexia.
- Não me provoque, Mik. Que eu não quero aborrecê-los. Só não sei lidar bem com
pessoas que pensam que nada deve ser feito de imediato.
Mikhail riu abertamente, mas Gabriel parecia descontente. Gisela, que estava sentada
ao lado do marido, ouvindo, disse gentilmente: - Você tem que admitir que Marguerida tem
boas ideias, como a criação de uma editora na Casa de Thendara que têm sido de grande
benefício.
- Não é a mim que ela precisa convencer. - Gabriel murmurou. Ele encostou-se à
parede com paineis, depois fez uma careta para as bordas mais nítidas das esculturas.
- Como o analfabetismo, este problema não vai desaparecer por conta própria. –
Marguerida disse. - Se essas pessoas não se ajudarem a nível local, eles vão vir aqui
esperando que façamos algo.
- Meu ponto exatamente. – Gabriel disse. - Se tentarmos ouvir cada caso apresentado
diante de nós, o Conselho será inundado com todas as disputas triviais dos Sete Domínios.
Seria melhor lidar com essas coisas como sempre fizemos, cada Comyn governando suas
próprias terras.
- Se isso fosse possível, se houvesse um número suficiente de nós, porque os homens
das ruas estariam aqui? - Domenic perguntou. - Isso não é prova de que as velhas maneiras
já não são suficientes?
- Eu digo que devemos enviar as pessoas de volta para onde elas pertencem, usando a
força dos Guardas da Cidade, se necessário. – Gabriel disse. - Tempos de instabilidade
vieram e se foram antes. Se ficarmos firmes em nossa determinação, as questões se
resolverão.
- Isso pode ter sido verdade uma vez. - Domenic recusou-se a recuar. - Mas nós nunca
enfrentamos uma situação como esta, não desde que o primeiro Terranan desembarcou
em Darkover. Acredito que ainda não vimos o máximo impacto da partida da Federação.
- Nem substituímos os benefícios que eles trouxeram. – Rafael acrescentou.
- Domenic está certo. - Marguerida disse. - Quando o Império deixou Darkover, eles
criaram um vácuo de poder, de recursos, de pessoas. Com o tempo, vamos nos ajustar. Um
novo equilíbrio surgirá. A questão é, como vamos fazer essa transição de forma tão suave
quanto possível?
Danilo aproveitou a abertura. - Acredito que há muito mais pessoas com laran do que
as que estão atualmente representadas no Comyn. Algumas delas podem ser descendentes
nedestro, como essa menina, Illona Rider. Outras podem ser de famílias colaterais ou
possuir apenas um talento menor, não o suficiente para formação numa Torre, mas...
O D o m d e A l t o n | 130

- Não entendo o seu ponto. - Gabriel interrompeu. - Você está dizendo que membros
do Conselho estariam sujeitos a influencia de pequenos possuidores de laran? O resultado
seria o caos!
Danilo fez uma pausa. Ele não estava pensando do Conselho em si, mas em outras
maneiras do Comyn servir Darkover com os talentos de suas mentes. Ao mesmo tempo, por
que não? O Senado do Império incluiu representantes de todos os níveis da sociedade.
- Enquanto isso, - Mikhail disse em uma voz calma que chamou a atenção de todos -
devemos fazer o que puderdemos para minimizar o sofrimento das pessoas ao nosso
cuidado.
- Exatamente meu pensamento. - Marguerida balançou a cabeça, seus olhos dourados
brilhando da maneira como faziam quando ela tinha uma ideia nova. - Precisamos de uma
maneira de resolver os problemas mais sérios e lidar com coisas comuns em um nível
menor, a forma como as Cortes faz, ou encaminhá-los às autoridades competentes.
Poderíamos criar um centro de triagem não aqui no Castelo, mas em algum lugar mais
acessível.
- O Gabinete Administrativo da Cidade seria uma excelente localização. - Mikhail
sugeriu. - Teria a vantagem de estar disponível durante todo o ano, não apenas na época do
Conselho.
- É verdade, há muito espaço no prédio. – Rafael disse, pegando seu entusiasmo. - Mas
quem faria essa triagem?
- Como é minha ideia brilhante, - Marguerida disse - vou ser a primeira a me oferecer.
Vou pegar Domenic e Rory, quando ele não estiver de serviço, para ajudar. Será um bom
treinamento para ambos. - Acrescentou para Domenic. - Quem sabe? A ideia pode ser a
abertura e então nós poderemos contar com jovens de outras famílias também.
- Vou participar também, se eu puder ser útil. – Danilo disse.
- Eu também. – Gabriel disse, mais por obrigação do que real interesse.
- E eu, tanto quanto for capaz. – Rafael acrescentou. Como ele vivia em Aldaran grande
parte do ano, não estava suscetivel a ser influenciado. Carinhosamente, Gisela colocou a
mão no braço do marido.
- Com sua licença. - Danilo chamou. - Vou discutir essa proposta com Dom Cisco. Nós
poderíamos usar um cadete ou dois, aqueles com letra legível, para manter registros para
nós. Isso poderia ser uma rotação útil do dever.
- O que é uma boa maneira de dizer, para aqueles que já exageraram no pátio de
treinamento ou que precisam de um pouco de concentração para afiar suas mentes. –
Mikhail disse.
- Então, como podem ver, isso será benefício para todos. - Marguerida concluiu
deliciada.
O D o m d e A l t o n | 131

Quando a reunião terminou, Domenic olhou na direção de Danilo, mas não havia
nenhuma possibilidade de uma palavra em particular. Danilo não podia deixar de pensar
que, embora a sugestão de Marguerida seria, sem dúvida, uma forma de aliviar algumas de
suas difculdades atuais, seria apenas uma medida temporária. Ele duvidava que a
população rural de Darkover fosse se adaptar bem a autoridade centralizada ou às
sinterrupções na casa e fazenda causada pela viagem necessária. Apesar de todos os anos
da presença do Império, Darkover sempre teve poucas estradas, sem transporte
mecanizado, e nenhum meio de comunicação, exceto mensageiros montados e
transmissões telepáticas.
Há muito poucos de nós...
Então, ele deveria encontrar mais.

~o ⭐ o~
Na manhã seguinte, Danilo deixou o Castelo cedo. Embora ele tivesse uma reunião
para assistir, tinha tomado para si uma grande quantidade de assuntos para organizar,
parou em uma barraca ao ar livre que vendia bebidas quentes e bolos de carne frita. Um
grupo de operários estava esperando pelo próximo lote a emergir das panelas de óleo e
vapor perfumado com especiarias. Danilo comprou uma caneca de jaco e a levou para um
canto abrigado para saborear. Os sons de riso dos homens, o barulho de utensílios de
cozinha, cavalos e carroças, os vendedores ambulantes gritando suas mercadorias, caiu
sobre ele. Perto dali, outra barraca vendia peixes fritos e cogumelos em espetos. Mulheres
padeiras com cestas embaixo do braços, fofocavam enquanto seus filhos brincavam entre
as barracas.
Quando ele passou para a área do mercado, notou um grupo de ociosos parados
enquanto ouviam um orador. Acima das cabeças dos ouvintes, Danilo teve um vislumbre do
corpo magro do orador, seus gestos enfáticos, os cabelos claros parcialmente escondidos
debaixo de uma capa. Danilo se aproximou para ver melhor, mas assim que o orador notou
seu interesse, ele cortou seu discurso e desapareceu no tráfego da manhã.
Danilo fez o seu caminho através de um distrito de parques, passando por casas largas,
cujas paredes brilhavam com paineis de pedra translúcida pálida. Em uma delas, o servo na
porta lhe mostrou uma oficina com cortinas de isolamento penduradas, um laboratório de
matriz.
Mecânicos de matriz, treinados nos níveis mais baixos, tinham sido licenciados na
cidade desde a época da Torre Proibida, mas nunca tinha havido muitos deles em qualquer
época. Os primeiros mecânicos licenciados tinham sido leronis que, por uma razão ou
outra, por sua própria escolha ou involuntariamente, não permaneceram dentro de uma
Torre. A vida áustera podia não agradar a todos os temperamentos. Hoje em dia, eles
O D o m d e A l t o n | 132

poderiam adquirir sua formação sem nunca ter estudado em uma Torre. Eles aceitavam
principalmente pequenos projetos como a criação de fechaduras com chave de matriz. Os
Terrans os contratavam para outras coisas também e o desalinho do laboratório sugeria
que esses trabalhos não tinha sido substituídos por nenhum outro.
No laboratório estavam um homem e quatro mulheres, uma delas com idade
suficiente para ser uma avó, sentados em cadeiras de madeira sem braços em um círculo
áustero. Eles estavam vestidos discretamente e todos, exceto a mulher de cabelos brancos,
tinham tonalidades avermelhadas em seus cabelos. O homem não podia ter mais que vinte
e cinco anos ou algo assim, com os olhos inquietos e angulares, e poucos recursos. Danilo
curvou-se e, depois das saudações adequadas, tomou o único assento vazio.
- Você nos emprestar graça, vai dom. – Disse a mulher alta, equilibrada, dona da casa,
chamada Varinna. - A que devemos a honra desta visita? Houve alguma queixa contra nós?
A mecânica de matriz existia em uma zona cinzenta, nem Comyn, nem plebeia, a
desconfiaça estava em ambos os lados, tolerada apenas porque prestava serviços muito
triviais para os leroni das Torres se incomodarem. Eles não tinham amigos poderosos e
sempre foram vulneráveis a acusações de atividades ilegais.
- Não, não. - Danilo disse rapidamente. Até agora, seu contato com essas pessoas tinha
sido oblíquo, discreto. - Não venho em qualquer missão oficial, pelo menos não no
momento. Pelo contrário, o meu objetivo é explorar a possibidade de trabalhar em
conjunto para nosso benefício mútuo, bem como de telepatas latentes e destreinados de
toda Darkover.
O jovem, que tinha sido apresentado como Darius-Mikhail Zabal, virou-se para Danilo
com um olhar francamente curioso.
- Não brinque conosco, Dom Danilo Syrtis. - Disse a mulher de cabelos brancos,
olhando-o com uma expressão de suspeita desvelada. - Nós sabemos quem você é. Você
serve aos Hasturs, agora como antes. Você não estaria agora a espiar-nos para o Regente?
- Espionando, não. - Ele fez uma pausa, sem saber o que lhes dizer. No entanto, a
confiança devia ser conquistada. - Uma vez, os Dons de laran podiam estar restritos ao
Comyn, mas ao longo dos séculos, eles foram diluídos. - Danilo não precisava apontar que
todos tinham algum talento ou eles não poderiam manipular os pequenos cristais
permitdos por lei ou operar telas de monitores como uma no canto deste laboratório. -
Vocês tiveram o benefício do treinamento. - Danilo seguiu em frente. - Vocês podem usar
seu laran para ganhar uma vida respeitável. Para cada um de vocês, poderia haver outros
menos afortunados...dezenas, talvez centenas de desconhecidos, incultos, atormentados
por poderes que não podem compreender nem controlar.
Uma das mulheres deu de ombros. - Eu sinto muito por eles, é claro. É uma pena que
eles não tenham a oportunidade de usar seu laran!
O D o m d e A l t o n | 133

- É uma desgraça! - Danilo exclamou. - Não só as pessoas sofrem, mas todos em


Darkover ficam mais pobres por isso.
- Também já me perguntei se as pessoas com esses dons poderiam ser encontradas,
ensinadas e terem trabalhos úteis, - Darius-Mikhail disse baixinho – mas, como um homem
sem recursos, pouco podemos fazer para ajudá-los.
- Juntos, nós podemos. - Danilo continuou. - Com o apoio do Conselho, poderíamos
treinar curandeiros nas artes da matriz, configurar as telas de transmissão para uso de
todos, não apenas das Torres. Um sistema de comunicação com escala planetária, muito
melhor do que qualquer coisa que os Terrans poderiam oferecer.
- Transmissores padrões?
- Para quê? Nós não somos gente das Torres. Nós não podemos controlar tempestades
e inundações, como os Aldarans. – A velha apontou.
- Talvez não, - Darius-Mikhail disse - mas com aviso prévio, moradias poderiam ser
preservadas e pecuária salva. Perdas seriam minimizadas e a ajuda poderia chegar mais
rapidamente.
Danilo disse: - Nós podemos estabilizar a erosão das encostas e tornar produtos
químicos de combate a incêndios disponíveis para todos os que precisam deles.
- Os assuntos dos Comynari, vai dom, não são nada para nós, nem nós somos para
eles. - Varinna disse rigidamente.
Uma pausa longa e desconfortável se seguiu. Danilo tinha a esperança de despertar o
seu interesse e sua esperança por um futuro melhor, não só para si, mas para todos de
Darkover. Ele sabia que poderia ser reticente, que suas propostas poderiam ser entendidas
com desconfiança.
Ainda assim, Danilo pensou que foi um bom dia, um começo. A mecânica de matriz
concordou em se encontrar com ele novamente. Eles estavam desconfiados, mas ele sentiu
que, sob a animosidade velada, despertara a sua curiosidade.
Darius-Mikhail acompanhou Danilo para a rua. - Espero que você não esteja muito
desanimado com sua recepção. Os outros entenderam bem o signifcado de sua visita, mas
todos eles têm bons motivos para agir com cuidado. Algumas pessoas comuns ainda nos
consideram como feitceiros ou pior e as Torres nunca foram amigáveis.
- Eu não achei que seria fácil. – Danilo disse.
- Mesmo assim, acredito em você. - Darius-Mikhail disse. - E se um dia você tiver um
lugar para mim, terei prazer em acompanhá-lo. - Ele olhou de volta para a casa. - Você
entende que eu tenho que ganhar o meu pão neste meio tempo. E isso signifca a
manutenção de um bom relacionamento com aqueles que trazem o trabalho para mim.
O D o m d e A l t o n | 134

- Zabal é um antigo nome honrado de família. – Danilo disse. - Sei que já o ouvi, mas
não me lembro onde. Será que você tem alguma ligação com o Comyn? Poderia ser um
parente distante?
A expressão de Darius-Mikhail ficou resguardada. - Tudo o que sei é que minha família
tinha relações com o Comyn, mas isso foi há muito tempo. Não vou pedir preferência ou
privilégio, apenas um trabalho honesto.
Danilo assentiu, entendendo muito bem a dificuldade de ser pobre e sem amigos em
uma cidade grande, orgulhoso demais para aceitar caridade ostensiva. - Então é trabalho
honesto que você deve ter, quando houver qualquer um a ser feito.
Darius-Mikhail inclinou a cabeça em um arco impecavelmente respeitoso e depois
seguiu seu caminho. Era um traço de precognição, Danilo se perguntou, ou apenas o fato
de ter gostado dele que o fez ter certeza de que eles se encontrariam novamente?
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Capítulo 13

Chamas... Chamas queimando em sua mente... Uma mulher, acorrentada, seu cabelo
fundido soprado por um vento tempestuoso, pairando... Subindo...
- Não! Misericordiosa Avarra, não!
Dor agonia... Queimando a mão...
- Não! - O grito, saindo de sua própria garganta, arrancou Danilo do sonho. Sua visão
estava turva com sobreposição de imagens, seu quarto familiar, uma noite escura... Uma
mulher, queimando eternamente, abrangendo os céus, inclinando-se, atngindo-o...
Sharra!
Não, não pode ser! A imensamente poderosa matriz, ilegal, que tinha sido usada em
uma grande destruição, a uma geração atrás, havia sido destruída. Regis tinha usado a
lendária espada de Aldones e destruído o portão de entrada de Sharra sobre Darkover.
Aos poucos, a imagem de Sharra foi ficando desbotada. O pulso de Danilo desacelerou
e ficou mais constante. A tensão do pânico que movimentava seus músculos diminuiu,
substituída por calafrios. As brasas de sua pequena lareira noturna sumiram em uma pilha
de cinzas. Inconscientemente, seus dedos se moviam no sinal de proteção da oração dos
cristoforos que ele não usava desde a infância.
Um sonho, devia ter sido um sonho. Mas não seu sonho, disso ele tinha certeza.
Embora ele e Regis tivessem sido prisioneiros enquanto Sharra queimava ao longo das
Hellers, ele mesmo nunca tinha sido forçado a entrar no círculo de trabalhadores de laran
que estavam tentando controlá-la. Lew tinha intervindo, quase ao custo de sua vida.
Lew.
O frio diminuiu, substituído pela forte certeza. Ele havia visto o sonho de Lew. Lew
tinha sido libertado de Sharra quando Regis destruiu a matriz que abrigava a forma de
fogo... Mas talvez a infernal imagem ainda persistisse na memória de Lew.
Sem hesitar, Danilo colocou suas roupas interiores, uma camisa linex usada com a
suavidade da flanela, colete e calças de lã de cordeiro e botas baixas. Ele tentou entrar em
contato com a mente do outro homem com seu laran, mas sem sucesso. Acendendo uma
vela, ele dirigiu-se para os aposentos de Alton.
Em torno dele, o Castelo Comyn jazia imóvel como rocha. Toda alma sensível ainda
estava na cama a esta hora. Quando Danilo se aproximou dos aposentos dos Altons, sentiu
uma vibração de energia psíquica, um toque de dor.
Vinde a mim, agarre-me para sempre...
E chorando em silêncio: Não, não!
Danilo começou a correr. Seu laran guiou-o infalivelmente. Uma porta assomou à
frente, uma sombra à luz vacilante da vela. Ele puxou a trava para cima, deslizando
O D o m d e A l t o n | 136

facilmente sob seu toque. Ele abriu a porta e correu através da câmara exterior até uma
série de salas menores e, de uma delas, ele ouviu, sentiu, em silêncio, um gemido
angustiado.
Essa era uma das partes mais antigas do Castelo. As paredes eram nuas, densas, de
granito cinza escuro com paineis delgados de pedra azul pálida que brilhavam fracamente,
dando ao quarto a aparência de uma caverna repleta de joia. Não uma caverna, Danilo
pensou, um túmulo, um lugar suspenso no tempo. Os móveis, uma enorme cama de dossel,
armários e cadeiras, eram velhos, possivelmente de antes de Lorde Kennard.
Danilo correu para a cabeceira da cama e deixou a vela sobre o criado-mudo ao lado
dela. Um cheiro de mel e calmantes ergueu de uma taça meio vazia.
- Lew! Lew, acorde!
Agarrando os ombros do homem mais velho, Danilo virou-o de costas. Nunca antes
tinha visto tal expressão de horror, de desespero no rosto de um ser humano.
- Lew! Sou eu, Danilo!
O que ele faria se Lew não respondesse, se ele tivesse ido muito fundo dentro de seu
pesadelo particular e ficado além do alcance humano? Danilo tinha ouvido histórias de
como, para salvar a vida de um homem ou de sua sanidade, uma leronis podia pegar sua
matriz em suas mãos. Não, isso era uma coisa que ele não faria. Kadarin tinha tomado a
matriz de Lew e o drogado para quebrar a sua vontade e forçá-lo dentro do círculo de
Sharra. O choque quase matara Lew. Talvez tivesse quase enlouquecido, o que não é de se
admirar.
Pobre alma atormentada, Danilo pensou. Gentilmente, ele abaixou Lew de volta no
travesseiro e alisou o cabelo úmido de suor. Seus dedos roçaram as cicatrizes nodosas
sobre a face e lábios, as linhas eram incisões profundas. Como você sofreu.
Danilo pegou a mão de Lew e embalou-a entre a sua própria. São Cristóvão sabia que
haviam encargos suficientes no mundo. Ao longo dos anos, alimentado pelo amor e
trabalho útil, ele tinha feito as pazes com suas próprias tristezas, todas menos uma, a única
ferida aberta, a morte de Regis. Mesmo assim, ele admitiu, havia descoberto uma espécie
de consolo. Ele também amou e foi amado.
A imagem de chamas se espalhando por todo o céu... A forma de uma mulher, rindo
enquanto o fogo consumia... Uma mente, pressionando a sua, a força terrível de algo
esmagando... Sua própria mente dando lugar...
Paz... Danilo orou. Portador dos Fardos, que a tristeza deste homem seja levada dele.
Que haja um fim à sua dor, uma cura, uma purificação...
Quanto tempo Danilo ficou sentado, cheio com essa mistura de tristeza pungente e
tranquilidade, ele não poderia dizer. No instante seguinte, ele sentiu uma agitação, um
movimento entre as mãos. Com um grito de cortar o coração, Lew puxou sua mão livre.
O D o m d e A l t o n | 137

- Não! Fique longe!


- Está tudo bem, Lew. Ninguém vai prejudicá-lo. Sou eu, Danilo.
- É você. Pensei que estivesse sonhando. - Lew cobriu o rosto com a mão. Por Avarra,
ela ainda está lá! Ela ainda está lá, na minha mente! Eu nunca vou ser livre, nunca!
Danilo não fez nenhuma tentativa de tocar o homem mais velho de novo. - A matriz de
Sharra foi destruída. Ela não pode prejudicá-lo novamente.
Como você pode ter certeza? Ela era real, eu lhe digo, era monstruosa, ela chamou-nos
para a loucura em Caer Donn...
Danilo se encolheu sob o poder do pensamento silencioso de Lew. Hesitante, ele
perguntou se poderia ver pedra da estrela de Lew.
Lew, como muitos de sua geração, usava sua matriz em um cordão em seu pescoço,
envolta em seda isolante. Ele colocou-a sobre o seu peito, desembrulhou-a e estendeu-a.
Danilo se inclinou para um olhar mais atento, cuidadoso para evitar qualquer contato físico
com a pedra. Sombras se deslocavam à luz brilhante azul.
Danilo sentiu o resíduo do laran de Lew, gravado ali por décadas de uso. Ali residia um
registro da força e coragem de Lew, mas também de auto-dúvida, pesar amargo, e,
correndo por todos eles como um rio de culpa, como um veneno. Culpa pelo que ele tinha
feito, culpa pela morte de sua primeira esposa que havia morrido para dar-lhes toda chance
de escapar.
Não havia nenhuma mancha de Sharra na pedra, embora as memórias pudessem
persistissem na mente de Lew.
- Não vi nenhum traço de Sharra em sua matriz. - Danilo disse, indicando a pedra de
Lew. - Temos que olhar mais profundamente.
Danilo não era um laranzu treinado numa Torre. Ele conhecia bem seus limites e não
tinha certeza que estava certo em seu julgamento sobre a jovem Alanna. Mas Lew
precisava desesperadamente de ajuda e, neste momento, estava aberto para ele. Esse
momento poderia não acontecer de novo.
Danilo não sabia o quanto sua compaixão, boa vontade e de a experiência de apoio
através doença do limiar de Regis poderia fazer neste caso. Mas ele tinha que tentar. Ele
próprio tinha sido vítima de laran quando invadiram de sua mente.
Hesitante, Danilo perguntou: - Você me permite examinar a sua mente também?
Os olhos escuros de angústia se encontraram. - Tem certeza de que quer fazer isso?
Você sabe o que vai encontrar?
- Eu sei alguma coisa sobre os abusos de laran. - Danilo obrigou-se a dizer. - Eu
também pensei que fosse enlouquecer, que não havia maneira de sair, que ninguém
aceitaria minha palavra. Eu estava errado, como ambos sabemos. Regis acreditou em mim.
O D o m d e A l t o n | 138

Ele acreditava em você também. Por uma questão do que cada um sofreu, você confia em
mim?
Por um longo momento a mente Lew ficou em silêncio. Talvez ele tivesse demais por
uma noite. - Você nunca foi falso comigo, Danilo Syrtis. - Ele disse em um sussurro áspero. -
Não acredito que haja alguma esperança para mim, mas se você está determinado, pode
tentar.
Lew estava de volta a sua normalidade e Danilo mudou de posição. Em vez de olhar
diretamente para Lew, Danilo fechou os olhos. Respirou profundamente para acalmar seus
próprios pensamentos e se permitiu sondar lentamente. Pensamentos e fragmentos de cor
e som passaram por ele. Ele pegou fragmentos de música e conversas, enfrentando uma
menina, uma criança, com olhos dourados assustados, uma sala com móveis de forma
geométrica estranha, uma lua única subindo acima de um mar calmo, grandes picos glaciais
tingidos de carmesim no crepúsculo, uma bela jovem com chamas no cabelo vermelho,
olhos de ouro salpicado de âmbar e uma expressão de ternura, o coração em ponto de
fusão...Marjorie! Uma cidade antiga...Caer Donn!
Não, Danilo pensou de maneira categórica. Sem saber como, guiou os pensamentos do
outro homem. Deixe o passado para trás. Não há nada que você possa fazer para mudar o
que aconteceu. Deixa para lá...
Como uma enchente, uma profunda repulsa se espalhou na mente Lew, dirigido não
ao círculo Sharra, mas para si mesmo.
Você não entende! Lew enfureceu-se com Danilo.
Danilo não podia imaginar o que Lew tinha feito e porque ele deveria olhar para si
mesmo com tal nojo. A catástrofe de Sharra, as mortes, a loucura, a ruína de uma bela e
antiga cidade, todos esses legados estavam no passado e nenhum deles tinha sido culpa de
Lew. Lew agiu honestamente, tentou o seu melhor para evitar o desastre, e ele próprio fora
uma vítima. Talvez, na forma das vítimas, ele se culpava por não ter feito mais, mas Danilo
não acreditava que essa fosse a única causa no homem mais velho para tanta auto-aversão.
Havia algo mais, alguma memória enterrada mais profundamente, que agora devorava a
alma de Lew como um câncer hediondo.
Não era de admirar que Lew houvesse passado por episódios de embriaguez nos anos
em que ele não mostrara seu rosto em Thendara.
Tremendo, com náuseas, Danilo encontrou-se de volta em seu próprio corpo. Uma luz
fraca tocou a janela ao leste. Ao lado dele, Lew tinha virado o rosto.
Isso não eram só cicatrizes por machucados, eram feridas purulentas que espalhavam
o seu veneno na mente de Lew. Eventualmente, isso iria matá-lo, seja de desespero
esmagador ou por leva-lo de volta ao esquecimento por embriaguez.
O D o m d e A l t o n | 139

- Lew, - Danilo disse gentilmente - escute-me. O que quer que que você tenha feito, o
que tenha sido feito a você, o está devorando por dentro. Eu sei um pouco sobre a vida
com pesadelos. Eu não... - Ele nterrompeu-se, procurando as palavras certas. - Não acho
que esse é o tipo de coisa a que se possa sobreviver sozinho.
Depois de um longo momento, Lew reagiu. - O que você sugere que eu faça? - Seu tom
indicava que ele tinha pouca esperança, que era um exercício inútil.
- Eu não sei por que essas lembranças voltaram à tona agora. – Danilo disse, mudando
um pouco de assunto. - Os Guardiões nos dizem que tais coisas podem permanecer
dormentes e serem despertadas quando alguma pessoa ou evento os desencadeia. É como
se, em algum canto de sua mente, o evento terrível ainda estivesse em curso.
Lew foi categórico. - Eu não preciso de você para me dizer isso. Vivi com essas
memórias por um longo tempo.
- Só há uma maneira de fazer as pazes com o passado... - Danilo capturou o
pensamento de Lew em seu olhar. - Não foi por isso que você bebeu tanto? Para esquecer?
Lew empurrou a cabeça para tras, como um cavalo assustado.
- Conheço apenas um lugar onde um homem pode encontrar a verdadeira paz e não
apenas no esquecimento dentro de uma garrafa. - Danilo continuou. - Onde até mesmo o
fardo mais pesado pode ser aliviado.
- Eu estudei em Arilinn há muito tempo, - Lew disse - mas não acho que a disciplina
que aprendi lá possa me ajudar agora.
- Eu não quis dizer uma Torre. Quis dizer o mosteiro em Nervasin, São Valentim-das-
Neves. Não, Lew, não digo isso porque fui criado na fé cristoforo. Estudei lá sim, assim
como Regis. Digo isso porque eu vi homens, cujas mentes e vidas foram despedaçadas,
encontrarem a esperança de novo. Mesmo que jamais pudessem voltar para o mundo
exterior, eles descobriram uma medida de contentamento. O passado não pode ser
alterado. Nós dois sabemos disso. Mas o que fazer com ele, está acima de nós.
- Eu prometi a Marguerida que iria ficar.
- A custo de sua própria sanidade? Lew, se há alguma chance de que os bons irmãos
em São Valentim possam ajudá-lo, não é mais importante? Como você pode estar a serviço
de Marguerida ou qualquer outra pessoa se você continuar assim? Quanto de sua própria
vida, suas próprias necessidades, você tem sacrificado pelos outros? E tem sido por amor
ou por culpa?
- Eu deveria perguntar-lhe a mesma coisa. – Lew respondeu. - Você, cuja vida inteira
foi dedicada à Regis Hastur.
Era um ponto válido, Danilo teve que admitir. Com uma voz de repente engrossada,
ele disse: - Eu nunca pedi nada a não ser servir a quem amei. Fiz isso com uma mente clara
e um coração aberto. Você pode dizer o mesmo?
O D o m d e A l t o n | 140

- Não sei qual é a diferença. - Lew foi até a janela. Seus ombros se levantaram e cairam
em um profundo suspiro. - Eu não quero me converter.
- Ninguém poderia pedir isso de você. O Santo Portador dos Fardos abre os braços a
todos os necessitados.
- É estranho, - Lew disse ainda olhando para o pátio - mas, neste momento, sinto uma
sugestão da paz no que você falou. Talvez seja apenas por saber que há alguém que
entende. Pela primeira vez em mais anos do que eu posso contar, me pergunto se não
poderia ser um caminho para sair dessa escuridão. Não sei quanto tempo será concedido a
mim, mas eu gostaria... Danilo, você sempre teve a mais clara escrita de qualquer um de
nós. Você pode escrever uma carta de apresentação para mim a... Como é que você o
chama, o chefe dos monges?
- Padre Mestre Conn. - Danilo inclinou a cabeça. - Eu ficaria muito honrado.
O D o m d e A l t o n | 141

Capítulo 14

Vários dias mais tarde, Lew estava ainda mais certo que a sugestão de Danilo de ir a
São Valentim valeria a pena. Danilo também estava certo de que os pesadelos tinham outra
raiz, mais profunda do que as memórias antigas de Sharra. Ele não podia continuar como
estava, isso era certo.
Com alguma apreensão, Lew foi informar a Marguerida de sua decisão. Ele a
encontrou em seu desjejum com Domenic e Yllana nos aposentos da família. O sol entrava
pelas janelas semi-abertas, brilhando sobre a paineis de madeira e enchendo o ar com
calor. Um vaso de rosas adornava o centro da mesa, rodeado por uma cesta meio vazia de
pães em espiral, uma tigela que contivera ovos cozidos, agora cheia de cascas quebradas, e
um prato de pêssegos cortados.
Embora a conversa tivesse parado abruptamente quando Lew entrou, ele notou que
sua neta rapidamente disfarçou um olhar de miséria, pelo movimento sutil de seus ombros
e a expressão exasperada ao redor dos olhos de Marguerida.
- Bom dia, vovô. - Yllana havia perdido sua hesitação inicial e olhou diretamente para
ele.
- Minhas desculpas pela interrupção. – Lew disse.
Marguerida suavizou. - É um prazer vê-lo, pai. Você não está interrompendo nada.
Venha, sente-se com a gente. Você quer tomar uma xícara de jaco? Alguma coisa para
comer?
Lew tomou o lugar indicado, ao seu lado direito, mas recusou qualquer bebida.
- Já que Domenic e Yllana estão aqui, talvez possamos ter nossa conversa. - Convinha
para Marguerida que eles estivessem presentes também. A conversa lhe daria tempo para
encontrar o caminho certo para dizer que ele iria deixa-la.
- Você quer falar sobre o assunto que me falou da noite do Festival? - Marguerida
perguntou.
Lew assentiu e então se virou para seus netos. - Vocês dois têm o dom Alton seria
irresponsável não adverti-los sobre a gravidade de seu uso.
- Ah, vô, a mãe nos ensinou sobre isso desde que éramos bebês! - Yllana disse,
revirando os olhos.
- Yllana, fale com respeito a seu avô. – Marguerida disse.
- Está tudo bem, Marja. - Lew disse, dando um sorriso para Yllana. - Eu sou o único que
tenho sido negligente e você, claro, não.
- É claro, eu falei com eles! - Marguerida se remexeu em sua cadeira, seus olhos
dourados nublando-se momentaneamente. Ela não tinha tido nenhum ensinamento e,
quando seus poderes despertaram na íntegra no seu retorno a Darkover, ela tinha se
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assustado. - Eu não tinha ideia do que eu era capaz e, se eu fosse pega desprevenida, ou
ficasse assustada...ou com raiva. Depois do que aconteceu comigo, eu não ia deixar meus
filhos crescerem despreparados.
- Meu pai sempre me disse sobre isso antes mesmo de sabermos se eu tinha o dom. -
Lew olhou para Domenic e Yllana. - A ira desenfreada de um Alton pode matar.
- Qualquer laran pode ser perigoso se for mal usado. - Domenic apontou. - Esse é um
dos primeiros princípios que aprendi em Neskaya. Nós juramos nunca penetrar na mente
de outros, somente para ajudar ou curar, e somente com o consentimento.
- Mas o laran comum permite contato apenas com outros telepatas. – Lew disse. -
Com o Dom de Alton você pode forçar o relacionamento com alguém, dotado ou não. Você
pode controlar não só os pensamentos de outros, mas também as ações, as emoções. - Ele
hesitou em usar a linguagem franca com sua jovem neta, mas a ignorância seria muito pior.
Ela era uma Alton e, portanto, capaz de grandes danos por ignorância ou descuido. -
Penetrar numa mente sem ser convidado seria um estupro psíquico.
Yllana vacilou, sem controle, e então voltou a ser ela mesma. Seu humor picante
anterior tinha evaporado e foi substituído pela seriedade. Sua expressão lembrava a de
Mikhail, e ela era, afinal, filha de Mikhail, com grande parte de sua firmeza de
temperamento.
Marguerida estendeu a mão para esfregar o pulso de sua filha, o leve toque de um
telepata. - Você não precisa ter medo de perder o controle e acabar abusando de alguém
dessa forma, chiya. Tenho toda a confança no seu bom senso. E no seu também, Nico.
Lew sentou-se, sentindo a ligação profunda entre sua filha e seus netos. Sua fé em si
mesmo claramente ajudou a pensar em si como responsável, para se tornar o melhor que
poderia ser. Ele não sabia como ela tinha conseguido uma conexão com seus filhos
enquanto se adaptava a Darkover, apoiando seu marido, e continuando seu próprio
trabalho.
Ele olhou para Domenic, com sua expressão cuidadosamente guardada, e Yllana,
brilhando constante. Eles não haviam sido ensinados como ele fora, o que não era
necessariamente uma coisa ruim. Ninguém tinha trovejado advertências contra eles ou os
obrigado a se submeter a uma provação, potencialmente fatal, a fim de provar o seu lugar
no Comyn. Suas mentes estavam ilesas, suas perspectivas abertas e sinceras. Talvez eles
não cometessem seus erros.
- Eu odeio temer o que poderia acontecer se eu perdesse o contole. - Yllana disse,
franzindo a testa. - Nunca entendi por que um grande talento como esse foi desenvolvido
para começar. É inútil na vida cotidiana de um telepata.
- Esse é um Dom muito antigo, da época dos programas de reprodução da Era do Caos.
– Lew explicou. - Quando eu era menino, era ainda mais raro do que é agora. Na verdade,
O D o m d e A l t o n | 143

só meu pai e eu éramos conhecidos por tê-lo. - Ele evitou mencionar seu irmão morto,
Marius, não vendo nenhum motivo em arrasta-lo para a tragédia. - Então, acreditava-se
que apenas um Alton pelo sangue poderia possuir o dom, mas as linhagens antigas foram
tão misturados que esse não é mais o caso.
- Sim, Illona Rider tem o dom de Alton, também. - Marguerida disse, acenando com a
cabeça. - Fiquei aliviada quando ela concordou em estudar em uma Torre, não deixando
dúvidas quanto o uso responsável de seu laran.
- Como ela é nedestra e tem o dom, - Domenic acrescentou - é provável que outras
pessoas fora do Comyn, talvez até mesmo aquelas que não conheçamos, o possuam em sua
linhagem, assim como outros Dons. - Ele olhou para sua mãe e Lew sentiu o aumento da
tensão entre eles.
- Isso seria horrível, não é? - Yllana disse. – Alguém usar o dom de Alton sem nem
saber que o tem. Eles podem matar ou incapacitar alguém mesmo sem querer! Oh, isso não
deve ser chamado de dom, mas sim de maldição!
- Não, você nunca deve pensar em si mesma como amaldiçoada! - Marguerida gritou,
sua voz ressonante como num alarme. – O laran é uma ferramenta como qualquer outra e
pode ser usado para o bem maior. Só temos de tomar cuidado para não usá-lo para fins
mesquinhos ou egoístas.
- Isso é um ideal digno, - Lew comentou - mas com muitos custos.
A cabeça de Domenic disparou. - Você quis falar de Alanna?
- Não, por que seria dela? - Lew perguntou, surpreso. - Eu falava de mim mesmo.
- Pai, você certamente não tem nada a censurar-se! - Marguerida colocou uma mão
em seu braço bom, de modo que Lew sentiu uma onda de preocupação. - Você é o homem
menos egoísta e mais auto-crítico que conheço. Darkover tem uma dívida enorme com
você.
Talvez, Lew pensou, mas a um custo que não posso mais suportar.
Por um longo momento, ninguém falou. Então Lew levantou-se para pegar o fio da
conversa. - Também me perguntei sobre o propósito original do Dom de Alton. Certamente,
ele foi feito para ser usado com o maior cuidado e deliberação e só em circunstâncias
desesperadoras.
- Uma arma quando tudo o mais falhasse? - Marguerida perguntou. Imagens da
Batalha na Antiga Estrada do Norte e suas consequências cintilaram em sua mente.
- A defesa final para o Comyn. - Lew acrescentou, embora as palavras trouxessem
pouco conforto.
A conversa durou apenas mais um pouco. Domenic respondeu a perguntas sobre sua
formação em Neskaya, tranquilizando Lew de que ele havia sido devidamente ensinado.
Yllana iria voltar com Katherine e Hermes Aldaran, no final da temporada.
O D o m d e A l t o n | 144

- Vamos sentir sua falta terrivelmente, - Marguerida disse - mas acredito que ela vai se
beneficiar da exposição a outras técnicas... Bem como ficar longe de casa com todas as suas
irritações.
Yllana revirou os olhos novamente, mas o rosto de Domenic apertou em uma
carranca, rapidamente reprimida.
- Isso me lembra. – Yllana disse, iluminando. - Tenho tentado pedir algo a você, mãe.
Térese e Belle... Sibelle Ridenow... Nós estamos com um plano maravilhoso! Não seria lindo
se Belle pudesse vir com a gente para o Castelo Aldaran? Nós poderiamos ter nossas aulas
juntas e fazer companhia uma a outra.
- Aulas? Será que ela tem laran? - Lew perguntou.
- Oh, sim! Ela tem o dom Ridenow da empatia, pelo menos, Térese e eu achamos que
sim. Uma vez, quando eu caí e raspei meu cotovelo, Belle gritou como se ela que tivesse se
ferido. Você deveria ver como ela é gentil e, quando está com os cavalos, ela sabe o que
eles estão sentindo.
Depois de um instante de silêncio constrangedor, Marguerida disse: - Certamente, o
assunto deve ser conversado com o pai do Sibelle.
- Lady Katherine disse que devíamos discutir isso com você primeiro. Ela vai dizer que
sim, se você concordar. Por favor, por favor! Vai ser tão bom ter amigos lá.
Marguerida olhou para Domenic. - O que você acha desse esquema? Como você se
sente sobre Sibelle indo embora?
Lew prestou atenção a falta de expressão de Domenic. - Pode ser a melhor coisa para
ela, ficar longe de casa, cuidada por alguém como Lady Katherine que viveu fora do mundo
e não precisa se curvar a seus parentes, como se ela não tivesse vontade e inteligência
próprias.
- Claro que não! - Yllana riu. - O que você acha que as meninas são? Coelho-de-chifres
covardes?
- Certamente não são tradicionais mulheres darkovanas! - Marguerida que começara a
tomar outro gole de jaco se engasgou e cuspiu.
- Eu não estou sendo leviano. - Domenic continuou. - Sibelle apenas concordou com a
proposta de seu pai porque ela pensou que não tinha escolha. Ela não deve ser punida por
tentar agradar a seu pai. Não vou casar com ela, como eu deixei muito claro para Dom
Francisco.
- Casar com ela? - O humor de Yllana passou de divertido a horrorizado. - Mas ela é
mais jovem do que eu e eu não sou crescida o suficiente.
- Você é mais madura do que muitas jovens ladies da sua idade, - disse sua mãe- mas
eu sempre pensei que seria bárbaro considerar que as mulheres servem para nada mais do
que produzir filhos e herdeiros.
O D o m d e A l t o n | 145

- Ou para as alianças e as vantagens que seus casamentos trazem para suas famílias. -
Domenic disse a contragosto.
- Acho que Domenic tem a razão. - Lew comentou. - Eu sabia que a damisela era
jovem, mas não tinha percebido que Francisco seria capaz de pressionar uma criança em
casamento.
Marguerida lhe deu um olhar afiado, escuro. Ela, pelo menos, não tinha escrúpulos
para suspeitar da malícia de Lorde Ridenow.
- Não vai ser o primeiro erro que cometo. - Lew disse, tanto para si quanto para os
outros. - E receio que não será o último.
- Pai, você não é responsável pelos erros desse homem horrível. - Marguerida insistiu.
- Nico, devo dizer que estou aliviada por você ter sua própria opinião sobre este assunto.
- Oh, eu tenho. E expressei com convicção.
- Você fez bem. - Marguerida estava claramente satisfeita. - Bem, então, vou fazer a
minha parte e pedir a ajuda de Katherine para dar um bom futuro para Sibelle.
Yllana bateu palmas de alegria. - Estamos todas indo embora no final da temporada,
então. Posso ir dizer a Térese agora?
- Você pode ir, mas deve encontrar uma maneira de manter isso em segredo até as
coisas serem resolvidas com Dom Francisco. - Marguerida respondeu. - Não seria bom para
ela se essa notícia chegasse aos ouvidos dele levadas pelo vento.
- Por favor, me perdoem, - Domenic disse, levantando-se com sua irmã e saindo da
sala - mas eu também tenho negócios a tratar. Mãe, avô.
Sem os dois jovens, o quarto parecia vazio, a luz do sol ainda estava suave. Suspirando,
Marguerida virou-se para Lew. - Não sei o que deu em Nico ultimamente. Ele não quer
ouvir.
- Ele pareceu bastante razoável para mim. - Lew comentou.
- Isso é porque ele estava em seu melhor comportamento, mas se você tivesse estado
aqui antes, poderia pensar muito diferente.
Lew raramente tinha sentIdo Marguerida tão angustiada com o comportamento de
seus filhos. Tentando ser solidário, ele disse: - Como você fazia na sua idade, se bem me
lembro. Durante vários anos, nem Diotima e nem eu podíamos fazer você ver o sentido nas
coisas.
Uma indicação de tempestade a caminho passou pela mente de Marguerida, pois
durante a maior parte de sua infância Lew tinha sido um pai frio e distante e ela revidara
tornando-se rebelde e teimosa. Desde seu retorno a Darkover, no entanto, eles se
tornaram mais próximos do que qualquer um deles tinha sonhado ser possível.
- O rapaz vai encontrar seu próprio caminho, na hora certa. – Lew disse. - Ele segurou-
se bem na outra noite, às portas do Castelo, e está aprendendo mais o tempo todo.
O D o m d e A l t o n | 146

Marguerida pegou sua xícara de jaco e olhou para a superfície parada. - Uma coisa era
ele querer passear por Thendara. Agora ele meteu na cabeça que quer ir a todas as Torres,
tentando mobilizar os Guardiões em uma busca por telepatas latentes. Eu não sei de onde
ele tirou essa ideia. Talvez a partir das histórias de Danilo sobre Regis.
- Seu desejo de viajar se desenvolveu em uma idade adiantada, se bem me lembro.
- Suponho que você quer dizer que é tarde demais para mudar seu temperamento
básico. - Marguerida disse. - Ou o meu.
- Não estou dizendo que Domenic deve ir sozinho e desarmado onde quer que lhe
agrade nos Sete Domínios. – Lew disse. - Em vez de tirar a liberdade que ele tanto almeja,
obviamente, porque não incentivá-lo a fazer isso com segurança? Dê a ele os conselhos que
você teria atendido quando tinha a idade dele.
- Na idade dele eu já tinha saído de casa e ido para a Universidade! Eu era uma adulta.
- Marguerida parou no meio da frase. Um canto de sua boca se curvou para cima. - Tenho
me comportando como um cruzamento entre um alto inquisidor e uma mãe sufocante, não
tenho? Faz muito tempo desde que fui jovem e rebelde. Tinha quase esquecido como era.
- Você fez um excelente trabalho com Domenic. - Lew disse. - Chega um momento em
que cada jovem águia deve testar suas asas. Ele não vai decepcioná-la. Assim como você
nunca me decepcionou.
Com um grito, ela levantou-se e o envolveu em seus braços. Eles tinham há muito
resolvido a dor de seus primeiros anos, mas, mesmo assim, sentiu-se profundamente
tocado com sua capacidade de ouvir as palavras não ditas em voz alta.
O coração de Lew afundou, mas não havia nenhuma maneira de evitar o que deveria
vir em seguida. Tão gentilmente quanto podia, ele disse a ela que tinha decidido ir para o
mosteiro de Nervasin por tempo indefinido.
- Eu tinha a esperança de persuadi-lo a ficar aqui ao final da temporada Conselho, em
vez de retornar a Armida. - Marguerida protestou. - Francisco pode ter desistido da ideia de
casar com sua filha com Nico, mas não acha que ele vai tentar outra coisa?
- Então você e Mikhail vão ter que lidar com ele, pedindo conselhos daqueles que
vocês confiam. - Lew levantou a mão. - Não sou insubstituível e nem o único homem em
Darkover com um pouco de experiência diplomática.
Marguerida mudou de tática. - Não é perigoso para um homem da sua idade viajar
para as montanhas? Você não está desenvolvendo alguma nova vocação religiosa, não é?
- Eu não penso assim. – Ele disse. - Quanto aos perigos da estrada, viajei por toda
Darkover toda a minha vida e terei competentes guias Renunciantes. Lamento lhe deixar
em um momento em que você tem todo o direito de esperar a minha ajuda, mas algumas
coisas não podem ser infinitamente esquecidas.
- Que coisas?
O D o m d e A l t o n | 147

Cuidadosamente, ele disse: - Nós vivemos tempos sombrios, você e eu. Algumas
dessas sombras ainda se apegam a mim. No silêncio e isolamento de São Valentim, posso
encontrar alguma paz.
Eu não sei quantos anos mais serão concedidos a mim. Não quero deixar esta vida com
medos, culpas sem resolver, perguntas sem respostas. Se eu não for agora, quando terei
outra chance?
Os olhos dourados de Marguerida se arregalaram um pouco e Lew percebeu que ela
tinha captado seu pensamento. Ela respondeu com uma demonstração de amor e
preocupação.
O que vou fazer sem você? Ela falou com sua mente.
- O que você sempre fez, minha querida. Encarar o futuro com coragem e
determinação. Lembre-se que você não está sozinha. Cerque-se de pessoas de sabedoria e
discernimento, mas particularmente daqueles que vêem as coisas de forma diferente de
você.
- Mas nenhum tão discreto em suas crítcas quanto você. - Marguerida sorriu, um flash
de brilho como o sol saindo de trás das nuvens de tempestade. Quando ele se levantou, ela
deslizou uma mão através da dobra do cotovelo e caminhou com ele até a porta. - Você vai
se cuidar, não é? E voltar para a próxima temporada do Conselho?
- Eu... Eu não posso dizer quanto tempo eu vou ficar fora.
- Bem, então, até breve... Até que você resolva a questão com você mesmo, certo?
Lew se inclinou para dar um beijo em sua testa. - Você nunca vai deixar de estar em
meu coração, minha Marja.
- Como você vai estar no meu.

~o ⭐ o~
Marguerida ficou especialmente feliz por ter uma desculpa para se ausentar de seus
deveres como castelã do Castelo Comyn para fazer uma visita à sua amiga, Katherine
Aldaran. As duas mulheres se conheceram há alguns anos atrás, quando o marido de
Katherine, Hermes, voltara para Darkover, pouco antes da retirada do Império. Como
Marguerida, Katherine não tinha crescido em Darkover. Ambas eram mulheres educadas e
tinham uma rebeldia natural contra as vidas confinadas da maioria das mulheres
darkovanas.
Além disso, Katherine também era uma artista, uma pintora que entendia a paixão de
Marguerida pela música. Com seu temperamento e beleza brilhantes, cabelo pretos até a
cintura e a pele pálida como leite, Katherine teria atraído a atenção em qualquer lugar. Em
Aldaran, onde vivia a maior parte do ano, ela se deparou com menos restrições do que ela
O D o m d e A l t o n | 148

teria nas terras baixas. Os Aldarans foram por muito tempo conhecidos como rebeldes e
doentes inconformistas.
Com evidente prazer, Katherine recebeu a visita de Marguerida. Katherine e sua
família ainda ocupavam os alojamentos dos Storn no castelo, ao lado das suítes Aldaran. A
sala de estar tinha sido redecorada apenas uma geração atrás por Laureta Lanart-Storn,
pintada em tons de verde primavera e a tapeçaria que dominava uma parede mostrava um
grupo de senhoras que trabalham juntos em um projeto de bordado. A cena fez Marguerida
pensar no equivalente darkovano de uma abelha numa colmeia. Poderia ter sido o retrato
de um evento cotidiano ou um lembrete sutil do lugar tradicional das mulheres, mas
Katherine havia comentado que as mulheres sempre trabalharam nos bastidores, a gerir o
poder polítco através de tais associações.
As duas amigas sentaram em poltronas para uma conversa confortável. De um lado,
uma pequena mesa de madeira cinza-pálida esculpida tinha um bule, xícaras de vidro lindas
e um buquê de pequenas flores amarelas em um vaso de vidro. O cheiro de limão delicado
das fores misturado com o aroma ligeiramente picante da bebida. Katherine encheu copos
de chá de ervas e ofereceu um para Marguerida.
- Eu aceito um - disse Marguerida - já que você não tem qualquer café escondido aqui.
Katherine balançou a cabeça. - Só chá de verdade. Às vezes acho que eu mataria por
um copo de café.
Marguerida colocou os pés em cima da banqueta baixa, encostou a cabeça no encosto
da cadeira e suspirou. Um silêncio confortável caiu sobre as duas enquanto bebiam o seu
chá, fingindo que era outra coisa, apenas por um momento. Nenhuma era mulher do tipo
que gosta de ficar parada por muito tempo.
- Eu sei que Yllana lhe contou do plano das meninas para fugir com Sibelle Ridenow. –
Katherine disse.
- Sim, ela contou. - Marguerida assentiu, deixando seu copo pela metade. - Não há
dúvida de que a temporada com você, longe de seu pai, beneficiaria a menina, mas e sobre
você e sua família? Isto é, presumindo que Dom Francisco concorde em primeiro lugar.
Katherine embalou xícara em suas mãos e soprou o vapor na superfície, a testa
enrugada no pensamento. - Encontrei Sibelle uma ou duas vezes, de passagem, vendo-a
como não mais do que uma amiga da minha filha. Não há nenhum problema em levar ela.
Ela parece uma criança doce, obediente, e o Castelo Aldaran tem espaço mais que
suficiente. Mas...
- A questão é - Marguerida terminou o pensamento tácito de sua amiga – se o que fez
com que nossas filhas viessem com essa ideia foi o fato de quererem realmente desfrutar
da companhia de Sibelle ou se foram incentivadas a fazê-lo? É algum truque novo de
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Francisco? - Katherine era uma das poucas pessoas de fora da família que sabia sobre a
proposta de aliança de casamento e seu resultado.
- Tenho que a considerar essa possibilidade - Katherine disse - e não vejo que
vantagem Francisco possa tirar de nosso cuidado com sua filha. Além de tirá-la de suas
mãos, algo que ele poderia fazer muito bem apenas enviando-a de volta para Serrais.
- Ele poderia estar esperando por uma aliança com Aldaran, como a que ele propôs
para nós?
- Se for isso ele simplesmente terá que esperar até Sibelle ter idade suficiente para
fazer sua própria escolha. - Katherine respondeu.
Marguerida riu. - Sempre que os jovens são colocados juntos em uma certa idade, eles
vão se apaixonar um por outro. Eles pensam que estão amando quando na verdade estão
nas garras de hormônios furiosos.
- No entanto, conseguimos sobreviver a esses anos, casadas e encontrando satisfação
com base em algo mais profundo. - Katherine disse, sorrindo. Seu casamento com Hermes,
apesar de sua própria quota de difculdades, continuou a ser uma fonte de alegria e
satisfação. - Não tenho dúvida de que vai acontecer com Sibelle em seu próprio tempo.
Será meu trabalho ter certeza de que ela terá um senso sólido o suficiente de seu próprio
valor para insistir em ser tratada com respeito por todos os envolvidos. Incluindo seu pai.
- Não vai ser uma tarefa fácil. - Marguerida refletiu. - Sibelle tem anos de
condicionamento para vencer.
- Yllana vai ajudar. – Katherine disse. - Eu seria menos otimista sem ela. Você e Mikhail
tem feito ela pensar em si mesma como uma pessoa forte e competente. Ela e Térese serão
os melhores exemplos possíveis para Sibelle.
Antes que Marguerida pudesse responder, ela ouviu uma batida tímida na porta. A
convite de Katherine, Sibelle Ridenow entrou, seguida um passo atrás por um criado de
libré verde e ouro. Sibelle, de cabelos vermelho-ouro que tinham sido trançados em um
estilo simples adequado para uma jovem garota, usava uma blusa de criança de lã fina
bordada com flores e pássaros-da-chuva nas longas saias.
- Seu acompanhante pode esperar lá fora. - Katherine disse, apontando para o servo a
fechar a porta atrás de si. - Venha aqui e se sente, chiya. Sabe por que pedi que viesse aqui?
Sibelle olhou após a partida do servo e depois puxou uma terceira cadeira como lhe
fora indicado. Ela olhou para Marguerida com um olhar de tal desconforto que Marguerida
teve vontade envolver a pobre criança apavorada em seus braços. Francisco estava
atormentando-a novamente, como Nico havia descrito na noite do Festival? Que tipo de
instruções ele tinha dado a menina? O pensamento instintivo e maternal de Marguerida
cimentou a sua determinação para tirar Sibelle das suas garras.
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Entre elas, Marguerida e Katherine queriam colocar a menina à vontade. Sibelle falou
com alegria sobre suas novas amizades. Embora ela não falasse isso em voz alta, porque,
sem dúvida, ela sabia que era impróprio criticar casa de sua família, ela tinha sido
desesperadamente solitária. Ela não tinha sido autorizada a brincar com os filhos dos servos
de seu pai que eram considerados inferiores dela e haviam poucos visitantes de sua idade e
sexo. Muitas vezes, os livros e os animais haviam sido seus únicos companheiros.
Enquanto Sibelle falava, Marguerida sentiu o laran da jovem, ainda não de todo
formado e inexperiente, mas presente. Como Yllana disse, Sibelle parecia ter a sensibilidade
empática dos Ridenows. Era uma pena, Marguerida pensou, que Francisco fosse tão
desprovido da capacidade de experimentar as emoções dos outros ou ele nunca teria agido
de tal forma, insensível e manipulador. Ela nem perguntou porque Sibelle foi tão infeliz em
casa, fechada na mansão enorme.
Por suas refexões com Katherine, Marguerida sugeriu perguntar a Sibelle se ela tinha
qualquer objeção em visitar e passar uma temporada no Castelo Aldaran. Para seu espanto,
Sibelle explodiu em lágrimas.
Antes que Marguerida pudesse reagir, Katherine, que estava mais perto, abraçou
Sibelle. - O que está acontecendo, criança?
- Ele não me quer! Eu também não quero ele e agora ele me odeia!
- Não, eu tenho certeza que ele não a odeia. - Ao falar suavemente, Katherine trocou
um olhar de cumplicidade com Marguerida.
- Há um certo desconforto, você sabe, - disse Marguerida em tom de confidência,
falando de coisas que só as mulheres podiam entender - quando os pais simplesmente não
sabem como lidar com suas filhas.
- Sim, - Katherine pegou a ideia - você sabe como os homens são, como ficam
impotentes diante de umas poucas emoções.
- Ele...ele vai ficar com raiva se eu chorar. - Sibelle chorou. Claramente, ela nunca tinha
considerado que ela não poderia estar errada.
- E se por acaso você imaginasse seu próprio país, sendo tomado por gatos-demônio
de Ardryn. – Katherine disse.
Marguerida não sabia se estavam levando a noção muito longe, pois certamente a
menina nunca tinha ouvido falar de Ardryn, mas "gatos-demônio" soou um pouco forte. - É
exatamente por isso que o Comyn tantas vezes promove casamentos com seus filhos
adolescentes. Ele salva uma grande quantidade de desgaste a todos os envolvidos. Você
conhece minha filha adotiva, Alanna?
Talvez fosse perigoso usar Alanna como um exemplo, mas Marguerida poderia
verdadeiramente dizer que ela tinha dado a Alanna uma casa muito melhor do que sua
própria mãe jamais poderia.
O D o m d e A l t o n | 151

- Eu lhe prometo - Katherine estava dizendo - que, se você passar a viver com a gente,
Hermes não vai ficar com raiva de algumas lágrimas.
À menção de Hermes, que tinha sucedido Lew como Senador de Darkover, e que sabia
como lidar com negociações difíceis, Marguerida sentiu-se esperançosa. A maneira franca
de falar de Katherine pode ser muito abrasiva para Francisco, orgulhoso como ele era e
rápido para se ofender, e, obviamente, da opinião de que as mulheres estavam sujeitas ao
comando de seus parentes masculinos.
- Kate - disse ela, para uma Sibelle consideravelmente mais feliz - acho que devemos
fazer o seu marido falar sobre isso com Francisco. Tenho certeza de que Francisco será mais
receptivo a proposta se vier de um homem tão respeitado como Hermes.
- Claro, Marja, acho que você está certa. Quando estou com você, é fácil esquecer
quão recalcitrantes e sexistas os homens do Comyn podem ser. Pelo bem de Sibelle, seria
melhor não provocar seu pai. Hermes é a pessoa certa para fazer a proposta.
Nenhuma das mulheres se surpreendeu quando, um par de dias depois, Térese e
Yllana correram para suas respectivas mães, com a notícia de que Sibelle iria se juntar a elas
no Castelo Aldaran.
O D o m d e A l t o n | 152

Capítulo 15

Com a temporada do Conselho chegando ao fim, Lew fez seus planos finais para deixar
Thendara. As guias renunciantes que ele havia contratado na Casa da Guilda de Thendara
completaram seus arranjos. Ele sentiu uma onda de inquietação, como se tivesse ficado
dentro de casa por muito tempo, um anseio de estar fora dos limites do Castelo e da
cidade, sentir o vento no cabelo e um cavalo entre os joelhos, olhar de novo nas alturas
insondáveis.
A despedida foi tão difícil quanto ele temia. Sob suas palavras de esperança e
comportamento alegre, Marguerida lutou contra as lágrimas. Mikhail parecia sombrio e
Domenic, que havia sido persuadido por sua mãe a adiar suas próprias viagens para as
várias Torres até o ano seguinte, irradiava ressentimento e tristeza. Alanna não estava à
vista e Yllana já havia partido na longa viagem para Aldaran.
A viagem passou sem intercorrências. Ainda a algumas léguas de Nervasin, Lew teve
um vislumbre da antiga cidade, clara e pálida na luz da manhã. As paredes cinzentas do
mosteiro se projetavam como ossos antigos através do gelo eterno. A trilha seguia para
baixo no vale e eles pararam um tempo para almoçar e descansar. As guias renunciantes
mantinham Lew quente e bem alimentado, pressionado-o a tomar chá quente, lembrando-
o da necessidade de líquidos extras na altitude. Depois eles montaram de novo,
prosseguindo ao longo da ampla estrada bem percorrida que levava a cidade de Neves.
Eles chegaram às portas de Nervasin ao anoitecer. Chuva turvava o céu, anunciando a
queda rápida da noite. Dentro, eles subiram ao longo de ruas de paralelepípedos, estreitas
vielas sinuosas e, finalmente, nas ruas íngremes, cobertas de neve que levavam ao mosteiro
de São Valentim.
Lew e seu grupo fizeram uma pausa diante dos portões internos, onde a estátua de
São Cristóvão, o Portador dos Fardos, curvava-se sob o peso do mundo ao lado da imagem
menor de São Valentim. Lew estremeceu de frio, apesar das camadas de lã e pele.
A mais velha das duas renunciantes puxou a corda atada pendurada ao lado da
lanterna nas portas e Lew ouviu o repicar lento e profundo de um sino. Poucos minutos
depois, um homem baixo e digno com uma túnica marrom saiu para cumprimentá-los.
- Eu sou o Irmão Tomas e lhes dou as boas vindas a São Valentim. - O monge puxou
seu capuz para revelar uma cabeça careca, um rosto enrugado e felizes olhos azuis. -
Também as saúdo, minhas irmãs, mas lamento não poder permitir que vocês entrem aqui,
nem mesmo na casa de hóspedes.
- Nós respeitamos a sua regra, pois temos uma similar em nossas próprias Casas da
Guida. – A velha Renunciante disse. - Não temos necessidade de sua hospitalidade esta
O D o m d e A l t o n | 153

noite. Nossas irmãs nos esperam na cidade. Dom Lewis, concluímos nosso contrato com
você. Nós vamos deixá-lo aos cuidados deste bom monge.
Passando pelas portas atrás do Irmão Tomas, Lew encontrou estábulos confortáveis
para seu cavalo e o animal de carga carregando seus pertences pessoais. Viu mantos e
figuras encapuzadas correndo silenciosamente através do pátio. Alguns deles pareciam
muito jovens para serem monges e Lew supôs que eram aprendizes. Danilo frequentara a
escola ali, assim como Regis.
O monge não perguntou sobre os motivos de Lew, apenas o levou à casa de hóspedes,
um edifício de pedra quadrada separada a uma pequena distância do mosteiro principal.
Um fogo aquecia a sala comum e uma refeição simples já havia sido colocada sobre uma
mesa de cavalete. Dois homens usando coletes de pele de carneiro estavam prestes a
sentar-se. Com a chegada de Lew, largaram a refeição e ajudaram a levar seus pertences
dos estábulos para a pequena sala que seria seu quarto. O cozido estava crocante e o pão
de nozes-atado ainda estavam quentes quando todos voltaram. Eles ficaram olhando
hesitantes enquanto Lew serviu-se de uma porção.
- Por favor, sentem-se para comer. - Lew pediu a eles. - Vocês já atrasaram seu jantar a
fim de ajudar um homem velho.
Eles olharam um para o outro e Lew lembrou de quanta ou quão pouca reverência
essas pessoas das montanhas tinham para com o Comyn. Com alguma hesitação, eles
concordaram em se juntar a ele.
Mais tarde, Lew acomodou-se na cama estreita em seu quarto com uma sensação de
alívio profundo. Ele não se preocupou em acender a pilha de lenha na lareira. A parede do
quarto tinha apenas uma fração da espessura da parede da sala comum e ele estava quente
o suficiente sob o cobertor de lã macia.
Apesar de seus ossos doerem de cansaço, Lew ficou acordado por algum tempo antes
do sono tomar conta dele. Um brilho fraco, a luz de uma lua única, projetava-se através do
vidro grosso e enrugado da janela. Raramente ele tinha estado cercado por um silêncio tão
profundo. Thendara, como qualquer cidade grande, nunca ficava realmente silenciosa. O
Castelo Comyn sempre teve algum zumbido distante de atividade. Aqui, no isolamento do
mosteiro, nenhum cão procurava o lixo nas ruas, nenhum homem cambaleava para casa
depois de estar em uma taverna. O imenso silêncio meditativo da montanha impregnava o
ar.
Em tal silêncio, as batidas de seu coração tornaram-se mais lentas e suaves, até
parecia que ele podia ouvir outras coisas entre os pulsos rítimicos. Vozes fortes nesse
silencioso ambiente reverberariam fracamente através da rocha.
Flashs de memória, imagens de brilho fugaz, o sacudiram desde a medula até seus
ossos como uma vibração vinda das profundezas de suas células e os ecos de um grito. Seu
O D o m d e A l t o n | 154

próprio grito, ele pensou, mas tão distorcido, arrancado de sua garganta há tanto tempo e
que tinha deixado sua voz permanentemente rouca. Sua própria voz, da agonia
cambaleando em sua mente quando suas barreiras mentais cederam sob a pressão
implacável de esmagamento. Sua mente dobrada, em colapso, até que ele se tornou poeira
e cinzas.
Mesmo agora, no nível mais profundo de seus ossos, uma parte de si mesmo se
contorcia de angústa, se defendia, lutava...
Eu sobrevivi, estou aqui novamente. Nenhuma mancha de Sharra permanece em
minha pedra da estrela. Por que então ele não poderia abafar essas memórias?
Por que então essa outra voz, esse eco entre ecos, ainda clama em sua mente? Ele a
ouvia a grande distância, como se ele estivesse fora, ouvindo o grito inarticulado, de
vergonha, de violação...
Não!
E agora outra voz veio a ele, a sua própria, repetindo com força, hedionda, inexorável.
Você vai esquecer o que viu... Esqueça a bola de fogo, o relâmpago mental... Não foi o que
aconteceu aqui hoje... A batalha foi incomum, nada mais...
Em sua lembrança, ele continuou, enviando pesados comandos mentais, tomando o
controle, plantando seu comando profunda e sólidamente. Esqueça...
O que havia sido feito a ele em Caer Donn tinha sido feito contra a sua vontade, feito a
todos que tinham sido apanhados na loucura que foi Sharra. O que ele tinha feito com os
soldados Terran depois da Batalha na Antiga Estrada do Norte, tinha sido deliberado, uma
escolha totalmente consciente. Suas mentes haviam permanecido abertas à sua, indefesas.
Uma ou duas vezes ele sentiu uma centelha de consciência contra ele quando usou o Dom
de Alton.
Não importava por que ele tinha feito isso, quão nobre eram seus motivos, ou mesmo
se o futuro de Darkover dependia disso. Conscientemente, ele usou seu laran para entrar
nas mentes daqueles homens, ele havia torcido suas vontades e deformado suas memórias.
Ele havia violado a mente de outra pessoa, da mesma forma que ele mesmo já havia
sido violado.
Onda após onda de auto-aversão o sacudiu, seu corpo estremeceu. Um gosto amargo
encheu a sua boca. Se ele pudesse ter pego a faca em sua mochila, ele teria tirado sua
própria vida.
Não, ele pensou quando um espasmo de náusea renovada o sacudiu. Ele não merecia
por um fim à dor. Uma morte rápida e a paz do túmulo eram para homens dignos e não
para ele mesmo.
Em algum lugar uma voz gemeu em angústia sem palavras, uma voz que ele deveria
poder reconhecer. Em algum lugar pulmões lutavam para respirar, um coração idoso
O D o m d e A l t o n | 155

vacilou mas continuou, o coto de um braço queimado com fogo, há muito esquecido, doeu.
Um velho segurou seu braço pontudo.
Eventualmente, os músculos exaustos se soltaram e os tremores diminuíram. O
silêncio denso da montanha, a luz bruxuleante das luas distantes infltravam na câmara. Ele
respirava levemente e dentro dele quase podia ouvir um sussurro de voz...
Descanse agora, largue o seu fardo. Você está em uma casa de paz...
No final, ele adormeceu, e nenhum sonho veio.

~o ⭐ o~
Na manhã seguinte, Lew acordou com o toque dos sinos no pátio. Um par de meninos
adolescentes, vestidos como os outros monges, trouxeram-lhe uma tigela de mingau
fumegante e potes de mel, creme e geleia de ameixa, e um jarro de chá quente, fortemente
adocicado. Seus dois colegas da noite anterior já haviam partido, sem qualquer explicação
de por que tinham vindo. Esperando por uma audiência com o Padre Mestre, Lew sentou-
se para o desdejum. Talvez fosse o ar da montanha gelada ou o quanto onde ele tinha
descansado, quando o sono chegara, o fato é que ele comeu com um apetite que não tinha
a anos.
Os noviços voltaram com a mensagem de que o Padre Conn iria vê-lo depois das
orações da manhã, e ele foi convidado a se juntar a eles na capela.
A neve caía através do pátio. Lew colocou seu manto e fez o seu caminho até o edifício
do mosteiro. A capela ficava na parte mais antiga da estrutura, com centenas de anos, e
Lew tinha ouvido uma vez que era uma questão de orgulho por cada pedra ter sido cortada
e colocada ali por mãos humanas. Nenhum laran tinha sido utlizado em sua construção.
Dentro da capela uma única luz brilhava no santuário para o Santo Portador dos
Fardos, gentilmente inundando toda a câmara. A luz do dia penetrava através de mosaicos
antigos, montados a partir de pedaços de vidro de cores brilhantes. Como Lew estava em
um lugar em um banco bem atrás, seus olhos se adaptaram à luz. Ele conhecia música por
toda a sua vida, fosse cantada em baladas em canções de guitarra ou ryll, ou nas
composições formais de Marguerida, mas raramente tinha ouvido tais crescentes melodias
quase de êxtase.
Vozes masculinas, uma mistura de baixo, tenor doce, e sopranos puros elevados dos
meninos, ergueu-se e caiu no coro. As palavras eram quase tão antigas que poderiam ser
quase confundidas como de um idioma irreconhecível:

Um Poder criador
Céu e terra,
Montanhas e vales,
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As trevas e a luz...

Ouvindo, Lew teve uma estranha sensação de deriva no tempo. Ele poderia estar com
qualquer idade, sete ou setenta anos, poderia ser o agora ou daqui a cem anos, ou a
quinhentos anos atrás. Essas pedras, essas vozes, essas palavras eternas, permaneceram as
mesmas. A neve na montanha, o chão de pedra sob seus pés, a oscilação lenta da luz de
vigília...
Ele viu suas próprias tristezas como algo passageiro, não mais do que ondulações no
firmamento, uma parte do tempo. Em uma década, ou talvez duas, ele estaria em paz para
sempre, sua dor e luta esquecidas como se nunca tivessem existido, bem como suas
alegrias.
O último acorde morreu em silêncio. Lew prendeu a respiração. Então alguém tossiu,
sons de pés embaralhados e um corrimão de madeira solta rangeu. Os rapazes mais jovens
cochichavam entre si e então saíram.
Os monges se moviam com uma graça silenciosa, até mesmo os mais velhos. Lew
sentou e observou-os sair, vislumbrando seus rostos. Jovens e velhos, bem-formados ou
caseiros, cada um refletia a mesma serenidade interior. Um fervor se agitou dentro dele, o
desejo de reviver aquele momento de graça transcendente.
Perto do fim entrou um homem alto e angular cuja roupa não era diferente de
qualquer um dos outros monges, mas que se mantinha um pouco distante. Ele parou ao
lado de Lew.
- Eu sou o Padre Conn. Poderia me acompanhar ao meu gabinete onde podemos falar
em particular?
A voz do monge era profunda e melodiosa, como se o hino ainda cantasse através
dele. Lew o seguiu ao longo de uma passagem curta, revestida com paineis de madeira
escura muito antigoa, e através de uma porta. O quarto era graciosamente arrumado e
agradável, com paredes claras e janelas de vidro com vista para o pátio. Estantes alinhadas
com fileiras de volumes encadernados em couro, alguns deles muito antigos, e mais livros
espalhados. Ele se sentou numa mesa de madeira surrada. O único ornamento era uma
tapeçaria esculpida de um homem carregando um bebê rindo em seus ombros, o Portador
dos Fardos do mundo, com um menino nos braços.
Lew se sentou em uma das cadeiras simples, sem saber como começar. Ele não queria
usar sua posição como Comyn para ganhar a admissão na comunidade, e ele ainda não
conseguia pensar em como contar sua história sem revelar sua identdade ou o seu crime.
- Você veio aqui em busca de paz, Lewis-Kennard Alton. - Padre Conn disse. A luz do
dia tornou luminosos seus olhos cinzas, quase prata. - Como muitos antes de você. Tenha
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certeza, nada que você diga vai sair destas quatro paredes. Eu não sou juiz, apenas um
peregrino companheiro como você, apenas um servo. Como posso aliviar o seu fardo?
Lew balançou a cabeça, pensando que ele era um tolo por ter chegado tão longe
quando não havia nenhuma ajuda, não havia perdão possível. Ele não podia voltar para
casa sabendo o que tinha feito. Ele tinha um ônus a pagar para todos os humanos.
Como ele podia falar disso a Marguerida, que havia feito o mesmo, acrescentando um
peso a ela com um Dom como o seu? Ou a Danilo, que tinha sofrido de tormento psíquico
nas mãos de Dyan Ardais? Ou a qualquer pessoa das Torres, cujo primeiro e mais básico
juramento era: Nunca entrar em outra mente, exceto para salvar, ajudar ou curar, e
somente com consentimento?
Não, seu crime estava além do perdão, o mais vil ato imaginável para outro telepata. A
resposta certamente seria expulsá-lo e condená-lo a cegueira mental total.
No entanto, ao olhar firme do Padre Mestre, Lew encontrou um vislumbre de
esperança. Lentamente, com erros muitos estranhos, ele começou seu conto. Muitas vezes,
ele fez uma pausa para superar a vergonha. Padre Conn não o pressionou, apenas
continuou sentado com a mesma expressão de escuta, sempre compassivo. As palavras
saíram, enquadrando as imagens na mente de Lew. Com cada sílaba, ele sentiu um raio
infinitesimal da doença em sua alma.
- Não sei como viver com o que fiz. - Lew concluiu. - Só sei que eu não posso continuar
como antes.
- Não, isso está muito claro. – Padre Conn disse. - Num novo começo, o que você faria
da sua vida?
- Um amigo sugeriu que eu poderia encontrar paz aqui. Acho que ele quis dizer o alívio
da confissão. Mas nada muda! - Lew gritou com uma súbita onda de paixão. - Não posso
voltar ao passado e desfazer o dano nas mentes desses homens. Mesmo que eu encontre
uma maneira de rastrea-los fora do planeta, como pode haver perdão para mim? Como eu
poderia viver com tal culpa?
Depois de um longo momento, Padre Conn continou observando-o em silêncio, até
que Lew ficou inquieto, querendo saber o que o monge pensava dele. - Este mosteiro deve
seu início a uma pergunta muito parecida com a sua. - Padre Conn disse. - Como a culpa
insuportável pode ser suportada? Como é a vergonha insuportável ou a dor que envia
homens à beira da loucura? Como é a vida para ser vivida quando toda a esperança se foi?
Um tremor passou através do corpo de Lew. O velho monge tinha falado seus mais
profundos medos, suas perguntas mais básicas. Lew sentia que as profundezas de sua alma
haviam sido expostas, mas não havia o menor tom de censura ou recriminação naquelas
palavras.
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Lew olhou para a parede oposta, onde estava o santo curvado sob o peso do mundo e
todas as suas tristezas. A madeira entalhada tinha sido levada para as sombras, os olhos
cegos do Santo cheios de suave tristeza, com tal compaixão, que Lew teve que desviar o
olhar.
Criados para adorar os quatro deuses do Comyn, Lew nunca tinha feito uma reflexão
séria sobre qualquer outra fé. Os cristoforos foram os primeiros a dizer que rezar para a
força divina aliviaria as suas cargas. Será que as preces eram respondidas? Ele mesmo
poderia encontrar alguma felicidade, algum poder maior do que seus próprios esforços
falhos?
- Você não quer passar algum tempo conosco e ver se pode descobrir qual a resposta
para suas dúvidas? – Padre Conn perguntou delicadamente.
Como se fosse possível! - O que devo fazer aqui?
- Meditar. - Padre Conn disse. A resposta surpreendeu Lew, ele acrescentou. - Orar,
mas só se você se sentir movido a fazer isso. A oração não é necessária. O necessário é
trabalhar. Ouvir. Caminhar. Dormir. Deixar a solidão e a paz deste lugar crescerem em você,
pouco a pouco.
- Eu...eu gostaria.
Um sorriso curvou os cantos da boca do velho monge. - Então vamos começar.
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LIVRO II

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Capítulo 16

Mais cedo, naquele mesmo ano, o inverno relutantemente aliviou seu poder sobre a
aldeia de Rock Glen. Aninhada num vale ao longo da estrada entre Nervasin e as selvagens
Colinas Kilghard, a comunidade pouco a pouco estava se preparando para a primavera,
quando as rotas para as Terras Altas abririam. Homens reparavam arreios, preparavam os
chervines, empacotavam e classifcavam suas peles. Crianças corriam gritando através das
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casas, cansadas da inatividade, de cantar baladas e contar histórias, até que suas mães
frenétcas as enxotara para o exterior.
Um dia, caminhando entre montes de neve, em camadas compactadas, o homem que
se chamava Jeram voltou da verifcação de suas armadilhas. Dois dos rapazes mais velhos o
acompanhavam levando um par de peles de coelhos-de-chifre. Um rubor saudável cobria
suas faces expostas e seus olhos brilhavam com o exercício. Jeram parou, colocando em
cada passo dado a impressão que eles tinham feito um bom passeio.
As bordas da neve tinham amolecido no calor da tarde. Embora o gelo fosse congelar
novamente naquela noite, era um bom sinal. Os animais nas armadilhas estavam magros,
suas reservas de gordura quase esgotadas. Logo, os animais menores começariam a passar
fome ou adoecer. Pelo menos os lobos ainda não tinham sido levados a atacar o gado da
aldeia.
Antes disso, Jeram pensou, os primeiros brotos verdes surgiriam através da neve para
alimentar os animais.
Tendo atraído à atenção dos meninos da aldeia, Jeram fez uma pausa, exalando
nuvens de vapor na respiração. Numa pequena elevação ele olhou para a aldeia. A fumaça
subia das chaminés e caminhos cruzavam o espaço aberto das casas para os celeiros e
galpões de gado. Tudo parecia confortável e arrumado.
Era, pensou ele, uma boa vida. Mesmo no inverno havia agricultura de melões-de-
gelo, centeio, trigo vermelho resistente. E, em seguida, vegetais de raiz e couves durante o
verão, caravanas na primavera e no outono, e ao longo das estações, as canções e histórias,
o conhecimento e fofocas, os nascimentos e as mortes e os milhares de detalhes da vida.
Ele nunca tinha sonhado com um lugar onde a excitação signifcava que o bebê de Sarita
tinha finalmente dado seu primeiro passo ou que o chervine de Collin havia dado à luz a
filhotes gêmeos.
O brilho do dia doía nos olhos. Ele piscou e limpou a garganta. Os meninos brincavam
com ele, rindo sobre uma piada que tinha dito uma dúzia de vezes durante os meses de
inverno escuro. Um conto sobre um astronauta, um habitante das cidades secas e uma
leronis, muito obsceno de maneira que ele ficou ainda mais vermelho quando eles pegaram
seu olhar.
- Chega de vadiagem. – Ele lhes disse. - Vamos começar com aqueles coelhos-de-chifre
que pegamos ou eles vão ficar duros como o couro. - Com toda a probabilidade, a carne
estaria seca e fibrosa, não importando por quanto tempo eles a cozinhassem.
Jeram se virou, olhando para a neve diante de seus pés. Sem aviso, o mundo caiu para
o lado. Em sua visão, as pegadas na neve se alongavam como se fossem geleia. A neve
parecia um cinza ondulado, sua respiração estava ruidosa, cores se mesclavam e retorcia.
O D o m d e A l t o n | 161

Novamente ele sentiu uma pressão terrível contra sua mente, viu um rosto que ele
não reconhecia. Olhos brilhavam, queimando através de sua carne insubstancial.
- Quem é você? - Jeram engasgou. - O que você quer comigo?
O chão oscilou, cambaleou e sumiu de debaixo de seus pés. Por um instante, ele
pareceu deixar seu corpo, pairando no espaço. Ele tentou gritar por ajuda, mas não tinha
voz. O cinza toldava sua visão, condensando na escuridão...
- Jeram! Jeram, diga alguma coisa, por favor! Você se machucou? Qual é o problema? -
Liam, o mais velho dos dois, estava segurando os ombros trêmulos de Jeram. A testa do
menino estava franzida em preocupação.
Como se levasse um empurrão, Jeram voltou a si. Ele estava deitado de costas na neve
sem lembrar de ter caído. Cautelosamente, ele mexeu os dedos do pé, verificando a
sensação e o controle. Depois de determinar que conseguia mover todas as quatro
extremidades e não havia nenhuma dor ao longo de sua coluna, ele sentou-se.
- Está tudo bem. - Ele disse aos meninos. - Estou bem. - E rezou para que ninguém
percebesse sua mentira.
O menino mais novo, mais tímido do que seu irmão, olhou para Jeram. Ambos
pareciam desconfados.
- O que foi, rapazes?
- Você...Você gritou algo em outra língua. Isso não soou como nenhuma coisa que já
ouvi.
Jeram ficou de pé e passou a mão trêmula sobre sua face áspera com barba. Esse era o
momento que ele sempre temera, quando ele abaixaria a guarda. Tentei usar todas as fitas
do corticator de aprendizagem durante o sono e agora deixei escapar algo em Padrão
Terran.
- Não me lembro do que eu disse. - Ele tentou manter o tom casual. - Devo ter usado
um dos dialetos bizarros que aprendi ao longo dos anos. Não contei a voces que eu viajei
muito quando era jovem? É por isso que eu tenho esse sotaque horrível.
Jeram riu, como se fosse uma piada. Então, para demonstrar que tudo estava bem, ele
pegou as carcaças de coelho-de-chifre e desceu a encosta.
- Seria melhor se vocês não dissessem nada sobre isso, especialmente para Morna. -
Ele disse depois de um tempo. - Vocês sabem como são as mulheres. Ela só vai se
preocupar sem motivo.
Os meninos tinham idade suficiente para lembrar do ocorrido, quando Morna, uma
jovem viúva, tinha ajudado um estranho semi-congelado que apareceu na aldeia e mais
tarde se casou com ele no costume de companheiros livres das montanhas. Eles
encolheram os ombros, claramente satisfeitos em deixar os mais velhos com suas maneiras
excêntricas.
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Nevou de novo naquela noite e as rajadas de vento encontraram seu caminho através
de cada fenda nas paredes da casa. Jeram adormeceu nos braços de Morna, os dois
aquecido por peles de animais que ele mesmo havia capturado. Ele acordou depois em
silêncio ouvindo as batidas de seu coração. O quarto, um dos três quartos da família de
Morna tinha sido confortavelmente arrumado, mas ele ainda o achava estranho. Movendo-
se cuidadosamente para não acordá-la, ele deslizou para fora da cama e foi até a janela.
Através das persianas, viu duas das quatro luas, inundado o vale com sua luz pastel. Ele se
perguntou se um dia iria se acostumar com mais de uma lua balançando entre um tapete
de estrelas desconhecidas...
Eu escolhi este mundo, eu escolhi esta vida. Sou darkovano agora e todo o resto é um
passado que está enterrado.
O homem que fora Jeremiah Reed que tinha chegado a Darkover, muito maltratado
em corpo e cansado em espírito, obscuramente cínico. Ele tinha visto os homens e os
animais das montanhas como valiosas ferramentas estratégicas.
O que ele estava fazendo aqli, resmungara, naquele mundo fechado Classe-D onde os
nativos resolviam suas diferenças cortando uns aos outros em pedaços sangrentos com
espadas? O chefe do Quartel General Terran queria uma força totalmente armada,
incluindo especialistas em tecnologia como Jeram, por algum motivo insondável.
Jeram foi convocado para uma ação de rotina na Antiga Estrada do Norte, e havia
começado como qualquer outra missão oficial. Os figurões locais estavam causando
problemas, eles haviam dito.
Então ele leu as ordens. Livrar-se de todo o Conselho intrometido e elitista com um
único golpe.
A equipe trabalhou em conjunto com um grupo vindo da base de Aldaran para
delimitar o âmbito do território e armar a emboscada. Tudo tinha ido de acordo com o
plano, como Jeram muito bem se lembrava. Os moradores tinham muito menos armas,
lutando apenas com primitivas espadas afiadas. Eles não deveriam ser uma ameaça.
Mas então...
Então, ele tinha acordado na lama manchada em sangue, com a cabeça doendo de
uma forma que não se parecia com nenhuma outra dor que ele havia sentido antes. Sua
mente lhe dizia que o inimigo tinha sido maior em número e mais hábil do que qualquer um
esperava. Algo tinha acontecido com ele, algo que fazia seu estômago se contorcer e ter um
aumento de ácido que vinha até sua garganta cada vez que tentava pensar sobre isso.
Os outros membros da equipe haviam voltado para o espaçoporto de Thendara e
esperaram a última nave do Império que deixaria Darkover. Parte dele desejava sair deste
planeta crepuscular, congelado e esquecido por Deus, a mesma parte que lhe dizia que a
O D o m d e A l t o n | 163

derrota tinha sido um erro de cálculo, nada mais. Em vez disso, por razões que não
entendia completamente, ele fugiu para fora da cidade. Ele nunca saberia porque fugiu.
Era um risco estúpido. Se os governantes nativos, o Comyn, descobrissem que ele
havia participado da emboscada, eles provavelmente iriam executá-lo à vista de todos.
A sorte estava com ele, pois ninguém o parou ou perguntou nada. Ninguém pediu sua
identidade. Sua formação linguistica lhe permitiu passar bem o suficiente, explicando seu
sotaque como um dialeto distante. Com sua pele clara e cabelo escuro cor de ferrugem, ele
se misturou com a população nativa.
Os dias se passaram, semanas, não, eles chamavam de decanatos aqui. Ele encontrou
trabalho de uma forma ou de outra, fazendo amizades casuais na estrada. Com as
contusões da batalha desbotando e a ferida no ombro esquerdo curada, ele sentiu cair um
véu dos seus olhos. Pela primeira vez, ele viu o mundo ao seu redor.
Darkover era frio, sim, mas assim eram as Montanhas Rochosas, onde ele passou a
maior parte de sua infância. O grande Sol Vermelho lançava tons gloriosos de cor sobre o
mundo. O ar era limpo e cheirava a ervas selvagens, pinho e resina, e breu das árvores.
As Hellers, uma cadeia de montanhas vasta e imponente, o atraíam. Algo em suas
alturas puras e cristalinas, a beleza das geleiras puxava sua alma. Talvez esses picos
lembrassem de tempos mais felizes da infância ou talvez fosse algo em sua aridez
intransigente que era arrancada do artifício de sua vida anterior. Aqui, finalmente, era um
lugar onde ele poderia colocar o passado para trás e começar de novo.
Tinha sido uma coisa simples mudar seu nome para algo mais darkovano, encontrar
uma aldeia além dos caminhos percorridos, onde ele poderia viver sem muitas perguntas.
Ninguém sabia que ele estava ali. O Império nunca viria atrás dele com a acusação de
deserção. Seus vizinhos nunca suspeitaram de nada de seu papel na Batalha da Antiga
Estrada do Norte. Sua nova vida teria sido perfeita se não fosse por seus pesadelos.
Os sonhos eram uma coisa, mas esse episódio, com sua desorientação persistente e
perda de consciência, era outra coisa. Se havia algo seriamente errado com ele, poderia ser
fatal. Não havia drogas antepiléptcas no planet, ou quaisquer tratamentos eficazes para um
tumor cerebral ou meningite.
Se eu adoecer, eu morro. Ele pensou quando escorregou de volta para a cama. Depois
do que ele tinha passado, o pensamento não tinha poder para assustá-lo. Moribundo, foi
fácil escapar, pois todos os homens ao seu redor tinham morrido na Antiga Estrada do
Norte. A vida nova é que fora a parte mais difícil.
- Jeram... Oh deuses, Jeram! Responda-me!
Ele sentiu o ar frio em seu rosto, as mãos em seus ombros, o ranger de um colchão em
suas tiras de couro de suporte abaixo dele. O mundo movia-se doentiamente. Sua visão se
diluía em intervalos irregulares, dissolvendo-se...dissolvendo-se com ele...
O D o m d e A l t o n | 164

Ele ouviu a voz novamente, uma voz de mulher, uma voz que ele deveria conhecer,
mas as palavras já não faziam sentido. Sons tomaram conta dele, ressoando através de seus
ossos. O mundo girou violentamente, como um pêndulo, para cima e para baixo, para
dentro e para fora. Levou ele, mais e mais longe a cada balanço, em cada respiração
ofegante. Estrelas riscavam ao passar por ele, os átomos, as vibrações com o ritmo do
universo...
- ...Doença do limiar, eu apostaria minha vida nisso... - Disse outra voz, uma voz de
mulher, mas que ele não conhecia.
- Como pode? - Foi Morna: braços quentes à noite, os olhos cinzentos brilhando de
tristeza e paixão. - O homem é de bem, eu sei, mas como isso pode acontecer com um
andarilho vindo do nada?
- Eu não sei, talvez algum filho não reconhecido. - A estranha mulher falou de novo,
com o tipo de voz autoritária e rápida que Jeram associava com enfermeiras e educadoras
de sua infância. Ela disse algumas palavras em casta que ele não entendeu. - ...famílias por
toda estas montanhas têm laran, foi isso que eu ouvi.
Mas eu não sou um de vocês... A respiração de Jeram veio em suspiros com o esforço
de conter o seu segredo, segurando as palavras fatídicas.
Ele se sentia a deriva no espaço entre as estrelas distantes, congelado, como poeira de
cometa, que se estende cada vez mais fino com o vento interestelar cósmico...
No momento seguinte, ele encolheu a um tamanho microscópico, tecidos e células, a
padronização intrincada incolor de mitocôndrias, o flash e brilho de reações bioquímicas, as
partículas cristalinas semelhantes a doenças. Quase que ele poderia chegar a tocá-los,
alterar um receptor no revestimento da proteína de um vírus, transformar a partícula
virulenta em uma partícula inerte, inofensiva. Eles se agarravam ao seu corpo como o
pólen, como grãos de poeira.
- Ele está pior, não é? - Morna novamente. Morna, doce e amorosa.
- Temos de levá-lo para a Torre Nervasin. - Disse a segunda mulher, uma corrente de
medo em sua voz. - Se a leronis não puder ajudá-lo, então ninguém poderá.
Um copo foi pressionado contra seus lábios. Ele não tinha percebido como sua boca
estava seca e rachada. – Beba. - Disse uma voz e ele obedeceu.
Fogo foi lavado através de seu corpo. Queimou com ele. Sua visão rasgou-se em
chamas.
- Mais.
Ele engoliu de novo e de novo por insistência da voz, até que ele se dissolveu na
escuridão e não sentiu mais nada.
Jeram descobriu-se sentado em um pônei.... O pônei de Morna, pela pele manchada
de cinza.
O D o m d e A l t o n | 165

Estavam numa estrada bem conhecida a uma curta distância das paredes íngremes
que levavam a Nervasin. Ele devia estar entrando e saindo da consciência por algum tempo,
porque ele se lembrou de trechos da trilha e das árvores, o cheiro de estrume de cavalo, o
ranger oleado do couro da sela, o vento puxando a sua barba.
Então isso foi real, não outras alucinações.
- Está se sentindo melhor agora? - Ele reconheceu a voz da mulher, mas não seu rosto.
Ela freou sua própria montaria, um robusto pônei das montanhas, um baio com pontos
pretos e crina pesada, com franjas do comprimento de suas pernas, que parecia um cavalo
em miniatura. Outros chervines vinham em uma linha levando suprimentos e talvez
produtos de comércio também.
- Eu...eu acho que sim. – A montaria de Jeram continuou, seguindo o outro animal. –
Temo que não me lembre de como cheguei aqui, ou quem você é, a propósito.
A outra mulher girou na sela e ele deu uma boa olhada em seu rosto, boca agradável,
cabelo ruivo cortado curto como os de um menino. Algo em seus olhos lembrava Morna,
um primo, talvez. Ela se apresentou como Nerita n'ha Caillean, sem qualquer nome de
família.
- Lembro-me de estar doente. Você veio para cuidar de mim. - Jeram tentou resolver o
mistério através do caos de impressões, algumas das quais eram claramente alucinações.
Embora não se sentisse delirante, ele sabia de meia dúzia de agentes biológicos e químicos
que podiam produzir o que ele tinha vivenciado. E, até onde ele sabia, nenhum deles havia
sido importado para Darkover.
- Você passou por um surto da doença do limiar. Um muito forte, por sinal. - Nerita
disse, cutucando seu cavalo para frente. - Nunca ouvi falar de acontecer com alguém tão
velho como você. Geralmente acontece na adolescência e também com os membros do
Comyn. Você já foi testado para saber se tem laran?
Inferno, eu nem sei o que é isso!
- As pessoas na Torre vão resolver isso - disse ela - ou então Morna vai tirar minha
pele. Aqui estamos.
Eles chegaram a um pequeno povoado situado em uma pequena depressão. Acima
dele, lençois de gelo glacial brilhavam ao sol. A aldeia nada tinha de especial, casas de
madeira e pedra, galpões para o gado, uma pousada com seus estábulos, uma ou duas
tavernas para fazer negócios com os viajantes da cidade. Ele tinha uma vaga lembrança de
ter passado por essa aldeia antes, parando para uma caneca de chá, em uma manhã fria
antes de ir para a cidade, onde Morna esperava agulhas de costura e sal. Ele havia
observado em silêncio enquanto os homens da aldeia vendiam as peles, melões-de-gelo,
botões esculpidos de chifres de chervine e cobertores tecidos de sua pele macia.
O D o m d e A l t o n | 166

Ele tinha resolvido seguir a cautela. Fique tranquilo, sem ser notado, não faça nada
para atrair perguntas.
Ele balançou na sela, seu estômago inquieto. Talvez essa fraqueza fosse devida a sua
recente doença ou a simples falta de alimentos. Ele não conseguia se lembrar de ter
comido.
Nunca antes ele se sentira tão exposto. O menor gesto ou movimento de sua mão,
uma palavra inadvertida em uma linguagem não-darkovana poderia traí-lo. Outra coisa
agora fluiu através de sua visão a cada pensamento, sua cor e sua respiração.
O que é esse laran que Nerita falou e que agora afundou suas garras nos recessos mais
profundos de minha mente?

