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O outro lado do espelho

Tradução: Rubi Elhalyn


Tradução feita de fã para fã sem fins
lucrativos com o intuito de suprir a
carência da obra na língua portuguesa
(BR)

Conheça mais sobre a saga em


Darkover BR
The Other Side of the Mirror
Darkover® Anthology 04

Edited by
Marion Zimmer Bradley
The Marion Zimmer Bradley Literary Works Trust
PO Box 193473
San Francisco, CA 94119-3473
www.mzbworks.com

Copyright © 1987 by Marion Zimmer Bradley


and the Friends of Darkover.
All rights reserved.
Cover art and border design by Richard Hescox
DAW Book Collectors N° 698
Dedicação
Para Eileen e Linda
Musas de muitos talentos
Sumário
Introdução ..................................................................................................................... 6
O outro lado do espelho ................................................................................................ 8
O preço da noiva .......................................................................................................... 51
Tudo, menos a liberdade ............................................................................................. 60
O perjuro ................................................................................................................... 132
Caçada de sangue ...................................................................................................... 148
Bônus do Tradutor ..................................................................................................... 194
Darkover Antologias................................................................................................... 194
O outro lado do espelho|6

Introdução
Marion Zimmer Bradley

Quase desde que publiquei o segundo ou terceiro romance de Darkover, outros


escritores, geralmente jovens, por algum motivo queriam escrever sobre Darkover
também. Estou e sempre fiquei um pouco perplexa com essa resposta. Sou uma grande
amante de J. R. R. Tolkien, mas apenas uma vez cedi ao desejo de escrever uma história
pastiche da Terra Média e, embora seja uma fã de Jornada nas Estrelas, em geral me
abstive de aumentar a volumosa tradição apócrifa da Enterprise.
Por outro lado, eu não iria tão longe quanto um admirador das histórias de Darkover
proclamou ao dizer que ele nunca seria capaz de ler uma palavra sobre Darkover, exceto de
escritas por mim. Ele os considerou “contaminados” e sentiu que eles danificaram a visão
pura de Darkover.
Pessoalmente, sempre achei que ver através dos olhos de outra pessoa clareava minha
visão de Darkover. Um caso especial disso é a história “O outro lado do espelho”, de
Patricia Floss. Lembro-me de ter visto Patty como uma menina de olhos escuros vestida
com um manto carmesim de Guardiã e véu em uma convenção de Darkover e quando
"Other Side" apareceu no correio, embora fosse muito longo para ser uma antologia de
Darkover como eu estava considerando, e tomasse muito tempo para nossa revista de
ficção Starstone, durante a breve vida da Thendara House Publications, fomos capazes de
vender algumas centenas de cópias de um edição do panfleto de “Other Side” e distribuí-lo
para fãs radicais.
Durante esse tempo, comecei a escrever “O exílio de Sharra” e decidi que os eventos
descritos na história de Pat Floss faziam um sentido um pouco melhor do que aqueles que
imaginei como ocorrendo "entre os atos", por assim dizer. Decidi que a versão de Pat seria
doravante considerada a versão "oficial" dos eventos em Darkover entre o final de “A
herança de Hastur” e o início de “O exílio de Sharra”.
No entanto, não tendo as instalações de impressão da DAW nem o mecanismo de
distribuição, não havia como trazer o "Other Side" ao público que deveria ter lido. A única
possibilidade teria sido imprimi-lo em uma das antologias de ficção curta de Darkover, “O
preço da Guardiã e outros contos” ou “Espada do caos”, mas a história de Pat, embora
excelente, tinha quase 30.000 palavras. E não se atribui, seja qual for a qualidade da
história, quase um terço da palavra disponível a uma única peça. Então, com grande pesar,
fui forçada a recusar para aquela antologia.
Após a boa venda das duas primeiras antologias foi possível discutir um novo volume
com a DAW Books. Eu imaginei um possível grupo de algumas histórias mais longas. A essa
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altura eu também tinha recebido, sem muita esperança de publicação profissional, mas
porque era uma boa história que tive prazer em ler, “Caçada de sangue”, de Paula Crunk e
Linda Frankel. A ideia era formar uma antologia de três contos que formaria um romance
curto, não longo o suficiente para um grande livro de Darkover, mas de comprimento
suficiente para completar um volume de tamanho respeitável. Tal volume pode servir para
agradar os leitores entre os grandes romances. A novela, talvez melhor classificada como
novela (cerca de 40.000 palavras), é um episódio mencionado em “A corrente partida”, que
vários fãs das histórias das Amazonas Livres me incentivaram a escrever. Achei que não era
importante o suficiente para merecer um romance por si só, mas era possivelmente muito
pesado para uma subtrama em uma obra do tamanho, digamos, de “Rainha da
Tempestade”.
Tendo escrito a referida novela, achei adequado encerrá-la entre um parêntese de
contos um tanto tangenciais. O primeiro, “Preço da noiva”, foi um pequeno “extrato” de
alguns escritos periféricos, que senti que lançava alguma luz sobre os personagens de
Rohana e Dom Gabriel Ardais e a curiosa natureza de seu casamento, muito de acordo com
o epigrama de Tolstói que encabeça seu famoso romance “Anna Karenina”: “As famílias
felizes são todas iguais; mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”
A outra história, “O perjuro,” lida com o enigma sobre um dos poucos vilões que criei,
Dyan Ardais, prontamente se tornou um favorito, e um grande número de fãs e leitores se
sentiram compelidos a escrever histórias sobre Dyan e sua vida amorosa. Especialmente
eles se sentiram compelidos a escrever sobre seus casos de amor com mulheres... Na
natureza, suponho, dos fãs de Star Trek que se sentiram compelidos a envolver o casto
Spock em casos de amor atormentados com quase todos, exceto Darth Vader. Embora eu
prefira deixar a vida amorosa de Dyan em uma obscuridade decente (já que suspeito que
investigá-la muito de perto não seria edificante ao extremo), não tinha nenhuma objeção
particular em investigar a razão pela qual um telepata com suas habilidades comprovadas
teria sido banido de uma Torre. Esse foi o resultado e parecia um final adequado para o
breve retrato de Kyril Ardais em "Tudo, menos a liberdade".
Não considero este punhado de histórias um acréscimo importante à literatura de
Darkover. Mas, para os fãs que querem saber mais sobre a vida privada de seus
personagens favoritos, espero que os cative.

-Marion Zimmer Bradley


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O outro lado do espelho


Patricia Floss

Marius Lanart parou na beira do penhasco, perguntando-se se seria melhor pular e se


poupar de uma boa dose de sofrimento. Certamente ninguém lamentaria sua morte. Se
tivesse doze anos, em vez de quase quinze, ele teria chorado. Ele olhou para as torres de
pedra azul do Castelo Comyn, desejando que elas caíssem e virassem pó, e gradualmente a
miséria foi substituída por uma raiva quente e borbulhante que ele nunca havia sentido
antes.
Ele cerrou os punhos, lembrando-se dos eventos do dia. Andres, o ex-astronauta
Terran que seu pai nomeara comissário-chefe de Armida há mais de quinze anos, trouxera
Marius ao Castelo Comyn na noite anterior. Esta tarde, Lerrys Ridenow os acompanhou à
audiência de Lorde Hastur e defendeu o direito de Marius, como filho de um Lorde Comyn,
de se juntar à elite dos Cadetes do Comyn.
Dyan Ardais, Comandante da Guarda, nem mesmo olhou para ele. Ele havia dito com
uma voz entediada que o "outro bastardo" de Kennard Alton já havia provado a falibilidade
do sangue Terran de sua mãe.
Gabriel Lanart-Hastur, que era parente de Marius e também do mestre-cadete, fora
condescendente: - Marius parece ainda mais Terranan do que Lew, com seus cabelos e
olhos escuros. E algumas pessoas ainda culpam Lew pela rebelião de Sharra. Seria cruel
expor Marius ao ridículo e ao ódio que sua presença incorreria entre os meninos ignorantes
que compartilham os preconceitos dos mais velhos. Vou instruí-lo pessoalmente em
esgrima e técnicas de luta, mas não entre os cadetes.
Então Lorde Hastur encerrou a discussão em sua maneira usual, erguendo a mão
branca e frágil e pedindo silêncio. O velho tinha se dirigido calmamente a Marius: - Meu
rapaz, não temos nada contra você pessoalmente, você deve entender isso. Mas o
Conselho Comyn decidiu há muito tempo que nem você e nem seu irmão tinham qualquer
direito aos privilégios do Comyn. Demos a Lew esses privilégios porque seu pai não tinha
outros filhos e seu Domínio precisava de um herdeiro. Mas desde que seu pai pegou Lew e
deixou nosso mundo, tem havido muito ressentimento... Acredite em mim quando digo que
gostaria que fosse de outra forma, mas não posso permitir que você entre na Guarda de
Cadetes neste momento.
Mais do que tudo no mundo, Marius desejou que seu pai e seu irmão não tivessem
partido. E por que eles não voltaram? perguntou a si mesmo, talvez pela centésima vez. Sei
que Lew estava muito doente e meu pai esperava que os terranan pudessem ajudá-lo, mas
já se passaram anos desde que partiram. Papai ainda está tão preocupado com Lew que se
esqueceu de mim? Mesmo que Lew não tenha melhorado, meu pai poderia voltar para uma
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visita... Ele seria o comandante novamente e enviaria Dyan rastejando de volta para Ardais,
e Hastur não ousaria me negar um lugar entre os cadetes. E então eu mostraria a todos
eles! Ele se deixou levar pela fantasia, mas apenas por um momento. Não. Quem estou
tentando enganar? Já se passou muito tempo. Papai e Lew nunca voltarão para casa. Eles
não me querem mais do que o Comyn. Como os odeio! Gabriel Lanart-Hastur, aquele
imundo caçador de meninos Dyan e todo o resto dos Lordes do Comyn! Se eu pudesse puxar
aquele castelo de esterco sobre as orelhas deles, começaria empurrando o velho e sagrado
Hastur do parapeito... Juro por Aldones que farei todos eles pagarem por me expulsar!
O vento estava mais frio agora que o céu escurecia. Ele abraçou os joelhos e olhou
com ódio para o castelo. De alguma forma, vou fazê-los pagar!
De longe, o grito de um homem soou: - Marius!
Provavelmente Andres viera procurá-lo. Ele não queria voltar para o castelo, mas não
iria correr e se esconder como uma criança com medo de uma repreensão. Por mais que
odiasse a indiferença e os olhares frios dos Lordes Comyn, ele sabia que a única maneira de
resolver a situação era enfrentá-la. Papai e Lew foram embora, mas eu não vou. Eu sou o
último Alton e não desistirei de minha herança.
Ele se levantou e observou o brilho fraco da luz da tocha ficar mais forte, discernindo a
forma de um homem a cavalo na trilha abaixo dele. O homem desmontou, amarrou o
cavalo e começou a subir. Era Andres, ferozmente carrancudo. Marius sorriu. Por trás da
careta habitual de Andres Ramirez estava o homem que fora seu segundo pai.
- Você está bem? - Andres rosnou, olhando para a manga rasgada de Marius e o rosto
manchado de sujeira. - Você saiu do castelo como um coelho em uma fogueira.
- Como você sabia onde me procurar?
- Lew costumava vir aqui com frequência, em seu primeiro verão entre os cadetes,
quando os pirralhos do Comyn e Lorde Dyan tornavam sua vida miserável. Ele nunca quis
que ninguém o visse chorando.
Três das quatro luas de Darkover haviam surgido quando chegaram ao castelo. Marius
suprimiu um bocejo quando eles se aproximaram dos aposentos de Alton. Uma ceia quente
e um longo sono pareciam muito atraentes para ele. Se ele conseguisse dormir com a
negação educada de Hastur queimando em seus ouvidos!
No corredor principal da suíte, os criados o despiram da capa molhada e das botas. Um
grande fogo na lareira espalhou um calor alegre pelo corredor e Marius sentiu seus
músculos tensos relaxarem. Durante o jantar ele percebeu que todos pareciam solícitos
com ele. Andres não dissera uma palavra de reprovação por sua fuga naquela tarde. Até
Bruna, a velha rude que tiranizava as copeiras e trocava insultos com Andrés, perguntou se
Marius queria uma terceira porção de ensopado. Com isso, ele se virou para Andres e disse:
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- O condenado come bem, hein? - Marius falou meio brincando, mas Andrés não
respondeu nada.
- Andres, qual é o problema? - Então ele cerrou os punhos. - O velho disse alguma
coisa depois que eu saí?
Andres suspirou pesadamente e olhou para suas mãos calejadas. Marius nunca o vira
tão sério.
- Olhe para mim, Andres. O que aconteceu? Eles me excluíram do Conselho de novo?
- Pior do que isso, receio. Lorde Hastur decidiu que você deve ir para a Zona Terranan.
Por alguns segundos, Marius achou que tinha ouvido errado. – E para fazer o que? -
Ele cuspiu.
- Há uma escola administrada pelo governo para os filhos de Terranans que trabalham
aqui em Thendara. Você terá aulas com eles e com um professor particular no prédio do
QG. Hastur disse que você também pode morar lá, se quiser.
Marius balançou a cabeça. Ele se sentia entorpecido. Como isso podia estar
acontecendo com ele? Não satisfeito em rejeitá-lo dos cadetes do Comyn, Hastur e seus
fantoches agora o jogavam fora como um trapo sujo. Ele se virou, com medo de que, se
visse pena no rosto de Andrés, começasse a chorar.
- Você tem certeza de que Hastur ordenou, de que não foi apenas uma sugestão? Eu
sei que ele é um político, mas papai era seu aliado mais forte e seu amigo. Como ele pode
fazer isso comigo? Serei considerado tão inútil para ser jogado aos Terranan? - Sua voz
tremia e ele não conseguiu continuar.
Andres praguejou e colocou a mão no ombro de Marius. - Olha, filho, isso não é tão
ruim quanto parece. Hastur não disse que você teria que passar o resto de sua vida lá,
apenas um verão. Os Terranan não são monstros, você sabe. Eu sou Terranan, passei
metade da minha vida na Força Espacial e mesmo assim sou confiável, não sou? Marius, sua
própria mãe nasceu e foi criada na Terra e não houve uma mulher melhor, que Deus a
tenha. Pelo menos você terá a chance de explorar esse lado de sua herança, você
aprenderá tudo sobre as estrelas, matemática, ciências... Eu conheço alguns nobres do
Comyn que quebrariam os braços por essa oportunidade!
Marius ergueu os olhos para os estandartes de Alton pendurados no teto. Não havia
esperança ali, nem em qualquer outro lugar. - Eu não posso lutar contra Hastur. Eu irei para
a Zona Terranan e aprenderei o que eles quiserem me ensinar lá. Mas vou dormir aqui à
noite, mesmo que Hastur mande você e a equipe de volta para Armida.
Andres pareceu animado com isso. - Esse é o espírito! Eu vou ficar também. Armida
pode passar sem mim por alguns dias. - Ele se levantou da mesa. - Hastur já tomou as
providências necessárias. Devo levá-lo à Zona amanhã de manhã.
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Marius lutou contra uma onda de pânico. - Tão cedo? - Ele sorriu amargamente. - O
velho estava decidido sobre o que fazer comigo. - Para si mesmo, ele acrescentou: Ele não
deveria estar. Ele pode se arrepender pelo que farei com essa educação terranan. E aqui
está mais um erro a ser vingado, o pior de todos eles.
Mais tarde, depois que o resto dos servos da casa se retiraram, Marius sentou-se
sozinho junto à lareira vazia. Ele estava muito cansado, mas não conseguia dormir. Por fim,
ele acendeu uma vela, colocou-a sobre a mesa e se ajoelhou diante de sua pequena chama.
Avarra, Mãe Negra do Nascimento e Morte, ele orou silenciosamente, a paz de seu sono
curador me escapa. Faça com que assim seja com aqueles que me expulsaram, nesta noite e
em todas as noites que virão, para que nunca mais tenham paz.

~o⭐o~
O dia seguinte começou mal. A piedade nos olhos dos criados continuou a deixar
Marius nervoso e ele ignorou seu café da manhã. Andres não estava muito melhor, ele
parecia estar antecipando um funeral. Quando chegou a hora de partir, Marius quase ficou
feliz. Ele vestiu sua melhor capa e um novo par de botas de camurça e seguiu Andrés pelo
castelo. Ao passarem pelo quartel, ele ouviu o barulho de esgrima e vozes ásperas gritando
ordens. Os cadetes começam a treinar hoje, pensou ele. Eu deveria estar lá também. Ele
cerrou os dentes e transformou seu rosto em uma lousa em branco. Ninguém deve saber o
que estou sentindo, nem mesmo Andres. Não serei objeto de piedade ou zombaria de
ninguém.
Quando chegaram à praça que marcava os limites da Cidade Velha, ele se virou e
disse: - Você pode me deixar agora, Andres. Já estive na Zona Terranan antes e sei o
caminho para o QG. - Ele apontou para o enorme edifício que diminuía tanto o Castelo
Comyn quanto as estruturas magras do espaçoporto. - Eles chamam de arranha-céu, certo?
- Acrescentou, pronunciando a palavra terráquea com uma facilidade consciente.
- Não banque o esperto comigo, Marius. – Andres grunhiu. - Irei te levar até os portões
do espaçoporto. Os Terrans terão alguém lá para cuidar de você.
- Eu não sou exatamente um bebê de colo. - Marius disse com raiva, enquanto eles
entravam em uma ampla avenida de cafés, bares e lojas de souvenirs. - Apenas me diga a
quem devo me reportar no QG e eu o encontrarei.
- Olhe - Andrés respondeu, um pouco alto demais - você pode ser quase um homem
pela lei darkovana, mas para os Terrans você ainda é menor de idade, uma criança. E
quando você chegar à sua primeira aula, ficará grato por ter alguém mostrando a cidade. O
QG é como um formigueiro gigante e a burocracia Terran é ainda pior.
Os portões do Complexo do Espaçoporto estavam à frente. Andres parou e olhou para
o edifício brilhante que se erguia acima deles como uma pequena montanha. Marius
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também olhou e, involuntariamente, em um desejo repentino de estar perto de Andres, ele


sentiu a vibração familiar do relacionamento telepático... Eu nunca pensei que traria o filho
de Kennard aqui. Havia uma amargura ali que quase combinava com a sua. Andres
pigarreou e Marius sentiu o contato se dissolver. - Não vou mais longe, rapaz... - Andrés
apontou para o portão. - Boa sorte. O verei hoje a noite. - Ele se virou, mas não antes de
Marius ver seus olhos umedecerem.
Deixado sozinho, Marius avançou, mais do que um pouco assustado. Em uma imitação
consciente de Kennard Alton, ele endireitou os ombros, ergueu a cabeça e caminhou
orgulhosamente. Os guardas corpulentos em couro preto mudaram de posição quando ele
passou por eles e ele suprimiu uma careta para os blasters que usavam.
Um homem franzino com um macacão prateado e brilhante se aproximou para
recebê-lo. - Você é Marius Alton? - Ele perguntou com uma voz anasalada.
Terranan idiota, Marius estremeceu por dentro e respondeu: - Eu sou Marius
Montray-Lanart. - Ele mal ouviu o Terran se identificar como Claude Sorrell, o homem de
"relações públicas" designado para conduzi-lo pelo QG. Era como uma piada cruel ser
chamado de "Alton", o nome que o Conselho Comyn se recusou a dar aos filhos de Elaine
Montray. Não se pode esperar que um Terranan esteja ciente de tais sutilezas, disse a si
mesmo, e afastou o incidente de sua mente.
As próximas horas foram as mais confusas da vida de Marius. Sorrell o conduziu pelo
que parecia um labirinto interminável de luzes brilhantes e cubículos sem janelas.
Repetidamente ele respondia a perguntas impertinentes em papeis idênticos e assinava seu
nome para eles, até que pensou que sua mão cairia de seu braço. Ele se submeteu à
indignidade de ter seu corpo inspecionado por um pomposo curandeiro Terranan e foi
recompensado com mais um pedaço de papel para adicionar à pilha que Sorrell carregava
para ele. Quando terminaram de testá-lo, ele entendeu a observação que Andres havia
feito sobre "burocracia". As paredes pareciam pressioná-lo e ele queria desesperadamente
sair correndo, longe de todas as pessoas que infestavam a base Terran.
Sorrell o levou a uma vasta sala que lembrou Marius do Salão da Guarda no Castelo
Comyn, exceto que estava lotado de pessoas comendo em mesas circulares. Eles se
juntaram a uma longa fila diante de uma máquina que tinha o dobro da altura de Marius.
Ele ficou fascinado com os mostradores, botões e zumbido latejante da engenhoca até que
Sorrell lhe entregou uma bandeja e utensílios. - Está vendo as fotos ao lado dos botões? -
Sorrell dirigiu. - Você escolhe o que quer comer e aperta o botão ao lado.
Marius sentiu um nó no estômago. Comer comida que vem de uma máquina? Não
admira que os irmãos de Ridenow digam que os Terranan são bárbaros!
- Não, obrigado. - Ele disse educadamente. - Não estou com fome.
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Depois que Sorrell terminou de comer, eles pegaram o elevador para o Escritório de
Colocação Acadêmica no trigésimo primeiro andar. - Bem, Marius, - Sorrell anunciou no
tom excessivamente alegre que Marius estava começando a não gostar, - você se saiu
muito bem em seus testes. Seu conhecimento do Padrão Terráqueo está próximo do
normal, seu domínio da matemática básica é incomum para um darkovano e você mostra
afinidade com a análise histórica.
Marius não ficou surpreso. Ele e o irmão aprenderam a falar a língua Terranan desde
muito cedo. Seu pai também insistiu que Andres lhes ensinasse o básico da matemática.
Sorrell continuou a tagarelar.
- Você estudará Ciências da Vida, Álgebra Básica, Geografia do Império, Padrão
Terráqueo Avançado e, é claro, Preparação Física. Você também verá um tutor por uma
hora a cada dois dias na escola. Agora vamos pegar os livros didáticos que você precisará
para essas aulas.
Por fim, eles o deixaram ir. Do lado de fora, Marius quase chorou de alegria. O ar
estava frio e cortante, as primeiras estrelas brilhavam acima dele enquanto o brilho
vermelho do sol poente coloria as nuvens que se aproximavam. Ele quase havia esquecido
que existiam coisas como vento e escuridão. O dia passado sob as luzes quentes e
constantemente brilhantes do QG parecia durar para sempre. Ele correu pela Zona
Terranan, exultante por estar andando livre novamente. As janelas iluminadas por velas das
casas da Cidade Velha o estimularam em seu caminho.

~o⭐o~
Nos dias que se seguiram, Marius descobriu que a vida na fortaleza Terran era mais
difícil do que havia previsto. Ele estava familiarizado com a solidão, tendo sido evitado ou
desprezado pela maioria do Comyn desde que conseguia se lembrar. Mas a maior parte de
sua vida havia sido passada em Armida, propriedade hereditária dos lordes de Alton. Lá,
desde a grande casa e estábulos até as aldeias e estações de guarda nas colinas, ele era
conhecido e estimado como filho de Kennard Alton.
Agora ele tinha sido lançado contra sua vontade em um mundo estranho e assustador,
e sua solidão era tanto pelo exílio quanto por ser estrangeiro. Sorrell e Andres o alertaram
sobre o “choque cultural”, mas aquele antigo clichê dificilmente descrevia sua própria
confusão. Dentro das paredes do QG, Marius se sentia como uma criança, aprendendo a
mecânica da existência pela primeira vez.
Nos primeiros dez dias ele dominou o uso dos elevadores, esteiras deslizantes, luzes
de botão, máquinas de vídeo, microscópios e encanamentos Terranans. Ele se considerava
fluente no Padrão Terran, mas o esforço de falar e ler todos os dias o cansava e os
conceitos que carregava eram muitas vezes completamente estranhos à sua compreensão.
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Além disso, os regulamentos que governavam a vida de um estudante Terran eram uma
constante irritação para ele.
Sua claustrofobia aumentava a cada dia passado atrás das paredes. Ele se manteve
afastado de seus colegas estudantes e concentrou-se em aprender o que seus professores
propunham a ele. O único Terran com quem ele se sentia confortável era sua tutora, uma
jovem esguia que falava um cahuenga perfeito e insistia para que ele a chamasse pelo
primeiro nome, Elena. Marius foi tentado mais de uma vez a se curvar e confiar alguns de
seus problemas ao ouvido compreensivo dela. Mas não o fez.
O mais difícil de tudo era mudar de mundo a cada dia: deixar o Castelo Comyn quando
o sol mal havia nascido, ficar sentado quieto durante todo o dia na base Terran e caminhar
de volta para o castelo sob os últimos raios do sol tornou-se uma rotina torturante. Se ele
tivesse seguido a sugestão de Hastur, no entanto, e vivesse em um dos cubículos sem
janelas dos dormitórios do QG, ele teria enlouquecido. Subir a colina até o castelo era
retornar a Darkover após os horrores do exílio. Mas sempre que passava pelo quartel, ouvia
o barulho dos cadetes esgrimando, lembrando-o de tudo que havia perdido.
Às vezes, ele encontrava os cadetes quando eles estavam de folga. A maioria deles o
ignorava, zombava ou faziam comentários que não eram dignos de resposta. Felix Aillard,
um garoto arrogante, uma cabeça mais alto que Marius, o parou uma noite, para pegar
seus livros e arrancar várias páginas. Enfurecido, Marius o derrubou o deixando sem fôlego
com um soco rápido no plexo solar que aprendera com seu professor de aptidão física.
No conforto familiar dos quartos Alton, ele evitou as perguntas e tentativas de
conselho de Andres, mas sob sua máscara de equanimidade, uma raiva terrível ardia como
a forja de Alar.
Marius estava a quase dois dias na Zona Terran quando sua sorte mudou para melhor.
Sua classe de Padrão Terran parecia se estender em um catálogo insuportável de minúcias
gramaticais. Marius não precisava do som de nós dos dedos estalando nas fileiras atrás dele
para perceber que os outros compartilhavam de seu tédio. A única razão pela qual ele
conseguia tolerar essa aula era a janela perto de seu assento através da qual ele podia ver o
espaçoporto e as roxas Colinas Venza além da cidade. Enquanto a voz pesada de Horton
continuava monótona, Marius procurou se distrair com a visão perfeita.
De canto do olho, um borrão metálico arqueou para cima, cortando o céu como uma
flecha. Provavelmente uma de suas expedições de Mapeamento e Exploração foi nos
espionar do ar, ele pensou. Em um acesso de ressentimento, ele desejou que a nave
rodopiasse no meio do vôo, caísse do céu e colidisse com o espaçoporto. Embora soubesse
que sua própria matriz não era forte o suficiente para fazer isso, ele concentrou toda sua
força telepática em uma imagem mental do espaçoporto explodindo em chamas.
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Sem aviso, ele foi interrompido. Uma onda de protesto mental atingiu sua mente
despreparada, tão forte e alto como se o forasteiro tivesse gritado que ‘NÃO!’ em seu
ouvido. Uma sucessão distorcida de imagens ondulou por sua mente, imagens que não
eram suas: uma parede de castelo envolta em chamas douradas, uma labareda em forma
de mulher elevando-se acima dela. Dentro da coisa, uma garota em um vestido azul não
tinha medo, e perto dela um homem agarrava uma espada com uma grande pedra azul em
seu punho; ele se contorceu, enquanto o fogo lambia a mão que segurava a espada. Havia
agonia no rosto marcado e abatido, o rosto que Marius reconheceu como seu irmão Lew.
Chocado, ele ergueu suas barreiras para parar aquela enxurrada de horror, mas não antes
de ver a garota desmoronar no fogo e sentir terror e tristeza como uma ferida aberta na
mente que tocou a sua.
Marius sentiu a nuca molhar com suor úmido. A cena tinha sido tão real como se ele
mesmo estivesse no parapeito em chamas...quem quer que tenha invadido seus
pensamentos tinha que ser um telepata talentoso. O intruso estaria aqui, na sala de aula?
Ele se virou e examinou os rostos vazios e entediados. Ele também examinou seus
pensamentos, tentando localizar a mente que havia entrado em contato com a dele. Onde
você está? ele implorou ao desconhecido. A única resposta foram as três badaladas do
interfone, que sinalizavam o fim do período. Os Terrans passaram correndo por ele em
direção à porta e ele se perguntou: Como poderia ter sido um deles? Eles só pensam em
chegar ao refeitório antes que ele fique lotado... Ele esperou até que a maioria tivesse ido,
então colocou seus livros em sua pasta.
Quando ele se encaminhou para o elevador, uma voz inconfundível disse: - Espere um
momento.
Virando-se, viu um menino de sua idade, com roupas simples e botas macias de uso
interno, da moda Terran, fora isso ele parecia mais darkovano do que o próprio Marius.
Esguio, com mãos longas e graciosas, ele tinha pele clara e cabelos castanho-avermelhados.
Seus olhos eram de uma cor que Marius nunca vira antes, âmbar, quase dourado, como os
olhos de um gato da montanha.
- Marius Lanart, - o estranho começou no puro Cahuenga das distantes Hellers, - devo
prestar contas por minha intrusão. - Ele engoliu em seco, parecendo desconfortável. - Você
enviou aquele...aquele seu devaneio por toda a classe. As outras crianças não são telepatas,
mas eu sou e não pude deixar de ver isso por seus olhos. Toda aquela raiva e o fogo que
você queria acender...acho que me trouxe muitas lembranças ruins. Eu não aguentei mais...
O que você viu foi um fragmento dessas memórias.
Marius teve uma sensação estranha, uma espécie de empatia pelo sofrimento que
sentira no outro. Piedade e uma curiosidade repentina levaram-no a perguntar: - Memórias
de quê? Eu vi meu irmão em sua mente.
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- Eu estava em Aldaran quando Sharra se libertou. - Ele franziu a testa e disse


abruptamente: - Não podemos conversar aqui. Você tem um tempo de almoço agora?
Marius assentiu e o seguiu. De repente, era importante que ele soubesse mais sobre
esse estranho Terranan. Em um vestiário vazio, eles se sentaram nos bancos compridos, um
de frente para o outro. Marius se sentiu estranho, mas sua compulsão venceu sua timidez. -
Como você conheceu meu irmão? - Ele perguntou.
- Lorde Kermiac de Aldaran era meu guardião. Eu cresci no castelo. - Ele fez uma pausa
e continuou: - Quando Lew veio para Aldaran, nós o tornamos parte de nosso círculo de
matriz. Ele viu que eu tinha telepatia, como minhas irmãs, e começou a me treinar para
usá-la. Ele foi gentil comigo, como um irmão... Mantivemos contato com bastante
frequência, foi assim que eu reconheci você... Ele me deixou ir com ele e Marjorie...
Marius captou a imagem mental de Lew, caminhando pelas ruas de uma cidade
brilhante, sorrindo para a garota de olhos âmbar ao seu lado.
- Marjorie era minha irmã. – O outro continuou. - Nosso pai era Terran e nossa mãe
era a última dos Darriells, uma velha família das montanhas. Talvez seja por isso que Lew e
Marjorie se apaixonaram, ambos eram híbridos terran-darkovano e se entendiam bem
desde o início, por todo bem que isso lhes fez. - Ele estremeceu, uma careta feroz curvando
seus lábios. - Quando Lew finalmente capturou a matriz de Sharra, ele teve que atacar
Marjorie. E não pude ajudá-la, estava com muito medo e tudo aconteceu muito rápido. Ela
morreu e... e tudo pegou fogo...
Marius sentiu uma pontada dolorosa como se a angústia do outro fosse dele também.
Em vez de insistir nisso, ele mudou de assunto. - Você é tão darkovano quanto Lew e eu.
Como você veio parar aqui? - Ele sinalizou as paredes brancas em um gesto de desprezo. -
Algum Terranan trouxe você à força?
- Não, eu não tinha outro lugar para ir. Minha outra irmã, Thyra, fugiu com seu
amante, e só os deuses sabem para onde. Meu pai adotivo havia morrido algumas semanas
antes. Eu não sabia para onde Lew tinha ido, então entrei para o Império Terran, por ser
filho de um deles. - Ele ergueu os cantos da boca para formar um leve sorriso. - Esqueci de
me apresentar. Rafe Scott, z'par servu.
A fluida frase darkovana chocou com o nome Terran, embora “Rafe” fosse uma
denominação darkovana, um diminutivo de “Rafael” ou “Rakhal”. Um nome adequado para
um filho de Terra e de Darkover. Aqui estava alguém que poderia ser irmão de Marius, tão
semelhantes eram suas origens. Um filho da Terra e de Darkover, ele repetiu para si
mesmo. Tenho direito em ambos, embora eu tenha tentado negar o mundo de minha mãe.
- Eu sei. - Rafe respondeu, com a consciência surpreendente de um telepata. - Às
vezes, sinto que poderia abrir mão de minha alma para ser verdadeiramente um Terran,
pertencer apenas ao Império, mas não posso esquecer onde nasci e aqueles que me
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 17

criaram. Lawton, o Legado, diz que tenho sorte de ter ligação com os dois mundos. Mas
acho que é mais como uma maldição. - Ele olhou para Marius. – Posso dizer que você está
com muita raiva. Tem algo a ver com Lorde Hastur, o Conselho Comyn, seu pai e os Terrans.
Você não veio para o QG por sua própria vontade, não é?
Marius balançou a cabeça. A franqueza de Rafe o confundiu, pois ele sempre manteve
suas emoções para si mesmo. No entanto, era, de alguma forma, natural, como se ele
conhecesse Rafe há muito tempo. Então, ele falou sobre os últimos dez dias, omitindo
apenas os extremos de sua raiva. Para outro telepata, essas emoções fortes eram óbvias,
de qualquer maneira.
Quando ele terminou, o outro garoto deu-lhe um sorriso hesitante e disse: - Não é fácil
viver entre dois mundos. Nunca é. E você também não queria em primeiro lugar. - Marius
sentiu uma onda de emoção por trás daquele sorriso, um desejo intenso, ecoado pelos
pensamentos de Rafe:
Como eu, ele é um híbrido, nunca realmente fez parte de nenhum dos dois mundos.
Poderíamos ser amigos... Santo Portador dos Fardos, estou sozinho há tanto tempo!

~o⭐o~
Em uma tarde quente, vários dias depois, Marius caminhou rapidamente pela Zona
Terranan, com a pasta balançando na mão. Não era dia de aula, então ele iria encontrar
Rafe na biblioteca onde poderiam trabalhar juntos em suas tarefas. Parando na barraca de
um vendedor de rua, ele comprou um bolo de carne e continuou seu caminho. Enquanto
mordiscava a casca quente e escamosa, sentiu um formigamento de ansiedade no limite de
sua consciência. Ele ficou parado e se concentrou. Era uma grosseria que o fazia sentir-se
como um dos ratos enjaulados do laboratório da escola. Ele estava sendo vigiado por
alguém não muito longe. Tinha certeza porque a mesma coisa tinha acontecido três vezes
nos últimos seis dias e ele estava farto disso. Ele alterou sua rota, mudando a direção do
QG para o espaçoporto, esperando que o observador invisível ficasse confuso o suficiente
para se revelar aos sentidos estendidos de Marius. Mas quando ele alcançou as barricadas
em torno do campo de pouso, seu perseguidor ainda estava em seu caminho.
A multidão estava crescendo devido ao fluxo de viajantes desembarcando da Southern
Crown. Marius teve um impulso momentâneo de demorar um pouco ali, como fizera antes,
a caminho do QG. Ele gostava da vista e dos sons do enorme complexo: o rugido das
enormes naves estelares subindo no ar, as muitas variedades de pessoas e outros seres de
centenas de mundos... Relutantemente, ele se virou e deixou o espaçoporto.
- Você está atrasado. - Rafe comentou quando Marius o encontrou perto da fonte na
praça em frente ao QG. - E com raiva. O que aconteceu?
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 18

Marius não se surpreendia mais com a velocidade com que Rafe captava suas emoções
superficiais. Ele era um telepata forte nesse poder e Marius não se opunha a ele. Ele
gostava do fato de que Rafe se importava o suficiente com ele para monitorar seus
sentimentos. Freqüentemente, eles entravam no primeiro estágio do relacionamento
mental sem nenhum esforço deliberado. Mas quando Marius tentara sondar mais fundo,
para um vínculo mais estreito, ele encontrou tanta dor e medo que se retirou, para alívio
óbvio de Rafe.
- Fui seguido até aqui, - Marius respondeu - e não é a primeira vez. Não sei por que um
Terranan iria querer me espionar, mas...
- Espere. - Rafe interrompeu. - O que o faz pensar que os Terran são os responsáveis?
Eu concordo, a maioria dos oficiais do espaçoporto são idiotas barulhentos, mas o pessoal
da Inteligência sabe o que faz. E isso não inclui perseguir um pária do Comyn que tem tanto
direito à cidadania do Império quanto eles. Não faz sentido.
- Talvez não. – Marius disse e apertou o botão "subir" ao lado do elevador. - Mas quem
mais me seguiria por toda a Cidade Comercial e não seria capaz de me rastrear até o
Castelo?
- Pelo que você me disse, seus preciosos Hali'imyn são perfeitamente capazes disso,
seja usando agentes ou suas próprias matrizes. Talvez eles estejam preocupados que você
revele alguns de seus segredos para o Império...
- Isso serviria a eles. - Marius disse sarcasticamente quando as portas do elevador
finalmente se abriram. Rafe provavelmente está certo, ele pensou enquanto eles subiam. Se
alguém tem um motivo para me espionar, esse alguém é o Comyn. Ele ficou ligeiramente
surpreso por não ter suspeitado deles antes, então percebeu que não queria admitir tal
possibilidade para si mesmo. Um Lorde dos Sete Domínios, responsável por uma atividade
secreta, mesquinha e tipicamente Terran como espioná-lo? E ainda assim...
O elevador parou e abriu as portas com precisão mecânica. No meio do corredor
brilhante, Marius parou para matar a sede em uma fonte automática. A água fria tinha
gosto de torneira de metal brilhante e ele a cuspiu. Ele estremeceu de repente, tomado por
uma repulsa total por todos os aspectos de sua existência desprezível.
- Marius, pega leve! - Rafe disse suavemente. - As coisas não estão tão ruins. Posso
estar errado sobre o Comyn ter seguido você. Mas, mesmo que não esteja, a honra dos
Hasturs é conhecida até mesmo muito além das Hellers. Meu pai adotivo sempre falou de
Lorde Danvan como um homem justo e sábio, embora suas políticas fossem diferentes.
Tenho certeza de que ele não sabe nada sobre esse absurdo e vai colocar um fim nisso no
momento em que você apelar para ele.
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Marius pensou: Da mesma maneira como quando apelei para que ele me deixasse
entrar para os cadetes? Por que não fez nada sobre isso? Terei que encontrar uma arma
adequada e uma maneira de usá-la.
Antes de entrarem na biblioteca, Rafe falou novamente: - Se conseguirmos terminar
ainda no início da tarde, vamos descer para o espaçoporto. Conheço um dos mecânicos e
ele disse que nos dará um tour dentro de todo o Complexo. Vai ser muito melhor do que
aquele papo furado que o reish das Relações Públicas nos dá em seus passeios. - Ele usou a
palavra em cahuenga para ‘fezes de cavalo’ ou ‘sujeira de estábulo’.
Apesar de seu humor pesado, Marius sorriu, pensando: Ele viu que eu estava chateado
e tentou me animar.
A compreensão o comoveu e ele decidiu mostrar sua gratidão.
- Tive uma ideia melhor. - Marius disse em voz alta. - Vamos sair daqui cerca de uma
hora antes de escurecer e ir para meus quartos. Jantaremos e depois irei guiá-lo
pessoalmente por cada centímetro do Castelo Comyn. - Um pouco surpreso com sua
própria ousadia, Marius fez uma pausa. Ele podia sentir o prazer de Rafe como uma
presença tangível no espaço entre eles. Ele tentou parecer indiferente. - Traga seus livros e
um conjunto extra de roupas para que você possa passar a noite se quiser.
- Eu gostei disso. – Rafe respondeu. - Essa é uma oferta principesca, meu lorde Marius.
- S’dia shaya, vai dom Rakhal. – Marius respondeu com a frase tradicional em casta. –
Vamos. – Ele chamou. - Talvez tenhamos sorte e encontremos uma sala de conferências
vazia.
Eles quebraram dois ou três lápis em sua pressa de terminar os exercícios designados e
deixaram o prédio do QG enquanto as sombras da noite estavam se elevando acima das
colinas. Uma chuva fria gelava o ar e Rafe estremeceu em sua jaqueta leve. Aproximando-
se do castelo, Marius diminuiu o passo para um mais firme e deliberado. Sob o enorme arco
que conduzia ao pátio traseiro, estavam três jovens cadetes. O primeiro era Felix Aillard,
suas belas feições de Comyn retorcidas em uma caricatura parecida com um sorriso. Ele se
aproximou para interceptá-los, puxando sua espada enquanto se movia.
- Vamos passar. – Marius disse. Não fora um pedido. Felix simplesmente olhou,
apreciando a situação. O vento chicoteou seu cabelo ruivo dourado e alargou sua capa
preta curta, fazendo-o parecer a epítome de um soldado do Comyn. - Por que você está
bloqueando nosso caminho? - Marius perguntou e passou sua pasta para Rafe, para que ele
pudesse pousar a mão na adaga embainhada que sempre carregava.
- Oh, mas não estou impedindo seu caminho, com'ii. – Felix disse, os olhos fixos em
Rafe. - Vejo que seus novos amigos lhe forneceram um servo. Mas nenhum menino de
recados do Terranan passará por aqui!
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 20

- Rafe Scott não é meu criado. Ele é meu amigo. Você não tem o direito de negar a
mim e ao meu convidado a entrada em minha casa.
Felix riu, um som feio e sem alegria. Marius estava ciente de uma onda de raiva
vertendo como piche quente da mente do cadete em direção a Rafe. - Você acha que não
tenho o direito de proibir a entrada desse Terran? - Felix zombou. - Bem, chiyu, você pode
ficar aqui enquanto mando chamar alguém que tenha! - Ele se virou para o garoto à sua
esquerda. - Nicol, encontre o Comandante e diga a ele do que Montray-Lanart está
causando problemas.
Oh inferno! Marius pensou. Se ele chamar Dyan Ardais, aquele maldito ombredin
enviará Rafe de volta à Zona só para me irritar!
O cadete correu na direção do quartel. Marius, vendo o sorriso triunfante de Felix,
ansiava por esmagar aquele rosto bonito. Sua indignação não era apenas por si mesmo,
mas por Rafe e o constrangimento que Félix estava tentando causar a ele. Rafe nem estava
vestido adequadamente para o clima e aquele soldadinho de brinquedo nojento o fazia se
destacar na chuva como um mendigo! Pareceu natural que Marius focalizasse sua
indignação em sua matriz, o poder de sua raiva cresceu até que pareceu envolvê-lo como
uma capa de fogo. Apenas um leve esforço foi necessário para deixar Felix sem sentidos,
como desejava fazer.
Felix o encarou com suspeita e medo em seus olhos enquanto ele ofegava, sem
conseguir respirar, segurando em vão sua garganta. Rafe também se virou, com um olhar
horrorizado. Marius o ouviu chamar, sem palavras em voz alta... Você não sabe o que está
fazendo! Pare com isso, antes que seja tarde demais!
Relutantemente, Marius desacelerou seu ataque. Isso significa muito para você?
Sim!
Marius retirou a energia destrutiva de sua pedra-da-estrela. A vingança contra Felix
não valia a pena se causava tanto sofrimento a Rafe.
Agora que ele tinha sua voz de volta, o cadete estava rosnando como um homem-
gato. - Eu vou te mandar para o inferno mais frio de Zandru, seu pequeno bre’suin! Usando
uma matriz para me enfeitiçar! Por que você não luta comigo como um homem, seu
maldito bastardo Terran!
- Sim, - Marius disse baixinho - minha mãe era Terran, mas fui reconhecido por meu
pai. Você não pode reivindicar essa distinção. Você pode, Felix? - A bastardia não era uma
desgraça nos Sete Domínios, mas a promiscuidade da mãe de Félix lhe valeu o apelido de
‘filho de seis pais’ e Marius não sentiu remorso em usar isso a seu favor. Felix, lívido de
raiva, abruptamente ficou sem palavras zombeteiras.
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Naquele momento, Nicol voltou e com ele estava um guarda alto e ruivo que Marius
reconheceu como Lerrys Ridenow, seu único apoiador no Comyn. Graças aos deuses, ele
pensou. Lerrys vai acabar com esta comédia.
- Não consegui encontrar o Comandante, - Nicol estava dizendo, - mas o Capitão
Ridenow queria...
- Descobrir o que exatamente está acontecendo aqui. - Lerrys concluiu. - O cadete
MacAran me contou uma história de sua apreensão de um espião Terran que estava sendo
contrabandeado para o castelo por Marius Lanart.
- Capitão, isso não é verdade! - Rafe interrompeu. - Fiquei calado por deferência às
suas leis, mas não permitirei que Marius seja mais ofendido por minha causa. Ele me trouxe
aqui como seu convidado e essa conversa sobre espionagem é ridícula! - Ele tossiu e
continuou: - Senhor, você é do Comyn. Certamente você tem como saber que falo a
verdade.
Lerrys ergueu uma sobrancelha enquanto olhava para Rafe. Quando falou, foi para os
três cadetes, em tom cortante de raiva. - Acho difícil acreditar que um cadete pudesse ser
cúmplice de tamanha tolice. Um Comyn pode ser rebaixado por esse comportamento. Este
rapaz é um visitante e hóspede de Dom Marius. Você o insultou e quebrou as leis de
hospitalidade. Volte para seus aposentos. Lidarei com você mais tarde. Cadete Aillard, você
fica. - Ele se virou para Marius. – Pode esperar por mim no Salão Principal, primo?
- Com prazer, parente. - Marius conduziu Rafe sob o arco e através do pequeno pátio.
Poucos minutos depois, eles estavam dentro do castelo, ao pé de uma escada de mármore
que subia até o quarto andar.
- É como se estivéssemos em casa. – Rafe disse. - Nosso Salão Principal tinha arco de
luz, mas era tão frio quanto, e não tínhamos tantas tapeçarias quanto aqui.
- Olhe ali, embaixo do lustre. - Marius indicou uma tapeçaria representando uma
batalha travada sob as torres do Castelo Comyn, detalhada o suficiente para eles
distinguirem vários guardas e seu líder, um homem de cabelos escuros engajado em um
único combate com um chefe das Cidades Secas. As cores eram tão nítidas que era possível
distinguir as manchas de sangue em suas botas. - Rafael Lanart era meu ancestral. – Marius
explicou com orgulho. - Trezentos anos atrás, ele liderou os Guardas rumo à vitória contra
um exército invasor das Cidades Secas, depois de matar seu chefe de guerra! Ele ganhou
grande renome que perdura mesmo tantos anos depois. Quando o rei e seu filho foram
mortos por traição, Rafael se tornou regente do herdeiro infante.
- Ah, Marius! Aí está você.
Eles se viraram e viram Lerrys Ridenow parado a alguns passos de distância, a água da
chuva pingando de sua capa. - Está chovendo forte o suficiente para acordar os mortos. -
Lerrys disse irritado. - Às vezes me lembro da velha superstição sobre essa chuva ser um
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sinal da raiva dos deuses por nossa arrogância. - Sua voz se suavizou. - Você certamente
teve sua cota de arrogância hoje, primo. Aceite minhas desculpas pelo comportamento
daqueles cadetes. Eles serão fortemente repreendidos, garanto-lhe.
Surpreso com a súbita solicitude do homem, Marius encolheu os ombros e disse: - Está
tudo bem, Dom Lerrys. Eles não nos feriram. Além disso, se você der atenção ao latido dos
cães, ficará surdo e não aprenderá muito.
Lerrys sorriu. - Temo que nós dois tenhamos esquecido nossas maneiras. Apresente-
me ao seu amigo, Marius.
- Eu sou Rakhal Darriel-Scott, mais conhecido como Rafe Scott, z'par servu. - Rafe
estava obviamente cansado de ser considerado um ignorante forasteiro Terran.
- Dou-lhe as boas-vindas ao Castelo Comyn, Rafe Scott. Parece que você está
precisando do calor do fogo e de uma bebida quente, assim como eu. Vocês dois não
gostariam de se juntar a mim em meus aposentos?
- Obrigado, - Marius respondeu, - mas ainda temos alguns trabalhos escolares para
fazer antes do jantar.
- Pelo menos deixe-me acompanhá-lo até sua porta, já que é no caminho para meus
próprios aposentos.
Enquanto subiam a escada, Rafe perguntou: - Dom Lerrys, você sabe por que o garoto
Aillard me odeia? Marius e eu sentimos isso, mas nunca o vi antes.
O rosto claro de Lerrys anuviou-se. - É um assunto ruim. Felix tinha um irmão mais
velho, Geremy, que era capitão da Guarda. Ele estava patrulhando na noite de verão do ano
passado... Houve uma briga em uma taverna, iniciada por dois homens da Força Espacial.
Geremy interveio e um dos Terrans atirou nele com um blaster. Ele morreu algumas horas
depois, nos braços de Felix. Felix passou a odiar tudo e todos os Terrans desde então.
- Creio que não posso culpá-lo. - Rafe disse pensativo.
- Sim. - Marius retrucou. – Mas você não teve nada a ver com a morte do irmão dele, e
ele não tem motivo para o odiar por isso!
Lerrys parecia divertido, mas falou gravemente. - Sua lealdade lhe dá crédito, Marius.
E você está certo. Infelizmente, homens como Felix, que são envenenados por seu ódio,
não pensam com tanta clareza.
Marius captou uma onda de emoção: Lerrys estava satisfeito com a amizade de Marius
e Rafe. Não era um vago sentimento de gentileza, mas uma forte e autossatisfatória
aprovação, como se o próprio Lerrys fosse, de alguma forma, responsável por seu
relacionamento. Marius estava feliz por ter recusado o convite do homem, pois seu novo
interesse era perturbador. Talvez ele seja um ombredin e deseje nós dois, Marius pensou e
então sufocou uma risada. Era impossível imaginar o sempre elegante Lerry presos às
mesmas paixões excessivas que quase desgraçaram Dyan Ardais três anos atrás.
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~o⭐o~
O jantar foi tranquilo, pois Andres só voltaria de Armida dois dias depois. Depois,
cumprindo sua promessa, Marius guiou Rafe pelo castelo o máximo que seus pés puderam
seguir.
Mais tarde, Marius deitou-se sob as cobertas pesadas de sua cama. Rafe já estava
dormindo do outro lado da sala. Marius suspirou, satisfeito pela primeira vez desde que
viera para Thendara.
Sua euforia continuou durante a maior parte do dia seguinte. As nuvens haviam se
dissipado e o dia estava tão quente quanto um verão darkovano permitia. Levantando-se
cedo, eles cavalgaram para o norte para ver o rhu fead, o lugar sagrado do Comyn. Embora
Rafe não pudesse entrar no antigo santuário branco, ele ficou fascinado com o lago Hali ao
lado, cujas margens eram enevoadas. Eles passaram o resto da manhã cavalgando para
noroeste, para o Planalto de Armida. Depois do meio-dia, eles pararam e desembrulharam
a comida que haviam levado na viagem.
- Acho que você não cavalga há muito tempo. – Marius disse, observando o
desconforto de Rafe enquanto ele se abaixava para o chão. Rafe fez uma careta e pegou
uma maçã. Eles comeram rapidamente, quase sem falar. Ao redor deles, as árvores
farfalhavam com o som dos gritos dos pássaros e os movimentos rápidos dos esquilos na
pedra. Rafe ficou tenso abruptamente, como um falcão pronto para voar.
- Qual é o problema? - Marius perguntou.
Rafe esticou os braços acima da cabeça. - Marius, vamos embora ...
- Para onde?
- Qualquer lugar, contanto que seja a anos-luz de distância deste planeta! Terra e
Darkover não podem fazer nada além de se destruírem quando colidem. Quero encontrar
um lugar onde ninguém tenha rixas ou rancores antigos. - Ele estava sorrindo, mas seus
olhos tinham uma aparência faminta e imprudente. - Vamos embora, amanhã ou na
próxima semana. Somos muito jovens para a Força Espacial, eu sei, mas poderíamos
embarcar como carregadores. Talvez nos tornemos foras-da-lei, vivendo de acordo com
nossa inteligência e esperteza, com preços em nossas cabeças. Ou podemos ser colonos.
Ainda há muitos mundos novos a serem explorados e estabelecidos.
As cores da floresta vacilaram diante dos olhos de Marius. O ar parecia ondular e ele
foi dominado pela mudança repentina no tempo que frequentemente possuía aqueles com
sangue Alton. Ele viu o espaçoporto de Thendara e as portas abertas de uma nave estelar.
Lew estava na rampa, mais velho, com mechas grisalhas no cabelo escuro e a resolução no
rosto cheio de cicatrizes. Ele usava roupas no estilo Terran, assim como a jovem loira ao seu
lado. Em seus braços, Lew segurava uma garotinha. Suas pálpebras se abriram, revelando
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 24

olhos de âmbar, olhos iguais aos de Rafe. Por um mero instante, Marius sentiu a presença
de Rafe em sua mente, compartilhando a visão. Então ele sentiu a dor do amigo e o ouviu
chamar: "- Marjorie!" com um desejo terrível. A visão se desvaneceu.
Rafe respirou fundo, afastando a mão de Marius que o apoiava. - Estou bem. – Ele
disse calmamente. - Aquela criança que você viu... parecia com minha irmã.
- Rafe, você não gostaria de me contar... mais... sobre a noite em que ela morreu? - Ele
hesitou, escolhendo as palavras. - Posso dizer que você quase bloqueou seu laran por causa
das coisas que aconteceram. Talvez, talvez devêssemos tentar uma ligação completa... Você
não pode continuar mantendo tudo trancado dentro de você. - Marius pensou: Nunca dei
conselhos a ninguém, mas conheci sua dor e não posso ficar indiferente a ela.
- Claro, - Rafe respondeu, - você sabe tudo sobre emoções ocultas! Você mantém sua
raiva queimando como o caldeirão de um demônio. Não é um pouco perigoso para um
Alton, cuja raiva pode matar? - Então ele sorriu, relaxando um pouco. - Oh, nós somos um
bom par! Você com sua raiva e eu com minhas... minhas memórias. Venha, vamos
aproveitar o resto da tarde!
Um leve tremor enrijeceu os cabelos da nuca de Marius. Alguma coisa vai acontecer,
ele pensou. Muito em breve, talvez em dez dias. Alguma coisa importante. Eu sinto isso. Ele
olhou para o céu sem nuvens, as sempre-vivas altas balançando com a brisa, depois para o
rosto expectante de Rafe.
- É um dia quente para Darkover. - Ele se levantou. - Se você não estiver muito
cansado, vou correr com você daqui até a Estrada Proibida. Meu cavalo está preparado
para uma boa corrida.

~o⭐o~
Cedo na manhã seguinte, Marius acompanhou Rafe ao QG, com a pasta na mão. Ele se
sentia como um amotinado aguardando uma punição. Era difícil acreditar que apenas
quatorze horas antes eles correram com seus cavalos pelas colinas perfumadas. Somos
como formigas-de-fogo voltando ao formigueiro, Marius pensou com raiva, nenhuma
fagulha de livre arbítrio para nos distinguir de milhares de outras pessoas!
Em voz alta, ele perguntou: - Que tipo de vida e ‘educação’ é essa que os Terrans se
orgulham tanto? Ficar sentado o dia todo, apertando botões e rabiscando notas como um
funcionário míope!
- Não fui forçado a cursar no trimestre de verão como você. – Rafe disse. - Eu queria
tirar algumas matérias difíceis do caminho, e quanto mais cedo eu terminar o grau de
escolaridade exigida de todas as crianças Terran, mais cedo poderei ser eu mesmo, livre
para escolher uma direção. Além disso, Marius, se vamos ser piratas espaciais, você terá
que conhecer os Princípios da Navegação Interestelar! Portanto, estude essa álgebra!
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 25

- Achei que não importava para onde íamos. – Marius respondeu, mas era difícil fazer
piada nos corredores e elevadores lotados do QG.
Uma vez fora de sua aula de Geografia do Império, Marius se dirigiu ao vestiário, mas
antes de chegar ao elevador, uma voz familiar que não era de Rafe chamou seu nome.
- Qual é a pressa? - A garota de pele escura disse com um sorriso amigável. - Não achei
que nossos restaurantes automáticos o empolgassem tanto.
- Olá Elena. - Ele diminuiu o ritmo para acompanhar o dela. Ele não confiava na tutora,
e seu lindo rosto o perturbava. No entanto, ela era a única Terran de quem ele realmente
gostava, com exceção de Rafe, claro. Mas Rafe não era completamente um Terran. - Você
achou certo. - Marius disse. - Geralmente eu trago meu próprio almoço de casa. Você se
gostaria de se juntar a mim?
- Obrigada, mas não. Acabei de abrir meu caminho através da horda faminta e estou
voltando para meu escritório em busca de um pouco de paz e sossego. - Ela olhou para ele
com curiosidade. - Sua sala de aula é no meu caminho, mas não foi a única razão pela qual
vim por aqui. Devo levá-lo até a Administração.
Marius parou bruscamente. - Por quê? - Ele perguntou cautelosamente.
- O Legado quer falar com você. - Ela baixou a voz respeitosamente, como uma
darkovana mencionando o Lorde Hastur.
- E se eu optar por não atendê-lo...?
- Marius, não seja infantil. Você não tem que lamber as botas do homem, mas tente
mostrar algum respeito já que está no quartel-general dele.
Marius a seguiu sem falar. Respeito! Ele pensou. Que insolência! Eles enviam esta
garota desastrada para me enganar com palavras justas, sabendo que não tenho escolha a
não ser obedecer à convocação. São como as correntes de Sharra! Se meu pai estivesse
aqui, esse Legado imploraria por apenas um momento do meu tempo! Sua raiva aumentou
novamente e com ela a dor e a frustração que começaram no dia em que seu pai o deixou
sem nem mesmo se despedir.
O Escritório do Legado de Assuntos Terran era um conjunto de cinco grandes cômodos
na cobertura do telhado do prédio do QG. Marius deu seu nome para a recepcionista
entediada na entrada.
- Marius, - Elena disse repentinamente, - posso ser apenas uma engrenagem na
máquina, mas me importo com você. Por favor, acredite que eu nunca te faria mal. - Ela
apertou a mão esquerda dele rapidamente e saiu correndo. Marius olhou para ela com
certa perplexidade.
- O Legado o receberá agora, senhor. – A recepcionista disse, sem tirar os olhos das
pilhas de papéis em sua mesa. - Por favor, siga o servomecânico.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 26

Marius seguiu atrás do pequeno robô lento e atarracado até uma porta fechada na
outra extremidade da suíte, onde um gigante de pele marrom em um uniforme da Força
Espacial abriu a porta e conduziu Marius para dentro. Ele ficou um pouco surpreso, pois
esperava que o escritório particular de um Legado Terran fosse uma mistura berrante de
cromo e plástico, com uma barra automática e tela de vídeo de parede a parede. Esta
câmara tinha alguns toques darkovanos: painéis de madeira, um vaso de cerâmica, um
tabuleiro usado para o jogo de Castelos e uma tapeçaria representando um Festival do
Solstício de Inverno.
- Marius Montray-Lanart. - O Legado levantou-se da mesa e fez uma reverência
darkovana correta. Mais uma vez, Marius ficou surpreso. Ele pensara que a mais alta
autoridade Terran no espaçoporto de Thendara seria tão velha e digna quanto Lorde
Hastur. O homem que o encarava com um sorriso desarmante era mais jovem do que
Lerrys Ridenow. Com seu cabelo ruivo brilhante e pele clara ele poderia se passar por um
Comyn.
- Você não vai se sentar? - A estranha figura pediu. Enquanto Marius obedecia, o
homem continuou, em um cahuenga impecável. - Dan Lawton, z'par servu. Fui nomeado
Legado há seis meses. Um dos benefícios de uma tarefa muito trabalhosa é este covil
privado, que ajudou alguns de meus antecessores a manter a sanidade. Não almocei e
suspeito que você também não, então tomei a liberdade de pedir algo. Posso lhe servir uma
bebida enquanto isso?
- Não, obrigado. - Marius ergueu os olhos para encontrar os olhos azuis de Lawton.
Estendendo ligeiramente seus sentidos, ele percebeu a excitação sob o exterior casual do
Terran. Apesar da curiosidade, Marius relaxou e adotou uma postura mais confortável.
- Você deve estar se perguntando por que eu te chamei aqui. Agora, de acordo com
nossos arquivos, você é um telepata então você saberá que estou falando o mais
honestamente que posso. - O Legado cruzou as mãos. - Tenho te observado com muito
cuidado desde que você chegou no QG. Você não tem estado muito feliz neste ambiente e
lamento por isso. Mas aprendeu a viver de forma bastante eficaz em um mundo que
pensava estar além da sua compreensão. Claro que não esperava nada menos...
- Uma nave estelar Terran pousou em Darkover - Lawton continuou suavemente - a
mais de cem anos atrás. O Comyn ficou horrorizado com a intrusão do que acreditavam ser
uma raça alienígena. Quase vinte anos após aquele primeiro pouso, um daqueles invasores
"alienígenas" descobriu que tinha laran, a habilidade telepática tão zelosamente guardada
e valorizada pelo Comyn. Esse homem do espaço era Andrew Carr, que se casou com sua
tia-avó e viveu sua vida e se tornou membro do clã Alton. - O Legado sorriu brevemente. -
Eu poderia listar uma centena de outros Terrans que encontraram a felicidade no estilo de
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vida darkovano: seu tio Larry Montray; ou Magda Lorne, a agente de Inteligência que se
tornou uma Amazona Livre. Ambos são exemplos notáveis.
Marius se mexeu inquieto na cadeira, desejando que o Terran chegasse ao ponto do
que ele estava tentando dizer. Só então, um grande servomecânico deslizou para dentro da
sala. Lawton apertou um botão e sua parte superior se abriu, dispensando uma bandeja
cheia de comida. Enquanto o robô recuava, Lawton entregou a Marius um sanduíche e
serviu-lhe um copo com um líquido quente e marrom. Marius ergueu a mão em protesto,
pensando que fosse café, a bebida Terran que provou uma vez a pedido de Rafe.
- Não se preocupe. – Lawton disse, sorrindo. - É jaco recém preparado. Eu o compro de
uma barraca de comida darkovana todos os dias. Também não gosto de café.
Quando Marius terminou um segundo sanduíche, Lawton falou novamente:
- O que eu quero dizer é que o Comyn são os únicos darkovanos que ainda não
conhecem as vantagens da cooperação mútua entre nossas culturas, exceto, talvez as
Cidades Secas ou dos bandidos que infestam as montanhas. As Amazonas Livres nos
enviaram suas jovens para treinar e empregar por cerca de três gerações. Somente na
última década, estabelecemos duas faculdades de medicina para darkovanos. Poderíamos
fazer muito mais por este mundo, se o Conselho nos desse uma chance.
- Uma chance para Darkover se tornar mais um elo na cadeia de seu Império? - Marius
interrompeu. - Não creio que nem mesmo as Amazonas Livres queiram que isso aconteça,
Sr. Lawton.
- Nem eu, na verdade. - O Legado fez uma pausa para ver a reação de seu comentário
antes de continuar. - Existem outras alternativas, sabe. Mesmo um acordo comercial
limitado enriqueceria Darkover com o melhor da Terra, como medicina, ciência, uma troca
de pessoas e ideias, enquanto a protegeria de todos os tecnocratas que gostariam de
refazer outro mundo à imagem da Terra. Estou ansioso para ver Darkover alcançar um
entendimento benéfico com a Terra. Porque Darkover, como você conhece, pode não durar
mais vinte anos.
- O que você quer dizer?
Lawton serviu mais jaco para si mesmo. - Há apenas uma força impedindo os Sete
Domínios do mesmo tipo de anarquia feudal que governou a Era do Caos, e essa força é o
Comyn. Infelizmente, ele está se desintegrando. Sua taxa de natalidade diminuiu
constantemente nos últimos cinquenta anos e muitos dos que sobraram estão sucumbindo
à corrupção e à decadência fora do mundo. Pior ainda, os velhos dons telepáticos estão se
perdendo. Desde que seu pai foi embora, o Conselho se transformou em um enxame de
descontentes brigões. A próxima crise real pode acabar com eles como um corpo
governante. E então o que acontecerá com Darkover? - Lawton girou o líquido em sua
xícara. - Você gostaria de ver a Liga Pan-Darkovana assumir o controle?
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- Certamente não! – Marius disse, seu interesse se acendendo, embora com


relutância.
O Legado tomou um gole de jaco e continuou: - Posso ver uma possível alternativa à
exploração de Darkover por empresários oportunistas de ambos os mundos, e isso envolve
pessoas como você, Marius. Há algum tempo, tenho recrutado o que poderia ser chamado
de futura força-tarefa. Rapazes e moças que são produtos dos ambientes Terranans e
darkovanos. Terrans como sua tutora, Elena, que tem um pouco de sangue darkovano e foi
criada neste mundo, e darkovanos com ancestrais Terran. Até mesmo alguns de seus
parentes do Comyn, que podem ver além de seus próprios narizes, alguns deles estão fora
do mundo agora, aprendendo sobre o Império e seu governo. Tenho outros trabalhando
aqui em Thendara, ajudando a reconstruir Caer Donn, e alguns ensinando nossas técnicas
médicas na Casa da Guilda de Arilinn. Quando o seu Conselho supercriado engasgar com
sua própria bile e se dissolver, meu grupo estará lá, para facilitar a transição deste mundo
do pobre enteado da Terra para seu igual e aliado. Eventualmente, Darkover estará pronto
para governar a si mesmo, seja como uma democracia ou uma monarquia constitucional. -
Ele olhou diretamente para Marius. - Você seria um complemento ideal para esta empresa.
É por isso que estou de olho em você. Fiz Elena violar sua integridade profissional para me
enviar relatórios sobre seu progresso, tanto acadêmico quanto emocional. Cuidei para que
você compartilhasse duas aulas com Rafe Scott. - Lawton fez uma pausa e sorriu. - Rafe é
outra das minhas esperanças futuras. Eu queria ver como vocês reagiram aos antecedentes
únicos um do outro...
- Como um experimento controlado? - Havia frieza na voz de Marius. - Foi você quem
me seguiu, então.
O Legado teve a gentileza de parecer envergonhado. - Sim e você está certo em me
desprezar por tal subterfúgio. Mas há um velho ditado Terran: o fim justifica os meios. Eu
ficaria feliz em desistir de minha posição e de tudo que possuo para tornar Darkover um
membro ativo da comunidade interestelar. E isso em seus próprios termos, e não nos do
Império.
Marius recostou-se na cadeira. Se ele não fosse telepata, teria duvidado da veracidade
de tal declaração. Mas ele sabia que Lawton era sincero e só podia se maravilhar com o
fervor do homem.
- No momento, - disse ele, - só tenho uma pergunta. Por que você, um político Terran,
se importa com o que pode acontecer a Darkover em vinte anos?
Novamente Lawton sorriu. - Porque, como você, sou um filho dos dois mundos. Minha
mãe é darkovana, na verdade, ela é meia-irmã de Lorde Dyan, embora ele não se apresse
em reconhecer o relacionamento. Dei minha lealdade ao Império, mas Darkover é minha
casa.
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As implicações das palavras do Legado deixaram Marius atordoado como vinho forte.
Que vingança isso seria, ele pensou. Ajudar uma conspiração Terranan, talvez acelerar o fim
do governo do Comyn... Mas, por mais que odeie meus parentes, posso espioná-los como
um bandido furtivo?
Lawton se levantou, em atitude de dispensa. - Não posso prometer que você não
sujaria as mãos um pouco como meu agente, mas nenhum darkovano poderia chamá-lo de
traidor! Você não será pago. Não quero uma resposta ainda. Pense no que lhe disse,
pondere as alternativas cuidadosamente. Quando tomar uma decisão, pode dizer ao
homem que está esperando do lado de fora dos meus aposentos. Ele é um dos meus
agentes chave e você sempre conseguirá encontrá-lo. Enquanto isso, se achar que não está
recebendo um tratamento justo aqui no QG ou se quiser falar com alguém mais velho que
Rafe, sinta-se à vontade para vir me ver.
Marius habituou-se a circunstâncias surpreendentes na última meia hora. Caso
contrário, ele teria ficado gravemente chocado ao deixar a sala de Lawton. O homem que
esperava na porta era Lerrys Ridenow.
- Olá, Marius. – Lerrys disse casualmente. - Presumo que Dan finalmente o esclareceu
sobre nossos propósitos.
- Ele o chamou de um de seus ‘agentes chave’. - Marius rebateu. - Eu deveria ter
esperado isso, em vista de seu repentino interesse em meu bem-estar.
Por um instante, Lerrys ficou sombrio. - Você realmente não confia em ninguém, não
é? Acredite ou não, meu interesse por você é genuíno. Kennard Alton era o melhor de nós e
eu o admirava. Desaprovo a forma como o Comyn cuida de seu único filho restante. Esse é
outro sintoma de sua degeneração. Se você se juntar à rede de Lawton, você pode construir
para si um futuro que vale a pena viver.
Marius foi relutantemente para suas duas últimas aulas. A hora passou lentamente,
como se algum deus malévolo tivesse alterado a passagem do tempo com o propósito de
torturá-lo. Ele tentou ouvir o instrutor, mas sua mente permaneceu na entrevista com
Lawton. Repetidamente, ele parecia ouvir as palavras do Terran: “O Comyn está se
desintegrando... a próxima crise real pode acabar com eles”. De alguma forma, ele sabia
que as palavras eram verdadeiras. Nessa percepção, o tempo e o espaço piscaram e
mudaram. Ele visualizou um jovem esguio com cabelo branco estranho e características
familiares do Comyn borradas pelas lágrimas, olhando para dois bebês pálidos e sem fôlego
em seus caixões minúsculos.
Antes que pudesse identificar o enlutado, um pensamento terrível se lançou à frente
de todas as outras considerações: Lawton havia falado de Rafe como uma de suas
esperanças para o futuro e havia arquitetado sua amizade com Marius, ou afirmava ter
feito isso. Seria possível que Rafe tivesse participado conscientemente no esquema de
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Lawton para recrutá-lo? Oh, deuses, não! Marius tentou negar a ideia, mas, como a noite
que caia veloz e dera o nome deste mundo, o pensamento era inevitável. Todas as peças se
encaixavam perfeitamente: a rápida aceitação de Rafe com ele, as longas horas passadas
juntos, até mesmo o medo de Rafe do relacionamento telepático. Se Rafe tivesse se
tornado amigo de Marius por ordem de Lawton, ele teria escondido o fato bem abaixo da
superfície de sua mente, ele poderia até ser um telepata habilidoso e sondado a mente de
Marius com habilidade demais para ser notado. Era assustadoramente plausível que o
único de seus colegas que Marius chamava de amigo pudesse tê-lo enganado desde o
momento em que se conheceram. Ele se recompôs abruptamente. Verei Rafe depois da
escola, ele lembrou a si mesmo, e então tentarei um relacionamento completo... Seria
impossível para ele esconder qualquer coisa sob o impacto total de uma mente Alton...
impossível. E então vamos nos entender.
Às 15h, o último sinal tocou e Marius quase saltou da cadeira. Como de costume, Rafe
o precedeu no ponto de encontro e estava ocupado jogando pedras na fonte. Ele sorriu
quando Marius se aproximou. Marius invejou a capacidade do outro garoto de demonstrar
emoção. Ele nunca fora capaz de rir ou chorar com as muitas crianças que viviam nas terras
de Alton, ou de se juntar às brincadeiras deles quando cresceram.
- Como foi sua aula de Ciências da Vida? - Rafe perguntou, então seus olhos se
arregalaram em consternação. - Marius, qual é o problema? Você está chateado com
alguma coisa.
Marius contou sobre seu encontro com Lawton e o subsequente encontro com Lerrys.
Rafe deu um longo assobio. - Bem, isso esclarece o mistério de seu perseguidor
desconhecido.
Ele não parece nem um pouco surpreso, Marius pensou estupidamente. Em uma voz
imparcial, ele perguntou: - É tudo o que você tem para dizer?
- Não, claro que não. Lamento e imagino que tenha sido um choque para você. Lawton
sempre teve uma abelha em seu capacete sobre um pacto Terran-darkovano. Não me
surpreende que ele esteja tentando envolvê-lo em seus esquemas malucos. Com sua
experiência, você seria um agente perfeito.
- Você também. – Marius disse, olhando diretamente nos olhos do outro.
- O que você quer dizer?
Ele fez uma pausa, esperando que Rafe não notasse como suas mãos tremiam. -
Lawton falou de você como se você fosse membro de seu grupo. Ele chamou você de ‘uma
de suas esperanças futuras’. - A suspeita inundou seus pensamentos. - E você parece
familiarizado com seus objetivos.
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Rafe se encolheu e deu um passo para trás. As palavras congelaram na garganta de


Marius, mas mentalmente ele gritou de frustração: Não sei o que pensar... Você viveu entre
esses Terranans por três anos, eles podem ter mudado você.
A mente de Rafe escureceu de repente, escondida atrás de uma forte barreira mental,
como se uma janela tivesse sido fechada, junto com venezianas e fechaduras de
tempestade.
- Rafe, não me bloqueie! – Marius disse, quase desesperado. - Se você puder abrir sua
mente para mim totalmente apenas uma vez, podemos consertar essa bagunça! Eu não vou
te machucar e isso pode te fazer bem. - Ele parou. Rafe estava olhando para ele com uma
expressão perplexa que rapidamente se transformou em furiosa indignação.
- Como você ousa! - Ele gritou. - Você quer me fazer passar por um inferno para se
livrar de suas suspeitas nojentas! E... - A voz de Rafe falhou. - Você já se convenceu de que
o espiei para o Legado! Não! - Ele gritou enquanto Marius tentava interromper. - Não diga
mais nada. Eu acho que você deveria sair. Talvez você consiga pensar com clareza quando
estiver de volta ao seu próprio ambiente. - Ele se virou.
Marius agarrou seu braço. - Você nem mesmo tentou negar!
- Tire sua mão de mim. - A voz fria de Rafe era pior do que sua raiva. Ele girou nos
calcanhares e voltou para o QG.
Tudo bem então! Marius rosnou para si mesmo. Ele que rasteje para se reportar a
Lawton. Eu nunca deveria ter me permitido colocar tanta confiança nele e nunca mais farei
isso!

~o⭐o~
Tempestades atingiram a cidade nos quatro dias seguintes. Na terceira noite, Marius
sentou-se perto da lareira no salão principal da suíte Alton. Ele terminou a última página de
problemas de álgebra e começou a ler seu livro didático de Geografia do Império.
Uma sombra escureceu a página. Ele ergueu os olhos para ver Andres o encarando. -
Está ficando tarde. - Disse o homem mais velho. - Você deveria ir dormir logo.
- Tenho mais quinze páginas para ler.
- Marius, existe algo ruim sobre estudar muito. Você vai arruinar seus olhos lendo
nesta luz miserável. Além disso, você precisa de uma noite de sono decente. Se estiver com
problemas em seus estudos, peça ajuda de seu amigo Terran.
Marius teve que se conter para manter o rosto calmo. A briga e a rejeição raivosa de
Rafe eram coisas que ele tentava afastar de seus pensamentos, sem sucesso, é claro. Nem
mesmo a antecipação de se juntar à rede de Lawton e garantir a destruição do Comyn
poderia dissipar a dor de perder o que ele pensava ser um amigo. Mas em alguns meses
dificilmente me lembrarei dele, ele se assegurou. Vou viver apenas para a missão que
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escolhi. É melhor assim. As pessoas podem traí-lo, mas os ideais são constantes. Ele esticou
as pernas e bocejou. - Rafe tem outras coisas para fazer. O que o servo Hastur queria? - Ele
perguntou para mudar de assunto.
Andres chutou uma lenha em chamas de volta para o centro da lareira, de onde ela
havia caído. - Ele trouxe uma mensagem que pode lhe interessar. Cumprimentos de Lorde
Hastur e um convite para o Baile na Noite do Festival.
- Bem, isso é típido do Regente! Acho que vou desapontá-lo e aceitar seu convite. Os
lordes e ladies do Comyn devem saber que ainda estou vivo. - Também seria uma
oportunidade perfeita para informar Lerrys de sua decisão.
De repente, houve uma batida forte na porta. Andres abriu. Um guarda corpulento
disse: - Desculpe incomodá-lo a esta hora, mas há um sujeito aqui que deseja ver Lorde
Marius. - Ele indicou uma figura esguia em uma capa cinza de pé no corredor.
- Vamos ver quem é, então. – Andres grunhiu. A figura encapuzada entrou na suíte e
puxou o capuz.
- Rafe. - Marius disse friamente, amaldiçoando interiormente os caprichos do destino.
- Eu sei que é tarde. – Rafe disse. - Mas eu queria devolver esta capa que você me
emprestou... E tenho que falar com você... A sós. - Sua voz constrangida transmitia uma
mensagem de urgência.
- Muito bem, - Marius disse, - já estava mesmo cansado de estudar. - Ele dispensou o
guarda e olhou incisivamente para Andres. Quando o corredor ficou vazio, Rafe foi até a
lareira e aqueceu seus membros encharcados.
- Tudo bem então, estamos sozinhos agora. O que posso fazer por você? - Marius falou
no Padrão Terranan, sem olhar para Rafe.
- Apenas o tempo suficiente para você me ouvir. - Rafe respondeu em cahuenga. –
Depois irei, se assim você desejar.
- Fale então.
Rafe respirou fundo. - Nunca foi fácil para mim reverter uma decisão, uma vez tomada,
mas foi o que fiz. Eu não sei quem é certo ou errado nesta situação, mas nós dois
estávamos com muita raiva para pensar com clareza naquele momento... Você ficou muito
orgulhoso até mesmo para olhar para mim na aula, mas eu também fui culpado de orgulho
quando o afastei. Percebi esta noite que isso não pode continuar assim. - Ele fez uma
pausa. Marius sentiu a tensão nele e em si mesmo. Ela quebrou quando Rafe disse: - Você
foi muito maltratado, então acho que foi fácil acreditar que menti para você. Faça o que for
preciso para se convencer de que sou realmente seu amigo. Se uma ligação total vai fazer
diferença, então... então... vamos tentar, e rápido para que nenhum de nós tenha mais
dúvidas. Você vai me dever muito por isso. - Ele parou de falar. À luz do fogo, Rafe parecia
muito cansado, quase no fim de suas forças, e doeu em Marius vê-lo assim.
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Usando sua matriz, Marius se aproximou do limite da consciência de Rafe: medo e


esperança alternavam em um ritmo acelerado e ele captou o final de um pensamento: Ele
deve acreditar em mim, ele deve! Eu não posso perdê-lo como perdi todos os outros. Oh,
Santo Portador de Fardos, permita-me ser forte para o que vamos fazer juntos!
Marius estava abalado: toda a sua indiferença cuidadosamente construída para com
Rafe derreteu como cera de uma vela acesa. Ele sabia que Rafe tinha pavor de contato
telepático, mas estava disposto a suportá-lo por sua causa. Que melhor prova de amizade
ele poderia pedir? Ele cruzou a sala e colocou a mão no ombro de Rafe. - Não há
necessidade de submetê-lo a tanta dor. Eu conheço sua vontade. É o suficiente.
- Não. - Rafe respondeu. - Não é o suficiente! Vamos moer esta pedra agora. Esta
mesma noite, se você quiser.
Se é tão importante para você, Marius pensou. Em voz alta, ele acrescentou: - Mas não
agora. Nós dois estamos muito cansados. Fique aqui esta noite e podemos tentar amanhã
de manhã. Para o inferno com a escola! Até os coveiros têm direito a licença médica. Além
disso, ambos podemos nos sentir um pouco mal quando terminar.

~o⭐o~
Depois do café da manhã, Marius vasculhou a sala de suprimentos até localizar uma
reserva de kirian, a droga usada para diminuir a resistência ao contato telepático. Ele mediu
uma dosagem segura em um pequeno frasco.
Rafe o esperava, sentado de pernas cruzadas e tenso na cama de Marius. Ele sorriu
levemente enquanto erguia o frasco em uma saudação irônica e bebia tudo de um só gole.
Momentos depois, suas pupilas dilataram quando o kirian fez efeito. Era hora de começar.
Marius tirou a pedra-da-estrela do tecido protetor e colocou-a na palma da mão
aberta. Sua consciência afundou na pedra e ele deixou a correnteza levá-lo até Rafe. Ele
sentiu a respiração do outro garoto, o zumbido constante de seu batimento cardíaco, o
fluxo de sangue nas artérias. Eles se aproximaram, em imagens mentais compartilhadas:
duas sombras de meninos se abraçando, peneireiros do lago disparando para dentro e para
fora da fonte do lado de fora do prédio do QG. Palavras-pensamento brotaram como flores
da consciência de Rafe: Isso não é tão ruim.
Rafe atraiu a frustração de Marius, a velha vergonha da bastardia imerecida, a paz que
ele havia deixado para trás em Armida, sua raiva profunda pelo Comyn. Como você pode
viver com tanto ódio e permanecer são? Rafe se perguntou.
Facilmente. Tornou-se parte de mim.
Marius assumiu o controle novamente e sondou mais profundamente a consciência do
amigo. Alguns vislumbres da infância de Rafe o aqueceram: embora seus pais tivessem
morrido por volta de seu sétimo ano, Kermiac, o velho Lorde Aldaran, tinha sido um pai
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adotivo gentil para Rafe e suas irmãs órfãs. Ele tinha sido uma criança feliz, conhecido e
apreciado por Terrans e darkovanos.
Antes que Marius pudesse ver mais, a mente de Rafe saltou para seu passado recente,
os três anos na Zona Terranan, onde ele tentou extirpar todos os vestígios de sua origem
darkovana. Marius tentou descobrir os anos intermediários e encontrou a familiar
resistência, um livro fechado, uma parede alta, o cheiro do terror nos ares da mente. Rafe
foi incapaz de abrir essa parte de sua memória.
- Não sei se eu tenho o laran de Alton do relacionamento forçado, então você deve me
ajudar a quebrar este impasse. Ou, pelo menos, não lutar comigo.
Rafe relaxou em um momento de aquiescência completa. Naquele instante, Marius
concentrou todo o seu poder telepático como um feixe de luz, perfurando a barreira. Ele se
lançou nessa memória e sentiu Rafe aceitar sua nova proximidade. Então, todas as barreiras
foram derrubadas. Ele era Rafe, vivendo novamente o horror dos tempos sombrios...
Eles eram um grupo muito unido no Castelo Aldaran: Rafe, Marjorie, Lew, Thyra, Bob e
Beltran. Unidos por fortes laços de parentesco e amor. Rafe nem mesmo tinha ciúme do
amor de Lew por sua adorada irmã Marjorie porque Lew o tratava como um irmão mais
novo. Juntos, eles se uniram em um círculo telepático e criaram Sharra. Sharra! A antiga
Deusa da Forja, cujo foco terreno era uma matriz gigantesca incrustada no punho de uma
espada.
Logo depois, Rafe desmaiou nos primeiros sintomas da doença do limirar e seu pai
adotivo, Lorde Kermiac, morreu durante o sono. A mente vacilante de Rafe havia procurado
seus parentes, apenas para se deparar com a força demoníaca de Sharra os distorcendo e
virando-os uns contra os outros, Marjorie gritando enquanto Bob batia no rosto de Lew
com suas longas mãos aneladas. Rafe sentiu o coração de Lew se apertar e vacilar em
agonia quente quando Bob puxou a matriz de seu pescoço.
Então, dois dias (talvez mais de dez dias, era difícil dizer com a mente turva da doença
de Rafe) de pesadelos com as chamas de Sharra aumentaram enquanto seu laran
florescente expandia seus sentidos. Muitos estranhos se reuniram no castelo, suas mentes
escravizadas pela Deusa da Forja. Ondas de ódio, fluindo de Sharra em uma monstruosa
efusão de energia telepática, envolveram todas aquelas mentes reunidas. Foi então que
Beltran foi até Rafe, parecendo um fantasma, e o avisou para ficar em seu quarto e fingir
mais ainda estar com a doença que já o estava deixando.
E então os pesadelos se tornaram realidade.
Escondido em seu quarto, Rafe manteve um relacionamento constante com o Círculo
de Sharra. A Deusa estava no fundo de cada mente que ele tocava e ele não podia se
esconder dela. Ela o puxou para mais perto de Seu coração ardente. Enquanto ele
estremecia em seu cobertor, as chamas de Sharra atingiram a cidade de Caer Donn e, na
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noite seguinte, eles a soltaram mais uma vez na cidade atingida. Enquanto o fogo terrível se
intensificava, Lew desferiu um golpe fatal em Sharra, penetrando na própria matriz. Ao
fazer isso, ele atingiu Marjorie, que era a Guardiã do Círculo.
A entidade Sharra se foi, deixando apenas o fogo, um resquício de sua fúria. De uma
grande distância, Rafe sentiu a dor insuportável e a morte misericordiosa de Marjorie. Algo
quebrou dentro dele e ele a seguiu na escuridão.
Rafe acordou em um castelo fedendo a fumaça, aquecido por soldados Terrans e
Guardas das terras baixas do Comyn. Bob e Thyra se foram, e Beltran não o olhava nos
olhos. Rafe implorou aos Terrans que o tirassem de Aldaran e eles o fizeram. Ele foi para o
outro lado do mundo para começar uma nova vida como um filho do Império Terranan,
embora a forma demoníaca de Sharra frequentemente destruísse seus sonhos pacíficos.
Então ele conheceu um menino de sua idade, cuja existência era um elo para aquelas
memórias meio enterradas: o irmão mais novo de Lew, que se tornou seu amigo...
- Como ainda sou. - Marius assegurou-lhe, enquanto se desligava da experiência-
memória. - Rafe, a razão pela qual você se separou de Darkover é o seu envolvimento com
Sharra e a destruição que Ela causou?
A própria fibra do ser de Rafe pareceu se desfazer. Em uma crescente e devastadora
emoção ele gritou com a voz mental de uma criança aterrorizada. Darkover? Eu odeio
Darkover! Darkover perverteu aqueles que eu amava, Darkover destruiu minha casa,
Darkover tirou Marjorie de mim! Quero ficar o mais longe possível deste mundo de
Congelado por Zandru e nunca mais voltar!
Marius sentiu-se afogar na angústia de Rafe e, desesperadamente, estendeu a mão
novamente, abrindo sua mente para o impacto total da emoção de seu amigo.
Somos como um, unidos para compartilhar a dor, para deixá-la fluir. Eu sou a
montanha, você é o riacho. Você vai moldar minha superfície, eu vou te carregar. Seremos
um por toda a eternidade!
Incontáveis anos pareceram se passar enquanto suas mentes se fundiam, ambos
transfigurados naquela unidade especial. Resumidamente, uma imagem passou entre eles
onde Marius estava parado na frente de um espelho de corpo inteiro, as mãos estendidas
enquanto Rafe, do outro lado do espelho, avançava até que suas palmas tocassem o vidro
frio. Em uma rápida corrida de clareza e autoconhecimento, eles perceberam que, apesar
de todas as suas diferenças, haviam sido feitos em moldes semelhantes.
Nestes últimos três anos tive tanto medo de que, se eu conhecesse e amasse alguém,
essa pessoa seria arrebatada de mim, como Marjorie...
E eu, respondeu Marius, nunca ousei estender a mão para alguém. Me mantive
sozinho pensando que, se eu me permitisse confiar em alguém, seria abandonado, como fui
por Lew e meu pai.
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A velha solidão, a perplexidade, surgiu entre eles.


Está tudo bem, Marius. Você nunca vai ficar sozinho novamente. Eu estou aqui.