Antes de sua visão vacilar, Jeram avistou uma estrutura alta na extremidade da aldeia,
nem uma fortaleza, nem torre de vigia. No entanto, ele sentiu, não sem defesa. Uma
barreira invisível a mantinha afastada do resto do mundo.
- O que...o que é esse lugar? - Ele perguntou.
- O fim da nossa jornada, a Torre Nervasin. - A guia Renunciante respondeu. - Talvez
você não tenha ouvido falar dela, pois essa gente não gosta de chamar a atenção para si
mesmos. Eles podem emprestar a sua magia em tempos de necessidade, para a cura além
do que podemos fazer. Caso contrário, eles são tão reclusos e castos como os monges
Cristoforo.
Um homem em roupas comuns, porém quentes, com o rosto cuidadosamente neutro
e seu cabelo vermelho com listras cinzas, se encontrou com eles na base da Torre. Depois
de ouvir a história de Jeram, ele o levou para dentro.
Assim que a pesada porta de madeira se fechou atrás deles, uma inundação de
impressões agrediu os sentidos de Jeram, cores, girando e derretendo umas nas outras, a
música de uma dúzia de diferentes direções, o fogo queimando e então diminuindo para a
chama estreita de uma vela...
Ele estendeu uma mão para se firmar e quase caiu. As paredes de pedra ao redor dele,
parcialmente cobertas com paineis de madeira esculpidos, dissolveram-se em pó cintilante.
- Está tudo bem, nós vamos cuidar de você. - O homem disse com uma bondade que
surpreendeu Jeram. - Não tenha medo, não somos feiticeiros, como eles nos chamam na
cidade, nem somos demônios ou homens amaldiçoados pelos deuses. Tudo o que fazemos
aqui vem do poder da mente treinada humana. Venha agora, firme-se em mim. Vou levá-lo
para um lugar onde você poderá descansar e então nossa leronis vai falar com você.
Leronis... Isso devia ser uma espécie de vidente, uma cartomante ou uma farmacêutica
talvez. O que estava errado com ele, essa doença do limiar, a última coisa que ele precisava
era da intervenção de um feiticeiro nativo.
O D o m d e A l t o n | 167

Algo puxou a memória de Jeram, alguns detalhes das fitas de aprendizagem. Ou algo,
talvez, que ele tinha ouvido durante seu breve tempo parado em Aldaran.
Algo sobre poderes extra-sensoriais, mulheres e homens, em clausura e treinados de
formas inimagináveis para usar esses talentos. Era isso o que estava errado com ele, Jeram
se perguntou, alguma doença psíquica? Ele não tinha PES detectáveis. Ele fora testado
como parte de suas avaliações de colocação do Império. Todos sabiam que tais talentos,
presumindo que eram genuínos e não uma fraude elaborada, eram úteis...
Jeram não conseguia pensar direito. O mundo estava diminuindo de novo, torcendo e
se fundindo. De alguma forma, seu corpo conseguiu continuar, impulsionado pela pressão
suave em seu ombro.

Capítulo 17

Antes de sua visão vacilar, Jeram avistou uma estrutura alta na extremidade da aldeia,
nem uma fortaleza, nem torre de vigia. No entanto, ele sentiu, não sem defesa. Uma
barreira invisível a mantinha afastada do resto do mundo.
- O que...o que é esse lugar? - Ele perguntou.
O D o m d e A l t o n | 168

- O fim da nossa jornada, a Torre Nervasin. - A guia Renunciante respondeu. - Talvez


você não tenha ouvido falar dela, pois essa gente não gosta de chamar a atenção para si
mesmos. Eles podem emprestar a sua magia em tempos de necessidade, para a cura além
do que podemos fazer. Caso contrário, eles são tão reclusos e castos como os monges
Cristoforo.
Um homem em roupas comuns, porém quentes, com o rosto cuidadosamente neutro
e seu cabelo vermelho com listras cinzas, se encontrou com eles na base da Torre. Depois
de ouvir a história de Jeram, ele o levou para dentro.
Assim que a pesada porta de madeira se fechou atrás deles, uma inundação de
impressões agrediu os sentidos de Jeram, cores, girando e derretendo umas nas outras, a
música de uma dúzia de diferentes direções, o fogo queimando e então diminuindo para a
chama estreita de uma vela...
Ele estendeu uma mão para se firmar e quase caiu. As paredes de pedra ao redor dele,
parcialmente cobertas com paineis de madeira esculpidos, dissolveram-se em pó cintilante.
- Está tudo bem, nós vamos cuidar de você. - O homem disse com uma bondade que
surpreendeu Jeram. - Não tenha medo, não somos feiticeiros, como eles nos chamam na
cidade, nem somos demônios ou homens amaldiçoados pelos deuses. Tudo o que fazemos
aqui vem do poder da mente treinada humana. Venha agora, firme-se em mim. Vou levá-lo
para um lugar onde você poderá descansar e então nossa leronis vai falar com você.
Leronis... Isso devia ser uma espécie de vidente, uma cartomante ou uma farmacêutica
talvez. O que estava errado com ele, essa doença do limiar, a última coisa que ele precisava
era da intervenção de um feiticeiro nativo.
Algo puxou a memória de Jeram, alguns detalhes das fitas de aprendizagem. Ou algo,
talvez, que ele tinha ouvido durante seu breve tempo parado em Aldaran.
Algo sobre poderes extra-sensoriais, mulheres e homens, em clausura e treinados de
formas inimagináveis para usar esses talentos. Era isso o que estava errado com ele, Jeram
se perguntou, alguma doença psíquica? Ele não tinha PES detectáveis. Ele fora testado
como parte de suas avaliações de colocação do Império. Todos sabiam que tais talentos,
presumindo que eram genuínos e não uma fraude elaborada, eram úteis...
Jeram não conseguia pensar direito. O mundo estava diminuindo de novo, torcendo e
se fundindo. De alguma forma, seu corpo conseguiu continuar, impulsionado pela pressão
suave em seu ombro.
Eles passaram por um corredor estreito, uma sala comum e até uma escada em
caracol. Aqui e ali, globos suavemente brilhantes haviam sido colocados em suportes nas
paredes. Pareciam luzes solares, mas isso era impossível, Jeram pensou atordoado.
Darkover era um mundo de baixa tecnologia, não era?
O D o m d e A l t o n | 169

Jeram se apoiou pesadamente no corrimão e continuou. Movementar-se diminuía a


desorientação. Depois de apenas alguns minutos que pareceu muito mais tempo eles
chegaram a uma porta.
O guia de Jeram ergueu um trinco e abriu a porta para o que era certamente um
quarto, uma parede curva com a forma externa da Torre, janelas de vidro
surpreendentemente belas, uma cama e um armário com bacia e jarro vidrados de
cerâmica azul no canto. Ele tropeçou para a cama que parecia pronta para recebê-lo.
Quando ele fechou os olhos, a torção em seu estômago desapareceu.
Algum tempo depois, ele se tornou consciente da sede e da presença de outro ser
humano no ambiente. Uma mulher em um longo manto vermelho, suas feições
parcialmente sombreadas por um lenço diáfano da mesma cor, sentada em um banquinho
ao lado de sua cabeça, estava inclinada sobre ele. Ela poderia ter qualquer idade entre vinte
e quarenta anos, com o rosto liso, pele pálida como leite, peculiares olhos incolores e
cabelo cor de cobre brilhante.
Ela sorriu em incentivo. - O pior da doença do limiar passou. O que não entendo é por
que você não estava melhor preparado. Certamente, alguém deve ter avisado do perigo
quando seu laran despertou.
Jeram sentou-se, esperando que o mundo girasse e oscilasse, mas permaneceu
normal. Seu corpo estava bem o suficiente, sem lesão ou fadiga. Apesar de sua sede, ele se
sentia extraordinariamente bem, sua visão clara e firme.
O que ele podia dizer? Quanto menos, melhor.
- Eu não sabia que tinha.
Ela olhou para ele com uma estranha intensidade. No fundo de sua mente, ele sentiu
um toque, um sussurro, como se ela estivesse falando dentro de seu crânio.
Uma memória veio rugindo, uma pressão esmagadoramente terrível em sua cabeça,
ele mesmo se desintegrando sob seu peso, lutando com cada último resquício de vontade e
desespero.
Um rosto com os olhos queimando...
No instante seguinte, o toque-borboleta desapareceu. A mulher continuou sentada, o
olhando com uma expressão que ele não sabia decifrar. - Humildemente peço desculpas
pela intromissão. – Ela disse. - Sou a Guardiã aqui e você tem estado sob os meus cuidados.
Você estava perto da morte quando a Renunciante o trouxe para nós. Entrei em sua mente
apenas para salvar sua vida.
- Você... - salvou minha vida, Jeram pensou e soube no fundo de si mesmo que era
verdade. Ele lutou para achar as palavras certas. - Não estou entendo nada. Quando você
diz que me sinto bem eu sei que é verdade e também sei... - que entrar na mente de outra
pessoa contra a sua vontade é uma espécie de estupro.
O D o m d e A l t o n | 170

Como exatamente ele sabia disso?


- Entre telepatas, é realmente uma falta grave. Quando falamos de uma mente para
outra, no entanto, não pode haver nenhuma pretensão, nem dissimulação. Se eu puder... -
Ela estendeu uma mão. Seus dedos eram graciosos e esbeltos, e, Jeram notou com um
pequeno choque, haviam seis deles.
Apesar de todos os nervos gritarem em negação, ele se obrigou a ficar parado. - Vá em
frente. Você salvou a minha vida. Faça o que precisar.
Ele fechou os olhos, esperando outro ataque. Em vez disso o que veio foi um toque
fresco e suave como uma pluma. Uma sensação como a de seda deslizou através de sua
mente e ele pegou o lampejo distante de uma antiga harpa galêsa. Ele não tinha ouvido tal
instrumento, exceto em gravações, desde que era uma criança. A melodia, meio lembrada,
meio ouvida, fizeram seus olhos arderem.
Ela está na minha mente, ele pensou e desta vez não houve pânico.
Sou Silvana, Guardiã da Torre Nervasin. Desde a infância fui treinada para combinar
ressonâncias com outras mentes de forma a não causar dano.
Somente os longos anos de treinamento de Jeram o impediram de pular de susto, pois
ele tinha ouvido seus pensamentos.
- Abra os olhos, homem que se chama Jeremiah Reed. - A voz de Silvana era sem
censura nem surpresa. Ela se sentou em seu banquinho, olhando-o com olhos cuidadosos.
Por um longo momento, nenhum dos dois falou.
O coração palpitou em seus ouvidos. Ela havia lido sua mente, ela devia saber quem
ele era.
- Nós das Torres não julgamos um homem pela sua origem ou pedigree como se ele
fosse um cavalo de corrida. – Silvana disse. – Apenas pela qualidade de seu caráter. Já vi o
suficiente de você para acreditar que é um homem bom. Enquanto você estiver aqui, estará
sob minha proteção. Que ninguém mais diga nada. - Silvana concluiu, claramente
acostumada a obediência inquestionável. - Uma outra questão me preocupa. – Ela
continuou. - Claramente, você não estava preparado para o despertar de seu laran. Aqui na
Torre podemos ensiná-lo a controlar esses poderes para que eles, por sua vez, não o
controlem.
Ele pegou, como um sussurro de um outro quarto, o pensamento da Guardiã, um
telepata destreinado é um perigo para si mesmo e todos ao seu redor.
- E não há alguma maneira de eu me livrar dele?
- Por que você desejaria uma coisa dessas? - Silvana franziu a testa e ele se perguntou
como a ofendera. – O laran é um dom raro e precioso. Tão poucos de nós o tem e ainda
menos tem força para colocá-lo em uso.
O D o m d e A l t o n | 171

Pela importância que ele dava, ela poderia ficar com o dom. – Minha doença do limiar
vai voltar?
- Não saberia dizer. Na maioria dos casos, uma vez que a crise passa, os sintomas
diminuem. No entanto, você pode estar vulnerável a uma recaída simplesmente porque é
mais velho. - Ao seu olhar interrogatvo, ela explicou. - Os canais que transmitem o laran
também carregam a energia sexual. Frequentemente, ambos tornam-se ativos ao mesmo
tempo.
- Durante a puberdade?
- Exatamente. Já ouvi falar de casos em que, por uma razão ou outra, o laran foi
desligado ou deliberadamente suprimido. Nos tempos antigos, Guardiãs deveriam
permanecer virgens, mas hoje em dia sabemos que isso é cruel e desnecessário. De
qualquer maneira, não pode ser verdade no seu caso. Você não é emmasca, mas um ser
funcional, um macho sexualmente ativo.
Silvana disse isso com total desprendimento, sem emoção, quase clínica, como se ela
estivesse discutindo uma reação bioquímica. Jeram estava acostumado a candura do povo
da aldeia, mas ele não esperava isso desta senhora bonita, elegante. Ele sentiu o rubor em
seu rosto.
- Seu dom parece ter adormecido, não despertado, - Silvana continuou sem uma
pausa, alheia a sua reação - até que algo aconteceu para suprimir suas defesas naturais.
- Como um... Um ataque psíquico em minha mente? - Jeram deixou escapar antes que
ele pudesse considerar o significado das suas palavras.
- Sim, obrigar sua submissão, é isso que você quer dizer, poderia romper até mesmo as
mais fortes barreiras naturais. - Ela se inclinou para frente, roçando os dedos sobre a parte
traseira de seu pulso. Mais uma vez, Jeram sentiu o toque de seda em sua mente.
O que aconteceu com você? Ela sussurrou como uma brisa perfumada.
- Eu... Eu não sei.
Náuseas cresceram dentro dele e, por um momento terrível, objetos nas bordas de
sua visão entraram em fusão, como plástico se alongando sob calor.
O que há de errado comigo? Por que não consigo lembrar? Por que isso acontece
comigo toda vez que tento?
- Acredito que você respondeu a sua própria pergunta. – A voz de Silvana era baixa e
suave, treinada para esconder, em vez de expressar uma emoção profunda. - Alguma coisa,
ou alguém, adulterou as suas memórias e, no processo, quebrou as barreiras de seu dom
tão profundamente enraizadas.
- Adulterou minhas memórias? - Jeram repetiu, atordoado.
Sua primeira resposta foi insistir que não era possível. Durante seu teste EPS haviam
dito que ele erai altamente resistente à hipnose. A farmacologia darkovana simplesmente
O D o m d e A l t o n | 172

não era sofisticada o suficiente para produzir drogas que afetariam a memória de apenas
uma parte tão pequena da vida, poucas horas no máximo. Mesmo que tais coisas
existissem aqui, como poderiam ter administrado?
E ainda assim...
A Batalha da Antiga Estrada do Norte... A hora que estava faltando para dar sentido as
coisas... Os sintomas que apareciam sempre que tentava pensar nelas.
Rapidamente, ele levou o pensamento para longe. A última coisa que ele queria era a
revelar o seu papel na tentativa de assassinato do Conselho Comyn.
Um leve toque soou e a porta se abriu. Uma mulher muito mais jovem e uma ruiva
estonteante entraram. Ela usava um vestido simples verde com cinto cinza e portava-se
com a mesma reserva digna da Guardiã.
- Esta é Illona, - Silvana disse - minha Sub-Guardiã.
Illona carregava uma pequena bandeja de madeira com um frasco cheio de líquido
claro, outro tubo de vidro marcado para medir e um copo. Ela entregou a bandeja para
Silvana.
Silvana mediu uma porção do líquido do frasco no copo e ofereceu a Jeram. - Aqui,
isso vai ajudar a minimizar seus sintomas. É kirian com água e mel, uma das destilações
mais seguras. Mantemos uma quantidade para jovens com a doença do limiar e outros
usos.
Jeram tomou o cálice e cheirou. O líquido tinha um aroma de citrinos. Ele hesitou,
lembrando as advertências sobre plantas nativas. Os darkovanos podiam ser descendentes
de colonos terráqueos, mas isso não queria dizer que era seguro comer ou beber tudo
como eles faziam. - O que ele faz?
- Ele diminui a resistência telepática. – Silvana disse.
- Não, obrigado. Vou passar por isso sem drogas. - Jeram colocou o copo de lado. Ele já
tinha o suficiente de outras pessoas dentro de sua cabeça.
Illona trocou um olhar rápido com Silvana, em seguida, virou-se para Jeram. - Sou uma
monitora treinada. Você me permite te examinar?
Apesar das palavras tranquilizadoras anteriores de Silvana, Jeram não queria que ela
ou qualquer outra pessoa vasculhasse telepaticamente suas memórias. - Sou muito grato
por toda a ajuda que me deram, mas isso não é necessário. Eu vou ficar bem agora. - Ele
puxou as cobertas de lado e passou as pernas sobre a beirada da cama.
Assim que os pés de Jeram tocaram o chão, ele teve uma vertigem. Seu corpo parecia
se dividir em duas ... oito ...vinte imagens sobrepostas, seus pensamentos pareciam
fragmentados, o mundo caindo para o lado.
Mãos finas, porém fortes, levaram sua cabeça de volta para a cama. A borda de um
copo foi pressionada contra sua boca. - Por favor, deixe-nos ajudá-lo. Beba.
O D o m d e A l t o n | 173

Jeram engoliu. O líquido, doce e aromático aqueceu sua garganta.


A respiração ficou mais suave em seus pulmões, a pressão do sangue diminuiu e
reduziram as batidas de seu coração, linhas delicadas de luz branca e brilhante como
esqueletos de relâmpagos apareceram em seus olhos.
Ele abriu os olhos e viu imagens desbotadas, substituindo um desfoque suave de
forma e cor. Suas pupilas deviam estar dilatadas. Ele tentou novamente se sentar, mas seus
braços e pernas estavam moles.
Illona inclinou-se sobre ele, sorrindo. Ela era muito jovem ainda, vinte anos no
máximo. Houve uma ondulação pequena em um canto de sua boca.
- Está tudo bem. – Ela disse. - Os piores efeitos vão passar em poucos minutos. Um de
nós vai ficar com você o tempo todo. Posso imaginar como isso deve parecer estranho.
Ela sabe! O pânico se avolumava nele.
- Também não fui criada nas Torres. - Illona continuou, indiferente. - Eu vivia com os
viajantes, indo de lugar em lugar. Levei um longo tempo para me acostumar a ter laran.
Imagine nascer surdo e de repente ser capaz de ouvir.
Ouvindo a voz calma de Illona e sua segurança, Jeram sentiu seu pânico escoar para a
distância. Se queria sobreviver a esta tal de doença do limiar, ele raciocinou, precisaria de
ajuda.
Apesar de suas dúvidas, Jeram acabou confiando em Illona. Ele sentiu sua presença,
tão real e indescritível, como o conhecimento de que ele não estava sozinho em um quarto
sem luz. Ele não sentiu nenhuma dor, nenhum medo, apenas a curiosidade de Illona e um
toque persistente de alegria.
- Não se preocupe, disse ela - não estou lendo sua mente. Estou apenas monitorando
o seu corpo, nada mais.
Ele fechou os olhos, consciente das vozes das duas mulheres. Pouco a pouco se sentiu
aliviado, a sensação de desorientação sumindo. Seu corpo estava inteiro e forte, tão estável
como uma rocha.
Illona se voltou para ele e desta vez seus olhos eram sombrios. - Jeram, não há dúvida
de que suas memórias foram alteradas. Elas ainda estão lá, mas uma forte barreira o
impede de ter consciência delas.
- Não acredito em feitiços e magia. - Jeram murmurou.
- Não é magia, - disse Silvana, com um traço de impaciência - a ciência da mecânica de
Matriz é um sistema de conhecimentos e habilidades que as Torres têm cultvado há
milênios.
Um frio repentino correu por sua espinha. - Você quer dizer que todos vocês podem
ter poder sobre a mente de outro homem? É o que vocês chamam de relacionamento
forçado?
O D o m d e A l t o n | 174

Silvana disse: - Há muito poucos agora vivos com esse Dom especial. Acontece que um
deles está atualmente em Nervasin, Dom Lewis Alton.
Alton? Esse era o nome de uma das famílias dominantes darkovanas.
- Oh! - Illona disse, encantada. - Eu não sabia que ele estava aqui.
- Não creio que ele desejasse que isso fosse conhecido. – Silvana disse. - Ele veio para
cá em silêncio, no ano passado, para ficar em retiro no mosteiro.
Uma expressão estranha cruzou o rosto de Illona. - Lorde Alton certamente sabe mais
sobre relacionamento forçado do que qualquer outro homem vivo. Sua experiência seria
inestimável agora. Mas será que devemos importuna-lo quando ele não deixou sua
presença conhecida para nós?
- Não sei se ele vai quebrar seu isolamento, - disse Silvana - e eu não faria essa escolha
por ele. Mas não fará nenhum mal perguntar.
As duas leroni ficaram com Jeram até que o kirian fizesse total efeito, então o
deixaram para dormir. Quando ele ficou só deitado na cama, sentiu seus músculos
tremerem de cansaço, como se tivesse acabado de correr uma milha com quilos do
equipamento de batalha completo.
Ele se perguntou se esse Lorde Alton tinha sido um dos que estavam no cortejo
fúnebre que ele havia emboscado. Esses nativos eram primitivos pelos padrões do Império
e essas pessoas levavam assuntos de honra e vingança muito a sério.
Não havia nada aqui para ele, mas ele precisava ficar. Jeram estava fraco demais para
deixar a Torre por conta própria e ele não entendia completamente a natureza de sua
doença. Ele não poderia mais voltar para a clandestinidade ou viver disfarçado. Essa coisa
dentro de sua mente tinha despertado e devia ser tratada. Como um gênio dos contos
populares, ele não pode ser colocado de volta em seu frasco.
Se o que Silvana e Illona lhe tinham dito era verdade, e ele tinha todos os motivos para
acreditar nelas, ele precisava da ajuda de Lorde Alton.
Esperança, medo e instinto de sobrevivência remoiam juntos nele. Com seu corpo
exausto, ele derivou através de sonhos pontuados por figuras sombrias, enfrentando uma
figura com olhos ardentes...uma mulher de fogo...uma cidade de cadáveres...
Ele ouviu um grito, acordou arfante e soube que fora seu próprio grito.

Capítulo 18

Lew Alton sentou em seu lugar de costume na parte de trás da capela de São Valentim
das Neves. Os monges tinham partido após os hinos da manhã, mas Lew permaneceu,
desfrutando o silêncio. Havia se tornado seu hábito passar o tempo em contemplação
O D o m d e A l t o n | 175

silenciosa após o canto da manhã. Em torno dele, as antigas paredes de pedra ainda
mantinham os acordes finais.
As vozes dos monges, do tenor a esganiçada do mais jovem noviço, até a enferrujada e
trêmula dos mais velhor, nunca deixaram de evocar maravilhas em Lew, em que tantos tons
diferentes pudessem se reunir em uma harmonia única. Individualmente, elas estavam
longe de ser bonitas, mas a partir da respiração antes da primeira sílaba até a última nota
sustentada, eles formavam uma totalidade transcendente.
No início de sua estadia ali, o Padre Mestre tinha posto ele para ler as palavras do
santo.
"As palavras mais verdadeiras não são faladas pela boca, mas pelo coração, o mais
profundo silêncio não é ouvido pelos ouvidos, mas pelo espírito. Fale então com o seu
coração e ouça com a alma."
Isso foi relembrado no início do dia, entre as sombras da capela. Uma única lamparina
queimava no santuário. Os monges iam e vinham, abrindo caminho entre as fileiras de
bancos com os olhos fechados, confiando em seus outros sentidos. Lew supôs que estava
velho demais para aprender o seu sentido interior de direção, mas o Padre Conn o
incentivou a tentar, começando em ficar sentado ali, de olhos fechados.
Inspire...
Expire...
Fragmentos de pensamento e memória estavam a deriva na mente de Lew, uma linha
de fogo varrendo montanhas arborizadas, caminhando com Marjorie Scott em uma manhã
fria através de Caer Donn, o vazio doloroso onde sua mão direita tinha estado...
Inspire...
Expire...
Por fim, a tranquilidade rastejou sobre ele. Ele sentiu o sussurro do ar através de seus
pulmões, a pulsação fraca de seu coração, o repouso de seus braços e pernas. Mesmo a
rigidez leve em seu pescoço ele aceitou sem reclamar. Alguns dias passaram e a quietude
nunca chegou. Ele passava uma hora ou mais, lutando com seus pensamentos, até que ele
desistia ou os sinos o chamavam para alguma outra atividade.
Aos poucos, a consciência de Lew se voltou para a capela em torno dele, a pressão da
bancada de madeira gasta e o ar gelado a sua volta. Ele não tinha aprendido a técnica de
aquecer seu corpo de dentro para fora. Os monges, foi-lhe dito, podiam dormir no gelo da
geleira em conforto perfeito, vestindo nada mais do que suas sandálias e roupas leves.
Movendo-se lentamente, Lew fez o seu caminho pelo longo corredor escuro. Uma vez
mais ele teria de subir as escadas para o escritório de Padre Conn, mas seus joelhos tinham
sofrido demais com o inverno. Agora era parte de sua disciplina ser gentil com suas
limitações. Comida quente foi fornecida para ele, assim como cobertores e tempo para
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chegar onde ele precisava ir. Lentamente, ele subiu, deixando seus músculos e articulações
trabalharem dentro de sua capacidade.
Padre Conn olhou por cima de sua mesa quando Lew entrou. O sol da manhã
derramava sua luz através das janelas de vidro, enchendo a sala com luz dourada suave. Um
livro de orações maravilhosamente caligrafado, com suas iniciais pintadas de cor brilhante,
estava aberto sobre a mesa ao lado de uma pilha de papeis cobertos com anotações.
Parando no limiar da porta, Lew se curvou. A saudação não era exigida, mas Lew não
tinha feito votos e nem era provável que fizesse. Ele se curvou por respeito genuíno. Desde
a sua alcova, a estátua esculpida do Portador dos fardos parecia sorrir em boas-vindas.
Lew acomodou-se em seu lugar de costume, a cadeira almofadada reservada para
convidados. Monges e noviços utlizavam um banco sem encosto. Após a troca de
saudações, Lew disse: - Estive pensando sobre o que você me disse.
- Verdade? E para onde o levou seu pensamento?
- Você disse que eu sabia muito sobre como viver com a culpa e que eu tinha i
confortável com ela. Isso é o que não entendo. De que outra forma eu deveria me sentir
depois de tudo que fiz?
Padre Conn cruzou as mãos juntas. Tinta manchara a pele do dedo indicador direito e
uma cicatriz corria nas costas de uma mão como um relâmpago impresso. - Eu nunca teria
notado qualquer correspondência entre a forma como um homem pensa que deve sentir e
como ele realmente se sente.
Este foi, Lew pensou, um dos típicos comentários de Padre Conn, tão diferente do que
ele esperava de um homem que viveu delimitado por regras, desde o primeiro juramento
como um noviço até o voto final de castidade. Em todo esse decanato desde a sua chegada
a São Valentim, o velho nunca havia pregado para ele. Em vez disso, ele tinha dado
incentivo a Lew, instrução em meditação e observações do senso comum.
- Eu já te disse a parte que desempenhei na destruição de Caer Donn, - Lew disse – isso
sem mencionar tudo o que aconteceu durante o meu exílio em Vainwal e Tétis. Você está
dizendo que eu não deveria aceitar a responsabilidade por essas coisas?
- E culpa e responsabilidade são a mesma coisa?
Lew adicionou isso à lista de Irritantes questões retóricas.
- Não, - disse Lew, tentando não se sentir irritado - elas não são a mesma coisa.
Responsabilidade é um fato, já que eu fiz escolhas, fiz coisas por razões que pareciam boas
na época, mas os resultados vão me assombrar por toda a minha vida. Culpa é o que sinto
quando penso nelas.
- Exatamente como sua culpa vai mudar o que você fez? Você diz que se arrepende de
seus atos. Você oferece sua própria dor em forma de culpa, como se fosse uma penitência a
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um santo. Pergunto-lhe de novo, porque é que atormenta a si mesmo, se não pode ajudar
aqueles que tens injustiçado?
Ninguem pode. Nem eu, nem qualquer homem pode mudar o passado. Devo viver com
ele para sempre.
Um longo momento de silêncio se passou. Gentilmente, Padre Conn se inclinou para
frente e disse: - O próprio santo, São Valentim, não era um estranho ao sentimento de
culpa.
Ele acreditava que a culpa era uma prisão criada por ele mesmo e que, enquanto ele
permanecesse casado com remorso, ele nunca poderia encontrar a verdadeira cura.
- Eu não mereço cura.
- Talvez. Mas o mundo merece. As pessoas que você não prejudicou. Leve sua culpa,
meu filho, e transforme-a em uma ação correta. Repare o que você quebrou.
- Como? - A questão explodiu das profundezas da alma de Lew. - Como eu posso
desfazer o que fiz? Onde neste mundo ou no outro há qualquer perdão para mim?
Padre Conn sentou-se, pensando mais uma vez a respeito de Lew com compaixão
tranquila. - Isso eu não posso dizer. Cada homem deve descobrir o caminho para a expiação
por si mesmo. Sei que não é de nossa fé, mas o Portador dos Fardos sempre tem a resposta
através da oração, independentemente da crença daqueles que a oferecem. Você poderia
fazer muito mais do que pedir orientação.
Com essas palavras, o padre levantou, sinalizando o fim da audiência. Lew curvou-se
novamente, um movimento breve, distraído, e se dirigiu de volta para seu quarto na casa
de hóspedes. Se ele tivesse ouvido uma resposta assim quando chegou, ele teria se evadido
para longe de Nervasin sem outro pensamento. A arrogância insuportável do homem velho,
ao sugerir que ele, Lewis-Kennard Alton do Comyn, descendente de Hastur, filho de
Aldones, Senhor da Luz, deveria rezar para um santo obscuro penitencial! Mas, nos
decanatos e meses de meditação diária, de música, de discussão e investigação gradual em
seu próprio coração, Lew tinha chegado ao ponto de respeito permanente por aquele lugar
e seu povo. Se Padre Conn disse que oração iria ajudar, então ele iria tentar.
Mesmo quando Lew atravessou o pátio, atirando seu manto sobre os ombros, as
palavras se formaram em sua mente.
Eu não sei quem você é, ou se você existe, mas se existir, tem piedade de mim. Mostre-
me o que devo fazer.
Ao entrar na casa de hóspedes, Lew encontrou um homem jovem, um estranho,
sentado lá. Pelas roupas e o cabelo do rapaz, a aura de poder psíquico treinado ao estilo
das Torres, ele devia ser um laranzu. O jovem se apresentou como Anndra MacDiarmid,
mecânico de matriz da Torre Nervasin.
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- Dom Lewis Alton, fui enviado por minha Guardiã para pedir sua ajuda. Ela acredita
que sua experiência particular possa lançar alguma luz sobre um problema que
recentemente se apresentou. - Anndra tinha claramente ensaiado o discurso.
Experiência particular? Lew enrijeceu. Poderia haver algum problema persistente do
desastre de Sharra, depois de todo esse tempo? Talvez alguma pobre alma que escapou da
ruína famejante de Caer Donn, acabasse encontrando o seu caminho até ali.
- Se houver qualquer ajuda que possa oferecer, - disse ele - terei prazer em fazê-lo.
O cavalo de Lew, um castrado de raça negra de Armida, que ele mesmo havia
treinado, com maneiras perfeitas e um pelo como a seda, foi mantido nos estábulos do
mosteiro. Como Lew não poderia facilmente selar o animal, com uma só mão, Anndra
ajudou-o com o cavalo. Dentro de um curto espaço de tempo os dois partiram para a vila e
a Torre além dela.
Quando Lew entrou pelas portas da Torre Nervasin, ele sentiu a disciplina ordenada de
um círculo de trabalho, o toque fresco e certo de sua Guardiã, os intrincados padrões
reticulados das telas de matriz. Ele se lembrou de seu curto período de tempo em Arilinn,
entre os mais felizes em sua vida.
Anndra escoltou Lew escada acima, onde a Guardiã o aguardava. Embora Lew não
tivesse lembrança de ter encontrado Silvana antes, havia algo tentadoramente familiar
sobre ela. Talvez fosse alguma semelhança de família com alguém que ele conhecia. As
linhagens do Comyn eram tão puras que ele não ficaria surpreso ao saber que eles eram
todos primos em um grau ou outro. Ela poderia muito bem ser uma filha nedestra de um
dos grandes lordes ou ser de um ramo colateral obscuro.
Depois de terem trocado as cortesias de costume entre os trabalhadores de matriz,
Silvana disse: - Um homem veio até nós para se curar e não há ninguém aqui na Torre
Nervasin com o conhecimento prático do uso de laran para dominar a vontade de outro
homem ou experiência em como uma mente tão quebrada possa ser consertada.
Lew se encolheu. Ele nunca estaria livre da terrível escravidão de Sharra?
Ele havia orado pedindo orientação, não sabendo de que forma isso poderia
acontecer. Poderia este pedido de ajuda ser a resposta, a chance de arrancar fora todo o
mal que tinha vindo antes?
Silvana abriu uma porta e ficou de lado para deixar Lew entrar, cuidadosamente
ficando para trás para evitar qualquer contato físico acidental. O sol da manhã tocava as
paredes de pedra sem adornos, revelando uma enfermaria com duas camas, um par de
banquetas, mesas dobráveis e armários de armazenamento ao longo das paredes. O ar
segurava o resíduo, fraco e inconfundível de poder laran. Um homem estava na cama e
uma jovem mulher olhou para cima de onde estava sentada ao lado dele. Como um bom
começo, Lew reconheceu a amiga de Domenic, Illona Rider. Ela e Domenic tinham
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começado seus estudos na Torre Neskaya juntos. Lew tinha esquecido que ela tinha sido
transferida para Nervasin após o primeiro ano.
Illona levantou e ficou para trás, de modo que Lew pudesse se aproximar. O primeiro
pensamento foi de que o paciente não tinha nenhuma das característcas do Comyn, e ainda
assim ele claramente possuía laran. Os olhos do homem, um tom de marrom incomum em
Darkover, se arregalaram quando ele encontrou o olhar de Lew.
- É ele! - O homem gritou no Padrão Terran. As palavras reverberaram através do
crânio de Lew. É ele!
Gritando inarticuladamente, o homem pôs-se de pé. Illona agarrou seu braço mais
próximo.
Rápido como um gato montês, ele se torceu e ficou livre. O movimento foi se
alastrando.
O homem, vestindo apenas uma camisa normal e calças soltas, ficou com as pernas
apoiadas em uma posição de combate. Não havia nada que Lew pudesse fazer, ele não
podia correr, e certamente ele não podia montar qualquer tipo de defesa. Por instinto, ele
alcançou sua única arma, o Dom de Alton, e nesse instante soube que nunca poderia usá-lo
novamente, nem mesmo para salvar sua própria vida.
Esta é a resposta pela qual orei, pensou ele, e ergueu-se para enfrentar o ataque.
- Isto é uma Torre, não uma taverna! Cesse essa gritaria imediatamente! - Silvana deu
um passo para o interior do quarto. O ar brilhava com o poder de seu laran. A visão de Lew
ficou branca. Calor impregnou nele, uma crescente sensação de mal-estar.
É o suficiente. Lew não tinha certeza se tinha falado em voz alta para Silvana ou apenas
em sua mente. Ele ouviu a respiração rápida de Illona, o farfalhar de um vestido e um passo
macio no chão acarpetado, e então um gemido do outro homem quando ele caiu no chão.
A visão de Lew retornou. Illona e Silvana foram levantar o paciente quase inconsciente
de volta para a cama. Lew ainda estava apoiado contra a parede ao lado da porta. Laran
inundou o ar, os padrões trançados de um dom instável. Ele reconheceu o cheiro
característco, como o metal superaquecido.
Com um grito rouco, o homem se arqueou para cima, braços e pernas batendo.
- Misericordiosa Avarra! - Illona chorou. - Convulsões da doença do limiar!
- Ele voltou a entrar em crise. – Silvana disse.
As duas mulheres pararam ao lado da cama e rapidamente estabeleceram uma ligação
psíquica com o doente. Lew hesitou, fazia décadas desde que ele tinha trabalhado em um
círculo em Arilinn. Ele poderia, no entanto, atuar como um monitor, certificando-se de que
nenhuma das mulheres sofressem qualquer dano físico ou distração enquanto
trabalhavam.
O D o m d e A l t o n | 180

Lew soltou sua pedra da estrela da seda isolante, fechou os olhos e concentrou seu
laran. Pela sua visão interior do homem na cama, ele brilhava como uma fornalha, com o
corpo de um emaranhado de vermelhos furiosos e marrons, irregulares estrias amarelas, o
pulsar carmesim dos canais de laran criticamente sobrecarregados.
As duas leroni ligadas por suas mentes, cercavam o homem com um brilho azul-branco
fresco. Lew ficou um pouco surpreso com a força do laran de Illona, claro e flexível como
diamante líquido.
Enquanto ele ia mais fundo na ligação com Silvana, buscando os padrões de seu corpo,
bem como de sua mente, Lew sentiu como se estivesse vendo em dobro. Ele reconheceu a
vibração ressonante de sua pedra da estrela, mas também o brilho de seu laran. Ela não
estava apenas usando sua pedra da estrela como qualquer leronis treinada faria, ela própria
estava concentrando e focando a energia mental. Apenas uma linhagem em toda Darkover
possuía essa capacidade.
Ela era uma Hastur, a matriz viva, agraciada com o dom pleno de seu Domínio.
Lew ficou tão surpreso que quase desistiu da ligação. Até Regis ter usado o Dom de
Hastur na luta contra Sharra, pensava-se que ele estava extinto. Regis se foi, e com ele esse
dom raro e precioso. Seu único filho, Dani Hastur, não o tinha.
Essa Guardiã, escondendo-se aqui em uma Torre obscura, disfarçando a sua herança,
poderia muito bem ser a filha perdida de Regis Hastur. Com sua força de laran e
inconfundível habilidade natural como Guardiãr, ela devia ser filha de Linnea também. Lew
tinha ouvido falar de uma filha, nascida logo depois que os Destruidores de Mundos
partiram. Ela era chamada por outro nome, mas ele não se lembrava qual. Ele tinha estado
fora do mundo durante os anos seguintes aos acontecimentos dos Destruidores de
Mundos. Uma vez que não tinha havido nenhum traço dela quando voltou do exílio, ele
presumira que ela tinha morrido. Lew nunca teve coragem de perguntar a Regis sobre ela.
Por que ela permaneceu escondida todos estes anos, usando outro nome? E quem era
ele, com os seus próprios segredos sombrios, para julgar os motivos de uma Guardiã?
Durante os poucos momentos em que Lew estava distraído, Silvana inspirou-se nas
energias mentais de Illona, entrelaçando-as com a sua própria para amortecer o pior do
laran instável. Lew pegou a imagem de envolver o homem em um cobertor macio e
espesso. Mas o vulcânico poder psíquico do homem estava golpeando contra as restrições.
A aura de Silvana virou incandescente em resposta.
Agindo por instinto, Lew mergulhou na ligação com a leronis. Seus poderes não eram o
mesmo que fora uma vez, mas ele ainda era Alton e Comyn, treinado em Arilinn. Com o
toque certo de uma Guardiã, Silvana chegou até ele, misturando sua mente como uma
unidade, sintonizando suas energias vinculadas.
O D o m d e A l t o n | 181

Através da lente da mente da Guardiã, a visão mental Lew se aprofundou. Ele não viu
o estranho como um padrão de canais de laran e nós, mas como um turbilhão, imagens e
emoções tão vivas como se ele próprio as estivesse experimentando...
Lew sentiu o áspero tecido do disfarce do homem darkovano, a brisa gelada dos
cumes e uma meia-sombra de cima das árvores, a chamada ocasional de pássaros-de-
chuva. A adrenalina aguçou sua visão. Ele estava vendo e sentindo tudo o que o estranho
sentia. Atrás dele, um dos aparatos pesados decolou do acampamento onde os outros
técnicos tinham montado o equipamento...
...Ao longo da Antiga Estrada do Norte, a comitiva do funeral entrou no campo de
visão, os condutores e carroças pendurados com cortinas, preto enfeitado com azul e prata.
Eles se moviam com complicada graciosidade. Ao lado dele, um dos homens mais jovens se
mecheu e murmurou...
Vamos, mais perto...
Através das memórias do estranho, Lew entendeu o plano de batalha. Na distância
certa, no momento certo, eles iriam atacar. Suas pistolas derrubariam os cavalos, suas
flechas matariam os Guardas e suas facas fariam o resto. Se tudo corresse conforme o
planejado, ninguém jamais saberia que a emboscada não fora executada por um grupo de
dissidentes nativos...
A primeira unidade iria partir das árvores, correndo muito, balançando suas lanças. Os
soldados experientes marchariam com machados, espadas e lanças. Os cavalos empinaram,
produzindo poeira. Vindos por trás, os homens sairiam dos esconderijos, espadas
desembainhadas...
- Vamos! - Seu líder de equipe soltou o comando. Ele avançou com o resto de sua
unidade, correndo em direção aos soldados. O homem ao lado dele já tinha sacado sua
pistola...
Senhor da Luz nos defenda! O grito angustado de Silvana interrompeu o fluxo de
imagens. Uma arma proibida!
Presos na memória do estranho pesadelo, Lew pegou flashes de fogo artificial, uma
confusão de cavalos e explosões, e o cheiro da morte...
...Eles estavam melhor preparados do que prevíamos. O pensamento gravado em seu
cérebro. E no entanto... Como poderiam espadas e cavaleiros lutar contra blasters?...
Ele estava deitado em uma piscina meio congelada de lama fedorenta vermelha e
ouvia os gemidos do homem ao lado dele...
...Um rosto...O rosto de um homem, moldado com cabelo vermelho e prata, uma boca
torcida por uma cicatriz feia, inclinando-se sobre ele...e de uma mulher, muito mais jovem,
com o mesmo cabelo vermelho e olhos dourados de um tigre...
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Rompendo a ligação mental, Lew cambaleou para longe de tal horror. O choque
rompeu o círculo como unidade. Seu coração convulsionou dentro de seu peito que parecia
estar sendo esmagado.
O rosto... Era meu, meu! Que todos os deuses me perdoem! Ele gritou silenciosamente.
A pulsação de Lew passou a ficar mais rápida e frágil, um tamborilar desesperado. Seus
pulmões doiam ao respirar, suas mãos apertavam seu peito.
- Dom Lewis, qual é o problema? - Silvana correu para seu lado. Ele sentiu o toque em
sua testa e outro sobre o seu peito. Um alento fresco, branco-prateado, veio por meio dele.
A dor diminuiu, o ar fluiu para os pulmões.
- Illona, ajude-me levá-lo para cama. – Silvana disse. - Você deve monitorá-lo.
As duas mulheres levaram Lew para a cama, em silêncio, coordenando suas forças
para lidar com o peso. Illona focou sua energia de cura psíquica com a competência
silenciosa de quem em breve se tornaria uma Guardiã, responsável apenas por sua própria
consciência. Lew dificilmente teria notado quando Silvana saiu da sala.
Illona continuou a acompanhar Lew até ter certeza de que o episódio de agústia tinha
passado. Em um curto espaço de tempo Lew sentiu-se bem o suficiente para se levantar. A
dor em seu peito parecia ter sumido completamente.
Lew se sentou, testou a firmeza de suas pernas e foi até a cama onde o estranho
Terran estava dormindo esgotado por suas convulsões. Da partilha de memórias do homem
da Batalha na Antiga Estrada do Norte, Lew soubera seu nome, Jeram. Era um homem
forte, robusto e imponente, apesar de debilitado pela doença.
Silvana voltou quando Lew estava se preparando para voltar ao mosteiro. Como antes,
ela o tratava com o distanciamento profssional de sua categoria. Nada em sua postura
sugeria que ela estivesse ciente da descoberta de sua identidade. Por que ela ocultava sua
linhagem era, afinal, seu assunto particular.
- Obrigada por sua ajuda, Dom Lewis. – Silvana disse. - Illona me disse que você teve
uma boa recuperação. Procure não se cansar, pois esses episódios de dor no peito podem
indicar um problema cardíaco mais grave que está além da nossa habilidade de resolver.
- Vai leronis. - Lew disse, usando o título honorífico. - Eu também agradeço. Posso... Eu
não gostaria de me impor a sua hospitalidade, mas... Gostaria de solicitar uma audiência
com Jeram.
- Por quê?
- Domna, você sabe que usei o Dom de Alton para suprimir as memórias deste
homem. Não nego isso. Por esse feito, devo responder aos próprios deuses. Mas os deuses
não estão aqui. Jeram está e há reparações a serem feitas.
E perdão perguntou a ser concedido, acrescentou mentalmente, tanto para os seus
objetivos.
O D o m d e A l t o n | 183

Silvana inclinou a cabeça para um lado, considerando. - Esta é a minha Torre e tudo o
que acontece aqui é minha responsabilidade. Se ambos concordarem com tal reunião,
então permitirei. Mas, até vocês chegarem a uma reconciliação, devo insistir em estar
presente. Isso é aceitável para você?
Lew inclinou a cabeça. Um sentimento de gratidão inesperada, misturado com terror,
o encheu. Afinal, ele havia orado pedindo orientação. Ele não esperava que a resposta
viesse nesta forma particular. Talvez fosse melhor assim, ele pensou quando encontrou seu
olhar e acenou com um acordo. Preso por sua própria culpa, ele nunca teria imaginado tal
reunião.
- Sim, eu aceito.

Capítulo 19
O D o m d e A l t o n | 184

Lew entrou na sala de Silvana, uma câmara agradável decorada com um inconfundível
toque feminino. A pequena lareira estava enfeitada com fitas sobre um manto esculpido
com senhoras dançando com guirlandas de verão. A mobília, uma mesa baixa, cadeiras e
um aparador de madeira cinza, fez Lew se sentir como se tivesse entrado numa floresta
encantada. A sensação era de que, a qualquer momento, um chieri poderia aparecer.
Lew tomou o assento que Silvana indicou, um de um par de cadeiras que tinha sido
claramente trazidas para esta reunião, mais resistentes do que as outras, mais adequadas
para o corpo de um homem. Deixando o lugar da frente vazio, Silvana tomou seu próprio
lugar.
Bateram na porta externa, Lew se sobresaltou e agarrou o braço da cadeira. Silvana
levantou a voz em saudação e levantando a trava Jeram entrou.
Ele não era mais o pálido homem que estava em convulsão, como Lew o tinha visto
pela primeira vez, mas sombras ainda assombravam seus olhos castanho-avermelhados, e
sua mandíbula e lábios estavam comprimidos. Movia-se como um lutador de espada exceto
pelo errático movimento ligeiro de um ombro e da curva do seu cotovelo, como se ele
estivesse com uma arma no coldre em sua cintura. Recusando-se a encontrar o olhar de
Lew, ele dirigiu-se para a segunda cadeira.
Ele não quer estar aqui, de frente para mim. Esta reunião é tão difícil para ele quanto é
para mim.
- Não me lembro de tudo o que aconteceu no outro dia. - Jeram começou sem
preâmbulos. Ele falava um casta surpreendentemente bom, com seu sotaque de fora do
mundo lhe dando estilo e melodia. - Eu estava muito desorientado. E não é todo dia que
você encontra o bicho-papão de seus pesadelos. Até aquele momento, eu não tinha ideia
de que voce era real.
- Sou de carne e osso, como você. – Lew disse.
Jeram manteve seu olhar em suas mãos. - Silvana diz que você fez algo que despertou
essa coisa, esse laran em minha mente. Ela diz que você pode me ajudar.
Mesmo sem contato telepático, Lew ouviu a coragem desesperada atrás das palavras
do outro homem.
Nós somos irmãos neste momento, resistindo ao desejo de se impor.
Ele pediria desculpas. Obrigou-se a encontrar o olhar torturado de Jeram, abrir a boca
para formar as palavras.
- Meu nome é Lewis-Kennard Alton. E eu sou, como você pode perceber, um telepata,
e eu possuo o dom da minha família, que é o contato forçado. Usei esse dom em você e nos
outros sobreviventes Terranan da Batalha na Antiga Estrada do Norte para mexer com suas
memórias.
O D o m d e A l t o n | 185

Como ele descobriu minha parte na emboscada? Jeram não tinha a habilidade de
barricar seus pensamentos. Ele fez uma careta para Silvana.
- Ela não me disse nada. - Lew se apressou a dizer. - Quando nos conhecemos, você
entrou em uma crise da doença do limiar. Você se lembra?
Agora Jeram olhou diretamente para Lew. - Você entrou na sala e foi o inferno. - Jeram
levou uma mão à testa. - Aqui.
- Você me reconheceu. – Lew disse. - Então usei meu laran para ajudar Silvana e Illona
para estabiliza-lo durante a crise. No processo, e não estou certo de como explicar isso de
forma que você possa entender, acabei partilhando suas memórias da batalha e da
emboscada. Vi a batalha através de seus olhos.
- Então agora você sabe quem eu sou. – Os olhos de Jeram tinham uma expressão
desolada.
- E você sabe quem eu sou e o que fiz.
- Sei que há um buraco em minha memória, mas não sabia porquê. - Os músculos da
mandíbula de Jeram endureceram como se ele mastigasse cada palavra. - O que,
exatamente, eu não deveria lembrar?
Lew fechou os olhos. - Essa pergunta seria melhor respondida se eu removesse o
bloqueio de suas memórias. Então você perceberia por si mesmo.
- Você acha que sou louco o suficiente para deixá-lo entrar em minha cabeça de novo?
- Jeram atirou de volta.
- Não, posso entender que não. – Lew disse, gesticulando com a mão boa. - Vou dizer-
lhe, então. A luta terminou quando minha filha e seu marido, que é o Regente do Comyn,
usaram seus laran, seus poderes mentais para oprimir suas forças militares.
Jeram olhou incrédulo. - Esses poderes mentais foram usados contra os blasters dos
soldados?
- Você não estava em Caer Donn. - Lew explicou. - Você não viu a verdadeira razão
pela qual o Pacto fora transformado em Lei. Não para proibir sua armas e sua tecnologia
Terran, mas para proibir as armas mais terríveis que podemos produzir com nossas próprias
mentes. Armas capazes de derrubar um quadrante de estrelas, transformar uma cidade em
ruínas, em chamas, abrir uma porta entre dimensões, ou talvez ainda pior.
O momento se prolongou. Silvana estava imóvel, sua expressão calma, ilegível, exceto
por um fraco clareamento de sua pele já pálida. Mesmo o fogo parecia ter feito uma pausa,
expectante.
Lentamente, os olhos de Jeram se arregalaram em compreensão. Lew não poderia
dizer se o Terran tinha vislumbrado a imagem da chuva de fogo vinda do céu ou se o
momento de silêncio respondeu sua pergunta. Os pensamentos íntimos de Jeram brilharam
no ar. Se o que Lorde Alton diz é verdade, os burocratas não iriam parar por nada para
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colocar suas mãos uma arma como essa, que poderia penetrar na cabeça de um homem!
Indetectável, incomparável...
- Nós não poderíamos permitir que qualquer um de vocês voltasse com esse
conhecimento. – Lew disse. - O Comyn fez um grande esforço para convencer o Império,
que a nossa ciência da mecânica da matriz e a existência do laran, não valia ser investigada.
Expressão Jeram escureceu. - Eu entendo o por que.
- Entende?
- Eu... - Jeram hesitou, seu olhar hesitante, com o rosto momentaneamente tenso. -
Sei algo sobre o lado mais desagradável das guerras.
- Enquanto nós não tivéssemos nada que vocês quisessem, especialmente nada para
aplicação militar, esperávamos permanecer em segurança, sermos ignorados. - Lew
continuou, apanhado na necessidade de contar toda a história. - Foi o Senado em
desordem e o Império à beira da guerra civil que foram determinantes para manter
Darkover neutra. Como foi isso que aconteceu, nós ficamos seguros. O Império retirou-se e
ficamos fora de sua guerra.
- Então você fez isso para proteger Darkover, sem considerar os custos. - Jeram parecia
pensativo, em vez de raivoso.
- Não quero dizer que eu tinha razão, só que a causa parecia boa naquele momento.
Não que isso pode desculpar o que fiz com você. Eu gostaria de ter o poder de desfazê-lo,
mas como não tenho, só posso pedir seu perdão. Sob o código de honra do Comyn, o
injustiçado pode exigir uma reparação do seu agressor. O que você quer de mim? O que eu
posso fazer para me reconciliar com você? – Lew disse.
Você está me perguntando? O pensamento assustado de Jeram encheu o ar.
- Antes de responder, Jeram, pense sobre isso. - Silvana falou baixinho, ainda com o
comando absoluto. - Quando você entrou em crise, pela segunda vez, e quase morreu. Lew
doou livremente a força de seu laran, indiferente a qualquer risco para si mesmo.
- Eu não teria agido de outra maneira. - Lew não queria nenhum crédito.
- Você realmente... - Um olhar de incerteza passou pelo seu rosto. - Você realmente
acredita nisso, não é? Que você fez uma coisa terrível?
O calor subiu às faces de Lew. As cicatrizes na testa e no lábio superior, onde os aneis
de Kadarin tinha cortado ele, queimado-o. De alguma forma, ele parou de enterrar o rosto
com a mão boa.
- Eu causei-lhe uma lesão. – Lew disse. - O que mais posso dizer? Não sei como reparar
o dano. Voce precisa saber disso.
Ninguém se moveu. A tensão espalhou-se no ar. Um dos pequenos troncos na lareira
se partiu quebrando o silêncio com uma queda de cinzas. Silvana voltou seu olhar de Lew
para Jeram, seus olhos cinzas estavam quase luminosos com a intensidade.
O D o m d e A l t o n | 187

Como o momento estava se alongando, Lew sentiu seu coração apertar. Certamente,
se Jeram estivesse disposto a aceitar a sua confissão, se houvesse qualquer possibilidade de
reparação ou perdão, Jeram teria respondido até agora.
Padre Conn estava errado. Não há esperança. Não para mim.
Mesmo quando as palavras passaram pela mente de Lew, elas perderam muito do seu
antigo poder. Ele tinha feito tudo o que podia para limpar sua consciência. Ele não poderia
exigir o perdão de Jeram ou de qualquer outra pessoa.
Nem ele tinha o direito de julgar. Seu poder foi apenas para deixar o assunto.
Nesse momento, Lew sentiu um vislumbre de compaixão para com o homem
atormentado que tinha sido. Talvez o perdão que ele mais precisava deveria vir de si
mesmo.
- Tudo isso é irrelevante. - Abruptamente, Jeram ficou de pé. - O que são poucos
minutos de memória, afinal? Você descobriu quem eu sou. É só me prender e acabar com
isso.
- Prender você? - Silvana disse.
- Me prender. - Jeram repetiu. - Me informem sobre a sua aplicação da lei e a desse
Conselho Comyn de vocês.
Lew olhou, pego de surpresa pela explosão de Jeram. Ele havia interpretado o silêncio
do Terran como rejeição. Ele não havia considerado a possibilidade de Jeram se considerar
o autor dos atos criminosos.
Silvana empertigou-se, fina e forte como o aço temperado. - Como Guardiã da Torre
Nervasin e responsável perante minha consciencia, não permitirei que seja entregue aos
Hali'imym. O Conselho ainda não ficou tão poderoso para dar ordens dentro das paredes da
minha Torre. Nem o fará enquanto eu ainda respirar.
Jeram era um alienígena, alguém de fora do mundo, um terranan, Lew lembrou a si
mesmo, e não podia imaginar a magnitude de sua ofensa em questionar as decisões de
uma Guardiã.
- Eu não entendo. - Jeram virou-se para Lew. - Vocês têm o mais estranho misto de
prioridades! Tudo que você pode me dizer foi sobre como você acabou com alguns minutos
de minha memória! E sobre o que eu fiz, a tentativa de assassinato?
Assassinato? Jeram era um soldado seguindo as ordens de seus superiores. Os homens
responsáveis pela emboscada estavam mortos ou desaparecidos, lembrou com uma pressa
ignominiosa. Em qualquer escaramuça darkovana comparável, as tropas derrotadas teriam
sido autorizadas a voltar para casa com honra.
- Não posso falar em nome do Conselho, mais do que você pode falar por todo o
Império. – Lew disse. - Falo somente por mim e pelo que aconteceu entre nós.
O D o m d e A l t o n | 188

- Dom Lewis não é o guardião da sua consciência neste assunto, - apontou Silvana - e
nem eu. Se você tem negócios não resolvidos com o Conselho, você deve faze-lo perante
eles. Lew pediu minha ajuda para enfrentar sua própria preocupação com você. Você vai
ouvi-lo e permitir-lhe se desprender do seu fardo de culpa? Ou será que você se afastará,
agarrado a sua amargura e rancor?
- Eu não sou...amargo.
- Então o que você é, Jeremiah Reed? - As palavras de Silvana, ressoando com toda a
autoridade de uma Guardiã, estremeceram através do ar.
Olhos castanhos se arregalaram. - Eu não sei mais.
- Se você quiser descobrir, - Silvana sugeriu - pode começar descobrindo o que foi feito
com você. Isso requer um ato de confiança para permitir a Lew que entre novamente em
sua mente.
- E depois? Ainda vou ter esse negócio de laran me assombrando. – Jeram perguntou.
O ressentimento na voz do outro homem assustou Lew. Laran. A base sobre a qual o
Comyn e os Sete Domínios se mantinham. E este Terranan jogaria tudo no lixo?
- Não posso remover o seu laran, - Silvana disse a Jeram - não sem o risco de danos
permanentes ao cérebro. Você vai ter que fazer as pazes com o seu dom e aprender a
dominá-lo.
- Eu fui treinado em uma Torre, - disse Lew a Jeram - e eu ficaria muito grato pela
oportunidade de passar esse conhecimento a você. Foi a minha ação que despertou o seu
laran, e é, portanto, minha responsabilidade ensinar como usá-lo com sabedoria.
- Parece que não tenho qualquer escolha. - Jeram parecia relutante, mas aceitou. -
Dizem que não há nada tão terrível quanto o diabo no escuro. Está bem, então. Vamos
receber de presente a luz do sol.

~o ⭐ o~
Durante todo o outono, Jeram estudou com Illona e os outros professores da Torre.
Quando ele dominou seu laran, parecia ressentir-se menos. Ele lentamente se integrou na
comunidade da Torre, mas sua mais forte amizade era com Lew.
Por etapas, Lew guiava Jeram através das restrições que haviam sido estabelecidas em
sua memória na batalha. O processo era lento para proteger o frágil equilíbrio mental de
Jeram e dar-lhe tempo para dominar suas novas habilidades. Silvana participou das
primeiras sessões, gradualmente mudando de participante para observadora.
Eles se sentaram juntos em muitas longas noites, em discussões que variavam tão
amplamente quanto as Hellers. Muitas vezes, eles conversavam enquanto passeavam pelas
ruas de Nervasin. O inverno estava se aproximando rapidamente, e mesmo em dias de sol,
o gelo e o vento imperavam e traziam um tom avermelhado para os rostos dos dois
O D o m d e A l t o n | 189

homens. Muito em breve, as tempestades de neve os manteriam todos dentro de casa,


exceto para as tarefas mais necessárias. Lew e Jeram aproveitavam todas as oportunidades
para esticar as pernas ao ar livre, para explorar as antigas ruas de paralelepípedos e as
estreitas vielas sinuosas sombreadas por antigas casas de pedra cinzenta, para parar em
uma taverna ou loja de sapatos.
- Não entendo por que você luta com espadas quando é capaz de muito mais. - Jeram
disse em uma dessas ocasiões, quando passou uma hora examinando uma exibição de facas
forjadas lindamente e punhais.
- Com armas de laran, você quer dizer? - Lew perguntou.
- Sim, exatamente!
- Nós fomos por esse caminho durante a Era do Caos e quase destruímos a nós
mesmos. - Lew disse com um traço de severidade. - Só o Pacto nos salvou, isso e o fato de
que quando você está ligado telepaticamente, você sente a dor do seu inimigo em você
mesmo.
- Você lutou na Antiga Estrada do Norte. - Jeram apontou. - E eu não vejo nenhum
santo entre voces.
- Nós darkovanos não somos melhores do que qualquer outro povo. Nós amamos,
odiamos e sangramos, e tentamos viver a melhor vida que pudermos. Mas uma coisa é
atacar no desespero ou a traição, e outra bem diferente é deliberadamente destruir um
inimigo indefeso.
Eles saíram da loja para uma rua mais larga. O céu, que estava claro quando eles
deixaram a Torre, tinha anuviado. Uma sombra se fechou sobre a cidade. O ar cheirava a
neve e relâmpagos.
- Eu ouvi esse Pacto ser mencionado antes, mas não entendi. Pensei que era apenas
uma superstição sobre a tecnologia moderna. - Jeram disseapós uma longa pausa.
- É um pacto de honra, mantido ao longo dos últimos mil anos pelos Dominios. - Lew
ajeitou a capa mais firme em torno dos ombros. - Ele proíbe o uso de qualquer arma que
não coloque o usuário em risco igual. Aquele que empunha uma espada deve vir ao alcance
da lâmina de seu inimigo.
- Mas uma arma de longa distância... - Jeram interrompeu, balançando a cabeça. Sua
pele ficou pálida. - Portanto, não há vítimas inocentes em Darkover?
- É claro que há. Não somos perfeitos. Nós cometemos erros e alguns de nós optam
por fazer coisas que sabem que são erradas.
Jeram assentiu e não disse mais nada sobre o assunto.
No final da tarde, caiu a primeira tempestade da temporada sobre os picos Nervasin, e
Lew e Jeram sentaram-se juntos ao lado do fogo na câmara de Jeram, Lew sentado na única
cadeira sem braços, Jeram em um banquinho emprestado da enfermaria. O quarto era
O D o m d e A l t o n | 190

simples e espaçoso, e Jeram não tinha acrescentado nada para adornar as paredes de pedra
ou amortecer o chão. Os alforjes de Jeram estavam em um canto, com a capa pendurada
em um cabide ao lado da porta e alguns objetos pessoais, um pente feito de chifre de
chervine e uma navalha, tinham sido colocados ao lado da bacia em cima da mesa única.
Caso contrário, o quarto podia muito bem parecer desocupado.
A última parte da supressão da memória tinha sido destruída e agora Jeram conseguia
se lembrar de tudo o que acontecera com ele durante a Batalha e depois.
Jeram olhou para as brasas cintilantes, silencioso. Lew sabia que era melhor não se
intrometer nos pensamentos de Jeram. Fora difícil no começo, meio com medo, mas agora
alíviado por ter terminado o que ele se propôs a fazer.
Na mente de Lew, o Padre Conn estava junto do seu ombro sussurrando. Sente-se.
Respire. Espere.
Por fim, Jeram se moveu. - Você assumiu um grande risco em me dizer tudo isso. Eu
não acho que teria sido tão corajoso.
- Não foi coragem. Eu não tive escolha.
Jeram olhou para suas mãos. - Você poderia ter se afastado, ficado em casa sem dizer
nada.
- Ainda tenho que viver comigo mesmo. Talvez se eu tivesse sido algum outro homem,
se eu não tivesse sido parte de Sharra, minhas próprias ações não teriam me atormentou a
este grau.
- E a mulher com os olhos de ouro?
- Minha filha, Marguerida.
- Eu gostaria de conhecê-la algum dia. - Jeram disse. - Não para apontar nenhum dedo,
como se eu tivesse o direito de fazer isso! Só para vê-la por mim mesmo e colocar esse caso
para descansar. Se ela pode parar os atacantes com sua mente, ela deve ser realmente
poderosa.
Um pensamento penetrou na mente Lew, manchando o momento de brilho. Se ele
tivesse feito errado em usar o dom de Alton depois da Batalha na Antiga Estrada do Norte,
Marguerida não seria culpada também?
Deixe para lá. Disse uma voz sussurrando em sua mente. Você não é o guardião da
consciência dela.
Jeram ergueu a cabeça... Lew não poderia dizer o quanto de seus próprios
pensamentos Jeram tinham seguido.
- Não acho que fizeram nada errado, qualquer um de vocês. – Jeram disse. - Mesmo
sabendo de tudo agora.
Lew ouviu a capitulação na voz do outro homem, a hesitação momentânea.
Jeram também está escondendo alguma coisa.
O D o m d e A l t o n | 191

- Você sabe que participei da emboscada. - Jeram disse. - E que depois desertei. Fiquei
aqui em Darkover e escondi minha identidade Terran. O que você não sabe, o que ninguém
neste planeta sabe... Droga, isso é mais difícil do que eu pensava!
Jeram levantou-se, arrastando as pernas do banco sobre o chão de pedra, e passou as
mãos no cabelo e no rosto. Chamas brilharam sobre as gotas de suor em sua testa. Lew
sentiu sua vergonha, o medo da descoberta, mas também a sua desesperada necessidade
de contar a alguém...
O primeiro pensamento de Lew foi que ele não era digno de ouvir a confissão de
Jeram. Que direito ele tinha de julgar?
Se você pode admitir o que fez, Jeram disse telepaticamente, talvez eu possa fazer o
mesmo...
Você já traiu seu juramento também?
- É uma longa história. – Jeram disse.
- Nós temos tempo.
Jeram andou alguns passos, tão longe quanto podia nas dimensões de seu quarto. Ele
fez uma pausa, respirou fundo, e virou-se de volta para Lew. Sua boca tremeu na indecisão.
Então, de um momento para o outro, os olhos ficaram limpos, com sua expressão alterada
para determinação. Ele ainda irradiava ansiedade. Suavemente, sem tirar os olhos de Lew,
ele sentou-se no seu lugar.
- Quando me alistei não havia muita chance de uma guerra total, apenas a
manutenção da paz e exploração. Isso é o que eu queria fazer, escalar montanhas em
mundos alienígenas. Então me juntei ao ME que é Mapeamento e Exploração.
- Sim, eu sei. - Através do relacionamento franco que surgiu entre eles, Lew sentiu o
entusiasmo do outro homem.
- Uma coisa levou a outra. Havia uma Unidade de Xenopatologia pequena em Ramos
V, com foco para proteção de nossas tropas contra doenças nativas. Como eu tinha feito
cursos em técnicas médicas, estagiei lá, antes de ir para o campo.
Jeram tinha sido parte do primeiro contato e equipes de Colonização em cinco
planetas. Suas palavras saíram francas, descrevendo sua formação intensiva, as condições
árduas nos planetas desertos, o treinamento para triagem de micróbios infecciosos e
protocolos de imunização padrão.
- Então... - Jeram fez uma pausa, o rosto nebuloso - os Expansionistas assumiram o
controle da Câmara dos Deputados. Houve aquele negócio feio em Ephebe. Mas você não
ouviu falar sobre isso aqui em Darkover.
- Na verdade, lembro-me muito bem. – Lew disse. - Por muitos anos representei
Darkover no Senado, então não sou alheio à política do Império. Eu vivi na Terra, em Thétis
e Vainwal também. Isso o surpreende?
O D o m d e A l t o n | 192

Jeram deu um sorriso irônico. - Nada sobre você pode me surpreender.


- Quanto a Ephebe, - disse Lew - a versão pública oficial dos fatos era que a
Corporação Transplanetaria reivindicou a posse do planeta e quando os moradores
sabotaram o espaçoporto, o Império enviou tropas para restaurar a ordem. Na época,
suspeitei que a história era para encobrir um golpe militar. À luz dos acontecimentos
posteriores, apareceu a sede da Premier Nagy pelo poder, estou certo disso.
- Eu lembro... Eu estava presente durante os jogos de guerra no Setor Castor. -
Balançando a cabeça, Jeram continuou. - A política mudou e assim chegaram novas ordens.
Eles não queriam proteção contra os agentes infecciosos que aconteciam naturalmente,
não mais. Eles estavam desenvolvendo novas armas biológicas próprias. Queriam vacinar
seus soldados a fim de implementá-las de forma segura. E é onde eu entro na história.
Lew estremeceu. Criar deliberadamente uma praga e dissemina-la em uma população
despreparada...
- Diziam para nós que estavam protegendo nossas tropas. – A indignação mal contida
fervia sob as palavras de Jeram. - O trabalho não era muito diferente do que eu já tinha
feito. E eu não precisaria ser um gênio para descobrir suas verdadeiras intenções.
- O que você fez?
- O que eu poderia fazer? Eu tinha um amigo servindo junto comigo em Ramos V que
renunciou a sua comissão e sofreu um infeliz acidente na semana seguinte. Eu sabia que
eles nunca me deixariam ir, mesmo com o juramento de sigilo. Então segui junto, fiz o
trabalho que eu tinha sido treinado para fazer... E mais.
- Você... - Lew fez uma pausa, engolindo a bile que subia na parte de trás de sua
garganta. - Você criou uma praga?
Jeram olhava para o fogo, seus olhos estavam escuros e sombrios. - Projetei sistemas
para identificar e isolar micróbios patogênicos, ou fazer um organismo inofensivo se
transformar em uma forma virulenta. Não, eu nunca deixei um desses micróbios pequenos
soltos, mas era apenas uma questão de tempo antes que alguém utlizasse o meu trabalho
para fazer exatamente isso.
- Mas você não sabe se isso aconteceu? - Ele estava tentando justificar o passado de
Jeram por causa de sua amizade. Ele estava realmente ajudando Jeram desculpando suas
ações? Será que ele poderia ter encontrado qualquer resolução para a sua culpa se ele não
tivesse enfrentado suas próprias escolhas honestamente?
- Quando fui transferido para cá suspeitei que não seria para um típico trabalho
burocrático. – Jeram continuou.
- Por que um especialista em doenças era necessário em Darkover? - Um
pressentimento terrível estremeceu a coluna de Lew. O que o Império estava planejando
nos seus últimos dias?
O D o m d e A l t o n | 193

- Você me contou - Jeram disse, seus olhos brilhando vermelhos na luz das chamas -
que este planeta não tem tecnologia, um clima horrível, sem recursos de metais
significativos e uma população escassa e agrária. Porque o chefe da estação pediria um
especialista em desenvolvimento de armas biológicas?
- Belfontaine! - Lew cuspiu a palavra como uma maldição. - O bre'suin teria usado
todos os meios para deixar Darkover de joelhos. Mas ele nunca teve uma chance, não é? O
Império o removeu antes, forçando-o a sair. Foi por isso que ele ordenou a mal planejada
emboscada!
- Foi um ato desesperado. - Jeram assentiu. - Você realmente me fez um favor,
cobrindo minhas memórias da emboscada. Cedo ou tarde, algum burocrata teria tropeçado
em meus discos de identificação e teria perguntado o que eu estava fazendo nesta bola de
neve esquecida. Agora estou listado como morto ou desaparecido em ação. Tenho uma
chance de começar de novo. - Ele prendeu a respiração. - Passei a minha carreira
profssional em violação de todas as regras de ética. Se o que eu fiz faz de mim um monstro
a seus olhos, vamos vê-lo agora.
Desta vez, Jeram encontrou o olhar de Lew plenamente. Lentamente, sem jeito, Jeram
baixou os escudos mentais. Lew estendeu a mão, tão suavemente quanto podia e por um
instante tocou na mente brilhante de Jeram.
Tudo na vida pode ser manipulado para o bem ou para o mal, Lew disse
silenciosamente. O seu conhecimento, o meu Dom... A Federação poderia usá-los para seus
próprios fins.
A compreensão fluiu entre eles dando lugar à compaixão. Compaixão pelo homem
ferido que agora sentava-se diante dele. Compaixão por sua própria angústia refletida. Lew
sentiu a onda de resposta de Jeram, a pontada de lágrimas, o soluço de alívio.
Você não é um monstro, mais do que eu sou, Lew pensou e soube pela primeira vez
que era verdade.

Capítulo 20

O Solstício de Inverno chegou a Nervasin, com celebrações que eram modestas para os
padrões das planícies, pelo menos até Jeram entendia isso a partir da vivencia de Lew e dos
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outros. Muitas das pessoas da vila e da cidade, seguiam as maneiras dos cristoforo, e não
adoravam Hastur e Cassilda.
As pessoas da Torre, como de costume, fizeram um jantar de Festival e passaram o dia
cantando. Todo mundo participou, até mesmo Silvana que geralmente era distante. Com
uma harpa no colo, ela logo fez todos rirem com uma balada longa sobre um monge
errante e os conteúdos de seus muitos bolsos. Jeram não era etnomusicólogo, mas poderia
ter jurado que a melodia era Terran e muito antiga.
Sentado em seu canto, fortificado com uma caneca de vinho temperado quente e
batendo ao ritmo da música com um pé, Jeram sentiu-se mais relaxado do que nunca. Se
ter laran significava a aceitação em uma comunidade, ele era realmente abençoado.
Com a passagem do inverno, o grande sol vermelho balançou mais alto no céu. Os dias
assumiam uma cor persistente. Flores silvestres cobriam as encostas das Hellers. Neve
ainda caía quase todas as noites, mas os dias eram amenos.
Jeram aproveitou o bom tempo para ir para casa. Morna caiu em seus braços,
chorando de alívio. É claro que ele devia voltar para a Torre, ela concordou, se era
necessário para a sua recuperação. Uma grande mudança havia acontecido nele, ela
exclamara. Ele parecia ser outra pessoa.
Não sou o meu velho eu, Jeram pensou. Nunca mais serei o mesmo.
Quando eles se despediram, ela olhou para o seu rosto por um longo momento, como
se quisesse memorizar suas característcas. Ele nunca havia prometido nada além da
partilha de uma refeição, uma lareira e uma cama, que no meio destas montanhas era tudo
o que era necessário para um casamento de companheiros livres. E poderiam dissolver o
vínculo a qualquer momento.
Como a doença do limiar tinha passado, como Silvana prometeu que aconteceria, e as
memórias reprimidas já não assombravam seus sonhos, ele conquistou o domínio de seu
laran e os acontecimentos de sua vida tomaram um novo padrão. Ele poderia ter tropeçado
neste mundo por uma combinação de sorte e instinto, mas ele estava na Torre Nervasin por
uma razão, além de seus próprios interesses pessoais. Talvez ele estivesse em Darkover
para um propósito maior também.
Embora a realização pessoal viesse lentamente, trabalhando com Lew Alton como um
restaurador para o homem mais velho, como foi a restauração para Jeram também. Parado
na janela aberta de seu quarto na Torre, olhando em direção ao sul para as colinas
inclinadas em direção a região das Terras Baixas, Jeram pensou: se houver esperança para
Lew, se houver cura e paz, então ele não pode perder a esperança, nem mesmo eu.
Uma brisa puxou seu cabelo, agora crescido a altura dos ombros. Ele poderia voltar
para Rock Glen e aos braços quentes de Morna, caçar peles no inverno, a agricultura de
centeio e trigo resistentes vermelho, vegetais de raiz e couves durante o verão. Era uma
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vida boa, uma vida rica, uma vida simples. Mas não era a dele ainda. Mesmo com toda a
paz da Torre, uma semente de inquietação ainda corria por suas entranhas, uma peça do
quebra-cabeça que ainda não se encaixava.
Jeram? A voz mental de Illona roçou sua mente.
Com deliberação, Jeram moldou sua resposta. Ele nunca seria muito bom em telepatia
projetiva, pois tinha a aprendido muito tarde na vida. Só alguém como Illona, com seu dom
poderoso, poderia pegar seus pensamentos sem dificuldade.
Estou aqui.
Você pode se juntar a nós na sala comum? Temos um visitante! A excitação da
pequena através de seus pensamentos era contagiante, como se ela estivesse cantando.
Jeram sorriu para si mesmo. Se ele fosse dez anos mais jovem, estaria apaixonado por
ela. Ela era uma linda menina, tão talentosa quanto rara, e qualquer coisa que lhe desse
prazer seria bem-vinda.
Ele respirou fundo, concentrando-se em suas palavras. Estou a caminho.
Jeram parou na porta de seu quarto, com uma mão no trinco, a olhar para o cômodo.
Como um anônimo que parecia ser, como poucos, os traços da personalidade do seu
habitante deveriam estar expostos. Em seus últimos anos nas forças do Império, ele tinha
acumulado alguns bens materiais. Mas seus bens maiores eram a sua habilidade e
conhecimento. Então, como um desertor, ele não ousava manter qualquer coisa. Agora...
como ele já sabia onde estava indo, era melhor não ligar-se ao passado.
Ele estava condenado a ser um pária? Ou, como sugeriu Lew, um homem que ainda
não tinha encontrado o seu propósito?
Jeram desceu as escadas de pedra para a sala comum. Metade dos trabalhadores da
Torre tinham se reunido lá, com Silvana visivelmente ausente. A mesa estava posta com
pratos festivos, pães em espiral impregnados com especiarias, pão salpicado de nozes
torradas e frutas secas, tigelas de pêssegos da montanha minúsculos e creme adocicado,
jarros brilhantes com vinho temperado.
Um jovem estava no meio deles. Ele não devia ter mais de vinte anos, magro e de
cabelos negros, mas tinha uma inquestionável aura de comando. Suas roupas, apesar de
manchadas da viagem, eram lindamente cortadas, jaqueta e calça com bordados, de
camurça e veludo lisos. Alinhada, ele usava uma capa curta atirada para trás sobre um
ombro.
Lew sentou-se na mais confortável das cadeiras, suas cicatrizes iluminadas pela
alegria. O recém-chegado, que tinha estado a falar de forma animada com Illona, inclinou-
se para dizer alguma coisa para o velho e pousou a mão sobre seu ombro. Jeram viveu
entre telepatas tempo suficiente para reconhecer a intromissão de tal toque. No entanto,
Lew apenas sorriu e acariciou a mão do garoto.
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Illona gesticulou para Jeram se juntar a eles. - Domenic, posso lhe apresentar Jeram,
aprendiz de seu avô? Estou feliz que você tenha a oportunidade de conhecê-lo, pois temo
que ele vá nos deixar em breve, por ter esgotado o que podemos lhe ensinar. Jeram, este é
Dom Domenic Alton-Hastur.
Um fidalgo do Comyn e neto de Lew! Isso explicava o porte aristocrátco do menino,
bem como sua familiaridade carinhosa com o velho.
Jeram se sentia seguro, pois nem Illona nem ninguém ali iria denunciá-lo como um
desertor Terranan. Silvana tinha falado sério quando disse que as Torres não julgavam um
homem pelo seu passado.
- Vai dom. - Jeram disse, inclinando-se desajeitadamente.
- As formalidades são desnecessárias na Torre. - Domenic respondeu em um tom
gracioso. - Mas agradeço sua gentileza.
Ele avaliou Jeram com um olhar firme, sua expressão solene, mas aberta. Jeram nunca
tinha visto olhos como os dele, dourados e salpicados de cinza aureolado de preto. No
instante em que Jeram lembrou de como se proteger com suas próprias barreiras psíquicas,
as suas mentes se tocaram. O laran de Domenic era completamente diferente de qualquer
um da Torre Nervasin, complexo e ressonante, como um vendaval varrendo por baixo das
Hellers, como as vastas profundezas do oceano ecoando, como o calor fundido de um
vulcão.
- Somos todos amigos aqui. - Illona disse, com os olhos brilhando. - Domenic e eu nos
conhecemos desde crianças e estudamos juntos na Torre Neskaya. Já se passaram três anos
desde que nos vimos. Venha, vamos sentar, e Domenic pode ganhar o seu pão dizendo-nos
as últimas fofocas de Thendara.
- Receio que as notícias são de alguns meses atrás. - Domenic disse quando se sentou
ao seu lado no banco acolchoado. - Estou na estrada desde que as passagens se abriram no
final do inverno.
- E que desculpa você inventou para fugir desta vez? - Illona brincou. - Não me diga
que você foi tomado por um desejo de entrar para os Viajantes! Garanto-lhe que a vida,
apesar de toda a sua reputação romântica, está longe de ser invejável. Tanto é assim, que
você nunca sabe quando algum intrometido bem-intencionado vai levar você para longe e
para uma Torre para o seu próprio bem!
- Sim, e olhe onde está você agora. - Domenic respondeu, claramente se recusando a
se ofender.
- Você pode considerar a minha aventura como uma última tentativa antes de
estabelecer-me com meus deveres como Regente em treinamento. - Domenic disse com
um suspiro. - Eu esperava poder adiar por mais um ano, mas quem sabe? Antes de eu estar
vinculado a Thendara, queria ver mais dos Domínios, especialmente as Torres. - Ele tinha,
O D o m d e A l t o n | 197

aparentemente, visitado a maioria delas, e esta era a sua última parada antes de voltar
para casa, para a reunião anual do Conselho de Governo.
- Fico feliz em vê-lo, Nico, mas você tem outros assuntos aqui? - Lew perguntou. -
Nervasin não é um lugar a que se vem por prazer.
- O Comyn ainda é muito pouco numeroso e demasiadamente disperso. - Domenic
disse, seu tom agora sério. - As Torres, com seu conhecimento e discernimento, devem
desempenhar um papel mais importante nos assuntos darkovanos. Na verdade, a ideia veio
de Danilo Syrtis, mas o pai apoiou e me ajudou a convencer a mãe de meu desejo de viajar
para persuadir tantas Guardiãs quanto eu puder para se juntar a nós nesta temporada do
Conselho.
- Dar as Torres uma voz no Conselho é um caminho perigoso a seguir. - Sammel, o
técnico sênior de matriz, que estava ouvindo a conversa, falou. - Mesmo o mais disciplinado
entre nós é vulnerável à corrupção pelo poder. Será que você quer nos fazer voltar à Era do
Caos, com a tirania de laran? E eu lhe asseguro que essa foi a razão pela qual as Torres se
retiraram. Os assuntos mundanos não mudaram.
Jeram, ouvindo, não pode deixar de concordar. Se um par de pessoas do Comyn
dotados com laran pôde derrotar uma força de elite do Império e, em seguida, apagar a
memória dessa batalha de suas mentes, o que uma Torre inteira de telepatas treinados
poderia fazer?
Domenic balançou a cabeça. - Não quero um retorno aos dias de antes do Pacto, mas
avançar para os dias que virão. Para começar, propomos um Conselho de Guardiões,
consultivo, num primeiro momento, um fórum para discutir nossas preocupações mútuas.
- Tais como? - Illona perguntou.
- Encontrar e treinar telepatas como você.
- Ah! - Ela disse e bateu palmas.
- É verdade, - uma das mulheres disse - que estamos isolados aqui em Nervasin.
Falamos muito raramente nas transmissões com as outras Torres e nunca com os Lordes do
Comyn. Entretanto, curamos aqueles que vêm até nós - ela olhou para Jeram - então por
que não aplicamos também nossas mentes e talentos a outros problemas?
- Isso Silvana quem deve decidir. - Sammel entoou gravemente. Então a discussão
terminou, pois a Guardiã não estava entre eles.
A conversa girou para longe em outras direções, notícias de nascimentos e mortes,
casamentos, corridas de cavalo e escândalos mesquinhos. Jeram prestou pouca atenção,
pois ele tinha pouco interesse nos feitos dos Thendaran na alta sociedade. Depois de um
tempo a reunião dispersou e os trabalhadores que formavam os círculos da noite foram
descansar.
O D o m d e A l t o n | 198

Illona saiu para ver como os acompanhantes de Domenic estavam e sua comitiva na
aldeia. O jovem lorde, ao que parecia, viera para uma visita de um decanato ou mais.
Domenic fez uma pausa para falar de novo para Lew. - Estou contente de vê-lo em boa
saúde. Espero que você seja capaz de voltar comigo para a temporada do Conselho. Temos
poucos conselheiros com a sua experiência e conhecimento.
Por um momento, o velho olhou surpreso. Jeram sentiu o quanto Lew sentia falta de
sua filha, a mãe de Domenic, e do rapaz também.
- Quando vim para Nervasin, eu tinha um plano de nunca sair de novo, exceto, talvez,
para a última viagem ao rhu fead. - Lew disse. - Agora... - Seu olhar cintilou para Jeram e um
leve sorriso suavizou a boca cheia de cicatrizes. - Se Darkover ainda tem necessidade de
mim, ficarei feliz em lhe servir.
Como tinha feito muitas vezes antes, Jeram acompanhou Lew ao longo do caminho de
volta para o mosteiro. Lew caminhava lentamente, pois o inverno passado trouxe nova
rigidez para suas articulações. Jeram desejou que Lew tivesse montado em seu cavalo, mas
Lew insistia em caminhar quando o tempo permitia, dizendo que o dia ia chegar muito em
breve, quando ele não teria escolha.
Neste dia, Jeram não deixou Lew às portas do mosteiro. Ele acompanhou Lew para a
câmara reservada aos convidados, mas agora entregue a utilização de Lew. Lew acendeu
um fogo na lareira e colocou a chaleira para aquecer a água para um chá de hortelã da
primavera.
- Você está perturbado, meu jovem amigo. – Lew disse, quando se sentaram ao lado
da lareira para saborear a bebida pungente e refrescante.
- Não posso esconder nada de você, posso?
Lew sorriu tão suavemente que as cicatrizes em seu rosto se fundiram com os vincos. -
Quando se vive em uma Torre, onde os homens e as mulheres falam diretamente um ao
outro pelas mentes, há pouco espaço para a pretensão. Voltarei a Thendara com uma
chama no coração e um peso retirado. Mesmo com todo o trabalho que tem feito aqui, no
entanto, algo permanece, algum núcleo de dor dentro de sua alma.
Jeram desviou o olhar. Eu poderia ter odiado este homem todos os dias da minha vida.
Eu poderia ter me tornado uma casca de amargura em torno de uma ferida purulenta. Eu
poderia nunca ter aprendido a verdade.
- Lew, você e eu tivemos um longo caminho nestes meses de inverno. Há muito eu
entendi você e porque você fez o que fez. Sobre mim e sobre o que realmente aconteceu
na Estrada do Norte. Sobre Darkover e sobre o que é realmente importante. Você não me
deve nada, espero que você saiba isso.
O D o m d e A l t o n | 199

- Tenho feito o que posso. - Lew murmurou. - No entanto, não posso estar
completamente feliz, sabendo que existe algum tumulto interno que impulsiona você
ainda.
Jeram levantou-se e caminhou até a porta. Eu estou cansado de correr, cansado de me
esconder.
Fique em paz, meu amigo, e que cada um de nós possa encontrar as respostas que
buscamos.
Jeram não poderia ter certeza de qual deles tinha partido a oração silenciosa. Este,
então, era o dom e a maravilha do laran, este espaço atemporal, sem dissimulação ou má
interpretação. Esta verdade simples entre eles.
Cansado de correr, cansado de se esconder.
Jeram tinha falado mais verdades do que sabia. Ele tinha visto a coragem que levou
Lew a confessar, a se humilhar, a pedir perdão. A paz que ele tinha trazido para Lew
brilhava como uma radiação através de cada gesto seu.
Não havia nada que ele pudesse fazer a respeito de sua participação no programa do
Império de armas biológicas. Se as pessoas tivessem morrido como resultado de seu
trabalho, ele não poderia trazê-las de volta à vida. Ele devia encontrar uma maneira de
conviver com essa possibilidade.
Uma coisa, no entanto, ele poderia fazer, e era seguir o exemplo de Lew: Ele poderia ir
até aqueles que ele tinha prejudicado ou tentado causar dano, ao Conselho em Thendara, e
admitir sua parte na emboscada. Ele não achava que eles iriam executá-lo. A reação de Lew
e seu próprio conhecimento limitado da ética darkovana sugeria que combatentes inimigos,
uma vez derrotados e desarmados, eram tratados com honra. Eles podiam puni-lo em
alguma prisão pública, no entanto esta cultura definia restituições. Quando isso acabasse,
tanto ele quanto Lew, teriam feito tudo o que podiam. Ele seria tão livre quanto a sua
consciência lhe permitiria ser.
Então ele poderia voltar para a aldeia de Morna ou ir para onde a estrada o levasse,
sem ter que olhar por cima do ombro. O tempo da clandestinidade realmente acabaria.
Na manhã seguinte, Jeram disse suas despedidas para Silvana. Durante seu tempo em
Nervasin, eles nunca tinham se tornado realmente amigos. Isso não era possível de
qualquer maneira com uma Guardiã que tinha aprendido a se manter separada. Illona, com
seu calor fácil e bom humor contagiante, era uma exceção. Mantendo a posição centripolar
em um círculo, o necessário controle era quase desumano, e muitas Guardiãs não podiam
suportar a disciplina por mais de um punhado de anos. Silvana durou mais tempo do que a
maioria, e esse isolamento emocional foi o preço. Ela olhou-o com o olhar firme e
penetrante, como se ela pudesse ver claramente através dele, a verdades que ele mesmo
havia ainda de descobrir.
O D o m d e A l t o n | 200

- Temos feito tudo o que podemos por você. – Ela disse. -Sua vida não está aqui entre
nós. O mundo o chama. Vá com a nossa bênção.
Ele curvou-se, despediu-se dela e pegou a estrada para Thendara.