~o⭐o~
O dia do Solstício de Verão veio onze dias depois. Rafe concordou em ser o convidado
de Marius no Baile do Festival, a reunião anual do Comyn e da nobreza menor dos Sete
Domínios. Em espírito de férias, eles faltaram à última aula e compraram doces de um
vendedor na Cidade Velha.
- Vai ser uma noite quente. - Marius disse entre garfadas. - Você está pronto para
dançar até o amanhecer?
- Deixei meus sapatos de dança em Aldaran, - Rafe respondeu - mas vou tentar me
lembrar dos passos, pelo menos... Não me diga que você me convidou para este baile para
tomar seu lugar na pista de dança? - Ele fez uma pausa e projetou sua pergunta na mente
de Marius: Por que você me convidou? Eu sou um estranho para os seus costumes e
parentes das terras baixas.
O vínculo entre eles era tão forte que Marius não teve certeza se ele respondeu com
palavras ou pensamentos. - Sempre tentei ficar de pé, ou dançar, em meus próprios
termos. Mas sei que vou precisar do seu apoio esta noite, quando enfrentar o escárnio
usual do Comyn.
Naquela noite, na suíte Alton, Rafe observou um alfaiate fazer os ajustes finais na
fantasia de Marius. A maioria dos membros mais jovens da nobreza usava trajes incomuns
na noite do Solstício de Verão. Para si mesmo, Marius encomendou o extravagante
uniforme de gala usado por um comandante da Guarda durante a Era do Caos.
- Você não é uma visão bela e fina! - Rafe exclamou. A roupa de Marius consistia em
uma túnica de veludo verde com mangas alargadas e detalhes prateados, com botas
forradas de pele e uma capa preta longa.
- Encontrei em um livro antigo sobre Varzil, o Bom. – Marius explicou, depois que o
alfaiate saiu. - Meus ancestrais usavam esse uniforme. Esta noite deve servir para lembrar
ao Comyn do quanto eles devem aos Altons.
Rafe franziu a testa e Marius captou sua pergunta não formulada: para onde você acha
que toda essa raiva o levará?
Marius ficou tenso e depois relaxou. Rafe, pelo menos, tinha o direito de questioná-lo.
- Lorde Hastur, em sua infinita sabedoria, me mandou para a Zona Terran. Sem dúvida, ele
esperava que eu ficasse lá, em vez de ficar em Armida sob a regência de Gabriel... Hastur,
Gabriel e os outros tiranos do Comyn preferiam ver o bastardo Terran de Kennard Alton
desaparecer na obscuridade. Então, vou me juntar à operação de Lawton e ajudar a
preparar este mundo para uma mudança de governo. Terei ampla oportunidade de garantir
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que o Comyn se destrua! Quando o fizerem, vou pegar o que é meu, o Domínio Alton. E
qualquer um que tentar me impedir que vá para o inferno mais frio de Zandru! - Marius se
sentiu realmente forte, cheio de propósito e do fogo de sua raiva justa.
Rafe deixou cair o contato como se fosse um ferro em brasa, voltando sua atenção
para os laços de sua própria fantasia. Ele escolheu se vestir como um caçador da montanha,
completo com gorro de pele de lobo.
Nesse momento, Andres apareceu. - Você ainda não está pronto? - Ele perguntou,
com óbvia impaciência. - Marius, qualquer um pensaria que você é uma donzela nervosa se
vestindo para o noivado! Já que você aceitou o convite de Hastur, é melhor honrá-lo
chegando na hora certa! - Seu tom suavizou. - Divirtam-se, vocês dois. E, Marius. Tome
cuidado para não beber muito antes de comer.
As bochechas de Marius ficaram vermelhas. Droga, Andres é o único homem no mundo
que pode me fazer sentir como um menino de novo.
- Eu nunca vi você corar! - Rafe riu. – Nem sabia que você podia corar. Você está
sempre tão bem controlado. - O bom humor de Rafe era contagiante e Marius teve que rir
também.
As trupes de dança profissional começavam suas exibições quando Rafe e Marius
entraram no enorme salão de baile. A primeira dança, uma intrincada carole, foi seguida
pela empolgante dança do anel de oito homens das Colinas Kilghard.
- Deuses, faz muito tempo que não vejo as pessoas dançando! - Rafe exclamou
enquanto observava as formas giratórias.
- Depois de prestar nossos respeitos ao velho Hastur, vou encontrar alguém para
dançar com você. - Marius prometeu enquanto guiava Rafe pela multidão.
Danvan Hastur de Hastur era uma figura impressionante, com cabelos brancos como a
neve e olhos penetrantes. Pelo menos, Rafe ficou impressionado. Marius não se comoveu
com a fachada de dignidade e bondade do velho Lorde. Ele apresentou Rafe, por sua vez, a
Gabriel Lanart-Hastur, um ruivo bem constituído de porte militar. Gabriel foi muito cortês,
mas sua esposa Javanne não se preocupou em esconder sua antipatia.
- Gabriel é um primo distante meu. – Marius explicou a Rafe enquanto se dirigiam para
a mesa do bufê. - Um telepata e marido da neta de Hastur. Quando meu pai foi embora
com Lew, o Conselho nomeou Gabriel como Regente do Domínio Alton. Isso coloca o filho
mais velho de Gabriel em uma posição excelente para herdar Alton se meu pai morrer fora
do planeta... - Ele parou, ciente de que sua raiva não dita perturbava Rafe. - Parece que
todos os Comyn e nobres menores nos Domínios conseguiram chegar aqui esta noite. –
Marius comentou com mais calma. - Vou apontar alguns. Está vendo aqueles dois oficiais na
janela, defendendo-se de todas aquelas matronas e viúvas? O ruivo bonito é Regis Hastur, o
neto e herdeiro do velho. O de cabelo mais escuro é Danilo Syrtis, que foi nomeado
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Regente de Ardais alguns anos atrás. Lá está Lerrys Ridenow conversando com aquela
garotinha loira. Os Guardas geralmente usam seus uniformes para baile, mesmo se
estiverem de folga. Olha, Dyan Ardais, em trajes completos como Comandante!
Marius mal havia mencionado o nome de Dyan quando o Lorde Ardais se dirigiu-se ao
canto onde ele e Rafe estavam. A seu lado, como um gato doméstico, Felix Aillard o seguia.
- Um feliz Festival para você, jovem Lanart. – Dyan disse, observando Marius da
cabeça aos pés com seus olhos estranhamente incolores. - Ou devo dizer, 'jovem
comandante'? Esta reunião de sangue azul está realmente bem protegida, não com um,
mas com dois Comandantes da Guarda!
Marius relaxou, de alguma forma gostando da esgrima verbal de Dyan, embora o
Lorde da montanha fosse conhecido por deixar as pessoas desconfortáveis. O pensamento
de Rafe ecoou em sua própria mente: Ele está nos avaliando como se estivesse tentando
decidir qual é o garanhão premiado!
Marius disse educadamente: - Lorde Ardais, posso apresentar meu amigo Rakhal? Ele
é um parente distante meu, de Aldaran.
Dyan curvou-se graciosamente, mas Félix escolheu aquele momento para falar. -
Senhor, ele está mentindo! Esse sujeito é um Terran da Cidade Comercial.
- Considere suas palavras com cuidado ao acusar um Alton de mentir. – Marius disse. -
Eu disse a verdade e terei todo o gosto em repeti-la diante de qualquer telepata treinado
em Torre.
- Você dificilmente pode se denominar um Alton... - Felix começou, seu rosto
brilhando pela raiva e o vinho.
Dyan o interrompeu com um gesto abrupto. - Felix, você precisa de um freio na boca. -
Antes que Felix pudesse dizer outra palavra, Dyan deu-lhe um tapa na bochecha, muito
gentilmente. - Minha garganta está muito seca. Traga-me uma taça de vinho branco. -
Depois que Felix se afastou, Dyan se virou para Marius. - Faz muito tempo que não vejo
você, parente. Você cresceu bem. Teve notícias de seu pai...?
Bastardo sádico, Marius ouviu Rafe pensar e respondeu: - Não, não tenho.
Por um instante, houve um arrependimento sincero por trás do olhar de falcão de
Dyan. - Uma pena. As profundezas do espaço são profundas, os abismos entre os mundos
são incomensuráveis. - Este último foi um acréscimo recente aos ditados folclóricos
darkovanos. - Divirtam-se, rapazes. - Acrescentou, dispensando-os.
A primeira dança foi uma pavana calma. Lorde Hastur abriu a dança, escolhendo como
sua parceira uma frágil mulher de cabelos escuros com as vestes vermelhas de uma
Guardiã.
- Aquela é minha prima, Callina. - Marius informou a Rafe. - Ela é a Guardiã da Torre
Arilinn e Lady do Domínio Aillard. - Um pensamento bem-vindo o atingiu. - A irmã mais
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nova de Callina, Linnell, foi adotada em Armida. Ela cresceu comigo. Quando meu pai foi
embora, o Conselho a entregou aos cuidados de Callina. Talvez ela esteja aqui esta noite.
Marius serviu-se de um mix de nozes de sarmo e bolinhas de melão do bufê. Depois de
cuidar para que o prato de Rafe estivesse cheio, ele continuou a identificar os dançarinos
que reconhecia. Infelizmente, nenhuma das garotas lhe era familiar e nenhuma donzela dos
Domínios dançaria com um total estranho, mesmo na Noite do Festival. Mesmo se ele as
identificasse, elas presumiriam que um jovem de sua casta que não estava na Guarda devia
ter algum defeito grave. Malditos olhos coletivos do Comyn! Marius praguejou pela
centésima vez, pelo menos.
Ao redor deles, ele viu Guardas e cadetes curvando-se para as jovens e conduzindo-as
para a pista de dança. Para si mesmo, ele não se importava. Estava acostumado a ser
banido no Comyn. Mas ele queria que Rafe se divertisse, bebesse e dançasse como um
darkovano. Embora suas barreiras mentais tivessem sido erguidas no reflexo natural dos
telepatas contra grandes multidões, Marius sentiu a reação simpática de Rafe. Ele
abominava a piedade, mas a emoção de seu amigo o aquecia como uma capa a mais.
- Não se preocupe em ser um anfitrião adequado, - Rafe assegurou-lhe - dificilmente
poderia me divertir mais. - Ele riu. - Entre a comida, a música e a dança, sou como uma
criança no Carnaval! Há tanto a ver que não sei para onde olhar a seguir. - De repente, ele
congelou. - Marius, olhe ali, no canto perto das cortinas. Não, não agora, faça isso
casualmente! Aquela mulher de vestido branco está de olho em nós.
Com a devida cautela, Marius olhou para o outro lado da mesa comprida. Uma mulher
alta de cabelos ruivos estava realmente olhando para ele e Rafe com mais do que uma
curiosidade ociosa. - Eu disse que você parecia um homem diferente com essa roupa. –
Rafe brincou. - Essas mulheres das planícies parecem gostar de homens uniformizados.
Vamos conversar com ela.
- Rafe, ela é pelo menos dez anos mais velha que nós! E provavelmente tem um
marido ciumento que nos desafiaria só de olhar para ela ou mesmo por pensar nela!
- Mesmo assim, podemos saudá-la e desejar-lhe um feliz Festival. Não há mal nisso.
Além disso, posso reivindicar imunidade, por ser chaireth e por ignorar os costumes do
vale. E ninguém pode te desafiar, você só atingorá a maioridade daqui a três dias.
Nesse momento, uma voz feminina chamou: - Marius! - E uma garota esguia no
tradicional vestido verde do Solstício de Verão se aproximou deles vinda do outro lado do
salão.
- Nossa sorte está mudando. - Rafe disse com apreço. - Vou buscar um pouco de vinho
para nós.
O passo saltitante da garota era familiar, mas Marius não a reconheceu até que ela
chegou ao seu lado e tirou a máscara. Então seu coração deu um salto. Cabelo castanho
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avermelhado, grandes olhos azuis, sorriso hesitante em um rosto em forma de coração -


Linnell! - Ele a pegou pelos ombros e beijou-a nas duas bochechas.
- Lorde Hastur disse a Callina que você estava aqui, - ela disse sem fôlego - então não
pude ficar parada até encontrar você. - Ela bagunçou seu cabelo e sorriu. - Você está uma
cabeça mais alto! Não posso acreditar, você é quase um homem agora. - Em voz baixa, ela
murmurou: - Ouvi sobre o Conselho ter recusado sua admissão aos Cadetes. Isso foi
vergonhoso! Mas diga-me, o que você soube sobre papai e Lew?
- Nada. - Ele respondeu, então forçou um pouco de alegria em sua voz. - Andres disse
que é muito difícil enviar mensagens pelo espaço.
O rosto de Linnell estava melancólico, como estivera no dia em que Lew deixou
Armida para se juntar ao Círculo da Torre em Arilinn, quase sete anos atrás. As lembranças
dos dias despreocupados passados brincando pelas pastagens de Armida com Lew e Linnell
o fizeram buscar a mão dela e segurá-la.
- Gostaria de ter aqueles dias de volta. - Ela ecoou seus pensamentos em uma voz fina
de menina. - Gostaria que Lew e meu pai voltassem para que todos pudéssemos voltar para
casa juntos...
- Chiya, eu também...nem posso dizer o quanto. Mas o mundo gira como deve, não
como eu ou você gostaríamos. – Ele disse, fechando firmemente a porta para aquelas
lembranças ensolaradas da infância. - Não sabia que você tinha laran. – Ele continuou,
soltando a mão dela.
- Demorou muito para despertas. Tive a doença do limiar depois do Meio do Inverno,
então fui despachada para Arilinn. Estou lá desde então. No entanto, não tenho poder nem
próximo do de Callina. Mas tenho empatia suficiente para me tornar uma boa monitora.
Marius sorriu. - Em um aspecto, você não mudou nada, Linna. Você ainda é
excessivamente modesta.
Rafe voltou, com duas taças de vinho branco e um largo sorriso ao ver Linnell. - Irmã, -
Marius disse, com as pontas dos dedos pousadas no ombro da garota - este é meu amigo
Rakhal. Rafe, posso apresentar minha irmã adotiva, Linnell Lindir-Aillard?
- S’dia shaya, Damisela. - Rafe respondeu, curvando-se. A orquestra escolheu aquele
momento para começar uma nova dança. Rafe olhou rapidamente para Marius, respirou
profundamente e perguntou: - Damisela, você pode me honrar com esta dança?
Linnell concordou com um sorriso cortês.
Rafe era um bom dançarino, apesar de sua falta de prática. Mais de uma cabeça
invejosa se virou para observar enquanto ele conduzia Linnell pelos intrincados degraus.
Marius foi o único a saber o quão nervoso seu amigo ficava cada vez que encontrava os
profundos olhos azuis de Linnell. Que pena que Linnell já está prometida, Marius pensou.
Rafe não conseguiria encontrar uma garota mais doce em todos os Sete Domínios!
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- Com licença, jovem senhor. - Uma voz feminina interrompeu seu devaneio. - Você viu
Lady Aillard? - Marius ergueu uma sobrancelha em surpresa educada. Seu questionador era
a mulher de branco, cuja atenção Rafe havia observado antes. Embora obviamente com o
dobro de sua idade, ela era facilmente a mulher mais bonita que ele já tinha visto.
- Lady Callina estava dançando com Lorde Hastur, - ele respondeu - mas não a vejo no
piso agora. Posso oferecer meus serviços em seu lugar?
O sorriso da mulher era mecânico. - Obrigada. Eu queria desejar a ela um feliz Festival
antes de partir.
Marius sentiu dor, como uma ferida latejante, na mente da mulher. Em uma curiosa
cobertura telepática, ele ouviu um fragmento de seu pensamento: Um ano atrás, nesta
mesma noite...aconteceu enquanto eu estava aqui, dançando... Então sua mente se fechou
em um golpe incisivo.
- Perdoe-me. - Ela disse suavemente, seu rosto repentinamente pálido. - Eu não tinha
o direito de o expor à minha dor particular. Sou uma vergonha para minha Torre por deixar
minhas barreiras escorregarem assim. - Ela se virou, como se fosse partir.
- Lady, você não precisa ir. – Marius disse. - Sou um telepata, embora não tenha
formação de Torre. Não posso deixar de captar pensamentos aleatórios às vezes. E em uma
multidão desse tamanho, não é fácil me manter completamente bloqueado. Provavelmente
foi mais minha culpa do que sua.
Depois de um momento, ela sorriu novamente. - Você é muito gentil... Você não
estava aqui na Noite do Festival no ano passado?
- Não, esta é a minha primeira... - Marius se amaldiçoou. Agora ela saberia o quão
jovem ele era!
- Achei que você fosse mais velho. – Ela disse, avaliando sua aparência em uma
varredura de seus longos cílios. Para encobrir seu desconforto repentino, Marius fez uma
reverência e se apresentou. Ele ficou aliviado quando ela não demonstrou choque nem
desdém. - Conheci seu irmão, - ela disse - quando ele estava em Arilinn. Nossas mentes se
tocaram com frequência nas transmissões. Sou Coryssa Aillard, monitora na Torre
Dalereuth.
Marius reuniu toda sua coragem e perguntou: - Agora que nos conhecemos, acha que
podemos dançar? - Ele estava ciente dos olhares surpresos dos Guardas próximos quando
Coryssa segurou seu braço e se alegrou por dentro. Deixe aqueles soldadinhos de brinquedo
ficarem boquiabertos! A mulher mais bonita deste baile está dançando comigo!
A música começou. Marius e Coryssa ocuparam seus lugares no piso. Ao redor deles
havia casais semelhantes: rostos corados, olhos brilhantes, capas brilhantes, os vestidos das
mulheres farfalhando enquanto escovavam o chão. Marius tinha plena consciência do
corpo de Coryssa, do seu próprio, e do ritmo alegre que os levava adiante. Em um
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movimento mental fácil, ele alcançou Rafe e encontrou sua própria excitação refletida na
mente de seu amigo.
Os tubos soaram um último floreio. Relutantemente, Marius tirou as mãos da cintura
de sua parceira. A mão de Coryssa cerrou o punho no ombro de Marius e ele captou a
direção de seu olhar preocupado: Felix Aillard estava observando-os de um canto, mas não
apenas observando, olhando fixamente. Havia uma expressão de raiva em sua boca.
- Está muito quente aqui. – Coryssa disse. - Vou me sentar perto da janela aberta,
junto da arcada. Você poderia me trazer um copo de shallan? - Antes que Marius pudesse
dizer uma palavra, ela se foi. Estava claro que o olhar insolente de Felix a tinha chateado.
Ele olhou ao redor da sala em busca de Rafe e ficou aliviado ao vê-lo conversando com
Linnell e outras duas meninas.
Coryssa sentou-se no banco perto da janela, agitando um leque no rosto. Ela sorriu
abertamente quando Marius lhe apresentou o copo. - Por favor, sente-se. – Ela disse. - Já se
passaram anos desde que passei mais do que alguns dias em Thendara. Dalereuth fica tão
ao sul que esperamos meses para ouvir as notícias que não chegam pelas telas de
transmissão. Diga-me, é verdade que o Conselho conseguiu manter a paz com os Terrans
por um ano inteiro, sem incidentes?
Marius começou a explicar os limites atuais entre a Velha Thendara e a Cidade
Comercial Terran. Os olhos verdes de Coryssa pareciam brilhar enquanto ele falava, o que
tornava difícil falar com clareza. A aparição repentina de Rafe foi um alívio bem-vindo.
Depois de se apresentar, Rafe ofereceu um prato de doces para Coryssa.
- Você quer me deixar gorda? - Ela perguntou ironicamente.
- Vai Domna, há pouquíssima chance disso! - Rafe a tranquilizou. Ela riu e pegou o
prato.
- Bem, esta não é uma imagem bonita? - Uma voz áspera interrompeu. Felix Aillard
estava parado um tanto vacilante acima deles.
Marius se levantou, mas Coryssa falou primeiro. - É, e você pode fazer parte dela,
Felix. – Ela disse gentilmente, oferecendo-lhe o prato. Felix o arrancou da mão dela e ele
caiu no chão. Marius colocou uma das mãos na adaga, mas Coryssa fez um gesto para que
ele se contivesse.
Deixe que ela tente lidar com ele, Rafe pensou. Evidentemente ela conhece o rude. E há
algo aqui que não sabemos.
- Isso foi um ato tolo, Felix. - Coryssa disse friamente. - Sugiro que você dê um passeio
lá fora até que esteja sóbrio o suficiente para ficar em pé. A menos que você prefira
desgraçar seu uniforme desmaiando em plena vista dos Hasturs!
Então você acha que sou uma vergonha para o meu uniforme? - Ao contrário da
maioria dos bêbados, Felix não murmurou nem um pouco as palavras. - Belas palavras,
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Lady. Você não usa uniforme, então ninguém pode te denunciar ou atribuir-lhe deméritos.
Mas sua conduta é uma vergonha para sua feminilidade!
- Você não tem o direito de falar comigo desse jeito. - A voz de Coryssa estava calma,
mas Marius viu suas mãos tremerem, mesmo quando ela as apertou no colo. - Sou uma
mulher adulta, sem marido, responsável apenas por minha Torre e por mim mesma.
- Diga-me quem tem mais direitos do que eu! Você percebe o espetáculo que está
proporcionando ao Comyn esta noite? Conversando, rindo, dançando com esses... - Ele
apontou para Rafe e Marius. - Esses Terranan! Membros da mesma raça que matou seu
filho! Por Zandru, você não tem vergonha?
Marius se lembrou do que Lerrys havia lhe contado sobre o irmão mais velho de Felix,
morto por um Terran na noite do Festival de Verão. Então Coryssa devia ser a mãe de Felix!
Isso explicaria sua angústia com a lembrança da Noite do Festival há um ano.
- Felix, apresente sua queixa comigo sozinho, - Coryssa estava dizendo - não em
público e sem envolver Dom Marius, cujo único crime foi ser meu amigo.
Felix se virou para encarar Marius. Se olhares pudessem infligir mal, então Marius seria
um homem morto duas vezes. – Você... - Felix ronou. - Seu intruso Terran imundo! Como se
atreve a falar com minha mãe!
- Controle-se! - Coryssa interrompeu. – É você quem está fazendo um espetáculo
agora. - Mas ela poderia ter sido uma estátua por toda a atenção que Félix lhe deu. O foco
de sua tristeza e raiva confusas pelo vinho havia mudado de sua mãe para Marius.
- Todo mundo me diz para ficar quieto, para deixar tudo em paz! - Felix continuou: -
Bem, estou cansado disso. Tenho quinze anos e sou um homem pelas leis dos Domínios. E
por essa lei eu desafio você, Marius Montray-Lanart!
- E eu recuso seu desafio. – Marius respondeu. - Você está bêbado demais para pensar
com clareza. Suas alegações são ridículas, como sempre. Essa conversa selvagem só
embaraça você e sua mãe. E ela não merece tal tratamento. Se você ainda desejar lutar
comigo quando estiver sóbrio... Então você é um tolo maior do que eu pensava e terei o
maior prazer em lhe ensinar uma lição.
Felix ficou tenso como um oudrakhi prestes a atacar. - Você está tentando sair dessa,
não está? Confie em um Terranan para fugir da responsabilidade! - Marius podia ouvi-lo
pensar, tão alto como se ele tivesse gritado. Como aqueles animais que atiraram em
Geremy! Em voz alta, Felix gritou: - Você vai me enfrentar agora, querendo ou não! - Ele se
lançou contra Marius, uma longa adaga brilhando em sua mão.
Marius começou a pegar sua própria arma, então parou, quando uma parede de
escuridão repentina caiu sobre ele. O próprio tempo pareceu parar. Marius se viu em uma
floresta densa, cercado por formas em movimento. Com dor na perna, ele caiu de joelhos.
Um não-humano peludo elevou-se acima dele, uma longa faca em suas mãos erguidas.
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Havia morte naquela lâmina. Sua morte? Ele tentou se esquivar, mas o terror da morte o
paralisou e ele não conseguia se mover. Em seguida, um corpo empurrou na frente dele,
protegendo-o daquele golpe inevitável. Ele estava seguro... Alguém gritou e ele pôde ver
novamente.
Felix estava completamente imóvel e a adaga não estava em sua mão. Rafe, parado
bem na frente de Marius, de costas para ele, virou-se repentinamente e Marius viu para
onde a adaga tinha ido. Ele pegou Rafe enquanto ele cambaleava e o colocava no chão.
Quando aquela premonição, ou seja o que for, me agarrou e eu não pude me mover, Rafe
deve ter se colocado na minha frente. Mas foi uma premonição? Não. Ele não morreria por
uma faca.
Olhando para cima, ele viu o agressor de Rafe ainda de pé. Ele sentiu o sal das lágrimas
ardendo para ser derramado, mas outra emoção o consumiu inteiramente e ele ouviu
copos quebrando por todo o salão. Felix caiu sem fazer barulho.
Então, um chamado mental que era mais como um soluço o atingiu: Marius, pare com
isso. Por favor, pare! Não havia como confundir aquela voz. Rafe estava vivo!
Marius apertou a mão de seu amigo suavemente, em seguida, voltou sua atenção para
a multidão de pessoas que se aproximava deles. Ele ergueu a outra mão e eles pararam.
Sua demonstração da raiva telecinética de Alton serviu para impor a obediência. Lutando
para manter o nível de voz, Marius disse: - Ninguém se aproxime. Ninguém.
Regis Hastur deu um passo à frente. - Isto não deveria ter acontecido. - Suas barreiras
foram derrubadas, revelando um arrependimento sincero. - Mas, por favor, precisamos
ajudá-lo.
- Você, Comyn, já o ajudou o suficiente! - Marius respondeu. Neste ponto, ele não
queria nenhum Hastur de rosto bonito ao alcance de seu braço. Não foi o suficiente para
você, Comyn, me expulsar? Agora você atingiu o amanhecer, o único amigo que já tive!
Ao lado de Regis, Danilo Syrtis estremeceu como se tivesse sido atingido. O rosto de
Lerrys ficou branco como os ossos. Alheio à empatia deles, Marius falou novamente. - O
que preciso agora é de um cavalo selado e pronto, e que uma mensagem seja enviada ao
Médico Terran.
Dyan Ardais ajoelhou-se ao lado do corpo deitado de Félix. - O idiota está bem. - Disse
ele um momento depois. - Só uma dor de cabeça...felizmente. Vou levá-lo de volta para o
quartel. - Ele ergueu Felix nos braços e saiu do salão de baile.
- Deixe-me passar, Com’ii. - A multidão se separou quando Callina Aillard passou por
eles. – Marius, – ela disse baixinho - seu amigo está sangrando. Se você movê-lo, ele pode
morrer. Eu sou uma Guardiã. Deixe-me ver o que pode ser feito por ele aqui.
Marius olhou para Rafe. Seu rosto estava cinza, contorcido de dor. A mancha vermelha
abaixo do coração estava se espalhando. Incapaz de falar, Marius assentiu.
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Callina e Coryssa tiraram a camisa pesada de Rafe e monitoraram o ferimento com


atenção, enquanto Danilo Syrtis dispersava os espectadores.
- Não é bom. - Coryssa disse por fim. - A lâmina atingiu entre as costelas, nos
pulmões... Há algum sangramento interno.
- Isso pode ser parado? - Marius perguntou, sentindo-se impotente. A mão de Rafe se
mexeu enquanto ele recuperava a consciência.
- Acho que sim. – Callina respondeu. - Isto é, se conseguirmos chegar ao pulmão
danificado. Lorde Regis, providencie para que não sejamos perturbados!
Rafe ergueu a cabeça de repente e viu as pedras azuis da matriz nuas nas palmas das
mãos das mulheres. - Não! - Ele engasgou. - Mantenha essas ferramentas do demônio
longe de mim! - Ele lutou, até que Marius tocou sua testa.
- Fique quieto! - Ele comandou. - Eu sei que você tem medo das pedras-da-estrela, mas
você foi capaz de manter contato comigo. Se eu ligar minha mente à deles, você deixará a
Guardiã e Coryssa estancarem o sangramento? Você sabe que não vou deixar ninguém te
machucar, Bredu.
Rafe suspirou, como uma criança cansada, e deu seu consentimento mental.
Você tem força para essa empreitada? Os pensamentos de Callina caíram na mente de
Marius como pedras caindo em um lago. O Círculo de Neskaya disse que seu laran era
mínimo.
Neskaya estava errada! Marius respondeu. Eles não se importaram em procurar muito
em um "Terranan mestiço ", eles nem mesmo tinham uma Guardiã. Mas você é uma. Sonde
minha mente se isso vai convencê-la, mas rápido! Meu amigo pode estar morrendo...
Callina se retirou e se concentrou em sua matriz. - Coryssa, você vai me monitorar. E
Marius, você nos seguirá.
Marius sentiu o movimento mental descendente das mulheres: Callina em um
mergulho direto, Coryssa como um cometa com uma trilha de fogo. Então Callina estendeu
seu alcance para incluir Coryssa e Marius. Era como se eles formassem um edifício com
telhado, pilares e piso. Callina os puxou para a consciência de Rafe. Todo o ser do menino
parecia explodir de medo das mentes alienígenas, um medo que ameaçava abalar o aperto
precário de Callina.
Calma, Rafe, Marius acalmou. Fique calmo, não haverá dor. Ele deslizou para uma
posição intermediária entre a consciência de Rafe e a das mulheres.
O toque da Guardiã foi habilidoso enquanto ela prendia os tecidos estragados. As
células cruciais, as próprias paredes do pulmão, estavam dilaceradas e sangrando. Marius
controlou seu pânico inicial, sentido Coryssa estabilizá-lo.
Callina começou a difícil tarefa de fechar os vasos rompidos. O coração de Rafe não
vacilou, tão delicada era a força que ela exercia. Então Rafe caiu em uma paz inconsciente.
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Marius concentrou todo o seu poder psíquico através de Coryssa na mente de Callina. Uma
imagem mental surgiu: três mãos unidas em torno de uma corda quebrada. A luz azul da
matriz cintilou nessas fibras rasgadas e Marius se tornou uma concha sem peso, a força
bruta fluindo por ele... De uma vez, o fluxo de sangue foi estancado, os vasos inteiros, como
se nunca tivessem sido cortados, e Callina os estava trazendo para fora da selva celular
emaranhada.
Marius fez uma pausa, para verificar a respiração fácil de Rafe, mas seu próprio
equilíbrio estava abalado na melhor das hipóteses. Ele sentiu a presença de Coryssa ao lado
dele. – Vamos. - Ela encorajou. - Eu estabilizei seu batimento cardíaco, apoie-se em mim o
resto do caminho. Não seja bobo. Você não falhou. Você é apenas um novato no trabalho
de matriz e esta operação é extenuante o suficiente para cansar até uma Guardiã como
Callina.
Com uma sensação rápida, quase como se estivesse voando, Marius foi lançado de
volta à realidade física de seu próprio corpo. Mas algo estava errado porque as paredes da
sala estavam borradas. Ele tentou ver onde Rafe estava, mas não conseguiu levantar a
cabeça. Vozes irreconhecíveis ecoavam em seus ouvidos: - Ele está exausto... Nunca
teríamos conseguido sem ele, o rapaz Terran tinha barreiras tão fortes...
Alguém colocou o braço sob os ombros de Marius e o ajudou a andar. - Onde está
Rafe? - Ele perguntou, mal ouvindo sua própria voz. Em seguida, seu controle sobre a
realidade foi perdido em uma maré de escuridão que se aproximava.

~o⭐o~
Um líquido com gosto horrível queimou sua garganta e ele acordou. Ele estava deitado
em sua cama nos aposentos de Alton. Andres estava olhando para ele com preocupação. -
O capitão Ridenow trouxe você aqui. – Ele disse. – Você estava branco como uma alma
perdida. Mas um lanche e uma boa noite de sono devem colocá-lo em ordem.
Marius levou a mão à cabeça, lembrando. Ele saltou da cama. - Onde está Rafe? Devo
ir até ele!
A mão de ferro de Andres o empurrou de volta. - Seu amigo está dormindo
profundamente nos aposentos de Aillard. Lady Coryssa está cuidando dele. Amanhã ele
deve estar forte o suficiente para ser removido para o Setor Médico Terran.
Marius se recostou docilmente, deixando Andres alimentá-lo com frutas com mel de
uma bandeja. O suco doce estava fresco e limpou sua boca do forte gosto de enjôo. Ele
sentiu sua força voltando. A memória do rosto enlouquecido de ódio de Felix não o
abandonava e ele agradeceu a todos os deuses que conhecia por Rafe estar vivo e fora de
perigo.
- Preciso pegar um pouco de ar. – Ele disse, sentando-se.
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Andres franziu a testa e Marius viu, como se pela primeira vez, a grande força do
homem mais velho. Andres estendeu a mão como se fosse empurrá-lo de volta. Em vez
disso, ele apoiou no ombro de Marius. - Tudo bem, Mario, se é isso que você precisa. Mas
não vá muito longe. Você já teve emoção suficiente por uma noite.
Fazia anos que ninguém chamava Marius por esse apelido. Ele apertou a mão de
Andres brevemente e saiu da sala.
Uma brisa suave agitou os estandartes que enfeitavam os parapeitos do castelo. Bem
abaixo, a cidade inteira estava banhada pela luz das quatro luas, mas Marius não se
consolou com a beleza da cena. Ele se sentia vazio, esgotado. Desde que deixara Armida
naquele dia longínquo no final da primavera, suas emoções estavam concentradas em um
único objetivo. Primeiro, houve a esperança de se tornar um cadete. Depois, o desejo
furioso de vingança contra o Comyn por suas muitas rejeições a ele. Agora, aquele ódio
feroz que ele alimentara como um fogo sagrado tinha ido embora.
Não posso ter esquecido, pensou ele, perplexo. Por tantas noites sem dormir, não
pensei em nada além de minha justa vingança contra aqueles que me expulsaram. O
choque da quase morte de Rafe deve ter me perturbado.
No entanto, ele sabia que essa não era a resposta. Por mais que tentasse reacender o
fogo da raiva, parecia que um abismo de muitos anos se estendia entre aquele momento e
o momento em que ele desejara matar todos os Comyn que aparecessem em sua frente.
Passaram-se apenas alguns minutos desde que ele derrubara Felix?
Por que não o odeio mais...aquele bastardo arrogante que quase matou Rafe? A
emoção pode ser como uma moeda, e quando despejei minha raiva em Felix, gastei tudo o
que tinha? Aldones, Senhor da Luz, Deus dos meus pais, o que perdi? Eu não sei o que fazer
agora, ou o que devo me tornar...
Uma hora se passou enquanto Marius andava de um lado para o outro. Não havia
resposta para seu dilema, por mais que revisse os acontecimentos do verão. Ele se sentia
tão sozinho quanto nos primeiros dias na Zona Terran. Não, isso não era totalmente
verdade. Ele tinha Rafe como amigo. O sino da Torre Leste tocou meia-noite. Marius
bocejou e percebeu como estava cansado.
Naquele momento, uma figura encapuzada saiu das sombras. Uma luminosidade do
luar iluminou a cabeça loira de Felix Aillard. Marius teve vontade de rir, como se estivesse
assistindo a uma apresentação cômica.
- Bem, Felix. - Ele disse suavemente. - Você apareceu de novo, entrando no meu
caminho como de costume. Por que você está aqui desta vez?
De repente, Félix caiu de joelhos e estendeu uma adaga com o cabo para a frente.
Distraidamente, Marius a pegou e quase deixou cair quando percebeu as manchas escuras
na lâmina.
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- Sim. – Felix disse. - Está manchada com o sangue de seu amigo. Eu concordo com
você e imploro seu perdão por um golpe injustamente desferido. E se você quiser, lave o
sangue dele com o meu. É o seu direito e minha justa condenação. - Assim dizendo, Felix
afrouxou sua capa e baixou a cabeça.
Isso não pode estar acontecendo! Marius pensou, atordoado. Depois de semanas me
provocando e esfaqueando Rafe em um acesso de raiva bêbado, Felix se ajoelha aqui
calmamente me pedindo para matá-lo! Em um minuto, Danvan Hastur aparecerá e me
tornará Comandante da Guarda, e eu saberei que isso é um sonho...
Então ele se lembrou de ter ouvido seu pai falar de um antigo ritual do Comyn: se um
homem matasse outro homem por traição, ou uma mulher ou criança, e sua vítima não
tivesse nenhum parente adulto do sexo masculino para vingá-lo, então o assassino poderia
ser obrigado a oferecer aos parentes ou amigos do morto a chance de matá-lo com a
mesma arma que ele havia usado injustamente. O rito não era mais praticado, exceto em
algumas partes das Colinas Kilghard e Valeron. Exasperado, Marius pensou: O idiota não
sabe que Rafe está vivo?
Felix devia ter laran, ele levantou a cabeça e respondeu: - Eu sei que ele vive. Mas se
minha mãe e Lady Callina não estivessem lá, ele provavelmente teria morrido. E meu
desafio para você não era válido. Você ainda é um menor de acordo com a lei do Comyn. E
seu amigo...
- Sua mãe mandou você vir? - Marius interrompeu.
- Não! - A velha arrogância surgiu na voz de Felix. - Você é um telepata, droga! Ouça
minhas palavras e julgue a verdade por trás delas. - Ele respirou tão fundo que mais parecia
um soluço. - Seu amigo estava desarmado, não tinha arma nenhuma. Quando ele caiu e
você correu para o lado dele, tive vontade de correr. Mas eu não consegui. Eu observei
vocês dois e foi como reviver a noite de verão do ano passado... - A dor repentina na mente
de Felix fez Marius querer gritar de tão intensa. Felix lutou para evitar que sua voz falhasse.
- Quando me ajoelhei ao lado do meu irmão e ele morrera por causa da arma de um
covarde... No quartel, percebi o que eu tinha feito. Sou inferior ao maldito Terranan que
atirou em Geremy. Pelo menos ele não atirou por raiva irracional, mas apenas por medo! -
Os olhos de Felix se encheram de lágrimas.
Ele não disse mais nada, mas Marius ouviu seus pensamentos com muita clareza:
Durante anos, pensei que era virtuoso e amaldiçoei minha mãe pela vergonha que sua
selvageria trouxe sobre mim e nossa casa... O que fiz esta noite foi um crime muito pior.
Quase matei um estranho inocente. Eu era como um louco, atacando as sombras...
Por fim, Felix voltou a falar. - Se você tirar minha vida agora, posso resgatar um pouco
da minha honra.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 49

Marius fechou os olhos, afastando o tormento do outro garoto da mente. Ele colocou
as mãos nos ombros de Felix na postura tradicional de Lorde para paxman. - Não vou tirar
sua vida, Felix. Eu devolvo a você, como uma penitência. - Felix ergueu a cabeça,
obviamente surpreso. Marius continuou: - Nem mesmo vou desafiá-lo. Agora levante-se.
Aqui está sua adaga.
- Mas... você estava furioso. – Felix disse. - A maneira como você me atacou...
- Eu estava furioso, sim. Mas há coisas mais importantes em que pensar. Por um lado,
meu amigo está vivo. - Ele sorriu. - Além disso, acho que você vai se punir muito mais do
que eu poderia fazer.
Observando a partida de Felix, Marius refletiu sobre a mudança repentina que a Noite
do Festival havia causado em suas vidas. Felix mudou toda a sua raiva esta noite, assim
como eu. Embora eu não possa dizer que ele estaa tão justificado em seu ódio quanto eu
estava no meu, talvez houvesse alguma semelhança...
Os passos que ele deu se fundiram em um padrão claro. Ele se lembrou do estranho
conforto que teve com seus votos de vingança, quão nobres eles o fizeram se sentir. Era
fácil ficar com raiva, ele meditou. Muito mais fácil do que enfrentar as circunstâncias que
motivaram essa raiva. Mas meu ódio não melhorou minha posição.
Ele estremeceu ao pensar no que havia compartilhado com Rafe, as visões
assustadoras do fogo de Sharra. Em minha autossatisfação, estava tão cego quanto Felix.
Rafe tentou me mostrar, por meio de nosso relacionamento, o quão perigoso pode ser o
poder do ódio e ele quase morreu antes de eu me livrar da ilusão de que era um deus
vingador. Mesmo assim, se ele não tivesse me impedido, eu poderia ter matado Felix.
Marius entendeu, então, por que seu pai sempre o advertira sobre liberar sua raiva de
Alton. Se Rafe tivesse morrido, ele teria atacado todo o Comyn como um cachorro louco,
culpando-os pelo delito de Felix.
A raiva havia parado de consumir sua alma, mas ele sentiu muita amargura por passar
mais um ano lamentando em Armida. Estranhamente, ele sentiu pena do Comyn. Suas
fileiras já estavam diminuindo e eles estavam perdendo o controle do mundo que
governaram por séculos. Não admira que me desprezem. Meu sangue Terran, até mesmo
meus olhos castanhos Terran, são lembretes constantes de que serão suplantados por
homens de outros mundos. Ainda assim, eles não precisam ser suplantados, se puderem
aprender a cooperar um pouco. Existem muitas tradições Comyn que vale a pena
preservar... Ele pensou na operação de matriz que provavelmente salvou a vida de Rafe.
Apesar de toda a ciência alardeada dos Terrans, não havia nada em todos os seus mundos
que pudesse se igualar ao potencial da tecnologia de matriz de Darkover.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 50

Felizmente, Marius percebeu que havia encontrado a direção que procurava. Ele
continuaria a pressionar Armida para manter o Domínio Alton para Lew. Ele sabia, com a
certeza de seu laran, que Lew voltaria um dia.
E quando ele atingisse a maioridade no próximo mês, Marius diria a Lerrys que ele
havia escolhido se juntar à rede de Dan Lawton. Mas não por raiva, ele se assegurou. Ou,
pelo menos, não por causa de qualquer desejo de vingança. Lawton estava certo. Darkover
e Terra têm muito a dar um ao outro. E posso fazer parte desse compartilhamento.
Ele riu alto, sentindo que um peso insuportável havia caído de seus ombros. Então ele
alcançou com sua mente o castelo coberto pela noite, até que ele localizou o ritmo pacífico
e inconsciente de Rafe. Durma bem, meu irmão, chamou Marius. Quando você estiver forte
novamente, abrirei minha mente e mostrarei o que aprendi.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 51

O preço da noiva
Marion Zimmer Bradley

Em torno dela, a capela do Castelo Comyn estava silenciosa. Vazia, exceto por ela e as
figuras de Camilla, Hastur e Cassilda nas paredes, pintadas no estilo antigo. Camila com os
braços cheios de frutas de verão, Cassilda com flores das estrelas nas mãos, Hastur calado e
imóvel diante das mulheres, tão indiferente quanto Gabriel diante dela em seu esquife. O
corpo estava coberto por pesadas cortinas de veludo nas cores Aillard, cinza e carmesim, e
Rohana, de olhos secos, só conseguia se lembrar das cortinas transparentes nas mesmas
cores, dispostas em sua cama estreita na manhã do casamento.

~o⭐o~
- Parece o funeral de uma Guardiã. - Ela brincou. - Tudo isso para um casamento? E
para mim?
- Rohana, - disse a mãe solenemente - é um bom casamento. Não consigo entender
você. Suas irmãs, se tivessem sido dadas ao Chefe de um Domínio, teriam ficado fora de si
de alegria. No entanto, você age como se tudo isso não tivesse nada a ver com você.
Alguém poderia pensar... - Lady Liane parou e Rohana soube que sua mãe estivera a ponto
de fazer uma pergunta para a qual ela realmente não queria saber a resposta. Alguém
poderia pensar que você realmente queria ficar na Torre Dalereuth pelo resto da vida. Mas
isso poderia ter sido arranjado, afinal. Em vez disso, Lady Liane perguntou: - Gabriel Ardais
não é do seu agrado, sua menina ingrata?
- Como ele poderia não ser do agrado dela? - Dame Sarita, que cuidara das três filhas
dos Aillard e estivera presente em ambos os casamentos anteriores, perguntou. - Ele é tão
alto, bonito, forte, fala bem...
- Que pena que você não pode se casar com ele, Ama, já que ele é do seu agrado. –
Rohana disse, mas seu coração não estava realmente brincando.
- Não, mas realmente - disse sua mãe, franzindo um pouco a testa - eu jurei que
nenhuma filha minha jamais seria forçada a ir para seu leito de noiva sem vontade e, se
você não gostou de Gabriel, você só tinha que dizer isso antes que as coisas fossem tão
longe.
Rohana suspirou, sentindo pena do desânimo no rosto da mãe. - Não, não, não é que
eu não goste de Gabriel. Ele certamente não é pior do que qualquer outro que me foi
oferecido. Mas você dificilmente pode me culpar por pensar que este dia é para o prazer da
minha família e não para o meu, ou mesmo para o de Gabriel. Todos os dias, desde o
noivado, isso foi martelado em mim cedo e tarde: como é raro unir duas das maiores Casas
dos Domínios, dando as mãos do herdeiro de Ardais com a filha de Aillard...até que o
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casamento passou a soar mais como uma criação de melhor gado do que com os noivos. -
Ela olhou para o pátio, onde a fumaça subia do poço onde dois grandes animais estavam
sendo assados nas brasas. O cheiro era bom e saboroso, mas de alguma forma a enojou. -
Estou apenas surpresa que você não tenha dançarinos de corda. malabaristas e o homem
de três pernas de Candermay para distrair a multidão enquanto eles aguardam o evento
principal. Ou você está planejando retornar aos costumes da Era do Caos, quando a noiva e
o noivo faziam a performance principal e a multidão se reunia para torcer por eles?
- Rodi, que vergonha! - Dame Sarita reprovou, corando.
- Bem, não é para meu prazer e nem o de Gabriel que seria feito. – Rohana disse. –
Mas alguém deveria se divertir um pouco com isso, afinal. É Aillard sendo casada com
Ardais, não Rohana com Gabriel. Aprendi minha parte na cerimônia tão bem quanto
qualquer artista lírico em qualquer palco de Thendara, e ouso dizer que faço arte também,
mas sem direito aos aplausos.
- Garota tola. – A Ama reprovou. - Toda mulher em seu dia de noiva é uma rainha.
- Oh, sim - disse Rohana - uma noiva pode ser rainha por um dia. - Ela estava em sua
roupa leve, seu cabelo acobreado caindo solto e reto até a cintura, olhando para as roupas
finas espalhadas em sua cama com as sobrancelhas erguidas. - Na esperança de que um dia
de realeza a ajude a esquecer que, a partir daquele dia, ela estará para sempre sujeita a
algum homem e tenha desistido até de seu próprio nome.
- Mas Rohana, não é bem assim. - Lady Liane disse. - Você realmente acredita que
estou apenas sujeita ao seu pai?
- Não, mãe, mas você é uma Aillard e se casou com um homem que conhecia como
seu inferior. E meu pai sabia desde o dia do casamento que sua noiva também era sua Lady
que deveria ser servida e obedecida. Eu me casei com um Lorde Comyn de Ardais, onde
eles colocam a herança na linha do homem. Sua esposa não será sua superior ou igual. Não
tenho coração para impor minha vontade por meio de contendas, mãe, e então... - Ela deu
de ombros. - Duvido que vá fazer valer isso. - Ela se deixou cair em uma cadeira.
- Venha, meu bebê, não se desanime. - Dame Sarita disse. - Chegará o dia em que você
se lembrará deste como o dia mais feliz de sua vida.
- Isso significa que todos os dias posteriores serão menos felizes? - Rohana perguntou
com um suspiro.
- De maneira nenhuma, criança. Sei que dias como este são cansativos, mas isso
acabará logo, e então você conhecerá todas as delícias que estão reservadas para uma
noiva. Eu me lembro do meu querido homem bom... - Ela começou com reminiscências,
mas Lady Liane a interrompeu.
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- Sarita, a menina mal comeu. Vá até a despensa e encontre algo saboroso, uma
caneca de sopa, você sabe do que ela gosta mais. – Ela disse e quando a Ama foi embora,
Lady Liane puxou Rohana para si, acariciando seus cabelos.
- Criança, não suporto ver você em um estado tão miserável. – Ela disse. - Realmente
pensei que você gostava de Gabriel.
- E eu gosto, mãe. Gosto dele tanto quanto poderia gostar de qualquer homem que vi
apenas uma vez por uma hora ou mais.
Estranhamente, a Lady corou. Ela disse com a voz abafada: - Filha, você sabe quanto
costume foi violado apenas por isso? Tive de explicar a Lorde Ardais que você era uma
leronis e estava acostumada a ter muita liberdade. Ouso dizer que ele a considerou
indecente por ter pedido para conhecer seu marido prometido. O que está acontecendo
agora é por isso ou apenas porque você tem vergonha de ser o centro das atenções? É
verdade que na Torre você não aprendeu a viver com todos os olhos voltados para você
como um Comynara deve fazer. Ou talvez... Rodi, é seu ciclo de mulher? Se for esse o caso,
vou pedir a seu pai para ter uma conversa em particular com Gabriel e fazê-lo entender que
ele deve deixá-la sozinha por um dia ou mais...
Rohana fez uma careta. - A Ama já está na sua frente, mamãe. Durante metade do
último ciclo ela tem me dado remédio de sua parteira para prevenir exatamente isso.
Lady Liane sorriu e, pela primeira vez em toda sua vida, Rohana sentiu que sua mãe
falava com ela como uma igual.
- Gostaria que minha mãe ou ama tivessem demonstrado tanta previsão. Mas naquela
época ninguém teria falado com uma jovem donzela sobre essas coisas. Embora deva dizer
que, quando tive coragem de falar, seu pai foi muito gentil e compreensivo.
Era difícil pensar em sua mãe e seu pai majestosos como uma jovem noiva
envergonhada e um jovem noivo atencioso. - Quantos anos você tinha, mãe?
- Quinze. - Lady Liane disse. - Sabrina nasceu antes de eu completar dezesseis anos.
Fiquei muito feliz por meu primeiro filho ter sido uma herdeira de Aillard. Seu pai ficou
profundamente desapontado, mas foi gentil e me trouxe flores. E Sabrina teve dois filhos
antes de completar a sua idade. Sua irmã, Marelie, também desejava se casar jovem. Jovem
demais, pensei, e foi por isso que pedi que ela passasse um ano primeiro na Torre
Dalereuth antes de você. Mas ela não tinha talento com o laran. Foi por isso que fiquei
orgulhosa quando você demonstrou esse talento. E Lorde Ardais também está satisfeito, já
que parece que Gabriel tem muito pouco disso. Se você desejava passar a vida em uma
Torre, Rohana, bastava ter dito.
Rohana fizera uma aposta particular consigo mesma de que sua mãe diria exatamente
isso e com essas palavras. Mas seu coração estava fora desse jogo. Ela suspirou e balançou
a cabeça.
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- Não, - ela disse - não tenho o dom para isso. Do nosso grupo era Leonie quem o
tinha... E Melora. - Ela engoliu em seco e cobriu o rosto com as mãos. Seus olhos se
encheram de lágrimas. – Melora... – ela disse chorando. - Desde que éramos pequenas,
prometíamos uma à outra que, qualquer de nós que se casasse primeiro, a outra seria sua
madrinha. Por que ninguém me conta o que aconteceu com Melora, mãe? Ela está morta?
Ela fugiu com um cavalariço, ou com um varredor de estábulos, ou com um carvoeiro?
Lady Liane suspirou e balançou a cabeça. - Não meu amor. Nós teríamos lhe dito se
foase isso para que você pudesse evitar repetir uma escolha tão catastrófica. Você agora
tem idade suficiente para saber. Ela foi levada por bandidos das Cidades Secas e aqueles
que foram procurá-la desapareceram e nunca mais se ouviu falar deles. Acreditamos que
ela esteja morta.
Rohana estremeceu de pavor, e sua mãe a abraçou e acariciou seus cabelos. Naquele
momento, quase parecia possível derramar todos os seus medos e perguntas, mas Sarita
voltou para a sala com uma bandeja de comida e a oportunidade se foi, talvez para sempre.
- Você deve comer bem, - ela insistiu - pois você terá muito pouco espaço em seu
vestido de noiva durante a festa. Trouxe para você uma caneca de sopa com macarrão, uma
fatia de pássaro-da-chuva assado e bolos de frutas pretas. Olha amor, você já viu as
catenas? - Ela ergueu as lindas pulseiras de casamento de cobre filigranadas.
Lady Liane se levantou, beijou Rohana cuidadosamente na testa e o momento de
intimidade se foi. Ela disse: - Verei você quando estiver vestida, minha querida. - E se
retirou.

~o⭐o~
Vestida como uma boneca primorosa com as cores de Ardais, Rohana passou pelas
longas cerimônias. As pulseiras estavam presas em seus pulsos, ela trocou um beijo ritual
com Gabriel. Seus lábios também pareciam frios como gelo. Ele entregou a ela as chaves de
sua Grande Casa e a apresentou a seus paxmen. Ela aceitou o beijo ritual em sua mão de
cada um deles. Em meio a tudo isso, ele estava tão distante e retraído quanto ela. Haviam
forçado esse casamento a ele? E ainda assim ele não era indiferente a ela. De vez em
quando ela notava seus olhos fixos nela.
Rohana sabia que ela era linda. Jovem como ela era, os homens a desejavam. Ela
aprendera a parecer indiferente a isso. Na Torre, onde não poderia ignorar isso, ela
aprendera a se fechar. Agora não haveria maneira de se retirar disso. Ela sabia que era
disso que se tratava o casamento e sentia uma certa aversão meticulosa por tudo isso.
Bem, ela faria o que se esperava dela, ninguém poderia pedir mais. Mas a intensidade nos
olhos de Gabriel a assustou.
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No momento em que foram levados para a cama, ela estava com muito medo. Ela
sabia que as piadas do campo, as brigas, eram apenas tradicionais. As meninas esperavam
que ela risse e se debatesse, talvez chorasse e tivesse vergonha. Bem, eles não deveriam se
divertir com ela. Ela permaneceu perfeitamente composta, sorrindo fracamente da pior das
piadas, erguendo um pouco as sobrancelhas quando eram muito vulgares. As testemunhas
estavam preparadas para continuar assim por horas, mas o rosto frio e retraído de Rohana
fazia com que parecesse inútil. Uma por uma, as canções e risos foram morrendo e eles
foram deixados sozinhos.
Gabriel voltou-se para ela e disse: - Nunca vi uma noiva tão composta assim. Onde
você aprendeu isso, minha Lady?
- Você sabe que fui uma leronis em Dalereuth. A primeira coisa que aprendemos é o
autocontrole em circunstâncias muito mais difíceis do que essa. Eu não queria que eles me
tratassem como uma aberração na Feira do Festival.
- Com sua licença, minha Lady? – Ele disse, saiu da cama e passou o ferrolho da porta.
Voltando, ele se sentou na beira da cama. Ele não era tão alto quanto ela pensava, mas era
mais robusto e de ombros mais largos. O rosto dele estava pálido e através de seu próprio
nervosismo ela pensou: Ora, ele está nervoso também. Viu as gotas de suor caindo, rolando
dos cachos ruivos em seu couro cabeludo e, pela primeira vez, ela pensou neste jovem
desconhecido, não como um conspirador sobre nesta noiva indesejada, mas uma vítima
como ela. Ela estendeu as mãos para ele.
- Fale um pouco comigo, Gabriel. Sei tão pouco sobre você... Parece estranho que, por
costume, marido e mulher se encontrem como estranhos. Eu nem sei quantos anos você
tem.
- Terei vinte e seis anos na semeadura da primavera. – Ele disse. - Sei que meu pai
disse ao seu que eu tinha vinte e três anos porque temia que me achassem muito velho
para você, mas quero ser honesto com você, Rohana. - Foi a primeira vez que ele usou o
nome dela. – Também não acho que te contaram que eu já fui casado antes. Ela morreu no
parto, antes mesmo de completarmos um ano de casados.
Isso poderia acontecer comigo, Rohana pensou. Mas o pensamento era distante e
onírico, e ela sabia, com a percepção mistérios que às vezes o laran trazia, que essa não era
a morte que lhe fora atribuída. Ela se perguntou se ele tinha amado a mulher morta e se
este casamento não era bem-vindo para ele como tinha sido para ela.
Ele disse, tocando sua mão levemente através das dobras de renda em seu pulso, - Eu
gostaria de perguntar a você... Sei que este é um pedido estranho para uma noite de
núpcias... - e parou.
Se isso o envergonhou, o que poderia ser? Rohana pensou. Então, se preparando
contra um pedido indescritivelmente ofensivo, disse gentilmente: - Você sempre pode me
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dizer qualquer coisa. Fale, meu marido. - Ela ainda estava muito tímida para dizer o nome
dele.
- Eu gostaria de lhe pedir...para ser gentil com minha filha. Ela tem apenas dois anos e
temo que tenha conhecido pouca bondade em sua vida. Eu a vi apenas algumas vezes.
Levei uma boneca para ela, mas talvez ela fosse muito pequena para prestar muita atenção
nela.
- Certamente eu nunca seria indelicada com uma criança que não me fez mal. Pouco
conheço de crianças, não tive chance de ver muitas delas na Torre e vi pouco os filhos da
minha irmã. Mas prometo que nunca serei cruel com ela. Não vou bater nela, nem ser rude
mesmo com palavras, garanto-lhe isso. Qual é o nome dela? – Rohana disse.
- Cassilda. – Ele disse e ela se assustou. Nas planícies de Valeron, onde ela fora criada,
o nome Cassilda era considerado reverentemente demais para ser dado a uma criança
humana.
- Você foi educada em uma Torre, Rohana? Você ia ser uma leronis?
- Por um tempo pensei que sim. Mas quando chegou a hora de eu partir para me
casar, ninguém protestou. Meu dom não é tão grande.
- Rohana, eu sei que dentro da Torre...algumas mulheres são livres para ter amantes.
Se você já amou antes, juro que nunca vou lhe reprovar. Existe outro que é dono do seu
coração? - Ele disse, sem olhar para ela.
- Não. - Ela disse, assustada. Ela nunca acreditara que um homem, e um homem das
montanhas, pudesse entender isso. No entanto, ela estava preocupada com a lembrança.
O primo de Melora, Rafael. Ele a desejou e eles chegaram tão perto de serem amantes.
Não porque o desejasse, ela mal havia entendido o que significava o desejo, até que o sentiu
queimando nele, ele a desejou tanto que ela própria foi atormentada, compartilhando sua
fome e sua necessidade. Ela desejou dar isso a ele, para confortá-lo. Ficara angustiada com
o sofrimento dele, mas ao mesmo tempo relutante. Ele sentiu sua relutância e não a
tomaria contra sua vontade mais íntima, nem a aceitaria apenas como um presente de
bondade.
Ela pegou a mão de Gabriel e disse gentilmente: - Não, meu marido. Sou grata a você
por sua compreensão, mas nunca senti mais por qualquer homem do que amizade, e
nenhum homem pode dizer que teve mais de mim do que uma dança ao luar e as pontas
dos meus dedos para beijar.
Gabriel apertou a mão dela e disse: - Quase sinto muito por isso. Já que você foi
casada com um estranho, acho que teria sido uma boa coisa saber o que é amar alguém
que você escolheu, antes de se casar com alguém que você não poderia esperar amar. - Ele
disse isso sem tristeza.
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Curiosamente, Rohana estava consternada. Ela pensou: Eu não quero que ele me ame.
É o suficiente que eu tenha que deixar minha casa e viver entre estranhos, é difícil o
suficiente para ser uma esposa em uma terra estranha sem esse fardo também. Gostaria
que pudéssemos cumprir nosso dever um com o outro e não pedir um ao outro mais do que
isso. Seria mais fácil se eu pudesse ser sempre indiferente a ele, sem nenhum vínculo além
dos filhos que tivermos. Se eu pudesse ser tão indiferente a ele, tão fria e impassível quanto
era com aquelas garotas que me provocavam quando estávamos deitados. E, ao mesmo
tempo, algum instinto perverso de contrariedade exigia: Por que ele tem tanta certeza de
que nunca o amarei?
Ele disse depois de um momento, de modo que ela se perguntou se ele tinha algum
laran afinal e lera sua mente: - Rohana, este não foi um casamento totalmente arranjado.
Pedi a meu pai que pedisse sua mão, embora soubesse que você era muito jovem para
mim.
Ela olhou surpresa. Por que ele faria tal coisa? Ela não se lembrava de ter posto os
olhos nele, embora supusesse que eles deviam ter se visto de vez em quando na temporada
do Conselho, talvez quando ela era uma garotinha e ele já um jovem.
Ah, Abençoada Cassilda, eu suportaria isso se ao menos pudesse ser totalmente
indiferente a ele. Ela ouviu a hostilidade em sua própria voz quando perguntou: - Por que,
Gabriel?
Ele disse, suas palavras tropeçando: - Não só porque você é bonita, não pense assim.
Então ele sabe que isso me ofenderia, ela pensou. Pelo menos ele não achava que ela
era uma daquelas mulheres ofendidas, a menos que fossem lisonjeadas e elogiadas por sua
aparência. Ela tinha conhecido tantos deles.
- Porque, - ele explicou, gaguejando um pouco - uma vez, quando vim visitar seu
irmão, vi você cantando e tocando uma rryl. Eu amo música mais do que qualquer outra
coisa, exceto talvez meus cavalos, e a ideia de que poderíamos ter isso em comum...
- Você gosta de música?
- Tenho pouca habilidade para tocar qualquer instrumento. – Ele disse. - Nasci com
mãos desajeitadas que não fazem minha vontade, mas até minha voz mudar, eu era o
primeiro triplo no coro em Nevarsin. Dizem que ainda tenho uma voz agradável e adoro
cantar. Eu ficaria feliz acima de tudo se um de nossos filhos tivesse um dom musical.
Considero isso um presente mais elevado do que qualquer laran.
- Eu ouvi você cantando hoje à noite, - ela confessou, uma daquelas canções de bebida
barulhentas horríveis - e é verdade que você tem uma voz agradável.
- Fico feliz que algo em mim tenha agradado a você. – Ele disse e olhou para ela com
um leve sorriso esperançoso. - Nunca vi uma noiva tão sofrida e não suportaria pensar que
você já me odiava.
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- Não encontro nada em você que eu possa odiar. Ela disse rapidamente,
impulsivamente e ele sorriu. Ela se lembrou de um cachorrinho tentando ser amigável.
- Você pensa menos de mim porque eu não posso carregar minha bebida como um
homem? Meus irmãos estão sempre zombando de mim porque eu não posso aguentar
meu vinho e que muitas vezes isso me deixa doente. Eles disseram que um noivo insulta
sua noiva se ele não bebe para ela e eu deveria ficar devidamente bêbado pelo menos uma
vez na vida.
- Você nunca precisa beber por minha causa. Eu desprezo a embriaguez. – Ela disse e
se pegou desejando que ele continuasse assim.
Ele sorriu fracamente. – Tive medo de que, se bebesse muito, me perdesse e...tratasse
você de maneira rude. Quando eu era casado com Catalina... - ele desviou o olhar do dela -
eles me persuadiram a ir até ela bêbado, eu também estava com medo, e muito tempo
depois ela conseguiu vencer...seu medo de mim. Não acho que ela estava totalmente livre
disso quando morreu.
- Que terrível para você! - Rohana disse sem parar para pensar.
- E para ela, pobre menina. Não queria correr o risco de assustar você.
- Não acho que eu poderia ter medo de você, Gabriel. - Ela disse, aquecida por um
impulso.
- Deus me livre de lhe dar um motivo. - Ele disse depois de um momento. - Se um
homem pode cortejar uma...uma amante, ou uma cortesã, e trazê-la para cuidar dele, não
vejo razão para que um marido não corteje sua esposa como uma amante. Você pode vir a
se importar tanto comigo quanto com um homem que você mesma tivesse escolhido. -
Seus olhos estavam cheios do que ela reconheceu, incrédula, serem lágrimas. - Fui casado
com a lady mais bonita e nobre dos Domínios, afinal. Aquela que eu teria escolhido em
qualquer lugar.
E, como acontecera na Torre, ela podia sentir a onda crescente de desejo dele e, como
aconteceu, meio assustada, meio excitada, levando-a para uma intensa consciência dele.
É o que é, então, tocar a mente sem medo ou hesitação, não preciso me afastar dele, é
certo desejá-lo, compartilhar sua paixão. É até meu dever.
Ainda assim, ela sentiu um toque de tristeza. Como poderei saber se é isso que quero
ou se estou simplesmente envolvida em compartilhar sua paixão, seus desejos? Não sobrou
nada de meu? Quando ela colocou sua mão na dele e então levantou os braços para
abraçá-lo, ela se perguntou se isso importava.
O importante é que eles foram unidos como um. Importava quem desejava mais o
outro? Sim, ela pensou com tristeza, importa, mas não o suficiente para eu resistir a isso, já
que, queira ou não, fui dada a ele. E uma vez que somos dados uns aos outros, é melhor que
tenhamos uns aos outros querendo do que não desejando.
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Eu poderia dizer não e resistir a isso. Fiz isso na Torre. Por que dar a Gabriel o que
neguei a Rafael então, só porque nossas famílias nos uniram sem nossos desejos? Ou
melhor, sem meu desejo, pois Gabriel deseja me amar. Eu poderia permanecer indiferente a
ele, mas não haveria nada da felicidade que sinto que poderíamos ter juntos. Eu poderia
permanecer sozinha em mim mesma e ter um casamento infeliz. É um preço muito alto a
pagar por minha própria integridade? Ou posso me deixar levar por essa emoção
avassaladora e talvez ser muito feliz, pelo menos por um tempo, e nunca mais saber o que é
ser eu mesma.
Mas como posso ser diferente de mim mesma? Não sou eu também? Ela se perguntou,
e então Gabriel a estava beijando, e ela havia esquecido o que estava em sua mente.

~o⭐o~
E agora ele jazia morto diante dela, e ela só podia se perguntar se ela já soube o que
era amar ou mesmo se existia tal coisa. Este homem que ela abrigou, cuidou, de quem ela
teve filhos, com quem viveu por mais de meia vida. Agora, ela pensou, estou sozinha e para
sempre. Mas sou eu mesma de novo...se puder me lembrar de quem sou. Ou por quê.
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Tudo, menos a liberdade


Marion Zimmer Bradley

“- Não falei que não tinha arrependimentos, Jaelle, - Rohana disse muito baixo, -
apenas que tudo neste mundo tem seu preço, até mesmo a serenidade
que encontrei depois de tantos anos de sofrimento.
― Acredita sinceramente que pagou um preço?
Pensei que tinha acabado de dizer que tinha
tudo o que uma mulher podia desejar!
Rohana não podia fitar Jaelle. Ela não queria chorar.
― Tudo menos a liberdade, Jaelle.”
- A Corrente Partida, 1976.

Capítulo 01
- Olha, - Jaelle gritou, inclinando-se sobre a varanda, - acho que eles estão vindo.
Lady Rohana Ardais a seguiu de dentro da sala, seus passos diminuídos um pouco pela
gravidez. Ela se moveu devagar até a beira da varanda para se juntar à filha adotiva Jaelle e
se inclinou para espiar, tentando ver além da curva da estrada arborizada da montanha que
levava ao castelo Ardais.
- Não posso ver até agora. – Ela confessou e Jaelle, perturbada pelo ângulo da mulher
mais inclinada para a frente, segurou-a pela cintura e puxou-a para trás.
Rohana se moveu inquieta para se libertar e Jaelle confessou: - Ainda tenho medo
dessas alturas. Vê-la parada tão perto da borda assim faz meu sangue gelar. Se você cair... -
Ela parou e estremeceu.
- Mas o corrimão é tão alto, - disse a terceira mulher que as seguira da sala interna -
ela não poderia cair, mesmo se quisesse! Olha, mesmo se eu subir aqui... - Lady Alida fez
um movimento como se quisesse subir no parapeito, mas o rosto de Jaelle estava mais
branco que a roupa dela e Rohana balançou a cabeça.
- Não provoque ela, Alida. Ela está com muito medo.
- Sinto muito, isso realmente te incomodou, chiya?
- Sim. Não é tão ruim como quando cheguei aqui, mas...talvez seja tolice...
- Não, - disse Rohana - não mesmo. Você foi criada no deserto e nunca se acostumou
às alturas das montanhas. - Jaelle nascera e fora criada nas Cidades Secas. Sua mãe, uma
mulher do Comyn sequestrada, seu pai um chefe do deserto que, segundo os padrões do
Comyn, era pouco melhor que um bandido. Quatro anos antes, um ousado ataque das
mercenárias da Amazonas Livres libertara Melora e Jaelle, então com doze anos. Mas
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 61

Melora morrera no deserto, após ter o filho do chefe das Cidade Secas. Rohana desejava
criar os filhos de Melora, mas Jaelle optou por ficar na Casa da Guilda das Renunciantes sob
a tutela da Amazona Kindra e acompanhada por Mhari.
Jaelle olhou cautelosamente sobre o parapeito novamente. - Agora eles passaram da
curva da estrada. – Ela disse. - Você pode ver... Sim, é Kindra! Nenhuma outra mulher
cavalga assim.
- Alida, - disse Rohana - você pode descer e garantir que os quartos de hóspedes
estejam prontos?
- Certamente, irmã. - Alida, muitos anos mais nova que Lady Rohana, era a irmã mais
nova do marido de Rohana, Dom Gabriel Ardais. Ela era uma leronis, treinada na Torre e
habilidosa nas artes psíquicas do Comyn, o laran.
- Você ficará feliz em ver sua mãe adotiva de novo, Jaelle? - Alida perguntou.
- É claro, e mais feliz por estar indo para casa. – Jaelle proclamou, indiferente à dor
que brilhou no rosto de Rohana.
Rohana disse gentilmente: - Eu esperava que este ano, Jaelle, esta também pudesse se
tornar sua casa.
- Nunca! - Jaelle disse enfaticamente. Então ela se suavizou, chegando a abraçar
Rohana impulsivamente. - Oh, por favor, parenta, não sofra por isso! Você sabe que te amo.
Só que, depois de ser livre, morar aqui é como estar acorrentada de novo, como morar nas
Cidades Secas!
- É realmente tão ruim assim? - Rohana perguntou. - Eu não sinto que perdi minha
liberdade.
- Talvez você realmente não pense estar presa, mas está. – Jaelle disse. - Você se
rebela cavalgando, mas quando cavalga, ainda sobrecarrega o cavalo com a sela de uma
dama...um insulto a um bom cavalo. E... - Ela hesitou. - Olhe para você! Eu sei, mesmo que
você não diga, que você realmente não queria outro filho, com Elorie já com doze anos e
quase uma mulher, e Kyril e Rian quase homens adultos. Kyril tem dezessete agora e Rian
tão velho quanto eu!
Rohana estremeceu, pois ela não tinha percebido que sua adotiva entendia isso. Mas
ela respondeu calmamente: - No casamento não se toma decisão sozinho. É uma questão
de decisão mútua. Eu tive muitas escolhas próprias. Gabriel desejava outro filho e não vi
razões para negar isso a ele.
- Eu sei mais do que isso. - Jaelle respondeu secamente. Ela não gostava de seu
parente Gabriel, Lorde Ardais, e não se importava que todos soubessem. - Meu tio ficou
bravo com você porque você trouxe meu irmão Valentine aqui para viver, e eu sei que ele
disse que se você podia criar um bebê que nem sequer era do seu próprio sangue, não
havia motivo para não lhe dar outro.
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- Jaelle, você não entende essas coisas. - Rohana protestou.


- Não, e espero nunca entender isso.
- O que você não entende é que a felicidade de Gabriel é muito importante para mim,
- disse Rohana - e vale a pena gerar outro filho para fazê-lo feliz. - Mas secretamente
Rohana se sentiu rebelde: Jaelle estava certa. Ela não queria outro filho agora que também
estava sobrecarregada com o filho de Melora. O pequeno Valentine tinha agora quase
quatro anos. Seus próprios filhos não tinham ficado felizes em ter um irmão adotivo
infantil, embora sua filha cuidasse do bebê, agora uma criança saudável, como um animal
de estimação especial, uma espécie de boneca viva para brincar. Rohana ficou grata por
Elorie o amar. Ela própria achava um fardo pesado ter um filho pequeno novamente
quando já havia criado todos os filhos, passados da adolescência. E agora, em uma idade
em que o parto e a amametação estava no passado, ela deveria passar por tudo isso de
novo. Ela não era mais forte e incansável como quando era mais jovem.
Ela procurou mudar de assunto, embora para outro igualmente cheio de tensão.
- Você ainda está determinada a prestar o juramento de renunciante o mais rápido
possível?
- Sim. Você sabe que eu deveria tê-lo prestado um ano atrás. - Jaelle disse, sombria. -
Você me parou na época, mas agora eu sou maior de idade e não posso ser impedida por
lei.
Jaelle sabia que não fora apenas a discordância de Rohana que a impedira de fazer o
Juramento que a tornaria uma Amazona Livre, um membro da Irmandade das
Renunciantes. Tinha sido a própria Kindra. Lembrou-se, enquanto observava Kindra
cavalgando em direção ao castelo Ardais, como haviam percorrido a estrada juntas há um
ano, Jaelle, sombria e furiosa.
- Eu sou maior de idade, Kindra. - Ela protestou. - Eu tenho quinze anos. Tenho o
direito legal de prestar juramento. Tenho dois anos na Casa da Guilda, eu sei o que quero. A
lei permite. Por que você deveria me impedir?
- Não é uma questão de lei. - Kindra protestou. - É uma questão de honra. Eu dei
minha palavra à Lady Rohana. Minha palavra e minha honra não são nada para você, filha
adotiva?
- Você não tinha o direito de empenhar sua palavra quando envolvia minha liberdade.
- Jaelle protestou com raiva.
- Jaelle, você nasceu filha da Comyn, filha de Melora Aillard, herdeira mais próxima do
Domínio Aillard. - Kindra lembrou. - Mesmo assim, o Conselho não proibiu que você se
tornasse uma renunciante. Mas eles insistiram que você devia viver por um ano a vida de
uma filha do Comyn, apenas para ter certeza de que não a sequestramos nem lhe negamos
ilegalmente sua herança.
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- Quem poderia pensar isso? - Jaelle exigiu.


- Muitos que não sabem nada sobre o caminho de renunciante, que não confiam em
nossa honra. - Kindra disse. - Foi uma promessa que fui forçada a fazer como o preço de tê-
la como na Casa da Guilda. Quando você fosse maior de idade para se casar, deveria ser
enviada para Ardais, para viver lá pelo menos um ano, eles tentaram argumentar por três,
como uma filha dos Comyn, para saber, não quando criança, mas como adulta, à que
herança e direitos você estava renunciando. Eles achavam que você não deveria jogar fora
algo sem ver e experimentar.
- O que sei da herança do Comyn não quero, nem respeito, nem aceito. - Jaelle disse,
tempestuosa. - Minha vida está aqui entre as irmãs da Guilda, e eu juro que nunca vou
conhecer outra.
- Ah, silêncio! - Kindra implorou. - Como você pode dizer isso quando não sabe nada do
que está renunciando?
- O que veio de bom para minha mãe por ser do Comyn? - Jaelle exigiu. - Eles a
deixaram cair nas mãos de meu pai e morar lá como nada melhor que uma concubina ou
escrava...
- O que mais podiam eles fazer? Você os faria mergulhar todos os Domínios em uma
guerra com as Cidades Secas? Por uma mulher solteira...
- Se Jalak das Cidades Secas tivesse sequestrado o herdeiro de Hastur, eles não teriam
hesitado nem um momento para iniciar uma guerra por sua causa. Eu sei disso. – Jaelle
argumentou e Kindra suspirou, sabendo que o que Jaelle dizia era verdade. A própria Kindra
não tinha grande amor pelo Comyn, embora realmente admirasse e respeitasse Lady
Rohana. Jaelle precisou de muita persuasão para concordar em passar um ano em Ardais
como filha adotiva de Rohana, para aprender o que era nascer filha do Comyn.
Agora o ano terminara e Kindra estava vindo, como prometera, para levá-la de volta à
Casa da Guilda, para prestar Juramento e viver para sempre como uma mulher livre,
membro da Guilda, independente do clã ou da herança.
Ela passou rapidamente por Rohana e desceu as escadas correndo. Quando alcançou a
grande porta da frente, Kindra estava subindo o longo caminho. Jaelle, amaldiçoando as
odiadas saias que ela tinha que usar em Ardais, juntou-as nas mãos e acelerou pelo
caminho da frente, para se atirar em Kindra, mesmo antes de a mulher desmontar, quase a
puxando da sela.
- Suavemente! Gentilmente, minha filha. - Kindra advertiu, desmontando e segurando
Jaelle em seus braços. Então, vendo que Jaelle estava chorando, ela a segurou no
comprimento do braço e a examinou seriamente.
- Qual é o problema?
- Oh. Estou tão feliz por ver você! - Jaelle soluçou, secando apressadamente os olhos.
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- Vamos, vamos, criança! Não acredito que Rohana tenha sido cruel com você ou que
você possa ter sido tão infeliz assim!
- Não, não Rohana, ninguém poderia ter sido mais gentil, mas eu tenho contado os
dias! Mal posso esperar para voltar para casa!
Kindra a abraçou com força. - Eu também senti sua falta, filha adotiva, - ela disse - e
todas ficaremos felizes em recebê-la em casa novamente. Então você não escolheu
permanecer nos Domínios e se casar para se adequar ao seu clã?
- Nunca! - Jaelle exclamou. - Oh, Kindra, você não sabe como tem sido aqui! As
mulheres que servem Rohana são tão estúpidas. Elas não pensam em nada além de roupas
bonitas e em como arrumar seus cabelos, ou em qual dos guardas sorrira ou piscara para
elas à noite quando dançamos no salão... Elas são tão estúpidas! Até minha prima, filha de
Rohana, ela é tão ruim quanto qualquer uma delas!
Kindra disse gentilmente: - Acho difícil acreditar que Rohana possa ter uma filha tola...
- Bem, talvez Elorie não seja tola. - Jaelle admitiu de má vontade. - Ela é esperta o
suficiente, mas já aprendeu a não ser pega pensando quando seu pai ou seus irmãos estão
na sala. Ela finge que é tão tola quanto o resto deles!
Kindra escondeu um sorriso. - Então talvez ela seja mais esperta do que você imagina,
pois ela pode ter seus próprios pensamentos sem ser reprovada por isso, algo que você
ainda não aprendeu, minha querida. Venha, vamos subir, deixe-me cumprimentar Lady
Rohana. Estou ansiosa para vê-la novamente.
- Quando podemos ir para casa, Kindra? Amanhã? - Jaelle perguntou ansiosamente.
- De maneira nenhuma. – Kindra disse, escandalizada. - Fui convidada a fazer uma
visita aqui por um dia ou mais. Ter pressa seria desrespeitoso para com seus parentes,
como se nós mal pudessemos esperar para ir embora.
- Bem, eu não posso. – Jaelle murmurou, mas percebeu pelo olhar severo de Kindra
que ela não podia dizer isso em voz alta. Ela chamou um cavalariço para que o cavalo de
Kindra fosse levado ao estábulo, depois levou Kindra em direção aos degraus da frente,
onde Rohana as esperava.
Enquanto as mulheres se cumprimentavam com um abraço, Jaelle ficou a uma
pequena distância, olhando-as lado a lado e estudando os contrastes.
Rohana, Lady Ardais, era uma mulher de trinta e poucos anos, seu cabelo era o típico
vermelho da casta hereditária do Comyn e estava enfeitado de forma elegante na parte de
trás do pescoço, entrelaçado com um fecho de borboleta de cobre ornamentado com
pérolas. Ela estava ricamente vestida com uma longa e elegante camisola de veludo azul
quase da cor dos olhos, a roupa fina e de cor clara era fortemente bordada e a camisola
aparada no pescoço e nas mangas com pelo grosso e escuro. Agora as roupas ricas
pareciam desajeitadas, seu corpo inchado com a gravidez. Em contraste com Rohana,
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Kindra parecia francamente mediana. Uma mulher alta e magra, com botas e calções de
uma Amazona, que fazia suas longas pernas parecerem ainda mais longas do que eram. Seu
rosto era magro, quase ossudo, e seu rosto, assim como seus cabelos grisalhos, pareciam
desgastados e começavam a enrugar-se com pequenas linhas ao redor dos olhos e da boca.
Quase pela primeira vez, Jaelle se perguntou quantos anos Kindra tinha. Ela era mais velha
que Rohana, ou apenas a vida relativamente protegida e mimada de Rohana preservara a
aparência da juventude?
- Bem, entrem, minhas queridas, – Rohana disse, passando um braço pelos de Kindra e
o outro pelos de Jaelle - espero que você possa nos fazer uma boa e longa visita.
Certamente você não viajou sozinha desde Thendara, não é?
Jaelle se perguntou com desdém se Rohana achava que Kindra teria medo de fazer
essa jornada sozinha, como ela, Rohana, poderia ter medo. Para ela, a pergunta teria sido
um insulto. Kindra respondeu, sem crítica, que tinha passado pelo caminho de Scaravel, um
grupo de exploradores da montanha indo para a distante Hellers e três irmãs da Guilda
foram contratadas para guiá-los.
- Rafaella estava com eles e ela lhe enviou seu amor e saudações, Jaelle. Ela sentiu sua
falta e Doria também. Ambas esperavam que você volte para elas logo.
- Oh, eu gostaria que Rafi tivesse vindo com você. - Jaelle disse. - Ela é quase minha
melhor amiga!
- Bem, talvez ela esteja de volta a Thendara quando pudermos voltar para lá. – Kindra
disse, sorrindo. Ela acrescentou para Rohana: - Principalmente era um grupo de terráqueos
do novo espaçoporto. Eles estão tentando mapear as Hellers, as estradas, os picos das
montanhas e assim por diante.
- Não para fins militares, espero. – Rohana disse.
- Acredito que não. Simplesmente para obter informações. – Kindra respondeu. -
Todos os terráqueos parecem ter uma paixão, pelo que sei deles, por todo tipo de
conhecimento inútil. A altura das montanhas, as fontes dos rios e assim por diante. Não
consigo imaginar o porquê, mas essas coisas podem ser úteis até para o nosso povo que
precisa viajar nas montanhas.
Elas estavam agora bem dentro do grande corredor e Jaelle notou, de pé no canto
onde havia um monte de equipamentos de caça, Lorde Gabriel Ardais, marido de Rohana e
chefe do Domínio de Ardais. Ele era um homem alto, de porte militar inteligente que, de
alguma forma, dava às roupas de caça antigas a aparência de um uniforme.
- Você tem convidados, Rohana? Você não me avisou para esperar companhia. - Ele
disse, rispidamente.
- A rigor, a dama é convidada de Jaelle. Kindra n'ha Mhari, da Casa da Guilda de
Thendara, - Rohana disse calmamente – mas, embora ela tenha viajado até aqui para levar
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 66

Jaelle para casa, ela é minha amiga e eu a convidei para ficar e me fazer companhia agora
que devo ficar confinada tão perto da casa e do jardim.
O rosto móvel de Dom Gabriel escureceu com desaprovação quando seu olhar caiu nas
calças e botas de Kindra, mas, quando Rohana falou, seu rosto se suavizou e ele falou com
perfeita cortesia. – Como você quiser, meu amor. Mestra - ele usou o termo de cortesia de
um nobre para uma mulher de classe baixa - eu lhe desejo boas-vindas. Qualquer hóspede
da minha lady é bem-vindo e um convidado querido em minha casa. Que sua estadia aqui
seja alegre.
Ele continuou, liderando o caminho para o salão superior. - Eu ouvi você falando de
Terranans nas Hellers? Essa criaturas estranhas que afirmam ser de outros mundos, vieram
aqui em ninhos de metal fechados através do golfo das estrelas? Eu pensei que era um
conto infantil.
- O que quer que seja, vai dom, não é um conto infantil. – Kindra respondeu. - Vi os
grandes navios em que eles vêm e vão, e um dos professores da cidade foi autorizado a
viajar com eles até a lua Liriel, onde montaram o que chamam de observatório, para
estudar as estrelas.
- E os lordes Hastur permitiram?
- Acho que, talvez lorde, se somos apenas um dos muitos grandes mundos entre as
estrelas, pode não importar muito tempo se os lordes Hastur permitirem ou não. - Kindra
retornou com respeito. - Uma coisa é certa, essa verdade mudará nosso mundo e as coisas
nunca poderão ser como eram antes deste tempo.
- Não vejo por que isso precisa acontecer. - Dom Gabriel disse em seu tom áspero de
sempre. - O que eles têm a ver comigo ou com o Domínio? Eu digo: nos deixem em paz e
nós vamos deixá-los em paz, não é?
- Você pode estar certo, Lorde, mas eu diria que se essas pessoas têm a sabedoria de
viajar de um mundo para outro, podem ter muito a nos ensinar. – Kindra disse.
- Bem, é melhor não virem aqui para Ardais tentando ensinar. Eu serei o juiz do que
meu povo deve aprender ou não, - disse Dom Gabriel - e é isso. - Ele marchou para um
aparador alto de madeira, onde foram colocadas garrafas e copos e começou a derramar.
Ele disse com respeito a Rohana: - Tenho certeza de que faria bem a você, mas suponho
que você ainda esteja enjoada demais para beber tão cedo, meu amor? E você, mestra?
- Obrigado, senhor, ainda é um pouco cedo para mim", disse Kindra, balançando a
cabeça.
- Jaelle?
- Não, obrigada, tio. - Jaelle disse, tentando esconder uma careta de nojo. Dom Gabriel
se serviu de uma bebida e tomou rapidamente, depois, pegando outra, tomou um gole
relaxado.
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Rohana suspirou e foi até ele, dizendo em voz baixa: - Por favor, Gabriel, o mordomo
estará aqui com os livros desta manhã, para planejar as estações das éguas.
Dom Gabriel fez uma careta e seu rosto ficou teimoso. Ele disse: - Que vergonha, Rodi,
falar dessas coisas diante de uma jovem donzela.
Rohana suspirou e disse: - Jaelle também é educada no campo e conhece bem essas
coisas como nossos filhos, Gabriel. Por favor, tente ficar sóbrio para ele, sim?
- Não vou descuidar do meu dever, minha querida. - Dom Gabriel disse. - Você cuida
dos seus assuntos, Lady, e não vou negligenciar os meus. - Ele se serviu de outra bebida. -
Tenho certeza de que um pouco disso faria bem à sua doença, meu amor. Você não quer?
- Não, obrigada, Gabriel. Tenho muitas coisas para ver esta manhã. – Ela disse,
suspirando e gesticulando para que suas convidadas a seguissem pelas escadas.
Jaelle disse com veemência assim que ficaram fora do alcance da voz: - Vergonhoso!
Ele já está meio bêbado! E, sem dúvida, antes que o mordomo chegue aqui, ele estará
como um morto bêbado em algum lugar no chão, a menos que seu homem se lembre de vir
trazer uma cadeira, e não mais apto para lidar com os livros do que eu como piloto de um
das naves terranans!
O rosto de Rohana estava pálido, mas ela falou com firmeza.
- Não é para você criticar seu tio, Jaelle. Fico contente se ele bebe sozinho e não faça
com que um dos meninos beba com ele. Rian já acha impossível levar a bebida como um
cavalheiro, e Kyril é pior. Eu não me importo de cuidar dos livros.
- Mas por que você o deixa fazer uma fera de si mesmo, especialmente agora? - Jaelle
perguntou, lançando um olhar crítico para a cintura perceptivelmente espessa de Rohana.
- Ele bebe porque está com dor. Não é meu dever dizer a ele o que ele deve ou não
fazer. – Rohana disse. - Venha, Jaelle, vamos encontrar um quarto de hóspedes perto do
seu para Kindra. Então devo ver se Valentine foi lavado e alimentado adequadamente, e se
a babá o levou ao ar livre para brincar esta manhã.
- Pensei, - disse Kindra - que Jaelle teria assumido os cuidados de seu irmão. Você é
uma menina grande agora, Jaelle, quase uma mulher, e deve saber algo sobre o cuidado
das crianças.
O rosto de Jaelle se contraiu.
- Não gosto de ter pirralhos berrantes sobre mim! Para que servem as babás?
- No entanto, você é a parente mais próxima de Valentine. Ele tem direito aos seus
cuidados e companhia, - Kindra insistiu em voz baixa - e você pode aliviar parte desse fardo
de Lady Rohana, que está sobrecarregada o suficiente.
Rohana riu. Ela disse: - Deixe-a em paz, Kindra. Não desejo que ela seja sobrecarregada
demais com crianças, se não tiver amor por isso. Afinal, ele não é negligenciado. Elorie se
importa com Valentine como se ele fosse seu próprio irmãozinho...
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- Mais tola ela.. - Jaelle interrompeu, rindo.


- Ele deve ser um garoto grande agora. Quatro anos, não é? - Kindra perguntou.
Rohana respondeu ansiosamente: - Sim e ele é um menino quieto e doce, muito bom,
licencioso e gentil. Nunca se pensaria...
Ela parou, mas Jaelle continuou.
- Nunca pensou que ele era meu irmão? Pois sei muito bem, tia. Não sou nenhuma
dessas coisas e, de fato, não desejo ser nenhuma delas.
- O que eu estava prestes a dizer, Jaelle, é que dificilmente alguém acreditaria que ele
é parente de meus filhos, por mais barulhentos que sejam. Ou que dificilmente o pensaria
ter parentes nas Cidades Secas.
Kindra quase podia ouvir o que Rohana começou a dizer, dificilmente alguém pensaria
que seu pai era um bandido das Cidades Secas. Ela ficou surpresa que Jaelle, que tinha,
depois de tudo, o sangue telepático do Comyn, não conseguia entender o que Rohana
queria dizer, mas ela manteve a paz. Ela gostava muito de Rohana e desejava que a dama e
a filha adotiva estivessem em melhores relações, mas isso não poderia ser alterado com o
desejo. Rohana conduziu-a a um quarto de hóspedes e deixou-a para desfazer as malas.
Jaelle ficou e caiu em uma bolsa de selim, os joelhos esbeltos, os olhos cinzentos cheios de
revolta furiosa.
- Você ainda está tentando me transformar em uma lady do Comyn como Rohana! Eu
devo fazer isso ou aquilo, devo cuidar do meu irmãozinho e não sei mais o que! Por que
temos que ficar aqui? Por que não podemos voltar amanhã para Thendara? Eu quero ir
para casa! Eu pensei que era por isso que você estava vindo, para me levar para casa! Você
prometeu que, se eu ficasse aqui por um ano, poderia fazer o Juramento! Agora quanto
tempo terei que esperar?
Kindra decidiu que era hora de bater nessa garota mimada com a verdade da situação.
Ela puxou a garota para baixo, ainda protestando, ao lado dela.
- Jaelle, não é certo que o Conselho Comyn lhe dê permissão para fazer o Juramento. A
lei ainda considera o Conselho Comyn seus guardiões legais. Rohana recebeu sua custódia
como menor. Uma mulher dos Domínios não é como uma plebeia. - Kindra começou. - Não
ouso arriscar irritar seus guardiões. Você sabe que a Carta da Casa da Guilda existe a favor
do Conselho. Se deixarmos que você faça o Juramento sem permissão, nossa Casa poderá
perder sua Carta...
- Isso é ultrajante! Eles não podem fazer isso para moldar cidadãos! Eles podem?
- Eles podem, Jaelle, mas em geral eles não teriam motivos para fazê-lo. Por muitos
anos, tomamos o cuidado de não infringir seus privilégios. Receio que não seja tão simples
assim.
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- Você está tentando dizer que, apesar de toda a conversa no Juramento sobre a
liberdade, renunciar para sempre qualquer lealdade à família, clã, guardião ou lorde, e só
dever lealdade às leis que um cidadão livre deve... Não é nada além de uma farsa? Você me
ensinou a acreditar nisso... - A garota se enfureceu.
Kindra disse com firmeza: - Está muito longe de ser uma farsa, Jaelle. É um ideal e não
pode ser totalmente implementado em todos os tempos e condições. Nossos governantes
ainda não estão suficientemente esclarecidos para permitir sua perfeição total. Um dia
talvez seja assim: mas agora o mundo continuará como está e não como você ou eu
desejamos.
- Então eu tenho que sentar aqui em Ardais e obedecer aquele velho idiota bêbado e
aquela ninguém covarde que senta e sorri e diz que ele deve fazer o que quiser, porque ela
não vai impedi-lo... É de fato essa nobreza!
- Só posso pedir para você ser paciente, Jaelle. Lady Rohana está bem disposta em
relação a nós e sua amizade pode fazer muito no Conselho. Mas também não seria sensato
alienar Dom Gabriel.
- Eu me sentiria tão hipócrita, enxamear e agradar aos nobres...
- Eles são seus parentes, Jaelle. Não é crime procurar a boa vontade deles. – Kindra
disse, cansada, desigual à tarefa de explicar a diplomacia e comprometer os inflexíveis para
a jovem garota. - Você vai me ajudar a desempacotar minhas roupas agora? Falaremos mais
sobre isso mais tarde. E eu gostaria de ver seu irmão. Minhas mãos o ajudaram a trazê-lo ao
mundo e prometi a sua mãe que tentaria sempre cuidar do bem-estar dele e tento sempre
manter minha palavra.
- Você não cumpriu sua promessa de que devo prestar o Juramento em um ano. –
Jaelle argumentou, mas, com o olhar zangado de Kindra, ela sabia que havia esgotado até a
paciência de sua mãe adotiva, então começou a ajudar Kindra a tirar seu estoque escasso.
de roupas dos alforjes e colocá-las em baús.