Capítulo 21
O D o m d e A l t o n | 201

A aurora varreu os picos de Nervasin. À luz do grande Sol Sangrento, o gelo glacial
brilhava como rosa em tons de pérola. Nas encostas mais baixas, o frio da noite levantou,
junto com o orvalho evaporando.
Domenic tinha deixado a Torre antes do café da manhã, enquanto os trabalhadores
que operavam as telas de transmissão ou trabalhavam no círculo durante a noite se
reuniram para uma refeição e um pouco de relaxamento antes de dormir durante o dia.
Desde sua chegada, ele havia sido amarrado em uma reunião formal após o outra, com os
vereadores, o padre mestre do mosteiro, todos, menos com a pessoa que ele tinha vindo
ver. Silvana ainda não havia encontrado tempo para falar com ele. Ela não estava doente,
simplesmente ausente. Nenhuma explicação foi oferecida e todos tinham sido
apologéticos, mas firmes. Aqui se mantiveram para as velhas fórmulas. A vontade da
Guardiã era a lei, não devia ser questionada. Ele tinha passado da expectativa para a
decepção e, finalmente, para exasperação, e se ele não se afastasse, correria um sério risco
de um ataque de mau humor.
As idiossincrasias do guarda da Torre Nervasin tiraram apenas uma pequena parte do
humor atual de Domenic. Sua jornada estava chegando ao fim, aquilo era para ser sua
última parada antes de voltar para Thendara. Ele não tinha nenhuma razão para o atraso e
seus pais esperavam que ele chegasse a tempo para a abertura da temporada do Conselho.
Sua missão havia sido muito bem sucedida. Istvana Ridenow tinha ficado encantada ao vê-
lo e prometeu participar da próxima reunião do Conselho. As Guardiãs de Dalereuth e
Corandolis receberam o convite com interesse educado.
A aldeia fora da cidade de Nervasin fervilhava de atividade. Suas ruas estreitas cheias
de homens e mulheres locais, empacotados contra o frio da manhã, carregando cestos ou
ferramentas de trabalho, viajantes em pôneis da montanha, comerciantes preparando suas
barracas e tropeiros com cordas de chervines carregados. Mercadores oferecendo seus
produtos em cada esquina, acrescentando clamor a vila.
Domenic parou em uma barraca de comida para comprar uma caneca de cidra quente
e uma massa recheada com carne temperada e cebola. Meia dúzia de pedestres pararam
para olhar para ele enquanto ele comia. Quando terminou sua refeição, seu plano original
de passar a manhã com seu avô parecia menos atraente. O que ele precisava, ele decidiu,
era chegar o mais longe possível das pessoas.
Uma trilha na extremidade da aldeia levou Domenic para as encostas rochosas.
Enquanto subia, o exercício aqueceu seus músculos. Seu rosto vibrou no ar vivo da
montanha. A tensão em suas costas e ombros aliviou. Ele encontrou-se cantarolando
baixinho.
No fundo de sua mente, ele sentiu um estrondo baixo, muito lento e profundo para a
audição humana comum. Através dele teceu uma melodia, selvagem e doce, como a luz
O D o m d e A l t o n | 202

solar brilhante em água corrente. Domenic entregou-se à harmonia musical, lenta como
uma geleira e rápida como um córrego da montanha. Quando o momento de alegria
ressonante passou, ele desejou que houvesse palavras para capturá-lo.
Domenic parou na beira de um prado muito inclinado. Flores silvestres cresciam aqui
em profusão. Ele não tinha percebido que poderia haver tantas formas e cores brilhantes
em vermelho e roxo, com pesadas cabeças-de-sino brancos, margaridas brilhando em ouro
e laranja, e flores-estrela no terreno. Quando atravessou o campo, ele viu que muitas já
tinham ido para a semente. A floração era muito curta nesta altitude.
Na outra extremidade do campo, as rochas se projetavam da encosta em camadas
pontiagudas, com suas bordas suavizadas por estações de vento e chuva. Ele se dirigiu para
elas, pensando em descansar no sol.
Sentindo uma pitada de laran na sua frente, Domenic reconheceu a assinatura mental
de Illona. Ele apressou o passo. Os últimos dias haviam lhe dado pouca oportunidade para
passar algum tempo com sua amiga.
Illona?
Domenic! A alegria dançou através de sua chamada mental.
Ele a viu agora, envolta em um manto de lã de chervine quase da mesma cor que a
rocha. Ela empurrou para trás o capuz, revelando o cabelo cor de cobre brilhante, e acenou
para ele. Ela estava sentada tão imóvel, que ele não a teria notado.
Domenic chegou ao lugar onde estava Illona. A cor brilhava em seu rosto. Num
impulso, sem pensar, ele estendeu os braços. Por um instante, eles eram crianças
novamente, jogados juntos em circunstâncias desesperadas. Ela era a garota viajante sem
educação, vivendo com sua inteligência e o dom que ela ainda não sabia que possuía, e ele
era o filho rebelde de um Lorde do Comyn, aterrorizado e empolgado com a trama Terran
que acabara de descobrir.
Num piscar de olhos, o tempo mudou, e ele tinha uma mulher vibrante e jovem em
seus braços. Vários cachos caiam livres de seu fecho borboleta. Eles roçavam seu pescoço
como tentáculos de seda, com cheiro de mel e flores silvestres. Seus braços magros
seguraram com força o corpo flexível contra o seu.
Ele a soltou. Ela não era uma camponesa, mas sim uma comynara nedestra e Sub-
Guardiã, que nunca mais devia ser assediada pelo toque casual de um homem.
Olhos verde-jade se arregalaram enquanto ela captou sua angústia momentânea. -
Vamos, Nico. – Ela disse, usando seu apelido de infância. - Você não me ofereceu nenhum
insulto.
- Nós fomos amigos uma vez, - ele gaguejou - mas isso foi há muito tempo.
- Ah, foi? Por todos esses três anos? - Ela reuniu as dobras de seu manto em torno
dela. - Bobagem. Chega! Vamos caminhar.
O D o m d e A l t o n | 203

Domenic a seguiu, mantendo o ritmo com seu passo, fácil, cadenciado. Claramente, os
anos de estudo na Torre não tinha afetado sua vitalidade.
- Você acorda cedo. – Ele disse, tentando puxar conversa.
Ela sorriu por cima do ombro para ele com um toque de seu antigo mistério. - Gosto
de sair quando o sol está brilhando. Estava tão escuro durante o inverno, achei que tudo
iria ficar tão pálido quanto os vermes.
- Isso é natural, quando está nevando na maior parte do inverno.
- De fato! Os portões principais foram completamente cobertos por um decanato este
ano, mas estávamos preparados. Quando a Torre foi construída, as janelas superiores
foram projetadas para tais ocasiões.
Da mente de Illona, Domenic pegou a imagem dela e de um ou dois companheiros
mais jovens descendo numa cesta de neve, em cintas com raquetes de couro cru atado, e
fazendo seu caminho para a aldeia. Sua risada soou no ar congelado. Sob a imagem correu
um canto doce e selvagem por estar ao ar livre...
Profundamente dentro de Domenic, um desejo renovado surgiu de escapar dos muros
de Thendara, os quartos cheios de intrigas e responsabilidades, pessoas olhando para ele,
avaliando como usa-lo e que proveito poderiam tirar dele...
Domenic?
Ele derramou seus anseios aos cuidados constantes de Illona. Como, a partir de suas
memórias mais antigas de infância, ele odiava a cidade, as exigências do tribunal e do
Conselho. A alegria que ele tinha sentido quando se conheceram, quando ele tinha sido
capaz de viajar para onde quisesse. O peso esmagador da culpa e dever, como a cada dia o
castelo tornou-se uma prisão e estreitou sua vida, toda a cor e vida que escoava na
distância. Seu pesar ao deixar Neskaya, a breve pausa para as poucas estações. A linha de
vida que Danilo tinha oferecido, um tempo para escalar montanhas e andar pelas margens
do lago e mar, uma fuga que acabou cedo demais.
Oh, Domenic! É claro que você se sente assim! Como não poderia, sendo quem você é?
A resposta de Illona passou por ele como um bálsamo sobre as feridas abertas.
Eles haviam chegado a um impasse, de frente um para o outro. Domenic não tinha a
intenção de ser tão aberto com ela e, até aquele momento, ele não tinha percebido a
profundidade de seu desejo, evidentes até em sua respiração.
Illona estava diante dele, a compaixão brilhando em seus olhos. Ela não era
convencionalmente bonita, não como Alanna, mas todo o seu ser brilhava com algo que o
tocou muito mais profundamente. Ela não fez nenhum movimento para deixar de lado a
torrente de seus sentimentos, nem falar nada ou envergonhá-lo. Ela simplesmente ouvia,
em silêncio, infinitas possibilidades abertas diante deles.
O D o m d e A l t o n | 204

Domenic tinha crescido cercado por pompa e privilégio, adorado por seus pais, e se ele
tivesse sentido fome ou frio, ou tivesse se sentindo sozinho, tinha sido por sua própria
escolha. Illona, observando-o com os olhos calmos, levara uma vida muito diferente, de luta
e de incertezas.
No entanto, ela fez seu lugar ao sol com seu próprio talento e esforço. Um dia ela seria
uma Guardiã, sem sombra de duvida. Ela não tinha escolhido esse caminho por dever a
familia, mas ele deu forma a sua própria vida.
E ele desejou com todo coração ter um lugar nele.
- Nico? - A voz de Illona, baixa de preocupação, quebrou em seus pensamentos. - Há
algo de errado?
Senhor da Luz, o que eu estava pensando? Não estou prometido a Alanna?
- Estou com frio, só isso. - Ele gaguejou.
- Nós já ficamos muito tempo no frio para uma manhã. Você está pronto para voltar?
Sim? - Illona tomou sua mão, com seus dedos quentes e fortes em torno dela, e colocou-o
sob o seu manto.
Enquanto eles caminhavam, o vento desarrumou os cabelos de Domenic e irritou seus
olhos. Seu coração batia mais rápido com o esforço, mas também pelo entusiasmo. Por um
longo tempo, nenhum dos dois disse nada. Illona também estava respirando com
dificuldade, mas não mostrou nenhum sinal de fadiga.
Não, ele pensou, ela não.
Quando pararam para recuperar o fôlego, ele se sentiu estranho. O ar da manhã tinha
ficado puro como um cristal perfeito e até mesmo um passo em falso casual poderia
quebrá-lo.
Domenic virou-se, olhando para o caminho que tinham percorrido. Ele não tinha
percebido o quanto haviam subido. Imagens inundaram sua mente de cavalgar de volta
para Thendara com Illona ao seu lado, rindo, conversando, horas e dias juntos...
Ele queria ela com ele mais do que jamais quis nada em sua vida.
- Diga-me mais sobre esse seu Conselho de Guardiãs. – Ilona disse. - Se Nervasin
participar, eu provavelmente serei sua representante.
- Ora, Silvana não vem? Onde ela está, afinal? - Ele disse usando sua irritação para
cobrir seus sentimentos. - Por que ela está me evitando?
Illona encolheu os ombros. - Ela é uma Guardiã, responsável apenas por si mesma,
certamente não a um Lorde Comyn das planíces. Quaisquer que sejam as razões, elas são
suas.
- Você não está curiosoa? Você não se importa?
O D o m d e A l t o n | 205

- Eu certamente não iria perturbar sua solidão só porque ela fez você se sentir
desconfortável. - Ela respondeu com o espírito. - Alguns de nós temos coisas melhores a
fazer do que nos envolvermos em assuntos pessoais de outras pessoas.
Domenic tinha esquecido como Illona poderia ser direta e franca.
- Sinto muito, não queria ser rude. – Ele disse tentando parecer bem-humorado. - Não
posso julga-la, mas é minha criação pensar que tenho o direito de saber tudo sobre todos.
Seus olhos brilharam. - Oh sim, concordo completamente, foi muito rude! Devemos
definir qual será o seu castigo? Pão e água por um decanato? Lavar as latrinas? Já sei...
Recitar os versos de 'Honorio na Ponte".
Domenic gemeu, lembrando como a mestra dos noviços em Neskaya havia feito ele
memorizar o poema épico.
Domenic disse em uma voz cantante:
Um juramento poderoso ele jurou,
Um juramento de sangue que ele jurou,
Que a grande casa de Aldaran
Não mais sofreria errado.
Illona riu e entrou na canção, gesticulando dramaticamente:
E ordenou a seus mensageiros andar para frente,
Leste e oeste
sul e norte!
Ela jogou os braços e virou-se em uma dança selvagem, faltando inteiramente no
senso de direção. Domenic não conseguia se lembrar de quando ele rira tanto ou tão
livremente. Ele limpou as lágrimas dos olhos. Illona também estava vermelha, radiante.
- Eu quase tinha esquecido esse poema idiota. - Domenic disse quando se recuperou o
suficiente para continuar a andar. Em torno deles, o sol tinha subido bem alto. Uma doçura
inebriante se elevou da terra. Mesmo o gelo da encosta íngrime havia produzido flores no
calor do dia.
- Acho que eles poderiam nos ter feito memorizar qualquer coisa mais interessante. -
Illona disse. - O objetivo era ensinar a concentração, mesmo em algo tedioso. Deuses, foi
ridículo, não foi?
- Com um treinamento como esse, não é de admirar que tenha que levar tudo tão a
sério.
- Há um tempo para isso, certamente. - Ela disse. Eles andaram por um tempo em
silêncio sociável, levemente afastados.
- Você perguntou sobre o Conselho de Guardiãs. - Domenic disse. - A ideia surgiu de
Danilo Syrtis. Ele tem sido como um mentor para mim. Ele vê as coisas mudando em
Darkover ainda mais rapidamente que meu tio-avô Regis, depois de sua morte e da partida
O D o m d e A l t o n | 206

do Império. Coisas têm sido postas em movimento, como linhas de fratura em um folha de
gelo.
- Que coisas? – Ela perguntou.
- Os velhos costumes foram morrendo antes mesmo dos Destruidores de Mundos
virem para cá, com o Comyn e suas famílias muito puras e isoladas, com pessoas famintas
de poder, com novas ideias de fora do mundo muito boas. Por um tempo, Regis manteve
nosso mundo em equilíbrio, o velho contra o novo. Agora o equilíbrio se perdeu e estamos
sendo governados por um número cada vez menor de aristocratas tacanhos. As pessoas lá
fora - ele apontou um dedo para as terras baixas - procuram os velhos costumes em vão. -
Ele olhou para ela, sabendo que ela podia ler seu rosto, assim como suas emoções. - Nós
vivemos agora fora de seus dízimos e sua lealdade, e temos muito pouco para dar-lhes em
troca. Algo novo deve existir. Alguém deve dar respostas ao povo.
Eu.
- As planícies devem ter mudado de fato para você dizer essas coisas. - Illona disse,
pensativa. - Aqui em Nervasin, na cidade e na Torre, a vida continua igual a do passado. Na
verdade, eu não ficaria surpresa se Varzil o Bom, voltando para nós, não notasse nenhuma
diferença.
- Em Dalereuth, você iria nota-las. – Domenic disse. - Ou em qualquer das cidades
pequenas nas Kilghards que agora são redutos de bandidos. Passamos por uma dúzia de
caravanas de refugiados se dirigindo para Thendara ou Corresanti, fugindo da seca. Eles se
voltam para o Comyn pedindo ajuda, como o povo tem feito desde o início dos tempos. Só
que agora não há uma resposta para eles. O que podemos fazer, sentados em Thendara,
sem ninguém para enviar e ajuda-los?
- Você acredita que as Guardiãs, agindo em conjunto, podem ajudar? - As sobrancelhas
dela se juntaram e ela apertou os lábios. - O que exatamente você acha que elas podem
fazer?
- Eu não sei. - Domenic suspirou. - Temos que tentar alguma coisa. Não podemos
simplesmente continuar como antes e parece-me que se mais mentes se concentram em
um problema, maior a chance de um deles chegando a uma solução. Danilo disse que foi o
que Regis temtou fazer, primeiro com o Projeto Telepata e depois com o Conselho
Telepático. Não podemos voltar a esses tempos, mas podemos tirar o melhor de suas ideias
e avançar. Nós estamos esperando que uma das Guardiãs de cada Torre em operação
participe do Conselho este ano.
- Não precisamos estar fisicamente presentes para falar uns com os outros. - Illona
lembrou. - É verdade, as telas de transmissão não funcionam tão bem em distâncias
maiores, mas não estamos completamente isolados.
O D o m d e A l t o n | 207

- É claro que não, - disse ele – mas, para o resto de Darkover, as Torres ainda são
coisas remotas e misteriosas. A maioria das pessoas não tem ideia do que vocês fazem.
- Você está dizendo que nós nos tornamos irrelevantes?
Por um longo momento, Domenic não respondeu. Ele sentiu um toque e um sussurro
na parte de trás de um pulso. A presença de Illona encheu sua mente.
- Eu não...não tenho certeza. Talvez tenhamos, todos nós.
Você nunca vai ser irrelevante para mim.
Em seus luminosos olhos verdes, ele viu-se, ora assolado por sonhos e dúvidas, ora
certo e constante, entrando em um futuro de medos misturado com esperanças. Ele pegou
a mão dela e a relação entre eles se intensificou.
Ele já não a via através de seus olhos físicos. Domenic flutuava em um oceano de luz
radiante. A mente de Illona se prendeu na dele, ao mesmo tempo que ele a segurava. Sua
força o surpreendeu, o poder treinado inflexível do laran de uma Guardiã.
Domenic sentiu uma pontinha de inveja porque, embora ele tivesse gostado de seus
estudos em Neskaya, ele sabia que nunca faria da Torre sua casa. A Torre tinha sido um
lugar para treinar seus talentos psíquicos e conseguir uma medida de auto-disciplina, bem
como um alívio de seus deveres em Thendara. Se ele fosse qualquer outra pessoa, poderia
ter encontrado um lugar em um círculo, talvez como um técnico de matriz de alto escalão.
Mas, para um herdeiro Comyn, destinado ao mundo, uma vida assim era impensável. Além
disso, não havia lugar na Torre ou em qualquer outro para sua habilidade de ouvir o
coração do mundo. Ele não tinha ideia de como isso podia ser útil. A maioria das pessoas,
pensou desanimado, não podia sequer conceber o que aquilo era. Ele próprio não tinha
palavras para descrever o que sentia, de tão profundo era seu sentido de presença. A
música não chegava nem perto de sua intensidade e poder.
Em resposta, Illona enviou uma onda de música através de sua consciência unida. De
uma só vez, Domenic ouviu os tons suaves e guturais de uma flauta de cana, o arpejo de
uma ryll, violas e címbalos, tambores e trombetas. Ele entendeu o que ela estava dizendo a
ele, que cada instrumento tocava de sua própria forma, que nenhuma era falha, apenas
diferente. Que cada uma era necessária para a harmonia crescente do todo.
Você ainda não encontrou seu verdadeiro lugar, ela falou com ele, de mente para
mente, mas quando o fizer, o mundo inteiro vai cantar!
Illona! Preciosa!
Naquele momento não intencional, ela era de fato preciosa para ele, um espelho de
seus sonhos e ainda inteiramente ela mesma.
A música foi construindo em sua mente, de acorde em acorde crescente, ondas de
prazer como o riso, como a respiração. Cada onda levou-o a algo maior, ligou-os mais
profundamente. Sob seus pés, ele imaginou as montanhas cantarolando com alegria.
O D o m d e A l t o n | 208

O frio trouxe Domenic de volta para seus sentidos físicos. Ele não tinha ideia de quanto
tempo tinha passado juntos na encosta varrida pelo vento. Nunca, em todos os seus dias,
nem mesmo no seu tempo em Neskaya, ele já havia entrado em uma unidade tão profunda
com outro ser humano, nem sabia que era possível.
Illona ficou agitada. Domenic colocou os braços em volta dela. Seu manto caiu aberto.
Ela ajeitou suas dobras em torno de ambos. Inclinando-se para ele, ela levantou o rosto. Em
um movimento tão natural como respirar, seus lábios se encontraram. Ele sentiu o beijo na
boca do seu estômago... Luxúria, certamente, mas também algo mais profundo. Uma forja,
uma unificação. Nunca havia sentido tal equilíbrio, cada um deles dando e recebendo, em
partes iguais. Seus corações se beijavam, não apenas os lábios.
Eles se separaram como dançarinos que conheciam seus passos perfeitamente. O
espaço ficou aquecido com a proximidade de seus corpos. Não conseguia pensar em nada
para dizer, não haviam palavras que não quebrassem o momento perfeito. Não havia
necessidade de dizer alguma coisa. Como um, eles deram as mãos e voltaram para
Nervasin.
Eles ainda estavam em harmonia, mas capazes de conversar sobre coisas comuns,
enquanto se aproximavam da Torre. Vários animais de montaria, mulas e pôneis resistentes
das montanhas, estavam no jardim da frente. Servos da Torre se movimentavam para
dentro e para fora dos portões. Sammel e Fiona, o mais jovem membro do círculo, estavam
falando em tons agitados com um monge cristoforo.
Fiona olhou para cima, ao vê-los. - Illona! Louvada seja Evanda, você voltou. Sammel
não conseguiu alcançá-la com a sua pedra da estrela e achou que algo tinha acontecido.
Um rubor delicado tingiu as faces de Illona. - Minha atenção foi desviada por um
tempo.
- Sou o culpado por isso. – Domenic disse. - Eu estava caminhando nas colinas e Illona
me guiou de volta. Qual é o problema?
O monge, um homem pequeno e magro de meia-idade, respondeu. - Nós, de São
Valentim ajudamos os doentes em honra ao Santo Portador dos Fardos. Agora, um número
maior de pessoas pobres têm vindo a nós, expulsos de suas casas pelo fogo ou pela fome.
As mulheres e crianças enviamos para nossas irmãs renunciantes, pois nenhuma mulher
pode entrar nos limites sagrados. - Aqui, seu olhar passou para Illona inquieto.
- Pode continuar, bom irmão. – Ela disse serenamente.
- Geralmente, todos esses homens precisam de cuidados, de uma boa cama quente,
alimentos nutritivos e um pouco de descanso. Seus corpos retornam à boa saúde e eles
tomam seu caminho. Mas há dois dias um dos pacientes ficou muito doente. Apesar nossos
melhores esforços, ele piorou. Ele queima como se estivesse no fogo.
O D o m d e A l t o n | 209

- O que há errado com ele? - Illona perguntou. - Presumo que os enfermeiros estão
familiarizados com as várias febres e seus tratamentos.
O monge fez um gesto de impaciência. - Este caso está além até mesmo da habilidade
do irmão Kyril. Padre Conn me mandou pedir ajuda, e rápido, antes que a pobre alma esteja
além de qualquer remédio.
- Sammel é o único homem com o treinamento de monitor. – Fiona apontou. - Se o
caso é tão grave, melhor levar mais do que um de nós.
- Eu vou também. – Domenic disse. - Eu treinei durante vários anos em Neskaya.
- Então, teremos o suficiente para um círculo de cura. – Illona disse. - Isto é, bom
irmão, se for permitido que essa monitora e eu entremos?
- Padre Conn previu que isso aconteceria. - Ele fez um gesto para que eles se
juntassem e o seguissem.
Domenic trouxe seu próprio cavalo dos estábulos da Torre, selou-o, e eles partiram
para o mosteiro.
Portanto, este é o lugar onde o avô tem se escondido, Domenic pensou quando
passaram pelos portões pesados de madeira de São Valentim das Neves.
Illona, que tinha entrado primeiro com seu grupo de leronis, olhou de volta para ele.
Dificilmente se escondendo, Domenic. Foi ele quem falou para Padre Conn chamar por
nossa ajuda. Esta não será a primeira vez que mosteiro e a Torre trabalham juntos.
Sim, isso parecia certo. Na imaginação de Domenic, uma Guardiã encapuzada, toda
vestida de vermelho ao lado de um monge e seguidos por um Lorde Comyn, seria uma visão
e tanto.
Uma visão digna, de fato! IIllona concordou silenciosamente. E uma que rezo para que
seja o destino e que vivamos para cumprir, nos alimentar, mesmo como um Guardião atrai
as mentes do seu círculo em harmonia.
Ela correu atrás do monge. Em suas sandálias, movia-se silenciosamente através do
pátio de pedras rumo ao edifício principal.
Olhando para as paredes de pedra cinzenta, Domenic viu que tinham sido moldadas e
colocadas inteiramente por mãos humanas. O vento e o tempo tinham suavizado as marcas
deixadas pelos cinzeis, mas não conseguiu apagar a dissonância persistente, as linhas de
fratura invisíveis deixadas pelo metal cortando pedra. Ele queria acariciar as paredes, como
acariciaria o pescoço de um cavalo rebelde, para persuadi-lo a concordancia.
Dentro, o prédio era pouco iluminado, mas os olhos de Domenic rapidamente se
ajustaram à pouca luz.
- Esta é a enfermaria. – O monge disse, abrindo uma porta. No interior, haviam quatro
ou cinco leitos enfleirados, cada um com um travesseiro e cobertor. Um monge dormia em
O D o m d e A l t o n | 210

um, o capuz puxado sobre o rosto, as mãos cruzadas sobre o peito. O cobertor estava
cuidadosamente dobrado a seus pés.
No final da sala, um monge se inclinava sobre um paciente, limpando a cabeça e peito.
Lew estava sentado ao lado da cama, segurando sua pedra da estrela na mão única. Ele
sorriu quando Domenic e os outros entraram, andando calmamente para não perturbar o
monge dormindo.
- Vovô! - Domenic exclamou. - O que está fazendo aqui? O que está pensando ao
expor-se a uma doença grave?
- Onde mais eu poderia estar, se não onde sou necessário? - Lew disse, sem o menor
sinal de preocupação.
O guia pediu licença para sair. O enfermeiro se endireitou, evitando cuidadosamente
olhar diretamente para qualquer uma das mulheres. Domenic tinha uma melhor visão do
paciente sob as camadas de cobertores. O homem parecia ser de meia-idade, com o rosto
de quem se sujeitava as intempéries. A febre corou sua pele, que pendia sobre seus ossos.
Ele soltou uma fraca tosse, quase um chiado.
Vendo a relutância do enfermeiro para lidar diretamente com as mulheres, Domenic
falou. - Quem é ele? Há quanto tempo está assim?
O monge pareceu aliviado quando respondeu: - Seu nome é Garin, e, tanto quanto eu
posso interpretar suas respostas, ele é um agricultor que trouxe sua família aqui para
Nervasin em busca de trabalho. Dois deles já morreram, uma mulher - ele usou uma
inflexão para lançar dúvidas sobre se ela era realmente sua esposa - e uma menina. Elas
foram levadas doentes pouco depois de sua chegada à cidade e pereceram depois de
alguns dias de doença. Há quanto tempo este homem está doente, não posso dizer. Tenho
medicado a ele há dois, não, três dias, mas acredito que seus sintomas começaram algum
tempo antes disso. Como você pode ver, ele é resistente e deve ter sido uma pessoa ativa e
útil. Tal perda de carne não ocorreu durante a noite. Um homem forte pode, por vezes, ir
ao seu trabalho por algum tempo após o início de uma doença.
- Será uma pena se ele tiver espalhado algum contágio durante esse tempo. – Fiona
disse.
- Nem todas as doenças podem ser transmitidas diretamente de uma pessoa para
outra. - Illona apontou.
Outro monge chegou com vários novatos, trazendo bancos para todos se sentarem.
Illona estava dirigindo a colocação das pessoas no círculo com Fiona um pouco de lado. O
enfermeiro retirou-se para o outro lado da sala, claramente disposto a deixar seu cargo
para com estas mulheres.
Domenic tomou seu lugar com os outros. Sentiu-se um pouco estranho por trabalhar
na intimidade de um círculo com o avô Lew, ou com Sammel e Fiona, a quem mal conhecia.
O D o m d e A l t o n | 211

Os membros do círculo tiraram suas matrizes e começaram a concentrar suas energias


mentais através dos cristais psicoativos. Deixando de lado sua hesitação, Domenic entrou
em estado de transe já familiar. A mente de Illona tocou a sua. Ele sentiu-se tonto, como se
estivesse dançando uma secain selvagem, girando com ela. Em seguida, ele se tornou
consciente da firmeza de Sammel, do brilho facetado de seu avô. Fiona acabou como uma
fita de seda através do círculo, garantindo o bem-estar de cada um dos membros.
Illona, atuando como pólo, reuniu o laran dos outros. Uma sensação de subir, de
flutuar, envolveu Domenic. A consciência dos outros desapareceu e ele só pensava em
enviar o fluxo de energia de sua própria mente através de sua pedra da estrela e no
controle hábil de Illona.
O tempo perdeu todo o signifcado quando Domenic deixou seu corpo físico para trás.
Em torno e através dele rodavam névoas coloridas, brilhando em tons pasteis, como a luz
da Câmara de cristal ou uma versão pálida do Véu na rhu fead em Hali. Nos montes
iridescentes de brilho, ele imaginou estrelas em miniatura. Quanto mais profundamente
entrou em estado de transe, menos ele se viu como uma névoa separada. Maravilhas se
impregnando nele, construindo uma forma constante em alegria transcendente.
Domenic... Pausa... Você deve sair agora.
A voz mental era desconhecida, mas distintamente feminina. Fiona.
Com uma relutância que o surpreendeu, Domenic saiu do círculo, a visão retornou e
ele piscou. Seus olhos ardiam como se tivesse passado muito tempo no sol. Os outros
tinham também despertado e foram arrumar suas matrizes. Sammel ficou de pé, batendo e
balançando os braços. Fiona se esticou e bocejou. Lew parecia cansado, mas sereno.
Franzindo a testa, Illona se inclinou sobre o homem doente. Seu rosto parecia menos
abatido, mas sua respiração ainda era ofegante em seus pulmões. O enfermeiro veio e, com
um novo ensaio de deferência, perguntou a Illona se ela tinha sido capaz de ajudar o
paciente.
- Creio que ele está um pouco melhor. - Ela disse. - Mas não sei quanto tempo vai
durar essa melhora. Isso não é normal na febre dos pulmões. Há alguma virulência em seu
sangue que eu nunca tinha visto antes.
- Não estou surpreso. – O monge balançou a cabeça, infeliz. - Essa febre tem resistido
a todos os nossos remédios. Qualquer coisa que você possa fazer por ele será apreciado.
Illona levantou devagar. - Vou procurar em nossos arquivos médicos e, com sua
permissão, ou eu ou Fiona, que é nossa curandeira mais qualificada, voltará hoje para
cuidar dele.
Quando o enfermeiro hesitou, ela disse. - Isto pode não ser fácil para você, por estar
separado tanto tempo de mulheres e depois ter admiitr não uma, mas duas de nós. No
O D o m d e A l t o n | 212

entanto, desde que o paciente permaneça estável, posso enviar Sammel ou Domenic no
nosso lugar.
O alívio cintilou por trás dos olhos do velho monge. - Isso seria o melhor, pelo menos
por um tempo, vai leronis. Como você acertou em supor, está em nossos costumes aceitar
a mudança, mas lentamente.
Com isso, o grupo da Torre se despediu e partiram.
O D o m d e A l t o n | 213

Capítulo 22

Domenic voltou para o mosteiro no mesmo dia para ver Garin. Ele foi sozinho porque
Sammel estava claramente exausto, embora o homem mais velho não tivesse feito
nenhuma queixa. Fiona mencionou que Sammel havia trabalhado a noite toda no círculo de
Silvana. - Ele acha que pode continuar sem descanso, como se fosse uma daquelas
máquinas Terranan. - Ela sussurrou.
Domenic ficou feliz por estar em atividade. Ele não estava tão cansado e uma refeição
tinha restaurado sua força. Mais do que isso, ele agora estava achando a proximidade com
Illona perturbadora. Ela tinha dormido grande parte da tarde, mas ele podia sentir sua
presença, como se ela fosse uma névoa iridescente, o material das estrelas, em sua alma.
Ele precisava pensar, se concentrar em outra coisa, para ganhar um pouco de clareza de
pensamento. Ele não queria examinar a possibilidade de que estava apaixonado por ela,
amando verdadeiramente, totalmente e sem reservas, do âmago de seu ser, como ele
nunca tinha sentido com Alanna.
A melhoria na condição de Garin que era resultado do trabalho do círculo naquela
manhã tinha desaparecido quase completamente. Não havia nem mesmo uma cor fraca no
rosto do doente, embora ele despertasse quando Domenic acomodou-se no banco de
cabeceira. Um jarro de cerâmica de cidra com mel, ainda quente, tinha sido deixado ao lado
da cama. Domenic levantou a cabeça Garin e segurou um copo nos seus lábios.
Suspirando, Garin lambeu os lábios e descansou no travesseiro fino. A bebida doce
parecia dar-lhe um pouco de força, pois ele foi capaz de responder as perguntas de
Domenic.
Enquanto Garin falava, uma imagem se formava na mente de Domenic. Este homem e
sua família eram exatamente o tipo de pessoas que tinham sido deixados à deriva pelo
fracasso da liderança do Comyn, aqueles a quem Domenic e cada um dos lordes em
Thendara deviam uma lealdade particular. Honesto e trabalhador, que eram o coração de
Darkover, tanto quanto a força do laran das Torres ou a força da espada do Comyn.
Se estivéssemos lá para ajudar, eles poderiam não ter sido forçados à estrada... Eles
poderiam não ter precisado fazer essa viagem durante o inverno...
Disse a si mesmo que não havia nada que poderia ter feito para impedir a sua tragédia.
Mas ele não era um homem comum, ele era o herdeiro de Hastur e da Regência do Comyn.
Garin caiu em um sono inquieto, não sentindo quando Domenic tocou sua testa.
Domenic tocou-o suavemente. O corpo do homem era como uma fornalha.
Ele pegou a pedra da estrela e tentou concentrar-se na joia psicoativa. Como todo
iniciante numa Torre, ele havia aprendido primeiro a monitoração, usando seu laran
O D o m d e A l t o n | 214

amplificado para sentir as energias da vida. Ele poderia até monitorar a si mesmo o
suficiente para manter seus canais de laran claros.
Entrar no corpo psíquico de Garin era como caminhar para o coração de um vulcão,
engolido pelo fogo. A força do homem estava sendo drenada a uma taxa surpreendente,
assim como sua carne, músculos e tendões, nervos e órgãos, se consumindo lentamente.
Ele era um homem forte e ativo, mas seus recursos estavam quase esgotados, e quando
isso acontecesse, sua vida iria sair dele como uma tocha nas caleiras.
Como lhe tinha sido ensinado, Domenic estreitou seu foco, descendo até o nível de
órgãos e tecidos para células individuais e os fluidos que as banhavam. Ele sentiu uma
incorreção sutil, um gosto que ele nunca tinha encontrado em um corpo saudável. Não
poderia ser de qualquer uma das doenças contagiosas mais comuns ou mesmo aquelas
restritas as Hellers, ou certamente o enfermeiro do mosteiro teria reconhecido. Nem Illona
nem seu círculo eram estranhos às várias doenças. Domenic mesmo teve uma formação
mais científica do que a maioria dos darkovanos, pois Marguerida tinha verificado se todos
os seus filhos poderiam passar nos exames de acesso à Universidade.
Esta poderia ser uma nova doença? Algo que sobrara da época dos Destruidores de
Mundos? Seus agentes não hesitaram em envenenar o solo destruindo organismos na sua
tentativa para transformar Darkover em um planeta pedinte para a Federação. Por que não
usariam uma doença bem humana, como a que tinha matado sua avó Javanne? Como
poderia ter ficado adormecida por tanto tempo?
As perguntas ressoaram na mente de Domenic quando ele saiu do estado de transe
para a consciência. Garin tinha afundado em um sono inquieto. Domenic sentiu o calor do
corpo do doente em seu rosto. Não havia mais nada a ser feito. Ele informou ao monge que
estava no atendimento que o estado do paciente havia se deteriorado e saiu em busca de
seu avô.
Ele esperava encontrar Lew descansando, mas o velho estava trabalhando no jardim,
com um chapéu de palha de abas largas e cantarolando enquanto cravava sua enxada entre
as linhas de tomates, abóboras e verduras. As abelhas zumbiam ao redor de flores-estrela
plantadas. Os aromas de mel, pólen e terra úmida enchiam o ar.
Lew olhou para cima quando o neto se aproximou, e Domenic pensou que nunca tinha
visto seu avô tão contente. As linhas de sofrimento que marcavam seu rosto haviam
diminuído e um novo brilho iluminava seus olhos.
Eles se sentaram num banco para conversar. Domenic contou suas preocupações
sobre a febre de Garin de ser uma arma Terran de início tardio.
- Não, creio que não, não depois de tanto tempo. - Lew enxugou a testa com um
pedaço de pano.
O D o m d e A l t o n | 215

A preocupação de Domenic diminuiu, pois seu avô não era um estranho para a
tecnologia de fora do mundo. Ele devia ter visto o Império na sua pior fase, quando serviu
como Legado darkovano.
- Pelo que entendi, - Lew continuou – esse pobre homem e sua família estiveram por
muito tempo na estrada, e o último inverno foi duro sobre todo o povo dele. Talvez sua
força se estendesse apenas o tempo suficiente para obter segurança para seu povo em
Nervasin.
- Temo que ele esteja se aproximando de um ponto sem volta. – Domenic disse.
- Então, você não deve ficar aqui, mas sim ir conversar com Illona e os outros na Torre.
Se alguém pode trata-lo com segurança, são eles.
Domenic não disse nada, pois em sua mente ele acreditava que Garin provavelmente
morreria. Ele se lembrou que este não era um caso isolado. A mulher e a criança que
tinham vindo para Nervasin com Garin tinham morrido também. Quantos mais se
seguiriam?
Domenic encontrou Fiona ainda acordada e disse-lhe da condição deteriorada de
Garin. - Irei ter com ele imediatamente. – A jovem monitora disse. - Você deve comer agora
e descansar ou corre o risco de pôr em perigo sua própria saúde. O trabalho com laran,
especialmente quando você não está acostumado, é desgastante.
Um cançaso que chegava à profundidade dos ossos atingiu Domenic. Ele sabia que ela
estava certa, mas cresceu com pais que exigiam muito de si, e ele não descansaria
enquanto houvesse trabalho urgente a ser feito.
- Primeiro preciso falar com Illona. – Ele insistiu.
- Seja breve, então. Não quero outro paciente em minhas mãos, especialmente um
que trouxe a desgraça para si mesmo devido a um sentido exagerado de responsabilidade!
Fiona guiou Domenic aos arquivos, uma sala pequena no alto da Torre. Estantes e
armários equipados com nichos para pergaminhos alinhados ocupavam todas as paredes
disponíveis. Uma pequena mesa ocupava o centro e ali estava Illona folheando um livro. A
idade havia descolorido as páginas do pergaminho. Partículas de poeira brilhavam na luz
vinda das janelas.
Illona estava tão absorta em sua leitura que não notou a presença de Domenic no
primeiro instante. Ela usava uma blusa solta, desbotada e remendada, e tinha amarrado o
cabelo para trás com um lenço igualmente desgastado. Alguns fios rebeldes tinham
escapado, caindo como um laço de cobre sobre os ombros.
Ela olhou para cima, com sua cor se aprofundando, e ele viu nos olhos dela uma
simples aceitação do estado entre eles. Não poderia haver segredos entre telepatas,
certamente não sobre algo tão intenso como seus sentimentos por ela.
O D o m d e A l t o n | 216

Illona fechou o livro, foi até Domenic e pegou as mãos dele. Catalisada através do
toque físico, a doçura inebriante de seu laran correu através dele. As bordas de sua visão
ficaram iridiscentes. Sua respiração ficou presa na garganta. Ele queria que o momento
durasse para sempre.
Você é minha amiga de infância querida, ele disse mentalmente e seu coração
despencou.
Não, ela continuou, não estou prestes a dizer que somos apenas amigos. O menino que
mudou minha vida para sempre cresceu em um homem, um homem com os dons mais
incríveis. E aqui ele sentiu a disciplina treinada de sua mente de Guardiã e soube que sua
avaliação não era mera bajulação. Um homem que eu vim a amar de uma maneira muito
diferente.
Por um longo momento, ele não podia acreditar que ela havia entendido.
- Nico. - Ela disse, sua voz macia em ressonância. - O que aconteceu entre nós na
montanha significa tanto para mim quanto para você. Nós fomos feitos um para o outro, eu
acho, e não importa onde estivermos, os nossos corações sempre irão nos chamar de novo.
Ele a puxou para perto, com seus braços ao redor dela, como se sempre se
pertencessem. Ele deixou cair as barreiras de laran, sua mente tão aberta a dela quanto a
dela para ele.
Sem aviso, o coração de Domenic bateu como um pássaro enjaulado contra suas
costelas. Sua cabeça girava com uma onda renovada de fraqueza. No instante seguinte, ele
sentiu as mãos fortes de Illona em cima dele, orientando-o para uma cadeira. Um toque
mental como uma melodia ondulante penetrou em sua cabeça, a energia surgiu através
dele.
- Domenic, meu querido, eu sinto muito. Não sabia que você estava em tal estado!
Você está drenado por seu trabalho com laran.
Ela se ajoelhou diante dele, ainda segurando seus braços, seus olhos úmidos de
preocupação. A respiração dela em seu rosto era como o mel. Ele bebeu-o, tirou a força de
sua proximidade. Ela emprestou-lhe sua própria energia através de suas mentes ligadas.
Isso não ia durar muito tempo, mas seria o suficiente para que ele pudesse segui-la para
baixo com razoável firmeza.
Pouco tempo depois, Domenic assistiu a agitação de Illona na cozinha, um cômodo
bem arrumado, escrupulosamente limpo com um forno de tijolos à moda antiga para o
cozimento, uma pia de pedra enorme e caixas para guardar especiarias, nozes e farinha.
Um pequeno caldeirão com algum tipo de sopa, perfumado com ervas e cebolinha, estava
pendurado logo acima das brasas inclinadas.
Silenciosa e competente, Illona preparou um prato de pães em espiral de frutas, doces
pegajosos e nozes açucaradas. Ela colocou a refeição na frente dele, junto com uma caneca
O D o m d e A l t o n | 217

de jaco da chaleira no fogão e sentou-se de frente para ele do outro lado da mesa de
trabalho surrada. O cheiro da comida revirou seu estômago, mas ele se forçou a comer.
Após as primeiras mordidas, ele terminou o resto vorazmente, cedendo ao desejo do seu
corpo para o alimento.
Entre garfadas e goles de jaco, Domenic contou a Illona sobre Garin e seus próprios
medos de alguma doença Terran criada para ser uma arma.
- Tenho ouvido falar de tais coisas. - Illona disse com uma expressão de desgosto. -
Acho que Lew está certo. Certamente muito tempo se passou para que só agora se
manifestasse. Por outro lado, existe uma possibilidade, apenas remota, com muito pouca
evidência para apoiá-la, que esta possa ser a recorrência de uma doença darkovana nativa.
- Então por que o enfermeiro do mosteiro não a reconheceu? - Domenic perguntou.
- Porque nenhum de nós viu a febre das trilhas por uma geração.
- Febre das trilhas? - Domenic procurou em sua memória. Algum tempo depois da
destruição de Caer Donn, Regis Hastur liderou uma expedição ao território do Povo das
Árvores para descobrir uma cura. Essa foi uma das primeiras iniciativas de cooperação
entre o Comyn e os Terranan. - Não foi erradicada há mais de quarenta anos atrás?
- Isso é o que os registros dizem. - Illona disse. - A febre foi, e acho que ainda é,
endêmica entre o Povo das Árvores, e, em sua espécie, é muito leve. Se espalha para as
populações humanas que vivem perto de seu território a cada 48 anos ou algo assim.
Pessoas supersticiosamente atribuíam a doença à conjunção das quatro luas. Segundo
minha pesquisa, ela começa com alguns casos nas montanhas, no mês seguinte uma
centena ou mais casos, e então se espalha. Assim, e esta parece ser a característica
definidora, exatamente três meses depois, já são milhares de casos.
Seus olhos escureceram, como se uma nuvem tivesse passado na frente do sol. Ela
respirou fundo. - E três meses depois...
- Mas não temos nenhuma evidência de que a doença de Garin é de fato a febre das
trilhas e não outra coisa.
Illona balançou a cabeça. - Não, estou provavelmente evocando dragões com fumaça e
espelhos, do modo como costumava fazer em shows dos viajantes. Além disso, este não é
um território do povo das árvores. Suas florestas natais ficam a alguma distância do
Kadarin, embora ninguém relatou tê-los visto em anos.
- Muitas vezes nossos medos nos levam a imaginar o pior. – Ele disse.
Ela sorriu e o sol brilhou mais uma vez atrás de seus olhos. - Sim, deve ser isso. Vamos
enviar a notícia para Neskaya e, se não houver mais casos em qualquer lugar das Hellers,
será o fim da minha teoria. Agora, se você terminou de comer, vou ver se Fiona precisa da
minha ajuda.
O D o m d e A l t o n | 218

Ela ficou de pé e Domenic seguiu o exemplo. Seus músculos já não tremiam na beira
da exaustão, mas ele logo teria de se render ao sono.
- Você virá para minha cama hoje à noite? – Ela perguntou.
O desejo o inundou, um súbito calor pulsando em sua virilha. Ele imaginou o toque de
seda de seu corpo, sua pele nua contra a dele, seus gemidos de prazer. Seu coração
trovejava em seus ouvidos.
- Esqueci minhas maneiras. – Ela disse, corando um pouco. - Eu deveria ter esperado
por você me perguntar?
Ele ficou sério. Os costumes e a moral das Torres eram muito diferentes do Comyn.
fazer amor com ela e depois nunca tirar da memória, dobrado em seu coração como um
tesouro secreto. Ela nunca exigiria nada.
- É seguro? - Ele perguntou, pensando em Alanna.
- Eu sei os meus limites. – Ela respondeu séria. - Não vivemos mais na época em que
mantinham Guardiãs virgens para a Visão. Às vezes, o trabalho em si impõe o celibato, mas
eu não sugeriria levar você para a cama se eu não pudesse salvaguardar nós dois. Não
correremos riscos, nem uma gravidez não planejada.
Alanna nunca saberia. Para ela, seria como se a noite nunca tivesse acontecido.
Mas não para ele. Olhando para Illona, com seu coração em seus olhos, vendo-a
envolta na glória iridescente de seu laran, ele sabia que uma vez que tivessem consumado
seu amor, ele nunca poderia ficar longe dela. Seu coração, corpo e mente, seriam dela para
sempre.
A luz em seus olhos mudou e ele soube que ela entendia. Perfeitamente, sem palavras,
com a mesma simplicidade e aceitação.
Você alimenta a minha alma. Ele pensou.
Como você faz com a minha. Nós já demos nós mesmos um ao outro, tanto quanto
este mundo triste permite. Sem tristeza, querido coração, meu amor será seu para sempre.
Ela fechou o contato entre eles, roçou os lábios com um beijo como borboleta e foi
embora.
Domenic ficou na cozinha, enquanto seu pulso diminuía e os ecos de sua presença
morriam.
Dentro das câmaras espiraladas de sua mente, ela estava se movendo em direção a
ele.
Ela sempre se movia em direção a ele, com os olhos brilhando, como se iluminados
por dentro, lábios entreabertos em entusiasmo e prazer.
Sempre, seu coração seria vibrante, atingido por ela.
Sempre.
O D o m d e A l t o n | 219

Domenic rolou na cama, incapaz de dormir. Seu corpo ansiava por descanso, mas
todas as pulgas do burro de Durraman pareciam ter fixado residência em seu crânio. Seus
pensamentos saltando de uma preocupação para outra.
Illona... Alanna... Aquele pobre homem, Garin... Avô podendo adoecer da febre...
Voltar para Thendara... O que Francisco Ridenow poderia fazer na próxima vez... As visões
de Alanna de uma cidade morta...
Ele desembaraçou-se dos cobertores, estendeu-se, e tentou acalmar sua mente,
lembrando os momentos de ouro no início do dia. Seus músculos tensos suavizaram. Uma
sensação agridoce pairou na borda de seus sentidos.
Illona...
- Sim, querido. Estou aqui.
Domenic sentou-se quando a porta se abriu silenciosamente. Ele não a tinha chamado
deliberadamente, e ela ainda estava no limiar, banhada em luz de um globo azul pálido em
sua mão erguida. Seus pés estavam descalços e ela usava apenas uma camisola solta.
- Eu não entendo. - Ele começou.
- Shhh. - Ela apagou a luz e fechou a porta atrás de si. - Não temos nenhuma
necessidade de palavras.
Na escuridão, ela brilhava com sua própria luz interior, ou assim parecia, pois ele olhou
para ela com laran, assim como os olhos. Se ela o tocasse ou apenas o soprasse, sua
resistência iria quebrar.
Ele tentou lembrar todas as razões por que ele deveria mandá-la embora, todas as
exigências de promessas e do dever. Tudo sumiu à luz crua da verdade.
Ele precisava dela como precisava de fôlego, sono ou do nascer do sol.
Ela se moveu em direção a ele e Nico sentiu o calor de seu corpo em seu rosto, o
sussurrar de sua respiração antes que seus lábios se encontrassem. Ele sentiu-se
endurecendo, fechou os olhos, puxando-a para si, e envolveu os dois no mesmo cobertor.
Ela estava tremendo, assim como ele, e nenhum era pelo frio.
Eles ficaram abraçados durante o que pareceu um longo tempo, falando com beijos,
respirando um a proximidade do outro. Ele tocou seu rosto e pescoço. Ela mudou de
posição colocando os músculos da curva de sua coxa contra ele. O calor os sacudiu, a
excitação crescente de seus próprios corpos se alimentando.
Entrando em harmonia, suas sensações invadiram suas mentes. Ele não podia dizer
onde terminava sua paixão e a dela começava. Cada toque, cada beijo, cada mudança de
braço ou perna, transformou-se em uma dança misteriosa, inebriante. Ele sofria com o
sempre crescente anseio, até que a tensão tornou-se insuportável.
O D o m d e A l t o n | 220

Ele chegou a um clímax pela primeira vez com ela por cima, com as mãos em seus
ombros, o corpo curvado para que ele pudesse sentir seus seios e a queda sedosa de seu
cabelo sobre seu coração.
Por um instante, sentiu-se separado dela. Em seguida, ela recomeçou, dirigindo sua
pélvis, apertando seus músculos internos. Ondas de doçura em efusão surgiram por meio
de sua barriga. Ele nunca tinha sentido nada parecido com o êxtase pulsante que o prendia,
levando-o a cada onda maior. Ela abriu a ele, como ele fez com ela. Ele sentiu como se
estivesse voando e se afogando, tudo de uma vez.
O segundo tempo foi menos urgente, ainda delirante, desenfreado, como um galope
de cabeça para baixo numa ladeira íngreme na chuva. Eles haviam rolado para que ela se
deitasse debaixo dele. Seus músculos flexionados e liberados, tão poderosos como os de
um cavalo de corrida. Seu desejo surgiu através dele, foi além de ambos. Então, de repente,
todo lugar que tocou ficou inflamado, incandescente como o fogo, como um relâmpago,
como prata fundida.
Quanto à terceira vez, sua mente se juntou tão profundamente a dela, que pareciam
ser uma pessoa só apanhados no mesmo abandono delirante. Ele se sentiu pairar, no limite
do orgasmo. O menor movimento iria catapultar-los em comunhão. Algo se firmou entre
eles, olhando para os olhos do outro, compartilhando uma respiração, um batimento
cardíaco. Um deles, ele não poderia dizer quem, ofegou e fechou os olhos e, como um, eles
se renderam em uma cascata de êxtase.
Depois, ficaram em um emaranhado de cobertores. Ela descansou a cabeça em seu
ombro, uma coxa esticada através dele. Ele suspirou, desejando que o momento pudesse
durar para sempre.
- Preciosa. – Ele finalmente disse. - Eu a desejo mais do que qualquer coisa e queria
estar livre para casar com você.
Ela mudou em seu peito. - Por que arrastar política para isso?
- Mas, eu pensei que se você sentisse o mesmo que eu, e sei que você sente, gostaria
de estar comigo, como eu quero estar com você.
- É claro que quero! Eu gostaria muito de fazer amor com você de novo. - Seu riso era
como um córrego da montanha. - No entanto, não tenho vontade de me casar com você ou
qualquer outro. Sou uma leronis, não alguma mulher sem educação que precisa depender
de um homem para seu sustento.
- Eu nunca iria insultá-la sugerindo que você se tornasse minha barragana. - Domenic
respondeu, irritado. - Gostaria de oferecer-lhe toda a honra devida como minha esposa
legítima.
Illona apoiou-se sobre um cotovelo. - Domenic, seja razoável. Você será o próximo
Regente do Comyn. Você não pode ter uma companheira livre ou se casar com alguém que
O D o m d e A l t o n | 221

é, para ser franca, uma bastarda não reconhecida em uma cerimônia, casando di catenas.
Isto está fora de questão. Equivaleria a tornar-me sua propriedade.
Uma dor passou por ele. Sentindo-se miserável, incapaz de ver qualquer saída para a
discussão, Domenic disse: - Esse é o ponto. Oh, deuses, eu deveria ter dito antes! Estou
noivo de Alanna Alar. Fizemos a promessa em segredo, antes que eu soubesse o que era
amor. Eu não tinha ideia do que estava fazendo, mas não posso quebrar minha palavra com
ela. Nem mesmo...
Nem mesmo se isso significar passar o resto da minha vida com meu coração em um
lugar e meu dever em outro.
- Ela chorou tanto quando eu saí. – Ele disse, lembrando do sentimento, quando
tentou secar as lágrimas de Alanna.
- Cario mio. - Illona tocou seu rosto com a ponta dos dedos. - Você acha que o invejo
sobre o que você deve fazer? Ou desejo nada menos do que você é? Como eu poderia estar
com ciúmes depois do que nós compartilhamos?
Se essas palavras fossem ditas por qualquer outra mulher, Domenic não teria
acreditado. Somente vindas de Illona.
Vamos valorizar este momento juntos, seus pensamentos cantaram através de sua
mente. E todos os outros momentos, até que o destino e a morte nos separarem.

~o ⭐ o~
No dia seguinte, Garin entrou em coma, e três dias depois morreu. Os monges de São
Valentim ficaram preparando seu enterro no cemitério da aldeia.
Em meio aos preparativos para voltar a Thendara, Domenic e Illona compartilhavam
uma cama tão frequentemente quanto o tempo e seus deveres permitiam. Como eles
tinham que saber as necessidades dos outros e seus ritmos, sua vida amorosa tornou-se
ainda mais rica. Às vezes Illona ficava muito drenada por seu trabalho como Sub-Guardiã
para que o sexo fosse seguro. Ela precisava de descanso para repor a energia psíquica e
manter os canais de laran limpos. Domenic, consciente de quão pouco tempo tinham,
ficava acordado, embalando-a em seus braços, deleitando-se com o calor de sua pele nua
contra a dele, inalando seu cheiro ou apoiado em um cotovelo, observando-a à luz fraca das
luas. Ele tentou memorizar cada linha de seu rosto adormecido, cada curva emocionante de
seu corpo, cada fio de seu cabelo.
Logo, ele não teria nem isso dela. Logo, eles teriam perdido este santuário. Alanna
estaria esperando por ele, esperando que ele anunciasse o seu noivado...
Outras vezes, quando seu corpo ainda vibrava com os ecos remanescentes de prazer,
Domenic se perguntava como ele poderia suportar fazer amor com outra mulher ou nunca
fazê-lo novamente. No entanto, mesmo que ele mantivesse sua promessa à Alanna, como a
O D o m d e A l t o n | 222

honra ditava, quando eles fossem marido e mulher, ele poderia não ser capaz de consumar
seu casamento. Certamente, quando ele a deixou, Alanna era incapaz de qualquer
sentimento sexual. Ele não podia amá-la como fez com Illona, mas ele se preocupava
demais com ela para arriscar a sua vida novamente.
Talvez com tempo e paciência, a sexualidade de Alanna poderia retornar
naturalmente. Talvez ela consentisse em voltar para Arilinn, onde as salvaguardas
temporárias poderiam ser removidas e o normal funcionamento restaurado. Disse a si
mesmo que estas eram esperanças tolas, noções impossíveis, de que era inútil se torturar
com esperança.
Caso contrário... Então ele deveria encontrar uma maneira de suportar. Os monges de
São Valentim viviam no celibato, então isso era possível. Assumindo, refletiu amargamente,
que você pudesse chamar isso de vida.
Quanto ao outro problema, a necessidade de descendência, Domenic passou a noite
pensando em uma solução. Na época do desastre de Sharra, Regis tinha não tinha
herdeiros, então ele tinha designado um filho da sua irmã, Mikhail, que havia de fato
passado a ser herdeiro de Hastur e Regente dos Domínios. Não havia nenhuma razão pela
qual, dado tal precedente, Domenic não pudesse fazer o mesmo. Ele podia esperar um
tempo adequado para todos concluirem que seu casamento não foi frutífero e determinar
o candidato mais provável. Não Gareth Elhalyn, que era herdeiro de seu próprio Domínio,
além do mais, ele era neto de Regis. Talvez o irmão mais jovem de Gareth, Derek, ou um
dos Hasturs de Carcosa...
Consumido com estes pensamentos, Domenic rolou para longe da forma adormecida
de Illona. Todas as luas haviam desaparecido, deixando a câmara na escuridão. Um terrível
silêncio o envolveu como se a noite tivesse engolido seu coração. Ele se sentiu muito vazio
e se pôs a chorar.
Nico? Com um farfalhar suave de tecidos, Illona se aproximou dele. Seus dedos, suaves
e fortes, deslizaram sobre seu ombro nu, acariciando seu rosto.
Por um instante, ele ficou tenso. Por que atormentar-se com o que ele nunca poderia
ter de novo?
Nós temos esta noite. Nós temos este momento.
A ternura varreu suas mentes fundidas. Ele se virou para ela e a envolveu em seus
braços, segurando-a firme contra seu coração. Ela não disse nada, pois nem havia palavras
para momentos como estes. Enquanto ele não pensasse em nada além deste momento
presente, seria o suficiente.
O D o m d e A l t o n | 223

Capítulo 23

Jeram esperava alcançar Thendara bem antes do pôr do sol, mas o chervine que levava
seus suprimentos estava com uma pedra encravada em seu casco fendido, retardando seu
progresso. Pelo tempo que ele levou para conduzir o pequeno animal manco pelas encostas
ele pode ver as antigas casas de pedra de Thendara cercadas pelos remanescentes da
Cidade Comercial e do espaçoporto abandonado, o crepúsculo já se arrastando por todo o
céu.
Um acampamento entrou na sua vista fora da estrada principal. Para olhos de Jeram, o
lugar tinha as características de um acampamento bruto em vez de local de descanso
adequado de um viajante. Ele supôs que poderia haver quatro ou cinco dezenas de homens
espalhados pelo local.
Tendas e um galpão ou dois agrupados em torno de um poço de pedra cinza. Além
deles, pôneis das montanhas desgrenhados, chervines e um cavalo, todos comendo a
grama ao longo de uma linha de piquetes. Um homem alto e loiro tinha montado um
galpão aberto para os lados, as laterais cobertas com cobertores, além de outros. Ele
assobiava entre os dentes enquanto usava uma pedra para amolar uma faca.
Jeram se aproximou do acampamento, uma mão segurando a corda da ligação de seu
chervine e a outra estendida para fora e aberta para mostrar que ele não carregava
nenhuma arma.
Um dos homens ao redor do fogo fez uma saudação e um gesto para Jeram se juntar a
eles. Seu cabelo estava mais branco do que cinza e ele usava uma camisa de peles e botas
ao estilo das montanhas. Nem o seu sotaque, nem o nome da sua aldeia soavam familiares,
mas Jeram não se surpreendeu com a oferta de um fogo para compartilhar. Os antigos
hábitos de hospitalidade e camaradagem nas estradas muitas vezes sob condições
meteorológicas mortais era profundo.
Depois de instalar seu chervine ao longo da linha de piquete, Jeram trouxe sua barraca
de viagem enrolada e alforjes para partilhar uma refeição com o homem que o tinha
recebido e os outros.
Jeram tomou lugar em torno da fogueira e aceitou uma xícara de cerâmica grossa
cheia de chá quente, um líquido amargo e com forte cheiro. Ele engoliu em seco,
saboreando o chá de casca.
Jaco de um homem pobre...
Um agachou-se ao redor do fogo ao lado de seu filho de cabelos pretos, Rannirl, e três
ou quatro outras pessoas, incluindo um homem grisalho em uma jaqueta de viajante.
Segurava um guisado num pote de louça, claramente uma refeição comunal misturada com
vários ingredientes, cozido em uma cama de cinzas. Jeram lembrou mais uma vez da
O D o m d e A l t o n | 224

raridade de metais em Darkover. As pessoas pobres, como esses viajantes, não podiam
pagar uma panela de ferro para ferver a água ou cozinhar.
Um dos homens entregou a Jeram uma tigela de madeira e colher de chifre de
chervine esculpida. Seu estômago roncou quando ele provou a mistura de grãos cozidos,
batatas, cebolas roxas selvagens e ervas agradavelmente pungentes. A comida era simples,
saudável e deixava seu corpo e espírito bem nutridos.
- Está se sentindo melhor agora, hein? - Ulm disse quando Jeram terminou o guisado. -
Muito melhor, sim. – Jeram respondeu. - Meus agradecimentos.
- Uma boa história irá quitar sua dívida. - Ulm disse, seus olhos brilhando sob as
sobrancelhas grisalhas. - Vamos ouvi-la, já que você vem de uma longa distância.
- Grande distância, sim. - Jeram notou que os outros homens haviam se reunido a sua
volta, ouvindo.
O homem de cabelos claros caminhou até se juntar a eles.
Por um momento, o velho hábito de segredo se fechou em torno dele. Com toda a
probabilidade, estes homens nunca tinham visto um Terranan de carne e osso junto deles.
Apesar do Império ter mantdio uma presença em Darkover por várias gerações, a maior
parte tinha sido confinada em poucas Cidades Comerciais e a pesquisadores que, embora
não fossem exatamente clandestinos, criaram um grande número de problemas para evitar
atrair atenção indevida.
O sol afundava rapidamente no oeste. A escuridão, densa e rápida, cobriu o céu como
grandes asas negras. Pulando de uma chama de brilho repentino veio a coroa de estrelas e
as duas luas menores, como pedras coloridas.
O tempo para se esconder acabou...
- Tenho vivido em uma pequena aldeia perto de Nervasin, - Jeram disse - aprendendo
agricultura. Não nasci lá, mas muito mais distante, em um planeta circulando uma estrela
bem ali... - Ele apontou para cima, para um grupamento de estrelas brilhantes.
Jeram passou a dizer que, quando o Império partiu, ele havia ficado para trás. Ele
omitiu sua participação na Batalha da Antiga Estrada do Norte e suas consequências. Até
que ele resolvesse a questão com o Conselho Comyn, achava que era melhor não
mencionar nada. Ele não tinha ideia de quantas leis ele tinha quebrado ou como esses
homens poderiam reagir. Darkovanos tinham noções fortes de honra e muitos ainda
reverenciavam o Comyn com um temor quase supersticioso.
- Voce tem um jeito estranho de falar, é verdade. - O velho pastor olhou para Jeram e
percebeu como ele gostaria de picar o homem mais jovem com uma vara para se certificar
de que ele era de carne sólida. - Nunca acreditei na história de que o povo das estrelas
tinha chifres e rabos, como os demônios de Zandru. – Ele riu.
O D o m d e A l t o n | 225

- Como pode ver, sou um homem como qualquer outro, - Jeram disse, erguendo as
mãos - talvez um estranho, mas certamente não mais sábio que voces.
Essa observação provocou risadas ao redor, exceto de Liam, o homem loiro. Ele tinha
ficado quieto durante toda a história de Jeram. Jeram já tinha visto o mesmo silêncio, a
mesma escuta concentrada, em homens da elite das forças especiais Terran.
- O que o traz a Thendara? - Ulm perguntou.
- Acredite em mim, eu preferia ter ficado em Rock Glen. - Jeram disse. – Mas tenho
assuntos a tratar com o Conselho Comyn sem muita demora. Sei que as sessões devem
começar dentro de um decanato.
Rannirl soltou um assobio. O pastor de barbas brancas balançou a cabeça e olhou para
longe.
Sobre as linhas de piquete, um dos pôneis zurrou enquanto balançava sua cauda.
- Eu disse algo ofensivo? - Jeram perguntou.
- Não rapaz. - Ulm disse gentilmente. - Você deve ser verdadeiramente de outro
mundo. Aqui, um homem comum não pode simplesmente andar para a Câmara de Cristal.
Os Comyn não se preocupam com as pessoas comuns. Eles só nos ajudam em momentos de
muita dificuldade. Você não vai encontrar ninguém que o ajude a entrar lá.
- Sim. - Vários homens concordaram.
- Mas eu trago outro tipo de problema. – Jeram disse. - Não estou pedindo ajuda.
Certamente, deve haver alguma maneira de levar uma petição perante o Conselho.
- Bem... - Ulm coçou a cabeça. - As Cortes são para os moradores da cidade que não
podem resolver os seus próprios problemas.
- Onde, então, você vai para pedir justiça? - Jeram procurou em sua memória, mas os
programas do corticator tinham pouca informação sobre o governo darkovano além do
Comyn, frouxamente organizado numa estrutura feudal, seu conselho central, e um sistema
de tribunais locais. Eles resolviam a maioria dos problemas locais ou através de um chefe da
aldeia ou do dono da propriedade. Isso fazia sentido, dada a dificuldade de comunicação e
de viagens. Ele deveria ter feito mais perguntas a Lew.
- Justiça! Justiça é para aqueles que podem pagar por ela. – Liam disse e vários outros
murmuraram em acordo. - Você sabe o que o Regente usurpador e seus comparsas dizem
quando um homem como eu ou você clama pelos seus direitos? Eles riem na sua cara e o
jogam para fora!
- Ora, foi assim que eles te trataram? - Jeram perguntou cautelosamente. O homem
loiro claramente tinha um rancor contra o governo. E a última coisa que Jeram precisava
era ser desviado para a cruzada particular de um homem.
- Eu? - O homem loiro disse. - Eu só falo o que todo mundo aqui sabe!
O D o m d e A l t o n | 226

Um jovem, mal passado da adolescência e pobremente vestido como os outros, disse:


- Duas vezes agora meu parente e eu tentamos levar o nosso caso para os Gabinetes no
Centro Administrativo, onde tinha sido dito que poderia pedir ao Conselho uma audiência.
Eles nos disseram para ir para casa, mas não entenderam que não há casa para ir.
Um tom de concordância percorreu a pequena assembleia, ressonante com
desespero.
- Jorek fala bem a verdade. – O pastor disse.
Ulm baixou a cabeça com as sobrancelhas franzidas. Ele levantou o pote de chá e
ofereceu ao redor. O menino e vários outros aceitaram. - O mundo vai como quer e não
como você ou eu gostariamos que fosse.
- Nós falamos de direitos, meus amigos. E tínhamos direitos quando os lobos caíram
sobre o rebanho de Ewen do último inverno – o olhar de Liam piscou para o velho pastor de
ovelhas. - e Lorde Ardais, que deveria tê-lo protegido, não fez nada? Ardais estava, sem
dúvida, muito ocupado com prostitutas para ser incomodado. Então é certo que Ewen deva
ter que pagar seus alugueis e impostos para esse Lorde?
Ulm parecia infeliz. - Não é sensato dizer tais coisas sobre os Lordes Comyn.
- Por que, quando elas são verdadeiras? - Rannirl murmurou, atraindo um olhar afiado
de seu pai.
- Eu digo que nenhum de nós é um tolo, - Liam continuou - mas haverá uma onda de
calor nas Hellers antes que Lorde Ardais ou qualquer um dos Regentes honre as promessas
feitas aos nossos pais.
- Deixe seu pai descansar. – O velho pastor interrompeu. - Não é bom cutucar uma
ferida inflamada.
Liam claramente tinha mais a dizer. - Para cada um de nós com uma queixa contra o
Comyn, há cem mil outros que ainda estão em silêncio. Quem vai falar por eles? Quem vai
tirar o Comyn de seus ricos palácios e fazê-los ver o que está acontecendo?
- Sim, e fazer algo sobre isso? - Rannirl disse.
Ulm levantou-se para adicionar alguns ramos trançados no fogo.
- O que podemos fazer? - Jorek perguntou, cada vez mais agitado. Seus olhos
brilhavam nas chamas elevadas. - Uma tempestade nas portas do castelo?
- Alguns tentaram isso no verão passado. – Um dos outros homens disse. - Os Guardas
saíram com espadas e parecia que teríamos uma luta desagradável.
- E eles conseguiram o que eles estavam querendo?
O homem sacudiu a cabeça. - Essa parte da história nunca ouvi falar, só que não houve
mais problemas.
O D o m d e A l t o n | 227

Com isso, a reunião pouco a pouco começou a se dispersar. Liam saiu com outros dois
ou três, com o menino Jorek entre eles, ainda falando. Jeram permaneceu junto ao fogo
com Ulm quando o acampamento ao redor deles ficou em silêncio.
Do oeste, nuvens finas foram se alongando através da varredura de estrelas,
escurecendo sua luz. O ar ficou frio e úmido.
- E sobre a sua história, amigo? - Jeram disse, estendendo as mãos para o fogo. -
Parece que você também não encontrou o que veio procurar.
- Há muito pouco a dizer. Minha história é a mesma de qualquer outro homem. Você,
nós, pastores e agricultores, expulsos de nossas casas pela fome e fogo. Alguns vieram aqui
para encontrar trabalho, outros para ajudar na restauração de suas terras. Nossos pais
vieram em busca de proteção e tiveram muita dificuldade para dobrar o seu orgulho.
Alguns deles, como Ewen, por sua idade, ainda esperam que, quando o Conselho se reunir
no Verão, algo possa ser feito.
- E os outros, você acha que eles perderam a esperança?
- Alguns permanecem esperançosos por um tempo. Você ouviu Jorek dizer que não há
casa para voltar, e ele não é o único. - Suspirando, Ulm balançou a cabeça e bebeu o último
gole de seu chá. - Meu filho Ranirrl diz que é só continuar perguntando que vamos
encontrar trabalho. Ele é tão teimoso e obstinado como eu era na sua idade. Pode haver
esperança neste mundo triste, mas não para nós.
- Então você vai desistir e ir para casa?
Ulm parou por um longo momento antes de responder. Ele olhou para longe, para a
noite, onde as estrelas estavam desaparecendo. Jeram sentiu mais do que viu as lágrimas
não derramadas. Então, chegou perto do homem mais velho que disse: - Sim, vai ganhar a
vida de maneira digna. Talvez Rannirl tenha razão. Não é vida para um homem jovem, ficar
para trás quando a própria terra morre.
O olhar de desesperança do homem velho rasgou Jeram como se estivesse vendo algo
forte e bom jogado em uma pilha de lixo. O pensamento veio a ele que, se ele precisava de
um aliado, alguém para estar a sua volta, seria alguém como Ulm.
Mas ele queria lutar a batalha de Ulm? Ele tinha vindo aqui para enfrentar o Conselho
Comyn e quaisquer acusações pendentes contra ele. Não para reunir os homens
impotentes para reivindicar os seus direitos, como Liam parecia empenhado em fazer.
Jeram levantou a cabeça. Em torno dele, os homens sentaram-se em volta das
fogueiras espalhadas, atendendo as tarefas da vida informal. Estes eram honestos, pessoas
independentes que pediam somente o que lhes era devido.
Justiça, quando negada, apodrece...
Se houvesse alguma maneira de ajudar essas pessoas, ele o faria.
O D o m d e A l t o n | 228

Na manhã seguinte, Jeram levantou cedo. Uma chuva fina como neblina tinha caído
durante a noite. Gotículas se agarravam às barracas e galpões de madeira. As pedras
cinzentas brilhavam. Até mesmo as manchas de grama pareciam mais brilhantes. Apenas
algumas poucas nuvens permaneciam no céu. O cheiro de carvão úmido, capim e estrume
de cavalo enchiam o ar.
Jeram estava determinado a ser o primeiro da fila no Gabinete Administrativo. Uma
petição parecia ser a sua melhor esperança de conseguir uma audiência com o Conselho. Se
isso falhasse, ele supôs que poderia procurar a filha de Lew, mas, pelo que Ulm e os outros
disseram, não seria fácil falar em particular com ela. Seu assunto era com o próprio
Conselho, então era com o Conselho que ele iria começar.
Caminhando em direção a linha de piquete para cuidar de seu chervine, Jeram sentiu
cheiro de jaco recém feito. Jaco real, não chá. Sua boca encheu de água. Jaco não era café,
mas tinha um aroma gratificante, agradável e um gosto amargo. Liam acenou para ele do
abrigo do galpão. Jeram aceitou uma caneca da bebida fumegante e agachou-se para
saboreá-la.
- Você acordou cedo. - Liam disse, puxando conversa. - Cedo para tentar uma
audiência?
Jeram assentiu, segurando a caneca entre as mãos. O calor se espalhou por entre seus
dedos. A caneca foi habilmente feita, as paredes de espessura uniforme, o esmalte laranja
tão bom quanto qualquer outro que ele tinha visto fora do mundo. Cerâmica artesanal
alcançaria bons preços em Vainwal ou Sandoz III, mas não havia nenhuma esperança de
vendê-los lá.
- Desejo-lhe sorte. - Liam disse.
- O mesmo para você, com o que você veio fazer aqui. - Jeram bebeu um gole de jaco e
suspirou de apreciação. Ao jaco não tinha a plenitude rica do café, mas era muito mais
satisfatório do que chá.
- Acho que somos iguais. - Liam olhou para Jeram por cima da borda de sua própria
caneca. Seus olhos azuis brilhavam, medindo. - Todos nós temos algo escondido, alguma
parte da nossa história não contada.
Jeram bufou. - O que é isso, um jogo? Eu vou dizer o meu se você me dizer o seu?
Liam não pareceu se ofender, mas com calma tomou um gole de jaco. Depois de um
longo momento, ele disse: - Você acha que um homem das armas não reconhece o outro?
Você não é um Terran comum, nenhum comerciante ou aventureiro explorador. Você é um
homem que lutou. Perdeu a luta e está fugindo.
Por força do hábito de anos, os músculos de Jeram se retesaram. Ele tinha
conhecimento o suficiente de jogos secretos e perguntas aparentemente inocentes, que
eram para fazer a sondagem de outra coisa. - Se eu sou, o que você é?
O D o m d e A l t o n | 229

Liam encolheu os ombros e estendeu a mão ao bule para encher a caneca de Jeram. -
Então é isso. Só há uma razão que eu possa imaginar para um Terranan ter permanecido
oculto quando a o Império partiu. Você lutou na Batalha da Antiga Estrada do Norte, não é?
Agora você está cansado de viver como um fora da lei? Ou talvez você veio pedir ao
Conselho um contato com seus superiores fora do planeta, de modo que você possa ir para
casa?
Jeram balançou a cabeça. - Não é nada disso. Você ainda não me deu uma razão para
confiar em você ou porque você deva se preocupar com meus assuntos. Agora é a sua vez
de jogar limpo. Você disse que tinha algo a esconder também. Qual é a sua história? Você
foi um dos soldados que defenderam o Comyn?
Eu matei algum de seus camaradas? Ele está em busca de vingança?
- A confiança pela confiança, então a verdade, pela verdade. - Liam disse. - Eu não
tomei parte nessa emboscada em qualquer dos lados. Não tenho nenhuma disputa
particular com os soldados que faziam parte da batalha. Alguns dizem que acabar com o
Conselho e certos membros seria um favor a todos livrar os Domínios de um tirano.
Jeram piscou, surpreso. De que lado o homem estava, afinal?
Você acha que um homem das armas não reconhece o outro? Liam tinha perguntado.
Jeram poderia muito bem acreditar nisso, pela forma como Liam amolara sua faca. Liam
não se comportava como um desertor, mas um homem com uma missão. Ele certamente
tinha algum rancor contra o Regente atual e encontrou um público receptivo aqui.
- Meu lorde não é sem influência e ele é simpático a casos como o seu. - Liam disse.
- O seu lorde? Quem poderia ser?
- Eu servi a Dom Francisco Ridenow. - Liam disse. - E ainda sirvo, de algumas maneiras.
Ele já não detém Serrais, como é seu direito, ou fala por seu Domínio. Mas tudo isso é
história antiga. Hoje meu lorde tem aliados no Conselho. Aliados com o poder de realizar
coisas. Então, como vê, nenhum de nós é completamente sem amigos. Poderia muito bem
acontecer, se você é quem eu penso que é, um ajudar ao outro.
Jeram pensou por um momento. O que ele tinha a perder por falar a verdade? Ele
tinha, afinal, prometido a si mesmo que o tempo de se esconder acabara.
- Você está certo. - Ele disse, balançando a cabeça. - Eu era parte da força de ataque
Terran. Tenho vivido na clandestinidade desde então e estou cansado disso. Está na hora de
enfrentar as consequências do que fiz para que eu possa fazer um novo começo.
- Uma busca digna. - Liam esfregou a barba loura em seu queixo. Ele esvaziou o último
gole de jaco e limpou a caneca com um punhado de grama. - Por que você esperou todos
esses anos para vir até aqui? Por que você não partiu com os outros de sua espécie?
- Essa parte é difícil de explicar. - Jeram disse, limpando e entregando sua caneca vazia.
- Não lembrava muito até recentemente, neste último inverno, na verdade, o que
O D o m d e A l t o n | 230

aconteceu na batalha. Minhas memórias tinham sido suprimidas. A leronis na Torre


Nervasin me ajudou recuperá-las.
- Suprimidas? Como?
Jeram notou instantaneamente o interesse nos olhos de Liam, pela rapidez de sua
pergunta. O homem era darkovano e servia a um Lorde Comyn. Como ele poderia não
saber sobre o Dom de Alton?
- Não posso falar. - Jeram disse cautelosamente. - Meu povo não deve saber dessas
coisas.
- Não importa. - Liam encolheu os ombros. - Estou indo para cidade a negócios
próprios. Vamos caminhar juntos e vou lhe mostrar onde é o edifício do Gabinete
Administrativo. Caso contrário, você poderia levar metade da manhã procurando por ele.
Liam foi tão descontraído, amigável e tinha deixado passar a questão do contato
forçado tão facilmente, que Jeram aceitou sua oferta. Juntos, eles dirigiram-se para
Thendara.
O D o m d e A l t o n | 231

Capítulo 24

A caneta caiu dos dedos de Marguerida, salpicando tinta sobre o concerto que ela
estava tentando compor na última meia hora. A manhã tinha sido nublada, ameaçando
chuva e um cinza claro aguado lançava sombras sobre o escritório normalmente alegre. Até
mesmo as cores brilhantes da tapeçaria e do carpete pareciam lavados, sem vida.
Sem aviso, uma dor atravessou suas têmporas. Ela fechou os olhos, lutando contra a
náusea súbita.
E agora? Outro aviso premonitório?
Relaxe... Ela disse a si mesma. Respire...
Depois de alguns segundos, o pulsar parecia ter diminuído, embora seu estômago
ainda estivesse enjoado.
Batendo na porta de seu escritório aberto, Alanna entrou, deixando um rastro de lama
através do tapete favorito de Marguerida. A bainha de seu vestido estava úmida e
manchada, arruinando o rico veludo esmeralda. Seu cabelo estava em desordem e uma cor
forte impregnava suas bochechas. Claramente, ela estava ao ar livre, provavelmente
jogando aros e fâmulas com suas amigas e estava furiosa por ter sido chamada.
- Você queria me ver. - Alanna entrou anunciando. - Aqui estou!
Marguerida suprimiu uma carranca. Desde que Domenic os tinha deixado em sua
viagem pelas Torres, a menina tinha ficado cada vez mais irritada, de volta para suas birras
antigas.
Com um esforço para manter o controle da conversa, Marguerida disse: - Sente-se. -
Alanna assim o fez, sem qualquer abrandamento de sua expressão. - No decanato passado
tive uma dúzia de queixas sobre seu comportamento. Acessos de raiva são próprios para os
bebês, mas você é uma mulher jovem agora. Você simplesmente não pode gritar e atirar
coisas quando não estiver contente. Especialmente nos servos. Teve muita sorte que o jarro
que bateu na testa de Tomas não danificou seu olho. Alanna, você está me ouvindo?
A menina murmurou sob sua respiração, sua expressão carrancuda.
- O que você disse?
- Eu disse - Alanna rosnou - que estou doente e cansada das pessoas me dizendo o que
fazer!
- Então se comporte como uma adulta responsável! Você tem idade suficiente para
controlar a si mesma. Se você não pode agir corretamente, com cortesia para com aqueles
que estão tentando ajudá-la, então eu...
- E depois? - Alanna interrompeu. - Você vai me trancar no meu quarto, do jeito que
fazia quando eu era pequena? - Ela pôs-se de pé. - Ou me mandar de volta para Arilinn? Eu
não vou! Não vou! Vou fazer você se arrepender.
O D o m d e A l t o n | 232

- EU NÃO ESTOU AMEAÇANDO ISSO! - Com a dor de cabeça rasgando sua


concentração, Marguerida inconscientemente reforçou suas palavras com a voz de
comando.
Imediatamente, a voz se partiu. O que havia de errado com ela, perdendo o controle
com uma provocação pequena? Alanna era uma criança! Obstinada e teimosa,
definitivamente difícil, mas não uma ameaça real para ela. O confronto só faria aumentar o
conflito. Por que não discutiam as coisas racionalmente, que foi o caminho que Marguerida
tinha sido capaz de usar com que tantas pessoas que haviam sido inimigas e agora eram
suas amigas?
Alanna recuou a partir do contato psíquico como se ela tivesse sido atingida
fisicamente. Suas mãos se fecharam em punhos e sua voz tremeu. - Vá em frente! Use seu
laran com a sua matriz de sombra. Tenha todo o poder do mundo, exceto o poder de me
fazer feliz. Eu sou sua prisioneira e te odeio!
- Não seja melodramática, Alanna. Você não é prisioneira de ninguém e você sabe
disso. Além disso, para onde você iria? - Instantaneamente, Marguerida pesou suas
palavras, pois foi desnecessariamente cruel lembrar Alanna que sua própria mãe a havia
dado.
- Eu iria embora com Domenic, claro! Nós... Ele me entende.
Marguerida piscou surpresa. Claramente, Alanna perdeu seu amigo e aliado, mas
Marguerida não tinha ideia de que a menina queria ir junto na expedição. Alanna nunca
havia sido do tipo aventureira, sempre preferindo o conforto da cidade aos desafios da
viagem através do campo inóspito.
Alanna ia dizer mais alguma coisa, mas se conteve. Marguerida sentiu o esforço da
mulher mais jovem para se controlar, para reunir os pedaços de sua dignidade.
Ignorando a dor de cabeça o melhor que podia, Marguerida disse: - Sei que você sente
falta dele, filha. Sinto muito a falta dele também. - Ela deu um profundo suspiro e olhou
para a sua mão esquerda com sua luva isolante, desejando que sua matriz de sombra
pudesse ajudar.
Alanna ficou ereta, levantando o queixo. - Sinto muito ter sido tão temperamental. Eu
não tenho dormido bem. Desde o último verão e o ataque ao castelo, tenho sido
incomodada com... - Ela hesitou minuciosamente. - ...Sonhos ruins. Foi mal-educado de
minha parte comportar-me de modo desrespeitoso com alguém que tem sido, que sempre
foi, uma mãe para mim. Eu sei que você nunca quis me fazer qualquer mal...
As tonturas de Marguerida retornaram. Uma nuvem de tempestade psíquica
pressionadno o horizonte de sua mente. A sensação de perigo que se aproximava era muito
nebulosa para ela dizer se era centrada em torno de Alanna ou de algo completamente
O D o m d e A l t o n | 233

diferente. Francisco Ridenow teria algo com isso? Ou, seu estômago apertou e virou na sala
gelada, outra coisa teria acontecido com Mikhail?
- O que houve, tia Marguerida? Você está doente? - Alanna parecia genuinamente
preocupada.
- Não. - Marguerida conseguiu responder. - Estou um pouco cansada, isso é tudo.
- Você está com uma estranha expressão em seu rosto. Por favor, deixe-me chamar
uma das criadas para você. Deve deitar-se agora. Venha, vou te ajudar a ir para sua câmara.
- Alanna veio ao redor da mesa, estendendo a mão.
Marguerida balançou a cabeça, sentindo-se excessivamente irritada. A última coisa
que ela queria era ser mimada pela jovem mulher que, só alguns minutos atrás, havia se
comportado de forma tão rude. Permitir a Alanna que cuidasse dela não iria resolver o
atrito entre as duas.
Por anos quis que ela fosse atenciosa e agora que ela é, não posso aceitar isso dela.
- Eu vou ficar bem. – Ela disse fazendo o seu melhor para não parecer indelicada. - Não
preciso de ajuda, apenas um pouco de calma para me preparar para o meu trabalho hoje.
Alanna parou, entendendo claramente que ela fora julgada inconveniente. - Não vou
incomodá-la por mais tempo, Domna Marguerida. Por favor, não hesite em me chamar se
mudar de ideia.
Marguerida esperou até que a trava da porta se fechou. Alanna foi bem educada
naquele momento. Em um decanato, Domenic voltaria para a abertura da temporada do
Conselho. Alanna sempre se comportava melhor em sua presença. Um grande número de
nobres do Comyn já havia chegado em Thendara, incluindo o irmão-de-adoção de
Marguerida, Gabriel, que Francisco odiava.
Francisco! Ele parecia ter um dedo em cada coisa errada e uma rede de espiões, ou
pior. Embora nunca tenha participado das Cortes ou do Gabinete do Conselho no Edifício da
Cidade Administrativa, ele sempre parecia saber sobre qualquer problema, principalmente
quando se refletia mal sobre a Regência de Mikhail.
E depois houve o episódio há três dias atrás... Só Mikhail, Donal e ela sabiam sobre a
tentativa de assassinato e do homem morto. Disfarçado como um Guarda do castelo, o
rapaz tinha ficado à espera de Mikhail, numa noite em que ele estava trabalhando até tarde
e os corredores estavam desertos. Se Donal não tivesse insistido em permanecer ao lado de
Mikhail...
Não, não pense sobre isso!
O assassino tinha morrido na briga antes que pudesse ser interrogado. Nada em sua
pessoa o ligava à Francisco, mas Marguerida não tinha dúvidas de que Francisco Ridenow
estava por trás do ataque. No entanto, era um palpite, não havia provas, nem mesmo entre
os membros do Comyn.
O D o m d e A l t o n | 234

Para limpar a mente, Marguerida pediu um pote de seu estoque decrescente de chá
Thetan, pois o café que ela amava acabara há muito tempo, e algo para comer, doces,
queijos, nozes. O chá chegou e ela tomou um gole, deixando o calor reconfortante se
espalhar através dela. Sua dor de cabeça diminuiu, mas não desapareceu totalmente.
Finalmente, ela não podia adiar mais. Darkovanos não mantinham os horários rígidos
do Império, mas havia um número certo de horas em um dia, já que cada dia tinha vinte e
oito horas em vez do padrão Terran de vinte e quatro. Algumas responsabilidades não
poderiam ser adiadas com o inicio de mais uma temporada do Conselho Comyn. Era hora
de ir.
Quando Marguerida saiu para as ruas além do Castelo Comyn, ela tremia, apesar de
sua jaqueta grossa de lã, de um azul profundo escuro, levando a volta do pescoço um lenço
bastante irregular de malha que ganhou de Yllana em seu último aniversário. Embora
tivesse nascido em Darkover, ela tinha vivido a maior parte de sua juventude em planetas
muito mais quentes. Mesmo um belo dia de primavera parecia como o inverno.
Marguerida caminhou a passos largos, saboreando os sons e os aromas da cidade viva.
As pessoas passavam por ela, algumas bem vestidas, outras em desbotadas capas
remendadas. Pedestres se misturaram com condutores de carroças, e até mesmo um vagão
pintado que, certamente, devia pertencer a uma trupe de Viajantes.
Ela pensou em perambular até a Rua da Música para ver seus velhos amigos, a família
MacDoevid, ou para o mercado de flores Escalia, mas os dias em que ela poderia desfrutar
de tais caprichos se foram desde as tardes em que passava nadando nas águas cristalinas
de Tétis.
Hoje, ela comprometeu-se a fazer uma mudança no prédio da Cidade Administrativa,
que também abrigava uma sala de audiências para negócios, um quartel subsidiário para a
Guarda e vários escritórios. Ela estava aqui para resolver os poucos casos que o Conselho
deveria ouvir e ter certeza que seriam atendidos. Infelizmente, o trabalho acabou por ser
irritante e tedioso. Ela acreditava em fazer a sua parte, afinal o sistema foi ideia dela, e,
embora longe de ser perfeito, ainda era melhor do que ter o Conselho Comyn inundado
com assuntos triviais ou, pior ainda, transformando todos os problemas em casos inéditos.
As coisas tinham estado tranquilas desde o motim do ano passado, mas com o degelo
do inverno, cada dia trazia novos refugiados às portas da cidade. De onde eles estavam
vindo ou como eles seriam alimentados e abrigados, ela não podia imaginar.
Provavelmente, a lista de hoje de queixas seria relacionada a esses andarilhos. Sua cabeça
doía só de pensar na logística de saneamento e distribuição de alimentos para todos eles, e
à medida que ela se aproximava do prédio Administrativo, sua dor de cabeça ia
aumentando.
O D o m d e A l t o n | 235

Datando dos primeiros dias de contato com os Terran, o edifício marcou Marguerida
como o pior dos dois mundos. Era baixo e quadrado, um bloco de pedra sem adornos
castanho-amarelado, sem imaginação e, infelizmente, extremamente durável. Com toda a
probabilidade, seus bisnetos teriam de suportar olhar para ele também.
Uma pequena multidão se reuniu na rua, na sua maioria homens com camisas de peles
esfarrapadas e botas ao estilo das montanhas, uns poucos moradores da cidade e todo tipo
de mendigos que tinham aparecido recentemente. Marguerida abriu caminho através
deles. Um ou dois olharam para ela, mas a maioria continuou seu caminho, apontando para
seu cabelo vermelho, balançando suas cabeças respeitosamente.
- O que está acontecendo? - Ela perguntou ao Guarda na porta, um cadete do segundo
ano. Ela não conseguia lembrar seu nome, mas lembrou que o tinha visto na festa do
Festival.
Ele se curvou ao reconhecê-la. - Só o habitual, vai domna. Ralé sem nada melhor para
fazer.
- O que eles querem?
Ele deu de ombros. - Trabalho, principalmente, mas não há nada aqui para eles. Eles
deveriam ter ficado em casa.
- Domna, pode me ajudar? - Um dos homens caminhou para frente. Ele parecia ser
bem idoso, a barba esbranquiçada cobrindo seu rosto das intempéries. - Não peço por
caridade, quero apenas um dia de trabalho honesto. Posso consertar artefatos de couro
para os cavalos. Por favor, eu e minha esposa somos dos contrafortes das Colinas Kilghard.
- Eu sinto muito. – Marguerida disse e, inesperadamente, tudo mudou.
- Para trás! - O Guarda ficou entre eles, levantando seu bastão. O homem saiu
correndo antes que Marguerida pudesse dizer mais.
Ela entrou no prédio, com seus pensamentos agitados. Certamente, algo devia ser
feito por essas pessoas. Thendara, como qualquer cidade, tinha a sua quota de dores, mas a
pobreza e a falta de moradia, tal como existia em Vainwal, na Terra ou em Sandoz III, eram
desconhecidos ali antes. Darkovanos sempre tiveram sua própria casa. Algo havia se
quebrado no social.
Ou talvez, ela refletiu, fora uma combinação de fatores, com a redução das fileiras do
Comyn, os desvios causados por uma crise após a outra, culminando na morte de Regis
Hastur, a retirada do comércio e da tecnologia do Império, e a demasiada lenta evolução de
novas estruturas sociais para preencher as lacunas.
Ela passou pelo estreito hall de entrada até a sala de recepção fora do escritório
principal. Meia dúzia de homens, alguns mendigos, mas também alguns que claramente
eram homens bem populares da cidade, sentavam-se no banco comprido, esperando para
serem atendidos.
O D o m d e A l t o n | 236

A porta do escritório interno se abriu e um homem saiu. Ele saiu correndo pelo
corredor, pelas sombras para que ela não pudesse ver seu rosto. Por sua roupa, ele era
indistinguível dos homens lá fora, com uma jaqueta manchada de viagem e botas sujas, os
cabelos longos empoeirados amarrados com um laço de couro.
Marguerida não era tão habilidosoa quanto Mikhail ou Danilo nas nuances de gestos e
linguagem corporal darkovanas, mas ela pensou que aquele homem não se comportava
como um camponês. Na verdade, ele parecia mais um espadachim treinado do que um
fazendeiro pobre das montanhas.
E ainda assim... Ela franziu a testa, enquanto continuava em seu caminho. Ela já tinha
visto mestres de espada darkovanos. Havia algo diferente no comportamento deste
homem. Ela não conseguia vê-lo como sae usasse uma lâmina, mas sim alguma outra
arma... E, por um breve momento, ela sentiu o tremor de laran.
- Domna Marguerida! - Curvando-se, o funcionário ficou de pé.
Ela sorriu suavemente quando ele se arrastou de um pé para o outro e balbuciou uma
resposta a sua saudação. Ele era o protegido de Danilo, de uma família pobre, mas muito
antiga e orgulhosa. Em vez da humilhação da caridade, ele fazia por merecer cada réis de
seu pequeno salário.
- Dom Gabriel ainda está lá dentro. – O menino disse, nervoso.
Então, o homem que tinha acabado de ver sair, devia ter sido último caso de Gabriel
da manhã.
Pelo olhar dele, o peticionário não havia recebido o veredicto que esperava.
Ela empurrou a porta aberta do escritório. Gabriel olhou por cima da mesa, onde
estava terminando uma entrada no livro de registro. Sua boca parecia tensa. Vincos
profundos apareciam na pele entre as sobrancelhas. Ele olhou para cima, encontrou seu
olhar e fez uma careta.
- Estou feliz por você estar aqui. – Ele disse. - Nunca conheci um grupo mais canalha de
insolentes na minha vida. Nada há nada capaz de satisfazê-los!
- Ahn? - Marguerida disse levemente, sentando na ponta da mesa. - Como a pessoa
que acabou de sair? Ele não parecia feliz.
- Claro que não! Ele e mais vinte como ele poderiam vir aqui e encher o calendário do
Conselho, assim como a ralé do verão passado! Se Mikhail não fosse meu irmão, eu bateria
nele sempre que sugerisse uma coisa dessas!
- Gabriel, se esse trabalho é tão desagradável, você não precisa forçar-se a fazê-lo.
Certamente, não era necessário deixar Armida cedo para isso.
- Se eu não fizer minha parte, quem o fará? - Gabriel perguntou, franzindo o cenho
para ela. - Que tipo de exemplo eu estaria dando para os mais jovens? Se todos decidissem
agir exatamente como lhe apraz, o que seria de nós, hein?
O D o m d e A l t o n | 237

- Talvez você esteja certo. - Marguerida murmurou, procurando uma maneira de


mudar de assunto. A conversa mostrava todos os sinais de firmeza de argumentos. - Então,
o que o homem queria? Algo interessante?
- Ha! - Gabriel emitu um som agudo de riso. - Aquele, se você puder acreditar, queria
pedir desculpas!
- Sério? Desculpas do quê?
- Quem sabe? Quem se importa? Para ganhar uma aposta? Assim, ele poderia dizer a
seus filhos que ele teve uma audiência privada com o Conselho? - Gabriel ficou em pé. Sua
coluna estalou em três lugares quando ele se esticou. - Enviei-o para casa, é claro. Eu disse
que só consideramos questões graves.
- Eu me pergunto... - Distraída, Marguerida olhou para o corredor na direção do
peticionário decepcionado. Ela não tinha conseguido mais do que um breve vislumbre dele,
e só a indefinível impressão de laran foi o suficiente para criar uma noção perturbadora de
que ela o tinha encontrado antes.
Ela correu para a porta da frente e olhou para cima e para baixo da rua. Não
adiantava. Ele se fora e com ele foi-se o traço demasiadamente fugaz. Ela provavelmente
estava imaginando tudo. Algum instinto, no entanto, a levou a pedir a um Guarda para
procurar o peticionário e ver o que conseguia descobrir sobre ele.
- Eu gostaria de ter uma palavra com aquele homem, se você o encontrar.
- Vou fazer o meu melhor, vai domna.
No interior, Gabriel já havia colocado sua capa. Marguerida sentou-se atrás da mesa,
pegou a caneta, escreveu uma nota introdutória e pediu ao atendente para enviar o
peticionário seguinte.