Capítulo 02
Uma das poucas tarefas que Jaelle enfrentou em Ardais, que ela sentiu totalmente
compatível com sua vida como Renunciante, foi a de cuidar de seu próprio cavalo. Dom
Gabriel e até Rohana teriam achado mais adequado se ela tivesse deixado o bem-estar do
animal para os cavalariços, mas eles não a proibiram absolutamente. Quase todas as
manhãs antes do amanhecer, ela ia aos estábulos principais para cuidar do belo cavalo de
planície que Rohana a apresentara como presente de aniversário, onde ela dava ao animal
sua forragem e o escovava. Ela também exercitava seu próprio cavalo e cavalgava quase
todos os dias. Embora ela ainda se ressentisse de não ter permissão para andar a cavalo,
era obediente à vontade de Rohana, suspeitando que ceder a esse assunto poderia ser o
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preço da permissão para andar. Ninguém poderia ter dito ou sugerido que Lady Rohana não
era uma boa cavaleira, apesar de, em todas as aparências externas, ser a mais convencional
das mulheres.
Jaelle suspeitava que Rohana esperava forçá-la a admitir que podia encontrar tanto
prazer em andar de lado como em estilo amazônico de botas e calções. Mas isso ela estava
resolvida que nunca faria.
Talvez, ela pensou, enquanto Kindra estivesse aqui e Rohana não pudesse forçar um
hóspede a seguir seus costumes, Rohana pudesse ser persuadida a permitir que Jaelle
cavalgasse como Kindra. Ela pretendia tentar, de qualquer maneira. Suas próprias roupas
Renunciantes, que ela usava quando chegou, eram pequenas demais para ela agora. Ela
devia ter crescido quase três polegadas, embora ela nunca fosse realmente alta. Talvez um
de seus primos pudesse ser persuadido a emprestar-lhe alguns calções até que ela vestisse
roupas adequadas ao retornar à Casa da Guilda. Ela certamente não pretendia voltar para
Thendara com a roupa ridícula que Rohana considerava adequada para a cavalgada de uma
jovem. O tipo de hábito de andar que sua prima Elorie usava, uma saia escura e uma
jaqueta elegantemente ajustada com lapelas de veludo seria a zombaria de todas as
Renunciantes na Casa da Guilda!
Ela tirou o cavalo da baia e começou a escovar o casaco brilhante. Ela ouvira Rohana e
Kindra falarem de falcão neste dia, talvez, e pretendia perguntar se teria permissão de sair
com eles. Em pouco tempo, o casaco do cavalo brilhava como cobre polido e ela própria
estava quente e suava profusamente, apesar do frio do estábulo, estava tão frio que sua
respiração ainda saía em uma nuvem branca. Ela começou a conduzir o cavalo de volta à
baia quando uma mão a tocou e ela franziu a testa, conhecendo o toque. Seu primeiro
impulso foi arrancá-la dali como um inseto rastejante, talvez com um soco na mão, mas,
para convencer seu primo Kyril a emprestar-lhe suas roupas de montaria, ela não queria
aliená-lo completamente.
O filho mais velho de Rohana tinha dezessete anos, um ano a mais que Jaelle. Como
seu pai, ele tinha cabelos escuros encaracolados. Muitos dos homens de Ardais tinham os
cabelos mais escuros do que com os cabelos ruivos do Comyn. Ela ouvira dizer que isso
vinha de alianças com os homenzinhos morenos que moravam em cavernas nas Hellers e
trabalhavam nas minas de metais, adorando a Deusa do Fogo. Alguns parentes dos Ardais,
dizia-se, até tinham olhos escuros como animais, mas Jaelle não tinha visto isso ainda.
Certamente os olhos de Kyril não eram escuros, mas azuis como os de Rohana. Ele era alto
e de ombros largos, mas, de outro modo, magro e de estrutura estreita. Suas feições eram
pesadas e, pelo menos aos olhos de Jaelle, ele tinha a mesma boca sombria e queixo fraco
que seu pai. Kyril ficaria melhor, ela pensou, quando ele tivesse idade suficiente para deixar
a barba crescer e escondê-la.
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Ela mudou um pouco o peso para que a mão de Kyril se afastasse dela e disse: - O que
você está fazendo tão cedo, primo?
- Eu poderia perguntar o mesmo de você. – Kyril disse, sorrindo. - Você levantou tão
cedo para manter uma relação com um dos cavalariços? Qual deles roubou seu coração?
Rannart? Ele é tudo que uma garota poderia desejar. Se ele fosse uma donzela, eu poderia
desmaiar sobre o olhardele, e sei que Elorie procura tocar sua mão sempre que ele a ajuda
a subir na sela.
Jaelle fez uma careta de repulsa. - Sua mente é imunda, Kyril. E você já bebeu mesmo
tão cedo!
- Você parece minha mãe, Jaelle. Um pouco de bebida faz o pão descer facilmente a
essa hora e aquece o corpo. O que seria o melhor para um pouco de aquecimento pra você
também.
Ele piscou para ela sugestivamente, tentando deslizar um braço em volta de sua cintur,
e ela disse, escondendo seu aborrecimento e se afastando dele, tanto quanto os limites da
barraca permitiam: - Estou tão quente quanto desejo estar. Eu tenho meu cavalo e prefiro o
exercício à bebida. Acho que para você seria melhor uma boa corrida e isso te aqueceria
melhor do que o uísque, acredite. Eu não gosto do cheiro ou sabor dessas coisas e
certamente não no café da manhã.
- Bem, se você não quer uísque, posso pensar em uma maneira melhor de aquecê-la
neste lugar frio. – Kyril disse e ela percebeu que ele havia se mudado para bloquear sua
saída da barraca. - Venha, Jaelle, você não precisa fingir comigo. Você viveu com essas
renunciantes e todo o mundo sabe como elas se comportam em relação aos homens. Que
mulher monta com as pernas aparecendo, a menos que desejasse convidar qualquer
homem que a visse abrí-las?
Jaelle tentou passar por ele. Ela tinha sido uma tola. Ela deveria ter conseguido manter
o cavalo entre eles. - Você é nojento, Kyril. Se eu desejasse algum homem, não seria você.
- Ah. Eu sabia. Aquelas amantes de mulheres e odiadoras de homens corromperam
você! Mas tente com um homem de verdade e juro que você vai gostar mais. - Ele a pegou
pela cintura e tentou empurrá-la contra a beira da tenda.
- Oh, que tolo você é, primo! Agora mesmo, você disse que os renunciantes eram
todas loucas por homens e agora tem certeza de que somos todas amantes de mulheres.
Você não pode acreditar nas duas coisas.
- Ah, Jaelle, não brinque comigo. Você sabe que eu tenho fome de você desde que
você era apenas uma coisinha magrela, e agora você enlouquece qualquer homem. - Ele
disse, se aproximando e tentando beijar a nuca dela. Ela esqueceu de não querer aliená-lo e
o empurrou com força.
- Deixe-me ir e não direi a sua mãe como você foi ofensivo...
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- Ofensivo? Uma mulher como você é uma ofensa para todos os homens. – Kyril disse
e ela empurrou com força novamente, colocando dois dedos rígidos em seu plexo solar. Ele
cambaleou de volta com um grunhido de dor. - Você não pode culpar um homem por
tentar. – Ele disse, quase convencido. - A maioria das mulheres considera um elogio se um
homem as deseja.
- Oh, Kyril, certamente você não está com falta de mulheres para aquecer sua cama! -
Ela disse zangada. - Você só está tentando me irritar! Eu não quero incomodar Rohana.
Você sabe que ela está cansada e doente hoje em dia! Apenas me deixe em paz!
- Seria bom se nenhum homem a desejasse e você tivesse que se casar com um
fazendeiro vesgo com nove enteados! - Kyril rosnou.
- O que isso importa para você, mesmo que eu case com um cralmac?
- Você é minha prima. É uma questão de honra pra minha família - ele disse - que você
se torne uma mulher de verdade...
- Oh, vá embora! Está na hora do café da manhã. – Jaelle disse, furiosa. - Se você me
atrasar, juro que direi a Rohana o por que e correrei o risco de deixá-la tão enojada quanto
estou quando olho para você e sinto seu hálito imundo! - Ela empurrou a porta do estábulo
enquanto Kyril esfregava sua costela machucada.
Enquanto os dois jovens se dirigiam para o grande salão, ela viu Dom Gabriel subindo
até o grande portão. Ele não estava sozinho, mas ela ficou vagamente surpresa ao ver o
Lorde Ardais tão cedo. Ela não podia acreditar que ele poderia estar apenas em busca de ar
fresco e exercício em um passeio matinal.
Eu deveria imaginar que Kyril já estaria corrompido. Com um pai assim, seria um
milagre se ele fosse qualquer outra coisa. Só espero que ele não tenha acordado Rohana
saindo tão cedo, pensou ela, e subido ao Salão Principal para o café da manhã.
Rohana, em um vestido longo e largo, coberto por um avental branco, não muito
diferente do da empregada, cumprimentou-a com um sorriso.
- Você acordou cedo, Jaelle. Equitação?
- Não, tia, apenas cuidando do meu cavalo. – Jaelle disse. Kyril entrou furtivamente em
seu lugar à mesa e Jaelle, com um fragmento de sua consciência, ouviu-o ordenar que uma
das servas lhe trouxesse vinho.
Ugh, ele será um bêbado como seu pai dentro de um ano! Jaelle pensou e voltou sua
atenção para cumprimentar seus primos mais novos. Elorie e Rian, com a governanta,
sentaram-se e atacaram o mingau de aveia e o mel com ganância infantil. Rohana comeu
um pouco de fruta cozida no prato, mas Jaelle notou que sua parenta estava pálida e só
fingia comer.
Dom Gabriel fez uma cena ao entrar... Qualquer outra maneira de descrevê-lo, Jaelle
pensou, seria um eufemismo... seguido por uma garota bonita, com um pouco mais de
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dezessete anos. Ela lançou um olhar para Gabriel que estava quase implorando à jovem,
mas ele a ignorou e ela assumiu um olhar de duro desafio.
Jaelle entendeu imediatamente. Não era a primeira jovem que Lorde Ardais trouxera
para casa nessas circunstâncias. Pelo menos, ela pensou, esta não é mais jovem que seus
próprios filhos.
- Gabriel, você vai nomear nossa convidada? - Rohana perguntou com perfeita
cortesia.
Ele deu um passo para o lado da garota e disse: - Esta é Tessa Haldar. - O nome duplo a
proclamava menor que uma nobre.
Rohana disse gentilmente: - Ela vai ficar?
- Certamente. – Gabriel disse, sem olhar para a garota, e Rohana imediatamente
compreendeu. Jaelle não era muito telepata, mas percebeu a emoção de Rohana.
Suponho que ele acha que eu me importo com quem ele dorme?
Gabriel olhou para ela e Jaelle também ouviu o que ele não disse em voz alta: Bem,
você não é boa para mim agora, é?
O rosto de Rohana empalideceu de raiva.
De quem é a culpa? Foi você quem quis outro filho!
Jaelle lutou para fechar suas percepções, inundada de um embaraço doentio. Quando
ela olhou para cima, Rohana estava ajudando a garota com sua capa. Pobre criança, nada
disso é culpa dela. Rohana disse em voz alta: - Aqui, minha querida, você deve se refrescar
de sua longa viagem. Sente-se aqui ao lado de Dom Gabriel. - Ela acenou para o coridom. -
Hallard, coloque outro lugar aqui e pegue a capa dela. Traga um pouco de chá quente. O da
chaleira está frio.
- Esqueça isso. - Dom Gabriel disse com desdém. - Depois de um passeio como esse,
um homem quer algo mais quente.
Rohana não alterou sua maneira fria e graciosa nem por um momento.
- Sidra temperada e quente para Dom Gabriel e sua convidada.
- Vinho temperado e quente, imbecil. - Dom Gabriel a corrigiu com grosseria. O sorriso
cuidadosamente mantido de Rohana cintilou, mas ela deu a ordem. Os lábios dela estavam
bem apertados e havia duas manchas ruborizadas nas bochechas.
Kindra entrou no corredor e Rohana disse bom dia. Ela foi cumprimentar Jaelle e
tomou um lugar entre as crianças.
Dom Gabriel fez uma careta e disse baixinho para Rohana, sobre a cabeça inclinada da
garota Tessa entre eles: - O que é isso, senhora? Devo ter uma mulher de calção na minha
mesa?
Rohana disse entre dentes: - Gabriel, tenho sido gentil com sua convidada. - Ele fez
uma careta feroz, mas baixou o olhar e não disse mais nada. Jaelle olhou para o prato,
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sentindo que engasgaria com pão e manteiga. Como Rohana podia sentar-se ali
calmamente e permitir que Dom Gabriel a obrigasse a confrontar sua nova barragana em
sua própria mesa do café da manhã? E ela estava grávida! No entanto, ela ficou sentada
educadamente, observando Dom Gabriel alimentar a garota com pedaços de pão
embebidos em vinho temperado de seu próprio cálice.
Rian perguntou: - Mãe, posso tomar vinho em vez de mais chá?
- Não, Rian, você não pode prestar atenção às lições se estiver bebendo. Vou mandar
para você sidra temperada. Te aquecerá melhor que o vinho.
- Rohana, não torne o menino um maricas! Se ele quiser beber, deixe-o. - Gabriel
resmungou, mas Rohana balançou a cabeça na direção do corredor.
- Gabriel, você deu sua palavra de que as crianças devem estar totalmente em minhas
mãos até crescerem.
- Oh, muito bem, faça o que quiser. Escute sua mãe, Rian. Eu sempre ouço. - Dom
Gabriel disse com um sorriso doentio.
- Se eu fosse Rohana, eu...eu chutaria aquela garota, arranharia aquele sorriso
presunçoso em seu rosto. - Jaelle disse à Kindra quando eles estavam saindo do salão.
Kyril ouviu e disse, zombeteiro: - O que você sabe dos privilégios de um homem?
- O suficiente para saber que não quero fazer parte deles. – Jaelle disse. - Eu pensei
que tinha provado isso para sua satisfação no início desta manhã, primo.
Rian, o filho mais novo de Rohana, um garoto magro de dezesseis anos, com um olhar
perpetuamente preocupado no rosto e cabelos ruivos como os de Rohana, disse: - A mãe
não está satisfeita, posso ver isso. Mas não é a primeira vez. Meu pai fará o que ele quiser
e, o que quer que ele faça, minha mãe dirá perante a família que tudo o que ele escolhe
fazer é bem feito, seja lá o que ela pensar em particular. Eu concordo com você, Jaelle, é
uma vergonha, mas se ela não protestar, não há nada que você, eu ou qualquer outra
pessoa possa fazer.
Jaelle viu Rian terminar o cálice do vinho temperado de seu pai depois que Dom
Gabriel saiu da mesa, quando Rohana não estava olhando. Ela olhou com desdém para o
garoto e não disse nada.
Kindra disse calmamente: - Venha para o meu quarto, Jaelle. Acho que devemos
conversar sobre isso. Quando estavam sozinhas no quarto de Kindra, ela disse: - Com que
direito você critica sua parenta Lady Rohana? Foi isso que ensinei a você, que quer
liberdade para si mesma, a recusar que Lady Rohana tenha suas escolhas?
- Você não pode me convencer que é por sua própria escolha que ela permite que ele
traga sua amante sob seu teto e para sua própria mesa!
Kindra disse: - Talvez ela prefira saber onde ele faz suas coisas em vez de se perguntar
onde e com quem ele está quando está fora? Eu sei que ela está preocupada com a saúde
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dele e teme que algo possa acontecer se ele sair de casa. Pelo menos aqui ela sabe
definitivamente o que ele está fazendo... E com quem.
- Acho isso nojento. – Jaelle disse.
- Não importa o que você pensa. Você não foi consultada - disse Kindra bruscamente -
e não lhe cabe reclamar se ela não o fizer. Quando ela reclamar comigo ou me consultar
sobre o comportamento dele, não mentirei sobre como me sinto, nem você precisaria. Mas
até que ela faça de você a guardiã de sua consciência, Jaelle, não presuma que você o seja.
- Oh, você é tão ruim quanto Rian! - Jaelle disse frustrada. - Rohana não pode errar
assim.
- Oh, eu dificilmente diria isso. - Rohana disse alegremente, entrando na sala a tempo
de ouvir as últimas palavras de Jaelle. - Mas fico feliz em saber que você pensa assim, Jaelle.
- Acho que não. - Jaelle disse zangada, desviando os olhos de Rohana e saiu do quarto.
Rohana levantou os olhos. - Bem, o que foi tudo isso, Kindra?
- Apenas um caso ruim de ter dezesseis anos e saber como resolver todos os
problemas do mundo, exceto os dela. - Kindra disse ironicamente. - Ela ama você, Rohana.
Não se pode esperar que ela fique feliz em vê-la humilhada em sua própria mesa.
- Não, suponho que não. – Rohana disse. - Mas ela espera que eu faça isso com uma
jovem inocente que pensa que é amada por um nobre? Ela aprenderá o contrário, em
breve, e minha simpatia vai para ela. Por que ela não pode ser muito mais velha que Jaelle.
- Acho que pode ser o que está incomodando Jaelle, embora ela possa não perceber
completamente. – Kindra disse.
- Bem, há tempo suficiente para ela escolher sobre os homens. – Rohana disse. - Mas
me incomodaria muito se ela decidisse que todos os homens são como o pai das Cidades
Secas ou como Gabriel e se afastassee deles para sempre.
- Você realmente acha que ela vai aprender o contrário aqui? – Kindra perguntou.
Rohana suspirou.
- Não, suponho que não. Kyril não é muito melhor que seu pai. Tentei fazer o meu
melhor pelo exemplo, mas é natural que um garoto se padronize pelo pai. Talvez eu deva
enviar Jaelle para minha parenta, que está feliz com o marido. Mas ela tem tantos filhos
pequenos... Seis e eles não têm oito anos ainda. Eles realmente não têm espaço para outra
garota crescida sob seu teto. Mas, de um jeito ou de outro, devo garantir que ela saiba que
os homens podem ser bons e decentes. Talvez ela deva passar um tempo com os primos de
Melora nas planícies.
- Tive problemas o suficiente para fazê-la vir aqui. - Kindra a lembrou. - E isso foi
porque ela a amava e respeitava. Duvido que ela queira aprender mais sobre os homens.
Rohana suspirou novamente. - Já era complicado ter problemas com minha própria
filha, - ela disse - mas eu queria Jaelle aqui, porque ela é tudo o que me resta da pobre
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Melora. Talvez eu devesse ter deixado ela ir até Jerana, que estava disposta a garantir que
ela recebesse o treinamento adequado de uma filha do Comyn. No entanto, não quero
pensar nela se voltando totalmente contra os homens, como dizem das amazonas.
Kindra franziu a testa e disse seriamente: - Rohana, realmente importaria para você se
ela se tornasse uma amante de mulheres? Você tem tanto preconceito sobre esse assunto?
- Preconceito? Oh, entendo... – Rohana disse. - Não, isso não me incomodaria tanto,
mas quero que ela seja feliz e ainda não estou convencida de que exista alguma felicidade
para as mulheres fora do casamento.
- Acho difícil acreditar que haja felicidade para as mulheres no casamento. – Kindra
disse. - Certamente não encontrei nenhuma. E estou contando as histórias do lado de fora
da casa de Jalak, nas Cidades Secas.
Os anos se passaram quando Rohana se lembrou das palavras de Kindra. O marido de
Kindra a sentiu inadequada porque ela lhe deu apenas duas filhas. Arriscou a vida para ter
um terceiro filho e deu à luz o menino desejado, depois do qual ele a banhou de jóias. - Eu
não tinha valor... - Kindra havia dito. - As filhas que eu havia arriscado a vida não tinham
valor. Eu era apenas um instrumento para dar-lhe filhos. E assim, quando eu consegui andar
de novo, cortei meu cabelo, beijei meus filhos dormindo e fui para a Casa da Guilda, onde
minha vida começou. - No entanto, Rohana sabia que essa decisão não fora tomada de
ânimo leve, mas com grande angústia.
Agora ela se sentia forte para perguntar o que nunca ousara antes, apesar da
proximidade.
- Mas e seus filhos, Kindra? Como você pôde deixá-los em suas mãos, então, se você o
considerava tão mau?
O rosto de Kindra estava incolor, os lábios apertados, brancos.
- Você deve mesmo se perguntar isso... Antes de tomar essa decisão, eu havia chorado
muitas noites. Pensei em levá-los comigo ou roubá-los quando fossem grandes o suficiente.
Avarra tenha pena de mim, uma noite eu até fiquei de pé sobre eles com uma adaga na
minha mão, pronta para salvá-los da vida que eu não podia suportar. Mas eu sabia que iria
virar a lâmina para mim mesma antes. - Sua voz era plana, mas suas palavras vieram em
uma corrida sem resistência que obrigou a atenção silenciosa de Rohana. - Mas ele, meu
marido, não era um homem mau. Era só que ele nem podia me ver. Para ele eu não existia,
a esposa era apenas um instrumento para fazer sua vontade. E falei com muitas esposas, e
ninguém conseguia entender por que estava zangada ou consternada. Todas pareciam bem
satisfeitas com isso. Então, o que eu poderia fazer, além de acreditar que outras mulheres
estavam tão contentes? Muitas delas não conseguiam ver do que eu reclamava. Elas
perguntavam: ‘Ele não bate em você, bate?’ como se eu devesse ser feliz só porque ele não
fazia isso. Assim, pareceu-me que a culpa era minha, que eu nunca poderia me contentar
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com esses termos, que morreria se não fosse mais que mãe de seus filhos. Parecia que seria
bom para eles livrar-se de mim e ter uma esposa verdadeiramente contente no lugar
designado para ela, que poderia educar minhas filhas para serem felizes como aquelas
outras mulheres pareciam ser...em encontrar um marido e ser seu estoque de ninhada.
Então eu o deixei tanto para o seu próprio bem como para o das crianças. E ouvi na cidade
que ele se casou de novo e que minhas filhas se casaram bem, e elas também parecem
felizes. Tenho três netos que nunca segurei em meus braços. Tenho certeza de que minhas
filhas tirariam suas saias como se eu sofresse uma praga, caso eu aparecesse. - Ela engoliu
em seco, Rohana viu lágrimas nos olhos. - Mas nunca olhei para trás. E se eu estivesse lá de
novo, faria o mesmo.
Rohana a abraçou em silêncio e não falou por um longo tempo. Ela se sentiu tocada
pela confiança da outra mulher, sabendo que ela não foi dada de ânimo leve, mesmo para
suas irmãs da Casa da Guilda. Ela tinha laran suficiente para saber que Kindra nunca havia
contado sua história mesmo para as Mães das Guildas.
- Eu não sei se não o faria em seu lugar, - Rohana disse - mas a escolha nunca surgiu
para mim. Eu dei à luz meus dois filhos antes de minha filha nascer e, quando ela nasceu,
Gabriel estava feliz por tê-la. Gabriel já teve uma filha em seu primeiro casamento e a ama
muito. Ela está na Torre Dalereuth e dizem que ela tem o dom de Ardais. Ela permaneceu
sob o nosso teto até os quinze anos. Ela nos deixou quando soube da situação de Melora.
E você era rica o suficiente e tinha servas e damas suficientes sob seu comando para
poder deixar seus próprios filhos nas mãos de outros e seguir essa missão, Kindra pensou,
mas Rohana entendeu.
- Não foi tão fácil assim, Kindra. Gabriel ainda não me perdoou.
- E esse filho que você não queria é o preço do perdão dele? Você paga muito pela boa
vontade do seu marido, minha senhora. – Kindra disse e Rohana a abraçou
espontaneamente.
- Oh, minha amiga, não me chame de ‘minha senhora’. Me chame pelo meu nome.
Posso te chamar de minha amiga, não posso? Minha casa está cheia de mulheres, mas não
tenho nenhuma amiga de verdade entre elas! Nem Jaelle que tanto me desaprova!
- Nem mesmo Domna Alida? Nem a irmã de Dom Gabriel?
- Ela menos ainda. – Rohana disse, ainda agarrada a Kindra e olhando para ela. – Ela
fica incomodada porque todos os assuntos no Domínio foram entregues em minhas mãos.
Ela sabe bem que Gabriel não é competente para governar seus próprios assuntos, mas ela
sente que, como ela é uma Ardais e uma leronis, se os assuntos devem estar em qualquer
mão que não a de Gabriel, deviam estar nas dela. Acho que ela me mataria se pudesse
pensar em uma maneira de escapar da punição pelo meu assassinato. Ela sempre me
observa... - Rohana deliberadamente se conteve, ciente de que parecia estar à beira da
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histeria. - Então você perceber que preciso de uma amiga. Fique comigo, Kindra, fique pelo
menos até o bebê nascer.
Impulsivamente, Kindra a abraçou.
- Ficarei o tempo que você quiser, Rohana, prometo. Mesmo que eu deva enviar Jaelle
para o sul com uma caravana antes do inverno.
- Ela não vai gostar disso. – Rohana disse, sorrindo fracamente. - E dizer isso é como
profetizar neve no desfiladeiro de Scaravel, no meio do inverno, algo que não necessita de
muito laran. - E tendo dito isso, ela se viu imaginando. Kindra tinha laran afinal? Era inédito
para ela estar tão à vontade com alguém fora de sua própria casta.
Kindra sorriu para ela e disse: - Já lhe disse uma vez no deserto, acho que você seria
uma Amazona notável, Rohana. Você tem o verdadeiro espírito de uma. Quando eu for
para o sul com Jaelle, por que não vem conosco? Ou, se você se incomoda em viajar
durante a gravidez, fique aqui embaixo do teto dele até que seu filho nasça. Se for filha, nós
a levaremos para o sul conosco e a criaremos na Casa da Guilda de Thendara. Se for um
menino, deixe com Dom Gabriel, já que ele tem outras mulheres e tudo que deseja agora
de você é outro filho. Acho que você seria feliz como um das juradas das Com'hi Letzii.
Ela sorriu e Rohana sabia que a oferta havia sido feita pelo menos em tom de
brincadeira. Mas, de repente, Rohana foi tomada por um grande desejo selvagem de
cavalgar para o sul com Kindra como antes em sua jornada para as Cidades Secas, deixar
tudo isso para trás e seguir Kindra a qualquer lugar, até o fim do mundo.
- Que pensamento louco! - Ela disse sem fôlego. - Mas você faz parecer muito
tentador, Kindra. Eu... - para seu próprio choque e surpresa, sua voz vacilou - ...eu quase
gostaria de poder ir. Quase.

Capítulo 03
Um pouco depois que Kindra a deixou, depois de cuidar do bem-estar das crianças
mais novas, e procurar Valentine no berçário para garantir que tudo estava bem com seu
filho adotivo, Gabriel foi até ela no conservatório. Ele parecia doente e cansado e o coração
de Rohana se compadeceu dele como sempre.
- Você está bem, Rohana? Você ficou mais doente com esta gravidez do que qualquer
outra. Eu não sabia que isso aconteceria ou teria deixado você ficar grávida.
Ela disse irritada: - É um tanto tarde para pensar nisso agora. - Ao seu olhar
desanimado, ela se arrependeu de seu tom irritado e disse: - Mesmo assim, agradeço por
dizer isso agora.
Ele disse timidamente: - Agradeço sua gentileza com a pobre Tessa esta manhã.
Acredite, eu não queria afrontar você. Não quis que você tivesse que aceitá-la assim. Mas
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ela está com problemas em casa e eu não achei certo deixá-la lá para sofrer quando o
problema era todo meu.
Rohana deu de ombros. - Você sabe perfeitamente bem que não importa nada para
mim com quem - ou o quê - você compartilha sua cama. Como você deixou claro para mim
esta manhã, não sou boa para você no momento. - Ela não ouviu a amargura em sua
própria voz até terminar, e então já era tarde demais.
Ele alcançou impulsivamente as mãos dela e as beijou. - Rohana, - ele disse sem fôlego
- você sabe muito bem que é a única mulher que já amei!
Ela sorriu um pouco e fechou as mãos sobre as dele. - Sim, meu querido, suponho que
sim.
- Rohana, - ele disse impulsivamente, ainda sem fôlego - o que aconteceu conosco?
Costumávamos nos amar tanto!
Ela segurou as mãos dele nas dela.
- Eu não sei, Gabriel, - disse ela - talvez seja apenas porque nós dois estamos
envelhecendo. - Ela tocou sua bochecha em uma rara carícia. - Você não parece bem, meu
querido. Talvez andar tão cedo não seja bom para você. Você ainda está tomando o
remédio enviado de Nevarsin?
Ele balançou a cabeça, franzindo a testa. - Isso não me faz bem, - ele protestou - e
quando eu não bebo vinho, isso me deixa doente.
Ela encolheu os ombros. - Você deve fazer o que achar melhor. - Ela disse. - Se você
optar por ter crises convulsivas ao invés de desistir de beber, não posso escolher por você.
O olhar impaciente que ela temia apareceu em seu rosto novamente. Como sempre,
se ela falasse sobre a bebida dele, ele ficava com raiva. Ele disse rigidamente: - Eu vim
apenas para agradecer por sua gentileza com Tessa. – E fugiu novamente. Rohana suspirou
e foi para o quartinho onde ela examinava os negócios da fazenda todos os dias com o
mordomo. Ela deixou a babá trazer Valentine para brincar no chão com seus blocos. Seu
próprio filho ainda não nascido começara a se mover em seu corpo e ela pensou em como
seria criar outro filho. Talvez este filho, ela pudesse proteger um pouco da influência de
Gabriel, para que um dia ele pudesse ser útil para ela na propriedade. Ela não achava que
podia confiar em nenhum dos meninos agora. E Elorie não tinha idade suficiente para saber
ou se importar muito com essas coisas.
Ela passou a manhã discutindo com o administrador a sabedoria de replantar árvores
de resina nesta estação contra os perigos adicionais do incêndio florestal se houvesse
muitas árvores de resina, e a necessidade de lidar com o forjamento de metal para calçar o
melhor dos cavalos. Por necessidade, ela havia aprendido bastante sobre o negócio de
processar resinas para tintas e seladores de madeira para impedir que as cercas e os
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prédios de madeira apodrecessem. As resinas de alta qualidade só podiam ser processadas


a partir de árvores cuja presença trazia os maiores perigos de incêndios florestais.
Somente no final da tarde, quando Valentine foi enviado para o berçário para uma
soneca e sua ceia de ovos cozidos e tostas, Rohana ficou livre para cavalgar. Ela enviou uma
mensagem convidando Kindra a se juntar a ela, se quisesse, foi rapidamente para o quarto
e vestiu uma saia velha e surrada. Quando Kindra se juntou a ela, ela descobriu que
invejava a liberdade de calças e botas da outra mulher, lembrando como ela mesma as
usara em sua aventura com o bando de Kindra.
Elas estavam se preparando para atravessar os portões quando Jaelle entrou no
estábulo montando.
- Oh, por favor, posso ir com você?
A pergunta foi dirigida a Kindra. Ela se virou para Rohana. - Cabe à sua tutora dizer.
Jaelle disse sombriamente: - Você é minha guardiã... - mas ela se virou educadamente
para Rohana. - Por favor, parenta?
- Bem, já que você já está montada... Mas não teremos tempo para perder, só vamos
cavalgar até o cume para inspecionar as plantações de resina. - Rohana disse. - Venha, se
você puder acompanhar.
Jaelle correu para conduzir o cavalo.
- Acompanhar você? Garanto que posso andar mais, mais rápido e mais longe do que
qualquer uma de vocês...ou ambas! - Ela exclamou, pulando rapidamente na sela.
- Oh, certamente você pode andar mais e mais longe do que eu agora, Jaelle....Ou
qualquer mulher grávida. – Rohana disse e fingiu não ver a careta de aversão dela.
- Não deixa você com raiva ficar presa dessa maneira?
- Nem um pouco. - Rohana retornou igualmente. - Lembre-se de que este é meu
quarto filho e sei o que esperar. Venha, vamos subir em direção à cordilheira. Preciso ver
por mim mesma o que o inverno fez com as árvores de resina.
- Por que Dom Gabriel não vê isso? - Jaelle perguntou.
- Porque ele nunca teve nenhum um bom senso para negócios, Jaelle. Você acha que
há algo errado com a ideia de que uma mulher possa administrar os assuntos do Domínio?
- Não, certamente que não. Mas ele deixa tudo para você, junto com todas as outras
coisas que todos concordam que é seu assunto, como cuidar da casa, das refeições, das
crianças, para que você faça o trabalho de uma mulher e o de um homem também.
- Porque eu sempre fui mais forte que Gabriel. Se eu deixasse para ele, todas essas
coisas estariam confusas e a propriedade em grandes dificuldades financeiras. Ou acha que
eu deveria fazer Gabriel cuidar das fraldas dos bebês, contar roupas de cama e talvez assar
pão e bolo?
A imagem criada na mente de Rohana era tão ridícula que até Jaelle riu.
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- Eu sinto que ele deveria fazer a sua parte. – Jaelle disse. - Se ele não faz, de que serve
um homem, afinal?
Rohana sorriu e disse: - Bem, minha querida, é assim que o mundo está organizado.
- Não para mim. – Jaelle disse.
- Você ficaria surpresa, Jaelle, ao saber que, quando Gabriel era mais jovem, antes que
sua saúde estivesse tão ruim, ele realmente balançava as crianças, cantava para elas e
acordava para cuidar à noite para que eu pudesse dormir? Quando nos casamos, ele era o
pai mais gentil e terno. Ele não bebia muito então...
Jaelle achou isso tão perturbador que mudou de assunto. - Quando vamos para o sul,
Kindra, para que eu possa fazer o Juramento?
Kindra abriu a boca para falar, mas Rohana disse primeiro: - Certamente não há
pressa. Eu esperava que você me desse tanto tempo quanto a Casa da Guilda. Três anos,
para saber o que você quer da vida.
Os olhos de Jaelle arderam.
- Não! Você me prometeu, Kindra, que se eu passasse um ano com meus parentes
Comyn, não haveria mais atrasos. E eu te dei um ano, como você pediu. - Ela acrescentou
com uma careta: - Você falou comigo, na época, algumas boas palavras sobre honra e o
valor da sua palavra.
Kindra suspirou. - Não estou tentando atrasar você, Jaelle. Mas prometi à sua parenta,
que é minha amiga, que ficarei aqui até o nascimento do filho dela. Você não pode prestar
o juramento aqui.
Jaelle parecia uma nuvem de tempestade. Ela disse: - Kindra!
- Eu sei, talvez eu não tivesse o direito de fazer tal promessa em vista da minha palavra
dada à você. – Kindra disse e Rohana interrompeu.
- A culpa é minha, Jaelle. Eu implorei a ela. Você vai me privar da companhia dela
enquanto eu estou tão longe da minha saúde habitual?
Jaelle olhou para o chão passando sob os pés do cavalo. Por fim, ela disse, sombria: -
Se é sua vontade, Rohana, sua reivindicação sobre Kindra é melhor. - Ela não acreditava
nisso e franziu a testa ainda mais sombria, pensando. Os adultos sempre tomavam suas
próprias decisões, sem a menor preocupação com o que os jovens queriam.
Rohana entendeu isso como se Jaelle tivesse dito tudo em voz alta, mas ela não podia
dizer isso. Enquanto subiam a cordilheira, ela puxou o pescoço de seu cavalo para se
aproximas de Jaelle e disse: - Prometo a você que não criarei mais nenhum obstáculo para
você fazer o Juramento, se esse ainda for o seu desejo.
- Você pode ter algum motivo para duvidar disso? - Jaelle perguntou: - Você acha que
sua vida é tão justa que eu gostaria de imitá-la?
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 82

- Ainda assim, eu não gostaria que você prestasse juramento muito jovem. – Kindra
disse. - Não faria mal demorar um pouco. Você pode querer se casar mais tarde.
Jaelle olhou-a bem nos olhos. - Por quê? Para que eu possa ter filhos primeiro e depois
abandoná-los, como você fez?
- Jaelle! - Rohana gritou, sentindo o recuo de dor de Kindra antes que as palavras
fossem totalmente ditas. - Como você pode...
Kindra deu um tapa forte em Jaelle na bochecha. Ela disse calmamente: - Insolente.
Certamente, é melhor evitar tal necessidade, mas não o fiz de bom grado e é melhor pensar
antes. Seria melhor, então, abandonar o Juramento se você mais tarde mudar de ideia e
quiser se casar?
- Isso acontecerá, parentes, quando o desfiladeiro de Scaravel correr com fogo em vez
de gelo. - Jaelle disse com raiva e olhou para os tocos de árvores de resina quebrados pelos
ventos do inverno passado.
- Bem, eles são recuperáveis ou devem ser replantados? - Kindra perguntou. - Eu não
conheço essas coisas.
- Agora que vi, posso decidir em casa. – Rohana disse, virando o cavalo na trilha. -
Nenhuma decisão deve ser tomada às pressas, certamente nenhuma como esta.
Elas voltaram silenciosamente em direção ao castelo abaixo.

Capítulo 04
Alguns dias depois, Kindra acordou cedo e se perguntou o que a havia despertado.
Jaelle, no quarto ao lado, estava dormindo. Kindra podia ouvir sua respiração calma através
da porta aberta. Do lado de fora, nos corredores, havia um clamor estridente...estridente e
profano. Era um incêndio, um ataque de bandidos? Do lado de fora das persianas, ela podia
ver a fraca luz rosa-acinzentada do amanhecer.
Kindra pôs os pés em botas felpudas, puxou uma túnica em volta dos ombros e saiu
para o corredor. Agora ela podia reconhecer a voz berrante como a de Dom Gabriel, rouca,
quase frenética, gritando e bastante incoerente. Kindra não pôde deixar de se perguntar se
ele já estava bêbado a essa hora indecorosa e se perguntou por um momento se ela
desapareceria com tato para não envergonhar Rohana ou se a presença de um estranho
poderia reprimir algum ato perigoso.
Dom Gabriel apareceu no final do corredor. O jovem Kyril parecia tentar conter o pai,
que brandia alguma coisa e gritava à plenos pulmões sobre um passeio à cavalo.
Kyril disse claramente: - Não devo aconselhá-lo a tentar, pai. Você pode descobrir que
não sou eu quem será chicoteado. Não é minha culpa se suas mulheres me acham mais
homem que você.
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Agora Kindra podia ver a garota Tessa, com pouca roupa, revelando uma camisola,
agarrando-se aos ombros de Kyril e tentando separar os dois homens. Rian veio e
habilmente no meio do grito arrancou seu pai de Kyril, na verdade ele conhecia algum
truque ou habilidade especial de luta livre, e empurrou seu pai, abruptamente quieto como
se tivesse ficado mudo, em uma das cadeiras colocadas a intervalos regulares no Salão.
Lady Rohana, semi-vestida, apareceu no corredor e seu rosto ficou tenso com o número de
pessoas que testemunhavam a cena. Ela disse suavemente: - Obrigada, Rian. Por favor, vá e
chame o assistente dele imediatamente, ou ele pode ficar doente. Gabriel, você vai voltar
para a cama agora? - Ela perguntou, curvando-se sobre o homem trêmulo. - Não, claro que
não. Tessa irá com você, não é, minha querida?
- Maldita putinha. - Gabriel murmurou. - Você ouviu? Deveria ser chicoteada e sou eu
quem devia fazer... - Ele fez uma tentativa tímida de se levantar, mas suas pernas não o
carregavam e ele afundou.
Kyril deu um passo à frente e colocou o braço em volta de Tessa. - Coloque uma mão
nela, pai, e eu juro que você será o único a sofrer!
Gabriel lutou para se levantar.
- Desgraçado! Deixe-me pegá-lo! Querer lutar? Levante seus punhos como um
homem! - Ele deu um pulo em Kyril, que lançou um golpe nele, mas Rohana, arremessando-
se entre eles, recebeu um forte golpe no lado da cabeça.
Kyril gritou em choque: - Mãe! - Ele estendeu a mão para impedi-la de cair.
A reação de Gabriel foi quase a mesma, mas ao ver Rohana tonta e meio consciente
nos braços do filho mais velho, ele cambaleou para trás e se deixou cair na cadeira,
murmurando: - Rohana? Rohana, você está bem?
- Com um pequeno agradecimento a você. - Kyril disse com raiva e abaixou a mãe
gentilmente no braço de um sofá velho.
Rian havia retornado com o criado de Dom Gabriel, que estava mexendo com Lady
Rohana para tentar aliviá-la. Ela levantou a cabeça e disse: - Kyril...
- Oh, sim, me culpe por tudo como sempre! - O jovem disse, abraçando Tessa. - Se eu
tivesse um lugar para levá-la, isso nunca teria acontecido.
Dom Gabriel murmurou: - Deveria expulsar...putinha...agora mesmo...
Kyril parecia quase heróico com o braço em volta da garota encolhida.
- Se ela for, pai, eu vou com ela. Guarde minhas palavras. Mantenha suas mãos longe
das minhas mulheres, entendeu?
Dom Gabriel ergueu o rosto inchado e arrogante, fez uma careta e sacudiu o punho, lu
tando para falar. Então seu corpo se torceu em um espasmo assustador e ele caiu, batendo
sua cabeça, retorceu e deitou seu corpo se contorcendo, inconsciente. Rohana saltou em su
a direção, horrorizada, mas seu criado sabia o que fazer. O homem forçou um lenço torcido
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na boca de Dom Gabriel para que ele não mordesse a língua, endireitou os membros um po
uco quando a convulsão cessou e se ajoelhou ao lado dele, murmurando palavras de calma
quando seus olhos se abriram. Kyril se encolheu quando seu pai o olhou sem ver.
- Está tudo bem, Kyril - Lady Rohana disse, cansada. - Quando ele voltar não se lembrar
á de nada.
- Olha aqui, mãe, você não pode me culpar por isso...
- Não inteiramente, mas você sabe que, quando ele está bebendo há dias, é provável q
ue isso aconteça e qualquer coisa pode provocar ema crise. - Ela acrescentou ao atendente:
- Chame um ou dois dos mordomos e leve-o para a cama dele. Ele não vai sair hoje nem am
anhã, provavelmente. E certifique-se de que, quando ele acordar, haja sopa ou caldo para e
le, mas nem uma gota de vinho, não importa o quão abusivo ele seja nem como ele se peça.
Se você não conseguir recusá-lo, diga-me e eu irei falar com ele.
Quando Dom Gabriel foi levado para o quarto, ela olhou para a família reunida no corr
edor.
- Suponho que não adianta dizer para voltarem para a cama e dormirem depois de tud
o isso. - Ela disse e foi até a filha. - Não chore, Elorie. Seu pai já esteve doente assim antes. E
le não vai morrer, por pior que pareça. Devemos simplesmente nos esforçar mais para impe
dir que ele beba tanto ou tenha muita excitação. - Ela se virou para Kyril que ainda estava c
om os braços em volta de Tessa. Ela disse à garota com uma voz clara e gelada: - Você não é
muito leal ao seu senhor, minha filha.
- Não, mãe. - Kyril protestou. - É o contrário. O pai sabia perfeitamente bem que Tessa
era minha garota. Ele a trouxe aqui para criar problemas, só isso. Talvez porque ele esperav
a que as pessoas pensassem que era filho dele! Mas como alguém poderia pensar que um b
ode velho como ele... - Ele interrompeu abruptamente, sua voz estrangulando-se na gargan
ta enquanto olhava para a mãe. Em seu vestido leve, estava perfeitamente claro que a gravi
dez de Rohana estava bem avançada. Ele olhou para o chão e murmurou. Jaelle riu, com a
mão pressionada sobre a boca para que apenas um som sufocado como um peido escapass
e. Kindra fez uma careta furiosa para ela e Jaelle olhou para o chão.
Rohana disse cansada: - Bem, a menina deve ser monitorada. Se a criança for uma Ard
ais, não importa qual de vocês seja o pai da pobre, Tessa certamente tem direito a abrigo e
proteção aqui e é da minha conta cuidar disso. Alida, você pode monitorá-la hoje?
Ela acenou para a leroni que disse: - Certamente. Gabriel já tinha falado comigo sobre
o filho dela...
- Então ele não sabia...e pensou... - Rohana disse meio sem fôlego. De repente, ela se l
evantou e Kindra a apoiou com um braço forte.
- Lady, isso é demais para você. - Ela disse ela com urgência.
- Se todos quiserem ir e se vestir, vou tomar café no corredor. - Rohana disse, trêmula.
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Jaelle disse com voz firme: - Não, tia, você está doente. Dom Gabriel está sendo cuidad
o por seus servos. Você deve voltar para cama, e Elorie e eu vamos tomar café da manhã. Ki
ndra, leve-a de volta para o quarto. Chame uma das mulheres e leve-a, não a deixe andar! T
ia, pelo amor do bebê...
- Ora, obrigada, Jaelle. - Rohana disse, surpresa, deixando-se cair nos braços de Kindra
enquanto a onda de mal estr ameaçava vencê-la. Ela nunca soube quem a carregou para se
u quarto e sua cama.
A luz havia aumentado consideravelmente quando ela acordou novamente e Kindra es
tava sentada ao lado da cama.
Jaelle estava abrindo a porta. Ela perguntou em um sussurro: - Como ela está, Kindra?
- Você não precisa sussurrar, Jaelle, estou acordada. - Rohana disse e ficou surpresa co
m o tom trêmulo de sua própria voz. - Está tudo bem lá embaixo?
- Sim. Todos tomaram café da manhã. Elorie disse aos cozinheiros para fazer pão de es
peciarias e ela enviou cidra quente para ser servida aos trabalhadores. Rian disse a todos qu
e o Mestre estava doente e o replantio de árvores de resina começaria ao meio-dia, ele viri
a a supervisionar.
- Rian é um bom menino. - Rohana disse suavemente.
- Sim. Ele conhece bem a propriedade e, se Kyril deixasse, poderia poupar muitos
problemas ao pai, - disse Jaelle - mas Kyril está com tanta inveja por Rian ter alguma
influência com o pai... - Ela encolheu os ombros. - Foi Kyril quem pegou um caldo e estava
alimentando Dom Gabriel. Foi, tenho certeza, uma visão tocante, mas ouvi Dom Gabriel
gritando, o mais alto que ele podia gritar, que não é muito alto agora, para tirar aquela
porcaria e trazer-lhe um pouco de vinho.
- Oh, querida.. - Rohana lutou para se sentar - devo ir até ele e explicar...
- Não mesmo. - Kindra disse com urgência. - Você deve ficar em sua cama, minha
senhora... Rohana... - ela se corrigiu - ou é provável que você aborte. E Dom Gabriel, pelo
menos se estivesse em sã consciência, gostaria muito menos disso do que de enfrentar os
mordomos que recusassem suas ordens.
Rohana suspirou e deitou de novo sabendo que o que Kindra disse era verdade.
Gabriel simplesmente teria que se resignar. Embora sempre ficasse irritado por dias após
uma dessas convulsões, ele as temia o suficiente para realmente obedecer um aviso. - Mas
diga a ele por que não vou fazer companhia a ele ao lado de sua cama. – Ela disse.
Jaelle disse: - Já enviei a curandeira com uma mensagem, tia. E chamei a parteira. Ela
saberá se há algum perigo.
Assim tranqüilizada, Rohana se acomodou embaixo das cobertas e ficou sonolenta,
sem acordar a manhã inteira. Ela mal notou a visita da parteira da propriedade, que a
examinou brevemente e disse que não corria o risco de abortar, mas um ou dois dias de
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descanso não podiam fazer nada além de algo bom e que a dama estava inclinada a
trabalhar demais para o seu próprio bem. Quando ela acordou no final da tarde, encontrou
Kindra sentada ao lado da cama, com a agulha piscando dentro e fora de um pedaço de
tecido.
- O que você está fazendo? Jaelle faz tão pouco desse tipo de trabalho que nunca o
associo à uma Amazônia Livre... Uma renunciante.
- Eu acho repousante. É um colarinho. – Kindra disse. - Raramente tenho tempo para o
lazer de me sentar e fazer trabalhos desse tipo. Se quiser, farei um bordado para um
vestido de bebê. Então, se seu filho for uma menina...
- Oh, não, - disse Rohana, - eu gostaria muito que fosse uma garota, mas é um filho, e
Gabriel pelo menos ficará satisfeito.
- Suponho que é o seu laran que lhe diz isso. – Kindra disse e Rohana pareceu
surpresa.
- Suponho que sim. Nunca pensei nisso... Não consigo imaginar como seria estar
grávida e não saber se espero um filho ou filha. Existem mulheres que realmente não
sabem?
- Oh, sim, - disse Kindra, - embora eu sempre soubesse, mas pensei que talvez fosse
minha fantasia. Pelo menos sempre estive certa.
Houve uma batida abafada na porta e Lady Alida entrou.
- Você está se sentindo melhor, Rohana? Minha querida, você não deve se preocupar
com nada, absolutamente nada. Eu consigo cuidar de tudo, absolutamente tudo. - Ela disse,
sorrindo, e Kindra pensou que o sorriso não era diferente de um gatinho rechonchudo que
caíra no pote de creme.
- Tenho certeza disso. - Rohana murmurou.
- Mas há algumas coisas que devem ser resolvidas antes. – Alida disse. - Kyril deve ser
mandado embora imediatamente. Essa hostilidade contra o pai é muito ruim para os dois.
Ele deveria ir para Nevarsin. Ele precisa de disciplina e um pouco de conhecimento. Não é
bom que ele esteja aqui quando você e Gabriel estão em desacordo. Ele é quase um
homem adulto.
- Eu sugeri isso há um ano, mas Gabriel não concordou. – Rohana disse e Alida deu um
sorriso de gato.
- Então talvez tenha havido algo de bom na altercação desta manhã. Gabriel ficará feliz
em tê-lo fora de casa, creio. E há algo mais. Eu monitorei a garota Tessa e é de fato o filho
de Kyril que ela está carregando. - Seu rosto assumiu uma ponta de repugnância
meticulosa. - Você realmente vai mantê-la sob este teto?
- Que escolha eu tenho? Se a criança é uma Ardais, mesmo um nedestro, tem o direito
de se abrigar sob o teto de seu pai. – Rohana disse.
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Alida fez uma careta. - Raramente me ressenti com o juramento do monitora. - Ela
disse. - Fiquei tentada a dizer à garota que ela estava mentindo, ela não era, é claro, e
expulsá-la. Admito que não tenho sua caridade, Rohana.
- Não estou descontente com o pensamento de um neto nedestro. – Rohana disse,
mas Alida balançou a cabeça.
- É apenas uma menina. Sinto muito se não era isso que você queria.
- Uma neta que eu darei boas-vindas, se ela for saudável e forte. – Rohana disse. - Em
casa, ela pode ser maltratada, passar fome ou ser abusada. Faça os arranjos, Alida:
encontre um quarto para ela e alguém para cuidar dela, e lembre-se, não a impeça de nada,
porque Kyril não estará aqui para ver. Algo mais?
- Sim. - Alida estava se movendo pela sala, ela se aproximou e sentou-se em uma
pequena cadeira ereta. - Rohana, você sabia que Rian é um telepata aberto, bidirecional e
provavelmente um empata total também? Só os deuses sabem onde ele conseguiu isso,
não é uma característica de Ardais.
- Oh, eu não tenho certeza disso. – Rohana disse. - Antes de ficar tão doente Gabriel
tinha um bom toque de empatia. Era o que eu mais amava nele. - Ela fez uma pausa para
considerar. - Então Rian também tem? Não é à toa que ele está tão dividido...
- Entre simpatia por você e pelo pai, - disse Alida sem rodeios, - o conflito está
rasgando-o em pedaços. Ele deveria estar em uma Torre.
- Eu esperava por um ou dois anos de educação para ele em Nevarsin primeiro... -
Rohana protestou.
- De maneira alguma. - Alida disse com firmeza. - Ele é muito sensível e escrupuloso.
Ele ouvia todas as palavras que eles diziam. Certamente você sabe que a maioria dos
meninos ouve apenas um pouco do que dizem os mais velhos. Kyril nunca deu ouvidos ao
que lhe diziam, mas Rian levava cada palavra ao seu coração e passaria a vida inteira
prisioneiro dos escrúpulos cristoforos. Não, Rohana. O único lugar seguro para ele é uma
Torre, e eu já estive nos revezamentos. Arilinn o levará. Não se preocupe. Eles o educarão
tão bem quanto em Nevarsin, tenha certeza disso.
Suponho que devo ficar agradecida, Rohana pensou, pois Alida não se poupou aos
problemas de meus filhos, mas sua ofensiva me enfurece. Ela realmente quer todas as
coisas em suas próprias mãos. Ela está se gabando positivamente disso enquanto estou
aqui doente. Ela organizou tudo tão bem ou melhor do que eu poderia ter feito.
Mas ela tentou barricar seus pensamentos de Alida e agradecer-lhe graciosamente.
- Você organizou tudo tão bem, cunhada, que agora terei todos os meus filhos longe
de mim, exceto Elorie, e ela está prometida. Serei uma velha ociosa.
- Ociosa? Você? - Kindra protestou. - Você ainda tem Valentine e Jaelle.
- Jaelle não esconde que está ansiosa por partir. – Rohana disse.
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Alida disse: - Isso não pode ser permitido, Kindra. Ela deve tomar o lugar da mãe em
uma Torre. Tenho certeza de que poderíamos encontrar uma que ficaria feliz em tê-la.
Rohana disse: - Você já viu algum sinal de que ela tem laran suficiente para isso? Eu
acho que ela ficaria infeliz em uma Torre.
Alida disse irritada: - Você sabe tão bem quanto eu que ela está bloqueando seu laran
e você sabe bem o porquê. Você me disse a história da morte da mãe dela, quando
Valentine nasceu. Ela não é a primeira jovem cujo laran ficou bloqueado com uma ligação
que não pôde evitar e não tinha maturidade suficiente para suportar... Um nascimento
traumático, muito próximo para ser protegido, ou a morte de alguém que amava.
Certamente, Rohana pensou, isso descreve a morte de Melora no deserto depois do
parto.
Alida continuou: - Mas ela não pode evitar isso para sempre. Algum dia voltará com
força total e ela deve ser treinada dentro de uma Torre para se preparar para esse dia. É
claro que sua paternidade, esse pai das Cidades Secas, é uma coisa contra ela, mas eles
podem ser persuadidos a ignorar isso. Certamente não em Arilinn. Eles são tão específicos
quanto à paternidade de Comyn, mas Rian deve ir lá. Estou certa de que uma das Torres
menores aceitará Jaelle. Margwenn em Thendara talvez, ou Leominda em Neskaya. Devo
tentar fazer esses arranjos? Eu ficaria feliz em tentar...
- Tenho certeza que sim, Alida, - disse Rohana, cansada - mas desta vez suas
habilidades em organizar as coisas não são necessárias. Prometi a Jaelle que se ela passasse
um ano aqui, não faria mais objeções se ela quisesse prestar juramento como renunciante.
A boca de Alida se abriu, seus olhos, muito grandes e azuis, encaravam Rohana com
um olhar incrédulo. - Eu sei que você disse isso quando ela era criança, - ela disse - mas
você realmente vai se apegar a isso? Mesmo que ela tenha laran?
- Prometi - disse Rohana - e minha palavra é única. Eu não minto. Nem para crianças.
- Mas... - Alida parecia mais inocente e confusa do que nunca - ...o Conselho...eles não
ficarão satisfeitos, Rohana. Existem tão poucas mulheres vivas em Aillard.
- Acho que posso convencer o Conselho. – Rohana disse.
Alida suspirou. Ela disse: - Em breve você terá oportunidade. Eles enviaram uma
mensagem para convocar Gabriel para a temporada e, como você ainda se chama Aillard e
não Ardais, e se senta no Conselho representando Aillard, isso também lhe interessa. Mas
agora que Jaelle é maior de idade e desde que você está grávida, eu tinha tanta certeza...
- Você tinha tanta certeza que disse a eles que a filha de Melora estaria pronta para
ocupar seu lugar no Conselho nesta temporada, não foi, Alida? - Rohana disse suavemente.
- Bem, você só precisa dizer a eles que estava mentindo ou fantasiando, não é?
Os olhos azuis de Alicia ardiam de indignação.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 89

- Mentindo? Como você ousa? Como eu poderia imaginar que você permitiria que a
filha de Melora faltasse com seu dever por um compromisso tão ilegal?
- Não é ilegal. – Rohana disse. - A Carta das Renunciantes permite que qualquer
mulher nascida livre busque Juramento entre elas. É verdade que houve momentos em que
pensei que as filhas do Comyn nasceram menos livres do que os filhos de qualquer
pequeno darkovano. Nunca pensei que você concordaria comigo, cunhada.
- Você está me fazendo de boba, Rohana!
- Não, minha querida, você está fazendo isso sozinha admiravelmente. Quando você
informou ao Conselho que a filha de Melora estava pronta para assumir seu lugar, você
selou um compromisso que não tinha direito, algo que realmente não era da sua conta.
Não pedi que você falasse isso ao Conselho e você simplesmente terá que se livrar de suas
próprias mentiras. - Rohana deitou-se no travesseiro e fechou os olhos, mas Kindra sentiu
que por trás do rosto cuidadosamente impassível, Rohana estava sorrindo.
- Rohana, - Alida implorou, - você não pode fazer isso. O Conselho não permitirá.
Rohana sentou-se bruscamente. - Você realmente acha que eles podem me parar?
- Certamente há outra maneira de...
- Oh, sim, com certeza, - Rohana disse cansada, - eu poderia pedir para fazer o
Juramento eu mesma.
Alida gritou. - Você não faria! Você está brincando!
- Nem um pouco, - Rohana disse - mas é verdade, eu provavelmente não faria isso.
Mas, para conseguir liberdade para Jaelle, posso dizer ao Conselho como Gabriel é um
guardião impróprio para qualquer jovem. Eu poderia muito bem testemunhar como ele me
humilhou e me insultou diante de toda a minha casa, e pediu para dissolver meu
casamento, confiná-lo como um lunático e perder sua posição no Conselho e seu lugar
como chefe e regente de Ardais. Se Kyril não fosse pior que o pai, eu certamente o faria.
- Oh, Rohana! - Alida estava chorando agora: - Pela honra dos Comyn! Isso seria um
escândalo nos Sete Domínios! Você não arrastaria a honra de Ardais na lama, não é?
- Estou cansada de ouvir você tagarelar sobre a honra de Ardais. – Rohana disse. - O
que você fez para preservá-la? Convém que Gabriel seja incompetente para gerenciar seus
próprios assuntos, enquanto isso significa que você pode gerenciá-los sem chance de que
ele possa proibi-la. Ocorreu-lhe que, se Gabriel continuar assim por muito mais tempo, ele
vai se embebedar até a morte ou causará um escândalo que não poderemos esconder
dentro dessas paredes? Ele é meu marido e eu o amei uma vez. Para seu próprio bem, ele
deve estar sujeito a alguém que possa impedi-lo de se matar. Eu não posso.
- Você acha que eu quero que ele morra? - Alida perguntou.
- Você certamente não está fazendo nada para evitar e parece-me que você está
lutando contra tudo o que posso fazer para evitá-lo. – Rohana disse. - Você não pode
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admitir, Alida, que estou fazendo o melhor pelo Domínio e até por Gabriel? Por mais que
você não goste de mim...
- Por favor, não diga isso. – Alida interrompeu. – Que eu não gosto de você... Eu te
admiro e respeito...
Rohana suspirou e fechou os olhos. Ela disse sem tentar responder a Alida: - Os
representantes do Conselho, eles estão aqui?
- Eles estão aguardando por uma audiência com Gabriel, ou com você, se ele não
puder se encontrar com eles.
Rohana disse cansada: - Talvez seja melhor vê-lo, para que não pensem que estou
apenas tentando evitar...
Alida protestou: - Mas é uma vergonha para eles realmente vê-lo assim!
- Eu não pedi que ele se embebedasse ou se empolgasse em uma briga. – Rohana
disse. - Eles devem vê-lo, Alida, ou acreditarão, como Kyril acredita, que estou tentando
dominar o controle do Domínio para meus propósitos. Mande chamar o coridom.
Ainda em protesto, Alida se foi e Kindra, que permaneceu em silêncio na sombra das
cortinas da cama, avançou para o lado dela e disse: - Você é capaz de lidar com tudo isso,
Rohana?
- Deve ser tratado de uma maneira ou de outra - disse Rohana - e não há como fazê-lo,
de outra forma. Mas você não deveria estar, ninguém deve ser submetido à minha família.
Kindra disse: - Você não deve ser submetida à sua família. – E sentiu uma onda de
ternura por Rohana. Se eu pudesse protegê-la contra todo esse agravamento.
Rohana ficou em silêncio com os olhos fechados, reunindo forças. Depois de um
tempo considerável, houve uma batida suave na porta e Rohana sentou-se, dizendo: -
Deixe-os entrar. Eu preciso falar com eles.
Três jovens entraram na sala e curvaram-se diante de Rohana. Todos os três exibiam
orgulhosamente os cabelos vermelhos flamejantes de Comyn. O líder fez uma reverência a
lady Rohana e disse: - Lady Ardais, sinto muito pela doença de seu senhor. É óbvio demais
que ele não estará apto a participar do Conselho nesta temporada. Como de costume, você
vai ocupar seu lugar no Conselho?
- Como você pode ver, este ano não posso, - disse Lady Rohana, - minha saúde me
proibirá nesta temporada. Se meu filho nascer saudável e forte, talvez eu chegue no final da
temporada.
- O que você acha de sua protegida, a filha de Melora Aillard? – O jovem perguntou. -
Podemos conversar com ela e perguntar se ela está pronta para prestar juramento ao
Conselho como herdeira de Aillard?
- Isso você deve combinar com Jaelle. – Rohana disse e quando eles se foram, ela
mandou buscar Jaelle que a encontrou de mau humor.
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- Jaelle, os representantes do Conselho estão aqui. Você deve ir ao sul com eles para o
Conselho e dizer que renuncia a seus direitos, através de Melora, ao Conselho Comyn.
Jaelle protestou. - Você me prometeu que eu poderia prestar o juramento...
- E assim será, se é isso que deseja, - disse Rohana - mas não posso renunciar aos seus
direitos por você. Você deve fazer isso sozinha.
- Mas como...
- Eles pedirão que você se apresente ao Conselho e perguntarão se você está pronta
para ocupar seu lugar no Conselho. – Kindra disse. - E então você deve responder 'não'. Isso
é tudo. - Ela adicionou: - Se você tem idade suficiente para fazer Juramento como
Renunciante, tem idade suficiente para renunciar ao privilégio do Conselho.
- Mas o que eu faço então?
- O que você quiser. – Kindra disse. - Se você escolher, pode ir imediatamente para a
Casa da Guilda e aguardar minha chegada para prestar juramento, se quiser.
Jaelle disse de mau humor: - Eu pensei que iríamos juntas para o sul.
- Bem, não podemos. - Kindra disse secamente. - Por enquanto, pelo menos, meu
dever está aqui, e o seu em Thendara, no Conselho.
- Oh, muito bem. - Jaelle disse com raiva. - Se isso aqui significa mais para você do que
vir me testemunhar, farei o Juramento. - Ela saiu da sala com raiva e Rohana a ouviu
conversando no corredor com os jovens enviados pelo Conselho.
- Ela nunca vai me perdoar, Kindra?
- Oh, certamente. Não há nada errado com ela, mas ela tem dezesseis anos. – Kindra
disse. - Ela está mais irritada agora comigo do que com você. Dê a ela um ano ou dois. Seria
ainda menos de um ano se ela estivesse envolvida na administração de um Domínio, mas
mesmo assim ela a perdoará. Ela até perdoará minha lealdade a você. Algum dia.
Apenas mais um confronto aconteceu durante o dia. Ao pôr do sol, Kyril pediu para
entrar no quarto e entrou silenciosamente, beijando a mão de sua mãe de maneira
respeitosa.
- Lamento vê-la doente, mãe. Como ouviu, o pai estava ansioso para se levantar e
atendê-la, mas o mordomo dele não o deixou sair da cama.
- Fico feliz que haja um homem sensato para cuidar dele. – Rohana disse. - O que você
quer, Kyril? Certamente você não veio só para me desejar boa saúde.
- Por que você acha que não, mãe? Você se cansou de tanto cuidar das
responsabilidades de meu pai. Por que você não o deixa cuidar de si mesmo?
- Isso de novo, Kyril?
- Você está fazendo do meu pai alguém sem identidade e uma piada perante todos os
Domínios.
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- Não, meu querido, os deuses fizeram isso. Poupei a pressão das decisões que ele não
é capaz de realizar e tento manter a honra dele intacta diante dos outros. - Depois de um
momento, ela disse: - Seria melhor se as plantações não fossem plantadas, os livros
genealógicos não fossem mantidos, a colheita da árvore de resina fosse colhida? Você é
capaz de assumir esse trabalho? Eu ficaria feliz em entregar tudo a você, se você pudesse
lidar com isso.
- Você zomba da minha ignorância, mãe? Isso também não foi minha culpa. Agora,
talvez, se eu for para Nevarsin, eu possa aprender a administrar essas coisas.
- Que os deuses o abençoem, Kyril. – Ela disse.
Ele ajoelhou-se pela bênção dela. Ela deu fervorosamente, colocando as mãos na
cabeça dele. Então ele se levantou e olhou para ela, franzindo a testa. - É verdade o que
Jaelle diz... Ela se tornará uma Amazona Livre?
- As leis permitem isso para qualquer mulher nascida livre, Kyril. A escolha é dela.
- Então essa é uma lei cruel e que não deveria ser permitida. – Kyril disse. - Ela deveria
se casar, se encontrássemos alguém que negligenciasse sua paternidade.
- Isso nos poupa o trabalho de encontrar um marido para ela. – Rohana disse. - Deixe
Kyril. Não há nada que você possa fazer sobre isso.
Kyril disse com raiva: - Eu tentei... - E parou, mas era óbvio para Rohana o que ele quis
dizer. Um profundo rubor se espalhou por seu rosto.
Ela disse ironicamente: - E você tentou fazê-la ver o que ela poderia estar perdendo se
ela recusasse o casamento? Você não pode perdoá-la por ela não ter caído diretamente em
seus braços? Que vergonha, Kyril. Isso foi uma quebra de hospitalidade. Ela é minha
adotiva. Você deveria tê-la respeitado, sob esse teto, como sua própria irmã! Mas ela vai
para o sul até Thendara hoje à noite, para que não haja danos. - Depois de um momento,
ela disse: - Kyril, nos separamos hoje à noite. Você vai para Nevarsin. Deixe-nos pelo menos
sem hostilidade. Deseje-me tudo de bom e diga adeus ao seu pai em paz.
Kyril se ajoelhou e beijou a mão de sua mãe novamente. Ele disse, moderado: - Devo-
lhe gratidão por cuidar de Tessa. Eu estava preocupado com ela. Você está me mandando
embora por causa dessa cena hoje de manhã, porque fiz meu pai parecer um tolo?
- Não, meu querida. - Rohana assegurou-lhe gentilmente. - Já é tempo de você ser
mandado embora para se preparar para seu lugar na vida e no Domínio. Você deveria ter
ido anos atrás. Agora vá e diga adeus ao seu pai e abstenha-se de brigar com ele, se puder.
Você partirá de madrugada.
- E Rian irá para uma Torre? – Kyril perguntou. – Fico feliz. Ele será um bom laranzu e
pelo menos não disputará comigo a herança do Domínio.
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- Certamente você não pensou que ele iria, Kyril. – Rohana disse enquanto colocava os
braços em volta do pescoço dele e o abraçava em despedida. - Adeus, meu querido filho.
Aprenda bem e aproveite ao máximo todas as oportunidades. Quando você voltar...
- Quando eu voltar, o Domínio não precisará do comando de uma mulher, - disse Kyril -
e você, mãe, poderá descansar e se limitar ao trabalho de uma mulher.
- Ficarei feliz com isso. - Rohana disse suavemente e, quando Kyril se foi, ela suspirou e
disse a Kindra: - E, no entanto, antes ele era o menino mais querido e doce. Como eu pude
errar tanto na educação dele pra que acabasse assim?
- Você não era a única força em sua educação. – Kindra disse. - O mundo continuará
como está, Rohana, não como você ou eu o queremos. E temo que isso também se aplique
aos nossos filhos. Aos seus e aos meus, minha senhora.

Capítulo 05
Ficou muito quieto em Ardais quando os jovens partiram. Kindra deu as boas-vindas ao
silêncio pelo bem de Rohana. Dom Gabriel estava de pé de novo, mais ou menos,
parecendo trêmulo e fraco, mas com a ajuda de seus comissários conseguiu até mostrar um
pouco de como supervisionar o replantio das árvores de resina.
Embora não estivesse mais confinada à cama, Rohana sentia-se incapaz de ficar muito
ao ar livre ou andar. Ela permitiu que o mordomo ajudasse Gabriel no replantio e fazia o
menor exercício necessário, andando nos pátios. Kindra sentiu isso confinante, mas não
queria deixar Rohana, nem afrontar Dom Gabriel, entrando em sua presença sem ser
solicitada. Quanto a Jaelle, Kindra sentia falta dela, mas sentia que a ausência de sua
presença aguda e crítica tornava a vida mais fácil para todos, especialmente para Rohana.
A única jovem remanescente, além de Elorie, a garota Tessa, manteve um perfil muito
baixo na ausência de Kyril, aparecendo raramente no salão. Rohana também ficou satisfeita
com o fato da garota se contentar em levá-la, comer em seu próprio quarto e não ressentir
o serviço extra. Não havia motivo para Gabriel lembrar sua humilhação nas mãos do filho
mais velho. Às vezes, a convite de Rohana, a garota se juntava às mulheres costurando no
conservatório. Até onde Kindra podia julgar, era uma coisinha inofensiva e superficial, sem
muito o que dizer ou fazer por si mesma. Ela não parecia sentir falta de Kyril e não fez
nenhum esforço para recuperar o interesse de Dom Gabriel.
Na maior parte do dia, a vida em Ardais continuava dessa maneira silenciosa. Certa
manhã, Kindra acordou ao som de uma grande tempestade de vento que rugia e uivava nos
cantos do edifício, abafando a maior parte das conversas humanas. Olhando por uma
janela, ela não viu nada além de acres de folhas, árvores curvando-se como coisas vivas
quase ao chão, quebrando rapidamente em estacas. Nos seus quase quarenta anos, Kindra
não vira clima assim nem remotamente. Ninguém se aventurava lá fora a não ser para
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cuidar dos animais, pois qualquer um, exceto os trabalhadores mais fortes da fazenda, seria
arrebentado. Kindra saiu na sacada e teve que segurar firme no corrimão para que não
fosse jogada contra a parede de pedra. O próprio ar parecia estalar com uma energia
estranha, embora não houvesse trovões. Rohana parecia preocupada e se recusou a se
aproximar da varanda.
- É o vento que assusta você? - Kindra perguntou. - Eu nunca soube de nada assim. Sou
uma mulher forte, mas fiquei quase impressionada. Você pode ter uma queda, o que pode
ser perigoso para você agora.
- Você acha que eu me importaria? - Rohana perguntou. - Estou tão cansada de ficar
inativa, de não fazer nada! Eu não ligo para o que acontece... - Então ela parou e pareceu
culpada. - Mas, durante a gravidez, meu filho é forte o suficiente para que eu possa sentir
sua luta para viver. Não posso pôr em perigo essa vida.
Kindra ficou horrorizada. Ela não tinha ideia de que tais pensamentos estavam
passando pela cabeça de Rohana. Ela se sentiu profundamente perturbada por ela.
- Não é o vento, - continuou Rohana - mas a energia no ar. Pode acender o fogo
quando as resinas estão tão secas. Tivemos pouca neve no inverno passado. A menos que
comece a chover antes do vento acabar, devemos enviar um relógio de fogo à primeira luz.
Kindra nunca tinha ouvido falar disso. Embora soubesse que o raio era a principal
causa de incêndio na floresta, essa estranha tempestade sem raios ou trovões visíveis era
nova para ela.
O sol não era visível. Ao vento rodopiante, nuvens de folhas, neve dos penhascos e
cascalho solto ocluíam e escondiam o sol. Um misterioso crepúsculo amarelo gradualmente
tomou conta do céu, que ao cair da noite ficou com uma estranha cor esverdeada. Não
havia pôr do sol visível. A luz simplesmente diminuiu em escuridão até desaparecer. Na
escuridão, o vento continuava uivando como um coro de demônios dementes. Quaisquer
luzes, tochas ou velas acesas eram apagadas quase imediatamente pelos ventos nos
corredores. Era difícil acender fogueiras nas principais lareiras, pois a sucção dos ventos
fortes nas chaminés soprava para trás e tentava apagá-las. Elorie embrulhou Valentine em
cobertores e o trouxe do berçário para se juntar aos outros no grande salão diante do fogo
fumegante que parecia perpetuamente à beira de apagar. Ele ficou irritado até Dom
Gabriel, para surpresa de Kindra, levar a criança ao colo diante da lareira enfumaçada e
cantarolar velhas baladas militares com uma voz trêmula para distrair a criança.
Elorie disse: - Deve ser terrível estar no meio disso, papai, você acha que Rian e Kyril já
estão seguros agora em Nevarsin ou onde quer que eles tenham ido?
- Ah, sim, com certeza eles já estarão em Nevarsin agora. – Gabriel disse, contando nos
dedos. - Que o diabo há com o fogo, Rohana?
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- O vento na chaminé continua o apagando. – Rohana disse. - Farei o meu melhor para
continuar a queimar. - Ela enfiou a mão no peito do vestido e tirou a matriz,
desembrulhando a pedra e olhando para ela. Lentamente, o fogo na lareira se acendeu com
uma luz azul mais forte e, por um tempo, queimou com uma luz quase constante. Rohana
colocou uma vela em um vidro à prova de vento, para que ela também queimasse forte e
limpa. Contra o clamor profano do vento, o fogo ardente da lareira dava uma curiosa ilusão
de que tudo estava normal. Mas, depois de um tempo, a sucção do vento puxou o fogo de
volta para a chaminé, e começou a bater inquieta em longas chamas. Atrás deles, as
tapeçarias nas paredes se estendiam como grandes velas com sons de batidas. Rohana
pensou que era como se todas as centenas de pessoas que viveram e morreram aqui
estivessem fluindo para fora nos grandes ventos gritantes, uivando e berrando como um
coro de banshees. No entanto, era apenas o vento. Os criados começaram a trazer o jantar.
Rohana ordenou que fosse levado perto do fogo e colocado em pequenas mesas e bancos
lá.
- Você fez bem. - Disse ela à cozinheira. - Os fogos na cozinha estão queimando
corretamente?
- Temos um fogão fechado. - Disse o cozinheiro principal. - E assim conseguimos assar
um pouco de carne para você e o mestre, minha senhora. Mas não há pão, porque o forno
não ajudou. Seu fogo aqui é o único fogo bom na casa. Talvez possamos usá-lo para
preparar uma chaleira com o chá.
Dom Gabriel disse com sua voz enferrujada: - Vamos tomar um vinho quente hoje?
- Sim, acho que hoje à noite será bom. – Rohana disse. Nesse clima, o que quer que o
contentasse era bom. Ele bebeu e deu alguns goles à criança em seu colo. Valentine tossiu
e engasgou, mas gozou da atenção e, quando Elorie protestou, Rohana balançou a cabeça. -
Isso o deixará com sono e ele dormirá melhor. – Ela disse. - Deixe-o fazer isso uma vez. - Ela
cortou as aves e eles comeram diante do fogo, equilibrando os pratos no colo.
Mas, apesar dos melhores esforços de Rohana, o fogo estava começando a afundar e
queimar com uma luz enfeitiçada, pálida e instável. Quando a escassa refeição foi feita,
Rohana deixou o fogo afundar e morrer. Era simplesmente muito esforço manter algo
parecido com uma chama natural.
- Leve Dom Gabriel para o quarto dele, Hallar. - Ela ordenou ao mordomo. Sua voz
dificilmente podia ser ouvida com vento que soprava dentro e fora, rugido do vento, o
bater de galhos e persianas contra a casa.
Quando o homem levantou Dom Gabriel, Valentine se agarrou a Rohana e disse: -
Parece que o castelo inteiro vai explodir. Tenho que dormir sozinho no berçário com o
vento uivando assim? Posso ter uma luz?
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- Uma luz não queimará esta noite, chiyu. - Elorie disse, pegando-o. - Você deve dormir
no meu quarto na cama de rodízio.
Dom Gabriel disse, irritado: - Por que não colocá-lo no berço e acabar com isso? Ele é
um garoto grande agora, não é, Val? Você não é um maricas, garoto? Você não precisa de
uma luz e uma babá, não é, grandalhão?
- Sim, eu preciso. - Val disse trêmulo, agarrando-se à saia de Elorie e ela o abraçou.
- É melhor do que deixá-lo morrer de medo sozinho, papai.
- Ah, bem, pelo menos ele não é meu filho. - Dom Gabriel rosnou. - Não me importo se
com o tipo de homem que ele será.
Rohana pensou: Melhor um tipo de homem sensível do que um homem como você,
mas ela não tinha mais certeza de que Gabriel poderia ler o pensamento. Houve um tempo
em que teria ficado imediatamente claro para ele. De qualquer forma, isso não importava.
Ela desejou a Gabriel uma boa noite em voz alta e, com o braço entre o de Kindra, começou
pelos corredores escuros e lamentantes em direção ao seu próprio quarto.
Suas mulheres estavam aglomeradas no canto do quarto, gemendo de terror, seus
gemidos quase abafados pelo vento forte. Quando ela entrou na câmara, uma veneziana se
soltou e bateu ao redor da sala, esmagada em gravetos e balançando por toda parte. Uma
das ripas atingiu Kindra e ela não conseguiu conter um grito de dor. As mulheres também
gritaram. Kindra disse bruscamente: - É apenas um pedaço de madeira!
- Mas isso cortou sua testa, Kindra. – Rohana disse e mergulhou uma toalha em uma
jarra de água que estava em sua cômoda, limpando o sangue que escorria por sua testa. As
mulheres lutaram para fechar a persiana novamente. A batida soava como uma coisa com
garras tentando abrir caminho, mas algo na própria persiana havia quebrado, a impedindo
de fechar totalemente e manter o vento furioso fora da sala.
- Você não pode dormir aqui assim. – Kindra disse, pois a sala estava cheia com a carga
sufocante de poeira, neve e folhas mortas carregadas no vendaval uivante, e a porta do
corredor havia se soltado e estava batendo. - Estou feliz por não ser a única a varrer todos
esses quartos amanhã.
- O quarto de Jaelle está protegido. – Rohana disse e levou Kindra pelo corredor em
direção a ele, entrando na pequena sala fechada em um canto protegido do edifício, com
alívio. Era mais silencioso ali e as mulheres podiam ouvir suas próprias vozes mais
facilmente. Enquanto Kindra ajudava Rohana em suas coisas noturnas, ela sabia que
Rohana ainda estava tensa, esforçando-se para ouvir o vento, para saber sobre o pior.
- Sou tão tola quanto Valentine, - disse Rohana - com medo de ficar sozinha onde uma
vela não acende e não tenho certeza de que as paredes não cairão ao meu redor.
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- Eu vou ficar com você. – Kindra disse e deslizou na cama ao lado dela. As mulheres se
agarraram no escuro, ouvindo as batidas das persianas, lutando com os galhos contra as
paredes e quebrando as poucas janelas de vidro do prédio.
Depois de uma dessas explosões de barulho, Rohana, tensa na escuridão, murmurou: -
Gabriel ficará fora de si. Temos tão poucas janelas e o vidro é tão caro e difícil de instalar.
Há anos que ele tenta tornar o local impermeável, mas uma tempestade como essa... - Ela
ficou em silêncio. – A alguns meses atrás, eu teria ido até ele e tentado acalmá-lo, mas
agora ele zombaria de mim ou poderia haver alguém de quem ele zombaria para mim... Eu
ficaria agradecida se aquela garota Tessa fosse ele e confortá-lo... - Sua voz ficou em
silêncio.
- Calma, - disse Kindra - você deve dormir.
- Sim, eu devo... Depois de tudo isso, haverá muito trabalho para todos amanhã. –
Rohana disse, fechando os olhos e se aconchegando contra Kindra. Um som distante a fez
pensar que outra estrutura havia se soltado, lutando loucamente contra a tempestade.
Então houve um som repentino de pancada, uma corrida contra as persianas.
- Chuva. – Rohana disse. - Com esse vento, está sendo jogada contra as paredes como
ondas. Mas pelo menos agora não precisamos temer o fogo antes do amanhecer.
O som era como um rio cheio, mas Rohana relaxou. Kindra a abraçou, preocupada com
ela, sabendo que era como se o peso de todo o Domínio estivesse sobre esse corpo único,
que parecia tão frágil e surpreendentemente forte. E todo o peso está nela. Agora, quando
parece que o mundo inteiro está desmoronando em vento e caos, ela carrega tudo sobre
seus ombros, ou em seu corpo como o peso de seu filho. Kindra abraçou Rohana, desejando
poder aliviar o fardo da amiga. É demais para uma mulher carregar. Eu sempre pensei que
as esposas dos homens ricos eram ociosas, deixando que eles determinassem o que
poderiam fazer, mas ela é tão poderosa e autodeterminada quanto qualquer Renunciante.
O Domínio não poderia ser melhor administrado por cinco homens fortes! Ela pensou,
segurando Rohana com ternura nos braços, mas não era forte, era uma mulher frágil que
nem estava em boa saúde.
Gradualmente, o som distante do vento estridente parecia fundido em uma canção,
uma canção de ninar em que ela embalou a mulher em seus braços. E, finalmente, sabendo
que Rohana dormia, ela também dormiu, apesar do grande uivo do vento.

Capítulo 06
Rohana acordou em silêncio. Algum tempo antes do nascer do sol, o vento havia
cessado. Ela ainda estava aninhada nos braços de Kindra e, por um momento, sentiu-se um
pouco constrangida. Eu dormi agarrada a ela como uma criança.
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Isso a lembrou um pouco dos dias em que ela ainda acreditava que Gabriel era forte e
tinha todas as coisas sob seu controle. Ela se sentia tão segura então e tinha certeza de
que, o que quer que estivesse além de suas forças, poderia pedir ajuda a Gabriel. Agora,
por muitos anos, Gabriel não apenas não podia ajudá-la, mas também não era forte o
suficiente para carregar seus próprios fardos e ela devia cuidar do bem-estar dele como se
ele fosse uma das crianças. Ela agradeceu aos deuses por ter sido sempre forte o suficiente
para cuidar de si mesma e de Gabriel, mas tinha sido doce sentir a força de Gabriel e
desfrutar de sua proteção...e seu amor. Fazia tanto tempo que não havia forças nas quais
ela pudesse se apoiar.
Amor. Ela tinha esquecido que realmente que houvera um tempo em que ela amara
Gabriel e quando ele a amara. Ela se apegou a isso muito tempo depois que seu amor por
ela se foi, mesmo depois que seu próprio amor se extinguiu, morrendo de fome pela falta
de resposta. Aquela ilusão de que, se ao menos ela pudesse se apegar ao próprio amor, ele
poderia voltar a amá-la um dia.
O amor sempre foi uma ilusão, então? Ela supôs que Gabriel a amava à sua maneira,
um carinho nascido do hábito, desde que ela não exigisse nada, não pedisse nada a ele. Ela
ainda se importava com ele, lembrando o quem ele tinha sido uma vez. Amo minha própria
lembrança da ilusão que antes era o amor de Gabriel, ela pensou e começou a virar-se na
cama, sabendo que deveria despertar os servos. Haveria muito o que arrumar depois da
grande tempestade.
Então ela congelou quando, mais acima, na grande torre, um sino começou a tocar
com insistente regularidade, em grupos de três: clang, clang, clang...clang, clang, clang. Ela
sentou-se, sua respiração vindo rapidamente.
Ao lado dela, Kindra murmurou: - O que é isso?
- É a campainha do relógio de fogo, - disse Rohana - em algum lugar da propriedade,
um fogo foi avistado. Provavelmente durante o grande vento, um incêndio iniciou e
aumentou sem ser visto, protegido demais para ser apagado pela chuva. Ainda não é o sinal
de perigo. - Ela colocou os pés no chão e sentou-se, firmando-se com as mãos enquanto a
sala parecia balançar em círculos lentos em volta dela.
Ela conseguiu se levantar, empurrando com os pés os chinelos, os dedos dos pés nus
evitando o frio chão de pedra. Kindra levantou-se e encontrou sua túnica, depois seguiu
Rohana em direção ao corredor. O chão estava coberto de poeira, folhas mortas, pequenos
nós de folhagem, cascalho em pequenas pilhas. Que projeto de limpeza para alguém! A
campainha do relógio de fogo continuava seu lento padrão de atenção.
O grande salão estava cheio de pessoas reunidas ao som da campainha. Uma reunião
obrigatória, com o objetivo de lidar com o maior perigo isolado nas montanhas ou, nesse
caso, em qualquer lugar dos Domínios: o fogo. O pequeno Valentine, como todas as
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crianças enlouquecidas pela quebra na rotina, estava correndo, gritando. Rohana deu um
ou dois passos para capturá-lo, mas não conseguiu. Ela se sentou e disse com firmeza: -
Venha aqui, Val.
Ele parou apreensivo a poucos passos dela. Ela estendeu a mão, agarrou a borda da
camisa e acenou para Elorie.
- Encontre a ama Morna e diga a ela que sua única responsabilidade neste dia é
manter Val em segurança acima das escadas, fora de perigo e longe de debaixo dos pés das
pessoas.
- Eu poderia cuidar dele, mãe. - Elorie ofereceu.
- Tenho certeza que você pode, mas tenho outras coisas para você fazer hoje. Você
deve ser minha vice, Lori. Primeiro... - Rohana encontrou um assento em um banco e se
estabeleceu. Uma das mulheres trouxe uma xícara de chá para ela enquanto a velha babá
era encontrada e Val, gritando de raiva por ter perdido toda a emoção, foi levado embora.
– Agora... - Ela guiou Elorie, tentando lembrar tudo o que deveria ser feito - ...vá ao
cozinheiro chefe e diga-lhe que, se os fornos puderem ser acesos, devemos ter pelo menos
uma dúzia de pães e muitos bolos de nozes. Então, se alguém estiver massacrando,
devemos ter pelo menos três presuntos de cerefólio assados para os trabalhadores e ela
deve matar três aves e colocá-las para fazer sopa. E você deve ir ao porão oeste e trazer os
barris. Peça à dois dos comissários para carregá-los, você não conseguirá levantar um
barril... E duas mulheres para ajudar a desempacotar os barris. Cada um terá cem tigelas e
canecas de barro. E pelo menos quatro dúzias de pares de cobertores... E três ou quatro
sacos de feijão e cogumelos secos, e cevada... para o acampamento... e Hallert pegará o
grande carrinho para levar os homens até a cordilheira.
Elorie correu para as cozinhas e Rohana acenou para um dos comissários.
- Um de vocês deve ficar perto do mestre hoje. – Ela disse, dirigindo-se a Hallert. -
Você ou Darren. Tente evitar que ele fique muito excitado. - Não havia como ela impedir
que ele bebesse, quando a lei e os costumes exigiam para cada homem nas linhas de fogo
seu preenchimento de vinho ou cerveja, mas, se Gabriel caísse nas linhas de fogo como ele
havia feito antes, ou tivesse uma convulsão, ela só poderia providenciar para que isso não
atrapalhasse o sério assunto do combate a incêndios.
- Vou cuidar do mestre. – Hallert prometeu. Ele estava com a família desde que o pai
de Dom Gabriel morrera.
- Obrigada. - Rohana disse fervorosamente. Do lado de fora, ouviram o velho carrinho
roncar até a porta e os homens e mulheres mais jovens e mais saudáveis entraram. Rohana
estava prestes a se juntar a eles quando Lady Alida entrou na frente dela.
- Você sabe que uma carona naquele carrinho sacudido seria realmente perigosa
agora. - Ela repreendeu em voz baixa.
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Rohana suspirou. Ela já sabia disso. Sentia-se pesada e doente, constantemente e


dolorosamente consciente do peso da gravidez, frenética de medo pelo filho, mas
consciente do dever e da lealdade divididos.
- Que outra opção existe, Alida? Devemos deixar o cume queimar?
Kindra disse: - Se você puder confiar em mim para isso, Rohana, este não seria o
primeiro campo de fogo que enfrentei.
Rohana sentiu uma sensação avassaladora de calor e gratidão. Kindra estava lá, sim,
capaz, confiável e plenamente capaz de fazer o que ela, Rohana, não era forte o suficiente
para fazer.
- Oh, você poderia, Kindra? Eu ficaria muito agradecida, - ela disse com um calor
avassalador - então deixarei tudo em suas mãos.
- De fato, eu irei. – Kindra disse, pegando as mãos de Rohana nas dela e colocando-as
firmemente de volta em uma cadeira. - Tudo ficará bem, você verá. Alcançaremos o fogo
rapidamente e não vai sair de controle.
Alida fez uma careta: - Eles não vão obedecer a uma Amazona. - Ela apontou para
Rohana. - Ela não é uma Ardais.
- Então eles devem obedecê-la como eles me obedeceriam. - Rohana disse: - Ou à
você. Você deverá cuidar disso, Alida. É isso ou eu devo ir, não importa o risco.
Alida, ela sabia, poderia sabotar os esforços de Kindra por puro rancor. Ela não
conhecia Kindra o suficiente para confiar nela simplesmente pelo bem do Domínio.
- Garanta-me, Alida... Pelo bem do Domínio. Gabriel realmente não é forte o suficiente
para fazer isso, e agora eu também não sou. Não tente me dizer que você pode comandar
uma grupo de bombeiros se realmente não puder.
- Não, certamente não. Como eu teria aprendido essa habilidade? - Alida disse
arrogantemente.
- Da mesma maneira que eu fiz, - disse Rohana - mas felizmente, para a segurança de
Ardais hoje, Kindra n’ha Mhari está disposta a assumir o controle. Se você puder apoiá-la.
Alida olhou com raiva nos olhos e Rohana sabia que era estranho para ela submeter-se
à autoridade da estranha Amazona. Mas finalmente Alida disse: - Pelo bem do Domínio. Eu
prometo. - Rohana ouviu o que ela não se atreveu a dizer em voz alta: Algum dia, Rohana,
você pagará por tudo isso.
- Sem dúvida eu vou. – Ela disse em voz alta. - Quando esse dia chegar, Alida, me avise.
Por enquanto, faço o que devo, não mais. Prometa-me apoiá-la, pela honra de Ardais.
- Eu prometo. – Alida disse e acrescentou para Kindra: - Mestra, qualquer um que não
te obedecer como se fosse eu, será tratado como traidor.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 101

Kindra disse solenemente: - Obrigada, lady. - Ela subiu no carrinho, avançando


agilmente entre os animais e ocupou seu lugar na frente dos trabalhadores. O motorista
agarrou-se aos animais e o carrinho saiu pesadamente do quintal.
Alida, ao lado de Rohana, disse com um olhar de reprovação: - Como é que você não
consegue ver a razão quando eu te pedi, mas para aquela Amazona você imediatamente
percebeu o que eu estava dizendo...
Rohana disse, com mais gentileza do que pretendia: - Porque conheço Kindra há muito
tempo e sei como ela é eficiente. Tudo o que ela fizer será tão bem feito quanto eu faria.
Ela entrou na casa e começou a conversar com os cozinheiros. Em mais uma hora ou
duas, o carrinho menor, carregado de comida e com fornos de campo, subia em direção a
um ponto plano próximo ao campo de fogo, do qual os homens seriam alimentados e
cuidados durante a emergência.
E então não havia realmente nada a fazer, exceto, de alguma maneira, ocupar seu
tempo, costurando roupas de bebê, um passatempo negligenciado. Em todas as suas
gestações anteriores, ela teria um enxoval completo para a possível chegada antecipada,
pelo menos um mês antes. Suas mulheres, as poucas que não foram às linhas de fogo por
causa da idade ou da inexperiência, ficaram satisfeitas ao vê-la finalmente providenciar algo
para o filho que viria e mais do que felizes em ajudá-la. Ao meio-dia havia uma cesta cheia
de coisas feitas, pequenos cobertores, fraldas e até vários vestidos e saias bordadas salvas
das outras crianças. A mente de Rohana, por mais que ela dissimulasse, não estava
inteiramente focada no que estava fazendo, e ela parou para dizer: - Ah, eu tinha medo
disso. - Ela correu desajeitadamente para o pátio. Não era o carrinho pequeno, como ela
pensara com o som, mas um carrinho de mão, no qual o mordomo carregara o inconsciente
Dom Gabriel, com o único veículo disponível e o trouxera da cordilheira. Rohana agradeceu
ao homem e, com ajuda de Alida, se dedicou a aplicar restaurações e levar o homem
doente para sua cama. Ela mostrou a ele, com palavras suaves, as roupas de bebê e os
cobertores que fizera, sabendo que lhe agradaria pensar na criança. Afinal, era ele quem a
queria.
Por fim, Gabriel adormeceu e Rohana foi para o próprio quarto e para cama. Ela
dormiu mal, mexendo e virando. Duas vezes sonhou que havia entrado em trabalho de
parto nas linhas de fogo e acordou chorando de medo. Sabia que levaria mais do que alguns
dias, talvez até a próxima lua cheia. Os bebês tendiam a nascer mais prontamente na maior
lua, Liriel, e Liriel começava a mostrar seu novo crescente mais estreito no céu noturno.
Ela não estava com pressa. Ela temia o acontecimento, com a família em tal
desordem... Os meninos se afastando e ainda não haviam se recuperado da grande
tempestade. Além disso, embora ela não tivesse contado seu tempo com muita precisão,
parecia cedo demais. Ela sentiu que seu filho ainda não estava pronto para nascer forte e
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 102

saudável. Mas os sonhos constantes, ela sabia disso por experiência própria, significavam
que o laran do feto estava se intrometendo por conta própria. Se ela deveria ter um filho,
queria um que fosse vigoroso e forte, não um prematuro débil que precisaria de muitos
cuidados. O que a lembrou que, a menos que ela quisesse amamentar ela mesma, e ela não
queria, ela deveria consultar a serva ou a parteira da propriedade sobre outra mulher
grávida que teria um filho na mesma época e poderia amamentar o seu também. Se devo ir
ao Conselho, não posso me incomodar em alimentar um bebê. Deve ser enviado a uma
ama. Então, ela decidiu perguntar depois sobre uma ama-de-leite saudável para poder
cumprir seu dever com o Conselho Comyn, sem danos ou negligência, mesmo para esse
filho indesejado que chegava tão tarde em sua vida.
Perdoe-me, criança, por não te querer. Não é você que eu não quero. É o problema de
ter qualquer criança da minha idade. Ela se perguntou se alguém entenderia isso. Outras
mulheres com quem conversou pareciam apenas sentir que era excepcionalmente
abençoada, tendo um filho após a idade normal para essas coisas. Mas elas realmente se
sentiam assim ou era apenas isso que as mulheres deveriam sentir? Kindra falara de outras
mulheres que pareciam sempre satisfeitas com a própria sorte. Eu sou simplesmente, como
Jaelle, constantemente rebelde e questionadora? Eu me julgara completamente resignada...
As Renunciantes são realmente tão perigosas para as instituições de mulheres felizes e
casadas quanto Gabriel e Alida pensam que são? Certamente Kindra era a única pessoa que
parecia entender como ela se sentia. E realmente isso poderia ser perigoso, ela pensou, sem
se preocupar em se perguntar por quê.
Na tarde do dia seguinte, eles ainda podiam sentir o cheiro da fumaça. Gabriel estava
de pé, mas parecia exausto. A maior parte do dia, Gabriel se contentava em ficar deitado
em uma varanda com vista para o cume, onde eles podiam sentir o cheiro, ver a fumaça e o
fogo distante. Mas ele estava muito lânguido e cansado para se preocupar. Rohana fez o
suficiente por ambos e descobriu que grande parte de sua preocupação era com Kindra. A
mulher se exporia ao perigo ou teria senso suficiente para se proteger do pior?