~o ⭐ o~
O grande Sol Vermelho mergulhou turvo na direção do horizonte ocidental. Sombras
profundas de malva e índigo cobriram Thendara em melancolia. Mesmo a esta hora, as
pessoas ainda se aglomeravam nas ruas, as mulheres abafadas em seus sobretudos de
peles ou xales de lã, homens com capas, Guardas uniformizados, vendedores de rua e os
homens de entrega.
Uma chuva fina e gelada começou a cair, e a multidão foi diminuindo rapidamente.
Correndo com os outros, Jeram seguiu Liam a um complexo murado. Liam puxou uma corda
pendurada ao lado do portão de madeira. Dentro das muralhas de pedra, um sino soou
vibrante. Jeram olhou por cima do ombro para os guardas em frente a casa, mesmo que
eles não mostrassem interesse nele.
O D o m d e A l t o n | 238

Jeram tinha encontrado Liam esperando por ele do lado de fora do prédio
Administrativo. Liam tinha dado um aceno curto, simpático, quando ele viu o rosto de
Jeram e saiu caminhando com ele.
- Se você contar ao meu lorde a sua história, vai encontrar uma recepção muito
melhor. - Liam disse. Antes que Jeram pudesse responder, os dedos de Liam haviam se
fechado em torno de seu braço, conduzindo-o para a frente. – Rápido agora. Você está
sendo seguido.
Um Guarda deixou as portas do edifício Administrativo e correu em sua direção. Jeram
apressou o passo, seguindo Liam através do espesso redemoinho de tráfego. Liam parecia
saber para onde estava indo, cortando através de uma série de becos com uma segurança
que sugeria que ele tinha se evadido muitas vezes de perseguições.
Eles tinham ido a uma taverna barata, onde Jeram ficaria surpreso se qualquer Guarda
entrasse. O proprietário, que claramente conhecia Liam, mostrou-lhes um quarto privado
no andar superior.
- Você vai ficar suficientemente seguro por algumas horas. – Liam disse. - Tenho alguns
arranjos a fazer. Vou levá-lo para Dom Francisco quando estiver escuro.
Depois de um tempo Jeram ouviu passos, botas de salto alto, muito provavelmente,
atrás da parede. O portão se abriu. Um homem olhou para fora, sua tocha assobiava na
chuva. Liam falou algumas palavras em voz baixa e urgente, e eles foram levados para
dentro, através de um jardim e para a casa.
- Esta é a mansão Ridenow? - Jeram perguntou.
- Não, só um lugar de encontro, onde não podemos ser espionados. - Liam disse.
O homem com a tocha os levou por um corredor para um quarto pequeno, muito bem
mobiliado. Velas de cera fixadas em arandelas de parede produziam uma luz de mel quente
e uma lareira ardia intensamente num canto. Jeram nunca tinha estado dentro da casa de
um aristocrata darkovano e não tinha ideia da riqueza das tapeçarias sob os pés, das
cortinas bordadas e móveis antigos suntuosamente esculpidos em madeira escura.
Jeram teve pouco tempo para examinar seus arredores. O homem que ele tinha vindo
ver se sentou em uma cadeira pesada, magro e sombrio, vestido com o que parecia ser
veludo verde, cortado para revelar cetim brocado com flashes de ouro. O Vermelho
brilhava em seu cabelo escuro. Uma aura de poder pendia sobre ele, poder e ganância. Ele
era de longe o homem mais perigoso que havia encontrado em Darkover.
Liam se curvou. - Vai dom este é o homem de quem lhe falei.
- Não sabia que qualquer um dos Terranan tinha ficado para trás. - Dom Francisco
disse, usando a palavra sem uma pitada de insulto.
- Deveria surpreender-lo que eu aprendi a amar este mundo e quero fazer minha casa
aqui? - Jeram disse cautelosamente.
O D o m d e A l t o n | 239

- Alguns podem questionar por que um homem iria deixar o Império, com toda sua
cultura e diversidade, para deliberadamente aprisionar-se em um mundo atrasado. - Os
olhos de Lorde Ridenow piscaram. - Mas eu não sou esse homem. Venha, sente-se, seque-
se no fogo. Essa não é uma boa noite para estar no exterior.
Um momento depois, um criado de libré verde e ouro trouxe uma mesa dobrável,
colocando sobre ela uma bandeja de comida e bebida, em seguida, partiu. Liam assumiu
uma posição atrás da porta, enquanto Francisco derramou vinho temperado quente para si
e Jeram. A bebida estava quente na língua Jeram, suavizando todo o caminho.
- Liam contou-me um pouco de sua história. – Francisco disse, recostando-se em sua
cadeira. - Se entendi corretamente, posso ser capaz de ajudá-lo.
- Não tenho certeza para onde ir. - Jeram disse. - Não parece haver nenhuma maneira
de obter uma audiência perante o Conselho, sem ter conexões lá dentro. Eu devo avisá-lo
que um dos Guardas me seguiu dos escritórios Administrativos da cidade. Não sei o que ele
queria.
- Sabiamente, você não esperou para descobrir. Sim, Liam contou-me essa parte
também. Posso entender o quão frustrante isso deve ser para você. Como um terráqueo,
você está acostumado a ter certos direitos e privilégios. Por conta de sua democracia, creio.
Nós darkovanos temos uma maneira diferente de fazer as coisas. Mas, no final, a justiça
prevalece. - Francisco serviu mais vinho para Jeram. - Então, deixe-me ouvir sua história a
partir de sua própria boca. Você estava estacionado com as forças Terranan em Aldaran...
Jeram hesitou, mas apenas por um momento. Francisco já sabia que ele era militar
Terran e, sem dúvida, a sua participação na Batalha da Antiga Estrada do Norte. Francisco
parecia um homem razoável, disposto a ajudá-lo, e merecia ouvir a história completa.
Francisco escutou gravemente, sem interrupção. Quando Jeram terminou, ele disse: -
Quero ter certeza de que você entendeu corretamente. Você mesmo testemunhou Mikhail
Lanart-Hastur e Marguerida Alton-Hastur usar laran como uma arma contra os soldados
comuns?
- Sim, - Jeram disse - e era isso que eu não conseguia lembrar.
- Mas agora essas memórias foram restauradas? Não há nenhuma dúvida em sua
mente sobre o que aconteceu? Você não poderia ter-se confundido com um golpe na
cabeça ou na sequência de uma derrota?
- Estou tão certo disso como sei o meu próprio nome. – Jeram respondeu.
Francisco recostou-se na cadeira, parecendo pensativo. - E depois, você diz, Domna
Marguerida e seu pai usaram o dom de Alton do contato forçado a fim de apagar a
memória do uso do laran em todos os soldados Terran sobreviventes? Tem certeza desta
parte também? E se vier a testemunho público, existe alguém que possa confirmar sua
história?
O D o m d e A l t o n | 240

- A Guardiã que restaurou minha memória sabe a verdade. – Jeram disse. Ele não
acrescentou que Silvana muito provavelmente se recusaria a sair da Torre Nervasin.
Jeram fez uma pausa, não totalmente confortável com a direção que a conversa estava
tomando. - Minhas próprias ações, não as deles, são a questão aqui. Não pretendo fazer
acusações contra ninguém, apenas esclarecer qualquer dúvida que perdurem contra mim
pessoalmente.
Francisco franziu a testa e fez um gesto de desprezo. - Tudo o que você fez, foi
testemunhar dois crimes cometidos por membros do Comyn. Usar laran como uma arma é
uma violação direta do Pacto. Todos no funeral viram o que aconteceu. Desde que o
Regente e sua esposa não foram cobrados, só posso supor que o Conselho ficou tão
abjetamente grato por suas vidas, que abandonaram suas responsabilidades éticas. Mas o
segundo, a supressão de suas memórias...
Jeram encolheu os ombros. Ele tinha pensado que Lew fora excessivamente exigente
nesse ponto, antes que viesse a compreender o horror de Lew ao contato mental forçado.
- Você não é darkovano, - disse Francisco - mas certamente pelo tempo que você
estudou em Nervasin, deve ter consciência de que a invasão de uma mente por outro é
considerado um crime grave.
- Lew e eu já discutimos o assunto em em particular. E está tudo perdoado. No final,
ele não me fez nenhum mal duradouro. - Quando Francisco balançou a cabeça, Jeram
continuou: - Não vim para Thendara para dar queixa contra Lew ou qualquer outra pessoa.
O pobre homem já sofreu o suficiente!
- Não tenho nenhuma intenção de chamar Dom Lewis para dar conta de seus atos. –
Francisco disse. - Ele é respeitado e honrado nos Domínios. Ninguém questiona seu serviço
para com Darkover ou os sacrifícios terríveis que ele fez. Mas Domna Marguerida... -
Francisco pegou a taça e olhou em suas profundezas. - Se eu sei alguma coisa verdadeira
sobre o poder, - disse ele lentamente - é que mesmo as pessoas mais responsáveis vão
repetir o que os leva ao sucesso. A primeira vez é sempre a mais difícil, seja matar um
homem face-a-face ou explodir sua mente com laran. Marguerida já usou seu dom para
invadir as mentes dos homens da Força Terran derrotada. Dada outra boa causa, ela vai
fazer de novo. Quem, então, será o responsável? O próprio agressor ou aqueles que
podiam pará-la e preferiram não fazê-lo?
Jeram se mexeu na cadeira, cada vez mais inquieto pela direção da discussão a cada
momento que passava. O fogo, que parecia tão aconchegante no início, agora estava muito
quente. A riqueza das tapeçarias e tapetes, o soporífero cheiro de mel das velas de cera,
agora transformado em odor nauseabundo. Ele percebeu que estava suando.
O D o m d e A l t o n | 241

- Eu vim aqui por uma única razão, apenas para limpar meu próprio nome e condição.
– Ele disse. - Estou cansado de me esconder e se o Conselho me considerar criminalmente
responsáveis pela emboscada, quero enfrentar essas acusações.
Os olhos de Francisco brilhavam à luz da vela e do fogo. - Não acredito que o Conselho
tenha o direito de acusá-lo no seu julgamento. Na verdade, eles estão em dívida com você,
ou estarão... Uma vez que ouvirem o que você tem a dizer.
- Eu entendo que, por seus motivos, - Jeram disse - você vai me conseguir uma
audiência com o Conselho se eu concordar em dizer-lhes como minhas memórias foram
adulteradas, certo?
- Vamos... – Francisco protestou bem humorado. - Você fez isso soar como uma
extorsão. Somos amigos, não somos? E amigos ajudam um ao outro.
- Não vejo por que deve se preocupar. A ofensa não foi contra o senhor.
Francisco sorriu com os olhos. - Alguns crimes ferem a todos nós.
A sala ficou silenciosa, exceto pelo crepitar do fogo e o tilintar quando Francisco
pousou o cálice.
- Eu disse antes. - Jeram disse com força, quebrando o silêncio. - Não é por isso que
estou aqui. Tanto quanto estou sabendo, a Batalha na Antiga Estrada do Norte já é história
antiga. A única coisa que desejo é estar em paz com minha própria consciência. O senhor
diz que sou vítima de um crime? Pois eu digo que está tudo perdoado.
Francisco riu, um som seco sem humor. - Eu ouvi um velho ditado de seu povo: tudo o
que é necessário para o triunfo do mal é que os homens de bem não façam nada.
Jeram se encolheu interiormente e se preparou para mais uma rodada de persuasão.
Basta sentar aqui e ser razoável. Ele disse a si mesmo. Só preciso fazer ruídos amigáveis e
depois sair daqui o mais rápido possível!
- Correndo o risco de tornar-me tedioso, deixe-me explicar melhor. – Francisco disse. -
Mikhail e Marguerida, juntos e separadamente, violaram nossas mais fundamentais leis
éticas sobre o uso de laran. Se eles não forem parados, a situação pode degenerar em
tirania. Nós lutamos essa batalha durante nossa Era do Caos, quando um rei com o mais
poderoso dos laranzu'in definia a justiça de acordo com sua própria vontade. Meu
antepassado, Varzil, o Bom, o maior de todos nós, trouxe um fim a essa época de
despotismo através do Pacto. - Francisco levantou-se, gesticulando enquanto andava. -
Uma vez mais, Darkover está à beira de tempos sombrios. Precisamos de um líder, alguém
com a visão e a autoridade moral para forjar uma nova aliança.
- Quer dizer você mesmo? - Jeram se arrepiou pelo egoísmo descarado de Francisco,
mas, ao mesmo tempo, Lorde Ridenow exalava um carisma quase hipnótico.
O D o m d e A l t o n | 242

- Não vou abusar de seus ouvidos com promessas de falsa modéstia. - Parando diante
da lareira, Francisco se voltou, de modo que formava uma silhueta contra as chamas. - Eu já
sabia há muito tempo que estava destinado a conduzir o meu povo.
Jeram recostou-se na cadeira, ciente de que Liam estava ouvindo com cuidado, com
atenção focada. O homem loiro ficou parado facilmente, com o peso equilibrado em ambos
os pés. Seu corpo bloqueava a porta.
- Mas não tenho a pompa da legitimidade. Somos uma cultura presa pela tradição, por
códigos de honra, através de muitos símbolos. Alguns anos atrás, em um ato de ambição
desenfreada, Mikhail apreendeu o anel de Varzil Ridenow, um símbolo da moral e
autoridade política. Você pode não saber como os Domínios têm se deteriorado nos
últimos anos. Sua sombra toca a todos e, a cada temporada que passa, menos se atrevem a
enfrentá-lo. Mas com esse anel, eu poderia tomar o lugar de meu antepassado e poderia
levar Darkover de volta para a sua era dourada! - Sentando-se, mais uma vez, Francisco se
inclinou para frente. - Até agora o usurpador tem cegado o Conselho contra toda a razão.
Eles não conseguem ver o que ele e sua esposa feiticeira estão fazendo. Ela tem enfeitiçado
todos eles, inclinando-os a sua vontade, mesmo eu ela já tentou escravizar.
As palavras apaixonadas Francisco encheram a sala. Seus olhos brilhavam como fogo
no escuro.
Jeram sentiu-se atraído pelas palavras do homem que tinham um só objetivo.
- Agora, finalmente, tenho a chave para abrir os olhos do Conselho! Você é minha
chave! Você vai ficar ao meu lado na Câmara de Cristal. Eles não podem ignorar o seu
testemunho. Você não percebe, mas foi enviado a mim para que eu possa cumprir o meu
destino!
Com um esforço, Jeram conseguiu se livrar da atração magnética das palavras de
Francisco. Ele balançou a cabeça. - Sinto muito, você terá que lutar suas próprias batalhas.
Não tenho nada contra você, mas tudo o que quero é limpar meu nome e voltar para casa
em Rock Glen. Não quero prejudicar Lew ou sua família.
Eu já fiz mal o suficiente para uma vida inteira.
- Certamente você pode ver a importância de minha causa! Não estou falando de
politicagem, mas do futuro de todos os Domínios! Está em Darkover por escolha sua e tudo
o que acontece aqui lhe diz respeito também!
Era tarde demais para voltar atrás agora. - Não, não é a minha luta.
- Você acha que ficará isento? Eu digo que, se este mal não parar agora, o caos vai se
propagar de Dalereuth até as Hellers, como já fez há milênios atrás!
- Sei dessa história por Lew Alton. - Jeram disse teimosamente. - Não posso acreditar
que alguém como ele ou sua filha sejam tão vis. Acho que tudo o que temos para dizer um
ao outro foi dito.
O D o m d e A l t o n | 243

Jeram ficou de pé e olhou para Liam, ainda em guarda na frente da porta. Ele respirou
fundo e seu pulso acelerou, seus músculos se preparando para a ação. Agora, ele iria
descobrir o que Francisco iria fazer para segurá-lo aqui.
Por um momento, Francisco olhou como se estivesse pronto para continuar a
discussão. Em seguida, seu rosto relaxou e ele levantou as duas mãos em um gesto de
rendição. - Vejo que não posso convencê-lo. Pelo menos, fiz o meu melhor. Claramente,
você é um homem que responde a sua própria consciência, como eu. Certamente,
podemos respeitar um ao outro, mesmo discordando. Eu não vou deixar qualquer
impressão de animosidade persistente em nossa pequena discussão. Liam, nos traga mais
vinho. A reserva especial, por favor.
- Acredito que o senhor é sincero, Dom Francisco. - Jeram disse, um pouco surpreso
com a facilidade com que Francisco tinha acabado com a discussão. Talvez Jeram o tivesse
julgado mal. E ele acrescentou: - Sinto muito por não poder ajudar.
Um momento depois, Liam estava de volta na sala com uma garrafa de vinho tipo
granada brilhante.
- Venham, vamos beber mais uma vez, como amigos. – Francisco disse.
Uma vez que teria sido indelicado recusar, Jeram assentiu. Francisco encheu sua taça.
O vinho estava frio, apenas um pouco abaixo da temperatura ambiente, de um sabor
ricamente complexo, misturando os sabores de frutas, do sol e água das nascentes das
montanhas. Jeram não tinha ideia de como Darkover poderia produzir um vintage
sofisticado.
Bebericando seu vinho, eles conversaram por mais algum tempo. Francisco ofereceu
um local para Jeram passar a noite, já que a chuva ainda caía com força. Jeram recusou,
tendo passado tempo suficiente sob o telhado de Francisco.
Quando Jeram se levantou para sair, suas pernas pareciam estranhamente instáveis
abaixo dele. O quarto parecia ter se desequilibrado de suas amarras. Ele não podia mais
seguir o que Francisco estava dizendo.
O estômago de Jeram torceu e a tontura estremecia sobre ele, lhe dando uma
lembrança perturbadora de sua doença do limiar. Ele tentou ficar de pé, mas o chão parecia
levantar sob ele. Distantemente, ele sentiu os joelhos fracos e seu corpo se dobrar como
um brinquedo de papel infantil. A última coisa que ele lembrou foi Liam parado ao lado
dele, uma galáxia de distância, e a voz de Francisco... Algo sobre frações de kireseth...
Agindo apenas naqueles com laran...
- Tudo bem. Ele vai falar a verdade... - A voz de Francisco ecoou estranhamente. -
...Quando e onde eu comandar... Os dias de glória de Marguerida acabarão e ela arrastará
Mikhail com ela...
O D o m d e A l t o n | 244

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LIVRO III

______ ______

Capítulo 25

- Veja! Thendara, finalmente! - Illona, que vinha montada um pouco à frente dos
outros, levantou-se em seus estribos para uma melhor visualização. Sua montaria, um dos
resistentes cavalos das montanhas de Nervasin, balançou a cabeça, enviando aneis de
vapor tilintando no ar fresco. - Posso ver Castelo Comyn e a Sede Terran!
Eles haviam aproveitado os dias mais longos para viajar, aproveitando as passagens
abertas e agora olhavam para baixo, pelas encostas longas, para o vale onde a Cidade Velha
brilhando como uma joia apareceu. Casarios e Torres de pedra clara, adornadas com os
O D o m d e A l t o n | 245

paineis translúcidos azuis, tão queridos pelos darkovanos, brilhavam ao sol. Ao longo das
décadas, desde que o espaçoporto fora construído, os edifícios do Império haviam perdido
suas linhas duras e de brancura imaculada, suavizados pela passagem das estações. Ao
mesmo tempo, um grupo de novas mansões darkovanas tinha surgido moldada pela
arquitetura dramática da Zona Terran, de modo que as diferenças entre as duas culturas
ficavam turva. Mesmo assim, o Castelo de pedra antiga permaneceu desafiadoramente
intocado pela passagem do tempo.
Enquanto estavam na estrada, a exuberância de Illona, como se ela estivesse em
alguma aventura maravilhosa, havia infectado Domenic. Eles tinham feito amor com a
urgência febril de uma vela queimando perto do próprio fim. Cada olhar, cada toque, cada
momento juntos tornou-se infinitamente precioso porque poderia ser o último.
Ele lamentou, também, o fim da alegria de viajar através das montanhas, montes e
pastos irregulares inclinados, onde as texturas em constante mudança de rocha e solo, da
água e do céu, sangravam através de seu laran.
Agora, quando se aproximaram do fim de sua jornada juntos, Domenic temia sua
chegada. Illona iria deixá-lo para tomar seu lugar com as outras Guardiãs na histórica
primeira reunião do Conselho, e ele... Ele voltaria para sua própria vida, a política do
Comyn, a Regência. E para Alanna.
O coração de Domenic despencou. Nunca mais ele estaria livre para rir simplesmente
porque Illona o fazia rir, ou olhar para ela sem o coração nos olhos. Só Aldones sabia como
ele iria esconder seus verdadeiros sentimentos de sua mãe. Ele não poderia passar seus
dias com um amortecedor telepático preso ao cinto. Ele simplesmente teria que contar com
a delicadeza de uma sociedade telepática e de seu próprio comportamento
meticulosamente honroso.
E para Alanna o que ele diria? Oh, deuses, o que poderia dizer a ela? Que ele tinha
dado seu coração a outra mulher? No entanto, como ele poderia mentir? Como ele poderia
machucá-la dessa maneira?
Ela era sua noiva prometida. Eles tinham sido amigos desde que ela chegou no Castelo.
Ele a amara como uma amiga de brincadeiras, uma prima, e sim, por um tempo, como uma
mulher desejável e jovem.
Haveria alguma esperança, por qualquer caminho através deste emaranhado? Alanna
poderia concordar em voltar a Arilinn na esperança de algum dia ser capaz de desfrutar da
intimidade sexual normal? Não, isso era apenas metade do problema. Será que ele seria
capaz de pensar nela dessa maneira, depois do que ele tinha compartlhado com Illona?
Ele não podia desonrar sua promessa a Alanna e ele gostava para ela. Não estava
disposto a causar-lhe nenhuma dor.
O D o m d e A l t o n | 246

Dizia-se que nas Eras antes da memória, os casamentos em grupo não eram raros
entre o Comyn e, na abertura do amor compartilhado, o ciúme era raro. Ainda hoje, muitos
homens de sua classe mantinham barraganas e não eram censurados enquanto fossem
discretos. Crianças nedestro eram muitas vezes legitimadas. Domenic tinha ouvido falar de
amizades entre esposas e amantes, mas Alanna, ele sabia, jamais consentiria. Ela era muito
insegura, muito tempestuosa, para tolerar uma rival. E ele não podia imaginar sua mãe
aceitando uma coisa dessas.
Domenic emparelhou seu cavalo com o de Illona. Ela se virou para ele, sua expressão
grave. Por trás de seus olhos, ele sentiu sua própria angústia. Sua dignidade e coragem o
tocou profundamente. Eles não tinham escolha, pois tinham que continuar distantes.
- Nós sempre soubemos que este momento chegaria, caryo mio. - Ela disse com um
traço de tristeza. - Não vamos estragar a lembrança do que tivemos com o pesar.
- Uma vez você falou isso. – Ele respondeu, forçando um sorriso. - Vou tentar.
Eles deixaram seus cavalos descansar, respirando ruidosamente, enquanto o avô Lew
e o resto de sua escolta se aproximavam. Assim terminou a sua última possibilidade de
conversa íntima. Sua jornada estava quase no fim, com as paredes e as torres de Thendara
à vista.
Lew conduziu seu cavalo para uma parada ao lado deles. Desde que saiu de Nervasin,
seu espírito parecia mais livre, seu humor mais leve do que Domenic conseguia lembrar.
Olhando para Thendara, Domenic disse: - Nunca sei se é hedionda ou bonita essa
mistura de mundos.
- Seja o que for, - disse Lew - temos de fazer as pazes com ela. Darkover nunca poderá
voltar a ser que era antes. Para o bem ou para o mal, o Império deixou a sua marca em nós.
Pode nunca mais voltar a ser o que era... Domenic repetiu as palavras silenciosamente.
Eu não sou a mesma pessoa que partiu por essa estrada. Ainda não encontrei meu
verdadeiro lugar no mundo, mas mesmo assim estou me movendo em direção a ele
irrevogavelmente. Não há como voltar atrás.
Lew começou a descida pela inclinação, deixando o cavalo escolher seu próprio rítimo.
Domenic e Illona tomaram seus lugares no meio do comboio. Eles já estavam em terras dos
Hastur e não precisavam de uma formação bem defendida. Duas vezes ao longo da estrada
de Nervasin, no entanto, eles foram atacados por homens desesperados, sem lei, muito mal
armados para ser corretamente chamados de bandidos.
- O que é isso? - O capitão sinalizou indicando uma parada e apontou para baixo.
Fora dos portões, de cada lado da estrada, havia um acampamento irregular. Domenic
viu tendas, abrigos rudes e um tosco estábulo para o gado. O lugar parecia de todo
desordenado, como se um exército de esfarrapados houvesse se formado fora da cidade.
Domenic estremeceu. Vamos ter de passar por eles.
O D o m d e A l t o n | 247

Eles fizeram uma cidade para si mesmos aqui, Illona enviou o pensamento à ele.
Quando chegar o inverno, o que eles vão fazer?
- É melhor ver o que está acontecendo. - Lew acenou para o Capitão. - Preparem-se,
para o caso de problemas.
- Vamos com cautela, vai dom. - O Capitão fez um gesto para seus homens assumirem
posições defensivas. Com espadas prontas, eles começaram a descida. A égua de Domenic
usou suas patas traseiras para se equilibrar, pisando com cuidado ao longo da trilha
íngreme.
Illona deixou cair o capuz de sua capa de viagem sobre os ombros, de modo que seu
cabelo vermelho brilhante ficasse visível. Ela parecia alta e imponente. Em algumas partes
dos Domínios, Domenic já tinha visto, as leroni ainda eram tratadas com um respeito
supersticioso.
Eles não tinham ido muito longe pelos arredores do acampamento, quando chamaram
a atenção. Homens em batas de agricultores ou peles das montanhas emergiram de suas
tendas para olhar.
Enquanto continuavam, Domenic se sentia cada vez mais nervoso. Mais homens e
algumas mulheres de rosto duro demais, se reuniram nos lados da estrada. Nenhum tinha
quaisquer armas visíveis, mas muitos ficaram robustamente em pé e uns poucos tinham
varas, forcados ou outros instrumentos. Até agora, ninguém havia feito qualquer
movimento de ataque, mas o clima estava inequivocamente tenso a cada momento que
passava.
Alguns homens apontaram para cabelo vermelho de Illona e murmuravam: - Leronis!
Seus cavalos respondiam à crescente tensão. As mãos de Domenic suavam nas rédeas.
Mesmo o castrado normalmente dócil de Lew jogou sua cabeça, pronto para atacar. Apenas
Illona ficava facilmente na sela, em perfeito controle, com seu pônei da montanha
marchando.
Um homem jovem e de cabelos negros, saiu para a estrada, bloqueando seu caminho.
Ele carregava uma vara longa, com sua ponta endurecida no fogo. Um punhado de outros
se moveram para a posição atrás dele. De todos os lados, as pessoas eram atraídas sobre
eles.
O Capitão cutucou seu cavalo para frente. - Boas pessoas, o que vocês estão fazendo
aqui se reunindo na estrada? O que está acontecendo?
- É como Liam nos disse! - Alguém murmurou. - O Comyn não sabe de nada! Eles não
se importam!
- Comyn! - Um dos homens soltou a palavra como se fosse uma maldição. - Eu digo,
para baixo com todos eles!
- Cuidado com a língua, homem! – O Capitão disse, levantando a espada.
O D o m d e A l t o n | 248

- Volte, seu idiota! - Disse outro no meio da multidão. - Eles têm uma leronis com eles!
Ela vai explodir você em cinzas aí mesmo onde você está!
Domenic agarrou o cabo de sua espada, fria e pesada. Ele nunca a tinha usado a sério,
para matar. No fundo de sua mente, ele se perguntou se conseguiria. Eles eram seu próprio
povo, homens a quem jurara servir e proteger. Tinha que haver uma maneira melhor do
que um confronto com derramamento de sangue!
Um homem cuspiu na estrada. O cavalo de Domenic, no limite de seu temperamento,
empinou e atacou, mas seus cascos encontraram apenas o vazio. Os homens mais próximos
se mexiam a sua volta.
Era uma pausa momentânea, Domenic sabia. O ar tinha gosto de relâmpagos. Ele
puxou as rédeas, lutando para manter a égua sob controle. Ela se esquivou e bateu com o
rabo em sinal de protesto.
- ALTO!
Uma voz estridente, como o grito de um grande kyorebni em voo rasante, quebrou o
ar. O céu reverberava com ela. Cada nervo do corpo de Domenic parou em resposta. Seu
cavalo ficou como uma estátua esculpida exceto pelo movimento de suas costelas. A
multidão parou, de repente, irresoluta.
Um único cavaleiro andou para frente, o cavalo aureolado por um fogo azul-
esbranquiçado gerado por laran. Por um instante, Domenic não reconheceu seu avô,
sentado tão alto e forte, como se a mão de Aldones, Senhor da Luz, estivesse sobre ele. Sua
capa de montaria chicoteando por trás de seus ombros.
Ruídos inundaram a audição de Domenic com o barulho de cascos ferrados, um
protesto mudo da multidão.
- É Lorde Alton em pessoa!
- Não, eu ouvi que ele estava morto.
- Lorde Alton!
Eles recuaram, alguns se curvando ou tocando suas testas.
- Chega. - Lew disse em seu tom de voz normal rouco. - Capitão, seus homens devem
guardar suas espadas. Essas pessoas não são nossas inimigas. Você aí! Se você tem uma
queixa contra o Comyn, deixe-me saber qual é e vou fazer o que puder para ajudá-lo.
O homem de cabelos negros levantou de onde havia caído de joelhos. - Já ouvi falar de
do senhor, Lorde Alton, que lutou contra Sharra no tempo do meu pai. Todo mundo diz que
é um homem de honra, que nunca quebrou sua palavra.
Um tremor passou pelo corpo de Lew. Seu cavalo mudou sensivelmente debaixo dele.
- E que ajuda você pede de nós? O que levou vocês a saírem de suas casas até as portas de
Thendara?
O D o m d e A l t o n | 249

Um suspiro de alívio passou sobre a multidão. Como uma onda quebrando de uma
tempestade, suas histórias surgiram. Gravemente, Domenic escutou. Apesar de todo o
trabalho do Conselho durante o ano passado, o sofrimento das pessoas do campo não tinha
melhorado. Uma tristeza construída sobre outra enchente, seca ou fogo, culturas e
rebanhos mortos. A maior parte deles não parecia pior do que o ciclo normal da
generosidade e da fome, com todos os problemas de uma vida dura nas terras. Eles tinham
vindo para Thendara à procura de trabalho, empréstimos para comprar novas sementes e
gado, ou para aliviar os impostos ou qualquer das dificuldades legais que surgiram a partir
de infortúnios.
Domenic trocou olhares com seu avô. A explosão energia do laran quase tinha
desaparecido, deixando o rosto de Lew pálido. Suas cicatrizes se destacaram como vestígios
de um raio através de sua pele.
- Um escritório foi montado no Gabinete Administrativo. - Domenic disse. - Você pode
fazer suas petições lá para que possam ser encaminhadas para as autoridades
competentes, até mesmo ao próprio Conselho.
- Com seu perdão, jovem lorde, mas o último homem que tentou uma petição
desapareceu. - Um homem disse.
- E aqueles antes dele foram rejeitados! - Alguém adicionou.
- Certamente, não todos. - Domenic disse, surpreso. - Qualquer caso digno deve ser
ouvido.
- Isso é o que Jeram acreditava, - o homem respondeu - e agora, pelo que sabemos, ele
está apodrecendo em uma cela de prisão.
- Se já não estiver morto! - Uma das mulheres acrescentou, sacudindo o punho.
- Se não houve justiça para Jeram, que esperança há para o resto de nós? - Outra voz
exigia.
- Espere! - Illona falou. A multidão fervilhando recuou, murmurando e evitando seus
olhos. Alguns fizeram sinais contra a má sorte. – Jeram... Vocês se referem a Jeram de
Nervasin?
O jovem de cabelos negros assentiu. - É quem ele disse que era...ou algo assim.
- Poderia ser este o mesmo Jeram que conheci? - Domenic perguntou para Lew.
- Temo que seja. – Lew disse. - A história se encaixa. - Ele apontou para o jovem. - Bom
homem, diga-me o que aconteceu com nosso amigo.
- Vai dom, ele entrou em Thendara para pedir uma audiência no Conselho Comyn e
não voltou mais.
- Isso não significa que qualquer coisa desagradável ocorreu. – Domenic disse. - Ele
não poderia simplesmente ter permanecido dentro da cidade para melhor para conduzir
seu assunto?
O D o m d e A l t o n | 250

- Perdoe-me, jovem lorde, mas se isso fosse verdade, Jeram teria voltado para sua
tenda e seu chervine. Não. Aconteceu algo com ele, com certeza. Ele foi visto saindo do
Gabinete Administrativo com um Guarda a segui-lo. - A expressão do jovem ficou sombria. -
Meu pai foi procurar por ele e foi mandado embora.
Os outros murmuraram em acordo. Algumas vozes gritaram: - Jeram Livre! - Mas o
espirito de luta tinha saído da multidão.
Lew cutucou seu cavalo para a frente e abaixou-se da sela para falar com o jovem líder
de cabelos pretos. Ele deu sua palavra que iria analisar a questão. Em meio a expressão de
gratidão e de suspeita, com caminho aberto para eles, desceram o último trecho até a
entrada da cidade.
Domenic não respirou direito até que estavam dentro do pátio do Castelo. Embora
Lew não fizesse nenhuma reclamação, desde que havia enfrentado a multidão na cidade de
tendas, seu rosto estava pálido. Tremendo, ele se agarrava ao arção da sela com a mão boa.
Illona olhou para ele, preocupada.
As paredes da cidade se fechavam em torno deles, as ruas estavam cheias de pessoas,
carros, animais de carga carregados. Domenic tinha esquecido como Thendara era
barulhenta, suja e malcheirosa, como era estreita e sem espaços cortando o horizonte. Ele
mal podia sentir o alicerce sob a incrustação de madeira e pedra.
O capitão fez um excelente trabalho dividindo o tráfego para acelerar seu caminho
através da cidade. No pátio do castelo, os cadetes correram para segurar seus cavalos.
Servos começaram a descarregar a bagagem. Marguerida apareceu nas portas principais,
saias voando enquanto corria em direção a eles. Ela usava um vestido de lã, simples não
tingido, o tipo de roupa confortável que ela gostava de usar para escrever música.
- Oh, meus queridos, vocês estão aqui, finalmente! - Ela passou seus braços em
Domenic. - É tão bom ter você de volta novamente! Como você perdeu peso!
Illona, sempre desembaraçada, com sua expressão quase desumana, inclinou a cabeça
e disse: - É um prazer vê-la novamente, Domna Marguerida.
- Meu Deus, você cresceu! – Marguerida disse. - Você agora é Sub-Guardiã em
Nervasin, eu soube.
- Mãe, o que está acontecendo? - Domenic perguntou. - Acabamos de passar por um
acampamento de homens muito irritados fora dos portões da cidade.
A boca de Marguerida se apertou. - Os acampamentos aumentam a cada dia. Mais
pessoas vêm o tempo todo e não temos acomodações para eles dentro da cidade. Até
agora, não houve violência, mas alguém continua agitando-os.
- Perdoe-me, Domna. - Illona cortou, olhando para Lew com uma expressão de
preocupação. - Este não é o momento para discutir essas questões.
O D o m d e A l t o n | 251

- O que estou pensando ao manter todos aqui? - Marguerida deslizou uma mão pelo
cotovelo de seu pai e estendeu a outra para Domenic. Seus olhos dourados examinaram o
rosto desenhado de seu pai. - Você está exausto. Uma vez que você estiver alimentado e
descansado, poderemos conversar.
- Tenho que atender a Dom Lewis primeiro. – Illona disse. - Onde posso monitorá-lo?
O rosto de Lew endureceu. - Isso vai passar. Tenho sentido dores piores.
- Dor? - Marguerida olhou espantada. - Pai, você está machucado? Doente? Por que
não fala de uma vez?
No mesmo instante, Illona empertigou-se, e sua voz soou com autoridade. - Dom
Lewis, eu avisei que esses episódios de dor no peito podem anunciar uma condição ainda
mais grave.
- Basta! - Lew silenciou a todos. Domenic se lembrou das histórias do pai de Lew, o
formidável Kennard Alton. - Não é nada, eu disse, mas se vai parar essa conversa, então vou
me submeter à monitoração de Illona. Nós temos outros motivos para preocupação, não é?
As paredes da ala da família Alton se fecharam em torno de Domenic como os muros
de uma prisão. A cama tinha a cabeceira esculpida de madeira escura e a cômoda era da
mesma madeira. Até mesmo a cadeira em que, quando menino, ele tinha sentado
sonhando acordado por tantas horas, estavam como ele havia deixado. No entanto, ele
sentiu como se o quarto pertencesse a outra pessoa.
Um dos servos tomou seu manto e o ajudou a tirar as botas de montaria. Uma vez que
ele tomou banho, fez a barba e estava vestido com roupa interior limpa, seu humor
melhorou um pouco.
Em sua escrivaninha pequena, ele encontrou uma pilha de papeis que sua mãe tinha
deixado para ele. Suspirando, ele pegou a folha do topo. Era, o que não foi de surpreender,
uma agenda para a primeira sessão do Conselho.
Ele olhou na direção do som de passos e vozes no corredor do lado de fora. A porta se
abriu e Alanna entrou carregando uma bandeja com pratos cobertos. Seu cabelo, trançado
e enrolado elegantemente em seu pescoço, brilhavam como cobre polido. Ela largou a
bandeja e correu para ele.
Meses atrás, Domenic teria recebido os abraços de Alanna como a coisa mais
emocionante que já acontecera com ele. Agora, ele já não tinha essa resposta emocional.
Sua intensidade emocional o deixou consternado, como uma tempestade varrendo tudo
em seu caminho. Por um momento terrível, ele congelou. O que poderia dizer a ela, quando
ele já sabia que o que eles tinham compartlhado não era amor, mas paixão?
Illona, ela sim eu amei... A própria ideia enviou uma pontada de saudade inexprimível
através dele. Não, ele devia colocar essas lembranças para trás. Ele devia pensar apenas em
Alanna, aqui diante dele.
O D o m d e A l t o n | 252

Empurrar Alanna para longe teria sido impensável e cruel. Gentilmente, ele pegou suas
mãos e olhou em seus olhos. Ela era tão linda que não foi difícil convocar um sorriso de
prazer genuíno.
- Oh, como tenho pensado em você! – Ela exclamou, confusa com sua estranheza e
seu silêncio. - Trouxe algo para você comer. As fofocas do Castelo dizem que você foi
atacado fora dos portões da cidade. E aqui estou eu, pensando apenas em como estou feliz
em vê-lo, e nada do que você deve ter passado lá fora. Sou egocêntrica, eu sei, Domna
Marguerida está sempre dizendo a mesma coisa. Agora que você está em casa, vou tentar
comportar-me de maneira apropriada. Sempre me sinto melhor quando você está perto.
Alanna sentou na banqueta ao lado da cadeira de Domenic e ficou vendo ele comer.
Como de costume, os pratos refletiam o gosto de sua mãe: uma sopa de creme delicado,
aves cozidas em ervas e vinho, uma terrine de cogumelos selvagens e uma cesta de
requintados bolos em forma de coração recheados com pasta de castanha. Tudo tinha um
cheiro delicioso e um sabor ainda melhor. Na estrada e em Nervasin, ele se acostumara
com muito menos.
- Por favor, me perdoe se eu parecer menos entusiamado na minha saudação do que
você merece. - Entre mordidas, Domenic procurou as palavras certas. - Fiquei na estrada
por algum tempo, e, como você ouviu falar, nossa chegada foi agitada. Mas diga-me, por
que nada foi feito para ajudar essas pessoas? Quem os está deixando agitados?
Alanna fez beicinho, num gesto bonito. - Nunca me contam nada de importante!
Domna Marguerida nem sequer me deixa sentar em suas reuniões. Sempre que peço algo
de útil para fazer, ela me diz para ir praticar a minha costura! E eu digo, às vezes é tudo o
que posso fazer para não jogar na sua cara que em breve vou ser sua esposa, e tenho todo
o direito de saber essas coisas! Como posso ser uma ajuda adequada para você, se eu
nunca ouvir o que está acontecendo?
- Estou feliz que você conseguiu não dizer nada sobre o nosso compromisso, - Domenic
disse - porque temos de manter isso em segredo por um pouco mais de tempo.
- Vou tentar agradá-lo sempre, em todas as coisas, meu futuro marido. - Alanna disse,
olhando para o chão. - Domna Marguerida acha que se ela não me disser nada, vou
permanecer ignorante. Mas eu vejo as coisas... – Sua voz mudou de repente, ficando grossa
e pesada. - Eu sei que as coisas vão acontecer.
- Suas visões? – Ele perguntou, genuinamente preocupado. - Você teve mais delas?
- Não, não, apenas sonhos...
Alanna enterrou o rosto nas mãos e começou a chorar. Domenic colocou os braços em
volta dela e puxou-a para ele. Soluços sacudiam seu corpo esbelto. Murmurando, ele
acariciava seus cabelos para trás. Por um momento, ela só chorou, mas, em seguida, um
tremor passou por ela e ela se aquietou.
O D o m d e A l t o n | 253

- Tenho que parar com isso. - Suspirando, ela se endireitou. - O que você vai pensar de
mim? Uma menina boba, chorando por nada.
- Não chamo os seus sonhos de ‘nada’. - Domenic disse. - Você está se sentindo bem o
suficiente para me falar sobre eles? Talvez falar ajude.
- Há um sonho que me assusta mais do que o resto. Nele eu olho para a cidade como
ela é agora, cheia de luz do sol e flores do Festival. Mas uma sombra cai sobre a minha
mente quando me lembro da visão de pessoas deitadas mortas por toda parte. E o sonho
não vai embora! Quando a noite começa, tenho medo de sonhar de novo.
Alanna inclinou-se contra ele, seus olhos abertos e secos. - Abrace-me. – Ela
choramingou. - Proteja-me.
Ele apertou seus lábios em sua testa. - Enquanto estiver comigo, nenhum mal virá para
você.
Ambos se assustaram quando um suave toque soou na porta. A convite de Domenic,
Illona entrou no quarto. Ela havia trocado o manto longo de viagem pela túnica com cinto
de um trabalhador das Torres. Seu comportamento era natural, mas grave. Ela não deu
nenhum sinal de surpresa ao encontrar Domenic e Alanna nessa postura íntima.
- Lamento invadir sua privacidade, Dom Domenic, damisela Alanna, - Illona disse - mas
seu avô não está meramente cansado da longa viagem. Ele ficou doente.
Domenic enrijeceu. Ele era velho o suficiente para lembrar quando Regis Hastur fora
acometido de um acidente vascular cerebral, e do alarme crítico que partiu da mente de
sua mãe: Alguma coisa aconteceu com Regis!
Havia acontecido algo tão terrível com Lew? Nem mesmo o imenso poder do anel de
Mikhail tinha sido capaz de salvar Regis de seu acidente vascular cerebral fatal.
- Ele sofreu um ataque cardíaco. – Illona disse.
Alanna engasgou, cobrindo a boca com as mãos. - Oh! É muito grave?
- Não posso dizer. Tenho feito tudo que eu, como uma leronis trabalhando sozinha,
posso fazer. Os curandeiros do castelo, que têm experiência com tais doenças, lhe deram
seus medicamentos e deram ordens para ele descansar.
Domenic levantou-se, encontrando o olhar de Illona. Seus olhos, tão profundos e
expressivos, pareciam piscinas verde-luz. Levou todo o seu auto-controle para não ir até
ela.
- Como isso pôde acontecer? Ele parecia tão forte e bem no caminho de volta.
- Em alguns aspectos, seu avô é mais velho do que seus anos. - Illona explicou. - No
passado, ele sofreu não apenas ferimentos físicos, mas também um trauma profundo.
- Como o grande tio Regis. - Alanna murmurou. - Todo mundo disse que ele deveria ter
vivido muito mais tempo.
O D o m d e A l t o n | 254

Illona olhou para Alanna, claramente ela não esperava tal percepção. - Nós não
sabemos com certeza se tal dano reduz a vida de um homem. Isso pode ter afetado o
coração de Dom Lewis, de formas que somos impotentes para curar. Ele teve um episódio
de dor torácica em Nervasin no momento em que estava sob grande estresse. Tanto
quanto se pode determinar, ele teve uma recuperação completa. Talvez com os homens de
fora da cidade, usando seu laran sob estresse...
Illona fechou os olhos, o rosto se apertou. É tudo culpa minha. Se eu tivesse notado
antes. Se só...
- Nós não podemos viver nossas vidas em incertezas. - Domenic cortou seu
pensamento angustiado. Se houve uma falha, foi minha.
- Ele está estável o suficiente por enquanto. - Illona disse, rapidamente cortando o elo
mental. - Eu soube que Istvana de Neskaya está chegando nos próximos dias e, então,
saberemos mais. Enquanto isso, ele pediu para vê-lo. Acho que deveria ir até ele.
- É claro. – Ele disse. - Alanna, voltarei assim que puder.
- Não posso ir também?
Illona balançou a cabeça em negativa e Domenic sentiu a doçura de seu toque mental.
É muito cedo para saber o quão grave é a condição de seu avô, ela disse a ele, mas há
coisas que devem ser ditas em particular.
Você vai estar lá? Domenic perguntou.
Illona inclinou a cabeça, seus olhos baixos. Enquanto eu for necessária. Contanto que
você precise de mim.
Apenas um batimento cardíaco passou durante a sua conversa sem palavras. Alanna
ficou entre eles, o peito ofegante, o olhar cintilando de um para o outro.
Domenic levou a mão Alanna aos lábios. - Tenho que correr, meu doce. É difícil, mas
nós não somos nossos próprios mestres em circunstâncias como esta.
Alanna abriu a boca, claramente se preparando para protestar. Sua respiração
ofegante e seu queixo apontaram para cima. – Eu... - Ela começou com uma voz estranha
embargada. - Eu vou aguardar as notícias de Dom Lewis. Não se atrase por minha causa.
Na porta, algo fez Domenic olhar para trás, para Alanna. Seu rosto tinha ficado pálido,
seus olhos enormes e vidrados, como os de um veado ferido. Ela segurou-se com uma
dignidade que ele nunca tinha visto nela antes. Uma palavra quebraria tudo.
Com um sorriso forçado, ele se afastou.
O D o m d e A l t o n | 255

Capítulo 26

Chegando a suíte de Lew, Domenic e Illona passaram por um grupo de servos e uma
das curandeiras do castelo, uma mulher magra e sisuda de meia-idade vestindo um avental
enorme cheio de bolsos sobre o vestido. As cortinas do quarto de dormir de Lew haviam
sido parcialmente fechadas, saturando o ar com luz difusa. Os paineis do conjunto de
pedras azuis pálidas colocadas em intervalos nas paredes cinza-escuro brilhavam
fracamente.
Apoiado em travesseiros sobre a cama de dossel enorme, Lew estava tão imóvel que
por um instante terrível, Domenic achou que haviam chegado tarde demais. Em seguida,
O D o m d e A l t o n | 256

viu o peito debaixo da camisola lentamente subir e descer. Lew tinha a cabeça caída um
pouco de lado, com os lábios entreabertos. As cicatrizes profundamente marcadas por seu
sofrimento se destacavam contra sua palidez. Domenic pode ver a forma do crânio por
debaixo da pele, a fragilidade da única mão deitada sobre os lençóis. Nesse momento, seu
coração entendeu o que sua mente tinha apenas imaginado.
O velho homem poderia morrer, este baluarte da força que ele havia conhecido por
toda a sua vida.
Homens morrem, pensou Illona, atrás de Domenic, tocando sua mente suavemente
com a dela. Todos devemos partir, cada um a seu tempo. Apenas as neves do próximo
inverno são certas...
Domenic se ajoelhou ao lado da cama e correu os dedos sobre a mão de seu avô. A
pele era fina, mas surpreendentemente suave, como o mais fino papel. O contato trouxe
consigo uma onda de impressões psíquicas, o coração palpitante, as camadas de velhas
feridas, o brilho intenso facetado do laran de Lew. Este homem, Domenic lembrou, possuía
o dom de Alton, na íntegra, tinha treinado em Arilinn, a mais prestigiada das Torres de
Darkover, e tinha se levantado contra a matriz de Sharra imensamente poderosa.
Avô, não morra! Fique conosco, com os que te amam!
O grito surgiu espontaneamente das profundezas do coração de Domenic. Amor
vivencia o amor, e pena que o homem diante dele tinha conhecido tanta dor em sua longa
vida, e tão pouco da paz.
Ah, mas eu encontrei a paz.
Levou um momento Domenic a perceber que seu avô havia falado com ele, de mente
para mente. Ele piscou contra as lágrimas repentinas para ver os olhos Lew abertos e
brilhantes. Ossudos dedos apertavam sua mão.
- Eu não temo a morte, - Lew disse, sua voz normalmente rouca agora suavizada - pois
coloquei meus demônios para descansar. Fiz tudo o que pude para definir quais eram meus
pecados e eles foram perdoados. Há apenas uma coisa errada. Domenic, se eu não, se eu
não... Se não for possível. – Ele fez uma pausa para respirar.
Illona correu para seu lado. - Chega, agora. Você vai precisar de toda a sua força para
se recuperar.
Talvez eu não tenha outra chance.
- Muito bem, mas se eu o vir exercendo-se excessivamente, vou intervir. - Com um
aceno para Domenic, Illona retirou-se para o outro lado da sala, protegendo sua mente,
para que pudessem falar telepaticamente em privado.
- O que é tão importante? - Domenic sussurrou.
Jeram... Você deve encontrá-lo, ajudá-lo. Ele pode estar em perigo terrível.
Não estou entendendo. Que perigo... Porque?
O D o m d e A l t o n | 257

Lew abriu a mente para Domenic e, no redemoinho da memória e do pensamento, de


visão e laran, a história se desenrolou. Por um momento, Domenic encontrou-se na Antiga
Estrada do Norte mais uma vez. Em sua mente, ele viu os homens em marrom escuro e
verde correndo de encontro ao cortejo fúnebre, a corrida louca dos Guardas formando de
rodas de defesa, e depois a luz de uma arma de raios disparada pela primeira vez, e,
finalmente, a esfera mais brilhante e cintilante criada pelo laran de seus pais.
O quê...? Domenic olhou para os rostos dos homens caídos e reconheceu o estudante
de seu avô em Nervasin.
Jeram veio a Thendara para pedir anistia ao Conselho. Lew disse. Mas ele nunca
chegou perto. Você já ouviu a história de como ele foi para o Gabinete Administrativo e
depois desapareceu. Não acredito que isso foi obra do acaso. Receio que ele tenha caído nas
mãos de quem queira usar sua história para seus propósitos pessoais. Ainda tenho uma
responsabilidade com ele...
Lew caiu sobre seu travesseiro. Illona, do outro lado da sala, olhou para cima
bruscamente. - Encontre-o. - Lew sussurrou. - Prometa-me...
- É o suficiente agora. - Illona interrompeu. Ela correu para a cabeceira. Sua pedra da
estrela brilhou, azul-esbranquiçada, e colocou uma mão sobre o peito de Lew.
Naquele momento, a lingueta da porta se abriu. Marguerida irrompeu no quarto e
correu para o lado da cama. Ela tinha jogado um velho xale esfarrapado sobre os ombros.
Suas faces estavam vermelhas. Domenic nunca a tinha visto tão perturbada.
- Oh, Pai! Vim assim que soube. Este não pode ser o aviso que meu laran deu... Não
você! Você deve lutar, você está me ouvindo? Lute! Não me deixe como Dio fez!
A curandeira, de rosto severo, seguia Marguerida nos calcanhares. - Domna!
Recomponha-se! - Ela resmungou. - Você vai fazer-lhe mal se continuar nesse estado!
Acalme-se ou vai se transformar em uma segunda paciente, assim, e desviar a minha
atenção onde ela é mais necessária. Agora, você vai se comportar de uma maneira mais
adequada ou devo pedir que você se retire?
Marguerida se endireitou e alisou para trás as mechas de cabelo que tinha escapado
de seu fecho. - Deve haver algo que eu possa fazer!
- A curandeira e eu podemos cuidar dele. – Ilona disse.
- Mãe, acho que Illona tem razão. - Domenic disse, pegando a mão sem luva de
Marguerida e puxando-a para a porta. - Nós só vamos distrair essas mulheres de seu
trabalho. Entretanto, há muito a fazer para preparar a sessão do Conselho, e, quando o avô
for capaz de se juntar a nós, ele vai precisar de toda a sua força.
Marguerida parecia incerta, mas cedeu sob a persuasão gentil de Domenic. Ela
permitiu que ele a acomçanhasse para fora do quarto, após a curandeira prometer enviar
qualquer notícia da menor mudança na condição de Lew.
O D o m d e A l t o n | 258

~o ⭐ o~
No decanato seguinte, a condição de Lew estava estabilizada e melhor. Istvana
Ridenow e Liriel Lanart, que eram técnicas de matriz altamente qualificadas, haviam
chegado à Thendara mais cedo. Com Illona, elas formaram um círculo de cura. Domenic,
observando seu avô ter um ganho diário de força, pensou que poucos homens na história
de Darkover tinham sido atendidos por esse círculo.
Illona sentiu que o corpo Lew tinha sido afetado pelo que sua mente tinha sofrido. O
confronto às portas da cidade e o uso de seu laran para conter a multidão enfurecida o
tinha empurrado para além de seus limites. Descanso e os medicamentos preparados pelos
curandeiros do Castelo gradualmente diminuíram o peso em seu coração. Ele respondeu
vigorosamente a energia curativa que as leroni tinham manipulado.
Istvana tinha feito uma observação, após um tratamento particularmente encorajador.
- É como se ele realmente colocasse o passado para trás. Com seu espírito, ele escolheu
viver.
O Castelo se encheu rapidamente conforme mais pessoas do Comyn chegavam para a
temporada. Lew continuou a melhorar tão rápido que Istvana e Liriel fizeram planos para se
encontrar com Alanna e ver o que poderia ser feito sobre as salvaguardas colocadas em sua
mente. Seria uma tarefa delicada porque Liriel não estava a par da intervenção. Loren
MacAndrews tinha permanecido em Arilinn e enviado Liriel como sua representante.
Embora Liriel fosse uma técnica e não uma Sub-Guardiã, sua experiência, tato e
temperamento calmos a tornavam uma excelente escolha. Quando Alanna ouviu falar
sobre o plano, no entanto, ela se recusou a ter qualquer contato com elas. Nem mesmo
Domenic conseguiu convencê-la. Quando ele tentou, ela ficou perturbada, do mesmo jeito
que quando alguém sugeriu que ela voltasse a Arilinn. Ela ainda acusou Domenic de tentar
se livrar dela. Em vez de arriscar outro ataque de histeria, ele deixou o assunto encerrar.
À medida que os dias passavam, Domenic procurava pela cidade por qualquer pista
sobre o que tinha acontecido com amigo de Lew, Jeram. Danilo não sabia nada sobre o
assunto, mas ele ofereceu seus agentes para vigiar e fazer perguntas discretas. Seu tio
Gabriel lembrava da sua breve entrevista com Jeram, mas nada mais. O Guarda a quem
Marguerida pediu que seguisse Jeram lembrou que o perdeu de vista a uma curta distância
dos escritórios Administrativos da cidade. Ninguem tinha visto Jeram desde então. Era
como se a cidade o tivesse devorado.
Os homens não desaparecem simplemente, nem mesmo em Thendara, Domenic disse
a si mesmo teimosamente e continuou a fazer perguntas até suas tarefas normais do
Conselho o obrigaram a desistir.
O D o m d e A l t o n | 259

As festividades habituais do começo da temporada foram um pouco sombrias em


relação aos anos anteriores, pois Marguerida foi distraída pela convalescença de seu pai.
Em seu lugar, Gisela Aldaran e Miralys Elhalyn organizaram um baile de recepção. Outra
amiga de Marguerida, Katherine Aldaran, estava atrasada devido a um surto de febre
misteriosa em Caer Donn que ainda estava sendo reconstruída após o incêndio de Sharra.
Em meio a isso, chegaram notícias de que o Gabriel sênior havia falecido. Os jovens Gabriel
e Rafael estavam fazendo arranjos para um funeral tranquilo e privado, como seu pai tinha
desejado. Depois que seu corpo foi levado para Thendara, a família o levou para descansar
perto do túmulo de Javanne.
Marguerida não participou das festividades de abertura, mas Domenic o fez, e ele
dançou várias vezes com Alanna, bem como com Danaria Vallonde e uma das primas
Leynier, uma menina gorda de cabelos negros chamado Kyria. Gareth Elhalyn estava
presente, junto com seu irmão Derek, ambos bebendo levemente e se comportando muito
bem. Em contraste, Kennard-Dyan Ardais ficou tão bêbado que Rory e Niall tiveram que
levá-lo de volta para seus aposentos. Era, Domenic pensou, dificilmente um início
auspicioso para a temporada.
Quando o Conselho Comyn se reuniu para sua primeira sessão, Danilo tomou seu lugar
habitual no espaço dos Ardais, juntamente com Kennard-Dyan, parecendo muito pior agora
do que antes de beber. Dois dos seus filhos nedestro, tendo atingido a maioridade, dividiam
o espaço.
Homens e mulheres lotaram a Câmara de Cristal. Liriel Lanart, Istvana Ridenow e
Moira DiAsturien, uma mulher bonita e bem humorada que havia treinado em Neskaya mas
agora era Guardiã na Torre Corandolis, sentaram-se com as suas próprias famílias. Por
sugestão de Danilo, Mikhail tinha organizado para as leroni usarem o espaço vazio no
recinto Aillard, e uma bandeira especial, uma torre branca contra um campo de estrelas
azuis, pendurada ao lado da bandeira cinza e vermelha de Aillard. Illona tomou seu lugar lá,
conversando com Linnea Storn e Laurinda MacBard da Torre Dalereuth. Laurinda tinha a tez
pálida, mas era uma mulher forte com um comportamento severo e uma voz alta e nasal
que Danilo considerava abrasiva. Mas seu laran, e ele o sentiu de que antes os
amortecedores telepáticos fossem ligados, era claro e brilhante como a luz solar, como uma
gota de água pura.
Obviamente, Danilo refletiu, o laran não necessariamente confere modos agradáveis.
Marguerida e Mikhail entraram depois que a maioria dos nobres tinham tomado seus
lugares, seguidos por Domenic e Rory. Donal Alar caminhava logo atrás e ao lado direito de
Mikhail, como um paxman adequado. Alanna os acompanhou, atendendo a um pedido de
Marguerida. No recinto Alton, o jovem Gabriel sentou-se como Lorde do Domínio. A cadeira
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de Lew ficou vazia. Hermes e Katherine Aldaran tinha acabado de chegar na noite anterior,
juntando-se aos outros de seu Domínio, trazendo Yllana com eles.
As cerimônias de abertura prosseguiram com a habitual pompa e grandiosidade da
lista de chamada formal. Um Domínio após o outro respondeu a convocação, mas não
houve menção de Gareth para ascender ao trono.
Mikhail apresentou os membros do novo Conselho de Guardiãs e Laurinda, como sua
porta-voz eleita, se dirigiu à assembleia brevemente. Salvo nos assuntos que afetavam
tanto as Torres quanto o Conselho, disse ela, eles se reuniriam separadamente, relatando
todas as decisões importantes para o Conselho.
Marilla Lindir-Aillard perguntou que tipo de questões eram da alçada das Guardiãs. Os
anos haviam pesado sobre ela e nem mesmo os ricos vestidos cinza e escarlate, as cores de
seu Domínio, podiam esconder a fragilidade de seu corpo ou diminuir os vincos profundos
ao redor dos olhos e da boca.
- Conhecermos melhor uns aos outros, por um lado. - Laurinda respondeu. - Muitas
vezes falamos uns com os outros através das transmissões telepáticas, mas temos pouco
tempo para ir além das mensagens. Todos nós sentimos que as Torres estão demasiado
isoladas e nosso povo afastado demais. Em cada temporada, menos jovens vêm até nós
para o treinamento. Uma vez foi habitual para todos os filhos e filhas do Comyn passar uma
ou duas temporadas em uma Torre, mas agora até mesmo aqueles com talento querem sair
depois de apenas um curto tempo. A vida de uma leronis não é para todos.
Depois que Laurinda acabou de falar, Danilo levantou a convite de Mikhail. - As Torres
são o único lugar onde a nossa força não cresceu. Até mesmo diminuíram em número, de
modo que, a cada geração, o poder está concentrado em poucas mãos. Olhem em torno
desta câmara. Contem os lugares vazios.
Ele fez uma pausa para olhar os recintos murados vazios com seu olhar. Aillard não
tinha herdeiras, nem Ardais.
- Proponho que, para o bem das Torres e dos Domínios, possamos expandir a
participação de pessoas no Comyn. – Danilo disse. - Peço que todos os filhos nedestro e
mesmo aqueles com menor vestígio de sangue Comyn, mesmo sem ser legítimo, tenha
pleno direito de participar das Torres e do Conselho.
Um silêncio mórbido seguiu suas palavras.
- O que você está dizendo é que quer que admitamos qualquer tipo de gentalha entre
nós? - Gabriel foi o primeiro a falar, seguido por uma dúzia de outros, igualmente
indignados.
- Vai domyn! Parentes! Acalmem-se! - Mikhail disse.
- Não. É uma sugestão razoável. - Dani Hastur disse, uma vez que o tumulto se
acalmou. - Uma vez que, mesmo no tempo de nossos pais, um homem não poderia ser
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indicado para o Comyn a menos que possuísse laran. Você não ouviu as hstórias de como
Kennard Alton quase matou Dom Lewis fazendo exatamente isso? No entanto, quantos de
nós temos apenas o menor talento e nenhum treinamento para usá-lo? Como podemos
sentar aqui e negar outros com laran muito mais forte?
- É uma ideia absurda! - Lorrill Vallonde disse. - Nunca teremos... - Ele parou quando
Istvana Ridenow gesticulou seu desejo de falar. Dom Lorrill, como muitos outros
conservadores, tinha grande reverência pelas Guardiãs.
- A proposta de Dom Danilo tem mérito. - Istvana disse. - Podemos facilmente
combinar nossas buscas. Todos nós sabemos quanto caos um telepata destreinado pode
criar. Se cada filho ou filha nedestro puder ser testado para o laran, isso deve ser feito sob a
supervisão das Torres. Podemos selecionar e recrutar nossos próprios candidatos ao
mesmo tempo.
- Onde eles se sentariam, esses ninguéns talentosos? - Marilla disse com evidente
repulsa. - Se nós os admitirmos no Conselho, por quem eles falarão?
- Não vamos discutir difculdades desnecessárias. - Linnea disse, levantando-se. -
Haverá tempo suficiente para resolver todos esses detalhes. Por ora, vamos considerar o
princípio básico envolvido. - Com seu cabelo castanho tocado com apenas o menor indício
de prata e seu ar gracioso de autoridade, ela chamou toda a atenção do Conselho.
- Há precedentes para a garantia de direito de herança dos Domínios. - Linnea
apontou. - Regis nomeou o filho de sua irmã como seu herdeiro quando ele não tinha filhos
próprios. Kennard Alton, ao casar com Elaine Montray, cujo casamento nunca foi aceito por
este Conselho, e ainda assim seu filho Lewis foi nomeado seu herdeiro e Lorde Alton.
Quando ela terminou, um tumulto eclodiu novamente. Todo mundo tentava falar ao
mesmo tempo e a Câmara de Cristal vibrou com vozes. Mais uma vez, Mikhail fez chamados
pela ordem. Desta vez, ele reconheceu a voz de Kennard-Dyan.
- É verdade que muitos de nós não temos cumprido nossas obrigações de se casar e
produzir filhos e filhas para dar a continuidade de nossas famílias. – Kennard-Dyan
começou. Fora apenas por circunstâncias mais que extraordinárias que ele mesmo estava
aqli, pois seu próprio pai tinha sido um notório amante de homens. - Admito a vocês que
falhei no meu dever para com o futuro do meu Domínio. - Ele fez uma pausa, puxando uma
respiração profunda, e Danilo notou a palidez de seu rosto. - Agora estou preparado para
fazer o que estiver ao meu alcance para corrigir meus erros.
Ao longo da câmara, vozes femininas sussurravam. Se o solteiro mais famoso nos Sete
Domínios estava finalmente preparado para tomar uma esposa, haveria um final de mal
entendidos e fofocas.
- Portanto, - Kennard-Dyan continuou - proclamo todos os meus filhos nedestro
legítimos e vou apresentá-los aqui quando as circunstâncias o permitirem. Todos que forem
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dignos em virtude e em seu laran poderão sentar-se ao meu lado no Conselho e reforçar
Ardais e todos os Domínios.
Ele apontou para os dois jovens atrás dele que deram um passo adiante. Ambos
tinham as mesmas característcas físicas dos Ardais, mas nenhum tinha a arrogância que
caracterizou o velho Lorde Dyan.
Isso não deve ser fácil, Danilo pensou, mesmo se Kennard-Dyan não estivesse de
ressaca. Na noite da recepção, quando Kennard-Dyan tinha ficado tão bêbado, Danilo o
acompanhou até a Ala dos Ardais e sentou-se com ele durante toda a manhã.
- Sei o que todos eles querem de mim. - Kennard-Dyan tinha resmungado, lúgubre de
intoxicação por alcool. - Querem me casar e me aprisionar para terem meu título e passá-lo
para os filhos que vou dar a ela. Só que não me importo com nada...por nada...com
ninguém.
Regis também teve que lutar contra a pressão cada vez maior para ter uma esposa,
para ser aceito na sociedade tinha que ter herdeiros, pois todos estavam desesperados por
herdeiros do sangue.
Pobre Domenic... Ele vai ser o próximo...
Kennard-Dyan tinha encontrado uma maneira de sair dessa armadilha naquele
momento de qualquer maneira. - Vai domyn, - disse ele com um arco curto, mas
impecavelmente formal - apresento a vocês meu filho mais velho, Geremy Esteban. É
minha vontade que o Conselho o aceite como herdeiro de Ardais. E também quero
apresentar o meu segundo filho, Valentim.
- Nós teremos o prazer de realizar o exame de laran em ambos os jovens. – Laurinda
disse.
- Tenho outra filha para reconhecer. - Kennard-Dyan continuou. - Uma cujas
qualificações estão fora de dúvida. - Ele fez um gesto em direção ao recinto meio vazio de
Aillard. - Illona Rider, declaro que você é minha filha verdadeira e ofereço-lhe um lugar no
Domínio Ardais.
Todos se viraram para olhar para Illona. Somente o movimento ligeiro de suas mãos,
os dedos cavando nas palmas, traiu qualquer emoção. Toda a sua vida tinha sido de uma
jovem pobre e sem raízes, uma órfã adotada pelos Viajantes, indo de uma cidade a outra,
talvez com frio e fome, tudo porque este poderoso Lorde não tinha nenhuma preocupação
com as consequências de um namoro agradável. Ela só teve uma chance com Domenic
quando descobriu algo melhor para fazer.
- Vai dom, - ela disse - tenho plena consciência da honra que me concede. Ardais é
uma linhagem nobre e, se for a vontade do Conselho, vou orgulhosamente ostentar o nome
como sua filha. Entretanto, vim aqui como Sub-Guardiã da Torre Nervasin, o lugar que eu
ganhei para mim e que é o único título que desejo.
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Bom para você! Danilo pensou. Se o Conselho fosse reforçado por mulheres de tal
integridade, ele prognosticava o melhor para Darkover.
Mikhail estava falando de novo, um reconhecimento gracioso das ações de Kennard-
Dyan e uma formal boas-vindas para Illona como membro do Conselho de Guardiãs. Rufus
DiAsturien falou com força sobre a falta de herdeiros Aillard. A linhagem de Aillard estava
extinta. Marilla ocupava o cargo apenas porque não havia uma filha em descendência
direta e seu único filho era Kennard-Dyan que governava Ardais.
Enquanto ouvia a discussão, algo estalou na memória de Danilo, alguma nota em um
texto da história, sobre o nome de Aillard. Duas gerações atrás, Dorylis Aillard tinha sozinha
quebrado a antiga tradição de clausura que insistia que as Guardiãs mantivessem sua
virgindade. Seu filho, Damon Lanart-Aillard, conhecido como Jef Kerwin, tornou-se um
Guardião por seu próprio direito. Mas havia uma mulher, uma prima Aillard também...
- Agora que o jovem Domenic chegou a idade certa, como herdeiro da Regência e de
seu Domínio - Dom Rufus disse - ele deve fazer planos de se casar. Falo em nome de todo o
Conselho ao afirmar que temos de garantir a sucessão adequada de Hastur.
Uma onda de excitação renovada percorreu o contingente feminino do Conselho com
a perspectiva renovada de um casamento no Comyn. Elas já estavam planejando os bailes e
festas, as recepções, os presentes a serem trocados, os vestidos novos a serem solicitados,
músicas para serem compostas, as decorações, as listas de hóspedes. Danilo esperava que
Domenic tivesse uma constituição forte e nervos de aço.
Os guardiões da tradição não descansariam até que tivessem testemunhado as
catenas de cobre sobre os pulsos de Domenic e sua noiva. Talvez Domenic mesmo já tivesse
decidido revelar a sua escolha. Alanna se inclinou para frente, vindo mais para a luz
perolada. Ela era linda, talentosa e de linhagem impecável. No momento, ela também
estava exultante, brilhando com antecipação.
Mikhail tinha escutado com atenção solene ao que Rufus disse. Ele se virou para
Domenic, trocaram algumas palavras e, em seguida, Domenic se adiantou, falando à
assembleia.
- Vou analisar a questão. - Domenic disse, levantando a voz para que todos pudessem
ouvi-lo claramente. - Concordo que o futuro de Hastur deve ser protegido. Agradeço a sua
preocupação e discussão, mas não tenho intenção de casar neste momento.
Alanna deu um grito, rapidamente sufocado, e Mikhail continuou com a sessão.
Francisco falou brevemente perante o Conselho, solicitando permissão para adicionar um
item na agenda para o dia seguinte. Danilo notou o enrijecimento dos ombros de Mikhail
quando a permissão foi concedida.
Logo a sessão foi concluída e, dentro de uma hora, a notícia dos acontecimentos
surpreendentes se espalhou por todos os escalões mais elevados da sociedade de
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Thendara. Como Danilo se demorou para ir falar com Kennard-Dyan, ele não pode deixar de
observar a polidez escrupulosa com que Domenic acompanhou sua mãe e Alanna para fora
da Câmara, ou a forma como Domenic olhou por cima do ombro em direção a jovem bonita
que era Sub-Guardiã de Nervasin.

Capítulo 27

O coração tem suas próprias razões, Regis havia dito uma vez para Domenic, e a razão
não está entre elas.
Que outra razão, Domenic se perguntava, ele teria para estar de pé às portas da Torre
Comyn quando deveria estar em sua própria cama? Ele tentou dormir, reiterando os
argumentos mil por que ele não deveria vir, até poder recitá-los. Seus pés, como que se
movendo por vontade própria, levou-o até ali.
Loucura! Domenic disse a si mesmo novamente, mesmo quando sua mão levantou o
trinco.
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Recém oleada, a porta se abriu silenciosamente.