Capítulo 07
O sol não era visível, mas o céu estava escurecendo e a noite estava evidentemente
caindo. Rohana estremeceu ereta como se espetada dolorosamente com uma agulha. Em
algum lugar dentro de sua mente, um sinal explodiu em brilho, um aviso. Mas com o laran
de quem ela fez contato sem saber? Um padrão de fogo, medo.
Não havia ninguém na linha de fogo com laran suficiente para alcançá-la, exceto Alida.
Alida, que era uma leronis e que havia passado, como Rohana, vários anos em uma Torre
em treinamento. Mas a falta geral de simpatia entre ela e Alida impediria uma comunicação
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casual ou acidental desse tipo. Desta vez, era óbvio que Alida, por algum motivo,
deliberadamente a procurava.
Advertida por esse sinal silencioso, Rohana afastou sua mente do que estava
acontecendo ao seu redor e concentrou-se na joia da matriz dentro de seu vestido.
O que houve? Alida, é você?
Você deve vir, Rohana. O vento está subindo novamente. Precisamos fazer chover ou,
pelo menos, impedir que o vento erga uma tempestade de fogo, o que provavelmente
acontecerá.
Um pavor repentino tomou conta de Rohana, um aviso de claro perigo. Nesta fase da
gravidez não era seguro usar laran, exceto da maneira mais simples e mínima. No entanto,
se a alternativa fosse uma tempestade de fogo que poderia devastar todo o Domínio Ardais
e ameaçar todas as vidas no campo, que alternativa ela tinha?
Eu não posso sair para as linhas de fogo. Não posso andar agora e não devo deixar Gab
riel. Você terá que voltar aqui e faremos o melhor que pudermos.
Uma silenciosa sensação de aquiescência e o contato foi encerrado. Rohana ficou em s
ilêncio com os olhos fechados. Gabriel, com pouco laran para saber exatamente o que esta
va acontecendo, mas sensível demais para deixar tudo passar despercebido, virou-se para e
la e perguntou gentilmente: - Algo errado, Rohana?
- Sinal de laran das linhas de fogo. - Ela murmurou, contente com a oportunidade de fa
lar sobre o que sentia. - Precisamos desesperadamente de chuva e não houve oportunidade
de reunir um círculo de laran. Alida está voltando e nós tentaremos fazer o que pudermos,
pelo menos para impedir que o vento suba novamente.
Ele estava deitado sem se mexer, exceto pelos olhos, exausto e lânguido demais para t
er muito a dizer. Por fim, ele murmurou: - É nessas horas, Rohana, que me arrependo de ter
feito tão pouco para aprender a usar meu laran. Não estou totalmente sem ele...
- Eu sei disso, - ela disse suavemente, - mas sua saúde nunca foi realmente forte o sufic
iente para permitir que você fizesse pleno uso do talento.
- Ainda assim, eu gostaria de ter sido capaz de fazer mais. - Ele insistiu. - Agora eu não
seria tão completamente inútil para o Domínio. Com o fogo se aproximando, sinto-me tão i
mpotente, mais impotente do que qualquer mulher, pois são vocês que devem fazer o que
podem para salvar o Domínio e eu estou aqui inútil, ou pior do que inútil, apenas outro cor
po a ser protegido. Talvez tenhamos sido rápidos demais em mandar os meninos embora, R
ohana. Os dois têm laran.
- Não seria bom mantê-los aqui, Gabriel. Eu não poderia trabalhar em um círculo de lar
an com meus próprios filhos.
- Não? Por que não?
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- Existem muitas razões. O fato é que, por uma razão e outra, isso não é feito. - Rohan
a não quis entrar nas muitas razões pelas quais os pais e os filhos crescidos eram impedidos
de trabalhar juntos em círculos matriciais. - Não há razão para se preocupar com isso agora,
meu querido. - Ela disse pacificamente. - Alida e eu faremos o que pudermos. Ninguém vivo
pode fazer mais. E tente não se preocupar ou seus medos e preocupações vão entupir o círc
ulo. - Vagamente, ela se perguntou se deveria garantir que ele estivesse bêbado ou drogad
o antes de começarem o que quer que eles tivessem que fazer. Agora, no fundo de sua men
te, estava consciente de que um cavalo estava sendo montado. Alida era geralmente uma c
avaleira cuidadosa, se não excessivamente cautelosa. Agora ela estava com medo e corrend
o pelo castelo Ardais a uma velocidade quase perigosa. Rohana sentiu uma explosão de me
do. Se isso pôde anular a cautela de Alida, o perigo devia ser realmente grande. Ela resistiu
à tentação de olhar para o fogo que avançava através dos olhos de Alida. Isso só poderia ex
agerar seus próprios medos e agora ela devia ficar calma e confiante.
Agora ela podia ouvir os cascos do cavaleiro no pátio abaixo da varanda onde ela estav
a sentada. Ela deixou o trabalho de lado, olhando com desdém para o bordado e agradecen
do por ter algo mais a dar a seu Domínio e às pessoas. Como Gabriel devia se sentir em um
momento como este? Bem, ela sabia como ele se sentia. Desamparado, dissera ele, desam
parado como uma mulher. Mas sou mulher e não sou impotente. Suponho que seja apenas
coisa de Gabriel. Ele associa o desamparo às mulheres, apesar de eu, uma mulher, ser a pes
soa mais forte em sua vida.
Alida estava desmontando no tribunal e, para alívio de Rohana, Kindra estava com ela.
- Vamos nos preparar rapidamente. - Ela disse e as mulheres foram ao conservatório. R
ohana e Alida sentaram-se em duas cadeiras frente a frente, joelho a joelho.
- Não posso fazer nada para ajudar? - Kindra perguntou, preocupada.
- Temo que não muito, mas sua boa vontade não pode nos fazer mal. - Rohana disse.
Alida acrescentou, com tato instintivo, por uma vez saber como Rohana se sentia: - Se
nte-se aqui conosco e garanta que não sejamos perturbadas. Ninguém deve nos atrapalhar.
- Alida tinha a matriz na mão. - Não olhe para a pedra. - Ela avisou à Kindra com um gesto rá
pido. - Você não é treinada e isso pode deixá-la seriamente desorientado ou doente.
Desamparada, como o resto de nós, mas, ao contrário de nós, sem saber disso.
Rohana, sabendo que estava atrasando, rapidamente empurrou o campo de sua atenç
ão concentrada para dentro da pedra, moveu-se para cima e para fora para examinar, como
se de uma grande altura, o fogo feroz na cordilheira acima do castelo. Com seus sentidos en
ormemente expandidos, ela podia ver as correntes de ar que alimentavam o fogo... Elas par
eciam cavalgar sobre ele, famintas por alimentar o turbilhão de correntes de fogo. Por um i
nstante, a alegria varreu-a, quase levando-a a se tornar parte dela, mas, consciente do vínc
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ulo com Alida mantendo-a presa à terra, ela se controlou, procurando medidas contra a for
ça inexorável do fogo.
Se houvesse umidade suficiente nessas nuvens para trazer fortes chuvas...
Mas não havia. As nuvens estavam lá, carregadas de umidade suficiente para a chuva,
mas não o suficiente para afogar a ameaçadora tempestade de fogo. Ela sentiu Alida estend
endo a mão, dando passos rápidos pelo Mundo Superior. Era como se as mãos apertassem
as delas, as asas batessem embaixo delas enquanto voavam.
Como podemos ajudá-las, irmãs?
Chuva. É fogo que enfrentamos. Nos dê nuvens para chuva.
As vozes sem rosto, Rohana sentiu que eram da Torre Tramontana, rapidamente as ag
arraram, exibindo as montanhas abaixo como se estivessem em uma imagem gigante. Apen
as algumas nuvens escassas e, quando empurradas em direção a Ardais, não eram suficient
es nesta estação para nada além de aumentar o vento do movimento imposto, de modo qu
e o melhor que podiam fazer era pior do que nenhuma ajuda.
As vozes de Tramontana se foram e Rohana, com um sentimento de desamparo, sabia
que não havia nada a ver com o fogo, mas deixá-lo queimar como desejava, descendo a cor
dilheira em direção ao castelo, onde seria preso pelo trecho de arados profundos campos e
pela pedra do próprio castelo.
Ela abriu os olhos e recostou-se exausta nas almofadas da cadeira.
- Nunca me senti tão desamparada. – Alida disse.
- Não é sua culpa, Alida, é apenas que, às vezes, não há nada que possa ser feito. - De
repente, ela foi tomada por uma onda de fraqueza, uma dor persistente lembrando-lhe que
o trabalho matricial tão tarde na gravidez poderia gerar trabalho de parto prematuro. Com
grande amargura, pensou ter arriscado o último filho, e sem a justificativa de sucesso no
que tentara fazer, sem a salvação de Ardais. Curvada, ofegando de dor, ela disse: - Alida,
avise-os, o fogo virá assim, eles podem ter que lutar nas portas da casa... - E sentiu uma
onda de escuridão varrer sobre ela. Quando ela acordou, estava deitada em sua própria
cama em seu próprio quarto, e Kindra estava ao seu lado.
- O fogo...
- Lady Alida o impediu com mantas e tapetes encharcados. Eu não sabia o quão forte
ela poderia ser em uma crise. – Kindra disse.
Rohana disse irreverentemente: - Eu não queria lhe dar tempo para desenvolver suas
forças aqui, mas agora estou feliz que ela tenha feito. - Ela começou a se levantar, mas foi
contida pela dor, e Kindra a segurou.
- Suas mulheres estarão com você em alguns minutos. Dom Gabriel ficou perturbado e
teve que ser levado para seus aposentos e dormir também. – Kindra disse.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 106

Rohana ficou quieta, sentindo as forças poderosas trabalhando dentro de seu corpo.
Estava fora de suas mãos agora, inevitável, e ela sentiu o terror irresistível de sempre.
Agora ela não podia escapar. Ela agarrou-se às mãos de Kindra quase febrilmente, mas o
Renunciante não fez nenhum sinal de deixá-la, embora suas roupas estivessem manchadas
de fumaça e ainda cheirassem a linhas de fogo.
As mulheres vieram e a examinaram. Nenhuma delas pôde dizer se ela estava ou não
em trabalho de parto. Elas simplesmente teriam que esperar para ver. Rohana, sabendo
que nada que ela pudesse dizer ou fazer ajudaria de qualquer forma, tentou descansar em
silêncio, comeu e bebeu o que elas lhe trouxeram, e tentou dormir. Longe, ela ouviu vozes
e gritos, mas não havia como o pior dos incêndios atravessar o vasto conjunto de terras
aradas ao redor do castelo, graças a todos os deuses que não era tarde na colheita, quando
essas terras eram cobertas com plantas secas que queimavam facilmente. E finalmente a
própria pedra do castelo resistiria ao fogo. Ela estava agradecida por Gabriel ter sido
carregado para sua cama. Ela esperava que Alida tivesse dado ordens para que ele
dormisse, pelo menos.
Aquela tentativa abortada de se conectar com Alida e usar o laran contra o fogo tinha
sido sua única falha no uso de seu dom. Ela odiava fracassar, embora soubesse que mesmo
um círculo totalmente treinado na Torre não poderia ter se saído melhor. Os próprios
cozinheiros que brigavam com tapetes encharcados haviam se saído melhor. Um deles
pisou em um carvão vivo que queimou através da sola do sapato, mas não fora gravemente
ferido. Tudo estava bem, o castelo não sofrera nenhum dano. Só ela sentia essa sensação
intangível de fracasso total. Todo mundo, mais cedo ou mais tarde, encontra algo que ele ou
ela não pode fazer, ela disse a si mesma, mas ela não acreditou. Ela não estava autorizada a
falhar em nada.
Ela estava deitada, entrando e saindo do sono. Quando acordou de novo, sabia que
era tarde na manhã do dia seguinte. O sol brilhava no céu esfumaçado e ela sabia que havia
escapado das consequências da seriedade de sua situação. Não estava em trabalho de
parto, ainda. A criança não nasceria hoje, pelo menos.
Kindra veio quando as mulheres de Rohana vieram cuidar dela e ela estendeu as mãos
em boas-vindas.
- Como posso te agradecer? Você fez muito por mim... por todos nós.
- Não, - Kindra disse - eu fiz apenas o necessário. Dificilmente eu poderia ter negado
esse tipo de ajuda, não importa onde eu estivesse. - Mas ela sorriu e se inclinou para
abraçar Rohana. - Fico feliz que nada de pior tenha que ser enfrentado. E esta manhã você
parece muito bem!
- Tenho muita sorte. - Rohana disse e falou sério com todo o coração. - E não menos
importante do que minha sorte é ter uma amiga como você, Kindra.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 107

Kindra baixou os olhos, mas sorriu.


- Sente-se aqui ao meu lado. Foi-me dito por essas mulheres que devo ficar na cama e
não fazer nada além do que um repolho plantado faz, para não excitar meu bebê travesso a
tentar nascer antes do tempo de novo. Estou tão entediada! - Rohana exclamou. - Não
nasci para ser um vegetal! E essas mulheres acham que eu deveria agir como tal e ficar
satisfeita!
Kindra não pôde deixar de rir um pouco da imagem. - Você, um vegetal? Nunca! Mas
talvez você possa imaginar estar calma, talvez como uma nuvem flutuante...
- Quando eu era jovem, tinha um primo que viajava para o sul, em direção ao mar. Ele
me falou de animais marinhos que são graciosos na água, mas quando tentam desembarcar
em terra, são tão pesados que seus corpos não conseguem suportar seu peso e só
conseguem engatinhar para se mexer. - Rohana, tentando se levantar e se virar na cama,
mostrou a Kindra o que ela queria dizer. - Veja, eu sou como uma dessas criaturas-peixe
encalhadas. Acho que esse deve ser um bebê muito grande. Eu não era tão pesada assim
antes de Rian nascer, e ele foi o maior dos meus filhos.
Kindra sentou-se na cama e deu um tapinha reconfortante na mão dela. Ela disse: - Eu
me lembro que mulheres mais velhas e com filhos mais velhos sempre se sentem mais
pesadas e preocupadas. Você esquece o quão difícil foi o último. Provavelmente tão bem,
ou quem se aventuraria a ter um segundo filho, muito menos um terceiro.
- Certamente sou menos paciente do que aos dezenove anos quando Kyril nasceu. Eu
estava em uma plantação de nozes, colhendo-as até que estivesse muito escuro para ver, -
disse Rohana – e, quando acordei no meio da noite, pensei apenas que havia comido
muitas nozes ou o ensopado que havia comido no jantar havia feito mal ao meu estômago.
Foi só quase uma hora antes que Gabriel pensou em ligar para a parteira... E ele não era
inexperiente. Sua primeira esposa lhe deu um filho. A parteira riu de mim, dizendo que
seria meio-dia pelo menos antes que acontecesse alguma coisa, mas Kyril nasceu uma hora
antes do amanhecer. Até minha mãe não acreditou na rapidez com que tudo acabou!
- Então você é uma das sortudas que dá à luz facilmente? - Kindra perguntou.
Rohana fez uma careta. - Só aquela vez. Rian levou dois dias para nascer depois de
começar a sinalizar que estava pronto e sempre se atrasou para tudo desde o jantar até as
festas de aniversário. Quanto a Elorie, não vou contar muito a ninguém sobre o nascimento
dela, para que as jovens que ouçam não fiquem assustadas. Mas espero que este não seja
tão ruim assim. - Ela estremeceu e Kindra apertou a mão dela.
- Talvez você tenha mais sorte desta vez, então.
Uma serva apareceu com o café da manhã de Rohana em uma bandeja de madeira
entalhada.
- Lady Alida disse que você não iria se levantar hoje, senhora.
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- Pela primeira vez, - disse Rohana - sou grata pelo desejo de Lady Alida de mostrar
que pode gerenciar tudo tão bem quanto eu. Vamos ver a opinião dela sobre o que uma
mãe grávida deve comer. Um pouco de torrada com mel, talvez? Ou ela teve senso
suficiente para consultar a parteira? - Ela descobriu a bandeja. Havia mingau de aveia e mel,
com uma jarra luxuosa de creme, um prato de ovos cozidos e um de frutas frescas cortadas.
Evidentemente, Alida havia consultado a parteira ou Gabriel, que sabia que a gravidez
nunca afetava seu apetite. Pensar em Gabriel a fez perguntar: - E o Mestre? Ouvi dizer que
ele passou mal de novo ontem à noite...
A mulher disse: - Sim. Lady Alida ordenou-lhe uma bebida para dormir. Ele foi deitado
no final da manhã e está vagando pelas escadas com os olhos inchados, rosnando como se
estivesse estragando uma briga.
Oh, querido. Bem, no momento ela não conseguiria se levantar e lidar com isso. Talvez
Alida tivesse o bom senso de oferecer a Gabriel algum remédio para os efeitos posteriores
de seus problemas de dormir. Rohana se dedicou ao café da manhã com um apetite apenas
ligeiramente diminuído pelo pensamento de Gabriel perambulando em busca de algo para
reclamar. Ela estava segura e isolada aqui.
- Você disse que eu era como uma Amazona, mas não o suficiente. – Ela disse para
Kindra, colocando os últimos ovos no prato. - Você é mais corajosa do que isso, suponho.
Você não se esconderia para evitar algo desagradável. No entanto, gostaria de poder ficar
aqui nesta cama até o bebê nascer em segurança, Gabriel não teria o que reclamar de mim.
- Temos um ditado: tome cuidado com o que deseja, você pode conseguir. – Kindra
disse, aceitando uma fatia de fruta. - Mas se você deseja permanecer na cama, alguém a
impediria?
- Apenas meu próprio senso do que precisa ser feito. – Rohana disse. - Não posso
justificar mais de dois dias, digamos, deitada, considerando o quanto me sinto bem. Então,
tudo deverá ser encarado novamente. Gabriel não fica melhor e temo que beber seja o
último passo em sua desintegração.
Kindra perguntou, enquanto as mulheres tiravam a bandeja: - Como você se casou
com Lorde Ardais, Rohana? Foi um jogo de família? Pois ele não parece tão homem quanto
eu esperava pra que você se casasse.
- Eu poderia me defender e dizer isso, - disse Rohana - pois certamente meus pais
estavam mais ansiosos pelo acerto do que eu. No entanto, isso não é inteiramente verdade.
Uma vez eu gostei muito de Gabriel... Não. Eu o amava. - Ela acrescentou rapidamente: - É
justo dizer que ele era muito diferente. Sua doença era algo que passava por ele de vez em
quando como uma sombra, de vez em quando por desatenção, esquecimento, ele não se
lembrar de uma promessa ou conversa. E então ele não começou a beber muito. Naquela
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 109

época, pensei que beber era apenas uma tentativa de manter o ritmo entre alguns
companheiros violentos, não uma falha dentro de si.
- Ainda sinto que você foi projetada pela natureza para algo diferente de cuidados
domésticos. – Kindra disse.
Rohana sorriu. Kindra pensou que o sorriso travesso estava em desacordo com o corpo
pesado e as feições inchadas.
- Kindra, essa é uma maneira educada de dizer que não sou suficientemente digna de
ser uma grávida de meia idade, com três filhos que já são homens e mulheres feitos?
Depois de um momento, Kindra percebeu que uma curiosidade estava por trás das
palavras irreverentes. Ela se apressou em tranquilizá-la.
- Não mesmo. Eu quis dizer apenas... que você parece muito grande para se limitar a
trivialidades domésticas. Você deveria ter sido uma leronis, uma mulher sábia, uma... Eu
tenho uma amiga na Casa da Guilda que é magistrada e você poderia preencher essa
posição pelo menos tão bem quanto ela.
- Em resumo - disse Rohana - uma Amazona.
- Não posso deixar de me sentir assim. - Kindra disse defensivamente. - Eu ainda
gostaria que fosse possível.
Rohana pegou a mão dela e disse: - Desde que viajei com você, desejei que fosse
assim. Se tivesse me dado uma escolha real, poderia ter permanecido na Torre como uma
leronis. Melora e eu desejávamos isso. Você sabe o que aconteceu com Melora ... e, em
certo sentido, quando me casei como minha família desejava, senti que os estava
confortando pelo que Melora não podia... - A voz dela ficou em silêncio. Ela procurou a mão
de Kindra e disse suavemente: - Às vezes, acho que Melora significava mais para mim do
que qualquer pessoa na minha vida. É por isso que Jaelle é tão querida para mim.
Há momentos em que sinto que você me entende quase como ela fazia. As mulheres
ficaram em silêncio, então Kindra se inclinou para frente e abraçou Rohana. Elas se
abraçaram em silêncio. Então, abruptamente, a porta se abriu e Dom Gabriel parou na
porta.
- Rohana! - Ele gritou. - Que diabos é isso? Primeiro eu pego sua vadia de filha no feno
com um cavalariço e agora eu te encontro... - Ele parou, olhando consternado.
- Agora começo a entender por que você evitou minha cama há muitos meses, - disse
ele deliberadamente - mas se você tivesse que se consolar, não conseguiria encontrar um
homem em vez de uma mulher de calças?
Rohana sentiu como se tivesse sido chutada com força sob o plexo solar. Ela não
conseguia recuperar o fôlego. Kindra teria se afastado dela, mas Rohana se agarrou aos
pulsos.
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Ela disse: - Gabriel, suspeitei por muitos anos que você não está apenas doente, mas
demente. Agora tenho certeza disso. - Ela acrescentou, ouvindo sua voz queimar como
ácido. - Deixe o meu quarto até que você possa se comportar decentemente com nossa
convidada ou eu colocarei os mordomos para te arrastar para fora!
Seus olhos, avermelhados, estreitaram-se e Rohana, bem aberta, pôde ler em sua
mente especulações de tanta obscenidade que ela pensou que seu coração pararia. Ela se
sentiu enjoada e cheia de pensamentos. Ela queria gritar, jogar sua tigela de mingau nele,
gritar em uma linguagem suja que ela mesma entendia pela metade.
Kindra quebrou o impasse, levantou-se da beira da cama, deixando Rohana contra os
travesseiros e disse rapidamente à camareira: - Sua lady está se sentindo mal. Atenda-a.
Mande chamar a parteira!
Rohana deixou seus olhos se fecharem. Sua mão soltou a de Kindra e ela caiu, meio
desmaiando, enquanto a mulher se afastava.
Dom Gabriel rosnou: - Uma palavra minha e três dúzias de mulheres nesta
propriedade fazem exatamente o que querem! Ninguém me ouve?
A parteira, chegando a tempo de ouvir isso, na verdade Kindra suspeitava que ela
estivesse na sala ao lado, esperando por uma convocação, debruçou-se atentamente sobre
Rohana, para dizer: - Lorde Ardais, somente nesta câmara, você pode não dar ordens. Eu
imploro, vá e dê ordens onde você pode ser obedecido. Preciso convocar seus servos?
- Rohana não está tão doente assim. Quando deixei algumas coisas bem claras para
ela... O que não vou tolerar... - Dom Gabriel resmungou. - Vai me expulsar do quarto da
minha própria esposa? Então também expulse essa maldita travesti de calças!
- Meu senhor, eu imploro, se você ficar aqui, fique em silêncio. – A parteira exigiu.
Rohana ouviu tudo isso como se de muito longe, através do vento e da água, muito
distante. Ela lutou para se sentar, ouvindo outro som, um som distante, ou ela ouvira
apenas através de seu laran, de soluços selvagens e histéricos. Elorie, chorando, entrou no
quarto. Ela correu e se jogou na beira da cama de Rohana. A parteira disse: - Você não deve
incomodar sua mãe, lady Lori... - mas Rohana lutou pra se erguer.
- Elorie, querida, o que houve?
- Papai... - Ela soluçou, gaguejando. - Ele me chamou...ele... - Seu rosto estava
vermelho, ela tinha um sangramento na bochecha com um corte longo, um olho já
enegrecido e inchado.
- Gabriel - Rohana disse firmemente - o que é isso? Pensei que tivéssemos concordado
que você nunca atacaria as crianças quando não estivesse sóbrio.
Gabriel abaixou a cabeça e parecia miserável.
- Devo me sentar e vê-la brincar de puta com qualquer garoto do estábulo...
- Não! - Elorie disse: - Eu não... Papai é louco, se ele realmente pensa assim!
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- Então, o que você estava fazendo com aquele jovem...


- Mãe - Elorie soluçou - era Shann. Você conhece Shann. Tocamos juntos quando
tínhamos quatro anos! Repreendi-o porque ele não tinha escovado meu pônei
corretamente, e peguei escova para mostrar o que eu queria! Então, quando terminamos,
estávamos procurando em uma das caixas soltas...
- Observando o garanhão, fazendo todos os tipos de piadas obscenas sobre o assunto,
- Dom Gabriel rosnou - eu ouvi!
- Ah, Gabriel. As crianças são criadas em fazendas. Você não pode esperar que eles
nunca falem dessas coisas. – Rohana disse. - Que tempestade por nada! Elorie? - Ela olhou
para a filha.
Elorie enxugou os olhos e disse: - Bem, estávamos falando do potro de Greyfoot, é
verdade, mas Shann não fez nada de mal e, quando papai começou a atacá-lo com o
chicote, tentei agarrá-lo... Mamãe , ele está realmente louco?
- Claro que ele está, querida, eu pensei que você soubesse disso. – Rohana disse,
cansada. - Você deveria saber que é melhor evitar provocá-lo dessa maneira. Gostaria que
você pudesse aprender a ser sensata e discreta o suficiente para não provocá-lo.
- Eu não fiz nada de errado. - Elorie protestou.
- Eu sei disso, – Rohana disse, cansada - mas você conhece seu pai. Você sabe o que vai
incomodá-lo.
Kindra interrompeu: - Elorie, sua mãe também não está bem. Você não vê isso? Se
você está com alguma birra, como uma criança de oito anos, não pode encontrar sua velha
ama ou alguém assim e não incomodar sua mãe? Se houver mais disso, ela poderá entrar
em trabalho de parto prematuro, o que seria perigoso para ela e para sua irmã ou irmão
mais novo.
Elorie enxugou os olhos e fungou. - Não vejo por que ela quer ter um bebê de
qualquer maneira na idade dela. Outras senhoras não iriam querer. - Ela resmungou.
O administrador de Gabriel entrou na sala. Ele disse com uma voz suave e auto-
depreciativa: - Com sua licença, senhor. - E deu um braço a Gabriel. Gabriel o sacudiu e
caminhou até a cabeceira da cama.
- Você vai deixar eles me expulsarem daqui, lady?
- Gabriel, eu imploro. - Rohana disse com uma voz abafada. - Na verdade, estou muito
doente para lidar com tudo isso agora. Amanhã, quando estiver melhor, conversaremos...
Eu prometo. Mas, por favor, vá embora agora.
- Tudo o que você disser, meu amor. - Ele murmurou e saiu, voltando-se para dizer: -
Você também, Elorie. Não incomode sua mãe. - E a porta se fechou.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 112

Rohana teve a sensação de que poderia chorar até derreter-se em um vasto lago de
lágrimas. Ela segurou dolorosamente a compostura, embora seu coração estivesse batendo
acelerado. Ela estendeu os braços para Elorie, que estava chorando mais do que nunca.
- Mãe, não fique mal, não morra. – A menina implorou e Rohana podia sentir os frágeis
ombros tremendo em seus braços.
- Não seja tola, amor. Preciso descansar - disse ela – isso é tudo que preciso. Seu pai
me chateou terrivelmente. Por favor, vá agora.
A parteira levantou-se do pé da cama e disse: - Quero que fique quieta aqui. - E Elorie,
ainda soluçando e limpando o rosto, saiu correndo.
Rohana ainda se agarrava à mão de Kindra. Quando todas as outras mulheres foram
embora, ela sussurrou para Kindra: - Não me deixe. Eu não poderia te culpar se você se
recusasse a ficar aqui por mais um minuto. Mas eu imploro para você não me deixar com...
- Ela interrompeu, engasgada. - Mas por que você deveria ficar? Eu nunca deveria ter
exposto você a tais acusações indizíveis... A culpa é minha...
Kindra apertou a mão dela. Ela disse: - Não há honra em brigar com um louco ou um
bêbado. Já ouvi coisa pior. Já perguntei isso uma vez antes de uma forma um pouco
diferente. Isso realmente te ofende tanto? É uma acusação tão indescritível assim?
De todas as coisas essa era a última que ela esperava ouvir. Chocada e assustada,
Rohana disse: - Oh. Isso. Ah, eu entendo. Não. Eu amava Melora e fiz um juramento a ela,
mas foi como Gabriel disse. Como se fosse a coisa mais suja que ele pudesse pensar em
dizer sobre você ou sobre mim.
- Para os indecentes, todas as coisas são imundas. – Kindra disse. - Ele não poupou a
própria filha, pelo notei, e com evidências mais fracas ainda. A verdade é que eu realmente
amo você, Rohana, e não sinto vergonha disso, de acordo com o costume ou não. Eu não
teria falado disso enquanto você está doente e ocupada com outras coisas, mas ele trouxe
isso à tona. Não me sinto mal por amar uma mulher e, se ele fosse um exemplo de amar
um homem, sentiria repulsa por qualquer mulher que escolhesse homens.
Rohana disse em voz baixa: - Certamente posso entender isso. Eu disse a você uma
vez, nas Cidades Secas, que, nos Domínios, quando dois jovens juram um ao outro eles
serão amigos a vida inteira e que nem mesmo uma esposa ou filhos os separará. Isso não é
nada além de honra para eles. Mas se duas donzelas fazem esse juramento, ninguém o leva
a sério, ou, na melhor das hipóteses, entende que isso significa apenas ‘eu a amarei até que
um homem fique entre nós’. Por que deve ser tão diferente?
- Eu diria, não sei se você concorda... - Kindra disse - ...que é porque os homens nunca
levam a sério qualquer coisa que as mulheres escolhem fazer, a menos que se refira a um
homem. Mas é por isso que sou Renunciante e você não. Eu juraria de bom grado com
você, Rohana.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 113

E se você fosse uma renunciante, eu poderia amar você sem me importar com o que as
pessoas diziam. Meus votos e compromissos principais são com minhas irmãs.
Não era a primeira vez que Rohana suspeitava que Kindra tivesse mais do que um
pouco de laran. Ela ficou emocionada e impressionada com o pensamento de que Kindra a
amava. Ela pensara antes disso que a Renunciante era a única pessoa que a entendia, mas
parecia que a acusação de Gabriel havia sujado uma coisa que ela considerava totalmente
inocente. Não, ela não entende isso sobre mim, eu a amo, mas não assim, e quase sem
perceber, ela retirou a mão da de Kindra.
A Amazona parecia triste, mas, como ela dissera, era por isso que ela era renunciante
e Rohana não. Ela não esperava que Rohana, certamente não em seu atual estado de
turbulência, entendesse. Ela disse gentilmente: - Quieta, você não deve se preocupar com
nada agora. Haverá tempo suficiente para conversar sobre tudo isso quando você estiver
mais forte.
Rohana estava quase aliviada com a sensação de exaustão e cansaço que a invadiram.
Ela ergueu os braços e abraçou Kindra infantilmente, agradecida por sua bondade e força.
- Você é tão boa para mim. - Ela sussurrou. - A melhor amiga.
Kindra pensou, eu a teria poupado daquela cena com Dom Gabriel. No entanto, é o
que ele é e é o que ela deve enfrentar mais cedo ou mais tarde.
Ela beijou Rohana novamente na testa e silenciosamente saiu da sala.
Se tivermos sorte, isso não a levará a um parto prematuro.

Capítulo 08
Rohana acordou de um pesadelo de entrar em trabalho de parto sozinha,
despreparada e no deserto fora das Cidades Secas. Ao acordar, ela percebeu com enorme
alívio que não estava em trabalho de parto e a criança em seu corpo estava quieta, apenas
com os movimentos rotineiros de sonhos. Mesmo assim, ela sabia por experiência própria,
depois de tudo o que já havia passado três vezes, que esses sonhos eram um aviso. O
trabalho estava próximo, embora não fosse iminente. Ela se levantou devagar e vestiu um
velho vestido de casa sem laço. Ela não foi capaz de enfrentar o pensamento de tomar café
da manhã no Salão Principal, mas Alida ficaria muito satisfeita em se candidatar a isso. Ela
pediu frutas e chá. Quando terminou, uma de suas mulheres apareceu na porta.
- Minha senhora, o Mestre pede para vê-la.
Pelo menos ele não avançou sem aviso prévio. Rohana suspirou.
- Bêbado, suponho.
- Não, Domna; ele parece doente, mas sóbrio.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 114

- Muito bem, deixe-o entrar. - Afinal, ela não podia evitar a presença dele
indefinidamente em Ardais.
Mas quando esta criança nascer, irei a Thendara para o Conselho, ou a minha irmã
Sabrina, o lar em Valeron….
Gabriel parecia pequeno, quase encolhido dentro de suas roupas velhas e
desarrumadas de fazendeiro. Seu rosto exibia a descoloração carmesim do bêbado
habitual, mas ele parecia totalmente sóbrio. Suas mãos tremiam. Ele tentou escondê-las
dentro das mangas, mas, embora tivesse se barbeado cuidadosamente, seu rosto
apresentava muitos pequenos cortes reveladores.
- Meu querida, - ela disse impulsivamente - você deve fazer com que seu serfo faça sua
barba quando não estiver bem.
- Oh, bem, minha querida, não gosta de pedir...
- Absurdo! É o dever do homem. - Ela disse bruscamente e ouviu a nota dura em sua
voz. - Você não precisa pedir. Vou falar com ele.
- Não, não, minha querida, deixe para lá. Eu não vim aqui para isso. Estou feliz em vê-la
tão bem agora. O pequeno homem lá dentro...ele ainda está quieto?
- Não acho que seja hoje, e talvez não amanhã, - disse ela, - mas será em breve.
Tivemos sorte...com o fogo...
E aquela cena terrível ontem... Ela se absteve de dizer isso em voz alta, mas ele ouviu
de qualquer maneira e desajeitadamente colocou um braço em volta de sua cintura. Ela
não sentiu o cheiro de vinho pela primeira vez e conseguiu não se afastar quando ele beijou
sua bochecha. Mesmo assim, ela podia sentir, com o toque, confusão nele, e isso a repeliu.
- Eu sabia que precisaria ficar sóbrio se você estivesse em trabalho de parto. – Ele disse
e alcançou o antigo modo de relação. Instintivamente, ela se encolheu e ele não
pressionou, mas disse em voz alta: - Sei que você está com raiva de mim. Você deveria
mesmo estar. Eu estava bêbado. Eu não deveria ter sido tão rude. Não importa o que ela
seja, eu te conheço, Rohana. Me perdoa?
E não perdôo sempre? Ela perguntou, não em palavras, mas se encolheu com o
pensamento das longas horas de trabalho, quando, por costume, eles deveriam
compartilhar o nascimento em um relacionamento completo, telepaticamente entrelaçado.
Juntos em suas mentes. Ela não podia suportar isso. Ele era tão diferente quando Kyril
nasceu e, durante o nascimento de Rian, que havia sido prolongado e muito difícil, ela se
agarrou à força dele como a uma grande rocha em uma inundação que a estava afogando.
Suas mãos, sua voz e toque segurando-a acima do dilúvio, puxando-a de volta das próprias
fronteiras da morte. Esta seria a quarta vez que eles mergulhariam juntos nas marés
inexoráveis de nascimento.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 115

No entanto, como ela poderia suportar isso depois desses anos de briga e humilhação,
depois das acusações sujas dele? Ele queria mesmo dizer aquilo. Ficou emocionada com o
terrível esforço necessário para se apresentar aqui, sóbrio e barbeado após uma bebedeira
profunda. Suas pobres mãos trêmulas, seu pobre rosto tenso, ela pensou com uma onda de
ternura habitual. Mas ela se apegou ferozmente ao seu orgulho e raiva. Se ele quisesse
reviver sua visão de si mesmo como um forte pai solidário, deixe que vá para Tessa quando
o filho dela mostrar sinais de nascimento! Então ela se lembrou: ele não era pai do filho de
Tessa, mas devia ter motivos para pensar assim... Vergonhoso! Ele não deveria pensar que,
com a sobriedade e a atenção de um dia, ele poderia acabar com uma década de
negligência, abuso e humilhação.
No entanto, não havia alternativa. Por costume, o pai compartilhava de um parto com
a mãe, e ela não teria escolha. De alguma forma, ela devia se esforçar para suportar as
horas de nascimento em sua presença e agradecer aos deuses se ele não estivesse bêbado.
Rohana perguntou deliberadamente e ficou chocada com a crueldade em sua própria
voz: - Você visitou Tessa esta manhã? Ela ficaria aliviada em vê-lo bem e sóbrio.
Seu rosto se contorceu, meio com raiva e meio com humilhação.
- Oh, a garota de Kyril... Se você quiser, minha querida, vou mandá-la embora. Nós
poderíamos casá-la com alguém decente...
- Não! - Ela disse. - Alida me disse que não há dúvida de que é uma criança de Ardais e
também tem direito ao teto de seu pai. Ela não é ofensiva para mim.
- Você é melhor do que eu mereço, - ele murmurou - eu nunca a trouxe aqui.
- Não importa. - Ela disse. - Gabriel, estou muito cansada. Eu quero descansar e você
também deveria. Obrigada por ter vindo... - E obrigado por estar sóbrio e gentil. Eu não
aguentaria outra cena...
Ele a beijou desajeitadamente na bochecha e murmurou uma oração formal por sua
saúde, depois foi embora silenciosamente e Rohana ficou olhando a porta fechada atrás
dele, em algo muito parecido com horror. Pelo menos quando ele era um animal bêbado,
ela podia se proteger desprezando-o. Mas como ela poderia se proteger contra esse humor
bem-humorado e humilde?
Nem hoje e nem amanhã, ela dissera a Gabriel. E à medida que o dia e o dia seguinte
avançavam em direção ao pôr-do-sol, Rohana, arrastando-se do corredor ao conservatório,
do conservatório à cozinha, dizendo a si mesma que estava se assegurando de que tudo
daria certo enquanto estivesse deitada, sentia-se cansada a ponto de parecer doente. Em
vão, lembrou-se do que havia dito a outras mulheres em seu estado. O último dia é mais
longo que todos os outros meses juntos. Ela não podia se contentar com nada. Nem um
livro, nem uma peça de fantasia, nem uma costura simples, nem a harpa ou a sua balada.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 116