Um único globo carregado por laran enchia o espaço com luz azulada. Colocado em
um pequeno hall de entrada mostrava uma pequena porta em arco de um lado. Escadas o
levaram para cima na escuridão para a sala comum. Talvez as Guardiãs estivssem reunidas
ali, conversando física ou mentalmente. Illona podia estar entre elas. Ou elas poderiam ter
se recolhido a esta hora tardia. Ele não podia procurar em cada quarto de dormir.
Domenic já estava com um pé na escada inferior. A lanterna tremeu em sua mão.
Como ele explicaria sua presença para alguém como Laurinda MacBard? Fora loucura para
ter ido ali.
Envolta num xale tão branco que brilhava nas sombras, Illona apareceu na porta em
arco. Sua voz ecoou na escadaria. - Domenic? Alguma coisa errada?
- Preciso falar com você. Por favor, não me mande embora. Eu preciso de você agora,
mais do que nunca.
- Nós vamos acordar os outros se falarmos aqui. - Illona sussurrou. - Este lugar amplia
o som. - Ela usou a mão livre e puxou-o pela porta, por um corredor e, em seguida, para
uma cozinha pequena e arrumada. No centro havia uma mesa simples, ladeada por bancos.
- Todo mundo está na cama como pessoas sensatas. Vim aqui embaixo para comer algo.
- Sim, eu me lembro que você fazia isso em Neskaya.
- Velhos hábitos, eu suponho. Passei muita fome na infância. - Sorrindo, ela levantou
um pano que continha meio pão, cortou dois pedaços, espalhou manteiga de um pouco de
ervas e entregou um a Domenic. - Assim estamos como nos velhos tempos. Agora, o que o
traz aqui no meio da noite?
Ele estendeu a mão para a sua profunda ligação mental e sentiu apenas uma barreira
impenetrável. Você não vai falar comigo como fez uma vez, você não vai entrar em minha
mente, como está no meu coração?
- Domenic, você sabe o que combinamos.
- Por favor.
Inclinando-se sobre a mesa, ele a estudava. Seus olhos refletiam a luz da lanterna. Ele
não podia ler nada neles, apenas seu desespero. Sem falar, ela se levantou, caminhou ao
redor da mesa e sentou-se ao lado dele. Ela pegou sua mão e segurou-a contra seu rosto.
Sua pele aveludada parecia aquecida pelo sol.
Você não está sozinho, meu querido. Você nunca estará sozinho enquanto eu viver e
respirar.
Domenic virou a cabeça para seus lábios pressionados contra a palma de sua mão. A
ternura cresceu dentro dele, o consumiu, inundada no beijo que ele colocou lá. Illona
tremeu em resposta. Relutantemente, ele baixou a mão. Eles poderiam ter apenas um
curto tempo juntos.
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Não consigo ver o meu caminho através desta escuridão. Ele pensou e então percebeu
que Alanna tinha dito quase a mesma coisa.
Ele colocou seu rosto no ombro de Illona e ela acariciou seu cabelo. - Eu não sei como,
mas vamos encontrar um caminho. – Ela murmurou.
Um suave farfalhar de tecido e respiração, levemente empurraram Domenic para a
posição vertical. Juntos, ele e Illona se viraram para a onde vinha o som, em direção à
porta.
Alanna estava ali, o rosto torcido com emoção ilegível.
Domenic ficou de pé, derrubando seu banco contra o chão de pedra nua. Seu pior
pesadelo de ter as duas mulheres de sua vida se confrontando virou realidade. Ele desejou
que a terra o engolisse. Ele tentou falar, mas as palavras congelaram em sua garganta.
Com um soluço, Alanna virou-se e fugiu.
Domenic deu um passo atrás dela, mas Illona disse: - Deixe-a ir. Ela não vai acreditar
em qualquer coisa que você disser agora. O que ela suspeitava é, afinal, a verdade.
Relutante, ele concordou. - Eu irei ter com ela na parte da manhã, quando o calor do
momento passar. Pretendo manter minha promessa a ela, se ela ainda me quiser.
- Sim, acho que você deve. Agora ela sabe o que apenas suspeitava antes. Quando ela
tiver tempo para pensar, vai perceber que em breve terei ido embora, mas vocês dois
permanecerão. Talvez ela fique satisfeita com o que você pode dar a ela, a sua honra, se
não o seu coração.
Domenic se virou para olhar para ela com espanto. Apenas alguns anos atrás, Illona
tinha sido uma garota magricela, uma menina Viajante e ignorante. Agora? Como ela havia
adquirido tal neutralidade?
- Não é tão difícil, desde que não é a minha própria alma que eu devo examinar. -
Illona disse, com um leve sorriso. - Não sou tão sábia assim. Na maior parte do tempo,
estou aprendendo o que aqueles que são mais velhos e muito mais experientes me
ensinam. Você esquece, caryo mio, que eu já tinha visto uma boa parte do lado grosseiro da
vida quando nos conhecemos, e que a vida em uma Torre exige honestidade e auto-exame.
E é bastante inebriante, quando você se acostuma com isso, revelando tanto o pior quanto
o melhor da natureza humana.
Ela se levantou e arrumou seu xale branco ao redor de seus ombros. - Não perca a
esperança ou deixe seus medos nublarem sua visão. Muitas coisas podem acontecer, coisas
que não podemos sequer imaginar. Neste mundo estranho e maravilhoso da nossa era,
onde um Lorde do Comyn pode oferecer a uma órfã sem um tostão um lugar em Ardais,
onde os homens voam para as estrelas e Chieris descem de suas florestas... Bem, significa
dizer que, daqui a cinco anos, todas as tristezas atuais não vão ser partes do passado?
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~o ⭐ o~
Havia um ditado entre o povo das colinas de Armida que o sono dos velhos era tão
pouco para compensar todas as horas que passaram dormindo quando bebês.
Incapaz de dormir, Lew saiu da cama e sentou-se em sua poltrona favorita em frente à
lareira, olhando para as brasas. Ele esperava que o brilho levemente cintilante o deixaria
sonolento, mas permaneceu acordado. Seu corpo não queria ficar na cama, seus músculos
doíam pela inatividade. Ele pensou em Jeram, lá fora, na cidade... Ferido? Perdido?
Escondido? Morto? E Domenic, ainda procurando quando podia, incapaz de descansar.
Lew ouviu um rangido, como dobradiças antigas protestando, e depois o som de uma
grade batendo sobre a pedra. A tapeçaria na parede distante, que representava Dama
Bruna Leynier, inchou para fora. De trás veio um grito distintamente feminino. A haste da
tapeçaria balançou fora de seus ganchos de fixação e, em seguida, toda a tapeçaria em lona
e lã caíram em cascata da parede, prendendo o invasor em suas dobras pesadas. Atrás dele
estava um túnel escuro, carregado de teias de aranha, sem dúvida uma das passagens
secretas das quais se ouviam rumores por todo Castelo Comyn. Qualquer lugar antigo, tinha
esses acessos que eram utlizados para fins clandestinos ao longo dos séculos. Era um meio
para ir de um canto a outro sem ser descoberto.
Lew assistiu a luta que era travada embaixo do tecido grosso e pesado. Ele duvidou
que mesmo o assassino do mais inapto pudesse agir dessa forma. Depois de um breve
período empurrando e puxando, a tapeçaria caiu em uma pilha grande, aos pés de uma
jovem mulher com o rosto vermelho, empoeirado e extremamente agitado.
Quando ela passou para a luz mais forte, Lew reconheceu Alanna Alar, a filha adotiva
de Marguerida. Ele sempre pensou que ela era bonita, mas não substancial, embora nunca
tivesse trocado mais do que algumas palavras corteses com ela. Seu cabelo estava
desgrenhado, cheio de teias de aranha e várias marcas de sujeira estavam em seu rosto.
- Oh, isso é terrível! – Ela lamentou. - Como posso ter cometido tal erro? Estou no
quarto de Lew Alton!
- Está, de fato, e faz muito tempo desde que uma jovem lady invadiu meus aposentos.
– Ele disse, tentando não demonstrar sua diversão. - Na verdade, não me lembro de
ninguém ter feito isso antes, não de uma maneira tão pouco convencional.
- Eu não quis... Quer dizer... – Ela gaguejou. – Abençoada Cassilda, que bagunça eu fiz!
- Com um esforço visível, ela se empertigou. - Sinto muito por me intrometer em sua
privacidade, vai dom. Eu não tinha intenção de sair no quarto de ninguém, muito menos no
seu.
Lew se perguntou se seu verdadeiro destino era o quarto de um homem muito mais
jovem. - Agora que você está aqui, - ele disse em voz alta - já que você pôde entrar, veja se
pode encontrar uma maneira de fechar essa porta.
O D o m d e A l t o n | 268

A menina voltou para a abertura, recuperando de uma capa escura e uma lanterna
apagada que fumava esfumaçava como se tivesse acabado de ser extinta, levando-os para
dentro do quarto, e passou as mãos sobre a parede onde a tapeçaria estava pendurada.
Levou apenas alguns momentos de empurrar e mover as pedras irregulares antes da porta
se fechar. Somente uma linha tênue de terra onde a tapeçaria tinha estado pendurada
marcava o chão, pois nada sugeria que a parede não era uma parede comum.
- Gostaria de tomar uma ceia? - Lew perguntou. - Ainda há um pouco de sopa, bem
como pão e frutas secas, sobre a mesa. Você deve manter sua força.
- Oh! Na verdade, estou com fome. - Depois de se arrumar, a menina sentou no banco
oposto ao de Lew. Ela comeu rapidamente, com naturalidade.
- Gostaria de arrumar as sobras para levar com você? - Lew perguntou. - Na minha
experiência, deve-se sempre ter uma fonte generosa de alimentos para a estrada.
- Se eu soubesse que ia fugir, teria planejado melhor. - Ela disse, dando-lhe um sorriso
triste. - Peço desculpas por surgir em seus aposentos desta maneira. As coisas
simplesmente aconteceram... E eu não sabia mais o que fazer.
- Gostaria de me contar o que houve?
Alanna balançou a cabeça. - Não adianta. Acho que eu a conheço há algum tempo,
desde que eu os vi pela primeira vez juntos em minha mente. Acho que isso deve ser de
enlouquecer qualquer um, porque algumas de minhas visões se tornam realidade. Mas ela
podia não ser real, era o que eu tinha pensado, por todo o tempo que se passou. Assim que
ele voltasse, tudo iria ficar bem. Ele me amaria e eu nunca mais teria que enfrentar essas
coisas sozinha. E agora eu não posso nem mesmo ter isso. Ele a ama e estou sozinha!
Do que a menina estava falando? Poderia muito bem ser Domenic, pois Marguerida
mencionou sua preocupação sobre um eventual apego entre eles, e a outra só podia ser
Illona. Ninguém com um pouco de laran poderia confundir a profundidade da ligação entre
Illona e Domenic, ou a paixão incandescente sempre que seus olhos se encontravam.
Delicadamente, gentilmente, Lew a alcançou com seu laran, ouvindo, ao invés de fazer
uma tentativa direta de contato. Os pensamentos de Alanna eram apenas parcialmente
bloqueados, um amontoado de confusões e um talento natural imenso. Imagens
pipocavam em todo o fundo de sua mente, os fluxos de energia, cenas brilhantes de
pessoas, torres escuras, fogo no meio da noite, uma cidade de cadáveres. Em seguida, as
imagens fragmentadas, o mundo varrido como folhas secas em um vento cortante como
uma espada.
Medo... Um temperamento impetuoso e selvagem, confusão... Dor da solidão...
Alguém, Lew pensou sombriamente, mexeu com seu laran.
- Pode me falar sobre essas visões? - Ele perguntou. - Eu sei muito sobre laran.
- Como posso? Você é seu avô.
O D o m d e A l t o n | 269

- De Domenic, você quer dizer.


Alanna se encolheu. - Suponho que o banshee está fora do ovo agora. Maldição esta
minha língua! Não poderia guardar um segredo se a minha vida dependesse disso!
Lew gesticulou para Alanna pegar seu banquinho e sentar-se ao lado dele. - Tenha
certeza criança, que, quando chegar a hora, você vai se surpreender com suas próprias
habilidades. Não há desonra em se apaixonar por Domenic. Afinal, vocês dois conhecem um
outro ao outro desde que você chegou aqui ainda criança.
- Sim, ele foi meu amigo e uma constante durante todos esses anos. – Ela disse. -
Todos achavam que eu dava muito trabalho. Domenic foi a única pessoa que me levou a
sério.
Por um instante, a voz de Alanna ficou embargada, mas ela levantou o queixo e
continuou. - Foi como um presente de Evanda...quando ele disse que me amava, mas o
senhor sabe, avô Lew... Eu posso chamá-lo assim. De avô? Nunca tive certeza se eu estava
imaginando a coisa toda. Eu o amava muito, tinha certeza de que poderia fazê-lo me amar
também. Eu costumava sonhar que ele iria me levar para longe de Thendara, para algum
lugar maravilhoso, como Armida, mas sem a tia Marguerida pairando sobre nós. Ah, eu
acho que é uma coisa terrível de falar para o pai dela!
- Não irei tomar como ofensa. – Ele disse. - Na verdade, é natural que todo jovem deva
encontrar o seu próprio lugar no mundo. Nem sempre podemos habitar nas sombras
daqueles que vieram antes de nós, não importa o quanto os amamos ou respeitamos. Nem
é uma falha moral de sua parte sentir dor quando a pessoa que você ama escolheu outra.
- Sim, e eu quero arrancar os olhos dele com minhas unhas! - Ela disse. - Malditos
sejam os dois! Não, eu não quis dizer isso! Eu nunca iria desejar-lhes qualquer mal. Sempre
pensei como é horrível quando a heroína da história, dizer “e eu não posso tê-lo, ninguém
mais vai ter”.
- Sim, mesmo que isso nos custe muito, queremos que aqueles que amamos sejam
felizes.
Alanna concordou, piscando para conter as lágrimas. – Temo que, se eu deixá-lo ir, não
vá sobrar nada para mim. Ninguém nunca vai me amar de novo.
Lew sentou-se calmamente, lembrando seu desespero quando sua amada Marjorie
morreu em uma tentativa de controlar a matriz de Sharra. Ele nunca havia amado alguém
com tal intensidade, com uma ligação tão profunda. Por um tempo, ele não podia imaginar
a vida sem ela. Mas ele viveu e se curou. Ele tinha amado de novo. Dio tinha sido uma
mulher muito diferente, mas muito cara para ele. Agora, ele olhou em seu coração e viu um
tesouro de amigos queridos e familiares. Nenhum deles poderia substituir o outro. Todos
tinham enriquecido ele imensamente.
O D o m d e A l t o n | 270

- Há muitos que a amam, como sua família e Marguerida, que tentou ser uma amorosa
mãe-de-adoção. – Ele disse para a menina trêmula diante dele.
Alanna se recusou a ser consolada. - Então por que eles me mandaram embora? Por
que tia Marguerida sempre me põe de lado ou age como se eu não tivesse sentimentos?
Ah, eu não deveria ter dito isso! Ela... Oh! Talvez ela me trate como se fosse uma criança
mimada e intencionalmente egoísta porque... Porque é isso que sou.
- Mas isso não é tudo que você é. - Lew insistiu delicadamente. - Diz-se que o nosso
passado é o nosso destino, mas espero que não seja verdade. Acredito que há algo dentro
de você que a fará se tornar mais do que o que você tem sido. Forte, verdadeira, valente.
Um silêncio se apoderou de Alanna enquanto ele falava. - Se eu fizer Domenic cumprir
sua promessa e casar comigo, isso fará nossas vidas e nós dois miseráveis. Mas não sei
como prosseguir sem ele.
Lew pegou sua mão e acariciou-a suavemente. Com um soluço, ela deitou a cabeça em
seus joelhos. Ele acariciou seus cabelos, afastando as teias de aranha e focos de poeira.
- Eu pensei a mesma coisa quando perdi minha primeira esposa. – Ele murmurou. - Ela
era tão corajosa, tão bonita, e eu nunca tinha conhecido o amor como tal. Você já ouviu as
histórias de como ela morreu no círculo de Sharra salvando todos nós? Então sei alguma
coisa de sofrimento.
Um pequeno suspiro passou pelo corpo de Alanna e seus músculos relacharam.
- Acho que nós nunca esquecemos aqueles que amamos. – Lew disse. - Eles se tornam
parte de nós para sempre. Com o tempo, a dor desaparece. O fardo se torna mais leve. A
memória torna-se uma fonte de compaixão e força. E às vezes nos é dado o privilégio de
passar a sabedoria para outra pessoa, de modo que ela saiba que não está sozinha.
Os dedos de Alanna se apertaram ao redor dele. Depois de um longo momento, ela se
endireitou. A característca infantil e petulante desaparecera de suas faces. Ela parecia
menos desamparada, mais firme, como se tivesse encontrado uma força interior que nunca
tinha tocado antes.
- Tenho sido uma boba volúvel, - ela confessou - sempre recebendo ajuda no meu
caminho, lançando ataques de raiva e piorando a vida dos que me rodeiam. Mas se o
senhor me ajudar, como meu avô teria feito, vou tentar fazer o que é certo.
- Eu sou seu amigo e eu não peço nada em troca. - Lew pensou em suas várias
conversas com Padre Conn. O que o velho monge lhe dissera? - Se você agir com honra,
então que seja para seu próprio bem, e não para comprar quaisquer favores de mim.
Seus olhos brilhavam à luz do fogo refletida. - Não, mas significaria muito saber que o
senhor está olhando por mim.
O D o m d e A l t o n | 271

Nunca está sozinho quem tem irmãos, dizia o velho provérbio. Ninguém, nem mesmo
o maior dos Lordes Hastur ou o mais humilde tropeiro, deveria enfrentar as crises da vida
sozinho.
- Então vou fazer o que puder por você. – Ele disse. - Não vou cuidar de você, mas sim
ajudá-la a aprender a cuidar de si mesma. Enquanto isso, tivemos uma noite e tanto e é
melhor descansar um pouco. Há uma importante sessão do Conselho pela manhã e vou
precisar de um braço forte e jovem para me apoiar.
Alegremente, Alanna voltou para seu próprio quarto para algumas horas de sono
antes do amanhecer. Lew não podia ter certeza de por quanto tempo seu bom humor
poderia durar e ela poderia abandonar todas as suas resoluções na primeira contrariedade.
Ou então, ele pensou com um sorriso interno, ela poderia surpreender a todos.
Lew acordou com uma batida suave na porta. Ele estava dormindo na mesma cadeira
confortável ao lado da lareira, agora apagada. Alanna abriu a porta com uma mão e
deslizou para dentro, carregando uma bandeja enorme e coberta. Ela usava um vestido
fresco, verde floresta profundo bordado com flocos de neve ao redor da gola alta e dos
punhos. Seu cabelo estava perfeitamente limpo e trançado, enrolado em seu pescoço.
- A cozinha está lenta esta manhã. – Ela disse. - Metade dos cozinheiros e ajudantes
estavam doentes ou os membros de suas famílias. Pedi tudo o que pensei que fosse gostar.
Depois de um momento Lew voltou com o rosto e camisa limpos. Alanna tinha
acendido o fogo, dando uma vida nova ao quarto e serviu a refeição. O habitual jarro de
jaco fumegante estava ao lado de tigelas de ovos cozidos na casca e ainda quentes, maçãs
cozidas, uma cesta de pasteis de nozes crocantes, e potes de geléia de frutas, mel e
manteiga.
- Bom para um longo dia de trabalho. – Ele disse com aprovação.
- Sim, e vai precisar de toda a sua força. - Sorrindo, Alanna agitou uma colher de mel
em uma caneca de jaco e entregou a ele.
- E você, chiya? Você deve comer tambem.
- Eu comi um pouco de pão e queijo mole na cozinha enquanto eles estavam fazendo a
sua bandeja. – Ela disse. - Mas, se for do seu agrado, vou comer mais. - Ela mordeu um dos
pasteis.
Enquanto comiam, Marguerida chegou. Ela já estava vestide para a reunião do
Conselho em seda cinza com faixas largas de bordado em tons de azul. Ela tinha arrumado
seu cabelo em um redemoinho gracioso com cordões de conchas minúsculas em vez da
trança baixa no pescoço, o costume tão comum entre as comynaras. Sua expressão
endureceu um pouco com a presença de Alanna, mas ela não disse nada além de um cortês
bom dia.
- Você ficou acordado a noite toda, pai? Esperava que pudéssemos sentar e conversar.
O D o m d e A l t o n | 272

Alanna se inclinou com uma frágil dignidade auto-conscientede e se desculpou.


Quando estavam sozinhos, Marguerida sentou-se na segunda cadeira, em frente a
Lew.
- Pai, você falou a sério da intenção de participar do Conselho hoje? Illona disse que
estava pensando nisso e que nem ela nem as curandeiras tinham objeções, mas não
acredito nela. O que estavam pensando para permitir isso?
- Eu sei o que elas pensaram. - Lew disse secamente. – Elas entendem que faria mais
mal para mim ficar aqui e definhar. Depois dos acontecimentos surpreendentes de ontem,
como posso perder a sessão de hoje?
- Sua presença não vai resolver nada se você ficar doente de novo.
- Estou bastante recuperado, eu lhe garanto. Devo dançar um secain para provar isso
para você?
Com uma risada, Marguerida recostou-se na cadeira. - Apenas me escute, afinal, eu
estou me remexendo em cima de você como uma galinha velha! Desculpe, estou com meu
temperamento explosivo. - Ela esfregou as têmporas. - É uma dor de cabeça daquelas.
- Outra premonição?
Ela encolheu os ombros. - Quem pode dizer, com tanta coisa acontecendo? Toda vez
que acho que a crise já passou, recebo um outro aviso. Então não posso parar de me
preocupar sobre o que Francisco pode fazer. Seu esquema de casar sua filha com Domenic
não deu em nada. Katherine deixou Térese a salvo em Aldaran e diz que está muito feliz lá,
não que Nico esteja muito interessado. Francisco vai tentar outra coisa, sei disso! Não acho
que Mikhail deveria permitir a ele fazer uma apresentação.
- Você não confia no julgamento do seu marido? - Lew perguntou.
Ela deu-lhe um olhar horrorizado. - Claro que sim! Mas ele tem um grande coração e
só vê o bem em todos. Nunca conheci ninguém menos propenso a guardar rancores. Ao
mesmo tempo... Não há uma versão darkovana de ‘pode confiar em Deus, mas empenhe o
seu camelo’?
Lew não pôde conter o riso. - Tenho certeza que os habitantes das Cidades Secas tem
algo assim, só que envolvendo Nebran, o Deus Sapo e um rebanho de mau-cheirosos e
mau-humorados oudrakhi que nenhuma pessoa sensata gostaria de ter alguma coisa a ver,
em primeiro lugar.
Quando Marguerida riu, um pouco da tensão em seus músculos diminuiu. - Vê como
eu preciso de você, Pai, apenas para me ajudar a ver o lado mais leve das coisas?
- Vamos andando, então. – Ele disse quando se pôs de pé. - Quero ter uma conversa
séria com você, mas agora não é o momento.
- Vamos ter muitas oportunidades depois. - Ela respondeu, levantando-se e beijando
seu rosto.
O D o m d e A l t o n | 273

Muito em breve, eles iriam descobrir como ela estava errada.

Capítulo 28

Após Marguerida partir para se preparar para a reunião do Conselho, o servo de Lew o
ajudou em seu traje formal dos tribunais. A capa elaborada, enfeitada com pele e fios de
prata bordados, nunca deslizaram corretamente sobre a manga vazia. Ele ficaria feliz
vestindo uma roupa confortável e comum, mas, como Lorde Alton, tinha a obrigação de se
apresentar com uma certa dignidade e grandeza.
Alanna, excepcionalmente silenciosa, acompanhou-o através do labirinto de
corredores, escada abaixo e através do pátio até a entrada da Câmara de Cristal.
O D o m d e A l t o n | 274

Embora a Câmara estivesse apenas meio cheia, os amortecedores telepáticos já


haviam sido ligados. Depois de saudar Gabriel, Lew acomodou-se no recinto dos Altons e
colocou Alanna atrás dele. Ela não tinha o direito oficial de aparecer com ele, mas Gabriel
assentiu agradavelmente e não fez nenhuma objeção. Marguerida tinha ido falar com
Istvana na seção das Guardiãs e Mikhail já ocupava a posição central sob a bandeira azul
com o pinheiro dos Hasturs. Domenic estava lá, com o rosto tenso e pálido, bem como
Rory, procurando habitualmente ser alto e garboso. Do outro lado da Câmara, sob a
bandeira da Ardais, Danilo acenou para Lew.
Mikhail esperou até que o Chefe de cada Domínio houvesse chegado e Marguerida
tivesse tomado seu assento ao lado dele. Então, ele convocou a reunião para a ordem. Ele
começou a agenda, chamando para os assuntos do dia. Para surpresa de todos, Danilo o
interrompeu.
- Parentes, vai domyn e vai leronis, gostaria de voltar a um assunto que temos
discutido desde a primeira reunião, isto é, a necessidade de um herdeiro para Aillard.
Desde que concordamos em considerar a linhagem dos filhos nedestro, creio ter
encontrado um candidato para preencher essa posição. Ele entende perfeitamente que não
pode manter o Domínio em seu próprio direito, mas apenas como Regente de sua filha,
quando tiver uma. Ele vai, naturalmente, ser sujeito à aprovação de Lady Marilla e deste
Conselho.
Ao lado de Lew, Gabriel murmurou: - O que é Danilo Syrtis está falando? O último dos
Aillards morreu anos atrás.
- Não sei mais do assunto do que você. - Lew respondeu em voz baixa. Então, ele
acrescentou, mantendo seu tom neutro: - Vamos ouvir o que ele tem a dizer antes de
julgar. Não será a primeira vez que um Domínio passa para um ramo colateral. – Afinal, fora
apenas porque Lew e Marguerida tinham cedido seus direitos ao Domínio Alton, que
Gabriel agora governava Armida e se sentava no Conselho.
Marilla Lindir-Aillard ficou em pé. Esta manhã, ela parecia mais velha do que seus
anos, suas feições que estavam nitidamente cansadas ficaram coradas. - Não posso
imaginar do que está falando, Dom Danilo. Não há ninguém vivo agora que tem o sangue
Aillard completo, e todos os membros da família Lindir e outras relacionadas, são
conhecidos por mim. Você talvez esteja falando de algum primo distante de Eldrin?
- Não. Falo de quem pode rastrear sua linhagem de Lady Cassilde Aillard através de seu
filho, Auster. Como você pode lembrar, ele foi chamado Ridenow, a fim de protegê-lo da
reação causada pela Guardiã Doryllis Aillard, a nossa Cleindori.
- Cleindori... - O nome sussurrado se espalhou através da Câmara. ‘O Sino de Ouro’
ainda era reverenciada por ter desafiado as velhas normas e libertado as Torres dos fardos
paralisantes estabelecidos pelas Guardiãs anteriores.
O D o m d e A l t o n | 275

- E assim - Danilo continuou sua história – a linhagem de sangue ficou oculta. Mas
Auster, por sua vez teve uma filha nedestra, e é o filho dela que gostaria de apresentar a
vocês.
- Ele tem laran? - Lorrill Vallonde perguntou.
- Mesmo que não tenha, - Dani Hastur disse - ele pode perfeitamente ser um Regente
adequado e passar o dom para suas filhas. Que tipo de homem ele é, tio Danilo? Será que
ele daria um sábio conselheiro?
- Não creio que nenhum de nós poderia dar um conselheiro melhor, embora ele ainda
seja jovem. - Danilo respondeu. - Ele demonstrou ter laran, para minha satisfação.
Lew notou que nenhum dos Aldarans fez qualquer comentário. Não foi há muito
tempo que o gabinete abaixo da águia de duas cabeças esteve vazio, com cortinas
fechadas. Aldaran nunca tinham tomado parte na perseguição de Cleindori. Na verdade,
eles tinham há muito tempo considerado muitas das restrições impostas pelas Torres como
obstrutivas e desnecessárias. Beltran Aldaran haviam procurado se aproveitar do poder de
Sharra para seus próprios fins, com o desastre como resultado. A família atual, no entanto,
era de homens prudentes. Hermes, que havia sucedido Lew como Senador, tinha provado
ser um trunfo para qualquer projeto.
A discussão continuou, variando em tom de curiosidade ou de suspeita velada.
- Chega de discussões! - Marilla rebateu com um toque de irritação. Ela apertou uma
mão à testa. - Só mais uma palavra de qualquer um de vocês e minha cabeça vai explodir!
- Mãe, você está bem? - Kennard-Dyan perguntou de seu lugar na área Ardais.
- Sou perfeitamente capaz de tomar decisões por Aillard enquanto o Domínio estiver
sob minha guarda. – Ela respondeu. – Não vamos ter mais nenhuma conversa inútil. Eu
mesma irei admitir essa pessoa como meu convidado. Traga-o e ele vai se sentar aqui do
meu lado.
Danilo sinalizou para o Guarda ao lado das portas da frente e, poucos momentos
depois, um homem bem jovem e de cabelos vermelhos entrou. Ele usava roupas comuns,
um casaco e calças compridas de lã marrom, bem-feito e muito limpos, porém a vários anos
fora de moda.
Foi, provavelmente, Lew pensou, o melhor o que seus companheiros pobres poderiam
pagar.
- Quem é ele? - Alanna perguntou a Lew.
- Não tenho ideia. Alguém que Danilo encontrou em uma de suas buscas?
Danilo acabou apresentando o recém-chegado como Darius-Mikhail Zabal, que por sua
vez fez, fez alguns comentários impecavelmente educados, curvou-se ante Mikhail e
Domna Marilla, tudo em perfeita ordem. Ele respondeu às perguntas sobre a sua
ascendência e educação de forma clara e articulada. Não havia dúvida, Lew pensou, de que
O D o m d e A l t o n | 276

ele era um jovem inteligente, muito melhor orador do que muitos que sentados ali não por
virtude própria, mas só pelo nascimento. O fato de que ele havia ganhado a vida como
mecânico de matriz licenciado parecia promissor para alguns e vergonhoso para os outros.
Marilla, que poderia ser tão esnobe como qualquer comynara, no entanto, sorriu quando o
acolheu.
- Vai domyn, membros dignos deste Conselho, - disse Mikhail, com um sorriso
divertido em suas feições - parece que nosso número têm crescido além das expectativas
de qualquer um. Aldaran está uma vez mais unido com os domínios. Hoje estamos
honrados não só pela presença de conselho de Guardiãs em nosso meio, mas também por
três novos membros da familia Ardais e agora um novo membro da família Aillard que,
espero, produza muitas filhas para garantir a contínua prosperidade de seu Domínio.
A assembleia respondeu com uma salva de palmas. Palavras de Mikhail haviam tocado
em todas as suas esperanças de um Conselho renovado e florescente.
- Dom Francisco Ridenow, a quem recebemos de volta entre nós no ano passado,
agora quer falar-nos. – Mikhail disse, uma vez que os aplausos diminuíram.
Francisco saiu para o centro da sala. Em contraste com a elegância elaborada do resto
do Conselho, ele usava uma jaqueta bem aderente tão escura que parecia preta, um cinto
correspondente e botas macias, o tipo de roupa em que um homem poderia facilmente
dançar ou lutar. Um calor se apoderou dele, aumentando a cada movimento seu. A cabeça
latejava com uma sensação de iminência. Mesmo com os amortecedores telepáticos, ele
sentiu o orgulho de Francisco, sua arrogância, seu triunfo mal contido...
- Lordes e parentes, vai Comyn e comynara! - A voz de Francisco era poderosa e
ressonante. - Não tenho vontade de estragar o clima festivo desta manhã, mas uma
questão de extrema gravidade veio ao meu conhecimento, algo que não pode ser negado
ou adiado.
A atenção da assembleia mudou sensivelmente. Alguém... Lorrill Vallonde, Lew
pensou... perguntou: - Do que ele está falando? - E seu vizinho mandou ele ficar quieto.
Rory inclinou-se para sussurrar algo para sua mãe, que sacudiu a cabeça e, em seguida,
virou-se para olhar para Francisco.
Em crescente horror, Lew ouviu enquanto Francisco relatou como um Terran
expatriado, alegou ter sofrido um abuso de laran nas mãos de um membro do Comyn,
membro deste Conselho. A Câmara ficou mortalmente silenciosa.
Jeram... Tem que ser Jeram! Não é de admirar Domenic não tenha sido incapaz de
encontrá-lo, se ele caiu nas garras de Francisco.
Laurinda MacBard ficou em pé. Suas feições estavam com a calma disciplinada de uma
Guardiã, mas sua postura revelou seus sentimentos de indignação. - Quem entre nós é
O D o m d e A l t o n | 277

acusado de um ato tão terrível? Onde está esse Terranan, para que possamos ouvir o seu
testemunho de sua própria boca?
Francisco virou-se para enfrentar a Guardiã de Dalereuth. Seu movimento ensaiado e
controlado atraiu todos os olhares. Do outro lado da Câmara, Marguerida apertou as mãos
com tanta força que Lew quase podia ouvir o estalar de suas articulações. Ele não podia
sentir seus pensamentos por causa dos amortecedores telepáticos, mas seus olhos
brilhavam como ouro derretido. Claramente, ela queria saber o que Francisco estava
fazendo, que truque sujo estava preparando.
Em um aceno de Francisco, os Guardas abriram uma das portas duplas. Jeram entrou,
as mãos amarradas atrás das costas, ladeado de ambos os lados por homens armados nas
cores dos Ridenow. Um homem magro de cabelos claros seguia de perto por trás deles.
Jeram tinha mudado para além do reconhecimento do homem Lew tinha conhecido
em Nervasin. Sua pele estava cinza e sem brilho, seu cabelo pendurado em emaranhados
nas costas, ele balançava sobre os pés e se mantinha na posição vertical apenas por seus
captores.
Piscando duro, Jeram olhou para a Câmara. Suas pupilas estavam dilatadas tão
amplamente que seus olhos pareciam negros, mas sua expressão era de determinação
amarga. Seu olhar passou de Francisco para Lew e, finalmente, para Marguerida. Ela olhou
para ele com simpatia genuína, mas nenhum sinal de reconhecimento. O rosto de Domenic
apertou e, na seção Aillard, o queixo de Illona se ergueu.
Laurinda, com um gesto de impaciência, quebrou o silêncio chocado. Ela apontou para
Jeram e sua voz, alta e anasalada, soou. - Companheiro, você acusa um de nós de um crime
grave. Gostaríamos de ouvir o seu nome e sua história para que possamos determinar a
verdade.
Esforçando-se para manter o equilíbrio, Jeram balançou a cabeça. Levou um longo
tempo para o Conselho entender que ele estava se recusando a responder. Claramente, ele
estava lutando contra alguma droga, qualquer que fosse, provavelmente uma das frações
do kireseth que reduziam inibições e deixavam a vontade prejudicada.
Se movendo em um caminho lento e circular como um gato caçando, Francisco cruzou
o local onde Jeram estava. Ele falou em uma voz suave e hipnótca. - Você não quer
conversar? Temos de convencê-lo. Vamos começar com algo fácil. Conte-nos seu nome e
como você chegou até aqui.
Algo no tom de Francisco rompeu resistência de Jeram. - Jeremiah Reed. - O nome foi
pronunciado em sílabas cadenciadas de seus lábios rachados e inchados. - Forças Especiais
Terran, número de série...
O D o m d e A l t o n | 278

- Está tudo bem, não há necessidade de ser tão formal. Somos todos amigos aqui. -
Francisco fez uma pausa, seu ritmo excelente. - Conte-nos mais sobre si mesmo. Como você
chegou a Darkover? O que você faz aqui?
Jeram ergueu o queixo. Tremendo e suando visivelmente, ele repetiu. - Jeremiah Reed,
forças Especiais Terran...
- Basta! - O controle suave de Francisco escorregou, mas apenas por um momento. -
Vamos começar de novo.
Cada vez mais desesperado por seu amigo, Lew se levantou. - Vai domyn, este homem
está claramente aqui contra a sua vontade. Não sei o que Dom Francisco pretende com este
espetáculo. Esta é uma Câmara do Conselho, não um teatro. Deixe-o tomar suas acusações
perante as Cortes e não aqui.
- As Cortes não têm jurisdição sobre o Comyn. - Laurinda atirou de volta. Essa questão
de ética de laran diz respeito as Torres diretamente.
Mikhail levantou a voz. - Dom Francisco solicitou e obteve a oportunidade de se dirigir
ao Conselho. Lamento anular você, Dom Lewis, mas ele tem o direito, assim como qualquer
um de nós, para trazer as preocupações que julgar pertinentes.
- Vai permitir que esta... Esta tortura flagrante continue? - Lew exigiu.
- Dom Lewis, o senhor pode exceder sua autoridade, - Laurinda interrompeu - mas o
interrogatório desta testemunha irá continuar, a meu pedido, e vou determinar por quanto
tempo e em que medida vamos prosseguir. Não preciso lembrar que este homem está aqui
a vista de todos nós. Nenhuma força física ou mental pode ser aplicada sem o nosso
conhecimento. Dada a gravidade da acusação de abuso de laran, vamos proceder
vigorosamente.
Sua louca! Não pode ver que Francisco a está usando? Furioso demais para falar, Lew
sentou-se novamente. Francisco tinha encontrado o incentivo certo para garantir a
investigação completa da Guardiã.
- Obrigado. - Francisco disse com uma ligeira inclinação de cabeça e se voltou para
Jeram. - Nós já sabemos por que você estava em Darkover. Só queremos ouvir o que você
fez aqui, com suas próprias palavras. Você foi implantado como parte da força militar
Terranan, primeiro em Aldaran e depois para o ataque na Antiga Estrada do Norte, não é
mesmo?
Sussurros soaram em torno da Câmara. Este era um dos homens, os assassinos que
tentaram acabar com o Conselho em um ataque único e covarde? Lew sentiu qualquer
simpatia restante por Jeram se evaporar. Mesmo aqueles que poderiam ter se sentido
ofendidos pela pesada autoridade de Laurinda ou pelas manipulações de Francisco agora
tinham um motivo pessoal para querer ouvir o depoimento de Jeram.
O D o m d e A l t o n | 279

- Você fez parte da emboscada na Estrada, não fez? - Francisco disse, circulando ao
redor Jeram.
Em torno da Câmara a conversa continuava abafada. Homens e mulheres se
inclinaram para ouvir, sua intenção estava em seus rostos, alguns deles com raiva. Domenic
olhou espantado, culpando-se por não ter encontrado Jeram mais cedo.
Francisco se aproximou. Sua voz era sedosa, quase sedutora. - É por isso que você veio
para Thendara, não é? Para contar sua história diante do Conselho? Você está aqui e eles
estão ouvindo. Agora é a sua chance. Vá em frente, conte-lhes.
Ao seu sinal, os dois Guardas empurraram Jeram que tropeçou e perdeu o equilíbrio.
Francisco levantou-o pelos ombros e virou-o em um círculo lento para ser visto por cada
membro do Conselho. - Diga a eles.
- Isso não tem nada a ver com abuso de laran. - Domenic protestou.
- Não, deixe-o falar. - Rufus DiAsturien disse. - Temos o direito de saber.
Por um longo momento, Jeram lutou visivelmente para não falar. Seu rosto corou com
o esforço, ele engoliu convulsivamente. - É verdade. – Ele começou, com a voz
entrecortada. - Eu vim aqui para confessar. Para dizer-lhes que eu participei. Estávamos
com blasters contra espadas. Lamento...eu estava seguindo ordens, e isso não é uma
desculpa...
- Diga a eles o que aconteceu depois. DIGA A ELES! - Os dedos de Francisco estavam
cravados nos ombros de Jeram. Jeram estremeceu mas continuou, uma frase após a outra.
Devia possuir uma força de vontade enorme para resistir tanto a droga, falar o que ele
desejava e não o que Francisco ordenava que ele dissesse.
- Isto é uma farsa. – Danilo disse, ficando de pé. - Vocês não vêem que o homem é
incapaz de testemunhar alguma coisa? Ele está muito doente ou drogado para saber o que
está dizendo!
- Você ousa questionar a minha honra? - Francisco respondeu.
- Sente-se, Danilo. – Mikhail disse. Lew ouviu a relutância em sua voz, a obstinada
adesão ao protocolo e tradição. - Temos que deixá-lo continuar.
Ofegante e tremendo, Jeram abaixou a cabeça. Parecia que ele estava no fim de sua
capacidade de resistr. Passo a passo, Francisco o forçou a admitir que ele tinha sido incapaz
de se lembrar de como a batalha terminara até que a Guardiã da Torre Nervasin tinha
quebrado o bloqueio e a compulsão de esquecer o ocorrido. A cada revelação, um choque
percorria os membros do Conselho.
- Foi então que percebeu que um laran, especificamente o Dom de Alton, tinha sido
usado em você, sem o seu conhecimento ou consentimento. – Francisco disse. - Não é
verdade?
O D o m d e A l t o n | 280

Com o peito arfante, Jeram balançou a cabeça. Mesmo com os amortecedores


telepáticos suprimindo qualquer contato psíquico, a Câmara inteira parecia vibrar com sua
luta. As veias de sua testa se destacaram em claro contraste. Gotas de suor umideceram o
emaranhado de seus cabelos.
Jeram olhou para Lew, e Lew leu o apelo desesperado nos olhos de seu amigo.
Ao longo da Câmara, uma tempestade estava se formando. Lew sentiu isso no ar, na
terrível expectativa, como uma onda de adrenalina correndo através de suas veias. Vidas já
tinham sido destruídas nesta Câmara antes por palavras negligentes ou por malícia
deliberada.
O homem de cabelos claros agarrou o braço direito de Jeram e torceu-o para trás,
perto de deslocar seu ombro. Jeram ficou com o rosto branco. Francisco inclinou-se sobre
ele: - Não é verdade?
Jeram olhou para Francisco e balançou a cabeça. Com os dentes cerrados, ele
murmurou no Padrão Terran: - Vá para o inferno! Vou te encontrar lá antes de contar mais
uma de suas mentiras sujas!
- Você vai nos dizer a verdade. - Francisco assobiou. "De uma forma ou de outra, você
vai nos dizer...
Atrás de Lew, Alanna gritou: - Isso é terrível! Por que ninguém para com isso?
Sua voz quebrou o sentido iminente da inevitabilidade. Lew só conseguia pensar em
uma maneira de parar as perguntas de Francisco, e que seria verdade sua confissão. Ele não
tinha a intenção de tornar o assunto público, mas o interrogatório ganhou vida própria,
ameaçando varrer tudo em seu caminho.
Que assim seja!
Não mais se preocupando com as consequências, Lew se levantou. - Isto já foi longe
demais.
- Socorro! Alguem ajude!
Lew foi interrompido pelo grito de uma senhora.
- Olhem para Domna Marilla!
Kennard-Dyan saltou sobre os trilhos do gabinete de Ardais e correu através do salão.
Com uma mão levantada sobre sua testa, Marilla afundara em seu assento. Em seu
desespero a mulher soltou outro gemido agudo. Kennard-Dyan chegou a ela apenas a
tempo de pegar Marilla quando ela caiu.
- Me ajudem! Minha mãe está doente!
A voz de Mikhail trovejou através da Câmara, pedindo ordem. - Limpem o caminho!
Levem o prisioneiro para fora daqui!
O D o m d e A l t o n | 281

Os homens de Francisco começaram a arrastar Jeram para fora. Jeram lutou o melhor
que podia, mas o seguraram rapidamente. Ele mal conseguia ficar de pé, muito menos
montar uma resistência eficaz. Marguerida agarrou o braço de Mikhail e falou com ele.
- Não vocês! - Mikhail disse aos captores de Jeram. - Capitão Cisco, você assume a
custódia dele!
Cisco Ridenow gesticulou para os dois Guardas nas portas principais. O homem loiro
saltou em Jeram tão de repente que Jeram cambaleou para os braços do Guarda. Enquanto
isso, Darius-Mikhail, que estava sentado ao lado de Marilla, tirou sua pedra da estrela de
uma bolsa de couro forrada de seda e transportada em uma dobra da roupa em sua
cintura, e se inclinou sobre ela. Ele não podia fazer nada no campo dos amoretecedores.
- Desliguem os amortecedores! - Istvana gritou enquanto corria para a Ala dos Aillards.
Illona deu um aceno curto e começou a desligar os aparelhos.
A Câmara estava agitada com emoções caóticas. A angústia de Jeram bateu em Lew
como um golpe físico. Francisco irradiava ódio e desespero. Kennard-Dyan sentia culpa e
preocupação por sua mãe. Agitação e uma fúria crescente em Marguerida e uma dúzia de
outras reações poderosas na sala.
Um anel de fogo explodiu como um relâmpago branco da mente de Alanna. Uma visão
penetrou através da mente de Lew. Ele viu Jeram deitado em uma poça de sangue...
Mas depois se tornou outro homem, embora Lew não pudesse dizer quem, um
homem com cabelos louros.
- Ajude-me. - Alanna sussurrou. Ela se agarrou no banco para não cair. Um brilho
molhado, cobria sua pele pálida.
Lew colocou a palma de sua mão contra seu rosto. Ela estava fria, entrando em
choque.
Está tudo bem. Eu estou aqui com você. Não ceda a seus medos, criança.
Seus olhos se arregalaram enquanto sua mente tocou a dela, catalisada através do
contato físico.
Não alimente seus medos, Lew enviou o pensamento a sua mente. Deixe-os ir, libere-
os. Eles não podem prejudicá-la, a menos que você se entregue a eles.
Eu... Sua resposta foi lenta, desajeitada e inexperiente. Estou tão assustada. Eu não
posso encarar essas visões sozinha!
Você não está sozinha, querida criança. Depois de dominar o seu laran, você nunca
mais vai precisar estar sozinha.
Em suas mentes ligadas, Lew derramou suas memórias mais pacíficas...
...A alegria crescente de ser um com o círculo em Arilinn... Andando pelas ruas de Caer
Donn em uma manhã fria, a mão de Marjorie na sua... Sentado na capela escura em São
Valentim como os últimos acordes sublimes de um hino desaparecendo...
O D o m d e A l t o n | 282

As visões de Alanna perderam sua vivacidade e ela piscou para o nada. Sob as imagens
calmantes de Lew, a tempestade psíquica em sua mente se apagou. A cor voltou ao seu
rosto, seus olhos ficaram firmes e claros. Lew nunca tinha visto ela tão livre do conflito
interno, de um modo tão tranquilo.
Lew voltou sua atenção para o drama local. Metade da assembleia estava de pé agora.
Todos pareciam estar falando ao mesmo tempo. Kennard-Dyan e Istvana estavam em uma
acalorada discussão sobre conduzir Marilla a seus aposentos ou para a Torre. Francisco
protestou ruidosamente pelas ordens de Mikhail, insistindo que a testemunha estava sob
sua proteção, e não da Guarda.
Kennard-Dyan pegou sua mãe como se ela não pesasse mais do que uma criança. Ele
seguiu Illona e Darius-Mikhail para fora da câmara, Istvana ficando para trás. O clamor
começou a diminuir à medida que Mikhail, falando alto anunciou o adiamento da sessão
para o dia seguinte.
Cisco se aproximou de Francisco, que tinha permanecido no centro do salão. - Venha,
pai. Vou levar você de volta para seus aposentos.
Francisco minimizou o avanço de seu filho. Em vez disso, ele caminhou até a Ala dos
Hastur e assumiu uma postura beligerante, confrontando Mikhail.
- Mikhail Lanart, pretendente a Rei e tirano! - Francisco estava omitindo o sobrenome
legítimo de Hastur como um insulto deliberado. - O trunfo ainda é meu e ainda não estou
acabado!

Capítulo 29
O D o m d e A l t o n | 283

- Acalme-se, Dom Francisco. - Mikhail disse, levantando as duas mãos em um gesto


conciliador. - Houve tumulto suficiente para uma reunião. Nós vamos adiar tudo até
amanhã. Você terá a sua chance de terminar o que tem a dizer.
- Nesse meio tempo - Francisco atirou de volta, seu rosto avermelhado - você vai levar
minha testemunha para o seu lado, se é que você ainda não o silenciou para sempre. Você
não vai estragar minha vitória, não desta vez, ou enterrar as evidências de seus crimes e de
sua esposa!
Nós nunca deveríamos ter deixado ele voltar, Lew pensou com um solavanco
enjoativo. Marguerida estava certa.
- Não sou seu inimigo. – Mikhail disse.
- E eu não sou nenhuma criminosa! - Marguerida exclamou. - Se você tem algo a me
dizer, faça-o em linguagem simples. Apresente as suas provas para todo mundo ouvir!
- Os eventos da manhã de hoje atingiram a todos nós. - Mikhail disse suavemente. -
Não há sentido em continuar a lançar insultos uns aos outros.
- Então você não me deixa escolha. - Francisco interrompeu. - Aqui, no meio de nossos
pares, eu declaro uma rivalidade de sangue formal. Eu o desafio, Mikhail-Regis Lanart
Hastur, por roubo e desonra, e estou pronto para provar a verdade com o meu corpo!
Um suspiro coletivo encheu a sala. Cisco olhou para seu pai, claramente chocado com
essa sucessão de eventos. Donal deu um passo à frente, sua mão indo para sua espada.
Mikhail conteve seu paxman com um olhar.
- Você esquece de si mesmo, Dom Francisco, - Mikhail disse, levantando-se - trazendo
vergonha para sua casa com estas palavras precipitadas. Retrate-se agora e darei um
perdão total e sem mancha para a sua honra, ou sofra as consequências!
- A única consequência que vejo é o fim de sua vida inútil! - Francisco respondeu. -
Será que estou diante de um homem ou devo caçá-lo como um animal?
Marguerida levantou-se, tomando lugar ao lado de seu marido. O ar em volta dela
brilhava com intensidade. - Isso já foi longe o suficiente. O Conselho é um território neutro
e nós não vamos vê-lo degenerar em um bar barato ou uma arena de duelo. Se não pode se
comportar de forma civilizada, Dom Francisco, você vai ter que sair. Os Guardas vão
escoltá-lo para fora desta câmara.
Com suas palavras, os Guardas nas portas olharam um para o outro, com a confusão
escrita em seus rostos. Eles estavam acostumados a receber ordens do próprio Regente e
não de sua esposa de fora do mundo. Além disso, a antiga tradição exigia que um desafio,
uma vez emitido, deveria ser devidamente respondido.
Francisco cuspiu no chão, aos pés de Marguerida. Ela ficou vermelha. A mão de Rory
moveu-se para o cabo de sua espada, mas Domenic tocou o ombro de seu irmão e sacudiu
a cabeça, restringindo-o.
O D o m d e A l t o n | 284

Dani Hastur se adiantou, parecendo mais com seu pai do que Lew teria acreditado
possível. Como Regente de Elhalyn, que certa vez deteve a realeza sobre todos os
Domínios, Dani era o próximo na linha de sucessão após Mikhail para liderar o Conselho.
Como seu pai, Regis, ele nunca quis o poder. Neste momento, no entanto, ele se portava
com tal autoridade que o clamor caiu em silêncio.
- Vai domna - disse a Dani a Marguerida com polidez impecável - isso que pede não é
possível. Este homem é um Comyn com direito de Domínio que ninguém pode negar. Ele
declarou uma rivalidade de sangue perante esse Conselho. Ninguém fez um desafio desta
forma desde antes do tempo nossos avós. Mas, no entanto, é a lei.
- Então é hora da lei ser mudada! - Marguerida insistiu. - Não podemos permitir que tal
costume bárbaro continue! É por isso que temos tribunais e um Conselho para resolver
nossas diferenças sem violência! Ou vocês - ela direcionou um olhar feroz para toda
assembleia - querem voltar à Era do Caos?
A que ponto eles tinham chegado, Lew se perguntou, quando um homem tão digno
como Mikhail devia arriscar sua vida nas mãos de um traidor, tudo por causa da tradição?
- Sinto muito. – Dani disse suavemente, mas com firmeza, para Marguerida. - A
senhora tem que ficar em silêncio e nos deixar conduzir esse assunto. Se não pode se
controlar, a Guarda vai acompanhá-la para seus aposentos.
- Com que direito você... - E Marguerida chorou.
- Sente-se, filha! - Istvana falou, com toda a autoridade de uma Guardiã, que cortou o
ar. - Sente-se, antes de tornar as coisas piores!
Respirando com dificuldade, com o rosto corado, Marguerida sentou-se em seu lugar.
Domenic estendeu a mão e pegou a dela. Ela lançou-lhe um olhar de gratidão.
- Qual é a natureza de suas acusações? - Dani perguntou a Francisco. - Elas não podem
ser satisfeitas de alguma forma pacífica?
- Não vou ser comprado com discursos bonitos do Hastur, não enquanto meu inimigo
continua a gozar dos frutos de seus crimes. - A voz embrutecida de Francisco parecia o
rosnar de um leopardo das neves. - Nem vou ouvir as mentiras da mulher Terranan que ele
tomou como esposa que tem conspirado com ele para a minha desonra, de meu filho e de
meu Domínio.
- Seu bre'suin filho de nove pais imundo! - Rory gritou. - Como se atreve!
- Pai, eu imploro, por favor! Não faça nenhuma reivindicação em meu nome! - Cisco
interrompeu , horrorizado. - Se você está fazendo isso pela honra de Ridenow, tenho que
repudiar todo o interesse em sua briga!
Francisco ignorou a explosão. - Mikhail Lanart ilegalmente apreendeu uma herança
valiosa pertencente ao clã Ridenow, o anel de meu antepassado, Varzil o Bom. Exijo que ele
devolva o tesouro ou responda ao desafio!
O D o m d e A l t o n | 285

Dani virou-se para Mikhail. - Como vai responder?


Mikhail ficou em silêncio por um momento. Suas escolhas eram poucas, Lew pensou,
pois o cristal psicoativo do anel de Varzil havia se sintonizado com sua própria matriz e
separá-los, certamente, causaria grave lesão psíquica, se não a morte. Ele poderia aceitar o
desafio e lutar nos termos de Francisco ou ele poderia encontrar uma razão para recusar.
As bases legais para uma recusa eram deficiência grave ou diferença na classifcação, que
não eram claramente o caso, ou por causa de sua morte deixar seu Domínio sem um
herdeiro. Com dois filhos saudáveis e uma filha, Mikhail não podia afirmar que tinha
dificuldades.
Marguerida tinha agarrado o braço de Mikhail, pedindo silêncio para ele. O coração de
Lew doía por ela. Ele entendeu como ela se sentia. Uma vez, ele também teria feito
qualquer coisa para salvar a vida de quem ele amava.
Mikhail não era bobo, ele sabia o que Francisco tinha feito. Se ele cedesse aos apelos
de sua esposa ante todo o Conselho reunido, ele perderia toda a credibilidade, minando
sua capacidade de governar de forma eficaz. De qualquer maneira, Francisco teria vencido.
- Eu aceito.
A exultação na mente de Francisco era quase ofuscante.
NÃO! A negação telepática de Marguerida rugiu através dos pensamentos de Lew.
Mesmo não sendo dirigida a ele, sua explosão psíquica o deixou cambaleante. Ela ressoou
na mente de cada pessoa dotada com laran na sala.
Pai, por favor, me ajude! Pare-os!
Lentamente, com o esforço arranhando seu coração, Lew balançou a cabeça. Ele
amaldiçoou-se por não ter interrompido o processo quando Francisco trouxe Jeram para
dentro. Mas qualquer coisa que ele dissesse teria feito alguma diferença? Francisco queria
essa luta, desejou-a com toda a sua obsessão demente. Ele não iria parar até que um deles
estivesse morto.
Enquanto Istvana redefinia os amortecedores telepáticos para que não pudesse haver
a utilização abusiva de laran, Mikhail e Francisco se preparavam. Como a maioria dos
homens adultos na sala, ambos carregavam espadas. As lâminas, Lew havia notado, eram
armas bem equilibradas, não brinquedos ornamentais.
Marguerida estava certa. A situação toda era injusta. Os Terranans tinham um bom
motivo para chamar Darkover de mundo bárbaro. Dois Lordes do Comyn, homens cultos e
letrados que tiveram contato com mundos além do seu próprio, estavam destinados a
resolver suas diferenças se batendo num combate com espadas de aço afiadas.
E qual é a alternatva? Um sussurro percorreu a mente de Lew. A força desenfreada do
laran? O Dom de Alton?
O D o m d e A l t o n | 286

Talvez fosse melhor resolver as diferenças com espadas, ao invés de blasters ou


bombas, ou ainda, armas mentais capazes de nivelar uma cidade inteira, como quando Caer
Donn tinha queimado no fogo de Sharra.
Mikhail entrou na área central e parou, levantou a arma, de frente para seu
adversário. A luz do arco-íris brilhava em seu cabelo cor de linho. Ele moveu-se com a
segurança de um homem que tinha mantido sua prática de espada. No recinto Hastur,
Domenic e Rory sentaram-se para assistir.
Os dois giravam, um ao redor do outro, se estudando. Lew os observou com a
experiência de seus primeiros anos como ofcial da Guarda. Mikhail era melhor espadachim,
Lew pensou, mas ele não iria tentar matar Francisco, pelo menos não imediatamente. Essa
hesitação iria deixá-lo vulnerável.
Francisco entrou em cena, atacando duramente com a lâmina cortante. Mikhail se
defendeu, claramente surpreso com a ferocidade do ataque. Ele se recuperou, se
desvencilhou, circulou. Novamente veio aquele ataque rápido, quase felino. Mais uma vez,
a defesa foi habil.
Eles se afastaram. Francisco deu um passo para o lado, com os joelhos flexionados,
ombros soltos. Lew viu o movimento sutil quando um punhal escapou da luva em sua mão
esquerda.
O silêncio encheu a Câmara de Cristal, quebrado apenas pelo sussurro das botas de
couro nas pedras, a respiração áspera dos combatentes e Alanna silnciosamente soluçando.
Mikhail passou para a ofensiva, golpeando forte o seu oponente. O ar estremeceu com
o poder de seus golpes. Francisco parecia desabar sob o maior peso e poder de Mikhail,
agora com os golpes em espiral cada vez mais livres. Mikhail continuou, mais rápido e de
forma mais agressiva a cada golpe, pressionando sua vantagem. Ele empurrou Francisco até
que eles ficaram quase contra a grade da seção de Aldaran.
Katherine Aldaran soltou um gritinho, pois ela estava vivendo em Darkover a apenas
alguns anos e ainda considerava espadas como algo bárbaro e aterrorizante. Puxando-a
para trás, Hermes a segurou protetoramente em seus braços.
Com um estrondo e o estalar de madeira, Mikhail se encostou em Francisco,
prendendo a espada de seu oponente. Mikhail tinha a vantagem de peso e maior força
muscular.
De repente, Francisco cedeu, rolando por baixo de Mikhail. Do outro lado da sala,
Marguerida gritou. Ágil como um Homem-Gato, Lorde Ridenow rolou livre e ficou de pé.
Mikhail girou para enfrentá-lo.
Francisco se aproximou, movendo-se com a espada e o punhal em um padrão circular.
Os intestinos de Lew se apertaram quando ele reconheceu o estilo de luta característico das
O D o m d e A l t o n | 287

Cidades Secas. Os homens de lá tinham a reputação de usar veneno em suas lâminas. E o


Domínio Ridenow ficava em suas fronteiras.
Francisco se atreveria a usar veneno? Será que ele estava tão perdido na loucura, ou
muito consumido pela ambição e vingança, para se preocupar com honra?
Termine rapidamente. Lew pensou, embora Mikhail não pudesse ouvi-lo devido aos
amortecedores telepáticos.
A essa altura, Mikhail pingava sangue de meia dúzia de pequenos cortes. Francisco
também fora ferido. Ele não colocava quase nenhum peso sobre uma perna, o couro fexível
preto sobre sua coxa brilhava, liso e vermelho.
Os dois lutadores se enfrentaram novamente, lâminas em choque, uma sobre a outra,
os corpos colidindo. Eles cairam, rolando, um emaranhado de braços e pernas. Uma
espada, Lew pensou que era a de Francisco, caiu livre, deslizando pelo chão. De repente, os
dois homens pararam de lutar.
Com a adrenalina fluindo através de suas veias, Lew ficou de pé em um salto, abriu a
porta e correu pela sala.
Mikhail estava esparramado em cima, suas costelas arfando em grandes respirações
trêmulas. Lew agarrou o ombro de Mikhail com a mão e rolou-o livre.
Francisco estava deitado de costas, com os olhos abertos para o teto prismado. A luz
do arco-íris banhava seu rosto, aumentando sua expressão de surpresa. Lew o tocou e
sentiu um lampejo ofuscante, uma faísca desaparecendo...e depois... o silêncio.
O cabo da própria adaga de Francisco aparecia sob o arco de suas costelas. Pelo
ângulo, tinha ido direto através de seu diafragma até seu coração.
Marguerida correu através da sala e atirou-se ao lado do marido. - Mikhail! Fale
comigo, amor!
Mikhail permaneceu como Lew o tinha colocado, de costas, com um braço sobre o
peito. Sangue escorria do quadril numa diagonal para cima. A frente do vestido de
Marguerida foi se encharcando quando ela o pegou em seus braços. Domenic estava a um
passo atrás dela, com o rosto pálido, seguido por um Rory de aparência atordoada.
- Oh, não! - Marguerida soluçou. - Não!
- Desliguem os amortecedores! - Alguém gritou.
Um momento depois, a sala se encheu com emoções: dor, choque, terror.
Em um movimento único e decisivo, Marguerida tirou a luva da mão esquerda,
revelando a matriz de sombra em sua palma.
Pai... Ela estendeu a mão para Lew telepaticamente. Ele entrou em contato com ela,
como se as suas mentes apertassem as mãos. Seu momento de pânico recuou, pela
necessidade de uma ação rápida. Após a Batalha na Antiga Estrada do Norte, ela havia
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usado sua matriz de sombra para curar os ferimentos de Hermes Aldaran. Agora Mikhail
precisava dela...
Lew fechou os olhos e firmou a mente de sua filha, acrescentando sua força na dela. O
poder fluiu de seu laran. A matriz de sombra vibrou com a energia. Mentalmente, Lew
seguiu Marguerida quando ela mergulhou fundo na ferida de seu marido. Ela sentia cada
vaso sanguíneo rompido, cada camada de tecido rasgado, danificado. Sob essas imagens,
ela tocou os ritmos de batimento cardíaco e respiração, a textura das células e a
profundidade única de sua força de vida.
Caryo, eu estou aqui!
Durante a fração de um instante quando Marguerida fez uma pausa, na alegria que
sempre surgia nela quando em contato íntimo com o seu amado, Lew sentiu uma
incorreção sutil no sangue escorrendo das feridas de Mikhail. Acre, sutilmente maligno. Ele
nunca tinha experimentado nada como isso antes.
Lew sentiu o foco mental de sua filha vacilar. De alguma forma que ele não podia
entender, o erro físico estava afetando seu laran.
Marja!
Lew precisava dissolver o vínculo mental de alguma forma, libertá-la do miasma que
agora fazia seu caminho através de sua mente para o corpo dela.
PARE!
O comando mental, como o toque de um sino enorme, quebrou o contato. Os olhos de
Lew se abriram. Marguerida balançou em seus joelhos. Seus olhos perderam o brilho
dourado. Seu rosto tinha ficado tão pálido que seus lábios tinham se tornado brancos.
Coberta de sangue, a matriz de sombra brilhou vermelha, como se bebesse o sangue.
Istvana Ridenow correu. Sua matriz queimando em azul-claro brilhante. Laurinda, o
rosto enrugado de preocupação, seguiu um passo atrás.
- A ferida está envenenada. - Istvana disse em uma voz que soou com autoridade de
uma Guardiã. - Se você fechar a ferida, irá selar o veneno dentro do corpo de Mikhail e
piorar as coisas.
- Não... - Tremendo, Marguerida abriu os olhos.
Um olhar passou entre Istvana e Laurinda. Laurinda assentiu, uma inclinação breve da
cabeça. - Não sou curandeira. - Laurinda disse, com modéstia tranquila. - Deixo o assunto
em suas mãos, Istvana, e pode me pedir o que quiser para ajuda-la.
- Obrigada, vai leronis. Lew, você deve manter Marja longe. – Istvana disse. -
Marguerida, chiya preciosa, não há tempo a perder. Vamos ter que cuidar dele. Vamos
salvá-lo para você, se pudermos.
O D o m d e A l t o n | 289

Era o que tinha dito Callina, a Guardiã de Arillin para Lew enquanto ela segurava a
forma alquebrada de sua esposa em seus braços após o desastre Sharra. E Marjorie tinha
morrido...
Entorpecido, Lew fez Marguerida ficar em pé. Ela resistiu apenas um pouco. Tremores
sacudiam seu corpo. A qualquer momento, ela iria desmaiar e ele não poderia aguentar o
seu peso com apenas um braço.
Marja querida, venha comigo. Você não pode fazer nada aqui.
Eu deveria ter parado! Eu mesma deveria ter matado Francisco.
Ela não sabia o que estava dizendo, mas ele não estava em seu coração para dizer isso.
Vamos embora, ele repetiu silenciosamente. Istvana o atenderá e vai nos
chamar...quando for hora de ajudar. Você precisa descansar e ser forte.
Por um longo momento ela procurou seus olhos, como se ele fosse um estranho, e não
seu pai. Ele podia segurá-la e tocá-la mentalmente com seu laran, e ainda assim, uma parte
dela, talvez a essência de quem Marguerida Alton-Hastur era, tinha ido onde ele não podia
seguir, tamanho era o abismo intransponível entre pai e a filha adulta.
O momento passou. Atrás deles, as pessoas circulavam na Câmara. Cisco gritou ordens
para a disposição do corpo de seu pai. Domenic tinha se recuperado o suficiente para ir
cuidar de Alanna.
Marguerida permitiu que Lew a levasse pelo corredor e subiu as escadas para os
quartos dos Altons. Todo o tempo, Lew pensara que ninguém poderia sobreviver a um
ferimento envenenado assim, não sem a medicina Terran. Mas os terráqueos, para o bem
ou para o mal, haviam deixado Darkover e levado o sonho de uma união dos dois mundos
com eles.
O D o m d e A l t o n | 290

Capítulo 30

Marguerida parou no limiar de uma antiga câmara no alto da Torre Comyn. Em todos
os anos que viveu em Thendara, ela nunca tinha explorado mais do que alguns quartos
empoeirados nos pisos inferiores, pois a Torre tinha sido abandonada por falta de um
círculo de trabalhadores há décadas. Quando se tornou evidente que o recém-formado
Conselho de Guardiãs precisaria de um local isolado psiquicamente, ela supervisionou a
limpeza e reforma da cozinha, salas, quartos e um laboratório matriz ou dois. Ela nunca
teve a intenção de criar um hospital.
Istvana tinha insistido em trazer Mikhail e Marilla para a Torre para cura pelo laran, de
longe o tratamento mais eficaz disponível para qualquer um deles. Foi apenas por uma
sorte mais extraordinária que estavam presentes tantas leroni qualificadas.
O quarto onde Mikhail estava era claro e arejado nesta época do ano, embora no
inverno, provavelmente, fosse miseravelmente úmido e frio. Pressionando os lábios, disse a
si mesma que Mikhail não ficaria ali por muito tempo.
Ele vai se recuperar, ele tem que se recuperar... Ela engoliu e seus joelhos ameaçaram
a vergar sob ela, mas ela se firmou. Ela não podia mostrar fraqueza, não agora.
A irmã mais nova de Mikhail, Liriel da Torre Arilinn, olhou para cima de onde estava
sentada a seu lado. Marguerida sentiu o pulso de cura de laran e pegou um flash de luz azul
da pedra da estrela da outra mulher.
Liriel ficou de pé, movendo-se com graça surpreendente para uma mulher tão grande,
e tomou Marguerida em seus braços. Era um contato invulgar para uma telepata, mas Liriel
sempre foi diferentre, muito carinhosa, e as duas mulheres se amavam desde seu primeiro
encontro. Por um instante, Marguerida inclinou-se para a força quente e suave de sua
cunhada.
- Como ele está? - Marguerida perguntou, afastando-se. Ela não se atreveu a dizer
mais ou seu frágil controle quebraria. Mikhail precisava dela forte, agora mais do que
nunca, assim como seus filhos. Ela não daria lugar a lágrimas ou histeria.
- É como se temia. - Liriel chamou Marguerida de lado. - As feridas do meu irmão
definitivamente estão envenenadas. Ainda não identificamos o agente preciso, pois os
homens das Cidades Secas utlizam derivados de muitas plantas. E foi, sem dúvida, onde
Francisco obteve o veneno.
- O que sabe sobre o equipamento dos laboratórios na sede dos Terran? - Marguerida
perguntou. - Podemos usá-los para analisar o veneno e encontrar um antdoto?
- Nós não temos o conhecimento para operar esses equipamentos, assumindo que
ainda estão operacionais. - Liriel disse, colocando uma mecha de seu cabelo grosso e
vermelho no lugar. Tênues linhas de fadiga marcavam seu rosto redondo e seus olhos
O D o m d e A l t o n | 291

estavam sombreados com ansiedade. Com uma voz afiada de frustração, acrescentou: -
Você não saberia usar o equipamento?
Marguerida hesitou. Sua formação como bolsista da Universidade tinha sido em
Musicologia, não em química ou medicina. Ela nunca tinha entrado nessa parte da base
Terran, exceto como paciente. No entanto, ela não era ignorante em procedimentos de
pesquisa e podia usar um computador, assim como qualquer cidadão do Império.
Certamente, manuais e instruções escritas deviam estar armazenados nos registros.
- Dê-me uma amostra do veneno - disse ela, levantando o queixo - e eu vou descobrir.
Liriel balançou a cabeça. - Me desculpe se enganei você. Ele não é um simples veneno,
nem será simples a identificação do agente para criar um antídoto. O veneno está migrando
para a medula de seus ossos.
O coração de Marguerida quase parou.
- Ironicamente, a profundidade das feridas de Mikhail trabalhou em seu favor. - Liriel
continuou. - Ele sangrou muito, como você sabe, e isso lavou a maior parte do veneno de
seu corpo antes que ele pudesse agir. Ao mesmo tempo, ele ainda perdeu muito sangue.
- Nada pode ser feito?
Liriel olhou-a com compaixão. - A condição de Mikhail é grave, não podemos negar,
mas ainda há esperança. Istvana fez bons progressos traçando o curso do veneno e
estimulando o seu corpo a produzir sangue novo. Isso vai levar tempo e, enquanto isso,
reduzimos suas funções corporais, da mesma forma como os monges de São Valentim
fazem quando em meditação profunda. Não se desespere, breda. Meu irmão é um homem
forte e saudável, com uma grande vontade de viver, o que deve trabalhar em seu favorecer.
- Eu...eu gostaria de sentar com ele.
Liriel deu um aperto no braço de Marguerida. Sua expressão preocupada iluminou-se
num sorriso caloroso. - Acho que seria uma excelente ideia. Mesmo se ele não responder
abertamente, tenho certeza que ele vai sentir a sua presença. A ligação entre vocês é muito
forte.
Com seus olhos ardendo, Marguerida assentiu. Ela ouviu o clique do trinco da porta
quando Liriel saiu e então sentou no banco vazio ao lado da cama de Mikhail.
Suas feridas haviam sido limpas e cobertas, seu cabelo penteado. Ela tocou a barba ao
longo de sua mandíbula, alisou os fios de ouro fosco. Descansou a mão em cima da dele,
onde o anel de Varzil Ridenow brilhava. Mikhail normalmente usava uma luva na mão com
o anel, o mesmo que Marguerida fazia para cobrir a matriz impressa. Lembrou-se de como
ele certa vez usou o anel para a cura.
Só que ele não poderia usá-lo para curar a si mesmo... Seu coração doía como se ela
também tivesse sido rasgada. Um pulso latejava em suas têmporas. Ela tirou a luva e tomou
a mão de seu marido entre as dela.
O D o m d e A l t o n | 292

- Mikhail, precioso...
Fechando os olhos, ela estendeu a mão para a ligação especial que tinham
compartlhado desde o primeiro despertar de seu amor.
Querido, coração, eu estou aqui...
Vagamente, ela sentiu um lampejo de resposta, o distinto toque mental de Mikhail. No
instante seguinte, desapareceu. Novamente ela estendeu a mão, mas desta vez não sentiu
nada. Sua força de vida estava perigosamente baixa. Seus nós de laran brilhavam
devidamente, mas como brasas.
Onde você está, amado? Eu sei que você pode me ouvir. Eu sei que em algum lugar,
você está tentando voltar para mim. Você não deve desistir, não depois de tudo que
passamos juntos!
Seus pensamentos voaram para sua viagem de volta através do tempo para o passado
de Darkover, para o estranho encontro com o lendário Varzil o Bom que tinha dado para
Mikhail seu anel, a sua batalha no Mundo Superior contra o espírito malévolo de Ashara
que tinha ofuscado Marguerida quando ela era criança. Marguerida lembrou que, enquanto
eles estivessem juntos, poderiam resistir a qualquer crise.
Por mais que tentasse, não conseguia alcançar sua mente, como ela tinha feito tantas
vezes antes. Ele vivia, seu peito subia e descia, e a centelha essencial ainda ardia dentro
dele, mas o homem que ela amava, o coração, a alma e a mente, estavam se esvaindo.
Sombras se levantavam para engoli-lo, escurecendo sua alma a cada momento que
passava.
Marja? A voz era familiar, conhecida. Ela a chamava de volta para a luz. Ela não queria
responder. Em vez disso, ela queria afundar na escuridão, onde Mikhail esperava por ela.
- Marguerida, acorde. Está na hora de voltar.
Ela levantou a cabeça e piscou os olhos no brilho da tarde. Seu pai estava ao lado dela,
sua única mão em seu ombro. Atrás dele, Liriel e Istvana esperavam com os rostos
expectantes.
- Temos de deixar as curandeiras continuar o tratamento. – Lew disse, suavemente
levantando-a. - Deixe-me levá-la de volta aos seus aposentos onde pode descansar.
Não! Ela pensou descontroladamente. Não posso deixá-lo! E se ele estiver para
acordar e eu não estiver aqui?
- Minha querida, nesse caso vamos chama-la imediatamente. – Istvana disse. - Ouça a
sabedoria de seu pai. Deixe sua família consolá-la.
E deixe-nos fazer o nosso trabalho. Acrescentou mentalmente.
Com um esforço, Marguerida admitiu que a outra mulher estava certa. Não havia mais
nada que pudesse fazer. Ela devia deixar Mikhail nas mãos de quem poderia ajudá-lo.
O D o m d e A l t o n | 293

- Há notícias de Domna Marilla? - Ela perguntou sem pensar, não porque realmente
quisesse saber, mas porque, como castelã do Castelo Comyn, ela era responsável por todos
nele.
- Illona está cuidando dela, - disse Istvana - juntamente com Lady Linnea e Dario-
Mikhail Zabal. Como vê, há número suficiente de nós para fazer tudo o que é necessário.
Entorpecida, Marguerida permitiu ser levada embora. Ela não viu os corredores e
escadas até chegarem a seus aposentos familiares. Domenic estava em profunda conversa
com Rory e Yllana na sala da família. A sala, geralmente brilhante e alegre, parecia
congelada, a melancolia pairava nos cantos. As flores no centro da mesa haviam murchado,
suas pétalas caídas.
Todos os três olharam para cima, ansiosos por notícias sobre o pai. Reunindo-se com
Marguerida, ela deu-lhes uma breve versão de sua conversa com Liriel. Ela tentou soar
otmista: Mikhail estava recebendo o melhor cuidado que a tecnologia de matriz podia
fornecer. Istvana e os outros continuavam pesquisando uma cura e eles todos tinham
motivos para ter esperança.
Rory e Yllana aceitaram suas garantias, mas não Domenic. Ela não podia ler sua
reação, ele tinha bloqueado seus pensamentos. Ele sempre foi uma criança estranha, com
uma maturidade além de seus anos.
- Vou levar essa notícia para Alanna. – Domenic disse.
- Sim, isso seria uma gentileza. - Marguerida respondeu, distraída. - E acho que
devemos enviar notícias também para Rafael e Gabriel.
É bom Alanna estar se mantendo serena e controlada no dia de hoje. Marguerida
pensou. Pelo menos ela não teria que lidar com as birras da menina junto com todo o resto.
Com um aceno rápido, Domenic se despediu de seus irmãos, deixando Marguerida e
Lew com sua privacidade. Aturdida, Marguerida procurou algo para fazer, alguma tarefa
para deixar sua mente fora do medo e da dor. Ela pegou uma flor do vaso e começou a
retirar as pétalas mortas.
- Venha até aqui, minha Marja. - Quando Lew colocou seu braço ao redor dela, algo
dentro de Marguerida cedeu. Ela estava se segurando por muito tempo, lutando contra
seus medos. Soluços sacudiram seu corpo e ela enterrou o rosto em seu ombro.
O que vou fazer sem ele? Ela gritou em mentalmente. Eu o amo tanto! Ele é o meu
coração, minha vida!
Tenha coragem, Lew disse gentilmente, falando com a mente com a dela. Liriel disse
que há esperança. Ela é uma leronis, aprendeu sobre esses assuntos. E ela também ama
Mikhail.
Se eu os tivesse impedido de lutar! O humor Marguerida mudou como mercúrio em
fúria. Os olhos dela brilharam, como se incendiados por fogos de ouro.
O D o m d e A l t o n | 294

Eu deveria ter matado Francisco!


Ela poderia ter feito isso mesmo. Sob as condições corretas, alimentado pela raiva
desenfreada, o Dom de Alton poderia ser letal. E ela possuía o dom na totalidade. Ela o
tinha usado como auto-defesa antes, contra bandidos e contra os Terrans. Se ela tivesse
intervido, enquanto ainda tinha uma chance, Mikhail não estaria deitado, ferido,
envenenado e morrendo.
A voz de Lew, agora severamente grave, trouxe os pensamentos de Marguerida de
volta para o presente. - Chiya, você está delirando, ou não diria uma coisa dessas.
- Não me trate como criança! - Marguerida ficou subitamente em pé. - Nem fale
comigo sobre escrúpulos! Se tivesse sido Dio, e você pudesse tê-la salvo, você hesitaria,
mesmo que por um instante?
- Não é tão simples assim. – Ele disse. - Usar laran contra o câncer de Dio não é o
mesmo que usá-lo para derrubar um homem Comyn. O primeiro juramento nas Torres é
nunca entrar em outra mente exceto para curar ou ajudar.
- Isso é um absurdo e você sabe disso, pai! - Ela não deveria causar uma briga, não com
ele dentre todas as pessoas, não tão cedo após o ataque cardíaco, mas ela não se conteve.
O que dera nele? As palavras derramaram de sua boca. - Nós temos uma responsabilidade,
sim, a obrigação de usar nossos talentos para o bem maior! Você acha que homens como
Francisco iriam obedecer essas regras?
- Não é uma questão de estar certo ou errado enquanto tiranos e assassinos cometem
crimes indizíveis, sem oposição. - Lew balançou a cabeça. - Essas mesmas armas que você
usaria para fazer o bem, para eles teriam um potencial ainda maior para o mal. O
fundamento de nossa sociedade, o Pacto, foi concebido para evitar esses abusos.
- Ah, me poupe do sermão! - Marguerida caminhou até o armário no lado mais
distante da sala, serviu-se de uma taça de vinho e esvaziou-a. - Por que isso é um
problema? Você mesmo usou o Dom de Alton para o bem maior. Nós dois fizemos depois
da Batalha na Antiga Estrada do Norte. Como poderíamos ter feito mais?
- Deuses, filha! - Ele gritou, como se ela o tivesse golpeado. - Você acha que estou
orgulhoso do que eu fiz por Darkover?
Percebendo que estava à beira de perder a paciência por completo, Marguerida virou-
se e respirou fundo. Os músculos do pescoço e ombros doíam. Mikhail os teria esfregado
em um relaxamento delicioso.
- De qualquer forma, - ela disse firmemente - essa é uma história passada agora. Nós
não podemos mudar o que aconteceu. O melhor que podemos fazer é esquecer todo o
assunto.
O D o m d e A l t o n | 295

- Não podemos simplesmente continuar como se o problema de abuso de laran nunca


tivesse sido levantado. – Ele disse, num tom persistente de fúria. - Mais cedo ou mais tarde,
quer gostemos ou não, as acusações deverão ser respondidas.
- Abuso? Você chama salvar Darkover de abuso. - Marguerida caminhou até a janela,
com os braços cruzados sobre o peito protetoramente. - Eu esperava ouvir uma linguagem
como essa de Francisco. Ele estava apenas procurando algo para usar contra mim. Mas
sempre achei que você estava do meu lado.
- Venha aqui, criança. - Lew estendeu a mão. - Eu estou do seu lado, como você diz. O
que quero que você entenda, mais do que qualquer outra coisa, é que eu sempre vou te
amar. Isso não signifca que aprovo tudo que você faz porque a minha devoção a você não
depende de suas ações.
Lágrimas brotaram dos olhos Marguerida quando Lew falou. - Nós trabalhamos juntos
após a Batalha na Antiga Estrada do Norte para apagar a memória dos soldados Terran. –
Ela disse, tentando dar vazão à frustração. - Nós concordamos que era muito perigoso o
Império saber como é poderoso o nosso laran. Será que você não fez a mesma coisa, há
anos, para fazer alguns senadores ‘esquecerem’ sobre o Projeto Telepático? Se sou culpada
de ‘uso impróprio’ do Dom de Alton, tentando proteger Darkover, então você também é!
- Sim, eu sou. - Lew disse calmamente. – E, de todas as pessoas, sou um dos que mais
sabem o que é ter a mente manipulada por outra pessoa... Assim como você.
A raiva se derreteu em Marguerida. De um instante para o outro, com o coração cheio
de pena do velho homem diante dela por toda a dor e culpa que ele havia sofrido e, por
tudo o que ela sabia, ele iria levar para o túmulo.
Ela estendeu a mão direita sem luva. Seus dedos fortes se fecharam em torno dela. Ela
se lembrou de como ele tinha generosamente ligado seu laran ao dela quando ela tentou
parar o sangramento de Mikhail. O amor brotou nela, varrendo os últimos resquícios da
discussão.
- Não vamos brigar. – Ela disse. - Certamente há batalhas o suficiente para nós
lutarmos sem criar uma entre nós. Nesta, vamos concordar em discordar. Vou precisar de
todo o seu apoio, enquanto Mikhail passa por essa crise.
- Você sempre o tem.
O D o m d e A l t o n | 296

Capítulo 31

Sem um pequeno sentimento de arrependimento, Domenic acompanhou seu irmão e


irmã até a entrada da suíte de Alton e fechou a porta. Rory retornou aos Guardas e ao
consolo de Niall e trabalho útil, e Donal escoltou Yllana de volta para os aposentos de
Aldaran. Marguerida e o avô Lew ainda estavam conversando na sala de estar da família.
Alanna tinha flutuado, procurando por Lew. Ela tinha recebido a notícia da condição de
Mikhail com uma calma surpreendente e depois partira novamente.
Após o conforto brilhante e familiar da sala de estar, o antigo salão principal dos
aposentos de Alton parecia envolto em tristeza. Nenhum fogo iluminava a antiga lareira,
mas um brilho fraco veio dos paineis emissores de luz espalhados nas paredes. As próprias
pedras foram moldadas por laran há muito tempo que ficaram em silêncio, como se
sonhassem.
No momento, pensou Domenic, ninguém viria procurar por ele. Ele tinha alguns
momentos preciosos, cercados por essas pedras silenciosas, para reunir seus pensamentos.
O sofrimento de Marguerida o afetou mais do que ele poderia colocar em palavras. Desde
que conseguia se lembrar, ela tinha sido a âncora de seu mundo, engenhosa e estável.
Domenic forçou-se a considerar o que aconteceria se seu pai morresse.
Racionalmente, ele sabia que era uma possibilidade, embora sob o cuidado do círculo de
cura de Istvana, a condição de Mikhail estivesse estável. Não havia nada que ele pudesse
fazer para ajudar.
O Conselho era outro assunto. Eles não se encontrariam novamente hoje, mas o
recesso devia ser breve. Muitos assuntos precisavam de ação, e o antigo equilíbrio de poder
estava se desintegrando. Com Marilla doente e Darius-Mikhail, um substituto inexperiente
para os Aillard, com a adição do Conselho de Guardiões e a indomitável Laurinda
MacBard... As mudanças fizeram a cabeça de Domenic doer. Nesse momento crítico, o
Conselho precisava de um líder para mantê-los todos juntos. E agora eles perderam
Mikhail.
Dani Hastur pode oficiar por um tempo, mas ele mantinha uma recusa constante ao
poder ao longo dos anos. Ele nunca poderia ser mais do que um guardião, segurando as
coisas firmes e fazendo poucos em alguma mudança. O Conselho precisava de alguém que
pudesse inspirar e guiar, não apenas continuar as coisas como antes.
Não tenho escolha... Domenic pensou, e percebeu que ele estivera treinando para esse
momento, de uma forma ou de outra, desde que nasceu.
A porta se abriu e Donal Alar entrou. Ele havia mudado do traje da Corte para suas
roupas comuns, cortadas por fácil movimento ao longo das linhas de um uniforme de
O D o m d e A l t o n | 297

Guarda, mas com o distintivo do abeto azul e prateado dos Hasturs em um ombro. Sombras
escureceram a pele ao redor dos olhos. Ele inclinou a cabeça em saudação.
- Sua irmã está segura na casa da Hermes Aldaran. – Donal hesitou, suas mãos
competentes e quadradas soltas ao seu lado. – Bem...posso lhe ser útil de qualquer outra
maneira?
- Por favor, sente-se. - Domenic gesticulou para a cadeira mais próxima.
Donal se sentou.
- Este é um assunto difícil, então, por favor, fique comigo. – Domenic disse. - Não sei
quanto tempo irá se passar até meu pai poder retomar seus deveres no Conselho... Ele vai
se recuperar, ele precisa... Mas os eventos não podem esperar por ele. Eu gostaria que você
atuasse como meu paxman durante esse período. Temporariamente, é claro, sem
compromisso permanente. Eu não esperaria que você...você...
- Sim, é claro. Sempre servi a família do meu Lorde. - No brilho das pedras
luminescentes, Donal parecia intrigado. - O que você deseja que eu faça?
- Para começar, aconselhar-me. Sei o que quero fazer, mas não sei muito sobre isso.
Devo chamar o conselho em sessão. Não hoje, é claro, mas em breve. Amanhã, se possível.
Donal encolheu os ombros. - Isso é bastante fácil. Eu organizei essas reuniões para
Dom Mikhail muitas vezes. Mas você não está pensando em tomar o lugar de seu pai como
Regente?
- Este é um começo ruim se você tem tão pouca fé em mim. – Domenic disse.
- Não! Eu não quis dizer... - Donal gaguejou, cobrindo seu lapso. - Todo mundo sabe
que você vai segui-lo algum dia. Você é seu herdeiro, afinal. Simplesmente não pensei que
seria tão cedo.
Nem no meio de uma crise.
- Nem eu. - Domenic assentiu severamente. - Eu irei, como minha mãe diz, ter meu
trabalho jogado para mim. Devo aproveitar a iniciativa. Para isso, preciso da sua ajuda.
O brilho maçante sumiu dos olhos de Donal. Ele sugeriu que Domenic falasse em
particular com tantos membros influentes quanto possível antes que o Conselho se
reunisse.
- Obrigado, - disse Domenic - isso é excelente. Veja quantas dessas reuniões privadas
você pode organizar. Devo falar com Dani Hastur, meus tios Gabriel e Rafael, Hermes ou
Robert Aldaran... - Domenic assinalou os nomes em seus dedos conforme Donal assentia de
acordo com cada um - ...o novo Regente de Aillard, e Kennard-Dyan Ardais, se ele estiver
disposto. Cisco Ridenow, também, suponho. Minha mãe, meu avô e Danilo Syrtis, posso
encontrar sozinho.
- Muito bom, vai dom. - Donal se levantou e se curvou antes de pedir licença. Eles não
tinham tempo a perder.
O D o m d e A l t o n | 298

Oh deuses! De pé do lado de fora da porta da sala de sua família, Domenic foi tomado
por um momento de pânico. Como vou dizer isso a minha mãe?
Ele havia atrasado o momento de contar a ela sobre sua promessa a Alanna e isso só
piorara a situação. Ele poderia ter consultado ela antes de tomar essa decisão...mas não o
fizera e, quanto mais cedo ele contasse, melhor. Preparando seus ombros, ele bateu na
porta e, a seu convite, entrou.
Marguerida estava sentada ao lado do avô Lew no divã, seu braço em volta dos
ombros dela, o rosto corado. Claramente, ela estivera chorando.
- Nico. - Ela se levantou e o envolveu em um abraço. Sua bochecha parecia quente e
úmida contra a dele. - Sinto muito. Não pensei muito em seus sentimentos, tão preocupada
estive com os meus. Como posso ajudá-lo?
- Preciso falar uma coisa e é bom que você esteja aqui também, avô. É sobre negócios,
não assuntos pessoais. - Domenic puxou uma das cadeiras e respirou fundo. - Com o pai
doente, alguém deve tomar o seu lugar no Conselho.
- Sim, suponho que você está certo. – Marguerida disse, seu rosto apertando. - Pensei
em permanecer no lado de Mikhail, mas não devo permitir que sentimentos pessoais
interfiram com minhas responsabilidades.
- Marja, você não pode assumir o posto de Regente. – Lew protestou. - É politicamente
impossível.
- O que você quer que eu faça? Me sente enquanto tudo pelo que Mikhail e eu
trabalhamos tão duro desmorone? - Marguerida lamentou. Atrás de suas palavras,
Domenic ouviu a necessidade desesperada de fazer algo ativo para ter alguma medida de
controle no redemoinho de mudanças ao seu redor.
- Alguém deve ocupar as rédeas do poder, - repetiu Domenic - mas deve ser eu. Não
Rory, não o avô. Não Dani Hastur. Nem você, mãe. - Ele parou com ênfase, seu coração
batendo uma música selvagem em sua mente. - Sou o único que o pai treinou para este
trabalho, assim como o tio Regis o treinou.
- Nico, tem certeza de que pode fazer isso? Esperávamos que algum dia você tomasse
o lugar de Mikhail, mas não em muito tempo ainda. - Marguerida olhou para Lew,
procurando apoio.
- A história fala dos momentos em que os grandes líderes surgiram, - disse Lew -
muitas vezes antes que alguém pensasse que estavam prontos... Às vezes antes que eles
mesmos se sentissem prontos. Domenic não é arrogante e nem orgulhoso. Se ele for
movido para avançar, não poderia ser porque ele, como outros antes dele, se sente...
convocado?
O D o m d e A l t o n | 299

- Por favor, não me faça parecer algum tipo de heroi escolhido pelos deuses. –
Domenic disse, tirando o cabelo da testa. - Estou aterrorizado o suficiente do jeito como as
coisas estão. Só sei que isso é algo que devo fazer.
Lew olhou fixamente, com uma sensação de aceitação desnecessária, falhas, bem
como forças. - Isso é exatamente o que eu quis dizer.
- O Conselho pode não ver dessa maneira. – Marguerida disse. - Temos amigos, mas
também inimigos que o verão como um menino inexperiente, de ombros inadequados para
tanta responsabilidade durante uma crise.
- Se eles não me aceitarem, diga-os que escolham alguém então! - Domenic disse. –
Mas, depois do que acabou de acontecer, não podemos ficar nem mesmo um único dia sem
uma liderança firme.
- Claro. Eu vou apoiá-lo de qualquer maneira que puder. - Marguerida deu uma breve
tentativa corajosa de um sorriso. - Perdoe-me, Nico, mas é sempre um choque para uma
mãe descobrir que seu filho está criado e não precisa mais dela.
O coração de Domenic doía por ela. Ela precisava de um desafio para absorver sua
energia inquieta e mente afiada. Ficar sentada na cabeceira de Mikhail ou compondo
música de câmara nunca seria suficiente.
- Mãe, eu ainda preciso de você. Eu confio em seu bom conselho e no seu, também,
avô. Não posso fazer isso sozinho. Não me abandone agora!
- Jamais. – Ela respondeu.
Lew acrescentou: - E nem eu.

~o ⭐ o~
Em todas as sessões do Conselho Comyn que Domenic havia frequentado antes, ele
nunca havia tomado o assento do pai no recinto de Hastur, nem mesmo agora. A enorme
cadeira esculpida devia permanecer vazia até que a situação dele fosse confirmada. Até
então, ele se sentaria em um banco próximo, enquanto Marguerida ocuparia seu lugar
habitual. Seu avô Lew sentou-se sob a bandeira dos Alton, com Alanna ao seu lado.
Hoje, a luz multicolorida na Câmara de Cristal parecia silenciada, como se os prismas
fixados no teto e as paredes estivessem entorpecidas de choque após a recente tragédia.
Istvana e Casilde Aldaran-Lanart, Guardião de Tramontana, moveu-se na câmara, ativando
os amortecedores telepáticos. O sussurro de laran deu lugar à dormência ainda menos
confortável dos campos de interferência. As têmporas de Domenic pulsavam. Pela
centésima vez, ele se perguntou se poderia seguir seu plano.
O murmúrio da conversa morreu quando o Guarda na porta anunciou: - Danilo Felix-
Rafael Hastur, Guardião de Elhalyn!
O D o m d e A l t o n | 300

Domenic levantou-se com os outros quando Dani passou pelas portas maciças e
caminhou em um ritmo imponente para seu lugar sob a bandeira de Elhalyn.
Miralys já estava sentada lá, junto com Gareth e sua irmã, a leronis Valenta Elhalyn.
Gareth parecia sombrio e composto. Observando-o, Domenic refletiu que, mais cedo ou
mais tarde, a questão de um Elhalyn que era competente para ocupar o trono e, portanto,
poderia findar a Regência, surgiria. Gareth não mostrou nenhum sinal de tal ambição, não
desde aquele incidente vergonhoso há quatro anos. Domenic esperava que Gareth, sob a
orientação estável de seu pai, não usasse a ausência de Mikhail para tentar novamente.
- Parentes, comynari. – Dani disse, sua voz ecoando pelo silêncio. - Eu lhes ofereço
boas-vindas ao Conselho. Como vocês sabem, esta sessão foi convocada a pedido de
Domenic Alton-Hastur, filho e herdeiro do Regente.
Cabeças viraram-se na direção de Domenic, algumas esperançosas para boas notícias
sobre Mikhail, outras apreensivas, mas todas expectantes.
Tomando uma respiração, Domenic se adiantou. - Eu sou Domenic Gabriel-Lewis Alton
Hastur, filho legítimo de Mikhail Lanart-Hastur, Guardião de Hastur e Regente do Comyn.
Como meu pai está temporariamente incapaz de realizar seus deveres habituais, reivindico
o direito e a responsabilidade de servir em seu lugar até que ele tenha se recuperado.
A assembleia murmurou em surpresa, pontuada aqui e ali por expressões de
aprovação, desânimo ou pouca surpresa. Dani deu a Domenic um aceno encorajador e
perguntou: - Alguém desafia a legítima Direção de Domenic Alton-Hastur?
Em um momento de dúvida, Domenic quase desejou que alguém se levantasse e
insistisse que ele não tinha idade suficiente, não era experiente o suficiente, não esatava
pronto para tal posição.
Ele colocou o pensamento de lado. Ele estava pronto. Durante o ano passado, alguma
parte dele, algum germe de força, havia despertado e se estendia. Se foi um amor pelo
poder ou a justiça, ou o simples exercício de sua herança, ele não podia mais negar que
existia. Ele imaginou a avó Javanne, o tio Regis, e muitos outros que vieram antes, olhando
para ele, esperando para ver o que ele faria.
Ele pensou que seu laran único dera-lhe uma visão não apenas dos Domínios, as
cidades, castelos e torres, mas de Darkover em si. A roupa de cama das montanhas cantou
para ele, a melodia dos rios dançou através dos seus sonhos, e os lentos ritmos planetários
cantaram abaixo de sua respiração. Se houvesse uma maneira de reunir os elementos
díspares de Comyn, plebeus, senhores das Cidades Secas, pessoas das montanhas nas
Hellers, até mesmo os não-humanos Arbóreos e os chieri, seria uma visão tão grande e
profunda quanto o próprio escuro. Onde encontraria as palavras para transformar essa
visão em realidade, ele não sabia. Ele só podia orar a qualquer que divindade para que as
palavras surgissem.
O D o m d e A l t o n | 301

A audiência mudou, o farfalhar de tecidos ricos misturados com comentários


sussurrados. Rufus DiAsturien ficou de pé e o murmúrio caiu em um silêncio respeitoso,
pois sua família traçava sua nobreza de volta aos alcances mais distantes da história dos
darkovanos.
- Com toda a devida deferência ao caráter e personagem do jovem Lorde Domenic, eu
tenho uma objeção. Eu não digo apenas por questão da idade dele. Houve um tempo,
quando o mundo era mais simples, em que um menino de sua idade poderia assumir essa
responsabilidade. Mas estes são tempos difíceis e complexos. Qualquer homem que detém
um Domínio, mais ainda a Regência de todo Comyn, deve ter uma compreensão sólida e
firme julgamento. Com o tempo, espero que Domenic adquira a experiência necessária,
mas creio que ele ainda não tem isso. Ele é muito jovem e inexperiente em segurar tal
posição.
- Regis Hastur não era muito mais velho quando o velho Danvan morreu. – Lew
respondeu em sua voz rouca. - Você teria o acusado de não estar pronto também?
- Todos sabemos que Domenic é seu neto, Dom Lewis. – Rufus protestou. - Seu
julgamento é tendencioso.
- Eu conhecia Regis. - Lew o cortou. Como você não conhecia. - E conheço Domenic.
Depois de uma pausa desajeitada, Dani perguntou quem mais entre eles apoiava a
objeção.
Kennard-Dyan ficou de pé, parecendo infeliz, mas decidido. - Ardais também apoia a
objeção. Domenic, de fato, é o legítimo herdeiro de Hastur, mas ele é jovem demais para
servir como Regente.
- No entanto, o Comyn não pode continuar sem o Rei ou Regente. - Gabriel falou. -
Não estamos no ponto de adotar alguma democracia Terranan degenerada.
- Algum dia um Elhalyn poderá mais uma vez sentar-se no trono, - disse Dani em uma
voz afiada - mas este não é o tempo. Com ambos Dom Mikhail e Domna Marilla incapaz de
falar por seus Domínios, este Conselho seria melhor servido pela continuação da Regência.
Devemos fazer uma consideração séria ao herdeiro de Mikhail.
Marguerida estava sentada tão imóvel que Domenic nem sequer ouviu sua respiração.
Agora ela se levantou. - Eu sou Marguerida Alton-Hastur. Vocês todos me conhecem. Eu
aconselhei meu marido por muitos anos. Agora me ofereço para a mesma capacidade por
meu filho, como guia e conselheira. Isso satisfazerá suas objeções?
Um Lorde mais velho, um dos MacArans tradicionalmente conservadores, respondeu,
sua voz retumbando como a de uma besta enorme e desperta. – Conceder a uma mulher
tal poder seria igualmente inaceitável. Domna Marguerida é claramente ainda uma
estranha entre nós ou saberia disso.
O D o m d e A l t o n | 302

Espalhados pela câmara, cabeças tremeram e vozes murmuraram de acordo.


Marguerida não mostrou reação externa, mas Domenic sentiu seu tremor de indignação.
Em todos os anos em Darkover, ela se recusou firmemente a aceitar um papel menor por
causa de seu sexo.
- Nós do Comyn nunca nos submetemos às regras de uma mulher, - insistiu Rufus -
fracas de vontade e não confiáveis como são. E nunca iremos!
- Fraca de vontade? Não confiável? - Na área das líderes de Aillard, as cortinas
carmesins balançaram quando Laurinda se aproximou do corrimão. - Como ousa dizer tal
coisa!
Rufus empalideceu, mas Robert Aldaran interrompeu: - O Conselho, não as Torres,
rege os Domínios!
- Quietos! Todos vocês! - A voz de Dani se elevou sobre o alvoroço. - Domna
Marguerida não está propondo atuar como Regente, mas apenas oferecer a seu filho o
benefício de sua experiência.
Com cada diálogo que passava Domenic se sentia cada vez mais desconfortável. A
última coisa que Darkover precisava era um Conselho dividido, paralisado com dissensão
interna. Ele levantou as mãos e gritou: - Parentes, nobres, comynari!
- Silêncio, deixem-o falar! - Lew gritou.
- Desde o alvorecer dos tempos – Domenic começou, uma vez que a comoção
silenciou – este Conselho operou em virtude da nossa lealdade a uma causa comum.
Mesmo quando os parentes entre nós se desentenderam, dentro desses corredores nos
encontramos em trégua para decidir o que era melhor para todos. - Ele fez uma pausa,
depois repetiu: - Todos. Não um Domínio sobre o outro, não Torre contra cidade,
habitantes das planícies contra os das montanhas. Não sou ignorante na história. Sei que
muitas vezes, desde a fundação dos Sete Domínios, um ou outro procurou usar o Conselho
para sua vantagem. Eu gosto de acreditar que, sempre que nosso bem-estar comum está
em jogo, somos capazes de afastar essas preocupações tão estreitas.
Em torno da Câmara, cabeças assentiram. Em suas expressões sombrias, Domenic
sentiu os ecos de choque. A mancha de sangue e o veneno do duelo ainda permanecia no
ar.
- Se nos voltarmos um contra o outro agora, - disse Domenic - que esperança haverá
para algum de nós?
Enquanto ele falava, Domenic colocou as pontas dos dedos no corrimão, a madeira
usada por gerações de parentes. Sabendo que estava dando um passo irrevogável, ele abriu
o portão e entrou no centro do salão. Ciente de que ele agora estava no mesmo lugar onde
seu pai havia lutado e quase morrido.
O D o m d e A l t o n | 303

Não, ele não pensaria nisso agora. A necessidade de união era apenas parte do que o
guiava. Algo mais estava se formando dentro dele, no escuro fundo de sua mente, na
música sem palavras de seu laran, empurrando o caminho até o dia.
- Meus amigos, Comyn e parentes, não podemos voltar aos velhos tempos, nem
devemos desejar isso. Cada Era deixa sua marca. Cada geração recebe o mundo em uma
condição, muda para o bem ou o mal, e o passa. Nossos pais se esforçaram para evitar que
Darkover fosse absorvida e explorada pelos Terranan. Agora que a Federação se foi,
precisamos de um novo propósito, uma nova visão de nosso mundo... Deste vasto, lindo e
selvagem planeta.
Ele falou das maravilhas do mundo, as que havia visto, as que ele só tinha ouvido, mas,
acima de tudo, das que ele sentira na parte mais íntima de sua mente.
Com cada frase, a visão tornou-se mais clara e mais forte. Domenic abriu os braços. No
momento, ele havia capturado seu público. As palavras surgiam em sua boca e ele as
deixava sair, como uma inundação no rio Kadarin, uma tempestade nas Cidades Secas um
uma avalanche nas geleiras.
Em sua mente, o Conselho, a cidade, os Domínios, diminuíram, tornavam-se efêmeros
e infinitesimalmente pequenos.
Somos homens, afinal, não montanhas.
O velho provérbio surgiu em sua mente: Apenas os homens riem, apenas os homens
choram, apenas os homens dançam.
Naquele momento, parecia que o Conselho reunido, as colinas além das muralhas de
Thendara, as montanhas crescentes além delas, desde o fim do oceano além de Temora até
a Muralha ao Redor do Mundo, riam, choravam e dançavam.
O momento se esticou em silêncio. Então alguém tossiu. Dani Hastur mudou de um pé
para o outro. Marguerida ficou de pé, seu rosto expressivo, seus olhos dourados agora
brilhantes.
Domenic retornou a si mesmo. - Esta é a minha visão. Se vocês não a desejam, se eu
mesmo for uma fonte de discórdia e discussões neste Conselho, então retirarei minha
reivindicação.
Foi a última coisa que esperavam. Toda a Câmara estremeceu com uma respiração
compartilhada e rápida.
- Rapaz, - disse Dani - isso não será necessário. Nenhum homem em mil teria falado
como você fez. - A luz pálida e fraturada dos prismas do teto brilhava em seus olhos. -
Alguém ainda questiona a aptidão de Domenic Alton-Hastur para agir como Guardião de
Hastur e Regente do Comyn?
Por um longo momento, ninguém falou. Ninguém se moveu.
O D o m d e A l t o n | 304

- Se eu... - Marguerida começou, sua voz pairando na beira da emoção. - Se sou um


obstáculo, então retiro minha proposta.
- Se eu puder ser tão ousado para apresentar uma sugestão alternativa. - A voz calma
e silenciosa de Danilo Syrtis encheu a câmara. - Seria tão mal feito rejeitar a experiência e a
sabedoria de Domna Marguerida quanto para um homem guerreiro cortar seu próprio
braço esquerdo. Quantas vezes na batalha o escudo e não a espada salvam a vida de um
homem? Sugiro que deixem a vai domna aconselhar Dom Domenic, mas deixem-o
selecionar outros conselheiros também, sujeitos à aprovação deste Conselho.
- Sim, isso servirá, desde que sejam homens firmes e verdadeiros. – O idoso Lorde
Leynier disse.
Quando ficou claro que não haviam mais objeções, Dani perguntou a Domenic quem
ele escolheria.
- Eu de fato consultaria minha mãe, - respondeu Domenic - pois ela estudou muito, viu
ainda mais e viajou na companhia de grandes homens. Um desses grandes homens é meu
avô, Dom Lewis-Kennard Alton. Também desejo a sabedoria das leroni das Torres, um
representante de sua própria escolha, pois é em suas ciências de matriz que o Comyn
encontra sua força mais profunda. E, por sua compreensão dos assuntos de Thendara e seu
povo, eu escolho Dom Danilo-Felix Syrtis-Ardais.
Deliberadamente, ele usou o nome completo de Danilo, com o direito adicional
concedido a ele há tantos anos pelo velho Lorde Dyan Ardais. Desta forma, ele lembrou ao
Conselho dos longos anos de serviço de Danilo, não apenas como paxman de Regis Hastur,
mas também como Regente de Ardais, com todas as responsabilidades que isso implicava.
Ninguém poderia desafiá-lo com base na inexperiência ou falta de conhecimento dos
assuntos do Comyn. Ninguém se atreveu a sugerir que Domenic selecionou Danilo não com
base em seu mérito, mas como recompensa pelo apoio dele.
Depois de um longo momento, Dani disse: - Estas são escolhas louváveis, Dom
Domenic. Eu falo pelo Conselho quando digo que ningupem aqui pode ter qualquer
objeção.
Dani formalmente pediu a cada um dos candidatos presentes se ele ou ela estava
disposto a realizar as funções de conselheiro do Regente Provisório. Então, com uma
sensação de alívio quase tangível, os amortecedores telepáticos foram desligados e a
sessão adiada.
Domenic observou a multidão se dispersar, saindo pelas portas principais ou as
entradas privadas para cada seção de Domínio, e se perguntou no que ele se metera.
O D o m d e A l t o n | 305

Capítulo 32

Após a sessão do Conselho, Domenic passou várias horas em uma conversa sincera
com um membro ou outro. Donal ficou ao seu lado, para suavizar os momentos difíceis,
dando um toque de normalidade. Alguns, como Danilo e os Aldarans, pareciam satisfeitos
com ele agindo como Regente, outros foram cuidadosamente neutros, e mesmo aqueles
que se opuseram a ele pareciam dispostos a lhe dar uma chance de se provar. Domenic
havia entendido, sem a necessidade de explicação evidente, que nem Cisco Ridenow nem
Darius-Mikhail Zabal podiam ser vistos tomando partido. Pelo menos, Jeram estava agora
nas mãos escrupulosamente neutras de Cisco.
Quando finalmente Domenic e Donal voltaram para a suíte familiar, encontraram
Marguerida sozinha. Ela havia arranjado um buquê de flores-estrela e rosas em um vaso
elegante de vidro azul, um presente de Marilia. Domenic perguntou onde estava o avô Lew.
- Finalmente o convenci a descansar. - Ela respondeu com um sorriso um pouco
distraído. - Suspeito que ele não confiava nos assuntos desta manhã para ir a sessão. Ele diz
que o trabalho é o melhor remédio, e acho que ele está certo. Acho que eu iria enlouquecer
sem algo construtivo para fazer.
- Nessa parte, pelo menos, ele é mais experiente. - Os nervos de Domenic ainda
tremiam com a tensão. Ele esticou os ombros, tentando relaxar.
- Você está com fome? - A natureza prática habitual de Marguerida reafirmou-se. - O
jantar deve chegar a qualquer momento. Donal, você vai ficar e comer com a gente, não é?
- Se lhe agradar, Domna. - Donal respondeu com uma reverência curta.
Os servos trouxeram bandejas de comida e colocaram sobre a mesa. Para Domenic, as
meninas pareciam criadas da copa. Elas fizeram uma reverência, corando, e saíram
correndo sem pôr a mesa corretamente. A comida preparada era simples, mas ainda
quente. Marguerida, Domenic e Donal pegaram os pratos e serviram-se.
Poucos minutos depois, Illona entrou, corada e sem fôlego, como se tivesse acabado
de correr por todo o comprimento do Castelo. Seu passo, geralmente tão fluido e forte,
vacilou.
- O que aconteceu? - Marguerida perguntou, a colher de sopa fazendo barulho contra
o prato. - Há alguma mudança na condição de Mikhail?
- Não, até onde eu sei, ele não está nem melhor nem pior. - Illona ofegou. - Vim falar
sobre um assunto completamente diferente. Lamento invadir sua refeição familiar privada,
mas como está atuando como Regente, Domenic, você deve saber de uma vez. Não ousei
confiar esta notícia a um mensageiro.
O D o m d e A l t o n | 306

- Aqui, sente-se. Você não parece bem. - Domenic colocou um braço ao redor dela,
pois estava visivelmente trêmula. - Deixe-me dar-lhe algo para beber. Jaco? Um pouco de
sopa? Temos qualquer vinho aqui?
De trás de uma porta de vidro sobre o aparador, Marguerida trouxe uma garrafa. -
Aqui está. Ravnet, um vintage muito bom.
Illona se permitiu sentar à mesa, mas recusou qualquer bebida. - Estou muito bem,
obrigada. É a notícia que trago e não qualquer enfermidade pessoal que me afeta.
- Então diga-nos de uma vez. – Domenic disse.
- É Domna Marilla? - Marguerida perguntou, largando o jarro com vinho. - Ela está
gravemente doente?
Illona respirou e um grau de compostura voltou para ela. - Temo que sim. E é pior do
que qualquer um de nós imaginava. Ela tem a febre das trilhas.
- Isso certamente não é possível. - Marguerida piscou surpresa. - Não houve um caso
desde antes de eu vir para Darkover. Ele foi exterminada como a varíola Terranan ou a
praga-verde de Thetis.
Illona balançou a cabeça. - Não, ela foi contida naquela época, mas não exterminada.
Os portadores do vírus é o próprio povo das árvores e, apesar de acreditarmos que seus
números foram muito reduzidos nos últimos anos como resultado de incêndios florestais
iniciados pelos Destruidores de Mundos, eles ainda não estão extintos. Encontrei registros
nos arquivos na Torre Nervasin da Expedição Allison que Regis Hastur acompanhou.
- Isso foi bem antes do tempo dos Destruidores de Mundos, não foi? - Marguerida
perguntou.
- Sim. – Illona respondeu. - Como resultado, uma vacina foi desenvolvida e uma
imunização em massa interrompeu o pior do surto.
Donal perguntou o que a fazia pensar que era a mesma doença.
- Eu já vi isso antes. - A voz de Illona estava firme e clara. - Em Nervasin monitorei um
paciente que morreu posteriormente dessa mesma febre. Acabei de chegar de um exame
de laran de Domna Marilla. As assinaturas vibracionais das duas infecções são idênticas.
Senhor da Luz! Domenic clamou silenciosamente.
Illona virou-se para Domenic. - Você se lembra de nossa discussão? Na época eu
suspeitava que a doença de Garin era uma recorrência de uma doença darkovana, não de
alguma toxina deixada pelos Destruidores de Mundos. Mas eu não podia ter certeza. Não
até agora. - Ela explicou a Marguerida: - A característica da febre das trilhas não é o seu
sintoma, mas o seu período.
- Período? - Marguerida perguntou.
- Ela vem em ciclos, - Illona explicou - cada um pior do que o anterior.
- Se você estiver certa, Illona, onde estamos no ciclo? – Domenic perguntou.
O D o m d e A l t o n | 307

Seu olhar encontrou o dela, a delicada pele ao redor dos olhos estava tão escura como
se tivesse sido ferida. - Isso é quase exatamente três meses após caso de Garin. Acho que
estamos na segunda fase, com muitos casos espalhados por toda a cidade e no
acampamento do lado de fora. Talvez o mesmo esteja acontecendo em outras cidades
também.
- Mãe dos Oceanos! - Marguerida fechou os olhos. Primeiro Mikhail e agora isso...
"- s refugiados devem ter trazido a febre para Thendara. - A voz de Donal estava
áspera de raiva.
- Não adianta culpá-los. – Domenic disse. - Temos de agir rapidamente para evitar o
pânico. Eu não esperava começar meus deveres como Regente com tal crise. Talvez eu
tenha que suspender todos os assuntos regulares do Conselho até termos a situação sob
controle. Vou conferir com Cisco sobre as medidas de quarentena e suprimentos de água e
alimentos. Mãe, vou precisar de sua ajuda agora mais do que nunca.
Marguerida deu uma pequena sacudida nos ombros. Seus olhos dourados
recuperaram seu foco. - Vou recorrer a Istvana e ao Conselho das Guardiãs para organizar
círculos de cura. Ainda bem que temos tantas leroni na cidade agora. Vamos precisar de
clínicas por toda a cidade para cuidar dos doentes.
- Não se esqueça dos mecânicos de matriz licenciados da cidade - Domenic
acrescentou - e as curandeiras treinadas pelos Terranan da Sociedade da Ponte.
- Não coloque muita esperança nessas medidas. - Illona advertiu. - No passado, nossos
melhores esforços, incluindo laran, salvaram apenas alguns dos infectados. E isso não é
tudo o que temos de enfrentar. Nos próximos três meses, quando vierem as graves
infecções da terceira fase, será muito, muito pior.
Domenic captou as imagens em sua mente. Thendara deserta, cadáveres cinzentos e
inchados nas ruas porque haviam poucos para enterra-los. Incêndios varrendo as florestas
através das Hellers, fazendas e campos vazios não-cuidados... Fome e mais morte. E então,
em outros quarenta oito anos, mais ou menos, todo o ciclo se repetia.
- Nós já a paramos uma vez com a tecnologia médica Terran. - Donal disse. - Agora que
mais precisamos deles, eles se foram.
Marguerida parecia pensativa. - Sim, o Império se foi... Mas não a sua biblioteca e
instalações médicas. Preciso organizar uma equipe de pesquisa agora mesmo. Vou precisar
de pessoas que possam operar computadores e ler em Padrão Terran...
Domenic sentiu uma onda de admiração por sua mãe que conseguia rapidamente por
de lado suas próprias tristezas para o bem maior.
Se ela caisse em um ninho de banshees, ele pensou, ensinaria todos eles a se tornarem
herbívoros e gostarem disso. Talvez houvesse esperança, depois de tudo.
O D o m d e A l t o n | 308

~o ⭐ o~
Dentro de uma hora, Domenic se viu diante de um Conselho apressadamente
convocado. Donal tinha feito um trabalho extraordinário ao contatar todos, o envio de
pagens a correr por todo o castelo e residências privadas por toda a cidade. Nem todos os
membros puderam ser encontrados em prazo tão curto. Darius-Mikhail permaneceu ao
lado da cama de Marilla. Metade das Guardiãs já estavam se reunindo com Marguerida.
Laurinda, que insistiu que tinha pouco talento para a cura, compareceu.
Domenic manteve sua abertura breve e direta. - Não convoquei este encontro por
leviandade, por isso vou direto ao ponto. Quando vocês me viram atuando como Regente
esta manhã, nenhum de nós poderia imaginar que estaríamos diante de uma crise ainda
maior do que a incapacidade de meu pai.
A Câmara inteira prendeu a respiração, ouvindo. De um instante para o outro, ele
tinha capturado a atenção deles. Usando termos simples, Domenic disse-lhes o diagnóstco
de Marilla.
O medo foi irradiado pela sala. - Praga! - Alguém gritou. Uma dúzia de pessoas
levantou e começou a sair.
- Sentem-se! - Domenic gritou. A acústica da Câmara ampliou sua voz. - Permaneçam
onde estão! Vocês acham que podem se salvar saindo apressados?
Surpreendidos, talvez chocados com o comando em sua voz, fizeram uma pausa.
Alguns voltaram a sentar.
- Nenhum de vocês se lembra da história? - Ele trovejou. - Esta é a febre das trilhas! Se
um de nós tiver sido exposto, então todos nós possivelmente também fomos expostos. Se
vocês se espalharem em suas casas, vão levar a praga junto. Vocês querem isso?
- Mas o que devemos fazer? - Uma das mulheres, Domenic achou que era a filha de
Lorrill Vallonde, chorou.
- Fiquem aqui, onde estamos trabalhando em uma cura. Não podem voltar para suas
terras e famílias! - Domenic não tinha ideia se poderia fazer uma promessa. Acreditando em
mim ou não, vocês não vão espalhar o pânico e o caos, o que tornaria a situação pior! As
pessoas na visão terrível de Alanna podiam ter morrido pela mão um do outro, bem como
da peste.
Domenic derramou toda a autoridade que possuía em seus próximos pedidos. -
Ninguém vai deixar a cidade. A Ordem irá prevalecer. O Comyn não descerá até a
selvageria. Vamos procurar uma cura e vamos cuidar daqueles que ficaram doentes.
- Cura? - Robert Aldaran disse, com o rosto dividido entre terror e cetcismo. - Não há
cura!
- O que me diz da cura dos Terrans? - Domenic perguntou.
O D o m d e A l t o n | 309

- Os Terrans encontraram uma vacina, não uma cura! - Robert retrucou. - Agora que
eles se foram, não temos sequer isso! Seus tolos! Estamos todos indo para a morte, vocês
não sabem disso? Eu por exemplo prefiro terminar meus dias em minhas próprias
montanhas, com o meu próprio povo!
Cisco Ridenow, que estava de pé com os Guarda dentro das portas duplas, olhou fixo
para Domenic, aguardando o sinal para fechar e fazer cumprir a ordem. Se isso fosse
necessário, pensou Domenic, ele já teria perdido o controle do Conselho. Ele precisava
dessas pessoas cooperativas, aliados engajados, não prisioneiros. Ele tinha que dar-lhes
motivo para ter esperança, para acreditar que trabalhat juntos seria sua única chance de
sobrevivência.
- Ouçam-me! - Domenic disse. - O Império foi embora, é verdade, mas não o seu
conhecimento. Sua base continua de pé e no Centro Médico há uma biblioteca com tudo o
que aprenderam sobre a febre. Enquanto falamos, uma equipe de especialistas está à
procura desses registros. Ao mesmo tempo, o Conselho de Guardiãs vai usar seu laran para
desenvolver um tratamento eficaz. Mesmo que vocês tenham desconfiança da tecnologia
médica dos Terranan, vocês também duvidam das Guardiãs, não de uma, mas de cinco
Torres? Vocês acham que uma mera doença pode ficar contra a nossa ciência de matriz?
Por um longo momento, ninguém respondeu. Domenic sentiu o medo dar lugar a
esperança provisória, ou pelo menos aceitação.
Balançando a cabeça, Rufus DiAsturien ficou a frente. - Vai dom, o senhor falou bem.
Nenhum de nós duvida, mas se a cura fosse possível, não seriam as vai leroni daquele
tempo passado que a encontrariam?
- Estes não são tempos passados. - Domenic balançou a cabeça. - Antes, cada Torre
trabalhava em isolamento. Agora podemos partilhar a nossa força e conhecimento.
Do outro lado da sala, sob a bandeira da torre branca, Laurinda MacBard levantou a
cabeça. Seus traços rústicos brilharam como se iluminados por um fogo interior. Ela era o
único membro presente do Conselho de Guardiãs. Todas as outras estavam em reunião
com Marguerida ou atendendo Mikhail e Marilla.
- O jovem Lorde Domenic fala a verdade. - Ela disse. - Nós das Torres temos nos
mantido à parte da sociedade por muito tempo, cada uma respondendo apenas a nossa
própria consciência. Temos falado uns com os outros pelas telas de transmissões
telepáticas, mas sempre mantendo nossos segredos, acumulando nossas descobertas.
Agora, pela primeira vez na memória, temos a oportunidade e o dever de trabalhar juntos.
Fazendo uma pausa, ela fixou os olhos em Robert Aldaran....e era um olhar feroz. Ele
engoliu em seco e sentou-se. - Aqui em Thendara temos Guardiãs e Sub-guardiãs de cinco
Torres diferentes. Quem pode dizer o que podemos realizar quando colocarmos nossas
mentes unidas?
O D o m d e A l t o n | 310

Domenic deixou passar um longo depois das palavras de Laurinda para todos
assimilarem o que foi dito. - Não só isso, podemos combinar a sabedoria e a força das
Torres com a ciência médica dos terráqueos. Isso também nunca aconteceu antes e
acredito que vamos conseguir! Quem está comigo?
Rufus, que ainda estava de pé, inclinou-se lenta e formalmente para Domenic. Levou
um momento para Domenic perceber que o velho agira por todos eles, que eles haviam
concordado em seu comando. Ele tinha vencido este round.
Por hora, ele tinha a colaboração do Conselho. Por quanto tempo? Ele se perguntou
quando a reunião foi encerrada. Se a pesquisa nos registros Terran e os esforços das
Guardiãs não pudesse conter a febre, já não importaria quem iria governar uma cidade
moribunda.
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Capítulo 33

Domenic esticou o pescoço para olhar para o alto, para os edifícios retangulares que
formavam a Base da Federação Terran, pensando o quão diferente o lugar parecia agora de
sua visita quando ele era criança. Uma vez fora uma colmeia de atividade, com homens e
mulheres em roupas estranhas correndo por todo lado, a polícia do espaçoporto em couro
preto, as guias e tradutoras Renunciantes, trabalhadores e fornecedores. A Base tinha sido
uma cidade em si, torres de aço e paredes brancas e áusteras, ainda eram bonitas, com
seus próprios costumes exóticos.
A maior parte da Cidade Comercial já desaparecera, absorvida pela cidade viva de
Thendara, mas essas torres se mantiveram trancadas e abandonadas. Poucos darkovanos
se aventuravam no interior da cerca, uma vez que ficou evidente que não havia acesso fácil
para saques, e menos ainda faziam o seu caminho através da vizinhança, e hoje, pela
crescente epidemia, muitos se mantinham dentro de suas casas.
- Estranho, não é? - Domenic comentou com Donal que agora caminhava por toda
cidade com ele. - Este lugar pertence a outro planeta e está aqui desde o tempo de nossos
avós.
- Como já disseram, Dom Domenic, - Donal respondeu - nem mesmo os Terranan
poderiam ensinar o burro de Durraman a cantar.
- Ou aprenderem a fazer algo realmente darkovano... - Domenic permitiu-se uma
risada. - Acho que você está certo, mas não posso imaginar Thendara sem ele.
Agora nosso destino pode estar em algo que se encontra aí dentro.
- Aí está você! Estava esperando há muito tempo? - Marguerida correu até o portão e
beijou o rosto de Domenic. Ela prendera o cabelo de forma prática, usava uma roupa
confortável e estava ansiosa para começar a trabalhar.
Ela trouxera assistentes: duas Renunciantes com rostos sombrios que eram
curandeiras e que participaram dos cursos de enfermagem da Sociedade da Ponte, e
Katherine Aldaran, que tinha casado com Hermes Aldaran quando ele era o Senador
darkovano no Império. Katherine parecia nervosa e um pouco tensa. Isso não era surpresa,
pois tinha motivos para estar preocupada com Térese e Sibelle, que voltaram para o Castelo
Aldaran, e para o surto de febre em Caer Donn.
Domenic estava triste por não ver seu tio Rafe Scott que estava nas Hellers nesta
temporada, pois o conhecimento dele do QG teria sido muito útil.
Domenic acenou para outro companheiro de sua mãe que devolveu a saudação com
um sorriso fácil. Fazia alguns anos que Domenic tinha visto Ethan MacDoevid. Ethan era
cerca de dez anos mais velho, com cabelo escuro e um sorriso aberto característico. Ele
vinha de uma família de Alfaiates e Mercadores e tinha conhecido Marguerida desde o seu
O D o m d e A l t o n | 312

primeiro decanato em Darkover. Quando menino Ethan tinha sido afetado pela mania de
astronauta, querendo aprender tudo sobre o Império e suas naves.
- Meu primo Geremy está procurando por outros que foram empregados no QG. –
Ethan disse. - Pode haver dezenas de outras famílias na cidade que já tiveram laços
comerciais com os Terranan, com acadêmicos, etc. Ninguém nunca pensou em mantê-los
unidos depois que a base foi fechada.
Marguerida tirou a luva de couro fino de sua mão esquerda para revelar os contornos
cintilantes de uma pedra facetada, impressa em sua pele. Quando ela tocou a porta
trancada, a matriz de sombra brilhou. Domenic estremeceu com o poder estranho daquele
laran, duro como o sal sobre a pele esfolada. Então, alguma coisa mudou dentro da
fechadura mecânica e a porta se abriu.
Com Donal em seus calcanhares, Domenic entrou em um vasto recinto, alto e
cavernoso, sem luz e mortalmente silencioso. Um momento depois, uma fileira de luzes
amarelas apareceu acima de sua cabeça.
Luzes de segurança, ele pensou, funcionando com baterias. A Federação pretendia
voltar algum dia, mas não faz sentido desperdiçar energia em calor e luz para um lugar que
ninguém usava.
Domenic sorriu para si mesmo enquanto seus olhos se adaptaram à luz estranha,
confuso porque ele sequer sabia de coisas como baterias de reserva. Marguerida tinha
convencido Mikahil que todos os seus filhos receberiam uma educação mínima para os
padrões da Federação Terran.
Você nunca sabe se um deles vai querer estudar fora do mundo. E não vão crescer
como selvagens analfabetos. Ela disse em mais de uma ocasião. E, para sua decepção,
nenhum deles havia desenvolvido o menor interesse em ir para a Universidade. Quem
poderia imaginar que um deles poderia ter de usar um treinamento aqui em Thendara?
Ethan foi para um dos consoles que estavam na entrada e digitou em um padrão numa
tela. Domenic sentiu mais do que ouviu algumas máquinas começarem a funcionar nas
profundezas do edifício, talvez uma usina subterrânea que tinha sido instalada quando a
base de dados foi construída.
Alguns momentos depois, Domenic sentiu um sussurro de ar no rosto. As luzes de
segurança deram lugar a mais brilhante iluminação. Com o retorno de ventilação veio um
cheiro acre. Domenic tossiu, seus olhos lacrimejaram e até mesmo as Renunciantes não
conseguiram disfarçar a repugnância.
- O ar deve refrescar em breve. - Ethan disse com uma alegria irritante. - Esse mau
cheiro delicioso é a gaseificação dos sintéticos. Quando eu trabalhava aqui, acabei me
acostumando.
O D o m d e A l t o n | 313

- Sim, nós, os seres humanos podemos nos adaptar a quase tudo. – Marguerida disse. -
Vamos lá, o Centro Médico é por aqui.
O som de suas botas ecoou no corredor longo e sombrio. Eles se mantinham juntos,
relutantes em se separar neste lugar estranho e sem vida. A medida em que caminhavam,
mais luzes se acendiam.
Marguerida rapidamente localizou a instalação de registros dentro do Centro Médico e
levou-os a uma sala de conferências nas proximidades. Em poucos minutos, ela tinha
organizado todos em equipes. Ela e Katherine iriam procurar o computador para obter
informações sobre a Expedição Allison e a vacina resultante. As duas Renunciantes iriam
fazer um estudo geral da virologia do agente infeccioso. Ethan, que estava mais
familiarizado com a disposição física do local, saiu em busca de registros em papel.
- Para uma sociedade que era inteiramente dependente de computadores, sempre
tivemos uma pilha de formulários, diários de bordo, notas de requisição e muita burocracia.
- Katherine falou e sua boca se contraiu em um meio sorriso irônico, quando ela se sentou
em uma das estações do computador. Colocando um fio brilhante em volta dos cabelos de
ébano escuro, ela acendeu a tela.
- Em triplo! - Marguerida disse e eles riram.
Domenic trocou um olhar perplexo com Donal, incapaz de compreender o que era tão
engraçado, e depois sairam para continuar o seu próprio trabalho.
Domenic retornou para o QG Terran no final da tarde do mesmo dia, com Donal como
sua sombra silenciosa. Ele tinha sido capaz de tranquilizar os membros do Conselho sobre
os esforços da equipe de pesquisa, mas a situação na cidade rapidamente piorara. O
número de novos casos de febre aumentava a cada hora. Danilo e Darius-Mikhail tinham
saído para a criação de abrigos para a clínica, junto com os mecânicos de matriz da cidade,
os herbolários, e qualquer pessoa com experiência de enfermagem.
Domenic já tinha ordenado a distribuição de suprimentos de comida, água, cobertores
e medicamentos do Castelo. Além disso, ele percebeu que eles precisavam de um local
central para planejamento e coordenação. Donal tinha sugerido usar o Grande Salão e ele
começou a fazer os arranjos.
Quando ele entrou na sala de conferências do Centro Médico Terran, Marguerida
olhou por cima da mesa coberta com diagramas, pastas de arquivos e pilhas de filmes
descoloridos. A partir das linhas entre as sobrancelhas e o leve tremor de laran no ar, sentiu
que ela estava lutando contra uma de suas dores de cabeça.
Ela estendeu a mão para Domenic com um sorriso pálido. - Deus te abençoe por nos
interromper! Temos trabalhado muito tempo sem uma pausa.
- Agora sei que há uma centena de lugares para olhar. - Desanimado, Ethan jogou
outra pasta sobre a pilha. - Já vasculhei arquivos pessoais e requisições de suprimentos.
O D o m d e A l t o n | 314

Posso dizer quantos quilos de substrato e detergente foram necessários a cada decanato ou
tudo sobre besouros das planícies agrícolas de Valeron. Mas nada sobre doenças humanas
ou a expedição Allison.
- E o resto de vocês? - Domenic perguntou. - Tiveram melhor sorte?
As duas Renunciantes balançaram a cabeça. De sua estação de computador, Katherine
suspirou. Ela tinha encontrado referências à expedição, mas poucos detalhes e nenhum
deles médico.
- Como é que os Terrans perderam os registros de uma expedição científica
importante? - Domenic questionou.
- Olhe. – Katherine disse. - Vou mostrar.
Domenic olhou por cima do seu ombro enquanto ela lentamente digitava: EQUIPE
MÉDICA.
Nome? O computador perguntou.
ALLISON, JAY, D.R.
O computador hesitou, como se remoendo seu pedido. Então a foto de um homem
apareceu no canto superior direito da tela, magro e ereto, com uma boca agradável e olhos
sombreados.
Cirurgião, Serviço Médico do Império. Consultor do Departamento de Antropologia
Alienígena. Especialista em parasitologia darkovana...
Inclinando-se sobre o ombro de Katherine, Domenic assistiu na tela e na voz do
computador os detalhes de escolaridade de Allison, seu estágio e residências, suas
publicações...
Foi partcipante da Expedição Allison, do Projeto Telepático...
Katherine tocou a tecla que congelou a narrativa e destacou: EXPEDIÇÃO ALLISON.
Expedição de alpinismo ao território do Povo das Árvores, organizada pelo Dr. Randall
Forth e Lorde Regis Hastur. Pessoal incluído...
- Não, isso não vai ajudar. Eu li esse mesmo resumo mais de uma centena de vezes. -
Marguerida estendeu a mão e clicou em: DOENÇA DAS TRILHAS.
Mais uma vez houve uma pausa. Uma caixa, limitada em vermelho e preto, apareceu
no centro da tela.
Autorização de segurança. Lia-se.
- O que em nome dos Sete Infernos Congelados de Zandru isso significa? - Domenic
olhou incrédulo. Por que exigir um certificado de segurança sobre doenças não-humanas?
- Quem organizou esta base de dados, em primeiro lugar? - Havia uma exasperação na
voz de Katherine. - E por que não incluir um sistema de pesquisa decente?
- Alguns burocratas têm ervilhas no cérebro, ansiosos para manter seu sobrinho
bibliotecário no emprego permanente, sem dúvida. – Marguerida respondeu, suspirando.
O D o m d e A l t o n | 315

- Provavelmente nunca lhes ocorreu que alguém não familiarizado com o sistema
desejasse encontrar alguma coisa, especialmente algo tão obscuro como uma expedição de
nativos por um território desconhecido em busca de uma doença considerada extinta.
- Acho que foi muito otimista de nossa parte esperar por resultados em um único dia.
– Domenic disse, mascarando sua decepção.
- A pesquisa pode ser mais longa. - Marguerida disse, se esticando e arqueando as
costas. - Vamos voltar amanhã com reforços.
- Boa ideia. – Katherine disse. - Tenho músculos tensos por todo o corpo.
- Devemos deixar o sistema em modo de espera. - Ethan disse quando refazia seus
passos. - A energia deve durar um par de séculos, mas eu não gostaria de contar com ela.
- Não há nenhum mérito em desperdiçar energia. – Marguerida disse. – Em um século
no futuro, ou dois, ou três, nossos descendentes poderão precisar desta biblioteca. Isto é,
supondo que o Império não volte para recuperar a base de dados antes disso.
Eles voltaram para rua. A noite caía, uma sombra de veludo através da leve garoa.
Luzes laranja e amarela pontilhadas vinham da Cidade Velha. Ao longe, um som abafado
por muros e portões de madeira, e um cão latindo.
- Você acha que eles nunca vão voltar? - Katherine perguntou, inclinando a cabeça
para trás para olhar por entre as nuvens escuras.
Marguerida fez uma careta. - Isso dependede como eles se explodirão um ao outro.
Não posso imaginar que abandonaram Darkover para sempre. Mesmo que não tenhamos
nada que eles querem, nossa posição entre os braços galácticos nos tornam inestimáveis
como um ponto de trânsito. Não temo muito quem vencerá e irá retornar. Qualquer que
seja, virá pegar o que precisam, independentemente de saber se é para o nosso benefício
ou até mesmo nossa vontade.
Ela fez uma pausa e virou-se para a tranca para redefni-la com a matriz impressa em
sua mão esquerda da mesma maneira que a tinha liberado.
Eles caminharam de volta ao Castelo Comyn. Muito menos pessoas do que o habitual
estavam nas ruas a esta hora. As ruas quase desertas de paralelepípedo da Cidade
Comercial pareciam mais escuras e estreitas do que nunca. Até o ar parecia diferente e
úmido. Muitos dos bares estavam fechados, mas haviam alguns braseiros ardendo fora das
lojas fechadas, e os homens em roupas esfarrapadas se debruçavam ao lado deles para
beber. Olharam-se quando eles passaram com os olhos avermelhados da fumaça. Quando
eles viram a espada de Donal, cambalearam para longe.
De tempos em tempos, Marguerida esfregava as têmporas.
- Mãe, você está bem? - Domenic perguntou. - Devo pedir uma liteira para você?
- Estou bem e eu não me incomodo com um pouco de chuva. - Marguerida respondeu,
embora sua voz tensa desmentisse suas palavras. - Esta não é uma dor de cabeça comum
O D o m d e A l t o n | 316

que passa com repouso e silêncio. É uma espécie de aviso e vai me atormentar até que o
que quer que prenuncie se realize.
- Você pode ver o que vai acontecer?

Ela balançou a cabeça. - Não, só um vago e irritante sentido de mau agouro. Gostaria
de dizer que parte da minha mente me diz que tipo de coisas ruins estão para acontecer.
Quando se aproximaram do Castelo, com as ruas se ampliando, o ar ficou mais fresco.
Flores noturnas cresciam ao longo do caminho. Marguerida suspirou e deslizou a mão pelo
cotovelo de Domenic. - Ainda assim, é reconfortante saber que não tenho que enfrentar
sozinha.
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Capítulo 34

Uma vez no Castelo, Katherine retornou a seus próprios aposentos, mas Domenic,
Donal e Marguerida foram para o Grande Salão onde, apenas alguns dias atrás, eles haviam
se divertido e dançado. O buffet elaborado do Festival havia acabado, as decorações
festivas tinham sido removidas, incluindo os espelhos, de modo que os corredores
pareciam menores e mais escuros. Os servos do castelo o haviam transformado em uma
sede de trabalho. Mesas tinham sido criadas, algumas como ponto de trabalho, outras para
as pessoas encarregadas da comida simples e nutritva. Um grupo de Guardas estava
jantando uma terrina de sopa fumegante. Outros estavam de pé conversando e bebendo
canecas de jaco.
Domenic pegou uma tigela de guisado com feijão, pão de nozes untado com queijo e
uma taça de vinho aguado. Ele e Donal se sentaram em uma mesa onde Danilo e Darius-
Mikhail estavam debruçados sobre gráficos e listas. Um momento depois, segurando uma
caneca de jaco com mel e uma porção de pasteis, Marguerida se juntou a eles.
- As corporações de artífices estão relutantes em abrir seus salões para os forasteiros.
Eles dizem que já tem trabalho suficiente cuidando de si mesmos. - Darius-Mikhail disse,
terminando o relatório que ele tinha feito para Danilo. - Os abrigos da clínica em breve
estarão sobrecarregados.
Domenic tomou um gole de sopa. Não era muito agradável para o seu gosto, mas era
quente e satisfazia. Depois que Darius-Mikhail havia explicado o problema, Domenic
autorizara Danilo a falar com o mestre dos artífices, já que o homem mais velho tinha
contatos especiais por lá. - Eu prefiro ter sua cooperação voluntária.
- Vai levar algum tempo de persuasão, mas vou tentar. – Danilo respondeu. - Para
aliviar o fardo sobre os abrigos, estamos incentivando aqueles que estão em melhor
situação e podem pagar funcionários, ou os que têm famílias ainda capazes de se cuidar,
que fiquem em casa.
Darius-Mikhail lembrou que nem todos tinham essa opção. - Os recém-chegados na
cidade parecem ser desproporcionalmente atingidos. Infelizmente, eles têm muito menos
recursos. Alguns não têm abrigo ou água limpa, nem dinheiro para comprar comida.
- As áreas mais pobres da cidade não estão muito melhores. - Danilo concordou. - Às
vezes uma família inteira fica doente e seus vizinhos estão sobrecarregados com suas
próprias necessidades ou assustados demais para ajudar.
Domenic pediu a última estimativa de vítimas.
- Temos apenas suposições porque não temos como saber ao certo quantos são
cuidados em casa. - Consultando suas notas, Darius-Mikhail deu números alarmantemente
altos.
O D o m d e A l t o n | 318

Donal parecia sombrio. - E isso é só o começo.


Um grupo de servos havia trazido pratos limpos e cobertos e os colocado sobre as
mesas de comida. A senhora que supersionava o trabalho aproximou-se da mesa e
Domenic reconheceu Alanna. Ela usava um lenço na cabeça e um avental branco vários
tamanhos maiores que ela sobre um vestido verde desbotado. Silenciosamente, ela sentou
em um banco em frente a Domenic. Darius-Mikhail olhou para ela, fazendo-a corar e, em
seguida, às pressas, ela baixou o olhar.
Por um instante, Domenic vislumbrou a imagem na mente Alanna, a visão de Thendara
com ruas silenciosas e cinzentas, corpos por toda parte.
- Qual é a taxa de mortalidade? - Marguerida perguntou, tendo terminado o último de
seus pasteis. - Muitos dos afetados vão morrer?
- É muito cedo para ter certeza. - Darius-Mikhail sacudiu a cabeça. - Muitos continuam
a trabalhar nos estágios iniciais da doença.
- E espalhar ainda mais a doença. – Donal disse.
- Esses temores não servem para ninguém. - Domenic afirmou. - Eles só servem para
desviar-nos dos nossos verdadeiros objetivos: cuidar daqueles que mais precisam de nós e
descobrir como parar essa terrível epidemia.
- Domna, teve sucesso em localizar os registros médicos Terran? - Danilo perguntou
para Marguerida, que balançou a cabeça. - Eu mesmo tenho pouco a oferecer. Estava em
Ardais durante o tempo da expedição Allison. Regis me contou sobre ela depois, mas não
entrou em qualquer detalhe científico. Pensávamos que haviamos eliminado a febre das
trilhas para sempre.
Domenic franziu a testa enquanto lutava para relembrar sobre biologia, que
Marguerida insistira que ele estudasse anos atrás. A imunidade de algumas vacinas se
desgasta com o tempo, mas outras duram toda a vida. Que tipo foi aplicada na febre das
trilhas? Danilo tinha sido vacinado, assim como muitos outros ainda vivos. Eles seriam
pessoas de meia-idade ou mais velhas agora. Essas décadas de imunização lhes daria uma
proteção parcial?
Quando ele expressou sua pergunta, Marguerida imediatamente entendeu sua
importância. - Se as pessoas mais velhas que receberam a vacina não ficarem doentes,
então podemos usar a fórmula antiga. Se é que vamos encontra-la.
- Mas se elas forem vulneráveis como os mais jovens, - disse Domenic, seguindo o
pensamento ao longo de sua progressão lógica - signifca que a imunidade desaparece ou a
doença mudou. Como saberemos a diferença?
- Essa é uma pergunta muito boa. – Danilo disse.
O D o m d e A l t o n | 319

- Não tenho listas de indivíduos específicos, - Darius-Mikhail disse - mas vou pedir aos
responsáveis pelos abrigos para verificar se há doentes que foram previamente vacinados...
- Ele tropeçou um pouco na palavra desconhecida.
- Será que alguém entre nós já está doente? - Domenic disse. - Domna Marilla, por
exemplo. Será que ela estava imunizada?
Nesse momento, Illona entrou no salão. Ela aceitou um prato cheio e uma caneca
fumegante de jaco de uma das criadas e ficou olhando para o que segurava como se não
reconhecesse como comida e bebida. Então, como se sentisse seu olhar sobre ela, ela
ergueu os olhos para encontrar os de Domenic.
Ele queria ir até ela, pega-la em seus braços, rodeá-la com o seu amor e derramar sua
força dentro dela. Mas ele não poderia fazer nenhuma dessas coisas, não em público, não
com Alanna e sua mãe sentadas aqui, olhando para ele. O peso de sua posição como
Regente caia sobre ele como um manto de pedra. Ele não era mais uma pessoa privada.
Com a coesão frágil do Conselho dependendo dele, com os curadores e organizadores
procurando a sua liderança, ele não se atrevia a vacilar, não importavam seus desejos
pessoais.
Illona veio em direção a eles. Os homens começaram a se levantar, mas ela fez um
gesto para que eles permanecessem como estavam. Ela tomou o assento mais próximo, ao
lado de Alanna, e largou a caneca e o prato na mesa.
- Trago uma notícia triste. – Ela disse. - Há uma hora, Marilla Lindir-Aillard nos deixou.
Domenic sentou-se, atordoado. - Tão rapidamente? A febre é tão virulenta?
- É uma doença terrível e ela não era forte. - Illona disse. - Não é como aquele pobre
homem em Nervasin. Ela entrou em coma ao meio-dia e não acordou. Kennard-Dyan ficou
com ela até o fim. Domna Linnea... - ela inalou visivelmente para reunir os restos de sua
força - ...me mandou parar e descansar.
- Então você deve descansar, filha. – Marguerida disse. - Você tem que repor as
energias para não ficar doente também.
Illona pegou uma fatia de massa salpicada com nozes e frutas secas e largou-a
novamente.
Alanna tocou suavemente na parte de trás do seu pulso, ao estilo dos telepatas. - Eu
também não consigo comer alimentos pesados quando estou cansada. Posso trazer-lhe um
creme ou uma maçã assada em vez disso?
Domenic sentiu um repentino nó na garganta quando Illona assentiu e disse em uma
voz fina e tensa que ela gostaria muito disso. Alanna levantou-se e correu para a cozinha.
Darius-Mikhail a seguiu com os olhos. Ela retornou em poucos minutos com um creme de
ovos simples decorado com frutas.
Illona tomou uma colher e engoliu. - É muito bom. Obrigada.
O D o m d e A l t o n | 320

Alanna baixou os olhos e não respondeu. Domenic não tinha noção do que tal
bondade a sua rival lhe custara. Quaisquer que fossem seus sentimentos, ela havia se
comportado com dignidade.
Enquanto Illona comia, Darius-Mikhail estava mostrando aos outros um mapa da
cidade, com locais de hospitais improvisados marcados.
Ele ainda não percebeu o que a morte de Lady Marilla significa, Domenic pensou com
uma clareza estranha, desapaixonada. Agora, ele é Regente do Dominio Aillard, com tudo o
que isso implica.
- Temos de nos preparar para o seu enterro. - Donal disse. - Domna Marilla deve ser
enterrada em Hali.
- Mas... - Darius-Mikhail interrompeu. - Mesmo agora, em um momento de crise?
Donal olhou para ele. - Você negaria a ela a honra de sua casta porque é
inconveniente? Ela era comynara, uma nobre Lady, e chefe de seu Domínio.
Antes que Darius-Mikhail pudesse responder, Domenic dirigiu a conversa de volta em
um curso mais prático. - Danilo, Marilla era de sua idade. Você sabe se ela tinha sido
vacinada?
- Sim, ela foi, pois me lembro de Regis falando que todos os Lindir-Aillards receberam a
dose. Domna Callina já não estava viva, e ela a chefe formal do Domínio na época.
- Portanto, não podemos contar com qualquer imunidade. - Marguerida ia dizer outra
coisa, mas ela fez uma pausa quando seu pai veio pelo corredor.
Seu rosto marcado parecia mais surrado do que nunca, mas se mantinha com firme
propósito, um homem ainda vigoroso que tinha montado desde Nervasin.
- Pai, o que é? O que aconteceu? É Mikhail? Por favor, sente-se.
Lew balançou a cabeça. - Não há tempo a perder. Os relatórios da epidemia crescem
mais alarmantes a cada hora que passa.
Por um momento Domenic temeu que seu avô iria insistir em ingressar em um dos
círculos de cura, como ele fez em Nervasin, mas Lew continuou: - Domenic, devemos usar
todos os recursos ao nosso dispor. Você deve enviar uma ordem a Cisco Ridenow para
libertar Jeram e pedir sua ajuda.
- Jeram, seu amigo de Nervasin? - Domenic perguntou, surpreso. - Se você acredita
que ele tem algo a oferecer, certamente chamarei por ele. E mesmo assim, como um
terráqueo, ele deve saber muito de computadores.
- Será que ele concordaria em nos ajudar? - Uma sombra passou pelo ainda belo rosto
de Danilo. - Ele tem poucas razões para amar o Comyn, dado o que ele sofreu em nossas
mãos.
- Vamos deixar ele resolver esta questão por si mesmo. - Lew disse.
O D o m d e A l t o n | 321

- Além do mais, - Marguerida acrescentou acidamente - não somos todos como


Francisco.
- Devemos discutir isso com ele em um local privado. - Domenic disse. Ele
eventualmente precisaria de um escritório, não o de seu pai, mas em algum outro lugar.
- Talvez meus aposentos? - Lew disse, como se estivesse sentindo o seu pensamento.
Domenic pediu a Donal para Jeram ser levado para lá. - Mãe, você vem conosco?
Ele captou a emoção sendo rapidamente mascarada. Esse Terran, Jeram, podia não ter
voluntariamente colaborado com Francisco, mas ele participara dolorosamente do
esquema que levou à atual condição crítica de seu marido.
- Tenho muito trabalho ainda para fazer. - Sacudindo a cabeça, ela se levantou. -
Primeiro, tenho que ir ver Kennard-Dyan. Ele deve estar arrasado.
- Procure descansar também. – Lew disse. - Você deve seguir o bom conselho que deu
a Illona.
Marguerida inclinou-se para beijar a bochecha do velho antes de deixar o salão.
- Vou acompanhá-los, se me permitem, - Illona disse - porque conheci esse homem em
Nervasin.
Quando todos levantaram, Alanna disse, com um olhar suplicante para Domenic: -
Posso ir também?
Seria cruel excluí-la quando Illona poderia ir e vir onde quer que ela quisesse, como
uma leronis. Alanna que era tão difícil, tinha tentado se comportar bem, ser útil.
Como ela será minha esposa, não deve ser excluída ou mantida ignorante. Domenic
pensou e assentiu, estendendo o braço para ela. Por sua visão periférica ele viu
rapidamente a expressão de decepção de Darius-Mikhail. Era uma pena Alanna ser
totalmente alheia a ele.
Ah, bem, Domenic pensava. Como meu pai sempre disse, o mundo vai como quer e não
como nós gostaríamos que ele fosse. Especialmente nos assuntos do coração.

~o ⭐ o~
Donal escoltara Jeram ao quarto de Lew apenas alguns minutos depois que o resto
deles tinha chegado e se acomodado em torno de uma pequena mesa próxima a lareira.
Domenic se acomodou em uma das cadeiras ao lado de seu avô, notando que a tapeçaria
antiga de Dama Bruna Leynier estava inclinada em um ângulo estranho. Domenic se
perguntou se o caseiro tinha sido descuidado ou se Lew estava tentando arruma-la com
uma só mão.
Domenic ficou satsfeito ao ver a mudança no Terranan. Ao longo dos últimos dias,
Jeram tinha perdido sua palidez. Movendo-se com firmeza, ele atravessou a sala e se
curvou para Lew.
O D o m d e A l t o n | 322

- Meu amigo. – Lew disse, estendendo a mão única. - Desculpe-me por não aceitarem
você como deveriam, eu afirmo com o privilégio de um homem velho. É bom ver que você
está bem novamente.
Jeram tocou a mão de Lew numa breve saudação entre telepatas. - Você me empresta
graça, Dom Lewis. – Ele disse em um casta fluente, mas com forte sotaque. - E você
também, Domna Illona.
- Estou contente em ver você também. – Ela disse.
- Dom Domenic. - Jeram disse, inclinando-se novamente.
- Esta é minha prima, Alanna Alar. - Domenic apresentou.
Outra inclinação, desta vez acompanhada por um sorriso de genuíno. - Damisela.
- Eu me lembro de você da reunião do Conselho. – Alanna disse. - Dom Francisco foi
absolutamente horrível com você.
- Não vamos falar mal dos mortos, - Jeram respondeu - mas agradeço a sua
preocupação.
- Por favor, sente-se. – Domenic disse. - Não sei se a notícia chegou a você sobre a
doença na cidade.
- Ouvi um pouco. - Jeram disse em um tom bem reservado. - O suficiente para
perceber que as pessoas têm razão para ter medo.
Illona explicou a Jeram que em épocas anteriores, o que era uma doença infantil e
inofensiva entre o povo da floresta, às vezes passava para os seres humanos, formando
ciclos de uma epidemia devastadora.
- Meu avô acha que você pode nos ajudar. – Domenic disse.
Jeram olhou atentamente para Lew. Lew disse: - Eu não disse nada. Essa é a sua
história e sua escolha.
- A febre das trilhas já serviu para dizimar nossa população até que o Serviço Médico
Terran nos ajudou a desenvolver uma vacina contra ela a uma geração atrás. - Domenic
explicou. - Agora ela está de volta, e minha mãe e suas amigas passaram o dia todo
tentando encontrar esses registros. Sem nenhum sucesso, devo acrescentar.
Os olhos de Jeram brilhavam à luz do fogo. Ele parecia hesitar. Domenic se perguntou
se Danilo estava certo, se o Comyn já tinha feito desse homem um inimigo. Então Jeram
disse algo totalmente inesperado: - Esses registros estariam fortemente codificados,
inacessíveis, a menos que você conheça os códigos e saiba onde procurar.
- Codificados? - Domenic pensou no aviso de segurança que impedia o acesso a
informações sobre as descobertas da expedição de Allison.
- Essa sua febre das trilhas seria uma arma biológica perfeita. Você teria apenas que
disseminar a doença em algumas áreas-alvo, não necessariamente densamente povoadas.
O D o m d e A l t o n | 323

Em sete meses, ou seu inimigo estaria morrendo, ou todos os seus recursos estariam
empenhados em cuidar dos doentes.
- Arma biológica. - Domenic repetiu, atordoado. A Federação Terran teria pensado em
usar essa terrível infecção como uma ferramenta de guerra? Ele ficou tão horrorizado que,
no momento, não conseguia falar.
Lew assentiu sombriamente. – A Federação iria queria preservar o conhecimento e
mantê-lo em segredo. O potencial para fazer tais coisas é uma poderosa ameaça.
- Mas, expor deliberadamente milhares de pessoas inocentes, sem nenhuma maneira
de se defender... - Donal murmurou. - Que tipo de monstros são eles?
- Não é pior do que o que nós mesmos fizemos durante a Era do Caos. - Illona disse. -
Fogo aderente e pó derrete osso deixaram incontáveis pessoas comuns mortas ou
mutiladas. A única diferença é que os criamos com laran em vez de ciência. No final, nos
tornamos tão crueis que enfrentamos uma escolha entre a destruição absoluta ou o Pacto.
Temo que os Terranan ainda não chegaram a esse ponto.
- Então, eles esconderam os registros médicos de febre das trilhas, incluindo a sua
prevenção e tratamento, a fim de manter o conhecimento para si mesmos. – Domenic
disse, ainda profundamente desgostoso.
- Eles o fizeram. – Jeram disse. - Mas eu sei como encontrá-los.
Todos olharam para ele.
- Antes de vir para Darkover com a unidade das Forças Especiais, eu era um
especialista em guerra biológica, o que incluia o tratamento e prevenção também. Conheço
os sistemas de criptografia. Se você estiver disposto a confiar em mim, posso cavar tudo o
que sabemos sobre a febre. Então estarei pronto e vamos parar esse vírus pegando sua
sequência genética. Se há mesmo uma maneira de curá-la, nós vamos encontrar também.
Pela expressão no rosto de Lew, ele sabia dos conhecimentos específicos de Jeram.
Por alguma razão, ele esperava que Jeram desse o primeiro passo. A oferta tinha sido
genuína, disso Domenic estava certo.
- Ficaríamos muito gratos por qualquer ajuda que possa nos dar. - Domenic respondeu
a Jeram.
- Há, no entanto, um preço para o meu apoio. – Jeram disse.
A barriga de Domenic apertou. Jeram tinha sido preso por Francisco, havia sido
drogado e em seguida torturado. Ele havia sido vítima involuntária de abuso de laran e
tinha todos os motivos para pedir compensação, até mesmo vingança. No entanto, quando
Domenic olhou para seu avô, ele sentiu o vínculo entre Lew e Jeram, amor, confiança e algo
mais.
- Só uma condição. – Jeram continuou. - Se eu puder encontrar um tratamento, uma
vacina, quero que seja disponibilizado sem custo e para todos, independentemente do
O D o m d e A l t o n | 324

status econômico ou social, sem privilégios especiais para o Comyn ou qualquer outra
pessoa.
- Temos recursos limitados, - Donal protestou - e não podemos enviar curandeiros
treinados com laran para cada pessoa. Para alguns, cobertores e alimentos terá de ser o
bastante. Certamente toda a vida vale a pena salvar, mas muitos podem morrer
desnecessariamente de inação.
Alanna lançou-lhe um olhar próximo ao desafio. - Se fosse somente o Comyn a ter essa
febre miserável, você não iria encontrar uma maneira de salvar todos eles? E se não
pudesse, se estivéssemos tão sem recursos, então acho que nós não estaríamos preparados
para governar.
Lew acariciou-lhe a mão. - Bem dito, criança.
Illona que tinha escutado em silêncio, apertou as mãos levemente no colo. - Alanna
está certa. Porque nós deveríamos sobreviver sobre eles?
Não, você não deve se arriscar! Domenic pensou.
Ela ainda não tinha se recuperado totalmente de sua tentativa infrutífera de salvar a
vida de Marilla.
- Vou sair entre eles. - Illona disse, sua voz agora carregando a autoridade gelada de
uma Guardiã. - Da mesma maneira que atendi Garin, o homem em Nervasin. Igualdade de
tratamento para todos é um preço honesto que todos nós devemos estar ansiosos para
pagar.
- Obrigado, vai leronis. - Jeram disse. - Eu prometi a mim mesmo que, se houvesse
alguma forma de ajudar essas pessoas, eu o faria. Só que eu não tinha ideia do que poderia
vir de tal promessa.
O D o m d e A l t o n | 325

Capítulo 35

Marguerida se inclinou para frente, apoiou os cotovelos na mesa da sala de


conferência e descansou o rosto nas mãos. Ela nunca se sentiu confortável no complexo da
sede Terran, e agora o cheiro do ar irritava seus pulmões e estava com os olhos vermelhos
e coçando. O sistema de ventilação podia remover o pior do mau cheiro químico, mas não
podia imitar a doçura natural do ar darkovano. Sua cabeça tinha ido além de dolorida, seus
olhos se recusavam a focar adequadamente e ainda assim ela continuou pesquisando. O
que mais ela poderia fazer, com a pressão de um presságio martelando através de seu
cérebro?
Continue... Ela pensou, cansada.
- Domna Marguerida? - Veio a voz de um homem da direção da porta.
Assustada, ela girou sua cadeira. Era aquele homem, Jeram ou Jeremiah Reed, ou
qualquer que fosse o seu nome, o mesmo que Francisco trouxera perante o Conselho para
apoiar suas acusações. Silenciosamente, ela jurou descobrir quem deixara Jeram entrar e
esfolar vivo quem quer que fosse.
- O que está fazendo aqui? - Ela perguntou.
Jeram entrou no quarto, carregando uma garrafa térmica. - Eu trouxe um pouco de
café.
Café! Ela quase podia sentir o gosto amargo e revigorante. O último pacote de seu
estoque tinha sido usado há um ano e não haveria mais. O clima de Darkover não permitia
o cultivo de grãos de café, só o jaco onipresente.
- Onde você conseguiu isso? - Sua mão se dirigiu para garrafa como se por vontade
própria.
Ele deixou a garrafa sobre a superfcie da mesa. - Não importa onde eu consegui. Estou
aqui para ajudar.
Ajudar? O que ele poderia fazer a não ser ficar no caminho? Se Francisco ainda
estivesse vivo, ela suspeitaria que esta oferta era algum esquema nefasto seu. Não, nem
mesmo Francisco em seu mais tortuoso julgamento pensaria suborná-la com café!
Jeram colocou uma segunda cadeira ao lado da de Marguerida. Pela primeira vez, ela
percebeu que homem interessante que ele tinha sido. Não era um homem simples, mas
sim estranhamente atraente, com olhos observadores, ossos fortes e uma pequena cicatriz
triangular num lado do rosto. Em outras circunstâncias, ela gostaria dele como um amigo.
- Estou aqui com o conhecimento e permissão do Regente interino do Comyn e seu
próprio pai. - Ele disse, olhando para ela com uma franqueza desconcertante. - As pessoas
estão morrendo lá fora, na cidade, no acampamento. Pessoas de quem gosto e suponho
O D o m d e A l t o n | 326

que você também. Essa coisa é maior do que qualquer um de nós. Separados, não acredito
que temos uma chance de pará-la.
Marguerida tinha pensado em Marilla, pálida e completamente imóvel quando
levaram da Camara de Cristal. As duas mulheres não tinham sido próximas, mas ela tinha
conhecido Marilla em seu primeiro ano em Darkover. Quando Marguerida tinha caído
doente na trilha das montanhas, com a doença do limiar, Marilla tinha oferecido sua
hospitalidade. Lá, na casa de Marilla, Marguerida tinha visto Mikhail pela primeira vez. Com
a morte de Marilla, ela perdeu não só uma companheira comynara, mas também um outro
laço com o homem que ela amava.
- Não vejo o que você pode fazer. – Ela disse. - Katherine e eu temos conhecimento
dos computadores. Nós vasculhamos os arquivos e não encontramos nada proveitoso.
- Você pode olhar de agora até o dia do juízo final, e ainda assim você não vai
encontrar nada. – Jeram disse. - Você está procurando no lugar errado.
- Deus do céu! - O queixo de Marguerida tremeu. - Existe um outro banco de dados
independente? Como pode ser isso? Você deveria ser capaz de acessar tudo que fosse de
ordem médica daqui.
- Não acho que você vá encontrar informações sobre a febre das trilhas, a vacina ou
mesmo a expedição que produziu a vacina em qualquer sistema inseguro. - A voz dele
assumiu um novo tom... Um tom de segurança.
Ele ficou de pé e estendeu uma mão para ela. - Venha comigo e vou lhe mostrar onde
vamos encontrá-lo.
Recusando sua mão, ela se levantou. - E onde é isso?
- Comando Militar. Para ser mais específico, o Arquivo de Armas Biológicas.

~o ⭐ o~
- Veja. - Jeram disse, apontando para a tela. - Esse é o vírus isolado pela equipe Allison.
Marguerida olhou para as nebulosas imagens do microscópio eletrônico e estremeceu.
Ela ainda estava maravilhada com a habilidade com que Jeram tinha manobrado através
dos sistemas de segurança dos computadores militares. Não lhe ocorrera que este sistema
pudesse ser totalmente independente dos bancos de dados civis, e ela não tinha ideia de
que existia.
- Então, é assim que se parece. – Ela murmurou. - Uma torção de fios macios. E agora?
- Vê esses códigos? - Ele apontou para a barra lateral, onde três lacunas encheram o
espaço. - Esse é o sequenciamento genético. E aqui - ele digitou algumas instruções e um
código diferente apareceu – está a análise do revestimento da proteína que determina,
entre outras coisas, como o vírus é transmitido, se ele pode sobreviver fora uma célula
hospedeira e a gravidade da doença que provoca. - Ele balançou a cabeça. - Este é um vírus
O D o m d e A l t o n | 327

desagradável. Normalmente, ele é leve, como o resfriado comum, mas mexe com os
receptores aqui e aqui - ele apontou para o esquema - e, zás! Se torna virulento e mortal.
Marguerida encarou Jeram. Num tempo surpreendentemente curto, ele tinha
localizado os registos da expedição e da fabricação da vacina, bem como as análises
exaustivas do vírus.
- E agora? - Ela perguntou.
Ele puxou o cabelo para trás de sua testa em um gesto que a fez lembrar de Domenic
quando estava pensando. - A beleza deste organismo é que não precisamos vacinar toda a
população. O soro imune desenvolvido pela equipe de Allison faz o vírus reverter para uma
forma benigna. Esse será o nosso objetivo. A parte mais difícil será imunizar pessoas o
suficiente antes dele entrar na fase terminal de seu ciclo.
Pelo menos, fizemos um começo, Marguerida pensou. Nós temos algo com que
trabalhar.
- De que equipamento você precisa? - Marguerida perguntou.
- Posso fazer o sequenciamento das proteínas daqui mesmo, mas para sintetizar o soro
em quantidade vamos precisar de um laboratório e algum equipamento muito sofisticado.
Este lugar não está preparado para qualquer coisa mais complexa. Espero que as
instalações estejam no setor de Bioquímica. Tenho que lhe dizer, porém, que as minhas
habilidades de laboratório são seriamente desatualizadas. Há alguém aqui com experiência
em sequenciamento de proteínas?
- Você quer dizer, alguém que ainda esteja em Darkover? Não acho que tenha. Sei
algumas dezenas de pessoas que podem ler em Padrão e operar um computador. Duvido
que qualquer um deles alguma vez pegou um tubo de ensaio.
Ele pegou a garrafa de café aberta, olhou em seu interior vazio, e cheirou. - Então, vou
ter que vir para cá com mais destas coisas boas.
A curiosidade de Marguerida finalmente levou a melhor sobre ela. - Onde você
conseguiu isso?
O sorriso de Jeram ficou sardônico, fazendo-o parecer anos mais jovem. - Você nunca
esteve nas Forças Especiais, não é? A primeira coisa que fazemos em um novo planeta é
encontrar uma fonte local de café. Às vezes, não é exatamente legal, mas minha
consciência está limpa neste caso. Este café veio de um companheiro da Liga Pan-
Darkovana. Ele fez uma pequena fortuna vendendo para nós. Quando a Federação partiu,
seus clientes. Ele vai ficar feliz em vender o resto de seu estoque.
- Não tão feliz como eu ficarei para ajudá-lo a beber!

~o ⭐ o~
O D o m d e A l t o n | 328

Lew Alton cavalgou do Castelo Comyn através dos portões de Thendara pouco depois
do amanhecer no dia seguinte. Illona, pálida, mas forte como uma Guardiã, foi com ele. Por
insistência de Domenic, um par de Guardas os acompanhavam. Eles carregavam pacotes de
comida, água limpa e rolos de cobertores, bem como espadas. A noite tinha sido quente,
com apenas uma garoa leve. Pingos de chuva pontilhavam cada folha de grama ao longo da
estrada. O ar estava úmido e perfumado e o sol quente.
Mesmo com a doença, homens, animais e carrinhos chegavam cheios de caixas de
verduras frescas e raízes, de frutas de verão, e do início da colheita de peras e maçãs, sacos
de castanha e farinha.
Além dos portões, Lew cutucou seu cavalo para fora da estrada principal entre os
aglomerados de barracas, cheios de chervines nos piquetes e fogueiras para cozinhar. O
acampamento estava maior e mais organizado do que ele se lembrava. Galpões toscamente
construídos surgiram em torno de uma estrada de terra batida levando a um pavilhão
improvisado formado de pequenas tendas e cobertores.
- É Lorde Alton e a vai leronis! - Alguém gritou.
Um punhado de homens saiu ao encontro deles. Lew reconheceu o jovem de cabelos
negros que os tinha desafiado no seu regresso a Thendara.
- Nós estamos aqui - disse Lew - para fazer o que pudermos por aqueles que já estão
doentes. Por favor, levem-nos a eles.
O rosto de um jovem endureceu. Ele deu um passo à frente em uma postura agressiva.
- Mentiroso e tirano! Você veio para ver a nossa miséria para sua diversão? Ou você está
aqui para cobrar impostos do ar que respiramos?
Um outro homem agarrou o ombro do jovem. - Não seja tolo, Rannirl! fale demais e
vai ter a mão direita decepada! Além disso, seu pai está além de qualquer medicamento
que temos. Sua única esperança de cura é pelo laran, e para isso precisamos da boa
vontade da leronis.
Com o rosto ficando pálido, Rannirl caiu sobre um joelho. - Eu imploro, não puna o
meu pai, que está velho e doente, pela loucura de seu filho. Se houver qualquer coisa para
fazer, se puder salvá-lo, serei grato para sempre, eu que não tenho nada para dar.
Lew desceu de sua montaria durante o discurso do menino. Movia-se com dificuldade,
porque suas articulações já não se dobravam facilmente no início da manhã. Com um
toque, ele silenciou a torrente de palavras e colocou Rannirl de pé.
- Todo laran que tenho não me foi concedido para minha própria glória, e sim para o
benefício de outros. Então, não quero ouvir mais isso. Mas deve nos deixar trabalhar
rapidamente.
O pavilhão central tinha sido montado como um hospital, com divisórias improvisadas
de palha áspera e trançada. No interior, três ou quatro dúzias de camas foram amontoadas
O D o m d e A l t o n | 329

em torno de corredores estreitos, todas elas ocupadas. Tosses dispersas vinham dos
homens que estavam ali. Renunciantes se moviam entre eles, parando para falar com um
paciente aqui e ali.
Illona seguia Rannirl pelos corredores. Lew ordenou aos Guardas que trouxessem os
cobertores, cantís e cestas de alimentos. Uma das Renunciantes supervisionaria a
distribuição.
Pouco tempo depois, Illona terminou seu exame e voltou para os dois homens. Sua
pedra da estrela estava desembrulhada em sua corrente entre os seios. Um fogo azul
brilhava de suas profundezas cristalinas quando ela colocou-a sob o decote de sua túnica
cinza da Torre. - Seu pai está realmente doente, mas ele ainda é forte. Fiz o possível por ele
no momento.
Lew se absteve de mencionar que a cura pelo laran não tinha salvo Marilla ou aquele
pobre homem em Nervasin.
- O nome do seu pai é Ulm? - Ilona perguntou. - Foi ele que esteve em busca de nosso
amigo, Jeram de Nervasin?
Ela tem uma memória excepcional para nomes, Lew pensou. Se isso era devido a sua
inteligência natural, raciocínio rápido, seu aprendizado nos primeiros anos com os
Viajantes, ou seu treinamento como Guardiã, ele não sabia. Quanto mais ele a conhecia,
maior era sua compreensão pela fixação de Domenic por ela. Os dois amantes se
comportavam com decência perfeita desde que voltaram a Thendara, mas não podiam
disfarçar a profundidade de seu desejo um pelo outro. O coração de Lew doía por eles. Ele
esperava que se entendessem, e que Alanna viesse a perceber que seu destino e sua
felicidade estavam em outro lugar.
Rannirl pareceu surpreso com a pergunta do Illona. - Ele mesmo, e seu custo foi
contrair a febre na cidade.
- Não faz sentido culpar os moradores da cidade pela propagação da doença. - Lew
disse.
- Ele deve ser informado então que, por ordem do Regente interino, Jeram está bem e
livre entre nós. - Ilona disse. - Agora mesmo ele está usando sua ciência Terran para ajudar
a encontrar uma cura.
- Verdade? - Rannirl suspirou. - Magia das estrelas?
Ilona mordeu o lábio e simplesmente assentiu. Para as pessoas comuns, laran tambem
era magia.
Quando Lew voltou para a cidade, Ilona ficou para trabalhar com os pacientes. No
Castelo, Alanna estava esperando por Lew em seu lugar habitual, ao lado da lareira. Depois
de servir para ele uma bebida quente, ela despejou uma pergunta atrás da outra sobre as
condições do campo de refugiados.
O D o m d e A l t o n | 330

- Por que, então, não posso ir até as pessoas pobres como Ilona? - Ela perguntou
quando ele terminou de relatar os acontecimentos da manhã. - Não tenho habilidade com
uma pedra da estrela, mas com certeza sou uma enfermeira disposta.
- Alanna, pense com cuidado. Não há necessidade de você ir e o trabalho será difícil,
em condições gritantes. - Lew se perguntou se estava certo de se opor a seu desejo. A
menina tinha falado com um desejo sincero de fazer o bem. Ela se beneficiaria de um
trabalho duro e um sentido de utilidade.
Ela olhou para ele, uma luz forte nos olhos. - Como posso sentar aqui, na facilidade e
ócio, quando eu poderia ser útil? Por que Illona tem um trabalho significativo e eu não?
Vou passar a minha vida como um brinquedo, uma boneca, que só serve para exibir
vestidos finos? - Ela levantou as mãos, espalhando suas roupas, com dedos perfeitamente
cuidados. - Eu não estaria doando duas boas mãos, como todos os outros? Por que eu não
deveria ter permissão para usá-las?
- Acalme-se, filha. - Lew não resistiu a vontade de sorrir. - Você me convenceu!
- E, - ela continuou, com o queixo elevado triunfante - na companhia das curandeiras
Renunciantes, ninguém poderá questionar se é apropriado para eu estar lá! Nem mesmo
tia Marguerida poderia objetar!

~o ⭐ o~
A praga tinha mudado tudo. Domenic sentiu com o laran a mudança na textura do
ambiente de todo Castelo Comyn, no ar que respirava. Ele era muito jovem quando Regis
Hastur morreu para apreciar como irrevogavelmente seu mundo tinha mudado. Agora, ele
era mais velho, um participante, bem como testemunha. Agora ele sabia a diferença.
Ele chegou cedo para uma reunião de seu conselho consultivo no Grande Salão que
agora funcionava como o centro de coordenação. Uma refeição fria tinha sido colocada nas
mesas laterais, com pão, queijo e fatias de carne assada, com pratos de doces
amanteigados e cestas de pêssegos das planícies. Guardas, mecânicos de matriz,
Renunciantes e artesãos sentados lado a lado, comendo uma refeição rápida e trocando
notícias.
Queria encontrar uma maneira de parar esta coisa, ou nossas fileiras serão dizimadas
e nossa sociedade entrará em desordem. Mesmo assim, as coisas nunca mais serão as
mesmas.
Marguerida atravessou a porta em arco que conduz ao interior do Salão, seguida de
perto por Lew e Danilo. Para Domenic, ela parecia estar à beira da exaustão. Sombras
rodeavam seus olhos dourados e suas pálpebras estavam inchadas pela falta de sono. Sua
pele tinha perdido o seu brilho e seu corpo parecia frágil em vez de delgado.
O D o m d e A l t o n | 331

Domenic descobriu-se irracionalmente irritado com ela. Como ela ousava ficar sem
dormir ou comer, como ela obviamente estava fazendo, quando muito dependia dela?
Marguerida se encolheu, tendo claramente captado seu lampejo de emoção. Ela
puxou seus lábios em uma linha fina e desafiadora, mas Lew disse a Domenic: - Deixe estar,
chiyu, e não adicione mais preocupações aos nossos problemas.
- Nenhum de nós tem o direito de agir impropriamente. - Domenic disse. - Não
pertencemos só a nós mesmos, mas as pessoas que estamos tentando salvar. Se, por
orgulho ou simples negligência, nós entrarmos em colapso, como poderemos ajudá-las?
- Não diga mais nada em meu nome, pai. - Marguerida disse. - Nico, você tem direito
de censurar-me. O trabalho pode se tornar uma obsessão, como qualquer outra coisa.
Preciso lembrar que nossos problemas não serão resolvidos em uma única noite de insônia.
Antes que Domenic pudesse responder, os dois últimos membros de seu conselho
informal, Donal e Danilo, chegaram. Quando todos tinham se servido de jaco e se sentaram
em seus lugares ao redor da mesa, Domenic pediu a cada um deles para relatar qualquer
progresso.
- Bem, você quer saber se temos algum progresso no laboratório? A resposta é não. -
Marguerida disse. - Jeram analisou o DNA viral da febre atual e comparou com registros da
antiga. - Ela esfregou os dedos de uma mão sobre a mesa. - Como suspeitamos, eles não
são idênticos. Estamos definitivamente lidando com uma nova mutação do vírus.
- Então, aqueles que receberam as vacinas anos atrás não têm imunidade. - Danilo
estava com os ombros tensos, como se estivesse se preparando para uma batalha. Ele os
relaxou à força, mas seus olhos escuros não perderam nada de sua expressão sombria.
- Correto. – Ela disse. - E o pior de tudo é que não podemos usar os anticorpos em
nosso sangue ou, como Jeram diz, há algo nos receptores de enzimas sobre uma cobertura
de proteínas, ou algo assim, que fazem deste um vírus particularmente complicado. Até
agora nada do que ele tentou em um tubo de ensaio deu resultado. Pode levar meses ou
anos antes dele estar no caminho certo.
- Até lá, pode não haver ninguém para salvar. - Donal murmurou.
- Tente ser um pouco menos otimista, pode ser? - Marguerida disse com sarcasmo
inusitado.
- Estou apenas dizendo o que todos estamos pensando. - Donal engoliu em seco e
baixou o olhar. - Perdoe-me, vai domna. Não tenho direito de falar de tal maneira.
- E eu fui cruel e impaciente. – Ela respondeu, mais suavemente.
- Estamos todos cansados e assustados. – Domenic disse. Ou, se não estamos, em
breve estaremos. - Não vamos brigar entre nós. Temos inimigos o suficiente.
- Sim, - Marguerida disse com um suspiro curto - trilhões de micro inimigos.
Donal inclinou a cabeça em concordância.
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- Nossa maior esperança é encontrar alguém que tenha sobrevivido a atual doença, -
Marguerida disse, rapidamente voltando ao tema - e usar os anticorpos em seu sangue para
criar um novo soro imune.
Domenic tremeu por dentro. Donal tinha razão para ser pessimista, apesar de ter sido
indelicado falar esses medos em voz alta. Os dados do Centro de Medicina tinham
mostrado que a doença, ao atingir seu ciclo final, teria uma taxa de mortalidade de
porcentagem extremamente alta. Os números de mortos continuariam subindo enquanto
mais pessoas cairiam doentes.
Marguerida colocou os braços sobre o peito. Mesmo sem contato mental, Domenic
sabia o que ela estava pensando, o desespero de cortar o coração ao ver aqueles que
amava escapar na escuridão e não ser capaz de fazer nada. Em sua mente, ele viu-a sentada
ao lado da cama de seu marido, Mikhail, com a mão frouxa entre as dela, as lágrimas não
derramadas brilhando em seus olhos.
Todos os poderes que tenho, minhas habilidades, minha formação, a matriz de sombra
e não posso salvá-lo...
Outra imagem mais escura levantou-se por trás dos olhos de Domenic, e parecia que
ele caminhava sozinho pelas ruas de Thendara. O anoitecer havia caído, se reunindo como
carvão fundido contra os prédios abandonados.
A visão de Alanna... Oh, deuses, não permitam que chegue a esse ponto!
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______ ______
LIVRO IV

______ ______

Capítulo 36

O funeral de Marilla Lindir-Aillard aconteceu alguns dias depois, quando ela foi
sepultada em uma cova sem marcação ao lado do Lago Hali. Domenic participou na sua
posição de Regente do Comyn e de Hastur, juntamente com Kennard-Dyan e seus dois
filhos. Illona insistira em ir também.
O D o m d e A l t o n | 334

- Embora eu não a tivesse conhecido, ela era minha avó e merecedora do meu
respeito. – Illona disse, antecipando as objeções de Domenic. - Não há soldados do Império
prontos em uma emboscada desta vez.
Marguerida e Lew tinham ficado em Thendara, continuando sua busca por uma cura
para a febre e lidando com o número crescente de vítimas. Embora ela não fizesse
nenhuma reclamação, Domenic sentiu que sua mãe teria gostado de assistir. A febre e o
medo que ela gerou, rasgou o próprio tecido da sociedade. Rituais como este funeral
ajudavam a mante-los unidos.
A tradicional cerimônia foi breve, com cada pessoa compartilhando em voz alta uma
memória da mulher falecida. Marilla não tinha sido uma pessoa fácil, ou abertamente
amorosa, e ainda assim cada enlutado destacou algo de positvo sobre ela. Talvez, Domenic
pensou, ela seja mais amada na memória do que na vida. Era uma coisa triste de se pensar
sobre qualquer um.
Agora o tormento de Marilla em vida tinha acabado. Ela estaria na terra, e as estações
do ano iriam passar, neve e chuva e flores, cada uma em seu tempo.
Por um momento, todas as tristezas do mundo cairam sobre os ombros de Domenic.
Seus sentidos de laran pegaram um leve gemido, como se o próprio planeta ecoasse seus
sentimentos. O céu brilhou, camada sobre camada de nuvens, e as gramíneas se inclinaram
na brisa intermitente.
Quantas sepulturas sem identificação haveriam mais nos próximos dias?
Após o funeral de Marilla, Danilo cavalgou para o acampamento do lado de fora dos
portões de Thendara. O local era muito maior do que ele esperava, tendo inchado
conforme a praga fazia mais vítimas. Seus alforjes continham pacotes de remédios de ervas,
chá de casca de salgueiro para reduzir febres, flor-dourada para ajudar no sono, e
cataplasmas de flores douradas para acalmar as feridas. Ele poderia ter mandado alguém,
mas queria ver por si mesmo como a rotação dos curandeiros de matriz que ele e Darius-
Mikhail tinham organizado estava funcionando.
Dentro do pavilhão do hospital, os homens estavam amontoados sob cobertores em
linhas. Outros homens, e mulheres também, se agachavam ao lado dos paletes, colocando
compressas nas testas ou servindo chás e xícaras de caldo.
Na extremidade Alanna se ajoelhava em uma cama improvisada. Ela usava um vestido
cinza e velho, tinha coberto o cabelo brilhante com um lenço simples. Tal era sua atenção
em seu trabalho que ela não viu Danilo quando ele passou pela porta. Fechando os olhos,
ela puxou o cobertor sobre o rosto de seu paciente. Ela sentou-se, com as mãos soltas em
seu colo, olhando exausta demais para chorar.
Varinna, a mecânica de matriz da cidade, veio cumprimentar Danilo. Ela também
parecia cansada, mas repleta de um novo orgulho e objetivo. Sua antiga atitude de defesa
O D o m d e A l t o n | 335

havia deixado seus traços. Ela e seus colegas foram, finalmente, reconhecidos como
profissionais qualificados e valorizados pelas Guardiãs reunidas.
Varinna aceitou os pacotes de ervas com um sorriso. - Estes são sempre bem-vindos!
Menella! – Ela chamou uma mulher que cuidava dos doentes, uma Renunciate pelos
cabelos bem cortados e por seus calções.
- Nossos agradecimentos, Dom Danilo. – A Renunciante disse, uma mulher simples de
meia-idade. - Nosso estoque de casca de salgueiro está quase acabando. Temos tentado
controlar as piores febres, pois alguns acreditam que é o calor e não a própria doença que
mata. Muitas vezes, o corpo queima por fora antes que possa se recuperar.
- Nós perdemos vários pacientes que poderiam ter sobrevivido se sua força não tivesse
sido esgotada. - Varinna acrescentou.
Danilo sabia pouco de cura, mas o que Menella disse fazia sentido. - Jeram teve notícia
de que um amigo seu tinha caído doente e pediu-me para vê-lo... Ulm, acho que é seu
nome. Quem é ele?
Varinna estava com sorriso que se iluminou ainda mais. - Venha ver por si mesmo.
Fora da tenda, um toldo bruto estava remendado com pedaços esfarrapados de pano,
o suficiente para manter alguém afastado do sol do meio-dia. Um velho estava sentado em
uma cadeira de acampamento improvisado na meia-sombra, um cobertor dobrado em
torno de suas pernas. Quando se aproximaram, Danilo percebeu a palidez sob a barba
grisalha, o rosto encovado. O velho virou a cabeça a sua chegada, os olhos brilhantes sob
sobrancelhas cinzentas, e levantou uma mão em saudação.
Este homem estava doente...e agora está se recuperando!
- Ele é nosso primeiro sucesso, - Varinna disse com um toque de triunfo em sua voz -
embora eu não possa reivindicar o crédito exclusivo. Suspeito que ele simplesmente é
demasiado teimoso para deixar uma praga mortal obter o melhor dele.
- Cuidado com quem você está chamando de teimoso. Está muito parecida com a
brasa reclamando do calor do fogo. - Ulm brincou. Sua voz era fina com um tom como o
granito. Danilo gostou dele imediatamente - E quem você trouxe para me atormentar hoje?
- Sou Danilo Syrtis e estou mais feliz do que posso dizer em ve-lo tão bem.
Ulm estreitou os olhos como se estivesse considerando o homem diante dele, leve de
constituição e vestido de forma simples, poderia realmente ser um Lorde Comyn. O
momento de dúvida passou. O velho enrolado na manta se esforçou para levantar.
Varinna insistiu que Ulm permanecesse sentado. - Você deve ficar quieto, ouviu? Nada
de ficar se movimentando! Se não você pode ter uma recaída, seu chervine velho e
teimoso. Ter você na enfermaria uma vez já foi o suficiente, duas vezes seria um insulto.
O D o m d e A l t o n | 336

Acomodado em sua cadeira, Ulm olhou para Danilo. Uma piscada contraiu o canto de
um olho. - É melhor eu obedecer, meu senhor. Ela tem uma língua tão afiada quanto o bico
de um banshee.
- Cuide da sua própria língua. - Varinna respondeu, claramente apreciando a réplica.
Ela colocou o cobertor de volta no lugar e foi para dentro da tenda, deixando os dois
homens para continuar a conversa.
Danilo carregava um registro escrito e colocou-o na extremidade de um banco
improvisado. - Seu amigo Jeram ficará satisfeito em saber de sua recuperação.
- Sim, ele está tão preocupado com seus velhos amigos que não pôs os pés no
acampamento. Não que eu me queixe, pois o que ele poderia fazer para nossa melhora? Ele
conseguiu concluir seu assunto ou foi tomado pela febre? Ou se desentendeu com o
Conselho?
- Jeram está bem, eu garanto. – Danilo disse. - Ele está agora mesmo nos laboratórios
do QG Terran em busca de uma cura. E você, meu amigo, pode muito bem ser a chave dessa
cura.
- Cura? - Ulm ficou em silêncio por um momento. - Então, ele tem algo melhor para
fazer agora do que voar através das estrelas.
- Jeram precisa de sua ajuda para isso. – Danilo disse.
- Minha ajuda? O que um homem velho como eu pode fazer. Eu que nunca pus os pés
fora de minha montanha, exceto para comprar um pouco de sal ou algumas fitas para
minha esposa? É com nozes e lenha, ou chervines selvagens, talvez, que visam derrotar essa
coisa?
- Não, não. - Danilo disse, sorrindo para si mesmo. - Jeram que poderá lhe explicar
melhor. Nesse assunto meu entendimento é tão pobre quanto o dos chervines que você
falou. Você está bem o suficiente para montar ou devo pedir uma maca?
Ulm disse que a única maneira de mante-lo deitado por muito tempo era depois que
ele estivesse morto, e, quanto a um cavalo, nada iria servir-lo melhor do que seu próprio
pônei. Varinna se opôs tenazmente contra a ida de Ulm a qualquer lugar mais distante que
sua própria cama. Danilo usou todo seu tato diplomático para convencê-la da urgência. No
final, Ulm declarou que o trabalho útil era o melhor remédio e Varinna cedeu. Mesmo
assim, ela insistiu que Ulm descasse, enquanto seu filho selava seu pônei.
Antes de saírem, Danilo voltou para dentro do pavilhão para falar com Alanna. Ela
tinha ido atender outro paciente. Ela segurava uma bacia de água com infusão de ervas e
um pano úmido em seu colo.
- Chiya, - ele disse suavemente - não havia nada que alguém pudesse ter feito pelo
paciente. Não se culpe.
O D o m d e A l t o n | 337

Ela olhou por cima de esponja na testa de uma mulher doente e ele viu que todo o
fogo em seus olhos verdes se apaga. A mulher desatou a tossir, trazendo bolotas de escarro
salpicado de sangue. Alanna esperou até que a tosse passasse e, em seguida,
delicadamente limpou os lábios da mulher e a face.
- Quanto tempo faz que você dormiu? - Danilo perguntou e Alanna deu de ombros. -
Você deve voltar para o castelo à noite para uma refeição quente e para sua própria cama,
está bem?
Alanna balançou a cabeça. - Farei uma pausa em um canto. Não faça cara feia. Devo
estar próxima se um dos pacientes precisar de mim.
- Criança, você precisa descansar ou vai ficar doente também.
Ela lançou-lhe um olhar feroz. - Esse é o momento que essas pessoas precisam de
minha ajuda e não vou ficar de braços cruzados enquanto elas sofrem.
- Alanna!
- Não vou ouvir mais nada! - Ela gritou, com uma paixão que o surpreendeu. Em suas
palavras, Danilo ouviu algo mais do que teimosia ou orgulho. Desespero, certamente.
Desespero?
- Fique então, - ele disse, sabendo que nada do que disesse iria fazer ela mudar de
ideia - e que os deuses cuidem de você.
Danilo achava que mesmo a viagem de curta distância do acampamento até o castelo
iria cansar o velho homem, mas, para sua surpresa, Ulm parecia tão confortável em seu
pônei da montanha quanto sentado em uma cadeira. A fera era mansa e Ulm não tinha
nenhuma necessidade de controlar ou a estimular. Os dois pareciam se entender
perfeitamente.
Ulm riu da preocupação de Danilo e disse que estar montado era um remédio tão bom
quanto qualquer outro. Danilo concordou, mas percebeu que Ulm se agarrou um pouco
mais forte no pomo da sela quando eles passaram pelos portões da cidade.
A Base Terran era estranha até mesmo para um homem de boa saúde, de modo que
Danilo convenceu Ulm a ir aos seus próprios aposentos no castelo, enquanto alguém ia
buscar Jeram. Pouco tempo depois, aquecido por uma lareira de verão, depois de ter
tomado uma sopa quente e cidra picante, Ulm cochilou.
Observando o sono do velho, Danilo lembrou que passara muitas horas na mesma
cadeira. Ele sentiu-se velho e inútil, corroído por dentro por uma incessante dor.
Ulm está certo. O melhor remédio é saber que somos necessários, que importa se a
gente vive ou morre.
Danilo despertou de sua meditação com uma batida na porta. Quando Jeram entrou,
Danilo levantou um dedo aos lábios e apontou para Ulm, agora roncando suavemente.
Franzindo a testa, Jeram sussurrou: - Eu não quis dizer para você tirá-lo de seu leito!
O D o m d e A l t o n | 338

- Ele só está cansado do passeio. - Danilo sussurrou de volta. - Não havia tempo a
perder e ele recusou uma maca.
- O que foi? - Ulm endireitou-se com um sobressalto e olhou em volta. - Jeram! Como
é bom ver você. Eu só estava descansando os olhos.
Jeram caminhou até o velho e pegou sua mão. - É bom ver você, meu amigo.
- Sim, rapaz, apesar de você não ser exatamente uma bela visão feminina.
Jeram sorriu. Sombras arroxeadas estavam embaixo de seus olhos e ele estava na
óbvia necessidade de fazer a barba.
Danilo disse firmemente: - Eu não trouxe este homem aqui para um encontro social,
mas sim porque ele se recuperou da febre.
Por um longo momento, Jeram encarou Ulm com os olhos arregalados. Ele sussurrou
algo em em Padrão Terran, uma oração de agradecimento, talvez.
- Ulm, é verdade? - Jeram perguntou. - Você resistiu a doença?
- Sim, já estou melhor, embora um pouco vacilante das pernas. É preciso mais do que
uma febre para me colocar em meu túmulo.
Do aparador de madeira pesada, Danilo trouxe para Jeram uma caneca de cidra, ainda
quente e aromática. - Eu disse apenas que precisávamos dele. Achei melhor assim do que
explicar o porquê.
- Alguns disparates sobre encontrar uma cura. - Ulm disse. - Os deuses querem que eu
viva e por isso estou aqui.
- Talvez tenha sido a vontade dos deuses, - Jeram disse cuidadosamente - mas como
eles puderam realizar este milagre, é algo que nós, os homens podemos repetir. Vou tentar
explicar.
Jeram sentou numa cadeira indicada por Danilo. O estofamento confortável de couro
rangeu sob seu peso. Ele tomou um gole de cidra, fez uma careta, e colocou a caneca sobre
a mesa baixa. – Vamos falar sobre nossa luta contra a febre como se fosse um exército que
podemos derrotar. De certa forma, ela é. Um pequeno exército, com muitos milhares de
soldados, e o campo de batalha é o seu próprio sangue.
Ulm olhou para seu peito com uma expressão cética, mas não protestou.
- Para derrotar esse exército, - Jeram continuou - o corpo cria seus próprios soldados.
Às vezes, os defensores são poucos e atacam muito tarde. No seu caso, no entanto, eles
eram fortes e inteligentes. Eles venceram. Se o inimigo tentar outra invasão, ele será
imediatamente atacado.
Ulm balançou a cabeça em compreensão. - Tis me disse que qualquer homem que
sobrevive da febre das trilhas não fica doente de novo. E há doenças que atuam da mesma
forma.
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- Sim, um caso da febre confere imunidade ao longo da vida. Você sabe que sou
Terranan e tenho formação em suas ciências. O que eu quero fazer, com sua permissão, é
criar o suficiente desses seus soldados para proteger os outros doentes. Um exército
mercenário, se quiser pensar nele assim, que podemos enviar para qualquer lugar.
A expressão de Ulm era tão incrédula que Danilo pensou que se o orador fosse outro,
ao invés de Jeram, o velho teria rido na sua cara. Danilo sugeriu que quando ele estivesse
bem descansado, eles poderiam ir até o laboratório onde Ulm poderia ver por si mesmo. O
velho concordou e eles deixaram o Castelo rumo ao QG Terran.
O Centro Médico estava fervilhando de atividade. As mesas de trabalho do laboratório
estavam cheias de séries de placas reluzentes de metal alinhadas e cobertas com outras
placas do vidro mais impecável que Danilo já tinha visto. Haviam tubos ligados a copos e
frascos diversos, saca-rolhas transparentes e coisas estranhas. Alguns líquidos eram
incolores, outros pareciam ser caldos, mas Danilo não sabia o que realmente eram. Uma
equipe de homens e mulheres, algumas Renunciantes e a amiga de Marguerida, Katherine,
moviam-se pelo laboratório, verificando o funcionamento de equipamentos de pequeno
porte, medidores de líquidos em tubos graduados, preparando misturas.
- Pelos infernos de Zandru! - Ulm murmurou. - Quem poderia pensar que tal lugar
existe?
Um dos trabalhadores interrompeu o que estava fazendo e correu em direção a eles. -
Jeram! Aldones seja louvado, você está de volta. O sequenciador de protease marcou 60%
de efciência, mas o reagente está contaminado. Vai demorar dois dias para sintetizar outro
lote.
- Está tudo bem, Ethan. - Jeram disse, batendo no ombro do jovem. - Vou olhar em um
minuto. Venha por aqui, Ulm, e você, também, Dom Danilo. - Ele os levou para uma sala
tranquila num canto. As paredes cheias de prateleiras eram ocupadas com vários
dispositivos estranhos de plástico, metal e vidro. Uma mesa alta se dobrava para dar
espaço de trabalho.
- Seu corpo, Ulm, fez em poucos dias o que eu levaria decanatos para fazer com todo
esse equipamento.
Ulm olhou para o chão e se perguntou se isso era verdade, por que tantos haviam
morrido?
- Porque este é um agente particularmente virulento. - Jeram disse. - Ele age de modo
rápido e gera uma febre tão alta que a maioria das pessoas não tem tempo para produzir
anticorpos suficientes.
- Então, esses são os primeiros a morrer? - Danilo disse.
Jeram colocou uma cadeira ao lado do armário e fez um gesto para Ulm se sentar. - Se
pudéssemos manter os pacientes vivos por mais tempo, eles poderiam se recuperar. Essa é
O D o m d e A l t o n | 340

uma das abordagens que venho tentando, usando medicamentos que retardam a taxa de
replicação viral. Agora - ele olhou para Ulm - podemos usar seus anticorpos como um
modelo, um conjunto de instruções para que possamos dar às pessoas doentes o mesmo
nível de resposta imune que acabou de desenvolver. Se fizermos isso direito, então ele vai
mudar de forma, se transformando em um vírus inofensivo.
Ulm parecia confuso e assustado. Seu olhar cintilou sobre a sala, com seu
equipamento estranho, com a agitação e atividade incompreensíveis. Danilo, que tivera
anos de contato com os de fora do mundo não entendera metade das coisas que Jeram
dissera. Como Ulm poderia compreender o que lhe era pedido? Como ele poderia dar o seu
consentimento?
- Isso só vai levar um minuto. - Jeram disse para Ulm sentar enquanto ele vasculhava
as prateleiras e trouxe uma caixa plana coberta com paineis de vidro escuro. Ele colocou a
caixa no armário e tocou os paineis ao seu lado. Uma mistura de luzes coloridas piscou em
toda a sua superfície.
Danilo conhecia um pouco da medicina Terran. Doar uma amostra de sangue não era
nem perigoso, nem doloroso. Com seu laran, ele sentiu a mudança no velho do espanto
para terror.
Gentilmente, Danilo pegou Ulm pelo braço. - Deixe-me fazer primeiro. Jeram, você vai
tirar meu sangue e explicar para Ulm o que está fazendo.
- Vai dom! – Ulm disse, atordoado. - Você não deve sangrar por mim!
Danilo silenciou-o com um gesto, em seguida, sentou-se calmamente enquanto Jeram
levantava sua manga e tirava uma amostra. Ele não tinha medo de derramar o próprio
sangue. Ele teria dado tudo e até sua própria vida para defender Regis.
O procedimento só durou alguns minutos e, em seguida, foi a vez de Ulm. As
sobrancelhas esbranquiçadas levantaram um pouco com o toque do torniquete
automatizado, mas Ulm não deu nenhum sinal medo ou desconfiança.
- É só isso? - Ulm perguntou, desenrolando a manga.
- Por enquanto, sim. – Jeram disse. - Nosso trabalho será o fracionar e analisar a
amostra que você nos deu. Uma vez que tenhamos programado os sequenciadores, os
computadores irão fazer o resto. Ulm, não posso dizer o quanto sou grato, todos nós
somos. Sua atitude pode ter salvo milhares de vidas em toda Darkover.
- Bem, eu nem sabia que isso existia. – Ulm disse, parecendo desconfortável.
- Falando em nome do Conselho Comyn, assim como no meu, estamos em dívida com
você. – Danilo disse. - Você aceita minha hospitalidade no Castelo?
Ulm balançou a cabeça. – Não...o que eu faria em tal lugar? Além disso, Rannirl vai se
preocupar se eu não voltar. Meu lugar é no campo e quero voltar para casa antes da neve
fechar as passagens.
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- Você veio para Thendara pedir ajuda e não vai voltar de mãos vazias. Vamos pelo
menos mostrar a nossa gratidão. – Danilo disse.
Por um momento, a expressão de Ulm assumiu o aspecto de um falcão recém
libertado de sua capa. - Eu não vim pedir gratidão. Justiça apenas. Apenas o que nos é
devido.
Danilo tinha segurado aves de rapina quando criança e ele reconheceu o flash de
orgulho. Quaisquer outras ofertas só envergonhariam esse idoso e orgulhoso homem. -
Então deixe-me ir com você de volta para o seu povo - disse ele gravemente - enquanto
você me explica exatamente qual é o seu problema e porque você veio para Thendara em
busca de seus direitos.

Capítulo 37

Jeram ficara otimista no primeiro momento, tentando produzir o soro imune da


amostra extraída do sangue de Ulm, realizando testes em tubos de ensaio e simulações no
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computador. Quando tentou sintetizar, no entanto, ele se deparou com o fracasso. Algo na
amostra, algum traço incorrigível no caos bioquímico, desafiava a replicação.
Ele correu o programa de montagem de proteínas quatro vezes e veio com quatro
resultados diferentes e igualmente inúteis. Cada um parecia fazer sentido, mas, quando o
testava, as proteínas ficavam fisiologicamente inertes. Ele não achava que as montagens
moleculares estivessem erradas, de modo que o problema devia estar na informação que
ele colocara no computador.
No laboratório, Jeram olhou para a tela do computador, seus olhos lacrimejando pela
falta de sono de uma segunda noite acordado a base de café, e conteve-se para não socar a
tela. Pelo menos, ele estaria fazendo algo, em vez de repetir os mesmos testes fúteis.
Jeram limpou a tela e se inclinou para trás. A cadeira rangeu sob seu peso. Nesse
instante ele percebeu que não estava sozinho no laboratório. Ele virou a cabeça, com as
articulações do pescoço estalando.
Marguerida parou à porta, envolta em um xale grosso de lã verde com pontos marrons
entrelaçados. - Quando foi a última vez que você dormiu?
- Domna, não me atormente. Preciso de um milagre, não de uma mãe.
- Tomarei notas sobre isso. - Ela deu um sorriso auto-depreciatvo e trouxe uma
segunda cadeira. - Agora, me diga o que está acontecendo.
- É o que não está acontecendo. - Ele digitou o algorítimo de codificação da última
analise na tela e explicou o problema.
Marguerida assentiu, com olhos pensativos. Ela podia não ter formação científica
avançada, Jeram lembrou a si mesmo, mas ela cursara a Universidade, era educada e
letrada, uma mulher inteligente que tinha sido exposta a uma variedade de culturas e tinha
se adaptado com sucesso à elas. Às vezes, ele se esquecia que ela não era darkovana.
- Eu sou e não sou. – Ela disse distraidamente, respondendo ao seu pensamento. -
Nasci aqui e passei meus primeiros cinco anos em Thendara, a maior parte desse tempo
num orfanato. Depois da crise de Sharra, meu pai me levou embora. Eu cresci em Thetis.
- Um mundo muito diferente deste. - Jeram tinha ouvido falar do clima agradável e
aconchegante e dos mares rasos daquele planeta.
- Voltar para Darkover aos vinte anos foi uma experiência estranha. Não tinha quase
nenhuma lembrança deste lugar e ainda assim me sentia em casa. Sabia coisas que eu não
poderia ter aprendido. Quando recuperei meu laran é que tudo começou a fazer sentido.
Era como se eu me lembrasse de quem eu realmente era. Não sei o que teria feito sem
Istvana e meus outros professores em Neskaya. Estaria louca, eu acho.
Jeram olhou para o passado, pensando em como suas histórias eram semelhantes.
Não de onde nascera, mas as memórias reprimidas e as recém despertadas habilidades
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psíquicas, a forma como seus passados tinham sombras, e os mestres que haviam salvo a
sua sanidade mental.
- Eu me pergunto... - ela disse - ...se você conhece o monitoramento por laran?
Jeram respondeu que tinha sido feito nele na Torre Nervasin. Intrigado, ele perguntou:
- Por quê?
- Aprendi um pouco, primeiro em Arilinn e depois em Neskaya. É o nível mais básico de
treinamento nas Torres. Nunca tive o desejo de ir mais longe, mas qualquer um que saiba
monitorar deve ser capaz ver um sentido e também pode ajustar e ativar os processos
fisiológicos dos que não estão ao seu cuidado: respiração, por exemplo, ou as batidas do
coração. Até mesmo os níveis hormonais.
Jeram balançou a cabeça, confuso. Ele sabia que ela tinha uma teoria, mas ele estava
muito cansado para seguir sua lógica.
- Como esse anticorpo pode ser diferente de outras substâncias naturais do corpo
humano? - Ela perguntou. - Se um círculo treinado, trabalhando sob a direção de uma
Guardiã, pode separar os átomos de cobre a partir de um minério bruto, então é lógico que
também podem ser capazes de completar sua análise.
- Não sei... É algo bastante complicado. Se os computadores não podem lidar com
isso...
Outra parte da mente Jeram insistiu que ele estava pensando como um terráqueo
cego-mental, tentando a mesma coisa de novo e de novo, na esperança insana de conseguir
um resultado diferente. Talvez fosse hora de começar a pensar como um darkovano.
Marguerida pressionou, sua voz ganhando certeza. Seus olhos dourados brilhavam
fracamente, como se um fogo interior tivesse saltado para a vida. - Talvez os computadores
não possam replicar os anticorpos darkovanos porque há mais do que uma simples cadeia
de moléculas. Talvez haja uma outra dimensão, como o laran que temos.
- Certamente, suas habilidades psíquicas vão além de qualquer coisa no Império. -
Jeram admitiu. - Eu tenho algum laran...
O suficiente para confundir-me quando você apagou minhas memórias.
Marguerida se encolheu visivelmente ante seu pensamento.
- Laran é apenas um traço humano, desenvolvido por meio da seleção natural e
isolamento. – Jeram disse. - Os computadores devem compensar a deriva genética.
- É aí que você está errado. – Marguerida disse. - Não há dúvida de que Darkover foi
colonizada por uma nave perdida. Algum tempo depois de cair em Darkover, se as histórias
são verdadeiras, as mulheres humanas tiveram filhos e filhas dos chieri... - Vendo o olhar de
confusão de Jeram, ela explicou: - Uma raça não-humana sapiente, fortemente telepática,
hermafrodita e de vida extremamente longa. Eles podem estar extintos agora, mas pelo
menos um ainda estava vivo durante o tempo de Regis Hastur. Linnea ou Danilo podem
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saber o que aconteceu com ele, ela, eu não tenho certeza. A lenda diz que o nosso laran se
originou com eles. Você pode ver traços de sua herança genética no Comyn, não só o nosso
laran, mas os seis dedos que muitos de nós têm, assim como os olhos claros e a
constituição delgada.
- Isso ainda não explica por que não posso replicar as imunoglobulinas do sangue de
Ulm. - Jeram disse obstinadamente. - Em primeiro lugar, o doador não é do Comyn, e
segundo, como eu lhe disse, os protocolos do computador já incluem os ajustes
necessários.
- Isto é, se as mudanças forem puramente físicas. - Marguerida disse. Ela fez uma
pausa, esfregando os dedos em suas têmporas e murmurando baixinho sobre essa dor de
cabeça maldita. - E se houver um campo de laran em torno da molécula de proteína, uma
vibração psíquica, algo que não pode ser medido por instrumentos comuns? Algo que
poderia ser percebido e manipulado por uma mente telepática treinada? Eu sei que soa
fantástico, mas, nos vinte e poucos anos que vivi neste planeta, eu já vi mais coisas do que
sonha a filosofia de qualquer pessoa.
Era uma ideia extravagante como Jeram nunca tinha ouvido falar e metade do seu
cérebro queria dizer isso para Marguerida. Mas que ideia melhor ele tinha para oferecer?
Já é tempo de pensar como um darkovano. Ele repetiu para si mesmo.
A decisão de realizar um ensaio na base de dados Terranan ou na recém reformada
Torre Comyn, bem como todas as disposições posteriores, levou muito mais tempo do que
o esperado por Jeram. Ele sabia que normalmente, a Guardiã simplesmente decidia as
coisas, e que sua palavra era lei. Esse círculo, no entanto, era formado por Istvana Ridenow,
Linnea Storn que tinha sido consorte de Regis Hastur, Moira DiAsturien, e Laurinda
MacBard, com Illona agindo como monitora. Cada uma delas estava acostumada a ter seu
próprio circulo e eram extremamente corteses umas com as outras, as discussões eram
obstinados exercícios de diplomacia.
Por fim, as Guardiãs concordaram que, apesar das vantagens de trabalhar no Centro
Médico Terran, com suprimentos a mão e onde os seus resultados poderiam ser facilmente
verificados por análises de computador, elas preferiam um local em que poderiam ficar
seguramente blindadas. A Base Terran fornecia apenas uma proteção frágil contra o medo
e a raiva que permeava a cidade. A Torre Comyn, por outro lado, tinha sido projetada para
isolar as mentes daqueles que trabalhavam dentro.
Apesar da relutância de Jeram em realocar as amostras, Marguerida aceitou a decisão
como um fato consumado. Ela recrutou Ethan e seus amigos para transportar as amostras
de sangue, reagentes e vários instrumentos portáteis que Jeram achava indispensáveis.
A Torre, ele sabia, tinha sido abandonada por muito tempo. Outra Torre, falada em
sussurros tensos como sendo de Ashara, tinha funcionado de uma forma ou outra, até
O D o m d e A l t o n | 345

muito recentemente. Ele perguntou a Marguerida porque ela não estava em uso e ela
fingiu não ouvir.
Governantas tinham claramente sido colocadas no trabalho da Torre por Marguerida,
pois o hall de entrada e escadas estavam salpicados de tapetes tecidos intricadamente e
colocados sobre o piso de pedra. A sala que iam usar ficava a três quartos do caminho até
chegarem a Torre em si, um espaço chamado por Marguerida de laboratório de matriz,
embora Jeram não pudesse se imaginar fazendo experimentos ali.
A sala era surpreendentemente leve, arejada. Paineis de pedra azul translúcidos eram
alternados com o granito das paredes. Um aparador trazia uma série de bolos, tortas,
doces, mel, nozes, vinho e bebidas. Com uma boa dose de agitação, o equipamento do
Centro Médico foi organizado em uma mesa redonda, e bancos e almofadas foram trazidos
para todos.
Depois de Ethan e seus amigos sairem, um silêncio caiu sobre a sala. Laurinda MacBard
tomou o lugar centripolar. Desde seu primeiro encontro, Jeram não foi tratado com
intimidade, mas ela o tratava com escrupulosa educação. As outras Guardiãs se reuniram
em volta da mesa, com Illona sentada em um banco afastado em um dos lados. Marguerida
levou Jeram a um assento ao longo da parede oposta.
- Eu preciso explicar-lhes... – Ele começou.
- Elas vão saber. Illona diz que já fez contato com você antes. Ela será monitora, mas
também vai estar facilitando o contato com você.
Com a saída de Marguerida, o trabalho começou. As mulheres no círculo colocaram
suas matrizes sobre a mesa em torno do frasco contendo uma amostra de sangue de Ulm.
O brilho cambiante das pedras era hipnótico e lentamente se intensificou. Então, enquanto
Jeram observava, a luz se transformou em um anel e depois se espalhou pela sala. Foi
banhando o rosto das Guardiãs com um brilho pálido, misterioso. Jeram fechou os olhos
contra o brilho...
...Ele sentiu um leve toque, suave como seda, no interior do seu crânio. Embora não
soubesse dizer como, ele reconheceu a presença mental de Illona e, através dela, a de
Laurinda.
Por um longo momento, ele pairava, suspenso em um mar de neblina azulada e fria,
com globos pulsantes da mesma luz. Gradualmente, as cores mudaram, de modo que ele
viajou entre discos vermelhos, em um mar de líquido dourado. Os discos desbotaram para
meros fantasmas de energia residual das células vermelhas do sangue. A visão mudou,
como se ele estivesse se aproximando de um sistema planetário do espaço. Ele passou
entre as esferas de cor e energia, algumas tão grandes como gigantes de gás, outras como
cinturões de asteróides pequenos. Estes não eram objetos celestes, mas partículas de
tamanho infinitesimal.
O D o m d e A l t o n | 346

Um som como um vasto oceano encheu sua audição. Ele se encolheu ainda mais e
percebeu que o mar dourado não era inteiramente líquido. Formas emergiram das
correntes, fios tênues, complexos e glóbulos, os nodos minúsculos de eletrólitos, nutrientes
e resíduos.
Mostre-nos. Uma voz distante sussurrou, tão sutil que não perturbou a dança lenta
flutuante das moléculas. Qual deles?
Como ele poderia dizer? As longas cadeias imensamente complexas apareceram cada
vez maiores. Havia dezenas delas, todas diferentes. Com esforço, ele buscou uma imagem
do padrão na tela do computador. Algumas partes da molécula se assemelhavam a
qualquer outra imunoglobulina, mas certas partes específicas... Ele forçou a concentração
para colocar a configuração em um foco.
Ah, sim! A voz responde suavemente.
Ele acordou com náuseas e levantou-se com sua garganta ardendo com ácido
estomacal. Ele piscou, seus olhos focando com relutância.
Illona se inclinou sobre ele, uma mão em seu braço, e pediu-lhe para fechar os olhos.
Doente e desorientado, Jeram obedeceu. Ele sentiu um toque frio em sua testa e seu mal-
estar desapareceu.
Quando abriu os olhos novamente, Illona estava sorrindo para ele. As mulheres do
círculo haviam levantado, algumas faziam alongamentos, outras caminhavam para a
comida e bebida que tinha sido colocada sobre o aparador. Eles tinham, Illona explicou,
trabalhado por mais de uma hora e era muito tempo para quem não estava acostumado a
isso. Ao seu conselho, ele comeu frutas, doces e algo parecido com damascos secos, o que
o ajudou a acalmar os nervos.
Com um aceno de cabeça, como reconhecimento de um igual, Laurinda entregou-lhe
um pequeno frasco de soro.
Assim que Jeram se sentiu firme o suficiente, levou a amostra para o laboratório do
Centro Médico. Excitação e emoção corriam por sua espinha, varrendo os últimos
resquícios de cansaço, enquanto observava a mudança de indicadores.
Positivo... Positivo...
Marguerida se juntou a ele um pouco mais tarde, quando a simulação de computador
confirmou os resultados do novo soro. - Então?
Ele sorriu. – Abra o champanhe. Nós ainda precisamos de um teste decisivo, um
paciente vivo, mas sim, acho que nós temos um soro biologicamente ativo aqui.
No final, Jeram decidiu testar o soro em três pessoas nas clinicas da cidade, cada uma
em um estágio diferente da febre. A mais doente era uma mulher jovem que estava
inconsciente desde o dia anterior, com seu corpo irradiando calor como um forno.
O D o m d e A l t o n | 347

Na manhã seguinte, a febre de todos os três pacientes tinha passado. Ao longo dos
dias seguintes, até a mulher que estava gravemente doente foi capaz de se sentar e comer
um pouco.
Jeram mandou informar a Domenic e depois voltou para a Torre Comyn para pedir que
Laurinda voltasse a reunir o círculo. Ela recebeu-o na cozinha. Quando ele entrou, ela
estava amassando um pão em uma mesa de trabalho enfarinhada, ritmicamente dobrando
e empurrando a massa elástica. Com o cabelo amarrado para trás em um lenço listrado,
suas mangas enroladas até os cotovelos, e sua testa brilhando de suor, ela parecia uma
camponesa, não a Guardiã da Torre Dalereuth.
- Oh, é você. – Ela disse. - Sente-se, mas não fale até que eu tenha isto pronto.
Laurinda alisou a massa em uma tigela de barro grande, raspou a farinha da superfície
da mesa até ela estar limpa, lavou as mãos, e sentou-se de frente para ele. - Me sinto quase
humana novamente. E, se eu me guiar por sua expressão de alegria e o fato de que você
está praticamente gritando mentalmente, você tem uma boa notícia.
- O soro funcionou melhor do que esperávamos! - Ele disse. - Quando podemos ter
mais?
- Isso depende de quanto você precisa. - Ela respondeu pesadamente, enxugando o
rosto com o lenço.
Um frio correu na espinha de Jeram. - Precisamos do suficiente para tratar todos que
estão doentes. Achei que tivesse entendido. - Ele deu os números atuais de Darius-Mikhail.
- Nós também precisamos começar um programa profilático, começando com os
profissionais de saúde. É claro - ele continuou, tentando soar encorajador - que a
distribuição vai levar tempo. Nós não precisamos de tudo de uma vez.
Laurinda balançou a cabeça. - Seu coração é bom, mas você não entende o que está
pedindo. Um círculo de Guardiãs, as mentes mais poderosas de Darkover, levaram uma
hora inteira para produzir o que lhe demos.
- Que só foi suficiente para uma dúzia de pacientes. - Jeram disse.
- Isso é tudo que podemos fazer de qualquer maneira. O trabalho com laran é
exaustivo à nível físico e psíquico. Vai levar dias para recuperarmos a força suficiente para
fazer o trabalho. - Sua expressão suavizou. - Vamos fazer mais soro para você, não tema.
- Só que não de uma só vez ou em qualquer quantidade maior?
Os olhos de Laurinda piscaram e, nesse breve instante, Jeram entendeu sua própria
frustração.
Não era de admirar que ela estava sovando uma massa de pão.
Nós chegamos tão perto! Deve haver outra maneira, outra coisa que possamos fazer!
O D o m d e A l t o n | 348

- Vocês todas são Guardiãs. - Jeram disse desesperadamente. - Cada uma é a cabeça
de um círculo, de modo que nós temos quatro ou cinco círculos. Que tal trazer as outras
Torres para ajudar?
- Mesmo que fosse possível, o trabalho levaria muito mais tempo, por isso não haveria
vantagem em dividir nossas forças. - Laurinda disse. - Como sabe, não há trabalhadores
suficientes para os círculos em Thendara, talvez nem em todos os Domínios, para fazer o
que você pede. Nesse momento somos poucos e dispersos.
Jeram engoliu em seco, lembrando o quão chocados Lew e Silvana tinham ficado por
seu desejo de livrar-se de seu laran.
- O que devemos fazer então? - Ele gritou. - Deixar as pessoas morrerem, quando
sabemos como salvá-las?
- Estou mais triste do que posso me expressar, - Laurinda disse - mas não poderemos
ajudar ninguém se estivermos mortas ou esgotadas.
Jeram esteve uma vez a frente de um feixe uma arma de raios. Doente e abalado, ele
tinha sido confinado em um tanque de rejuvenescimento da pele, e teve o sistema nervoso
e muscular curados. Agora, ele se sentiu como se tivesse levado um tiro certeiro na barriga.
Entorpecido, ele caminhou da Torre através do pátio, passando pelos portões do castelo e
para além da cidade. Alguém gritou para ele, mas ele não tinha a vontade ou a voz para
responder.
Enquanto achava que não poderia realizar nada, além de assistir as pessoas que amava
e o planeta morrer, ele ficara conformado. Mas isso era muito, muito pior.
Alguns vão viver e alguns vão morrer. Quem vai decidir?
O Conselho? Será que o Comyn vai aproveitar a oferta pequena de soro para si? Não,
ele não podia acreditar nisso. Ele conhecia o suficiente de Lew, Domenic e Danilo, sim, até
Marguerida, para acreditar que eles agiriam de maneira egoísta.
Eu? Será que vou ser o único a lidar com a decisão de vida ou morte?
Ele caminhou ao longo das ruas, através de redemoinhos de atvidade. Até mesmo o
medo da peste não podia manter todos dentro de suas casas. A vida devia ser vivida e o
verão de Darkover era muito breve. Em uma praça do mercado, metade das barracas
estavam vazias, mas outras estavam carregadas de alimentos e produtos de couro
finamente trabalhados, facas, arreios, lenços e fitas. Um músico cantava enquanto outro
dedilhava um violão e uma menina dançava. Em um beco, dois meninos esfarrapados
jogavam com aros e paus. Em meio a tudo isso, Jeram se movia como um fantasma.
Seus pés o levaram até a entrada da Base Terran. Eu sou o único com o treinamento.
Cabe a mim encontrar outra maneira. Deve haver algo mais...
O D o m d e A l t o n | 349

No laboratório, sua equipe correu para encontrá-lo. Eles notaram que Jeram estava
nervoso e exausto, desgastado com o trabalho e preocupação implacáveis. Seus sorrisos
desapareceram quando viram sua expressão.
- Qual é o problema? - Ethan perguntou.
- O que mais pode dar errado? - Alguém disse.
- Na taxa máxima, o círculo das Guardiãs só pode produzir pouco soro, apenas poucas
doses. - Jeram disse. - Nós vamos fazer mais, é claro, mas vai ser muito pouco, e será muito
tarde.
Ethan desviou o olhar, mordendo o lábio inferior. - Meu primo, Geremy, está doente.
Nós não teremos o soro a tempo para ele, não é?
- Não sei. - Jeram disse procurando palavras. Haviam algumas doses do lote que o
círculo tinha feito. Eles usaram três das doze que as Guardiãs tinham produzido. O que
deixava nove doses restantes. Ele poderia dividir o soro para dez, se ele se atrevesse a
diluir. Se ele usasse uma dose para o primo de Ethan, seria roubo? Quem iria morrer, então,
poderia ter vivido?
Como é que vamos decidir?
- Jeram, eu gostaria de falar com você.
Perdido em seus próprios pensamentos torturados, Jeram não tinha visto Marguerida
entrar no laboratório. A energia dela era como aço temperado. Ethan e os demais se
afastaram para deixá-la passar. Ela moveu-se rapidamente entre as bancadas de
equipamentos.
- Tenho uma ideia, uma maneira de contornar o problema de produção, - disse ela -
mas vamos ter que esvaziar e limpar o laboratório. Não posso arriscar.
Seu plano parecia misterioso e um tanto sinistro para Jeram, mas poderia ser pela sua
falta de sono e porque estava cansado até os ossos. A última ideia dela, ele lembrou a si
mesmo, tinha sido boa. Dentro de pouco tempo, ela com muito tato e firmeza, conseguiu
dar tarefas ao resto da equipe em outros lugares, por isso não haviam mais ruídos.
- Vou precisar de um espaço de trabalho com absoluta privacidade, - ela disse
rapidamente - e uma amostra do soro original feito pelo círculo e da solução de substrato
de proteínas.
Certamente ela tinha enlouquecido, Jeram pensava. A equipe havia realmente
preparado uma grande quantidade dos blocos de aminoácidos para serem transformados
em soro. O círculo de Guardiãs tinha trabalhado com uma mistura pastosa, os ingredientes
dissolvidos em uma solução estéril. Jeram carregou o tanque de armazenamento em um
carrinho para o laboratório e montou o resto das amostras que Marguerida pediu, incluindo
uma pequena amostra do soro imune de Ulm. Ele colocou uma cadeira entre o tanque e
mesa de trabalho virados em sua direção.
O D o m d e A l t o n | 350

Depois de se certificar que tudo estava fácil de alcançar, Marguerida assentiu com
satisfação. - É melhor você ir também.
A suspeita brotou dentro de Jeram. Ela tinha um laran forte, mas, tanto quanto ele
sabia, nenhuma pessoa podia atuar sozinha como um círculo. Não era perigoso trabalhar
sem um monitor? Ele perguntou o que ela estava se propondo a fazer.
- Você vai ter que confiar em mim. E não, eu nunca fiz isso antes, mas não quero
arriscar que nada aconteça com você. - Ela fixou-o com o olhar de tigre brilhante. - Agora
vá.
Jeram caminhou até a porta e saiu, mas não a deixou fechar completamente. Ele
deixou uma fresta aberta e parou do lado de fora, onde ela não seria capaz de vê-lo. O
único som no interior do laboratório era sua respiração, rápida e leve.
Ele inclinou-se para a fresta, espiando. Marguerida estava inclinada sobre o tanque,
como se tentando penetrar seus segredos ou, por força de vontade, transformá-lo no soro
para salvar vidas.
Um rendilhado de relâmpagos crepitou no interior do crânio de Jeram. Marguerida
estava usando seu laran.
Ela estava planejando algo perigoso ou não iria fazê-lo secretamente. Qualquer
monitor devidamente treinado certamente iria deter a operação agora.
Ela sabia o que estava fazendo? Será que ela percebia o risco?
Jeram ia colocar uma mão na porta, mas recuou. Sua própria vida fora uma série de
riscos, desde que fugiu para as Heller quando a última nave do Império partiu, confiar
Silvana, Illona e Lew, ou ao fazer sua confissão ao Conselho.
A praga tinha eliminado toda a segurança, todas as opções previamente testadas.
Marguerida, com seu marido, tinham protegido o Conselho uma vez, na Batalha da Antiga
Estrada do Norte. Se houvesse uma possibilidade, mesmo que remota, de que ela pudesse
ter sucesso agora, ele não tinha o direito de interferir. O risco era dela.
Lentamente, sem tirar os olhos do tanque, Marguerida tirou a luva. A pele na parte de
trás de sua mão parecia bastante comum, pálida por ter sido coberta por tanto tempo.
Então ela levantou a mão e colocou-a sobre o tanque. Jeram descartou a noção do que era
ser comum.
Impressa em sua palma, fundida à sua carne, algo brilhava em azul e branco, como
uma pedra da estrela viva. Isso era impossível, como poderia o cristal psicoativo estar
dentro de sua mão? E, no entanto, lá estava ele e, a cada momento que passava, pulsava
com mais intensidade.
Jeram observava, incapaz de afastar o olhar e ainda cheio de um sentido crescente de
pavor. Ele havia visto o trabalho da matriz na mão de Marguerida antes, em circunstâncias
muito diferentes.
O D o m d e A l t o n | 351

...A Batalha da Antiga Estrada do Norte, a caravana com o cortejo funerário e homens
a cavalo. Gritos, cavalos relinchando, tumulto. Espadas erguidas...
... Uma mulher com o cabelo dourado e os olhos em chamas, levantando a mão...na
mão dela, uma estrela de brilho escaldante...
Ele pensou, naquele momento antes das árvores pegarem fogo e os homens caírem
gritando na terra enlameada, que ela segurava um sol em miniatura, um dispositivo nuclear
de mão, além da tecnologia do Império.
Mesmo do outro lado da sala e por trás da porta de metal e plástico, Jeram sentiu seu
poder.
Através de seu laran, ele experimentou sua capacidade de perceber e manipular
moléculas.
O tempo perdeu o significado para Jeram, exceto pela conscientização gradual de que
ele já não era um observador. Inconscientemente, sua mente entrou em harmonia com a
dela. Embora ele não soubesse como, começou a enviar sua energia mental. Ela a pegou,
girou-a juntamente com seu laran e canalizou através da matriz em sua palma.
Um brilho surgiu através de suas mentes ligadas. Aminoácidos foram deslocados,
alinhados, ligados. Padrões surgiram, espelhando os de sua memória. De seu trabalho com
Laurinda e as outras, Jeram reconheceu as moléculas que se formavam no centro do
tanque. Trabalhando sozinha, esta única mulher havia criado a mesma quantidade de soro
imune que um círculo completo de Guardiãs tinha feito.
Um brilho varreu o substrato dissolvido. No primeiro momento, Jeram sentiu-o como
uma onda em um lago tranquilo. Em seguida, ondas se deslocaram. A reverberação surgiu,
inicialmente sutil, em seguida, aumentando em intensidade. Por fim, todo o recipiente
ficou cheio da solução. Aqui e ali, as proteínas vibraram em harmonia com nítida
ressonância. Ele sentiu a vibração ir mais longe e mais fundo para eliminar as impurezas e
moléculas inativas.
De alguma forma, além de toda a possibilidade, Marguerida estava usando a matriz e a
imensa força de sua mente para converter o tanque inteiro em soro imune. Jeram temia
por ela, mas não se atreveu a interromper sua concentração. Tudo o que ele podia fazer era
enviar sua própria energia através de sua mente, o melhor que podia.
Eventualmente, o fluxo de energia vacilou. O brilho na palma da mão de Marguerida
esmaeceu, mudando para lavanda, e, em seguida, escurecendo para vermelho sangue.
A percepção física voltou a Jeram. Ele estava respirando com dificuldade e seu pulso
trovejou em seus ouvidos. Tremendo, ele firmou-se contra o batente da porta. Um som
veio de dentro da sala, o barulho de um corpo caindo.
O D o m d e A l t o n | 352

Negligenciando sua própria exaustão, Jeram correu para o laboratório. Marguerida


estava com uma expansão estranha, caída no chão. Sua pele tinha uma cor cinzenta e não
parecia estar respirando.
O D o m d e A l t o n | 353

Capítulo 38

Domenic estava em uma varanda com vista para o jardim do pátio do Castelo Comyn e
da cidade. O sol da tarde estava inclinado nas pedras de pavimentação, os bancos e os
mandris, além dos canteiros de ervas ornamentais. As flores já tinham desaparecido e as
primeiras folhas secas estavam amontoadas. Até amanhã, os jardineiros teriam limpado, só
para que outras caíssem no chão. O breve e glorioso verão darkovano estava chegando ao
fim.
Ele pensou quão pouco havia sido realizado nesta temporada, com a interrupção de
tudo pela febre das trilhas. As alianças nascidas da extrema necessidade já estavam
evoluindo. Ele estava começando a ver uma maneira de superar a crise atual. Ainda esta
manhã, ele recebera a notícia de que o soro de Jeram funcionara. Agora o problema era
fazer o suficiente para todos, mas Domenic tinha esperança de que conseguiriam. Mais
cedo ou mais tarde, seu pai iria se recuperar...
Quando os pensamentos de Domenic viraram-se para o dilema de seus sentimentos
por Illona e Alanna, no entanto, ele não conseguiu ver nenhuma solução.
Atrás dele, uma porta se abriu. Como se convocada por seus pensamentos, Illona
deslizou para sacada. Seu coração se animou com a visão dela. Eles tinham estado tão
ocupados com suas respectivas tarefas nesses últimos decanatos que ele quase não a tinha
visto. Ela parecia mais magra e mais intensa.
- Domenic, caryo mio, não há nenhuma maneira fácil de dizer isso. Lamento ser a
portadora de más notícias mais uma vez. Algo terrível aconteceu com sua mãe.
Por um longo momento, Domenic não pôde falar. Seu coração saltou em sua garganta.
Por toda sua vida, Marguerida tinha sido uma torre de força, uma presença constante e
firme, sem falta de recursos, sempre dando opiniões, nunca más...
Nunca doente...
De alguma forma, ele forçou seu medo a se formar em palavras. - Ela contraiu a febre?
- Não, nada disso. favor, sente-se e irei explicar. Você soube que o soro de Jeram
revelou-se eficaz?
- Sim, ele mesmo me disse. - Domenic sentou-se no banco de pedra e ela sentou ao
lado.
Houve alguma dificuldade inesperada, algum efeito colateral questionável? Minha
mãe tinha, em sua forma impetuosa típica, testado em si mesma?
Illona olhou para ele, assustada. – Não. Parece ser segura. Os pacientes começaram a
se recuperar. Mas o círculo das Guardiãs só podia fazer uma pequena quantdade do que
seria necessário e só lentamente. Você sabe que sua mãe...
O D o m d e A l t o n | 354

- Ela iria encontrar alguma maneira de fazer, sem contar o risco para si mesma. O que
ela fez?
- Domna Marguerida usou seu laran...sua matriz de sombra, para produzir uma
enorme quantdade de soro. Sem monitoração, ela fez o trabalho de um círculo completo
mais de mil vezes. Só Aldones sabe como ela gerou tanto poder. É possível que ela tenha
alcançado o Mundo Superior através da matriz de sombra.
O Mundo Superior... Domenic estremeceu.
- Uma coisa é certa. - Illona continuou. - Sua realização não foi sem custo ou resultado.
Jeram a encontrou, inconsciente e sem respirar, ao lado do tanque de soro transformado.
- Ela está... Será que ela...
Illona tomou suas mãos nas dela. Seu toque, adicionado ao vínculo de seu laran, o
acalmou.
Ela está viva, que é o mais importante, mas em um estranho estado, nem dormindo,
nem acordada, nem em coma comum. Podemos lidar com esses casos. Nenhum de nós pode
chegar a sua mente, nem mesmo Domna Istvana.
- O que posso fazer? Onde ela está?
- Nós a levamos para a câmara de Mikhail, na esperança de que estar perto dele a
atrairia com mais facilidade. - Pela expressão do Illona, Domenic entendeu que isso não fez
nenhuma diferença visível. - Quanto ao que você pode fazer, é por isso que estou aqui, para
levar você até ela. Às vezes, o amor encontra um caminho quando a habilidade não pode.
Domenic e Illona correram pelos corredores e desceram um lance de escadas, através
do labirinto do Castelo.
- Meu avô sabe? - Domenic perguntou, enquanto atravessavam o pátio interior, indo
para a Torre.
- Ele está com ela agora.
- E meu irmão e minha irmã?
A notícia atingiria ambos duramente, mas Yllana seria mais profundamente afetada.
Ela havia se aproximado dele, após as lesões de Mikhail, em parte por causa da presença
constante de Marguerida. O que ela faria agora, como ela reagiria, com Marguerida
atingida? Pelo menos, ela teria o apoio amoroso de Katherine e Hermes.
Domenic estava menos preocupado por seu irmão. Rory amava seus pais tanto quanto
ele, mas ele tinha feito uma vida para si na Guarda. Ele tinha a disciplina de seu trabalho, e
Niall, para sustentá-lo.
- Istvana decidiu não contar a eles ainda, - Illona disse, claramente desconfortável - só
para você e Dom Lewis. Eles terão de saber em breve, mas ainda estamos avaliando a
condição de sua mãe. Até sabermos mais sobre o que aconteceu com ela e suas
O D o m d e A l t o n | 355

perspectivas de recuperação, quanto menos pessoas souberem, melhor. Não podemos


arriscar notícias prematuras gerando rumores de que o soro está contaminado.
- Temos que dizer a eles! - Domenic disse incisivo. - Não podemos manter algo assim
em segredo e não sobre nossa própria mãe!
Illona vacilou e, instantaneamente, Domenic se arrependeu de suas palavras ásperas.
A decisão não era dela. Nem era de Istvana ou Laurinda, ou mesmo do avô Lew.
Não. É minha.
Juntos, eles correram até as escadas da Torre Comyn. Domenic entrou na câmara onde
seus pais estavam em seus leitos com Illona em seus calcanhares. Ele tinha visitado seu pai
várias vezes desde o duelo, embora não tão frequentemente quanto sua mãe. Nessas
ocasiões, ele havia sido atingido com uma sensação de luz e silêncio, o brilho fraco do
campo de laran que preservava a vida de Mikhail. Agora o quarto parecia estreito e escuro.
O ar tinha gosto de lágrimas não derramadas.
Marguerida foi colocada em uma segunda cama, a parte superior do corpo apoiada em
travesseiros e envolta em seu xale de malha favorito. Lew e Istvana estavam ao lado dela. A
Guardiã parecia sombria, mas decidida, sua pedra da estrela descoberta brilhava como um
pedaço do sol em sua garganta.
Domenic se inclinou sobre sua mãe. Suas rosto estava pastoso e pálido, nenhum
indício de cor iluminava seus lábios, os cantos de sua boca estavam puxados para baixo, as
sobrancelhas estavam tensas, criando uma expressão de intensa concentração ou de
grande dor. Por trás de suas pálpebras fechadas, seus olhos se reviravam de lado a lado,
sua respiração era irregular, formada de uma pausa e uma inspiração profunda, como se
estivesse se preparando para uma batalha.
Mãe! Eu estou aqui... Domenic, o seu Nico.
Os lábios de Marguerida se separaram, como se ela fosse falar, mas apenas um suspiro
passava por eles. Ela abriu os olhos, o seu brilho dourado desaparecera, como se estivesse
sem ver, e depois fechou-os. Os dedos da mão direita se fecharam e se endireitaram. Sua
mão esquerda, envolta com ataduras, estava imóvel, como se paralisada.
Mãe!
Domenic recuou, aturdido. Nunca em sua vida, sua mãe não tinha respondido quando
ele chamara. Quando ele se perdeu no Mundo Superior, em busca de Alanna, ela o tinha
encontrado com sua mente.
Em sua memória, um turbilhão de energia azul e branca o esbofeteou, o arranhou, o
devorou. Ele não encontrava nenhuma maneira de ir através da tempestade. As explosões
caóticas de laran tinham afetado seu senso de orientação. A esperança estava se
desvanecendo a cada momento que passava. Ele se lembrou de pensar que tinha sido bobo
ou tinha mesmo visto algo, mas agora estava perdido.
O D o m d e A l t o n | 356

Em seguida, ele ouviu a voz mental de sua mãe, clara e ressonante como uma
trombeta de convocação. Volte! Ela havia chamado. Volte para mim!
Não havia lugar em Darkover ou além, que ela não podia alcançar, nada que ela não
pudesse fazer, para salvar os que ela amava.
Como ele poderia fazer menos por ela?
Algo despertou na parte de trás da mente Domenic, uma pressão, uma coleta de força
bruta, uma fusão de desespero e o impulso instintivo de auto preservação.
MÃE, ONDE VOCÊ ESTÁ? RESPONDA-ME!
- Domenic, pare! – A voz de seu avô Lew rompeu a convocação mental de Domenic.
A sala voltou ao foco. Domenic sentiu o choque e adrenalina no ar. Istvana agarrou a
pedra da estrela e vacilou em seu assento, com o rosto pálido. Gentilmente, Illona tomou as
mãos de Domenic e o guiou para longe da cabeceira e para uma cadeira. Lágrimas
brilharam em seu rosto.
Lew disse, sua voz ainda mais rouca e distorcida do que o habitual: - Você não pode
alcançá-la dessa forma. Nenhum de nós pode. Todos nós tentamos.
- Eu não entendo. – Domenic disse. - Ela simplesmente...se foi.
Onde podemos procurar ajuda? Nós não podemos simplesmente desistir! Domenic
lamentou.
Não vamos abandoná-la, Illona pensou.
A porta se abriu. Linnea Storn entrou silenciosamente e se juntou a eles. Seu cabelo,
caia em cachos suaves cor de prata, ela estava vestida com uma túnica simples e usava o
manto sem adornos de uma leronis das Torres. Domenic não a conhecia bem, mas como
consorte de Regis Hastur, ela sempre tinha sido gentil com ele, apesar de distante. Antes de
sair de Thendara para a Torre Arilinn, ele não sabia que ela já fora uma das Guardiãs.
Domenic se voltou para Istvana. - Exatamente o que está acontecendo com minha
mãe?
- Você sabe que ela usou sua matriz de sombra para produzir o soro? – Istvana
perguntou.
- Sim, Illona me disse. Que diferença isso faz? Presumo que minha mãe usou como se
usa uma pedra da estrela, para amplificar seus canais de energia psíquica.
- Isso é verdade, embora Marguerida não precisasse de uma pedra da estrela por
causa da matriz incorporada na mão. Na verdade, a matriz de sombra provavelmente é
responsável por sua extrema sensibilidade nas telas de matriz em Arilinn, o que a impedia
de trabalhar em um círculo. É um dispositivo poderoso, mas não é o mesmo que uma pedra
da estrela natural. Nós não temos certeza de nada, mas...talvez a matriz forneça mais
energia do que seus canais podem sustentar.
O D o m d e A l t o n | 357

- Você quer dizer que isso é algum tipo de sobrecarga de laran? Como a doença do
limiar? - Domenic perguntou. - Nós sabemos como tratar isso, não é?
Istvana balançou a cabeça. - Não, não como a doença do limiar. Muito mais que isso,
temos certeza. Não podemos dizer, no entanto, se gerar e controlar tanto poder queimou
os centros de laran de sua mente. Isso seria realmente terrível.
- Eu não me importo se ela mantém seu laran ou não! - Domenic exclamou. - Eu quero
a minha mãe de volta aqui entre nós!
Uma pausa estranha se seguiu. Illona disse gentilmente: - Se ela perdeu seu laran, e o
que estiver errado com ela for algo psiquíco e não físico, podemos não ser capazes de
chegar à sua mente.
Durante a discussão, Linnea balançou a cabeça minuciosamente. - Não pode ter outra
causa. Istvana discorda de mim, mas a possibilidade deve ser explorada.
- Com todo o respeito, nós já passamos por isso antes. – Istvana disse. - O assunto foi
colocado para descansar anos atrás.
- Eu sei, por experiência própria, que ser controlado por laran é uma coisa que não é
facilmente apagada da mente. – Lew disse.
Com a exclamação abafada de Domenic, Linnea disse: - Marguerida entrou neste
estado após canalizar um poder inimaginável através da matriz de sombra. Acredito que a
matriz de sombra pode ser mais do que parece. Por um lado, ela não veio para sua mãe
numa forma habitual, como um cristal único. Ela a obteve no combate em uma Torre
erguida no Mundo Superior por Ashara. Ela foi criada e ajustada para a vibração mental de
Ashara, longos anos antes da concepção de Marguerida, e transformada numa matriz
armadilha.
Isso era verdade. Ao longo dos anos, Marguerida tinha comentado sobre o imenso
poder da matriz de sombra, mas confessara que nunca havia compreendido a sua natureza.
- Por essa razão, - Linnea continuou - e porque Ashara tinha ofuscado Marguerida
quando ela era uma criança pequena, a matriz incorporada ainda pode manter a
ressonância da personalidade de Ashara.
Um fio gelado penetrou na espinha de Domenic. Desde a infância ele tinha ouvido
contos de uma leronis antiga que prolongou sua existência dominando as mentes de
gerações de Guardiãs. Marguerida tinha contado a Domenic um pouco sobre sua terrível
luta psíquica no Mundo Superior. Em sua tentativa de se libertar do espírito desencarnado
da antiga Guardiã, ela tinha segurado a pedra fundamental da Torre dos Espelhos no plano
astral, a pedra que tinha preservado a presença forte de Ashara, a pedra que agora brilhava
na pele da mão esquerda de Marguerida.
- Ashara pode voltar à vida, através de minha mãe? - Domenic perguntou.
O D o m d e A l t o n | 358

- Todos os deuses sejam louvados, não! Não pode. - Linnea respondeu. - Marguerida
tem considerável força de vontade. Ela jamais permitiria que essa entidade monstruosa
voltsse para o mundo, não se puder evitá-lo. Se eu estiver correta, no entanto, o cristal está
contaminado, está até agora drenando sua força de vida e não temos nenhuma maneira de
protegê-la.
Linnea levantou a mão esquerda de Marguerida e abriu as bandagens. Quando ele viu
a matriz embutida na palma Marguerida, a coragem de Domenic quase falhou. Não estava
mais azul, mas com a cor do sangue recém derramado. Ela parecia ter vida própria. Ele
perguntou o que se escondia por trás daquelas facetas vermelhas.
Sentindo-se doente, Domenic desviou seu olhar para longe da matriz carmesim. Se
Linnea estivesse correta ou se o padrão cristalino tinha ficado vermelho por algum outro
motivo, um fato permanecia. Cortado o poder que animava seu espírito, o corpo de
Marguerida iria, com o tempo, murchar e morrer. Quanto mais o tempo passava, menor
era a chance dela retornar.
Onde ela foi que nenhum de nós pode alcançá-la?
Como posso chamá-la de volta, da mesma maneira que ela chamou por mim?
O estranho laran de Domenic despertou. Um padrão emergiu lentamente, como
montanhas crescentes através da névoa. Antes o planeta o tinha chamado para o núcleo
mais profundo de sua consciência. Ele o tinha ouvido como música, como uma melodia sem
palavras, tão profunda como um gemido, como as harmonias em mudança de uma única
entidade.
Agora, suas percepções mais íntimas estavam se intensificando. Ele sentiu não
somente as manifestações físicas dos rios, rochas, magma e nuvens, mas suas formas
psíquicas também. Interpenetrando o mundo comum, ele viu o Mundo Superior, um reino
do pensamento infinitamente elástico, de poder, de sonhos. Sua mãe, e por tudo o que ele
sabia, o espírito de seu pai, vagavam perdidos nesse reino sem limites.
Como chegar até ela?
Domenic deixou a questão morrer em silêncio. Ele não iria encontrar a resposta em
palavras. Em vez disso, ele permitiu que seu foco psíquico se expandisse ainda mais,
suavizando seus sentidos periféricos.
Com uma visão dupla estranha, ele olhou para a outra cama, onde estava seu pai, de
olhos fechados e mãos cruzadas sobre o peito. O campo de laran que preservava sua vida
brilhava ligeiramente em tons iridescentes de azul. O anel na mão direita de Mikhail
brilhava.
A forma do anel não vacilou quando Domenic mudou sua visão entre o físico e o
psíquico. Alguns objetos existiam em ambos os planos. Eles eram pontes entre um mundo e
outro, tirando o seu poder de ambos.
O D o m d e A l t o n | 359

A pulsação vermelho-sangue da matriz na palma de Marguerida era um objeto


semelhante. Ela estava ligada à sua mente, assim como o anel era ligado à de Mikhail. Havia
alguma maneira de usar o poder dos dois dispositivos para fazer uma ponte entre os
mundos?
Domenic tinha sido ensinado em Neskaya que era perigoso para qualquer um, exceto
uma Guardiã treinada, tocar na matriz de outra pessoa. Os resultados poderiam ser fatais
para ambos os indivíduos. Mas no anel de Mikhail não era nenhuma matriz comum. Mikhail
muitas vezes dissera isso abertamente. Além disso, ele juntou toda a sua força com a matriz
de sombra de sua esposa na Batalha da Antiga Estrada do Norte.
Domenic tinha se resolvido. Alguns riscos deviam ser aceitos. Ele não podia acreditar
que Marguerida pudesse fazer qualquer mal para Mikhail, mesmo involuntariamente.
Domenic nunca tinha conhecido duas pessoas mais compatíveis. Estava disposto, porém, a
arriscar a vida de sua mãe nisso?
E se ele estivesse errado?
Que escolha ele tinha? Ela estava morrendo de qualquer maneira e Mikhail podia
escolher não viver sem ela.
- Eu não sei nada sobre Ashara ou a matriz de sombra. - Domenic disse, procurando as
palavras. - Mas sei de uma coisa. Se ela estiver perdida, à deriva, separada de tudo e de
todos... Há uma pessoa que, se ela encontrar, ela reconhecerá.
Ele caminhou para o lado da cama de seu pai. Sua mão atravessou o campo de laran
com uma sensação de formigamento. O anel escorregou do dedo de Mikhail, como se
entendesse o propósito de Domenic e tivesse dado seu consentimento.
Domenic levantou a mão esquerda de sua mãe, com cuidado, evitando o contato com
sua matriz de sombra. Ele colocou o anel de seu pai contra o padrão de sangue na palma da
mão e fechou os dedos em torno dele.

~o ⭐ o~
Marguerida não tinha ideia de quanto tempo ela tinha ficado flutuando ali, naquele
lugar de neblina sem forma. Correntes invisíveis giravam em torno dela, compostos
instáveis de vento e som, as vozes no ar, a memória fragmentada. Como sabia disso, ela
não poderia dizer. Ela parecia estar mudando dentro e fora em fases com a tempestade, de
modo que em momentos era atingida a partir do exterior e, em outros, não havia lado de
fora, nem de dentro.
Marguerida...
Uma voz se enrolava nas rajadas de vento, um fio de som. Uma voz de homem,
chamando-a. Ele lançou o nome dela como uma rede de pescador. O vento levou o nome
para a distância.
O D o m d e A l t o n | 360

Nome... Eu tenho um nome...


Ela sentiu que estava se condensando, não era mais vapor, mas algo mais substancial.
A voz, fraca e turva, formava palavras.
Marguerida... Respire, maldição! Respire!
Vagamente, ela sentiu os dedos beliscando seu nariz, uma boca sobre a dela, forçando
o ar em seus pulmões, a pressão desesperada de uma mente tentando alcançar a dela.
Ela conhecia o padrão e a textura da outra mente que tentava penetrar na sua. Com o
tremendo poder do Dom de Alton fuindo através dela, ela sentiu as barreiras de laran do
homem ruirem e tomar forma.
A voz recuou em silêncio. A memória ficou desbotada. Sua visão foi fraturada em
pequenos pedaços espelhados, se espalhando com o vento.
Aos poucos, ela sentiu que estava caindo do firmamento esbranquiçado. Seus pés
tocaram uma superfície e ela se viu de pé sobre a planície sem fim e inexpressiva do Mundo
Superior.
Uma Torre brilhante estava na frente dela, as pedras vivas vermelhas como carne
infamada. A Torre de Ashara, brilhando com a luz estranha e espelhada...
Não, ela foi destruída! Ela se enfureceu silenciosamente. Eu a coloquei abaixo.
Mas a Torre ainda estava em pé, zombando dela. Acenando para ela. O brilho refletido
se intensificou, ávido, faminto.
A mão esquerda de Marguerida queimou. Ela olhou para baixo para ver a matriz
embutida na palma da mão e ela não era mais a pálida matriz azul, mas vermelha como o
sangue, como a luz do sol, como o manto de uma Guardiã.
O tempo, ela sabia, não tinha qualquer significado ali. Em algum lugar naquele plano,
há duas décadas, uma Marguerida muito mais jovem tinha lutado contra a mente que a
havia ofuscado desde a infância.
Este é o lugar onde eu obtive a matriz de sombra. Será que ela me trouxe até aqui para
algum propósito?
Propósito...
Enquanto pensava isso, a distância se comprimiu, de modo que ela estava agora
dentro da torre que estava vermelha e azulada, de frente para a figura espectral de Ashara.
Uma nova força passou através dela e ela sentiu que não estava sozinha.
Ashara olhou para ela, a imagem distorcida, mudando. Por um momento fugaz,
repugnante, Marguerida olhou para o espelho.
Você é minha! Minha! Você sempre foi e sempre será. Uma voz estridente e dura como
granito passou através de Marguerida. Eu vou viver de novo através de você!
O instinto de Marguerida mandou ela resistir, lutar, da mesma maneira como ela tinha
feito há muito tempo. Naquele primeiro combate, quando sua própria força começou a
O D o m d e A l t o n | 361

falhar, ela foi ajudada por Istvana. Sua determinação fluiu dentro dela, deixando-a livre. O
que havia restado do espírito de Ashara havia desaparecido na destruição de sua Torre
astral.
Tentando manter o pânico sob controle e focando no momento presente, Marguerida
forçou-se a pensar.
Se Ashara só existe no passado, então por que estou me lembrando dela agora? Ela é a
última coisa em que quero pensar!
Vagamente, como se sobre uma distância inimaginável, Marguerida ouviu a voz de seu
pai...
...ser controlado por laran é uma coisa que não é facilmente apagada da mente...
Cada um deles, Marguerida e Lew, tinham sobrevivido a experiência de uma outra
presença psíquica em suas mentes, poderosa e dominadora. Por sua vez, cada um deles
tinha usado o Dom de Alton para impor sua vontade sobre outros.
...Jeram...a Batalha da Antiga Estrada do Norte e suas consequências...
Eu não sabia! Eu não sabia!...
Não havia nenhuma ajuda para ela. Ela não podia fazer nada para mudar o passado.
Ela deveria enfrentar essa ameaça dentro de sua própria mente.
Ashara não pode me prejudicar agora...a não ser que eu lhe dê o poder de fazê-lo.
Erguendo-se e olhando para cima, Marguerida enfrentou a imagem de Ashara. A
antiga leronis olhou para trás, os olhos ardendo com antecipação voraz de triunfo. O ar
estremeceu sob a malevolência acumulada de séculos. A luz estava repleta de calor e
esmagadora energia psíquica.
Os nervos de Marguerida quase falharam. A vontade de Ashara e seu desejo de
dominação não tinham diminuído durante as décadas de separação. Desta vez, não haveria
ninguém para ficar ao lado dela...
Com um grito desumano de triunfo, Ashara saltou para a frente. Marguerida sentiu o
cheiro da estranha aura de sua forma, uma mistura de podridão e energia de laran.
Você...não...existe! Marguerida gritou com toda a sua força.
As palavras, ditas com tanta bravura, desintegraram-se sob o ataque de Ashara.
Marguerida sabia que seu próprio medo estava alimentando o poder de Ashara e, ainda
assim, ela não podia se conter. A velha Guardiã estava quase em cima dela, mas ela não
podia se mover...
Nenhum artifício humano poderia derrotar a monstruosa entidade psíquica diante
dela.
Sozinha, ela não tinha chance.
Mas juntos...
Mikhail! Amado, me ajude!
O D o m d e A l t o n | 362

Uma forte dor atravessou a mão esquerda de Marguerida. Assustada, ela olhou para
baixo.
Algo estava na palma de sua mão, brilhando contra o padrão azul e branco em sua
palma.
O anel de Mikhail!
Ela não teve tempo para se perguntar como ele tinha chegado ali. Seu único
pensamento foi que, uma vez, ela e Mikhail tinham combinado seus instrumentos especiais
de laran, sua matriz de sombra e o anel de Varzil, o Bom.
Juntos!
Ela agarrou o anel. Ele cravou na matriz da sua mão. Quando os dois dispositivos
psicoativos fizeram contato, um clamor como o céu se quebrando a ensurdeceu. Por um
instante, ela sentiu outra presença passando por ela.
O mundo explodiu em uma glória de luz.
Em um nível profundo, celular, Marguerida sentiu o choque violento de energias ao
seu redor. O pouco da consciência do que tinha sido Ashara foi empurrada para trás. Se
contorcendo, tentando se afastar.
Ashara tentou fugir, esconder-se na estrutura adamantina da matriz de sombra. Mas a
luz era muito forte, inundou a pele onde estava embutido o cristal e o branqueamento
tinha afastado todos os traços carmesins.
Um grito de desespero desumano ecoou pelo firmamento psíquico. Marguerida
cambaleou sob a explosão. O silêncio rapidamente se espalhou e o clamor diminuiu.
Por um breve momento, Marguerida contemplou o local vazio onde a Torre espelhada
de Ashara tinha estado uma vez. Nada, nem mesmo a menor partícula de poeira,
permanecera.
Ela se foi... Ela realmente se foi.
Até a poderosa luz morreu. Ela estava sozinha em um vazio vasto e sem forma.
O D o m d e A l t o n | 363

Capítulo 39

Caindo em si, Marguerida embalou o anel de Mikhail contra seu coração. Sentiu uma
dor além das palavras, além das lágrimas.
Eu estou livre...mas nunca vou vê-lo novamente.
Nunca iria dizer as mil coisas que ela queria compartilhar, nunca mais sorrir da forma
como o sol da manhã tocava seus cabelos dourados. Nunca ficar em seus braços, bebendo a
luz dos seus olhos, como se a sua alegria nunca fosse acabar.
Nunca mais iria ver seus filhos ou quem sabe seus netos. Nunca ver seus velhos
amigos, ou o anoitecer rápido e silencioso caindo sobre Thendara que sempre fazia sua
respiração parar na garganta com tamanha beleza.
Ela pensou em Jeram, que tentou salvá-la, mesmo depois do que ela tinha feito com
ele após a Batalha na Antiga Estrada do Norte. O que ela poderia dizer-lhe agora se tivesse
a chance de falar? Será que ele poderia entender que ela e seu pai não tinham outra
escolha, a não ser que eles matassem toda a força Terranan derrotada?
Será que ela fizera o que era certo? Lew sentia que não e havia dito que sua culpa o
torturava.
E eu? No que eu acredito?
A vida raramente era tão simplesmente certa ou errada. Cada escolha realizada trazia
a possibilidade de consequências não intencionais. Ela havia tomado a melhor decisão que
podia, talvez a única decisão certa, e agora não havia nada que pudesse fazer para mudar
isso.
Ah, o que é que isso importa? Naquele lugar atemporal, ela tinha perdido toda a
sensação de seu corpo físico. Ela não tinha a menor noção de que direção tomar, de onde
estava ou como chegar a algum lugar. Ela poderia ter derivado por um minuto, uma hora,
um ano. Ela ainda teria um corpo para voltar?
Se eu pudesse ver Mikhail novamente... Apenas uma vez...
No entanto, por um momento fugaz, quando ela enfrentou Ashara pela última vez,
Mikhail tinha estado com ela.
A natureza prática de Marguerida reafirmou-se. Apenas escute, não se afogue na auto-
piedade!
Não agora, não enquanto ela ainda tinha seu juízo perfeito. O espírito de Mikhail
estava em algum lugar ali, no Mundo Superior. Mesmo que nenhum deles pudesse retornar
ao plano físico, pelo menos eles poderiam estar juntos ali. Seu coração, com sua própria
sabedoria instintiva, deveria guiá-la agora.
Tomando o anel na mão direita, ela levantou-o ao nível de seus olhos. O cristal brilhou
com seu fogo interior. Na palma da outra mão, o padrão impresso da matriz de sombra
O D o m d e A l t o n | 364

brilhou fracamente, um pálido azul. Com a vitória final sobre Ashara, a cor vermelha tinha
sido drenada.
O anel de Mikhail, sua matriz de sombra... Os dois estavam ligados, assim como seus
corações e mentes, desde a estranha viagem ao passado, quando Varzil, o Bom tinha dado
a Mikhail o anel e, em seguida, os casara.
Varzil havia dito que a cerimônia de casamento em si criava um vínculo... Qual era?
Algo sobre o simbolismo das pulseiras, das catenas, trancadas sobre os pulsos do homem e
da mulher na tradição antiga.
Simbólico? Ou uma verdade mais profunda?
Catenas fechadas, nós unidos... Como seus talentos separados de laran tinham se
fundido. Antes, eles se amavam docemente, apaixonadamente, com prazer mútuo intenso,
mas sempre como duas pessoas diferentes. Quando eles voltaram para o tempo presente,
no entanto, eles compartilhavam uma conexão constante e permanente. Eles podiam ter
suas vidas diárias, às vezes ver um ao outro apenas brevemente, mas se as coisas ficavam
muito agitadas, sempre podiam sentir a presença do outro em sua mente.
Ela estudou o anel, a pedra de laran de seu marido. O grande cristal incolor havia sido
introduzido sobre a matriz pessoal de Mikhail.
Você é parte dele. Você deve saber onde ele está. Leve-me até ele!
Não houve alteração no brilho cintilante dentro do cristal ou na monotonia cinzenta
que a cercava. Mais uma vez, ela estendeu a mão, mantendo sua vontade e concentração
no anel.
ME LEVE ATÉ ELE!
Somente o silêncio respondeu à ela... Silêncio e quietude total.
Seus dedos se fecharam em torno do anel, que aparentemente não podia leva-la ao
seu amado. A frustração irrompeu nela. Ela queria atirar o anel o mais distante que
pudesse.
Não, isso não ajudaria em nada. Não era culpa do anel que seu desejo não pudesse se
realizar. O anel podia ter muitos poderes, mas não tinha uma vontade própria. Ela imaginou
sua tristeza ao ver as pessoas que tinha unido, agora separadas.
Com isso, Marguerida sorriu. Que pensamento fantasioso!
Ela abriu seu punho e estudou o anel na palma da mão sem marcas. - Se você não
pode levar-me a ele, o que você pode fazer? Por que eu tenho você aqui?
Quando ela fez a pergunta, os pensamentos de Marguerida tomaram novo rumo. Seu
corpo tornou-se mais sólido, assim como o Mundo Superior. Ela estava no caminho certo. A
luz do alto estava reforçada e o terreno plano e cinza firmou-se sob seus pés. Ela sentiu
seus braços e pernas, tronco e cabeça, uma nova força, a flexibilidade de sua coluna, a
textura do manto frágil que se materializou em seu corpo.
O D o m d e A l t o n | 365

O que ela sabia sobre o anel? Ela sabia de onde ele tinha vindo. Varzil o tinha dado
livremente para Mikhail. Mikhail o tinha usado desde então e Francisco o tinha cobiçado.
- Você é muito encrenqueiro. - Ela disse para o anel, mas de leve, para que ele
soubesse que ela não queria responsabilizá-lo pela traição de Francisco.
Mikhail o tinha usado na Batalha na Antiga Estrada do Norte, seu poder unido ao de
sua matriz de sombra. Mas esse não fora seu primeiro uso.
Originalmente, Mikhail tinha usado o anel para a cura.
Cura...
Um arrepio percorreu a coluna de Marguerida, uma esperança fantasmagórica. Não
era uma coisa certa, nem clara. O anel não era todo-poderoso. Não tinha sido capaz de
salvar Regis após seu acidente vascular cerebral. No entanto, se houvesse qualquer força
em Darkover que pudesse restaurar a saúde de Mikhail, estava na mão dela.
Mas ele não está aqui! Sua mente lamentou.
Pense como uma darkovana, ela disse a si mesma. Desde quando a distância fez
alguma diferença no Mundo Superior?
O anel em si não tinha o poder encontrá-lo. Mas, juntamente com sua matriz de
sombra que fazia parte de sua própria pele...
O anel tinha aparecido no Mundo Superior em sua mão esquerda, em contato direto
com a matriz de sombra, mas nenhum mal tinha acontecido a ela. Nem, ela tinha certeza,
com Mikhail. Normalmente, ela isolava a mão com uma luva forrada de seda para evitar o
contato acidental com a matriz. Agora ocorreu-lhe que, no Mundo Superior essas
precauções podiam não ser necessárias. Afinal, aquele era um reino de pensamento e
energia, onde só a força de vontade e da imaginação importavam.
O anel e a matriz existiam no mundo físico, bem como ali, mas eram essencialmente
dispositivos para canalizar e amplificar o laran. Cuidadosamente, Marguerida colocou o
anel sobre a marca cristalina na palma da mão esquerda. Um choque, como de eletricidade,
percorreu seu braço. Seus nervos formigaram. A sensação não era desagradável, mas era
forte. Apenas popr um instante ela se perguntou qual seria a sensação no corpo físico, pois
no Mundo Superior ela tinha apenas um corpo astral.
O anel de Mikhail e sua própria matriz começaram a brilhar nesse momento e, depois,
cada vez mais forte. Seu brilho combinado feria os olhos. A energia, que não era nem luz e
nem calor, era transmitida em todas as direções. O cinza do Mundo Superior empalideceu,
ficando quase branco.
Ela pensou que era como se seu amor enchesse o mundo inteiro.
Um amor, combinado... Um amor, um coração... É claro!
O D o m d e A l t o n | 366

A alegria surgiu nela. O anel havia sido incapaz de leva-la para Mikhail porque naquele
lugar nem o tempo e nem a distância tinham qualquer significado. Ele já estava com ela.
Seu próprio medo havia criado a ilusão de que eles estavam separados.
Marguerida usou a visão interior, tentando ver Mikhail com o coração, em vez de com
seus olhos. Na memória e saudade, ele estava diante dela, suas mãos apertando as dela. Ela
quase podia sentir o toque...
Olhos azuis como o céu claro de Tétis sorriram para ela...
O sol brilhava sobre os cabelos da cor de ouro...
Não, esse é Mikhail como ele era quando nos conhecemos. Ele é mais velho agora e
seus cabelos estão prateados...
As linhas de seu rosto entraram em um foco mais nítido, um rosto nem jovem, nem
velho. Mas Mikhail aparecia como ele seria sempre para ela, o espírito radiante por trás
daqueles olhos, aquele sorriso...
Amado, você está comigo agora!
Gradualmente, Mikhail tomou forma diante dela, primeiro como um brilho, como o
calor crescendo na forma de um homem. Ele parecia ser feito de vidro e não de carne. Seus
olhos, tão incolores como o resto do corpo, olhavam através dela.
Enquanto Marguerida observava, um brilho amarelo apareceu no cabelo de Mikhail.
Seus olhos sombreados de cinza se tornaram de um azul pálido. Como ela, ele usava uma
túnica branca, vibrando como se soprada por uma brisa. Seus pés descansavam na planície
lisa e cinza. Em instantes seu esboço ficou mais nítido. Seus olhos focados. Ainda assim ele
permaneceu insubstancial e transparente.
Seus lábios formaram o seu nome. Marja! Preciosa!
Incapaz de se conter, Marguerida correu para os braços estendidos. Seu corpo passou
por sua imagem com apenas o mais fraco contato, um estalo quase imperceptível de
eletricidade. Ela virou-se, assim como ele, e ele chegou perto dela novamente. Quando suas
mãos se tocaram, sentiu apenas o espaço vazio. Eles tentaram várias vezes, com o mesmo
resultado. Finalmente, eles recuaram, olhando um para o outro através do abismo
intransponível.
Por um longo tempo, Marguerida não pôde falar, presa entre a frustração e a saudade.
Ela se forçou a encarar a verdade. Ela não podia segurá-lo, nem ele a ela. Ali no Mundo
Superior, nesta manifestação, eles eram pensamentos insubstanciais como fantasmas e não
de carne.
Mikhail... Ela não podia suportar estar tão perto e não perder toda a esperança de
estar com ele.
Minha Marja. Seu sorriso estava esmaecido. Você está morta também?
O D o m d e A l t o n | 367

Acho que não. Não acho que qualquer um de nós esteja, embora eu não tenha ideia de
como voltar. A última vez que vi você, seu corpo físico ainda estava vivo, apesar do punhal
envenenado de Francisco, e estava em um campo de êxtase de laran.
Mikhail sacudiu a cabeça, como um gesto de muito amor assim como de negação.
Você não deveria ter vindo me procurar, preciosa. É muito perigoso. Mas também, quando
foi que você recuou ao perceber que alguém que você ama estava em perigo, não é?
Fiz algo muito mais arriscado, mas necessário, ela admitu com tristeza. Eu usei a
minha matriz de sombra para produzir o suficiente do soro de Jeram para imunizar todos
que precisavam contra a febre, pelo menos eu espero que sim. Mas eu não contava com...
Devagar! Ele disse, rindo. Qual febre? Por Jeram, você quer dizer o pobre homem que
Francisco estava usando em suas acusações falsas?
Não tinha como Mikhail ter nenhuma ideia do que aconteceu após o duelo... E, ela
pensou, as acusações de abuso de laran eram verdadeiras, embora não da maneira como
Francisco tinha apresentado. Se ela vivesse, teria muito para explicar.
Resumidamente, ela explicou como Thendara tinha sido atingida por uma epidemia de
febre das trilhas e que Jeram, o terráqueo Jeremiah Reed, usara sua experiência em
controle de doenças infecciosas para ajudar.
Com nós dois ausentes, quem está atuando como Regente? Mikhail perguntou. Quem
governa o Comyn?
Marguerida sorriu. Domenic, quem mais?
Domenic? Assombro e deleite brilharam através de voz mental de Mikhail.
Ele cresceu de forma incrível, Marguerida respondeu. Enquanto nós o estávamos
empurrando para ser responsável, ele cresceu, Mik, ele lutou por nós. Mas foi por sua
própria escolha... E... Bem, ele é tão diligente quanto seu pai. Ele segurou o Conselho com
firmeza, manteve todos unidos no momento de pânico e organizou o cuidado dos doentes.
Você teria ficado orgulhoso dele!
Então, temos de voltar imediatamente para que eu possa dizer isso a ele. Algo nas
palavras do marido puxou o coração da Marguerida. Ela lembrou de todos os anos de sua
vida jovem quando ela ansiava pela aprovação de seu pai.
Marguerida olhou para o anel, ainda na palma da sua mão. Claramente, era a chave
para a cura de Mikhail, mas ela não sabia como usá-lo.
Ela estendeu-o para ele. Aqui, pegue. Use seu poder de cura para limpar o veneno de
seu corpo terreno.
Quando ele tentou pegar o anel, seus dedos passaram por ele da mesma forma que
acontecera com suas mãos. Eles tentaram colocar o anel no chão e joga-lo no ar antes de
admitir a impossibilidade. O anel pertencia a mesma dimensão que Marguerida. Ela mesma
teria que usá-lo.
O D o m d e A l t o n | 368

Mikhail tentou explicar a ela como funcionava. Ela fez seu melhor para seguir suas
instruções, mas sem qualquer resultado. Ela poderia muito bem ter tentado usar sua pedra
da estrela. O cristal era, afinal, um tipo de matriz, com chave para a mente de Mikhail.
Ou não é?
Marguerida olhou para o brilho do cristal facetado. Através dele, ela poderia usar a
matriz de sombra na palma da outra mão. Enquanto ela observava, os dois padrões
começaram a se entrelaçar, melhorando a harmonia, ponto a ponto, como na música. Ela
ouviu melodias combinadas em sua mente.
Um amor, combinado... Um amor, um coração...
Uma matriz...
Ela não podia exercer o poder do anel, mas podia usar a matriz de sombra incorporada
em sua mão, marcada por seu laran. Se ela canalizasse seu poder mental através de sua
matriz sombra, e depois, através do anel de Varzil...
Uma bola de fogo apareceu queimando em sua memória. Ela se lembrou de como a
luz tinha saltado para fora de suas mãos, cegando os atacantes na Batalha da Antiga
Estrada do Norte.
Agora eu preciso de um tipo diferente de arma. Assim como a do soro imune. Então ela
imaginou um fluxo de cura de laran alterando as moléculas do veneno no corpo de Mikhail.
Sim, isso poderia funcionar!
A transformação levaria cada porção de laran que ela possuía, e ela sabia agora que
seus dons eram consideráveis. O que Lew dissera?... Eu teria dado qualquer coisa, feito
qualquer coisa para salvar a pessoa que amo.
Qualquer coisa para ter Mikhail vivo.
Marguerida procurou dentro de sua mente por seu Dom. Ela encontrou uma fonte de
força e a derramou através da matriz em sua mão.
Um amor, um coração...
Uma matriz...
Um...
Sentiu as duas matrizes se sintonizarem completamente e começarem a brilhar ainda
mais forte do que antes. O cristal estava aceso em suas profundezas até que duas esferas se
fundiram em uma só.
Marguerida tentou visualizar o corpo físico de Mikhail de quando ela o vira pela última
vez. Ele estava deitado sob um cobertor de luz na câmara superior da Torre Comyn, com
um campo de proteção em torno dele. Seu rosto estava pálido. Quando ela tentou trazer a
imagem a mente, ela estava borrada, fraca e indistinta, como se vista através de uma lente
deformada.
O D o m d e A l t o n | 369

Como ela poderia ter esquecido o rosto que era tão familiar para ela como o seu
próprio? Será que ela ficara flutuando no Mundo Superior por tempo demais? Será que
tinha perdido toda a conexão com o plano físico?
Durante esse momento de incerteza, a concentração de Marguerida vacilou. Manchas
de escuridão apareceram no brilho abrasador das matrizes unidas. Elas agora pulsavam em
um tom vermelho e lento, como nós de laran congestionados. As energias flutuaram,
atngindo o pico de forma irregular e caindo.
Marguerida lutou para manter a esfera luminosa sob controle, para suavizar as
variações. Seus esforços foram inúteis. A esfera estava rapidamente se tornando instável.
Em apenas alguns momentos, ela não seria capaz de conter seu poder. Ela não tinha ideia
do que aconteceria então, quanta devastação ocorreria como resultado. Horrorizada, ela
percebeu que se perdesse o controle das matrizes, ela também iria destruir a única
esperança de algum deles sobreviver.
Ela tinha construído esse nexo de poder para ser usado, mas não tinha para onde
enviá-lo. O poder não tinha amarração, nenhum vínculo com o plano físico. Ela o havia
gerado a partir de sua própria mente, e ela estava à deriva no Mundo Superior, assim como
Domenic tinha estado quando ela chegou até ele na noite do Festival e do levante.
Domenic! Ela o tinha encontrado perdido e à deriva no Mundo Superior. E se eles
ainda estivessem ligados? Ele poderia alcançá-la da mesma forma?
NICO... Ela gritou para ele através do vazio. Mikhail se juntou a ela, sua força fluindo
sem esforço com a dela.
Ela sentiu a resposta, distante, ansiosa.
Mãe! Pai!
A voz mental de seu filho ecoou estranhamente através de seus pensamentos. Ela não
poderia sustentar o contato. Estava perdendo rapidamente sua capacidade de se
concentrar, com a energia das matrizes saindo do controle.
Segurem-se! As palavras foram formadas em sua mente.
Nico, onde está você?
Aqui, eu estou aqui, na luz.
Marguerida concentrou seu foco mental novamente sobre as matrizes unidas. Elas já
não irradiavam uma luz branca imaculada. Em vez disso, ela olhou para os fluxos de
energia, vibrando em muitas frequências. Sua mente racional entendeu que isso era
impossível, ela não podia perceber tais harmônicos, tão acima e abaixo da faixa visível. Ela
parecia estar vendo todas as cores de Darkover.
Com a visão se deslocando para a audição, ouviu uma mistura sinfônica de propagação
de sons em sua mente, a mesma que ela tinha visualizado quando Domenic falou perante o
Conselho...
O D o m d e A l t o n | 370

...O canto doce elevado das tempestades e do rio, o gemido profundo e estrondoso das
camadas maciças da crosta lentamente se dobrando sob pressões inimagináveis, o zumbido
ressonante das camadas em fusão sobre elas...
ATENÇÃO! A voz mental de Domenic agora apareceu mais alta e mais clara do que
nunca.
De repente Marguerida entendeu o que estava acontecendo, por que ela via as cores e
ouvia a música. O laran único de seu filho os chamavam para o próprio planeta, e ele estava
usando seu dom como uma âncora no plano físico, chegando a ela através de sua mente.
O cinza sem fim estava ficando desbotado. Ela já não estava sobre um frio comum,
inexpressivo. Mais uma vez, ela estava flutuando, mas já não estava sozinha. Mikhail estava
ao seu lado, ambos sendo levados por uma única esfera multcolorida. Correntes de energia,
luz e calor, matéria e energia, passaram correndo sem tocá-los.
De repente, toda a sensação de movimento cessou. Marguerida piscou como o brilho
intenso e recuou. Para todos os lados, paredes de pedra cinzenta surgiram, como uma
névoa desaparecendo. Abaixo dela, um ponto de brilho permaneceu. Ela estava flutuando,
olhando para seu próprio corpo, deitado e enrolado em seu xale favorito, na mesma sala,
no alto da Torre, onde Mikhail estava. As pessoas aglomeradas em torno dela. Ela
reconheceu-as, mesmo olhando o alto de suas cabeças. Domenic agarrava sua mão
esquerda entre as dele. Ela notou o brilho emitido de suas mãos unidas.
Mik? Você está comigo? Pode usar o poder do anel agora?
Não, eu não posso. Sua presença mental era muito próxima, como se ele estivesse
sussurrando em seu ouvido. Mas juntos podemos.
Marguerida recolheu o poder a partir das matrizes do Mundo Superior. Ancorados
pelo contato estável do laran de Domenic para o plano físico de Darkover, ela e Mikhail
tornaram-se veículos para a energia de cura do anel. Ele passou por eles como a seda, como
o sol, como uma cachoeira trovejante.
O poder fluiu primeiro através da forma astral do corpo de Mikhail, então se
estabeleceu em seus canais condutores de laran. Habilmente, Mikhail deslocou a vibração
da energia para os tecidos de seu corpo, para cada fluido e cada célula.
Marguerida sentiu as minúsculas partículas do veneno de Francisco como pedaços de
escuridão cáustica. Como Istvana tinha dito, a toxina tinha se ligado a medula óssea de
Mikhail.
À medida que a energia de cura ia se deslocando, a composição das partículas era
alterada. Elas brilharam como sóis infnitesimai, antes de desaparerem. Apenas o tecido
saudável da medula permaneceu.
Na cama, o corpo de Mikhail respirou fundo. Ele já parecia menos pálido.
O D o m d e A l t o n | 371

Marguerida sentiu um impulso de confiança de seu marido. Para retornar ao plano


físico e seus próprios corpos, eles só tinham que seguir a linha da vida que Domenic tinha
criado. No entanto, Mikhail hesitou.
Enquanto ainda estamos aqui no Mundo Superior, disse ele, há mais uma coisa que
podemos fazer, se você quiser.
O que? O que poderia ser mais importante do que retornar à vida juntos?
Mikhail mudou seu foco para palma da mão esquerda de Marguerida, onde a matriz
de sombra ainda pulsava com o poder. Ela tinha encontrado Ashara novamente, com
resultados quase fatais, devido ao dispositivo. A Guardiã fora destruída, mas, enquanto
Marguerida se lembrasse dela, sempre havia a possibilidade de recria-la.
Você pode ser livre dela, Mikhail disse, se você a deixar aqui.
Marguerida compreendeu imediatamente o que significava. A matriz de sombra
inicialmente tinha sido a pedra angular, o coração da Torre de Espelhos de Ashara. Com ela,
Marguerida poderia recriar a Torre... Ou poderia construir uma nova torre, nunca maculada
pela luxúria de Ashara e pela dominação. A Torre como ela deveria ter sido. Ela poderia
colocar a matriz de sombra em seu coração, construir suas paredes graciosas com a sua
imaginação e depois ir embora.
Se ela nunca tivesse adquirido a matriz de sombra, o que teria acontecido na
emboscada na Antiga Estrada do Norte? Quem teria derrotado as forças de Belfontaine?
Será que o Comyn seria eliminado com esse único ataque ousado?
Sim, a matriz de sombra veio com uma pesada responsabilidade, o ônus da vigilância
constante, assim como o Dom de Alton. E, assim como o Dom de Alton, ele nunca devia ser
usado levianamente.
O que Lew dissera sobre o Dom de Alton? Que era uma arma quando tudo o mais
falhasse? Ela poderia deixar seu mundo e todos que amava sem a defesa adicional de sua
matriz de sombra?
Por um longo momento, ela não respondeu. Ela não precisava. Mikhail tinha
entendido.
Então deixe-nos ir para nossos corpos, ele sussurrou, um beijo para sua mente.
A sensação de realização a preencheu. Depois, com uma corrida como se tiveasse asas,
como o surpreendentemente e rápido anoitecer darkovano, o último brilho desapareceu.
Algum tempo depois, uma eternidade, um piscar de olhos, ela não poderia dizer,
Marguerida voltou a si. Ela sentiu seu corpo, músculos e ossos, a mão esquerda apertada
em torno de um anel. Ela estava deitada em uma cama em um quarto na Torre Comyn, o
mesmo quarto que ela viu de cima. Alguém colocou um braço ao seu redor, firmando-a.
Outra pessoa, com o toque hábil de uma Guardiã, gentilmente abriu os dedos e retirou o
anel.
O D o m d e A l t o n | 372

O som a alcançou, a respiração das pessoas, a voz de seu pai muito baixa e rouca para
entender as palavras, Nico chorando baixinho com exaustão e alegria, o ritmo de seu
próprio coração. Ela abriu os olhos e sentou-se quando Mikhail veio em sua direção com os
pés instáveis. Linnea o apoiou, e o anel brilhou mais uma vez em sua mão direita.
Ela não podia falar, ela só podia olhar para aquele rosto que lhe era tão querido
quanto o ato de respirar. Lágrimas e risos borbulharam dentro dela. Correndo as mãos
sobre suas faces úmidas, ela se entregou ao momento arrebatador.
O D o m d e A l t o n | 373

Capítulo 40

Mesmo com todo cuidado, levaria algum tempo antes que Marguerida e Mikhail
estivessem totalmente recuperados. Com a bênção de Domenic, Donal retomou as suas
funções como paxman de Mikhail. Domenic foi capaz de dar a Yllana e Rory a notícia
simultânea da experiência perigosa de Marguerida e que ambos os pais estavam agora
acordados e se recuperando. Alívio e alegria varreram qualquer indignação momentânea
por terem sido mantidos ignorantes sobre a condição de Marguerida. Yllana assumiu
grande parte dos cuidados de enfermagem, sob a supervisão de Katherine e dos
curandeiros do Castelo. Rory foi liberado de seus deveres para ficar com a sua família, mas
ele saiu apenas o suficiente para visitar os pais com frequência. Niall sempre o
acompanhava quando suas próprias atribuições permitiam.
Domenic se manteve longe da cabeceira de seus pais para visitar a cidade. Quando
visitava os centros de tratamento, ele usava um manto formal de Hastur em azul e prata,
para que pudesse ser facilmente reconhecido, e montava sua égua cinza de raça de Armida.
Era importante que as pessoas vissem o Regente nas ruas e que ouvissem sua voz.
Os abrigos originalmente criados por Darius-Mikhail agora serviam admiravelmente
como centros de distribuição para o soro. Os mecânicos de matriz, leroni e curandeiros,
supervisionavam as equipes que administravam o soro.
Muitos dos que foram tratados estavam bem o suficiente para voltar para casa.
Uma manhã, pouco tempo depois da crise de Marguerida, Domenic encontrou Jeram e
Danilo na área mais pobre da cidade. O prédio em que eles estavam trabalhando tinha sido
um celeiro, com madeiras desgastadas e um piso de terra. Um leve odor de feno e de
cavalos permanecia no ar. O dia final do verão estava leve o suficiente para que as portas
estivessem totalmente abertas, assim como as persianas das janelas sem vidros. Só há bem
pouco tempo atrás, cada canto tinha estado ocupado. Agora cerca de metade das camas
estavam vazias e os demais pacientes não pareciam gravemente doentes. Na verdade,
vários estavam sentados, jogando ou conversando.
Uma mesa tinha sido colocada na extremidade do abrigo, e Jeram e Danilo se
inclinavam sobre ela, fazendo anotações em um diário. Sorrindo, Domenic se aproximou
deles.
- Vai melhor do que esperávamos. - O rosto de Jeram estava marcado pela fadiga. - É
muito cedo para dizer se o soro pode realmente prevenir a infecção ou simplesmente
atenuar isso. Ainda tenho aque executar as análises finais, mas espero reduzir o número de
casos abaixo de um nível crítico.
- Nível crítico? - Domenic perguntou. - Não entendo.
O D o m d e A l t o n | 374

- O fenômeno é chamado de imunidade de rebanho. - Jeram explicou. - Isto é, se


indivíduos suficientes em uma população são imunes, a doença não pode se espalhar além
de uma pequena dispersão, não formando a pandemia de anos anteriores. Mesmo se não
conseguir esse grau de prevenção, ainda podemos tratar as pessoas que contraírem a febre
desenvolver um novo soro no caso do vírus sofrer mutações de novo.
Nós fizemos isso! Domenic foi pego na alegria de Jeram.
- Darkover lhe deve mais do que podemos pagar. – Domenic disse.
- Foi um esforço de equipe. - Jeram parecia desconfortável em receber tais
agradecimentos. - Você, Ulm, Marguerida, Danilo, Darius-Mikhail, as Guardiãs, cada pessoa
que veio para a frente. Nenhum de nós pode reivindicar crédito exclusivo. Ao trabalhar em
conjunto, encontramos uma solução que combinou nossas habilidades de cura pela matriz
com o conhecimento científico do Império.
Danilo ficou pensativo. - Acho que isso foi um sonho desde que os Terranan chegaram
em Darkover. Muitas vezes, nossas duas culturas se chocaram mais do que cooperaram,
mas sempre fomos mais ricos juntos do que separados.
- Era o que o tio Regis sempre dizia. - Domenic comentou.
Um olhar estranho passou pelo rosto de Danilo e, por um momento, ele ficou em
silêncio. Jeram pediu licença para continuar seu trabalho, lembrando Domenic que o soro
ainda devia ser distribuído e os pacientes precisavam dele, para que não sucumbissem a
infecções secundárias.
- Jeram nunca descansa? – Nico perguntou observando o Terranan passar pelas portas.
- Não que eu tenha notado. Raramente vi um homem tão duro, como se sua alma
dependesse de sua expiação por pecados passados. Que o Portador dos Fardos lhe conceda
paz. - Danilo murmurou, fazendo um sinal de bênção.
Sim, Domenic pensou que parecia certo, mesmo se colocado em termos cristoforo.
Lembrou-se do olhar que se passara entre Lew e Jeram durante a reunião quando Jeram
concordou em ajudá-los. Um olhar de compreensão, perdão. Esperança. O conhecimento
que Jeram tinha e o que ele escolheu usar, poderia matar incontáveis vidas ou salvar o
mundo.
Quando Domenic se virou para sair, Danilo disse: - Você ainda não visitou o
acampamento do lado de fora dos portões? Estou preocupado com Alanna. Ela mal saiu do
pavilhão de cura, mesmo quando os outros se ofereceram para tomar o seu lugar. Mais do
que isso. A última vez que falei com ela, ela ainda se recusava a tomar o soro.
Domenic já havia recebido sua dose. Katherine Aldaran havia administrado em todos
no Castelo Comyn com uma eficiência impiedosa que teria feito crédito à Marguerida. O
hypo spray Terran era rápido e não particularmente doloroso. Domenic não podia imaginar
por que Alanna tinha se recusado.
O D o m d e A l t o n | 375

Despedindo-se, Domenic guiou seu cavalo ao longo das ruas em direção aos portões.
O acampamento tinha encolhido desde sua última visita. Gramíneas pisoteadas e cinzas
espalhadas marcavam locais vazios ao redor das pedras cinzas e bem velhas. Um punhado
de homens se movia entre fogões improvisados e as poucas barracas de dormir. Os demais
cuidavam de seus animais no piquete único.
O pavilhão parecia uma manta de retalhos, feita de cobertores e pedaços de barracas,
algumas ainda em cores vivas, outras tão desbotadas e encardidas que sua cor original não
podia ser determinada. Domenic entrou, seus olhos se ajustando à escuridão do interior. O
lugar estava quase deserto. Apenas algumas poucas camas estavam ocupadas. Em uma
delas, um homem de barba branca estava enrolado numa manta, roncando alto. Ele estava
completamente vestido com roupas de pastor e não parecia estar doente. Na verdade, ele
parecia estar desfrutando de um confortável cochilo do meio-dia.
O filho de Ulm de cabelos negros, Rannirl, estava estendido sobre uma outra cama,
com os braços levantados e cruzados atrás da cabeça. Ele sentou-se quando Domenic se
aproximou.
- Um bom dia, Dom Domenic. Gostaria de cumprimentá-lo corretamente, mas...
- Não, não se incomode. - Domenic disse. - Não há ninguém aqui para cuidar de você?
- Não há necessidade. - Rannirl encolheu os ombros. - Eu tinha um pouco de febre,
nada mais. Mestra Varinna ia me dar o remédio ontem, mas eu já estava melhorando. Eu
disse a ela para usar em alguém que realmente precise. Mesmo assim, ela queria que eu
ficasse na cama por mais um dia.
Sorrindo, Domenic balançou a cabeça. Jeram estava certo, a febre virulenta se
transformou em uma forma benigna que daria imunidade a si mesma. O principal perigo
para as pessoas infectadas com a nova estirpe era, no caso do Rannirl, o simples tédio. A
febre original, no entanto, ainda carregava um grave risco.
- Onde está damisela Alanna Alar que estava cuidando dos doentes aqui? Será que ela
voltou para o castelo? - Domenic perguntou.
- Lá. - Rannirl apontou para o canto mais distante. - Embora ela não tenha se movido
desde que acordei esta manhã.
Alarmado, Domenic correu. É verdade que era Alanna, mas aquilo não era o sono
normal de exaustão. Ela tinha se enrolado em uma bola, tremendo sob camadas de
cobertores. Seus olhos estavam fechados, as faces coradas. Ele podia ouvir sua respiração
chiando em seu peito. Quando ele a tocou, sentiu o calor intenso de seu corpo frágil.
O que Alanna tinha pensado para assumir tal risco? Por que não tinha tomado o soro,
como as outras enfermeiras fizeram? Sua cabeça fervia com perguntas para expulsar o que
o aterrorizava...
E se ela morrer?
O D o m d e A l t o n | 376

Não, isso não iria acontecer. Ela não estava além da ajuda. Muitos em estado mais
crítico haviam se recuperado.
- Alanna?
Através de lábios rachados, ela murmurou algo que ele não conseguiu entender.
- Rannirl, você pode me ajudar? - Domenic chamou. - Tenho que levá-la para o Castelo
imediatamente. - Ele levantou Alanna para deixá-la sentada. Ela tinha sempre sido pequena
e suas vestes grandes disfarçaram o quão magra ela ficou.
Olhando aliviado por ser útil, Rannirl ajudou Domenic a colocar Alanna na frente dele
na sela da égua cinza. O animal bufou, sem saber o que fazer com esse peso extra. Ela se
acalmou ao toque de Domenic e moveu-se facilmente. Eles se dirigiram para a cidade em
um ritmo acelerado. A cabeça de Alanna pendeu sobre o peito de Domenic, balançando
com o movimento do passo do cavalo. Enquanto passavam pelos portões e abriram
caminho ao longo das ruas barulhentas, ela despertou.
- Nico, é inverno de novo? Eu estou com tanto frio...
- Silêncio, meu amor. Vou te levar para casa e acender uma lareira para mantê-la
aquecida. Agora fique quieta. Estou aqui com você. Tudo vai ficar bem.
Com um suspiro, ela descansou o rosto contra ele e voltou para a inconsciência.
Imediatamente após sua chegada ao Castelo Comyn, servos carregaram Alanna para
dentro e outros foram em busca de um curandeiro. Domenic deixou o cavalo aos cuidados
de um cavalariço e correu pelo labirinto de escadas e corredores do castelo até a ala da
família Alton. Enquanto caminhava pelo corredor, Illona e Charissa estavam examinando
Alanna em seu quarto.
Domenic lembrou de estar ali de pé, do lado de fora da porta de Alanna, na noite do
funeral da avó Javanne. Ele tinha ficado meio bêbado, fervendo com a frustração e revolta.
Se tivesse sido apenas um ano atrás, e se Alanna não tivesse se tornado tão encantadora
para ele, será que teria se imaginado ocupando o lugar de seu pai? Como ele conhecia
pouco dos deveres e do amor...
A porta se abriu e Illona saiu. Domenic lutou para não se jogar em seus braços. Seu
sorriso fugaz e a luz constante de seus olhos eram como um abrigo para um homem preso
em uma nevasca nas Hellers. Calor espalhou-se por ele. Seu pulso acelerou. Seu coração
doía de desejo. Então ele se sentiu enojado consigo mesmo. O que ele estava fazendo,
quando Alanna estava tão doente?
- Nós fizemos tudo que podíamos. - Illona disse gentilmente. Ela não deu nenhum sinal
de que estava ciente da turbulência emocional de Domenic, embora ela não pudesse ter
confundido a intensidade de seus sentimentos. - Antes de ir, há algo que você deve saber.
Querido, ela falou com ele mentalmente, eu acho que ela não quer ser ajudada.
O D o m d e A l t o n | 377

Em voz alta, ela disse: - Nós demos a infusão de casca de salgueiro para baixar a febre.
Ela sabe que está doente e não quer receber o tratamento, então é mais provável que ela
morra. Ela se recusa a tomar o soro e proibiu-nos de administrá-lo se ela ficar inconsciente.
Domenic, sei que ela tem uma reputação de ser irracional, mas nunca vi ninguém tão
determinado. Ela lembrou meu juramento de monitor para me impedir de tomar qualquer
ação.
Domenic estava muito chocado com essa notícia para pensar claramente. Soou como
se Alanna quisesse morrer.
- Juramos nunca entrar na mente do outro, sem consentimento, exceto para ajudar ou
curar. - Illona continuou. - E Alanna alegou que não podemos tratar o corpo dela se ela
recusar a permissão. Ela está correta em princípio, é claro. A única maneira de contornar
isso é presumir que ela é louca, o que não é claramente o caso.
- Bem-aventurada Cassilda! O que devemos fazer?
- Vá até ela, precioso. Fale da força que ela lhe dá. Talvez seja isso que ela precise para
recuperar a vontade de viver.
Illona colocou os dedos contra a parte de trás do pulso de Domenic, um toque de
telepata para telepata. Incapaz de conter suas emoções, ele pegou a mão dela e levou-a
aos lábios. Uma ternura dolorida subiu do núcleo do seu ser e corria para o beijo.
- Você está me enviando para Alanna, sabendo que a única chance de salvá-la pode ser
a promessa que uma vez fiz para ela?

- É claro. - Illona pressionou suas mãos unidas ao peito, sobre o coração batendo. -
Você deve honrar essa promessa sem diminuir o que temos. Se você fosse capaz de se
afastar dela, agora, quando ela mais precisa de você, você não seria o homem que amo.
- Você não quer nada para si mesma então?
Ela soltou sua mão e virou-se com um pequeno suspiro. - Eu já tenho mais do que
jamais sonhei ser possível. Tenho o seu amor e a música que nasce no meu coração quando
estamos juntos. Tenho um lugar no mundo. Um dia vou ser uma Guardiã e sem dúvida você
será o Regente de Darkover.
Enquanto estou comprometido com Alanna, ele retrucou, você também não tem que
escolher entre a Torre e o casamento. Como é conveniente para você!
Illona ergueu o queixo e olhou para ele. Um instante depois, sua expressão suavizou. -
Não vamos brigar. Pelo contrário, vamos valorizar os momentos que temos juntos, e sua
lembrança quando ele passar.
Por um momento, ele não conseguiu falar. Seu coração subiu em sua garganta e suas
próximas palavras vieram com um soluço. - Eu nunca vou amar alguém do jeito que te amo.
O D o m d e A l t o n | 378

Seus lábios tremiam e seus belos olhos verde-jade brilhavam com lágrimas. Ele
lembrou do sabor de seus beijos, o toque aveludado de seus seios, a queda sedosa de seu
cabelo em seu peito nu. Uma parte dele queria gritar que não poderia viver sem ela e que,
uma vez que estivesse casado com Alanna, ele nunca saberia como era fazer amor
novamente. As catenas trancadas nos pulsos iriam separá-los para sempre.
O momento fugiu e a Sub-Guardiã mais uma vez olhou para ele. Com uma reverência,
ele a deixou e foi até Alanna.
Alanna estava dormindo quando ele entrou em seu quarto. Katherine estava sentada
com ela, lendo em voz alta um livro de fora do mundo de histórias infantis.
Domenic estava atordoado pela mudança de Alanna. O rubor da febre tinha passado,
deixando sua pele, até mesmo os lábios, pálidos como alabastro. Sua respiração era
superficial, quase letárgica, exceto quando um acesso de tosse a sacudia.
- Talvez eu deva voltar em outra hora. - Domenic disse, fazendo menção a se retirar.
- Não, ela vai ficar feliz com sua presença. Ela ficou perguntando por você. - Katherine
se inclinou para secar o suor do cabelo emaranhado na testa da menina. - Alanna, querida,
ele está aqui.
As pálpebras se abriram, revelando olhos como esmeraldas desbotadas contra a
brancura de sua pele.
Katherine se desculpou, dizendo que iria esperar na sala da família até ser necessária.
Domenic a seguiu até a porta.
- Você vai convencê-la a tomar o soro, não é? - Katherine disse. - Os curadores dizem
que ela tem muito pouco tempo antes de ser tarde demais. Nenhum de nós pode
compreender o que aconteceu para ela recusar o tratamento.
Domenic pensou nas visões que ele tinha compartilhado com Alanna e do tormento
que causou a todos. E se ela tinha chegado ao fim da sua resistência e queria apenas o sono
sem sonhos? Ou ela tinha escolhido a morte em vez de vê-lo com outra mulher?
Se isso fosse verdade, se Alanna morresse, então ele seria culpado por sua morte. Era
a sua condescendência egoísta, sua paixão lasciva, que tinha acabado com o seu afeto. Ela
nunca vacilou em sua devoção, enquanto ele tinha escolhido outro amor.
Ele não tinha direito de seguir o seu coração? Ele devia ser fiel a uma promessa
equivocada?
Será que seus sentimentos pessoais tinham algum peso quando a vida ou a sanidade
de uma inocente estava em jogo? Uma jovem, sua amiga de infância, rejeitada por sua
própria mãe, uma menina que tinha confiado em sua honra e nunca lhe desejara qualquer
mal.
- Você tem que fazer alguma coisa. - Katherine falou, a indignação latente por trás de
suas palavras. - Ninguém mais vai intervir, nem mesmo para salvar sua vida. Isso nunca
O D o m d e A l t o n | 379

aconteceria em um lugar civilizado, quero dizer, um mundo do Império. Temos leis que
regem tais situações.
- Mas nós não. - Domenic comentou.
Katherine deu um suspiro de exasperação. - Então talvez seja a hora de ter!
- Farei o que puder. - Domenic respondeu.
A porta se fechou atrás dela. Domenic se ajoelhou ao lado da cama, pegou a mão de
Alanna e sentiu a pele fria. Esse era o efeito temporário do chá de casca de salgueiro que
ele já conhecia, e não qualquer melhora em sua verdadeira condição.
- Não me repreenda. - Alanna sussurrou. - É melhor assim, realmente é. Não sinto dor,
exceto se eu tossir. Só um grande cansaço.
- Alanna, por que você está fazendo isso? Nós temos bastante soro para quem precisa.
Você não vai privar algum outro paciente do tratamento.
- Não tenho medo da morte. Será como dormir, só que sem sonhos. Ah, como eu
gostaria de nunca sonhar de novo.
- Você não sabe o que está dizendo. - Domenic disse. - E todas as coisas boas que você
nunca vai ver de novo? A Noite do Festival do Meio do Inverno em Thendara, os peixes-
pássaros no Lago Hali, as flores silvestres nas Hellers! Melhore e vamos ver tudo isso juntos.
- Quando ela balançou a cabeça em negativa, ele continuou. "0- E a vida que planejamos
juntos? As promessas que trocamos? Nosso casamento?
Alanna fechou os olhos e um silêncio caiu sobre sua carne. Então, ela respirou
profundamente, estremecendo. - Por favor, não me atormente, Nico. Eu não sou cega, nem
sou criança para ser comprada com mentiras bonitas. Você ama Illona de uma maneira que
você nunca poderia me amar. Que razão tenho para viver, sabendo que seu coração
pertence a ela?
Oh Abençoada Cassilda, São Cristóvão, qualquer deus que estiver ouvindo! Não posso
mentir para ela, mas não posso deixá-la morrer! Ajude-me!
Lentamente, escolhendo cada frase com cuidado, Domenic começou: - Não podemos
mudar o modo como nos sentimos, mais do que podemos alterar a nossa natureza com a
qual os deuses nos fizeram. Mas o que podemos fazer é escolher nossas ações.
- Sim, - ela murmurou na pausa hesitante que se seguiu - isso é verdade. Eu... Eu tentei
me comportar melhor do que antes.
- Então, vamos honrar a promessa que fizemos um ao outro. Eu me importo com você,
Alanna, e cortarei meu braço direito antes de deixar qualquer mal vir alcançar você. Por
favor, acredite nisso. Talvez - ele engoliu - esta não seja a grande paixão romântica que
sonhamos, mas se você me der uma chance, vou ser um marido fiel e verdadeiro para você.
Vou enviar Illona para longe e nunca irei vê-la novamente.
O D o m d e A l t o n | 380

Ela virou a cabeça no travesseiro para olhá-lo no rosto, os olhos arregalados. - Você
faria isso por mim?
Domenic teve o vislumbre do mundo através de uma névoa vacilante de dor. Sua voz
formou palavras que nunca poderiam ser ditas. Nunca ser livre... Nunca segurar Illona em
seus braços, sentir a doce união arrebatadora de seus corpos e mentes...
Olhar apenas para Alanna, com quem ele nunca poderia compartilhar qualquer
contato íntimo. Mesmo que pudesse superar seu condicionamento, ele não podia. Outra
darkovana teria sido capaz de aceitar que ele poderia amar duas mulheres de maneiras
muito diferentes. Mas sua criação foi moldada pelas atitudes de fora do mundo de sua mãe
e sua devoção sincera pelo seu pai. Após Illona, ele não achava que fosse fisicamente capaz
de fazer amor com uma mulher com quem ele não poderia também compartilhar sua
mente e coração em níveis mais profundos.
Quanto a filhos, ele não podia lançar qualquer culpa sobre Alanna se não fosse
possível. Rory nunca seria pai, mas Yllana poderia se casar e, se ela não o fizesse, Domenic
poderia designar um dos seus primos, filhos de seus tios Gabriel ou Rafael, como herdeiro.
- Tome o soro e viva. - Ele pediu. - Estaremos unidos para sempre di catenas.
Um tremor passou através do corpo de Alanna e ela balançou a cabeça lentamente.
- Então, sim, eu vou ser sua esposa.
O D o m d e A l t o n | 381

Capítulo 41

Enquanto Alanna e outras vítimas de febre das trilhas se recuperavam, Marguerida


retomou suas atividades depois de seu próprio calvário. Ver Mikhail vivo e se fortalecendo a
cada dia, segurando-a a cada noite em seus braços, sentindo seu hálito doce contra sua
pele e olhando para as profundezas azuis de seus olhos, restauraram seu espírito muito
melhor do que qualquer medicamento. O carinho de Yllana e as visitas frequentes de Rory,
muitas vezes com esse amigo da Guarda, aqueceu o seu coração.
Em uma manhã brilhante, Marguerida e Mikhail se reuniram na sala de estar da família
para saborear uma última xícara de café aromático de Jeram. Um fogo crepitava na lareira,
perfumado com seu bálsamo favorito. Alguém, Marguerida suspeitava que era Yllana, tinha
colocado arranjos de flores alaranjadas e rosadas por todo o salão. Marguerida ignorando
as cores berrantes, descansava seu olhar em cada objeto querido familiar. Cada cadeira,
cada mesa e ornamento, cada tapete que amortecia seu piso, mesmo os paineis de madeira
com textura quentes e janelas de vidro de chumbo, cantarolava contentamento e sua
pertença.
Casa, estou em casa.
Seu momento de tranquilidade teve uma parada abrupta quando Domenic e Rory
entraram e a confrontaram com inesperados anúncios. Cada um deles, ao que parece, havia
formado uma ligação romântica.
Ela enfrentou seus filhos, sem saber se estava mais irritada por eles terem feito
segredo à ela por tanto tempo, ou por ela ter perdido todas as pistas. De sua cadeira
favorita ao lado do fogo, Mikhail sorriu para ela.
Um olhar de alívio nos olhos de Rory foi suficiente para dissipar quaisquer dúvidas.
Marguerida levantou-se e estendeu os braços. Rory recebeu o abraço com entusiasmo.
Segurando-o no abraço, ela disse: - Oh, meu menino, meu caro, quão difícil deve ter sido
para você!
Rory encolheu os ombros.
- Acho que todos sabíamos, mas sem acreditar. - Ela continuou, lembrando quantas
vezes ela tinha perguntado sobre seu interesse pelas meninas.
- Certamente todos em minha unidade da Guarda sabem. - Rory disse. - Não se
preocupem, não fiz nada para denegrir o nome da família. Mantenho minha vida
profissional e amorosa completamente separadas, mas não posso mentir sobre quem eu
sou.
- Não. - Marguerida disse baixinho. - Eu nunca quero que você faça isso. - Ela se
perguntou onde seu filho selvagem e desatento tinha aprendido esse auto-controle.
O D o m d e A l t o n | 382

Ela sentou-se novamente, com seus pensamentos girando. Parecia que seus sonhos de
ver Rory feliz com uma mulher iriam acabar acontecendo de maneira muito diferente do
que ela imaginou. Ela lembrou-se de que em Darkover, homens formavam compromissos
ao longo da vida, tão respeitáveis e honrados como qualquer casamento convencional.
Regis Hastur e Danilo Syrtis tinha ficado juntos, bredin e amigos devotados, lorde e paxman,
desde o momento em que chegaram a idade da Rory. Regis tinha até casado e era pai de
vários filhos.
- Bem, - disse ela, recorrendo a sua inteligência - qual é o nome dele e quando vou
conhecê-lo? Ele também é da Guarda?
Rory hesitou por um momento, olhando tão nervosa e euforicamente quanto qualquer
jovem no auge de seu primeiro namoro sério. - Você já conheceu. É Niall. Sua família vem
da região das Colinas Venza e são relacionados com os Castamirs. Vou convidá-lo para
jantar, quando as coisas se acalmarem após a última reunião do Conselho, se estiver tudo
bem, então você poderá conhecê-lo melhor.
- Tenho certeza que todos nós vamos amá-lo como você o faz. - Ela se virou para
Domenic, impressionada com a sua mistura de tristeza e resolução. - E você, Nico?
Alanna era a última pessoa Marguerida teria escolhido para seu primogênito. Talvez
por isso, por todos os seus medos, ela não conseguira ver o que tinha crescido entre eles.
Nunca houve qualquer dúvida do carinho de Domenic por sua irmã adotiva, mas
Marguerida tinha presumido que não era mais do que uma amizade de infância. Alanna era
linda e talentosa e desde que tinha se recuperado da febre tinha sido um modelo de
decoro. Mas Alanna poderia compreender verdadeiramente Domenic, com toda a sua
complexidade? Ela poderia ficar ao seu lado, com o que quer que acontecesse?
Quando Marguerida viu Domenic com Illona, ela poderia ter jurado que a
profundidade e a paixão dariam resultados. Na verdade, eles lembravam dela e de Mikhail
quando eles viveram os primeiros anos no amor. Talvez ela tivesse se enganado neste
ponto. Ou talvez... Seu coração doía ao pensar em casar Domenic por um senso de
obrigação.
Você tem certeza? Ela perguntou, falando de mente para mente.
Domenic olhou para longe. - Alanna e eu estamos jurados um ao outro a um longo
tempo. Sinto muito se não lhe disse antes. Temíamos sua desaprovação. Sei que seu
relacionamento com Alanna nem sempre foi fácil. Ainda assim, foi errado manter oculto de
você e de você também, pai.
Mikhail assentiu. - Isso está no passado agora. Você e Alanna são adultos. Se ela é a sua
escolha, então lhe desejo felicidade juntos.
- Sinto muito por eu ter tornado difícil para você confiar mim. - Marguerida disse. -
Vou tentar ser uma boa mãe-de-adoção ou o mais próximo disso possível.
O D o m d e A l t o n | 383

Domenic beijou-a no rosto, murmurando os seus agradecimentos. Depois que ele e


Rory se despediram, Marguerida pensou sobre a diferença entre eles. Rory estava com o
espírito elevado e em júbilo, mas ele sempre foi mais aberto em suas emoções. Domenic
não parecia um homem alegre prestes a uma união muito desejada. Ele parecia... Ela não
sabia o quê. No entanto, ela sentiu incerteza em si mesma e algumas reservas. Mas ele
estava comprometido com esse curso de ação.
Marguerida foi ficar ao lado de Mikhail e, suspirando, colocou o braço sobre seu
ombro. Ele tocou-lhe a mão, intensificando o relacionamento que sempre ligara suas
mentes.
Nico ficará bem, amada. Mikhail enviou o seu pensamento para ela.
E feliz? Ela respondeu. Será que ele vai ser feliz?
Ele nunca teve uma vida fácil e ainda assim ele encontrou seu próprio caminho no seu
próprio tempo. Um ou dois anos atrás ele não poderia ter ficado em meu lugar ou conduzido
a cidade através de uma crise. Ele tornou-se um líder de homens. Temos de confiar nesse
casamento e que ele sabe o que está fazendo.
Marguerida se inclinou e beijou o marido, tentando convencer-se de que estava
satisfeita com a mesma fé dele em seu filho mais velho. - Bem, isso está resolvido. Agora
tenho de ir. Há uma entrevista que não podemos adiar por mais tempo.
- Você vai ter cuidado, não é, para não se cansar?
Ela parou na porta. - Só se você também se cuidar, Mikhail Lanart-Hastur, mas você
sabe perfeitamente bem que nenhum de nós vai seguir esse conselho!

~o ⭐ o~
Marguerida tinha apenas alguns minutos para relaxar em seu escritório quando um
servo anunciou a chegada de Jeram. Ela permaneceu em sua mesa quando ele entrou,
então percebeu que estava se escondendo por trás dela e se obrigou a sentar-se no divã.
Cada um deles se serviu de jaco do jarro sobre o aparador. Ela realmente não queria jaco,
não depois de beber café mais cedo, mas isso lhe deu algo para fazer com as mãos. Os
pequenos gestos aliviaram a tensão para iniciar a conversa.
- Obrigada por ter vindo me ver. - Ela começou.
- É uma distração bem-vinda. - Ele respondeu com um sorriso cativante. - Tenho
embalagens de soro para enviar aos pontos de distribuição ao longo dos principais
Domínios e fazer o treinamento das Renunciantes voluntárias para administrá-lo. É um
trabalho tedioso, mas necessário. Fico feliz em vê-la se recuperando.
- Não pedi pra você vir aqui para falar de minha saúde, mas sim sobre outro assunto.
Sobre a batalha e o que aconteceu depois. - Ela fez uma pausa, à espera de sua resposta. -
Isto é, se você estiver disposto a discutir o assunto.
O D o m d e A l t o n | 384

- Essa questão não foi resolvida, não é? - Ele perguntou. - O Conselho irá discutir sobre
isso novamente antes que todos sigamos caminhos diferentes.
- Eu não me refiro às acusações que Francisco trouxe. Ele é...era um homem odioso,
mesquinho e vingativo que não se importava nem um pouco com ética de laran. Ele só
queria machucar Mikhail através de mim. Não, eu me refiro ao que aconteceu entre você e
eu. Quero dizer que usei o Dom de Alton em você. Eu impus minha vontade sobre a sua.
Jeram encontrou seu olhar. Seus olhos estavam firmes, um castanho-avermelhado
profundo e claro. Ela não viu nenhuma das hostilidades que ela esperava, nem amargura ou
ressentimento. - Eu falei com seu pai sobre o assunto em mais de uma ocasião. Você não
precisa se desculpar ou se justificar pelo que fez. Eu seria a última pessoa a deixar o Império
ter em suas mãos uma arma como o seu laran.
Marguerida esfregou as palmas das mãos suadas na saia. Como era estranho, pensou
ela, que suas mãos estivessem molhadas e sua boca seca. Ela limpou a garganta.
- Às vezes as coisas não são tão simples. - Ela disse. - Posso ter forçado você e os
outros a esquecer a batalha por uma boa razão, mas eu ainda posso ter...tê-lo prejudicado.
Sua voz vacilou. Era mais difícil do que ela pensava. Mas ela podia retroceder, dizer
que foi um erro, deixar cair o assunto e graciosamente e deixa-lo seguir seu caminho. Mas
Jeram não disse que ela não precisava se desculpar?
Seu pai tentou avisá-la. E, de todas as pessoas, sou um dos que mais sabem o que é ter
a mente manipulada por outra pessoa.
Na época, ela tinha visto apenas um homem torturado infligindo uma culpa
desnecessária sobre si mesmo. Ela tinha visto apenas as consequências políticas de suas
ações, não o efeito de usar o Dom de Alton sobre ela e seu pai pessoalmente.
Lew tinha feito as pazes com sua consciência, mas ela não podia buscar o consolo do
Mosteiro de Nervasin. Ela pertencia ao mundo, não ao claustro ou a uma Torre. Então, ela
precisava encontrar sua paz de alguma outra forma.
Ela mergulhou no passado. - Quando eu era criança conheci um fantasma, uma
entidade do meu passado. Quando eu era pequena, ela ofuscou minha mente. E eu nem
sequer me lembrei disso por muito tempo, mas, mesmo assim, ela me influenciou... Então
você vê, eu sei o que significa ter alguém controlando meus pensamentos e memórias. -
Algo se quebrou dentro dela. - Eu sinto muito! Gostaria que tivesse havido alguma outra
maneira!
Jeram olhou diretamente para ela novamente, sua expressão era calma e simpática. -
Você não me feriu. Se fez alguma coisa, na verdade você ajudou a despertar meu laran
latente. Quando ele surgiu, fiquei bem doente, mas essa parte não é culpa sua. Como
resultado, no entanto, tive que enfrentar as coisas que eu tinha feito. Isso não teria
acontecido sem você.
O D o m d e A l t o n | 385

- Eu não entendo. – Ela admitiu.


Ele se inclinou para frente e tomou-lhe as mãos. Vivendo entre telepatas e cegos
mentais, ela estava acostumada ao toque casual. Mas esse não fora casual.
- Você fez sua escolha a fim de preservar vidas. – Ele disse, em voz baixa e intensa. -Eu
fiz a minha para destruí-las. E, graças ao bom humor dos Deuses, me foi dada a chance de
usar o meu treinamento para fazer o bem em lugar de destruir. Obrigado.
Incapaz de suportar a intensidade do contato por mais tempo, Marguerida soltou suas
mãos.
Em seu coração, ela sentiu o perdão de Jeram e também seu próprio desejo de ser
perdoado.
Marguerida não sabia o que ela poderia dizer para aliviar o seu fardo. Certamente, o
que ele havia feito para salvar Darkover da febre devia expiar o seu passado. Mas ela não
tinha certeza disso, mais do que o seu pai. Cada um devia encontrar seu consolo. Com
ardor, tanto quanto ela poderia afirmar, desejou que fosse feliz.
Depois da saída de Jeram, ela estava na janela, olhando fixamente para fora. Após a
Batalha, será que ela tinha feito a escolha certa? Tinha pesado as alternativas? Mas essa
não foi a única vez que ela tinha usado o dom de Alton. A primeira vez aconteceu não muito
tempo depois de sua chegada em Darkover, quando ela não sabia nem o que era laran.
Pega de surpresa, ela tinha enviado uma criança para o Mundo Superior! Ela poderia ter
morrido ali.
Quando os bandidos me emboscaram na trilha, usei o dom novamente. Eu poderia ter
matado todos ali.
Memórias passaram por trás de seus olhos, os usos pequenos e grandes do seu dom.
Ela lembrou o grito angustado de seu pai, ‘Marja, não!’, na noite da rebelião, às portas do
castelo.
Eu tive sorte até agora de não ter matado ou mutilado alguém com o meu dom.
Quanto tempo posso manter essa sorte? Como posso confiar em mim mesma para não
fazer a escolha errada em um momento de desespero? Meu pai estava certo. Esse laran é
poderoso demais para ser usado levianamente ou por impulso.
No dia anterior Istvana tinha falado com Marguerida sobre as acusações ainda
pendentes contra ela. Com uma expressão que não teria sido de desculpas para ninguém,
mas como uma Guardiã, Istvana explicou que, embora o Conselho Comyn pudesse ignorar a
acusação de Francisco de abuso de laran, as Guardiãs não podiam. O Comyn era
naturalmente grato a Marguerida e Mikhail por salvar suas vidas na batalha. Eles também
entenderam a necessidade de ter certeza que o Império nunca descobriria o quão poderoso
era o laran. Mas as Guardiãs, especialmente as conservadoras como Laurinda e Moira
O D o m d e A l t o n | 386

DiAsturien, tinham outra visão. Elas se sentiam responsáveis por fazer cumprir os limites
tradicionais do laran e estavam acostumadas a ter autoridade absoluta.
Então, Marguerida tinha respondido, não haveria qualquer justificação válida para
apagar as memórias dos soldados Terran. E o meu pai? Ele já não sofreu o suficiente?
Istvana, ao ver a aflição de Marguerida, tentou tranquilizá-la. - Você não está sem
amigos que a conhecem e amam você. Minhas companheiras Guardiãs podem ser
obstinadas e teimosas, mas todas queremos o melhor para Darkover. Certamente, uma vez
que todos os lados da questão forem apresentados, vamos chegar a uma resolução
aceitável.
Uma resolução aceitável...
O único lugar que Marguerida conhecia, onde seu dom poderia ser utlizado com
segurança por essas normas era uma Torre. Ela tinha estudado em Arilinn e Neskaya em
sua juventude. Mais do que isso, ela não era mais uma mulher solteira que poderia se dar
ao luxo de se retirar do mundo, pois ela tinha um marido, filhos, responsabilidades como
castelã do Castelo Comyn e até mesmo uma carreira musical.
Suspirando, ela voltou para sua mesa e pegou uma pilha de papeis. Pensar de maneira
infrutífera não iria levá-la a lugar nenhum. Seu otimismo natural começou a afirmar-se.
Com o tempo, a solução se apresentaria. Até então, tinha trabalho mais do que suficiente
para se distrair.
O D o m d e A l t o n | 387

Capítulo 42

O Conselho Comyn se reunira na Câmara de Cristal para sua última sessão do ano. A
temporada já havia durado tempo demais e o curto verão foi rapidamente dando lugar à
neve noturna e a ameaça das tempestades que viriam. Aqueles que viajariam para longe ou
que dependessem das passagens abertas nas montanhas estavam ansiosos para começar
suas viagens.
Domenic tomou seu lugar sob a bandeira de Hastur em azul e prata, observando como
as pessoas lotavam a Câmara de Cristal. A própria Câmara parecia eterna e intocável como
sempre, ainda que muitos dos rostos haviam mudado. Darius-Mikhail Zabal agora era
Regente de Aillard, sentado ao lado de Laurinda MacBard que presidia o Conselho das
Guardiãs. A maioria das outras Guardiãs, incluindo Linnea Storn, sentavam juntas sob sua
nova bandeira. O setor de Ardais, que uma vez quase ficara vazio, agora era liderado por
Kennard-Dyan, seu herdeiro e seu segundo filho legitimado, assim como Danilo Syrtis,
silencioso e solene.
A pesada cadeira esculpida de Mikhail permanecia vazia, aguardando o seu retorno.
Marguerida, com o rosto pálido, mas radiante por dentro, estava sentada em sua cadeira
de costume, enquanto Rory e Ylanna ocupavam bancos atrás deles.
Lew tinha anunciado sua intenção de voltar permanentemente para Nervasin na
conclusão dessa sessão final. Alanna tinha tomado seu assento ao lado dele. Uma vez que
ela havia aceitado o soro, teve uma rápida recuperação, mas Domenic nunca tinha visto ela
tão retraída, tão pensativa. Ela não iria dizer o que a perturbava. Quando eles se casassem,
ele prometeu a si mesmo, lhe daria toda felicidade, mesmo sem ter ideia de como faze-lo.
Illona terminou de ligar os amortecedores telepáticos e tomou seu lugar com as outras
Guardiãs. As portas maciças duplas se abriram e o Guarda sênior anunciou a chegada de
Mikhail.
Mikhail entrou na Câmara de Cristal, movendo-se lentamente, pois seus músculos
ainda não tinham recuperado totalmente a sua flexibilidade. Donal seguiu um passo atrás.
O efeito combinado foi digno, em vez de duro. Observando-o, ouvindo o silêncio de
respeito que varreu a Câmara, os olhos de Domenic arderam.
Iniciando a assembleia, Mikhail começou a formal e honrada saudação. - Parentes,
nobres, Comynari! Dou-lhes as boas-vindas a este nosso encontro final do ano. Passamos
por um momento terrível, uma temporada que testou a todos nós, como indivíduos e como
Conselho. - Ele não acrescentou que os próximos anos iriam provar se eles tinham passado
no desafio ou danificado irremediavelmente a velha ordem social.
- Agora, enquanto nos preparamos para oferecer nossa despedida, temos motivo de
alegria. É meu grande privilégio apresentar-lhes um homem que, mais do que qualquer
O D o m d e A l t o n | 388

outro, tem trabalhado em nosso nome durante a epidemia de febre. Vocês o conheceram
uma vez em circunstâncias muito menos favoráveis. Agora lhes peço para acolher o
Terranan Jeremiah Reed, que escolheu viver entre nós como Jeram de Nervasin.
Mikhail assentiu aos Guardas em pé de cada lado da entrada. Eles abriram as portas e
Jeram entrou. Ele veio sozinho, sem uma guarda de honra, percorrendo de maneira digna o
comprimento da Câmara e parou de frente para Mikhail.
Em um movimento fluido único, Marguerida ficou em pé, seguida um instante depois
por seu pai. Por toda a Câmara isso se repetiu. No setor de Ardais, Danilo levantou-se,
seguido por Hermes Aldaran. Uma onda se espalhou através da assembeia e, dentro do
período de um punhado de batimentos cardíacos, cada pessoa tinha levantado.
Jeram ficou lá, o rosto impassível, mas seus olhos muito mais brilhantes do que o
normal. Nem mesmo uma pitada de tensão em sua mandíbula traía qualquer emoção.
Só quando o Conselho sentou-se novamente que uma cor tênue voltou ao seu rosto.
- Jeram de Nervasin, - disse Mikhail - como Regente do Comyn e Lorde Hastur, dou-lhe
boas-vindas a este Conselho e lhe estendemos a nossa mais profunda gratidão.
- Vai dom. - Jeram se curvou para Mikhail, uma inclinação breve de cabeça. - Meus
lordes, minhas ladies, o privilégio em servir foi meu. Nunca esperei contar com minhas
habilidades de Terran desta forma, mas sou profundamente grato por ter sido capaz de
usá-las em uma causa tão digna.
Em torno da Câmara cabeças assentiram em aprovação. Jeram tinha respondido tão
graciosamente quanto qualquer um deles poderia desejar.
Darius-Mikhail, como Regente de Aillard, se levantou para falar. - Em meu nome e do
meu Domínio, convido Jeram a sentar-se comigo como meu convidado durante esta sessão
de encerramento.
Quando Jeram tomou o lugar que lhe foi oferecido, uma onda de tensão passou pela
sala. Sua presença serviu como um lembrete da questão ainda não resolvida, as acusações
feitas por Francisco contra Marguerida. Jeram podia não ser o autor, mas as palavras foram
ditas e ainda haviam acusações de pé.
Domenic se preparou quando Laurinda se levantou para se dirigir ao Conselho e ficou
surpreso por se tratar de outro assunto.
- Thendara tem tido necessidade de uma Torre de trabalho - disse ela, modulando sua
voz alta e nasal - tanto para facilitar a comunicação telepática pelas telas de transmissão,
quanto para participar da pesquisa e formação de novos candidatos. O Conselho das
Guardiãs portanto, decidiu reabrir a Torre Comyn e Domna Linnea Storn consentiu em
servir como sua Guardiã. O círculo será pequeno no início, elaborado a partir de voluntários
das Torres existentes, mas esperamos que, com um programa de recrutamento vigoroso,
possa alcançar a plena força.
O D o m d e A l t o n | 389

Olhando em volta da Câmara, Domenic pensou que mesmo os membros mais criativos
do público mal podiam entender tal anúncio surpreendente. Não tinha havido uma nova
Torre nos Domínios dentro da história gravada ou uma Torre sendo renovada, mas apenas
sendo encerradas. Ele sabia que haveriam muitas mais, mas com o passar do tempo a lenta
decadência do Comyn causou estragos demais para ser abandonada.
- E agora, - Mikhail disse - meu filho e herdeiro, Domenic, pretende anunciar uma
razão mais pessoal para a celebração.
Domenic se adiantou para que toda a assembleia pudesse vê-lo. Por um instante, sua
determinação vacilou. Suas próximas palavras, uma vez ditas, nunca poderiam ser levadas
de volta.
Os amortecedores telepáticos tornavam o contato mental com Illona impossível. Se
ele sequer olhasse para ela, ou sentisse a doçura de sua mente tocar na dele, ele iria
quebrar. Ele deveria encontrar uma maneira de suportar a sua despedida e faria o seu
melhor para tratar Alanna com respeito e bondade, mesmo que eles nunca pudessem
compartilhar a intimidade física. A honra exigia isso.
Ele respirou fundo, evitando cuidadosamente até mesmo uma olhada casual na
direção do Illona. – Pedi para damisela Alanna Alar tornar-se minha esposa e ela consentiu.
Para Domenic, sua voz soou distante e impassível a em seus próprios ouvidos. Ele
tinha ensaiado o anúncio tantas vezes em sua própria mente que toda a emoção parecia
totalmente gasta. Seu coração parecia um pedaço de pedra.
Excitação zumbia em toda Câmara de Cristal. Domenic imaginou todos fazendo planos
para o seu casamento e para todas as festividades decorrentes. Eles não tinham tido uma
ocasião assim, um casamento dos Hastur, desde que Dani se casou Miralys Elhalyn.
O murmúrio diminuiu quando Alanna deu um passo para frente, saindo do setor dos
Altons. Pessoas cutucavam seus vizinhos para pararem de falar para que eles pudessem
ouvir o discurso de aceitação da noiva.
Alanna raramente tinha estado tão bonita ou graciosa quando se levantou. Ela estava
mais pálida e mais magra do que antes de sua doença, mas sua pele brilhava como leite
contra o cobre reluzente de seu cabelo e o verde de seu vestido, com os seios cobertos por
um tartan colorido.
- Vai domyn, parentes e parentas. - Sua voz nunca tinha sido muito forte, mas a
audiência ouviria mesmo que fosse um sussurro. - Estou consciente da grande honra
oferecida por Dom Domenic Alton-Hastur e por esta distinta assembleia. Não vou insultá-lo
com protestos de minha própria indignidade, mas devo respeitosamente declinar.
- Recusar? O que ela quer dizer com declinar? - Uma das ladies disse.
- Ela não pode ter seriamente essa intenção...
- Silêncio!
O D o m d e A l t o n | 390

Domenic olhou para ela, perplexo.


- Tal ação da minha parte, - Alanna continuou - requer uma explicação para que
ninguém pense mal do homem que me honrou com sua proposta. Deixem-me ser
absolutamente clara sobre este ponto. Nenhuma culpa pertence a Domenic. Ele é... - e aqui
a voz dela vacilou, mas só por um instante - ele é tudo o que eu sonhava em um marido.
Mas não sou livre e não posso entrar em um casamento com ele ou com qualquer outra
pessoa.
- Eu ouvi direito? Ela o está recusando? - Vozes zumbiam por toda a Câmara.
- Qual o pensamento da menina para recusar um casamento? Será que ela perdeu o
juízo?
- Ela não pode fazer isso, não é? O que isso significa?
Expressões de incredulidade e espanto misturaram com as de curiosidade. Domenic
recuperou sua inteligência o suficiente para perceber que nem sua mãe e nem seu avô Lew
pareciam surpresos.
- Darkover sobreviveu à febre das trilhas graças aos esforços de Jeram de Nervasin e
Domna Marguerida Alton. - Alanna continuou. - Nós do Comyn ainda enfrentamos muitos
problemas. No início desta temporada, discutimos a necessidade de formar pessoas com
laran, onde quer que eles possam ser encontradas. Eu...eu sou uma dessas pessoas. Os
acontecimentos do ano passado me convenceram de que, não importa o quanto eu tente,
nunca poderei levar uma vida normal.
As últimas objeções caíram em silêncio tingidas por respeito e um pouco de
reverência. Observando-a, Darius-Mikhail parecia triste e resignado.
- Pelo futuro do Comyn, - Alanna continuou, com sua voz ganhando confiança - para
ser um exemplo a ser seguido por outros e pela minha própria sanidade, devo me retirar
para uma Torre. Espero que não só para dominar meu dom, mas para usá-lo para em
benefício de outros. Se serei capaz de retornar à sociedade, eu não posso dizer. Portanto, é
justo que eu libere Domenic de sua promessa para que ele possa ser livre para escolher
outra esposa.
Com essas palavras, Alanna retornou ao seu lugar, cortando uma discussão mais
aprofundada.
A partir da seção das Guardiãs, Linnea Storn balançou a cabeça em aprovação solene.
Domenic não conseguia pensar no que dizer. Quando sua mente entendeu o
significado das palavras Alanna, uma parte dele girava em alegria: eu estou livre, minha
honra intacta!
Outra parte se encolheu de vergonha por ter sido publicamente recusado e outra de
vergonha por ter seu maior desejo cumprido. O que ele deveria dizer? O que poderia dizer?
O D o m d e A l t o n | 391

Felizmente, Dani Hastur, que assumiu as funções de Diretor de Agenda, encheu o


silêncio constrangedor com uma série de detalhes da rotina necessários para concluir a
sessão. Quando terminou, ele olhou para um documento em suas mãos.
- Permanece sem resposta a acusação feita nesta mesma Câmara que deve decidir
abordar, excluir ou adiar para a próxima temporada. – Dani disse. Todos compreenderam
que Mikhail, por causa de sua relação com Marguerida, não poderia presidir essa última
questão.
Houve um tumulto na seção das Guardiãs. Laurinda falou de novo. - Nós do Conselho
de Guardiãs acreditamos que este caso recai exclusivamente sob nossa jurisdição. É uma
questão de abuso de laran por alguém que prestou juramento em uma Torre. Como uma
novata em Arilinn, Marguerida Alton solenemente fez o juramento do monitor, ‘nunca
entrar na mente de outro sem consentimento’, portanto, somos nós e somente nós, as
Guardiãs, que devemos determinar a sua culpa.
Sentada atrás de Laurinda, a expressão de Istvana ficou sombria e Domenic lembrou
que ela tinha sido a amiga mais antiga e mais querida de sua mãe em Darkover, e sua
mentora também. Como deve ser difícil para as duas, ele pensou com uma onda de
compaixão.
- E você, Domna Marguerida, aceita o direito do Conselho de Guardiãs para julgar
você? Você vai acatar a sua decisão? – Dani perguntou.
- Eu acatarei. – Marguerida respondeu gravemente.
Dani se virou para Jeram. - Você também aceitará a decisão do Conselho de Guardiãs?
- Eu já retirei as acusações que foram feitas de má vontade por eu estar drogado. –
Jeram disee. - Nestes últimos decanatos, enfrentamos problemas muito mais importantes
do que se uma pessoa agiu no melhor interesse para defender seu mundo. Portanto, peço
ao Conselho que retire todas as acusações contra Marguerida Alton.
Do outro lado das galerias, as pessoas exclamaram, surpresas.
- O Conselho de Guardiãs recusa! - Laurinda declarou. - O crime não foi contra você,
pessoalmente, Jeram de Nervasin, mas contra os princípios da ética de laran. As Torres têm
sido confiadas como guardiãs da ciência de matriz. Portanto, esse é um assunto para o
nosso único julgamento.
- O Conselho não concordou com isso! - Robert Aldaran gritou ficando em pé. - As
Guardiãs não ditam ordens ao Conselho! Dom Francisco trouxe essas acusações como um
membro deste Conselho e nós do Comyn, não um conjunto de Guardiãs, devemos
determinar o resultado!
- Você fala por Aldaran? - Dani perguntou.
Gabriel Lanart-Alton respondeu: - Ele fala por todos nós. Nós do Comyn nunca fomos
governados por um conjunto de Guardiãs.
O D o m d e A l t o n | 392

- Não é um assunto para o Conselho e para as Guardiãs? - Danilo Syrtis questionou.


- Isso é verdade. – Alguém disse.
- Mas e se não concordarmos? - Outra voz perguntou.
- Não! - Lorill Vallonde falou. - É nossa decisão por uma questão de princípios!
Um murmúrio renovado surgiu, silenciado apenas quando Dani gritou por um fim.
- Nós Guardiãs não podemos deixar passar esse assunto, - Laurinda continuou - não
importa o que o Conselho decida. Jeram, você deve aceitar que estas questões estão além
de sua compreensão. Abuso de laran é uma questão muito séria. Peça para Dom Lewis
Alton contar o que aconteceu quando o laran, usado através da matriz de Sharra, queimou
Caer Donn. Isso é apenas uma pequena fração de seu potencial. Ele deve ser tratado com o
máximo cuidado e a mais alta integridade.
- Sei um pouco sobre o que aconteceu com a matriz de Sharra. - Jeram disse, uma vez
que Dani deu permissão com um sinal para que ele respondesse. - Lembro-me também da
Batalha na Antiga Estrada do Norte. Esta senhora e seu marido não foram os agressores.
Eles foram vítimas de uma emboscada e eu estava entre aqueles que ficaram à espreita
deles, armados com pistolas de raios contra espadas. Há dois lados para cada história e
acho que você deveria perguntar a Marguerida o que ela fez.
Outra onda de exclamações se ergueu, rapidamente morrendo.
- Domna Marguerida Alton, - Dani começou - você está sendo acusada de usar seu
dom de forma contrária ao seu juramento. O que tens a dizer em sua defesa?
Marguerida se levantou. Gotas de suor brilhavam em seu rosto à luz dos prismas do
teto. - As acusações são verdadeiras.
Um silêncio atordoado se seguiu. Então Hermes Aldaran, que tinha estado carrancudo
sob a bandeira de águia de seu Domínio, se levantou.
- Marja, você não pode estar falando sério! Diga-lhes o resto da história! - Ele se virou
para a multidão. - Vai domyn! Todos sabem que Domna Marguerida usou seu laran na
batalha. Assim como Dom Mikhail. A maioria de vocês, assim como eu, faziam parte de
cortejo fúnebre de Regis Hastur. Todos nós poderíamos ter morrido se Marguerida não
tivesse usado sua matriz. Qual de vocês se propõe a castigá-la por nos defender?
Em torno da Câmara, cabeças assentiram. Expressões ficaram sombrias, mesmo
aquelas que não estavam presentes na batalha. Todos eles sabiam quão facilmente o
Conselho poderia ter sido dizimado, se não totalmente eliminado.
Antes da pausa tornar-se desconfortavelmente estranha, Hermes continuou. - Depois
que Domna Marguerida nos ajudou a derrotar os soldados Terran, que outra escolha ela
tinha? Deveria ter permitido que esses homens retornassem e contassem aos comandantes
do Império o que um poderoso laran pode fazer? Deveríamos ter transformado Darkover
em um ativo militar do Império?
O D o m d e A l t o n | 393

- Não, nunca!
- Que Zandru amaldiçoe Belfontaine!
Algumas pessoas balançavam a cabeça, resmungando. Hermes podia ter representado
Darkover no Império, mas ele era um Aldaran e a antiga desconfiança ainda espreitava
como uma corrente escura através do Conselho.
Quando Rufus DiAsturien avançou para enfrentar o Conselho, no entanto, o murmúrio
já tinha diminuído. Domenic se preparou, pois o velho Lorde nunca tinha sido amigável com
sua família.
- Guardiãs, então o que mais poderia Domna Marguerida fazer? - Dom Rufus exigiu. -
Cometer o assassinato desses homens enquanto estavam indefesos? Não foi este um uso
compassivo do Dom de Alton para permitir-lhes voltar para casa sem perda maior do que
alguns minutos de suas memórias?
Domenic ficou pensando em sua avó, Javanne, servindo a sua família e seu Domínio,
assim como sua mãe havia servido o Comyn e Darkover. Para cada um deles tinha havido
um preço.
- Proponho que todas as acusações sejam descartadas! - Hermes disse.
Do outro lado da sala, alguns poucos dispersos levantaram suas vozes em acordo, mas
outros resmungaram em dissidência. As Guardiãs estavam com seus rostos duros como
granito.
Marguerida fechou os olhos e se agarrou na grade de apoio.
- Eu lhe agradeço, mas isso não muda minha decisão de aceitar o julgamento do
Conselho de Guardiãs. - Marguerida disse. - Meu pai me disse uma vez que ele não estava
orgulhoso do que havia feito e tenho de partilhar desse sentimento ou corro o risco de cair
presa na armadilha da arrogância e do orgulho. Domna Laurinda está certa. Nossos dons
nunca devem ser usados levianamente ou sem precauções. Eu entrei na mente dos outros,
sem consentimento, nem para ajudar, nem para curar, mas para meus propósitos. Não
posso negar isso.
Laurinda sinalizou para uma pausa no processo, enquanto as Guardiãs confabulavam. -
Domna Marguerida, entendemos que você não tinha a intenção de abusar de seu dom, -
disse Laurinda um momento mais tarde - e também que a vida está cheia de eventos
inesperados e crises imprevisíveis. Sob outras circunstâncias, não seria autorizada a usar o
seu laran exceto sob a supervisão de uma Guardiã. Teríamos que mantê-la confinada em
uma Torre até estarmos certas de que você tinha aprendido a controlar e dominar sua
impulsividade.
Claramente incapaz de falar, Marguerida assentiu. Mikhail empalideceu, mas se
manteve imóvel. Domenic, pensando no que isso significaria para eles depois do que
tinham passado, sentiu-se mal.
O D o m d e A l t o n | 394

- Isso não seria uma decisão fácil ou leviana. – Laurinda disse. - Nós entendemos que
você não tem vocação para ser leronis. A separação de sua família seria um sofrimento
terrível. Reconhecemos também que, sob outras condições, você poderia ter vivido toda a
sua vida sem poassibilidade de usar o dom de Alton. Mas essas mesmas circunstâncias
deram origem a nossa gratidão a você, por parte do Conselho, e dos Domínios... E nossa
também. - Ela fez uma pausa, olhando para Linnea Storn.
Linnea, que tinha escutado com uma expressão de calma, falou: - Felizmente, com o
restabelecimento da Torre Comyn, haverá agora um círculo de trabalho. Pode-se dizer, pois
você é a castelã do Castelo, que se encontra dentro de sua própria casa. Você não precisa
mais ir para o exílio para estudar. Você aceita esse julgamento e coloca-se sob a minha
direção como sua Guardiã?
Marguerida ergueu o queixo. - Eu aceito.
Imediatamente o alívio surgiu em Domenic. Ele conhecia Domna Linnea por toda a sua
vida. Ela era firme, mas gentil e amava Marguerida quase como uma filha. Certamente não
poderia haver melhor resultado, a menos que as Guardiãs revertessem sua decisão.
- Qual a sentença que o Conselho de Guardiãs tem para mim? - A voz rouca de Lew
Alton soou. - Minha filha não estava sozinha no uso do laran para mexer com as memórias
dos soldados Terran.
Domenic estremeceu e viu a mesma angústia refletida no rosto da assembleia. Havia
algum homem entre eles que sofreu ou se sacrificou mais do que seu avô? Qualquer
homem que sofrera tanto era merecedor da paz pelo tempo que lhe restava.
Laurinda inclinou a cabeça. - Sua própria consciência exigiu uma pena muito mais
pesada do que qualquer coisa que pudéssemos impor, Lorde Alton. Não temos
preocupações sobre suas ações futuras. Se é o seu desejo retornar a São Valentim das
Neves para passar os seus anos restantes em tranquila contemplação, você está livre para
fazê-lo com a nossa bênção.
O D o m d e A l t o n | 395

Capítulo 43

Depois de encerrada a sessão, com as formalidades cerimoniais habituais, o primeiro


pensamento de Domenic era encontrar sua mãe ou Alanna. Ele não tinha certeza de que
não haveriam mais surpresas. Apenas quando ele pensou que tinha compreendido tudo e
preparou-se para fazer a escolha entre uma alternativa honrosa ou a dolorosa, a situação
havia mudado. Um resultado completamente inesperado havia surgido e as pessoas que ele
conhecia por toda a sua vida tinham se comportado como estranhos.
Ele não foi capaz de sair imediatamente. Metade do Conselho se reuniu em torno dele
para falar sobre uma coisa ou outra. Os Aldarans, os DiAsturiens, seu tio Gabriel e até
mesmo Kennard-Dyan pararam para oferecer os parabéns por um trabalho bem feito, como
se Domenic fosse pessoalmente responsável tanto pelo fim da peste quanto pela retirada
das acusações contra Marguerida. Se as coisas tivessem ocorrido de outra forma, estariam,
sem dúvida, o culpando agora. As pessoas precisavam de alguém visível para louvar ou
condenar e, se um Rei não estava disponível, um Regente ou até mesmo um Regente
Interino deveria bastar.
As últimas das Ladies da Corte se despediram, cacarejando como um bando de
galinhas desocupadas e insinuando que elas esperavam estar comemorando seu noivado
com alguma outra Lady em um futuro próximo.
Domenic se apoiou no parapeito do setor dos Hastur, de cabeça baixa, tentando
obrigar seu corpo e espírito a se mover. A Câmara estava quase vazia, exceto pelos Guardas
e alguns membros das famílias menores que tinham ficado sentados na parte traseira dos
seus setores e agora seguiam seus parentes mais distintos para fora.
Um movimento na parte de trás da seção de Hastur chamou sua atenção. Os
amortecedores telepáticos tinham sido desligados e ele sentiu a proximidade de Illona. Sua
garganta estava cheia de uma dúzia de coisas que ele desejava dizer a ela, mas tudo o que
ele podia fazer era olhar em seus olhos.
- Meu pobre Domenic. - Ela murmurou. - Você é muito severo consigo mesmo. Até
mesmo Regis Hastur e o velho Danvan foram jovens e inexperientes uma vez, e duvido que
qualquer um deles poderia ter feito melhor do que você fez.
Domenic balançou a cabeça. - Eu tive sorte, nada mais. Jeram e minha mãe
desenvolveram o soro a tempo, Danilo e Darius-Mikhail já tinham organizado a cidade e os
acampamentos exteriores para que o soro pudesse ser distribuído, isso sem mencionar que
resolveram os problemas que haviam trazido as pessoas até aqui. Meus pais ainda estão
em recuperação. Alanna me liberou da minha promessa. As coisas poderiam ter sido muito
piores.
O D o m d e A l t o n | 396

- Mas não foram. – Ela insistiu. - Quando os problemas do próximo ano vierem, como
certamente virão, você não vai enfrentá-los sozinho. Nenhum de nós, seja Rei, Regente ou
Guardiã trabalha isolado. Na Torre todos os membros do círculo são vitais para o seu
sucesso. Aqui em Thendara, no Conselho Comyn, você reuniu um grupo extraordinário de
pessoas para ajudá-lo... Danilo, Lew, Jeram, Darius-Mikhail...
- Você. - Domenic nterrompeu.
Ela parou, considerando. - Bem, sim.
- E agora que meu pai assumiu suas funções novamente e a temporada acabou, temos
tudo para seguir nossas vidas. E as Guardiãs nunca passam muito tempo longe de suas
Torres. - Ele acrescentou mentalmente: E eu sinto sua falta mais do que eu tenho palavras
para dizer.
Illona desviou o olhar, os lábios curvando-se num sorriso gentil. - Não vou me importar
por você estar cansado e mal-humorado. Vamos sair para que os servos possam fazer seu
trabalho. Sua mãe planejou uma pequena ceia em família e estou aqui para garantir a sua
chegada segura.
Assim que Domenic e Ilona atravessaram as portas duplas, um pagem chegou com
uma mensagem de Linnea Storn pedindo para Ilona ir ve-la imediatamente.
- Sim, é claro. - Illona virou-se para Domenic. – Como Lady Linnea é a Guardiã aqui,
devo mostrar-lhe a deferência apropriada. Prometa que vai comer alguma coisa e tentar
não se preocupar.
Ela parecia tão bonita e tão séria ao mesmo tempo que Domenic sorriu apesar de
tudo. Seu coração doía com a perspectiva de um único dia sem ela. Ele disse que ia fazer o
seu melhor e então ela se foi, correndo atrás do pagem em um redemoinho de saias
cinzentas.
Domenic estava meio tentado a deixar o castelo e passar o resto do dia caminhando
na Cidade Comercial Terran, mas ele tinha dado sua palavra para Illona. Enquanto subia as
escadas para os aposentos da família, ele percebeu que estava emocionalmente esgotado
demais para pensar claramente. A sessão do Conselho havia deixado sua cabeça girando.
Ele não podia imaginar Thendara sem seu avô Lew ou Alanna, ou sua mãe passando uma
boa parte de seu tempo na recém reaberta Torre Comyn. Yllana iria partir para o Castelo
Aldaran no dia seguinte e Rory tinha sua própria vida na Guarda. Domenic tentou animar-se
com o pensamento de que Danilo ainda estaria ali, assim como Darius-Mikhail. Talvez agora
fosse um bom momento para selecionar um paxman, alguém que ficaria com ele sempre e
não se intrometeria em seus próprios assuntos.
E isso, sua própria voz sussurrou em sua mente, não é uma boa razão, para vincular
um homem ao seu lado só porque você está sozinho.
O D o m d e A l t o n | 397

Em seus aposentos, seu servo o ajudou a trocar a vestimenta formal dos tribunais por
uma roupa confortável, uma camisa azul solta de linho levemente bordada em volta do
decote e das mangas, colete e calças cor de manteiga e seu velho par de botas de camurça.
Uma espada e um punhal, cada um em sua bainha e afivelados no cinto, estavam sobre sua
cama. A própria noção de que ele devia andar armado no Castelo, na ala de sua própria
família, o deixava enjoado. Levou apenas alguns minutos para salpicar o rosto e as mãos
com água fria e atravessar o corredor curto, deixando o cinto com a espada para trás.
Domenic encontrou seu avô Lew esperando por ele na sala de estar da família, junto
com Yllana e Mikhail. A mesa estava coberta com um pano fino e velas de cera de abelha.
Em vez das flores de verão, o vaso de Marilla continha uma grinalda de folhas amarelas e
laranja.
- Então, aqui estamos. – Lew disse. - Marja satisfez tanto o Conselho quanto as
Guardiãs. Jeram colocou sua consciência para descansar e Yllana mal pode esperar para nos
deixar de novo.
- Vô! Que coisa de se dizer!
- E Alanna vai seguir seu próprio caminho e encontrar sua felicidade.
- Vou sentr sua falta, chiya. - Mikhail disse, batendo na mão de Yllana.
- Oh, papai, eu tenho de crescer em algum momento. Térese e Belle estão esperando
por mim! Pelo menos, - Yllana fez pausa, entrelaçando os dedos nos dele - vou com o
conhecimento que você vai ficar bem.
- Avô Lew, - Domenic disse, tomando o seu lugar na mesa - você e eu tivemos tão
pouco tempo juntos desde que voltou para Thendara. Você e Illona não podem atrasar o
retorno por um tempo?
Lew deu-lhe um olhar estranho. - Devo viajar enquanto o clima é bom com estes ossos
velhos.
Marguerida saiu de seu escritório e abraçou-os, um de cada vez, demorando-se com a
mão no ombro do marido. - Meu Deus, que dia! Você poderia imaginar tantas surpresas?
Como tem se sentido, pai?
- Assim como qualquer homem da minha idade, - respondeu Lew - embora eu
confesse que estou ansioso para voltar a paz de São Valentim.
- Então foi bom que todas as questões foram resolvidas, assim você pode retornar com
o coração leve. - Marguerida disse, tomando seu lugar.
A porta se abriu e Alanna entrou, não sem fôlego pelo frenessi da idade, mas com uma
postura nova. - Perdoem-me, - disse ela, curvando-se para Lew e depois para Marguerida e
Mikhail - estou interrompendo uma conversa particular?
- É uma conversa em que eu ficaria feliz em incluir você, criança. – Marguerida
respondeu. - Agora que estamos todos reunidos, podemos começar.
O D o m d e A l t o n | 398

A refeição foi servida por dois servos que Domenic conhecia de toda a sua vida, e
começou com sopa de cogumelos perfumado com ervas, seguido por cebolas salgadas e
tortas de queijo, pão de nozes crocante e compota de frutas cobertas com creme de leite.
Depois da primeira mordida, ninguém falou muito. Domenic não havia percebido até
aquele momento como estava com fome.
- Sempre fiquei impressionado com a quantidade de energia que você queima com
laran por causa dos amortecedores telepáticos. - Marguerida disse, como se ele tivesse
falado em voz alta. - Passe o pão, Yllanna querida.
- Eu me perguntava sobre isso também. - Começou Yllana quando Alanna pegou a
cesta próxima e ofereceu a ela. Yllana, parecendo perplexa com esse ato de cortesia,
entregou-o à sua mãe.
- Mesmo quando não estamos falando mente a mente, estamos sempre em algum
grau de relacionamento com os outros. - Lew explicou. - Nosso laran cria uma teia que nos
une. O que afeta um, afeta a todos. Por isso não é possível - disse ele diretamente para
Alanna - que qualquer tristeza possa ser verdadeiramente privada.
- É por isso que devemos ser especialmente educados com os outros. - Alanna disse
com um traço de desconfiança em sua voz, como se estivesse pedindo sua aprovação. -
Porque todos nós precisamos de algo particular em algum lugar dentro de nós mesmos,
que seja só nosso.
- Exatamente. – Mikhail disse, sorrindo em aprovação.
Marguerida suspirou. - Às vezes temo que essa lição leve uma vida inteira para ser
aprendida.
Lew estendeu a mão para tocar seu pulso com a mão única. - Temos todo o tempo de
que precisamos para fazer todas as coisas que necessitamos. Nem um minuto a mais, nem
um minuto a menos.
Domenic esfregou as têmporas que tinham começado a pulsar. - Não entendo vocês.
O avô Lew vai embora amanhã, Alanna vai quem sabe para onde, Yllana estará em Aldaran
novamente, a mãe vai voltar a uma Torre mesmo que seja em nosso quintal, e aqui
estamos nós estamos, sentados filosofando!
Suas palavras soavam impertinentes aos seus próprios ouvidos, mas ninguém riu dele.
Em vez disso, Marguerida respondeu séria.
- Sei que isso vai soar como uma surpresa para você, Nico. E é certamente surpresa
para mim. Mas... Estou me sentindo... A palavra correta é: aliviada. Aliviada por ter toda
essa questão resolvida. Veja bem, em alguma parte da minha mente, eu sabia que era
errado usar o Dom de Alton para controlar outras pessoas. Quando eu era apenas uma
criança pequena, estava ofuscada por Ashara, aquela bruxa velha horrível. Precisei de toda
a minha vontade e força, sem mencionar uma boa dose de coragem, para finalmente tirá-la
O D o m d e A l t o n | 399

da minha mente. Não era de se esperar que eu seria a última pessoa a usar o meu laran em
alguém?
Domenic lhe deu um olhar frio. - Você está dizendo que está ofuscando alguém?
- Não, claro que não!
- Não seja tolo, Domenic. - Alanna disse. - Tia Marguerida nunca faria algo tão vil. Ela
pode ser mandona, mas é só porque ela nos ama.
Algo no tom de Alanna, assim como sua impertinência da idade, fez Domenic ter
vontade de rir. A tensão no ar foi se evaporando. Mesmo Yllana, que tinha sofrido de um
grande mau humor por conta de Alanna, estava relaxada.
- Não, - disse Marguerida, mais devagar - o que eu quero dizer é que, mesmo que eu
tenha nascido aqui, fui criada fora do mundo. Nunca recebi o treinamento intensivo em
laran que preciso ter aqui em Darkover. Quando eu era pega de surpresa ou me assustava,
ou estava demasiado cansada para pensar direito algumas vezes, eu reagia sem pensar.
Usava o Dom de Alton.
Ela fez uma pausa, seus olhos dourados pensativos. - Em questões comuns, acredito
que eu consiga controlar meu temperamento bem o suficiente. Mas o Dom de Alton,
devido ao seu potencial letal, exige mais do que o controle comum. Estou ansiosa para
aprender e poder confiar completamente nele.
- Então, você não está infeliz por ter de estudar com Lady Linnea? - Domenic
perguntou.
- Nem um pouco. Ela sempre foi gentil comigo e vai ser divertido aprender com ela. –
Marguerida respondeu. - Ela é como eu, uma mulher que tinha uma carreira muito
importante, e depois doou-se pelo marido e pela família. Agora ela voltou ao trabalho para
o qual ela foi treinada, mas de uma maneira nova e emocionante. Ela não só ajudou a criar
o Conselho de Guardiãs, como vai ter uma Torre própria, que não tem funcionado há anos!
- Acho que vocês vão se entender muito bem. – Mikhail disse. - Linnea sabe as
pressões que uma mulher do Comyn deve enfrentar. Suspeito que você vai encontrar uma
amiga e aliada, assim como uma mestra.
Domenic virou-se para Alanna. Ela tinha estado escutando silenciosamente a maior
parte da conversa, seu rosto refletindo sua compreensão. Espelhado em seus olhos, ele viu
suas esperanças de que ela poderia encontrar a força para viver com suas visões, um
propósito para sua vida, um uso para seus talentos.
- Agora, acho que é a minha vez. – Ela disse, olhando para ele com uma frontalidade
nova. - Domenic, nunca poderíamos ter feito um ao outro feliz. Pelo menos, eu não poderia
ter feito você feliz e nenhum homem vivo poderia ter feito por mim o que eu mesma
precisava fazer. Crescer.
O D o m d e A l t o n | 400

Ela olhou para Lew e novamente Domenic foi atingido por sua admiração óbvia pelo
velho.
- Toda a minha vida - ela explicou - eu consegui o que eu queria com birras infantís. Eu
me comportei mal especialmente com você, tia Marguerida, e com você Yllana, minha irmã
adotiva. Ninguém me levava a sério porque eu não merecia seu respeito. - Alanna se voltou
para Domenic. - Eu não conseguia entender por que, quando você tão claramente amava
Illona, ainda estava disposto a se casar comigo. A única razão que fazia sentido era que
você estava honrando uma promessa. Mas, quando eu sentí o soro fazendo efeito em mim,
outro pensamento me veio. Você não queria que eu morresse, você cuidou de mim.
- É claro que sim. – Ele disse. - Eu sempre cuidei de você.
- Se você se importava tanto então devia haver algo em mim que valesse a pena se
preocupar. – Ela continuou. - Algo além do meu mau humor e comportamento egoísta. Foi
então, penso eu, que comecei a prestar atenção às minhas outras visões, as boas. - Ela fez
uma pausa, com os olhos brilhando. - Sim, misturada entre a cidade dos mortos, as
explosões no céu, os incêndios e inundações, vi coisas de muita beleza. Me vi de pé em uma
sacada com vista para um vale repleto de árvores floridas, seu perfume era delicioso e eu
estava sorrindo. Também me vi em um círculo de luz, feito de pessoas que me conheciam e
me amavam. E eu... Bem, não importa. Em nenhum lugar eu me via com você. Então eu fui
até Illona e lhe pedi conselhos.
- Para Illona?
- Ela também uma vez teve medo de ser enviada para uma Torre. - Mikhail apontou.
- Lembra quando você a descobriu entre os Viajantes? - Marguerida perguntou. - Ela
não tinha ouvido nada de bom, somente histórias de horror sobre as bruxas das Torres. E
veja que ela acabou se tornando Sub-Guardiã em Nervasin, e agora na Torre Comyn.
- Aqui? Na Torre Comyn? - Em um momento de confusão selvagem, Domenic se
perguntou se ele estava dormindo e sonhando com essa conversa toda.
Illona ficará em Thendara!
- Pensei que você soubesse. – Marguerida comentou. - Ela não lhe disse?
Ele balançou a cabeça. - Ela foi chamada...para falar com Domna Linnea.
Yllana riu para ele. - Seu tonto! Não podia adivinhar por quê?
Quando Lew sorriu, pareceu a Domenic que as velhas cicatrizes em seu rosto
desapareceram de puro prazer.
Claro. Agora tudo começa a fazer sentido.
- Então, para onde você vai? - Domenic perguntou para Alanna, tentando distrair seus
pensamentos das conclusões vertiginosas.
O D o m d e A l t o n | 401

- Para a Torre Nervasin. É uma longa jornada, mas acredito que a separação de casa vai
ser boa para mim. - Ela deu um sorriso tímido para Lew. - E ainda vou ter você como meu
professor.
- Pobre Darius-Mikhail. - Marguerida suspirou. - Como ele vai sentir sua falta.
Alanna levantou o queixo. - Não perdi nada. Nós não trocamos mais de uma dúzia de
frases. Tudo o que ele parece saber de mim é que tenho um rosto bonito e quando eu me
casar, se eu me casar, quero ser valorizada por mais do que isso!
Por um longo momento, não parecia haver mais nada a dizer. Eles todos se
entreolharam com expressões de satisfação.
Os servos voltaram com uma jarra de café Terran. Seu aroma encheu o ar. Suspirando
de contentamento, Marguerida o serviu para todos.
No primeiro gole, um sorriso se fez presente no rosto marcado de Lew. - Onde é que
você conseguiu isso, Marja?
- Jeram tem ligações que é melhor não questionar muito de perto. – Ela disse.
- Então, só há uma coisa a fazer. - Domenic disse, erguendo seu copo. - Dizer o quanto
nós o amamos e desejar todas as bênçãos dos deuses, onde quer que ele vá. Adelandeyo.
- Sim, certamente eu irei beber a isso. - Marguerida disse, rindo.
O D o m d e A l t o n | 402

Epílogo

As primeiras neves do inverno cairam suavemente sobre Thendara. A princípio, os


flocos derreteram quando tocaram o chão. Pela manhã, no entanto, os telhados estariam
cobertos de branco e empilhados em montes ao longo das ruas. Crianças corriam através
dos mercados onde os agricultores ainda estavam trazendo a colheita tardia de cabaças
doces e alqueires de aveia, avelã e centeio.
Confortável e quente atrás dos muros do Castelo Comyn, Danilo permaneceu sentado
no café da manhã em sua sala de estar com Linnea. Havia se tornado seu costume tomarem
café juntos, uma ou duas vezes a cada decanato, após o trabalho da noite no círculo recém
constituído da Torre Comyn. Ele havia se preocupado com ela num primeiro momento por
assumir um cargo tão exigente para sua idade.
- Não se preocupe comigo. – Linnea disse. - Em vez disso, estou feliz por estar mais
uma vez fazendo o trabalho em que fui treinada. Eu não desistí por causa do casamento ou
filhos, foi por amor, como nós dois sabemos tão bem. O treinamento para Guardiã na velha
tradição me foram impostos. Olhe para Illona e veja como ela equilibra seu próprio trabalho
como Sub-Guardiã e seu relacionamento com Domenic.
Domenic e Illona tinham sido muito discretos em seu relacionamento, e Illona era tão
respeitada que ninguém teria coragem de chamá-la de barragana. Na verdade, o tribunal
de inverno tinha se referido a ela como sua leronis-consorte.
- Eu nunca o vi tão feliz. – Danilo disse.
Ela riu. - Parece que não há fim para o bem!
Algumas coisas sempre terminam bem.
Uma pontada de perda tocou seu coração, entre o doce e o amargo. Na borda de sua
visão, ele pegou o brilho em seus olhos também.
Linnea pegou o xale grosso de malha, um presente de Marguerida. Ela bocejou,
cobrindo a boca com uma mão delicada. - Temo que já existe uma maneira onde eu
demonstro minha idade. Já não tenho a força para permanecer acordada depois da minha
hora de dormir.
- Descanse bem, então. – Ele disse, pondo-se de pé. - Nos veremos novamente quando
quiser.
Linnea fez uma pausa, com a mão no trinco da porta de seu anftrião. - É bom falar com
um velho e querido amigo. Apesar de todas as nossas diferenças, há ainda muito mais que
compartilhamos, e essas memórias agora formam uma tapeçaria de vida entre nós.
Tivemos tanto amor para uma vida que já é o suficiente.

~o ⭐ o~
O D o m d e A l t o n | 403

Thendara. Uma vez Jeram pensou que nunca mais iria querer vê-la novamente, e
agora, muito provavelmente seria sua casa pelo resto de sua vida.
Ele freou seu pônei cinza resistente das montanhas no alto do passo das Colinas
Venza, deixando o animal recuperar o fôlego enquanto a carroça de Morna com seus bens
domésticos passava. Ele queria ver seu rosto quando ela olhasse para as paredes e Torres
de Thendara. Ela nunca tinha ido para qualquer cidade maior do que Nervasin e nunca tinha
visto nada parecido com a Zona Terran. Ele sentiu como se estivesse vendo o mundo novo
através das lentes de sua alegria.
Os edifícios de metal e vidro, agora mostrando os efeitos de décadas de invernos
darkovanos agressivo, enfrentava as belas torres de pedra antigas do Castelo Comyn. Outro
lugar, ele pensou, que nunca iria querer ver de novo.
- O que você acha? - Ele se virou na sela.
Sua boca fez um ‘O’ de surpresa. - Quem teria pensado que poderia haver tantas
pessoas em um só lugar? Vamos realmente viver aqui?
No início, ela não tinha acreditado em sua história, para não falar de suas aventuras
desde que deixara Nervasin. No final, no entanto, ela cedeu. Nenhum homem sensato,
disse ela, poderia ter criado tal história. Ela não se importava de onde ele tinha vindo ou
onde ele se propôs a ir. Como todos os outros em sua aldeia nas montanhas, lealdade e
capacidade de adaptação tinham sido criadas em seus ossos.
Jeram estava mais feliz do que ele poderia expressar quando ela tinha escolhido ir com
ele. O relacionamento deles havia começado com conforto compartilhado, uma forma de
aliviar a solidão, ou assim ele pensava. Quando voltou para Glen Rock, no encerramento da
temporada Conselho, seu coração tinha se aberto para ela. Ou talvez ele tivesse descoberto
que ele já a amava por seu espírito generoso, sua honestdade, sua simples aceitação. Ele
podia enfrentar sua nova vida em Thendara com confiança porque ela estava ao seu lado.
Começou a nevar novamente quando se aproximavam dos portões de Thendara.
Apenas alguns traços permaneceram do acampamento. Ulm e seu filho há muito haviam
retornado para sua aldeia com uma linha de chervines carregados com estoque de
sementes, algumas ferramentas de metais preciosos, finos tecidos de lã e de couro...
Riquezas suficientes para garantir uma vida boa pelos próximos anos.
Os Guardas às portas da cidade tinham reconhecido Jeram pelo nome, se não pelo
rosto, e o receberam com um grau quase embaraçoso de cortesia. Eles fizeram seu
caminho através do labirinto de ruas para a Cidade Comercial Terran, onde Jeram, com a
ajuda de Marguerida, tinha comprado um complexo murado com uma casa confortável,
jardim, cozinha e estábulos para um casal de animais.
A expressão de Morna mostrou que ele tinha adivinhado corretamente o que iria
agradá-la. Um beile ou um banquete no Castelo seriam muito bem aceitos por um dia, mas
O D o m d e A l t o n | 404

sua maior alegria seria ter seu próprio lote de ervas e vegetais ao lado de sua casa. Um
casal de servos o saudou na porta da frente e começou a descarregar a carroça e cuidar dos
cavalos. Uma lareira queimava alegremente na sala central e os aromas de pão de nozes e
de ervas frescas recém-assado enchiam o ar.
Morna correu de um quarto para o outro, exclamando da espaçosa cozinha, dos baús
cheios de roupas de cama e cobertores, dos móveis, da cama larga com sua cabeceira
lindamente esculpida.
- É grande o suficiente para um lorde das Cidades Secas e todas as suas mulheres! – Ela
exclamou.
- Sim, temos que tomar cuidado para não nos perdermos nela. - Ele riu. Talvez a vida
em Thendara, em uma casa que misturava arquitetura darkovana e de fora do mundo,
pode fosse tão ruim. Com Morna, ele nunca precisaria esconder quem ele tinha sido ou
fingir ser outra pessoa.
- Amanhã ou no dia seguinte, quando você tiver reorganizado tudo ao seu gosto... –
Ele começou a dizer sentado na cama.
- Ah, com certeza vai demorar mais tempo do que isso! – Ela interrompeu
escorregando para o seu colo. Morna colocou os braços em volta de seu pescoço e seus
olhos brilharam.
Ele a beijou com ternura. - Temos que pegar umas roupas da cidade. Meu amigo Ethan
vem de uma família de costureiros na Rua dos Alfaiates.
- O que eu vou fazer com tanta elegância? Logo eu, uma simples mulher do campo?
Jeram balançou a cabeça, meio sem acreditar. Que outra mulher não iria aproveitar a
chance de ter um vestido novo?
- Você é perfeita como é, - disse ele sorrindo - mas faça isso para me agradar, como
um favor ao meu amigo. Ethan é um homem orgulhoso. Darkovanos... Todos vocês são
orgulhosos e teimosos. Seria um presente generoso de sua parte permitir que ele faça isso
por mim.
Morna franziu a testa. - Sim, você falou sobre o seu trabalho aqui, mas eu não
entendo. Você vai ensinar seus segredos Terranan a esse homem, Ethan? Por que se eles se
foram?
- Eles não vão ficar longe para sempre. - Jeram a colocou de lado e foi até a janela. O
quarto era no segundo andar e, dali, ele podia olhar por cima do muro de sua propriedade
para o espaçoporto. Ele estava vazio agora, mas por quanto tempo?
Quanto tempo se passaria antes da guerra civil da Federação chegar até Darkover?
Quanto tempo antes de um lado ou outro notar a vantagem estratégica da posição de
Darkover sobre o braço galáctico? Ou algum burocrata descobrir um registro esquecido da
O D o m d e A l t o n | 405

mecânica de matriz? Quanto tempo antes de algum bando de refugiados ou


contrabandistas decidir que o planeta do Sol Sangrento era uma presa fácil?
E se Jeram tivesse salvo Darkover da febre das trilhas apenas para perdê-lo para
políticos ou carniceiros? Seu conhecimento e habilidades iam além dos protocolos de
imunização. Ele sabia de guerra, sabia dos homens, e sabia dos equipamentos de
comunicação.
Morna estava ao lado dele, suave e amorosa. Ele colocou seu braço ao redor dela,
puxando-a de perto.
- Eles não vão ficar longe para sempre, - ele repetiu - mas nós estaremos preparados
para eles. - Começando por Ethan e seus amigos, que poderiam trabalhar com os jovens
treinados no laran que Danilo iria alistar, e então iriam começar a pesquisar os céus,
ouvindo...
E preparando uma defesa.
Deixe-os vir. Ele repetiu para si mesmo. Darkover estará pronta.
O D o m d e A l t o n | 406

Bônus do Editor

Arte de capa (900 x 1203)


https://i.imgur.com/ODCioQF.png
Arte de capa (900 x 1323)
https://i.imgur.com/5eoxTtV.png
Artista: Romas Kukalis

www.mzbworks.com

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