Ela pegou uma coisa atrás da outra, inquieta, e sentiu como se estivesse grávida há séculos
e assim seria pelo resto de sua vida, se não por toda a eternidade.
Enquanto a tarde do terceiro dia se arrastava devagar em direção ao pôr do sol,
Rohana observava o sol se pôr na noite com desgosto. Mais um dia e outra noite por vir,
durante a qual mais uma vez ela não dormiria, mas ficava inquieta no escuro, girando, se
remexendo e ouvindo o relógio bater nas horas escuras... Ela não conseguia se lembrar de
quando realmente dormira.
Ela deixou tudo em ordem com as cozinhas e os bens, até atualizou os registros do
livro de pregos e anotou algumas das vendas acordadas na última feira de cavalos. Duas de
suas boas éguas reprodutoras para serem vendidas nas terras baixas, mais uma para as
Colinas Kilghard. O Mestre de MacAran ainda viria para buscá-las, mas o pagamento já
havia sido recebido. Eles precisavam de outro cavalo de sela, Elorie estava superando seu
pônei, mas não havia nenhum cavalo de sela na propriedade que fosse certo para ela. Ela
pensara no cavalo de Rian, mas era um cavalo grande e feio, sem o trotar para uma
garota...
Pelo menos não se a garota fosse Elorie, muito preocupada com a beleza e a elegância
em roupas de montaria. Por que Elorie era tão preocupada com as aparências externas
Rohana não sabia. De alguma forma, ela falhou em educá-la sobre o que era importante,
mas isso não poderia ser remediado nos próximos dias.
- É uma pena - ela resmungou para Kindra, - que as Casas da Guilda não educem
meninas, como os cristoforos em Nevarsin com os meninos. Estou certa de que um ano em
uma Casa de Renunciantes faria a Elorie todo o bem do mundo.
- Pode ser. - Kindra disse. - Nós devíamos considerar isso. Mas, infelizmente, a maioria
de seus pais temeria que estivéssemos ensinando a elaz o que elas não deveriam saber.
Temo que muito do que ensinamos não agrade a seus pais, nem mesmo a muitas de suas
mães.
- Bem, deveria haver algum lugar onde as meninas deveriam ser ensinadas sobre
caridade e coisas úteis, descansar um pouco as mães de suas sandices, mas você não
entendera. - Rohana disse. - Você deixou suas filhas, como você disse, quando elas ainda
eram crianças.
- E, desde então, - disse Kindra - venho criando outras filhas crescidas de outras
mulheres, o que, de certa forma, é mais simples, já que elas não são minhas e se fazem
burrices absurdas consigo mesmas, não é um golpe para o meu orgulho ou respeito
próprio. E, mais cedo ou mais tarde, elas crescem e se tornam um crédito para nós. Lori
também, você verá.
- Isso não é muito consolador para mim agora. - Rohana disse. - Olho para ela e sinto
que criei uma idiota que simula coisas, que não se importam com nada além da cor das fitas
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 117

do vestido de baile, ou se ela deve arrumar os cabelos em cachos ou tranças para qualquer
ocasião em particular.
Kindra perguntou gentilmente: - Você nunca fez isso?
- Nunca. Eu era uma leronis na idade dela e muito ocupada para essas coisas. - Rohana
disse, irritada. Ela saiu para o pátio, com o vestido longo arrastando-se para os estábulos.
- Onde você vai? - Kindra perguntou.
- Lugar algum. Eu não sei. Estou cansada de ficar em casa. Vou pensar em algo. - Sua
voz era distraída e irritável. Dentro do estábulo, ela ofereceu um pedaço de açúcar à sua
égua favorita. - Desculpe, pequena, eu não posso andar hoje. - Ela murmurou, acariciando o
nariz do cavalo. Ela passou pela fila de cavalos, acariciando aqui, oferecendo um petisco ali,
recuando e examinando de perto os outros.
Quando Kindra apareceu, ela disse: - Devo me preparar para a feira de cavalos, faltam
apenas alguns dias... Este ano devemos montar um pavilhão para qualquer pessoa que ache
que o sol esteja muito quente e possamos falar de negócios durante o dia.
Para Kindra pareceu fantástico que, a essa altura, Rohana estivesse pensando na feira
de cavalos, mas sem dúvida era um hábito. Muitos anos pensando primeiro na
administração do Domínio.
Rohana caminhou até onde dois homens estavam consertando o sistema de selim e
disse: - Engate o carrinho pequeno.
Kindra exigiu: - E agora? Certamente você não pode ir de casa...
-Apenas até o topo do cume. – Rohana disse. - Devo verificar se o incêndio danificou
demais e como está ocorrendo o replantio.
- Você realmente não deve. Não, Rohana, é impossível. Suponha que você tenha entre
em trabalho de parto no caminho...
- Não se preocupe, - disse Rohana - tenho certeza de que não acontecerá. E, se
acontecesse, pelo menos acabaria de uma vez!
Não havia realmente mais nada que Kindra pudesse dizer. Apesar de sua extrema
cortesia, Kindra foi abruptamente lembrada de que sua amiga era uma dama do Comyn e a
chefe de um grande Domínio. Além disso, ela era a anfitriã de Kindra. Não cabia realmente
à Kindra dizer o que Rohana poderia ou não fazer. Ela observou, sentindo-se impotente.
Isso realmente não era sábio. Na Casa da Guilda elas teriam proibido uma mulher, nesse
estágio da gravidez e depois de mais de um alarme falso de parto, a se mover além do
jardim!
O carrinho foi engatado e Rohana entrou nele. - Venha comigo, Kindra. Esta é a nossa
égua mais gentil. Ela provavelmente poderá levar o carrinho até o cume. Elorie a montou
quando tinha apenas sete anos. Ela costumava carregar as crianças e suas amas em todos
os lugares antes disso.
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Kindra, não querendo deixar Rohana partir sozinha, entrou e tomou as rédeas. Rohana
não protestou.
Era verdade que a velha égua avançava muito gentilmente. Ao longo do cume, a terra
ainda estava chamuscada com o impacto do fogo, mas já ao longo da borda da colina, onde
uma longa linhagem de sempre-vivas protegia um pouco o campo, um grupo de homens
estava montando uma linha oscilante de mudas de árvores de resina.
Ao longo do cume, forte contra o céu, havia uma pequena cabana de pedra,
evidentemente um abrigo para trabalhadores apanhados mesmo durante o mau tempo ou
para viajantes. Rohana desceu do carrinho e virou os passos em direção ao abrigo. Kindra
seguiu impotente.
- O que você está fazendo, Rohana?
- O abrigo deve ser verificado, a lei exige que ele seja mantido em boas condições e em
ordem. Gabriel subiu aqui umas cem vezes e nunca pensou em enfiar o nariz lá dentro. - Ela
desapareceu na escuridão e Kindra a seguiu.
- Vergonhoso! - Rohana explodiu. - Os colchões estão corroídos por ratos, os
cobertores foram roubados, os potes quebrados. Vou mandar alguém aqui esta noite para
reabastecer o lugar. Se eu pudesse pôr minhas mãos no criminoso que destruiu esse lugar
eu o rasgaria em pedaços! Fazer algo assim...não é apenas insensato, mas um viajante que
destrói um lugar como esse deveria ser enforcado! Ele condena qualquer um que venha
aqui no mau tempo a uma possível morte por frio e exposição! - Ela cambaleou um pouco e
sentou-se inesperadamente no banco. Kindra não esperava vê-la com tanta raiva. Ela não
tinha exposto sua raiva assim, mesmo quando Gabriel trouxe Tessa para casa. Mas Rohana
ainda estava agitada quando sacudiu o punho para os suprimentos danificados no estojo de
viagem. Kindra veio, a segurou na vertical e pôde sentir Rohana realmente tremendo, ver o
pulsar da veia azul em suas têmporas.
- Eu imploro, não se excite. Tenho certeza de que há alguém que possa resolver isso.
Deixe-me ir e chamar um dos homens para descer e dar as ordens por você. – Kindra disse,
tentando falar em um tom suave de voz.
- E veja, alguém jogou uma carga de feno fresco aqui. Que irritante! Para o calor,
suponho, mas o perigo de incêndio nesta temporada me parece muito forte: eles não
deveriam ter feito isso. - Rohana estava andando agitadamente, carrancuda. Ela parou e
sentou-se inesperadamente no banco novamente, com um olhar surpreso no rosto.
- O que é, Rohana? – Kindra perguntou, mas antes que Rohana pudesse responder, ela
sabia a resposta.
- O bebê está vindo?
Rohana piscou e pareceu assustada.
- Sim, acho que sim. Eu realmente não percebi, mas sim... - Ela disse e Kindra gemeu.
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- Ah não! Você não pode ser sacudida de volta naquele carrinho!


- Não. – Rohana disse quase sorrindo. - Aqui estou eu e aqui devo ficar, suponho, até
que termine. Não fique assim, Kindra, eu certamente não sou a primeira nem a última
mulher a dar à luz em um celeiro. Você pode enviar os homens para chamar a parteira e
uma ou duas das minhas mulheres...as que eu escolhi para me ajudar.
- Devo deixá-la sozinha?
- Não, por favor... – A voz de Rohana vacilou de repente - Não me deixe, Kindra, fique
comigo.
Apesar de irritada com esse desenvolvimento repentino, Kindra ficou emocionada e
não pôde se afastar de Rohana. - Claro que vou ficar com você. – Ela disse em um tom
suave. - Mas agora deixe-me sair e enviar o carrinho para suas mulheres e parteira.
Relutantemente, Rohana soltou a mão dela e Kindra saiu para onde o carrinho
esperava. Ela disse ao homem sentado: - Você deve descer rapidamente. A Lady está em
trabalho de parto e não pode ser movida. Desça e pegue a parteira da propriedade, suas
mulheres, cobertores limpos e tudo o que ela precisará aqui...e Dom Gabriel e Lady Alida, é
claro. – Ela acrescentou como uma reflexão tardia. Ela não tinha certeza de que Rohana
queria nenhum deles, mas não podia assumir a responsabilidade de mantê-los afastados.
- Vou de uma vez. – O homem disse. - Para dizer a verdade, mestra, fiquei pensando
nisso quando a vi subir aqui. Algo sobre o olhar em seu rosto...quando minha própria
esposa está perto do seu tempo, ela fica inquieta assim.
- Gostaria que você tivesse me alertado. - Kindra murmurou, mas não em voz alta.

Capítulo 09
Rohana descansou na carga de feno fresco, vagamente refletindo sobre a coincidência
afortunada que o trouxera aqui, assim tão fresco, quando tudo o mais no abrigo foi
danificado ou destruído. Com a confiança automática de uma leronis treinada que era
monitora, ela passou os sentidos treinados pelo corpo, acompanhando o que estava
acontecendo. O trabalho de parto, apesar ter começado tão recentemente, estava
progredindo muito rapidamente. As contrações já vinham a intervalos de alguns minutos.
Tudo parecia bem com o bebê, que já estava em profundo transe antes do nascimento de
alguns bebês. A alternativa era um estado de agitação que misturava terror e raiva no
processo, e Rohana estava igualmente agradecida por não precisar, como costumava ser o
caso e pelo menos com Rian, gastar toda a sua força para acalmar o terror do bebê... Ela
ouvira muito debate entre os laranzuin em Arilinn e em outros lugares sobre qual estado
era melhor para o bem-estar final da criança, mas Rohana não tinha certeza de que algum
deles soubesse mais do que ela sabia e, no momento, achou mais fácil, por ela mesma, que
esse bebê fosse um dos que estavam em transe. Ela não teria imposto um transe a quem
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estivesse acordado e zangado, como algumas das mulheres que debateram os dois pontos
de vista considerados melhores, apenas para sua própria conveniência. Mas ela se viu
sussurrando para a criança: apenas durma, descanse, pequenino. Deixe-me continuar com
isso e você pode acordar quando acabar.
A intensidade das contrações já era muito dolorosa, mas Rohana estava tão aliviada
que a espera havia acabado que ela não se importou com a rapidez com que ocorrera.
Embora esperasse poder aguentar até a parteira chegar. Ela realmente não queria dar à luz
sozinha. O nascimento não testemunhado de um filho, não importa quão regulares fossem
as circunstâncias ou quão certo o parentesco, invariavelmente deixava, por toda a vida da
criança, seus ancestrais abertos a questionar, exceto os mais caridosos. Rohana deitou-se e
tentou relaxar, sabendo que, apesar de estar indo bem e rápido, havia um longo caminho a
percorrer.
Pareceu um longo tempo em que ela ficara sozinha. Havia consideravelmente menos
luz no abrigo quando ela ouviu o
esmagamento pesado de rodas de carroça, e Annina, a parteira de Ardais, correu para
o abrigo, carregando uma lanterna, uma braçada de cobertores e o que parecia ser um
carrinho de algum tipo de suprimentos. Ela imediatamente assumiu o comando.
- Marga e Yllana, levante-a para lá. Com cuidado. Estendam os cobertores e o lençol no
feno. Agora a acalme. Aí está, minha senhora, estás mais confortável, não é?
Foi uma melhoria considerável do que se deitar no feno espinhoso e, quando a
colocaram em uma camisola quente, foi melhor ainda. A parteira conseguiu acender um
pequeno fogo no fundo, em um pequeno fogão fechado, e Rohana sentiu o cheiro
reconfortante de ervas para o chá. Ela esperava que a água fervesse em breve e queria uma
xícara.
Alida se ajoelhou ao lado dela.
- Rohana! Oh, estávamos todos tão preocupados com você, querida! Você nunca
deveria ter subido o cume, foi imperdoável que a Amazona a tenha trazido até aqui, mas
você deveria ter tido mais juízo ao invés de ouvi-la. Mas agora, pelo menos, você está
segura e aquecida... Parece que a neve hoje à noite...
Rohana alcançou um estágio em que não conseguia se concentrar na conversa de
Alida.
- Vá embora, Alida. – Ela disse, tentando expressar as palavras entre as respirações
cuidadosas que eram tudo o que lhe permitia ficar pelo menos mentalmente em cima da
dor. - Tenho trabalho a fazer. Não culpe Kindra. A culpa foi totalmente minha. Ela não
queria vir, sem ela eu viria sozinha, e ela sabia disso, então ela me acompanhou. - Ela parou
e concentrou-se na respiração novamente, pegou a mão de Kindra e a segurou, apertando-
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a com força. Era bom focar na força de Kindra que em seu estado elevado e aberto era tão
palpável quanto o calor do fogão ou o ruído da chuva do lado de fora das persianas.
Empurrando o reconfortante toque de Kindra havia um toque familiar e indesejado,
um brilho sombrio de suspeita enquanto os olhos de Gabriel descansavam em sua mão na
mão de Kindra.
- Você nos deu um susto, querida. – Gabriel disse e, para Rohana, a ternura em sua voz
era suave e falsa. - Mas você está segura agora. Devemos enviar para fora todas essas
pessoas para que você e eu possamos continuar nosso trabalho? Annina, é claro, pode ficar,
isso é assunto dela, mas nenhuma outra... Certo, amor?
Com um choque doloroso, Rohana emergiu do foco cuidadosamente mantido nas
contrações. Um deles se adiantou e galopou por sua consciência, de modo que foi
necessário todo o seu esforço para não gritar em voz alta.
Ela respirou fundo, apoiando-se no próximo.
- Não! - Ela gritou. - Não! Vá embora, Gabriel! Eu não quero ter você aqui! - E com sua
última força e uma grande explosão de rejeição sem voz, disse: - Vá embora!
- Oh, você não deveria falar assim. - Alida cantarolou para ela. - Gabriel, ela não sabe o
que está dizendo! Não importa, Rohana, ele não está com raiva de você, não é Gabriel?
Claro que não, em um momento como este...
- É claro que não. – Gabriel disse e levou uma xícara de vinho, da qual ele já havia
tomado um gole, aos lábios dela. - Aqui, amor, beba um pouco disso agora. Vai fazer você
se sentir melhor...
Com grande surpresa, ela lembrou que esse ritual havia sido bem recebido no
nascimento de Kyril e no de Rian. Agora a enchia com tanto desgosto que ela pensou que
iria vomitar. Sirviria-o bem melhor se eu derramasse em toda sua melhor camisa, ela
pensou e não sabia se deveria rir ou chorar. Ela jogou o vinho de volta, derramando tudo
sobre a mão dele.
- Não. Eu quero um pouco de chá, Annina. Você ouviu? Gabriel, saia daqui. Fora, fora,
fora! - Ela estava gritando agora e sabia que parecia histérica. A explosão de repulsa,
puramente automática e sem pensar, chegou a Gabriel e Alida que parecia pálida e correu
para fora. Rohana ouviu-a vomitar do lado de fora do abrigo.
Bem, ela entendeu a mensagem, Rohana pensou. Eu gostaria que Gabriel fosse mais
sensível. isso me pouparia muitos problemas.
Gabriel ainda estava ajoelhado ao lado dela, sorrindo estupidamente.
- Não importa, querida. – Ele disse e confindenciou à parteira: - Eu entendo que ela
não sabe o que está dizendo. Eu não a deixaria assim...
- Se você não... - ela disse, tentando apontar sua fúria e repulsa diretamente para ele -
...eu irei...
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 122

Vou desmaiar, vou morrer, vou vomitar em cima dele, vou me levantar e correr
gritando daqui e ter meu filho na floresta profunda sozinha e depois do anoitecer onde
seremos comidos por banshees….
Ela viu com satisfação definitiva que Gabriel ficou com uma cor pálida e correu para
fora. Isso se tornaria um conto escandaloso no Domínio e nas Colinas Kilghard. Mas ela
sentiu que absolutamente não podia suportar a presença dele. Os dedos dela apertaram os
de Kindra e a outra mulher bateu levemente em sua mão.
Bem, acabou, ela pensou, sem nenhum senso de triunfo, simplesmente sentiu que
agora ela podia respirar livremente sem a opressão da presença de Gabriel. Agora vamos
acabar com isso.

Capítulo 10
O trabalho de parto continuou à noite toda sem parar. A lanterna diminuiu e foi
recarregada. Rohana parecia flutuar fora de seu corpo, consciente apenas da presença de
Kindra como uma tábua de salvação.
Por que eu quero sobreviver a isso de qualquer maneira? Gabriel nunca vai me
perdoar. Eu vivi o suficiente. Meus filhos mais velhos não precisam mais de mim. É melhor
morrer do que tomar a decisão de me afastar de Ardais e Gabriel para sempre, mas, se eu
viver, não poderei voltar ao tipo de vida que tenho vivido nos últimos anos. Também nunca
mais concordarei em ter um filho pelo orgulho da paternidade de Gabriel ou pelo Domínio….
Isso a lembrou da frase no Juramento renunciante: nunca ter filhos pelo orgulho,
posição, clã ou herança de qualquer homem...
Eu nunca deveria ter voltado para Gabriel. Quando voltei das Cidades Secas, eu deveria
ter ficado com as Amazonas Livres. Kindra pelo menos teria me recebido...e eu não deveria
estar aqui lutando pela vida de uma criança que nunca deveria ter sido concebida, uma
criança que eu não quero...
Então ela percebeu bruscamente: não é apenas a vida da criança pela qual estou
lutando. É também pela minha. Minha própria vida. Mas de que serve minha vida agora?
Essa foi a pergunta que ela não pôde responder. Por que eu deveria viver para cuidar de um
bêbado? Meu próprio filho é um monstro pior que o pai, então não é bom dizer que estou
mantendo o Domínio para Kyril. E quem virá depois de Kyril, pelo que sei, pode ser pior
ainda. Por que não deixar o Domínio entrar em colapso agora, como aconteceria se eu
morresse, como teria acontecido uma dúzia de anos atrás se eu não tivesse casado com
Gabriel. Os Domínios sobreviverão, como sobreviveram sem os Aldarans. Ou irá para os
terráqueos que estão tão ansiosos para reivindicá-lo...para mapeá-lo, para saber tudo sobre
ele.
Minha vida acabou de qualquer maneira…
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Então, abrindo os olhos por um momento entre as dores, ela olhou diretamente para
o olhar encorajador de Kindra e pensou: Mesmo agora, se eu viver, isso não precisa ser o
fim da minha vida. Mas, com certeza, se eu morrer, não haverá mais nada e nunca saberei o
que poderia ter acontecido.
Ela começou a ouvir novamente as sugestões insistentes da parteira, suas instruções
murmuradas. Não, ela não iria morrer. Ela lutaria para viver, lutaria pela vida dessa criança.
Do lado de fora das persianas, a luz estava aumentando e o vento caíra para que ela
pudesse ouvir o assobio da neve.
Mais tarde, ela soube que Gabriel havia ficado do lado de fora do abrigo a noite toda
na neve, para que ele não perdesse uma convocação, acreditando que ela morreria,
rezando para que ele pudesse falar com ela antes que ela morresse, para que ela pudesse
falar uma palavra de perdão. Isso foi muito depois. Por enquanto ela não queria saber.
Ela estava consciente apenas da dor e luta sem fim, o esforço que parecia exigir mais
luta do que a morte teria pedido.
Mais e mais parecia ser exigido dela.
- Eu não posso. - Ela sussurrou, e sem palavras o desafio veio. Você deve….
E então, no final da resistência, houve um momento de cessação, de descanso e ela
sabia, por experiência, que agora deveria se sentir aliviada e triunfante. Ela ouviu a parteira
gritar em triunfo:
- Um garoto! Um filho para Ardais!
Não para mim? Rohana se viu imaginando e desejou poder adormecer, mas havia
Gabriel, seu rosto corado e, todos os deuses de uma vez sejam agradecidos, ainda sóbrio,
as mãos trêmulas dele segurando o garoto gentilmente, inclinando-se para beijá-la com
cuidado e desajeitadamente, segurando o pequeno bebê enrugado envolto em um velho
cobertor de bebê que ela tricotara para Elorie doze anos atrás. Ela pensou que Elorie
demorara muito tempo para largar suas bonecas.
- Você não quer olhar para nosso filho, Rohana? Um terceiro filho. Você não está feliz
agora por ter me dado o que eu queria, agora que tudo acabou?
- Acabou para você. – Ela disse. - Para mim, está apenas começando, Gabriel, quinze
anos ou mais de problemas. Também devo esperar que este aqui vá temer e desprezar o
pai dele?
Ele disse trêmulo: - Juro, Rohana, por quaisquer deuses que você desejar. Nesta noite,
nesta noite eu sabia que se tivesse te perdido, teria perdido a única coisa boa que entrou
em minha vida.
Sim, mas você jurou antes disso também...tantos juramentos, ela pensou, mas não se
incomodou em falar em voz alta. Ela pegou o bebê coberto nos braços, segurando-o perto e
aconchegou-o contra seus seios nus. Quase que imediatamente, com a obsessão singular
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que ela lembrava de seus outros confinamentos, lutando para desfazer o cobertor, contar
todos os dedos preciosos e os dedos dos pés, memorizá-los e depois contá-los novamente
caso ela tivesse perdido um, passar as mãos amorosamente a suavidade da cabecinha
redonda. Lembrou-se da velha história que havia sido contada em Arilinn que, pela primeira
hora após o nascimento, os bebês se lembravam de suas vidas passadas, antes que o véu
do esquecimento fosse abaixado novamente. Ele estava acordado, olhando-a com olhos
azuis lacrimejantes.
Gabriel disse: - Ele é uma criança linda, Rohana. Mas, garoto, se você voltar a
incomodar sua mãe, vou encaixotar suas pequenas orelhas...
- Oh, Gabriel, que maneira de cumprimentar o pobre bebê, ameaçando vencê-lo. - Ela
murmurou, sem realmente ouvir, concentrada na criança. Ela murmurou para ele,
cuidadosamente afiando as palavras com o toque mais forte que ousava em relação
telepática. - Olá meu querido. Eu sou sua mãe. Você encontrará seu pai mais tarde...ele
estava segurando você, mas eu temo que você não o tenha notado.
Tudo bem, ela pensou, mas tentou esconder o pensamento: ele não tinha idade
suficiente para enfrentar a hostilidade.
- Você tem dois irmãos, receio que não sejam muito bons para você...e uma irmã. Ela
pelo menos vai te amar. Ela ama todos os bebês. Eu decidi te nomear Keith... Espero que
você goste do nome. É um nome muito antigo na minha família, mas, tanto quanto sei, não
é usado na de Gabriel...
Ela não conseguia pensar em mais nada para dizer a ele, então voltou a alisar o
corpinho dele com as mãos, memorizando-o, sentindo uma onda de amor desamparado
que sentiu que não podia suportar. E pensar que eu não te queria! Era como o toque de
monitora que ela havia aprendido há muito tempo...
Repetidamente, ela percorreu o corpo minúsculo dele suas mãos amorosas, como se
ela pudesse envolvê-lo para sempre em seu amor mais terno e mantê-lo sempre seguro.
Mas ela já sabia a verdade e soube no instante em que seu filho mais novo e último
escapou do toque e a deixou segurando um pacote sem vida de carne gelada. Ela se jogou
nos braços de Kindra e chorou, mal sabendo quando eles a levantaram no carrinho e a
carregaram através da neve que caía em Ardais, para seu próprio quarto e sua própria
cama, ainda segurando o pequeno embrulho coberto, tentando acalmá-lo e procurar onde
seu bebê solitário tinha ido, sozinho na tempestade de neve...quando o tiraram dela, ela o
soltou sem protestar e ouviu Gabriel chorando também. Mas por que ele deveria chorar?
Ele realmente não conhecia a criança como ela mesma naquela única hora de sua vida.
- Não, meu senhor. - Disse a parteira com firmeza. - Teria acontecido mesmo se a
criança tivesse nascido aqui em sua própria cama, em suas próprias almofadas. Não foi
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nada que ela fez, certamente nada que Mestra Kindra fez, nada que alguém pudesse saber
ou impedir. Seu coração não foi formado para bater corretamente.
Rohana ainda estava chorando. Ela sabia que nunca mais iria parar de chorar até
morrer.
Ela chorou por dois dias. No final do segundo dia, Elorie entrou, chorando também, e
Rohana a abraçou ferozmente, pensando: este é meu bebê, a filha mais novo que sempre
terei.
- Você se importa por eu ter enterrado no seu cobertor de boneca, Elorie? Não tive
tempo de fazer um para ele. Era o que ele usava enquanto vivia, a única coisa que eu podia
dar a ele...
Ela então percebeu que os olhos dela estavam vermelhos. Ela também havia chorado?
O que ela tinha para chorar?
Elorie disse, abatida: - Não, eu não me importo. Deixe que fique com ele. Sinto muito,
mãe, eu realmente sinto muito.
Sim, ela sente: ela queria outro bebê para brincar. Sinto muito por ela não ter
entendido. Quando ela se foi, Rohana estava deitada sonolenta, sem querer se mexer ou
fazer qualquer coisa, doía demais, exceto ficar lá e se lembrar dos poucos minutos em que
ela segurava a criança viva em seus braços, necessitando em vão de tempo para parar que
ela pudesse se apegar a ele. Mas os momentos fugazes já estavam desaparecendo de sua
mente e Keith era apenas um sonho que desaparecia. Ele foi aonde os mortos vão e ela não
pôde segui-lo.
A vida continua, ela pensou tristemente. Não sei por que, mas é verdade. Agora ela se
lembrava dos planos nebulosos que havia feito antes do nascimento. Quando isso acabar,
irei para o sul, para longe daqui. Dolorosamente, ela percebeu que, sinceramente,
enquanto lamentava, profundamente como seu corpo e alma ansiavam pela criança que
tinha saído dela, agora ela estava livre para fazer planos que não envolviam estar atada a
um recém-nascido frágil por pelo menos um ano. Essa percepção foi lenta e culpada, como
se, ao perceber que a liberdade era bem-vinda, ela de alguma forma tivesse criado essa
situação e era culpada por desejá-la.
Eu não queria esse filho. Agora, quando não o tenho, deveria me alegrar, pensou ela.
Mas sua dor era muito nova, muito crua e real demais para aceitar isso ainda. No entanto,
ela estava começando a aceitar que, quando o choque do nascimento e perda
desaparecesse, ela ficaria realmente agradecida e que seu estado no momento era um
puramente de choque.
Aceitando isso, na próxima vez em que uma de suas mulheres veio na ponta dos pés
para perguntar se ela queria alguma coisa, ela fez um grande esforço para se arrastar na
cama e disse: - Sim. Eu quero banho e um pouco de sopa.
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As mulheres trouxeram as coisas e, com a ajuda de Kindra, ela conseguiu se lavar e


tomar a sopa. Ela percebeu que Kindra não a deixara por mais de alguns segundos desde o
nascimento e que ela havia tomado isso como algo corriqueiro. Agora ela estava ciente
disso e agradecida. Agora que ela podia olhar um pouco fora do círculo de dor angústia e
preocupação dos últimos dois dias. Era como emergir de um mergulho muito profundo,
finalmente limpando os pulmões e a mente d'água.
Ela disse: - Assim que estiver melhor, devo viajar para o sul. Talvez para o Conselho,
mas, de qualquer forma, não posso ficar aqui. Posso viajar com você, então, Kindra? Acho
que você não vai se lamentar por sair daqui.
- Não mesmo. - Kindra confessou. - Não que você tenha falhado em sua hospitalidade,
claro...
Rohana riu secamente. – Acho que a hospitalidade deste lugar é amaldiçoada. - Ela
disse. - Juro que nunca mais irei impor isso a mais ninguém.
Kindra sorriu para ela.
- Eu já disse isso antes e repito: você tem o espírito que a faria uma notável Amazona
Livre, Rohana. Gostaria que você voltasse comigo para a Casa da Guilda e prestasse
Juramento como uma de nós...
Rohana disse com a boca seca: - Estou tentando decidir se há alguma maneira de
honrar exatamente isso, Kindra. Está claro para mim que não sou necessária e nem
desejada aqui.
Os olhos de Kindra brilhavam. Ela disse suavemente: - Orei por dias para que você
visse como isso seria correto. Se você não é desejada por ninguém aqui, saiba que seria
muito bem-vinda lá. - Ela acrescentou, quase num sussurro: - Mais do que isso...eu me
juraria a você.
- E eu a você. - Rohana sussurrou, quase inaudível, mas Kindra a ouviu e a beijou
impulsivamente. Rohana lembrou-se daquele momento, que agora parecia ter sido a uma
vida atrás, quando Gabriel invadiu o quarto dela com acusações indescritíveis. Agora ela
não se importava com o que ele dizia ou o que pensava.
Quem não preferiria o carinho de Kindra e sua companhia ao invés da dele? E se ele
escolheu fazer disso algo mau ou pervertido, isso é apenas uma evidência de sua própria
mente imunda.
Mas não devo deter Kindra egoisticamente aqui. Ela tem trabalho e deveres próprios
que generosamente sacrificou para ficar comigo enquanto eu precisava tanto dela.
Ela tentou dizer o que sentia por Kindra, mas a mulher disse apenas: - Não há nada
que não possa esperar até que você possa viajar, e então iremos juntas.
- Juntas. - Rohana repetiu isso como uma promessa. Oh, estar livre do fardo e do peso
do Domínio, de saber que o bem-estar de toda alma, de Scaravel a Nevarsin, estava em seu
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poder, de gerenciar tudo, desde o plantio até os livros de bolso... Bem, agora Alida
administraria tudo isso e ficaria feliz com a chance.
Pela primeira vez em muitos anos ela começou a pensar sobre o que iria levar com ela,
se estivesse indo para o sul não apenas pelas poucas temporadas da temporada do
Conselho, mas por uma estadia indefinida, talvez para sempre, seja no Domínio de sua
família em Valeron ou para uma Casa da Guilda onde ela não seria mais Lady Rohana Aillard
e Ardais, mas simplesmente Rohana, filha de Liane. Ela não se arrependeria de abandonar a
identidade maior. Ela suportara isso por muito tempo. Não havia muitos bens. Suas roupas
e pouco o suficiente, pois a maior parte do que ela possuía não seria adequada para um
renunciante. Algumas roupas de montaria e algumas mudas de roupa de baixo. Sua pedra
de matriz, mechas de cabelo das crianças... Não. Isso não. Sem lembranças. Ela deixar
completamente para trás a vida como Rohana, Lady Ardais. A Lady Ardais desapareceria
para sempre. Alguém saberia ou se importaria com o que aconteceu comigo? Certamente
nunca ocorreria a alguém procurar dentro de uma Casa da Guilda…. E eu que durante anos
estou no Conselho, negociei as leis desta terra? Quem sentará em meu lugar, que falará por
Ardais? Haverá alguém para falar pelo meu povo? Eles serão deixados ao capricho de
Gabriel ou ao egoísmo de Kyril? Ou o orgulho frio e interesseiro de Alida? Isso não é importa
para mim. Durante dezoito anos, carrego esse fardo que nem é meu, simplesmente porque
Gabriel não aceitou ou não pôde aceita-lo. Não importa qual dos dois. Agora ele deve fazer
seu trabalho destinado ou será abandonado. Ele não pode mais transferir esse fardo,
indesejável, para meus ombros, servi por tempo suficiente, não servirei mais.
Naquela tarde, ela se sentiu mais forte, e quando Gabriel veio vê-la, ela disse às
mulheres para deixá-lo entrar. Ele ainda estava sóbrio, para sua surpresa. Esse tinha sido
seu período de sobriedade mais longo em anos. Bem, ela não se importava mais se ele
estava bêbado ou sóbrio. O que ele fazia agora não significava nada para ela. Mas ela se
perguntou entorpecida por que ele nunca havia tentado isso quando lhe importava tanto,
quando ela se contorcia tentando mantê-lo sóbrio e forte o suficiente para lidar mesmo
com os menores assuntos da propriedade. Isso significaria muito para ela, quando ela o
amava.
Suas mãos tremiam, mas ele estava começando a parecer um pouco mais com o jovem
e bonito Dom Gabriel com quem ela se casara dezoito anos atrás. Seus olhos estavam
clareando. Ela não se lembrava de como eram azuis.
- Você parece melhor, Rohana.
- Obrigada, meu querido. Estou melhor. Fisicamente, pelo menos.
- Que pena, - ele disse sem rodeios - eu estava meio ansioso por ter um pouco de
companhia novamente. Alguém mais para pensar. - Ele acrescentou com grande amargura:
- Alguém mais por quem tentar ficar sóbrio. Você não se importa mais, não é?
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A franqueza disso a fez recuar, mas este novo e sóbrio Gabriel merecia honestidade.
- Não, Gabriel, temo que não. Eu sinto muito. Eu gostaria de me importar. - Ela
acrescentou depois de um momento: - Elorie se importa, meu querido. O pai significa muito
para ela.
Ele disse pensativo: - Suponho que não faz sentido tentar. Cedo ou tarde…
Mais cedo ou mais tarde ele começaria a ter convulsões novamente, e apenas a bebida
aliviaria a dor e os medos sem forma. E não havia razão para se importar. Era tarde demais
para começar de novo. Se a criança tivesse vivido...talvez houvesse algum motivo para
tentar reconstruir uma vida juntos novamente. Eles podiam ter feito isso pela criança.
Mesmo assim, provavelmente era tarde demais para Gabriel. Ele não podia suportar as
dores do retorno à sobriedade, a uma decência que só via como privação. Com a criança,
eles teriam um motivo para tentar. Agora não havia motivo e ela estava livre. A dor que ela
sentia era apenas a dor por uma porta se fechando.
Ela não pôde deixar de lembrar de Gabriel olhando para ela e Kindra, acusando-a do
impensável. Agora, quando ele sabia que ela iria embora com Kindra, nada o convenceria
de que ele estava enganado. Talvez, ela pensou dolorosamente, ele não esteja enganado.
Talvez ela tenha falhado com Gabriel, porque no fundo do seu íntimo o que ela queria não
era algo que Gabriel podia fornecer. Talvez o que ela realmente quisesse o tempo todo
fosse a ternura e força femininas que Kindra poderia lhe dar. Então Gabriel, em suas
acusações de embriaguez, devia ter falado mais verdadeiramente do que imaginava.
Era isso? E se era assim, é minha culpa? Ou se é minha culpa, é um crime? Eu já fui
consultada sobre se eu queria um marido ou se era Gabriel que eu queria? Certamente
nunca pensei em me casar com mais ninguém, nem em dezoito anos das reuniões do
Comyn, de homens da minha própria posição e casta, jamais olhei para qualquer um deles
com desejo ou imaginando como seria se o destino me lançasse à outro braço que não o de
Gabriel. Mulheres infelizes casadas procuram consolo em outro lugar, não sou tão ingênua
para não saber disso. Mas se é simplesmente porque me casei com o homem errado, então
por que, em nome de Evanda que é a Deusa do Amor, tanto lícita quanto profana...por que
não sonho com um jovem bonito de alguma família Comyn? Por que, então, todos os meus
sonhos de liberdade se concentram em uma mulher, em uma Amazona Livre, em Kindra, de
fato? Por quê? Fui entregue a Gabriel e cumpri meu dever, e o dele, sem olhar para trás,
durante dezoito anos. Depois de todo esse tempo, não tenho direito a alguma liberdade e
felicidade para mim? Por que devo dar o que resta da minha vida além do que já dei?
Gabriel se virou e estava andando sem rumo pelo quarto da maneira que sempre a
fazia se mexer. Ela sempre se perguntava o que ele queria dela. Fosse o que fosse, ela
nunca teve que dar. Ela se perguntou se ele sabia a decisão que ela estava tomando. Houve
um tempo em que ele sempre sabia o que ela estava pensando. Bem, se ele sabia agora, ela
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não precisava se explicar. E se não, ele não merecia explicação. Ela faria o que devia. Ela
teria sua liberdade. Ninguém poderia esperar mais dela do que ela já havia dado. As
mulheres de seu próprio Domínio, as Aillard, entenderiam. E se não o fizessem...bem, pelo
menos ela teria sua liberdade.
As palavras do Juramento renuncitante que Kindra havia explicado tantos anos atrás,
estavam ecoando em sua mente:
Deste dia em diante, renuncio a lealdade a qualquer família, clã, guardião ou senhor, e
juro que devo lealdade apenas às leis da terra como qualquer uma cidadã livre deve: ao
reino, à coroa e ao Deuses.
Não ser mais um símbolo de um grande Domínio, mas simples e exclusivamente ela
mesma. Eu vivi todos esses anos pelo que eu devia aos outros, nunca pelo que eu me devia.
Ela viu Gabriel sair do quarto e descer em direção ao Salão Principal. Como ela supôs,
ele estava indo direto pegar uma bebida. Seria loucura tentar novamente.
O que eles diriam no Conselho, quando se sabia que Lady Rohana, chefe do Domínio
Aillard, e por padrão, detendo o Domínio Ardais, no lugar de Gabriel, havia sido perdida na
Casa da Guilda?
As Renunciantes mantinham sua carta por sufrágio. Kindra havia explicado a ela uma
vez que as renunciantes não tinham permissão para procurar recrutas, mas apenas para
aceitar as mulheres que as procuravam.
Não importa se algumas esposas de artesãos ou filhas de agricultores, esposas
agredidas ou crianças exploradas fogem para a Casa da Guilda. Mas se a Casa da Guilda se
aproximar para assumir o comando de dois Domínios, elas ainda serão toleradas? Ou o
Conselho buscará reparação na Casa da Guilda? A carta delas poderia sobreviver se elas
seduzissem de seu dever jurado, digamos, a Guardiã de Arilinn? Por mais ridícula que fosse
a imagem de Leonie Hastur fugindo da Torre em seus véus vermelhos e fazendo os votos de
uma Renunciante, ainda assim devia ser encarada como uma possibilidade. Se ela, Rohana,
pudesse ser tentada em seu dever claro, havia alguma mulher nos Domínios acima de
suspeita? Isso significaria, então, a destruição do Comyn? Valeria a pena correr os risco de
extinguir a carta e que todas as mulheres fossem escravizadas e sem nenhuma outra
escolha?
Não, não havia dúvida disso. Ela estava livre para fazer o que faria, mas então ela devia
decidir viver por si mesma sem pensar no dever que tinha com todos os outros. Deveria
sacrificar o Domínio, a família e o bem-estar de todos os homens e mulheres no Domínio, a
fim de fazer o que quisesse e viver sozinha? Para Kindra, o preço a pagar fora alto demais.
Ela escolhera o dever de viver para si mesma. Mas Kindra nunca teve um dever assim com
ninguém, nem optara por esse dever. Kindra fora dada em casamento, sem dúvida sem
consentimento interno, enquanto ela, Rohana, desfrutava dos privilégios de uma dama
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Comyn. Ela deveria apreciá-los enquanto nada exigiam dela e recusar o fardo quando este
se tornasse pesado? E se ela decidisse seguir seu próprio caminho e viver sua própria vida,
o Conselho não se vingaria da Casa da Guilda, até mesmo retiraria de uma vez por todas a
tolerância estendida às Casas da Guilda e a Carta dada às Renunciantes? Isso poderia
destruir Kindra também...
Não. Com todo o meu prestígio, lutarei por esse direito. Ninguém tocará nos direitos da
Casa da Guilda enquanto viver. Eu sou Comyn. Quem poderia me negar mesmo que eu exija
para mim o que a filha de qualquer pequeno agricultor pode ter...minha liberdade?
Gabriel estava no salão principal. Rohana, ainda trêmula, o seguiu e o viu encher um
copo de uma jarra em um aparador. Ela suspirou. Ela só precisava permanecer calada e não
haveria necessidade de confronto ou escolha. Ele saberia que ela se foi...ou se importaria?
Ele não ficaria nem um pouco aliviado por se encontrar sozinho com sua garrafa, por
encontrar nela a morte que certamente estava procurando? Ela tinha alguma
responsabilidade para com ele? Ele o drenou rapidamente, levantou a mão para o
mordomo, exigindo que a garrafa fosse recarregada.
Rohana disse: - Não mais.
Ela ficou diante do mordomo, preparando-se fracamente com as duas mãos.
- Ouça-me, Hallert. – Ela disse. - A partir deste momento, quando você der ao Mestre
mais bebida do que suficiente para a sede dele, não será a raiva dele que você enfrentará.
Será a minha. Voce entendee? A minha. O Mestre precisa estar bem e forte para os dias
que estão chegando em Ardais. - Ela viu Gabriel fazer uma careta e disse com urgência: - Eu
vou ajudá-lo, mas você deve trabalhar comigo. Kyril não está pronto para o Domínio,
Gabriel. De alguma forma, você deve permanecer forte para que ele não possa tirar isso de
nós, o que ele está ansioso demais para fazer.
Por um momento, uma velha determinação cintilou em seus olhos. Seria o suficiente
por enquanto. Haveria mais luta pela frente e ele brigaria com ela sobre isso novamente,
mas de alguma forma ela preservaria o Domínio para Gabriel. E, talvez, quando Kyril
atingisse a maturidade, ele teria melhorado e amadurecido o suficiente para ser confiável
com o Domínio. E se não... Bem, eles enfrentariam isso quando chegasse a hora. Pelo
menos não viria agora ou neste ano ou no próximo.
- Você está certa. – Gabriel disse. - Aquele jovem novato não está pronto para o
Domínio. Vamos mantê-lo por um tempo ainda.
Rohana de repente percebeu que, sem qualquer ato consciente, ela havia tomado sua
decisão. Ela agiu quase sem pensar. Portanto, não poderia haver outra opção para ela. Esse
era o seu destino, o caminho que ela trilharia, querendo ou não. O mundo seguiria como
devia, não como ela desejava.
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Ela estava repleta de uma grande e terrível sensação de perda. Havia perdido tudo o
mais há muito tempo e agora sabia que, sem qualquer escolha ou renúncia deliberada,
também havia perdido Kindra e todas as esperanças que tinha por outra vida.
Ela disse ao mordomo: - Traga para o Mestre um pouco de cidra ou suco de maçã. Ele
está com sede. - O homem se apressou e Rohana suspirou, vendo em sua mente o rosto
ferido de Kindra quando ela soubesse da decisão que já havia sido tomada, vacilando na
longa e solitária estrada que ela deveria seguir sozinha. Kindra era liberdade e sim, amor,
mas esse amor e liberdade não podiam ser dela. Ela não era nem livre o suficiente para
buscar a própria liberdade.
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O perjuro
Marion Zimmer Bradley

No frescor vespertino, Fiora de Arilinn caminhava silenciosamente pelo Jardim da


Guardiã, o Jardim de Fragrância. Ela veio ao local para ficar sozinha, para desfrutar o
perfume das flores e ervas plantadas por alguma Guardiã morta há muito tempo. Ela
especulou quem poderia ter sido esta Guardiã, a Guardiã que antes do tempo registrado
criara este local pacifico, seu próprio retrato. Teria ela sido, também, cega? Ou talvez ele —
pois Fiora sabia que naqueles tempos antigos alguns homens também haviam sido
Guardiões — mesmo em Arilinn. Algum dia, talvez, quando o trabalho não estivesse tão
premente, ela poderia empreender a Pesquisa no Tempo para tentar descobrir algo desse
antigo Guardião.
Fiora sorriu, quase nostálgica. Quando o trabalho não estivesse tão premente — era
como dizer quando laranjas e maçãs brotassem nas muralhas de gelo de Nevarsin! A vida
de uma Guardiã, principalmente a de uma Guardiã de Arilinn, era atarefada demais para
permitir o prazer da pura curiosidade intelectual. Haviam noviços a serem treinados, jovens
a serem testados pelo laran, e, se possível, reclamados para um período de serviço nas
Transmissões. Deste ultimo, no entanto, Fiora estava isenta; uma Guardiã tinha trabalho
mais importante a fazer.
Por este momento, Fiora estava livre para desfrutar a privacidade de seu jardim
especial, seu próprio Domínio particular. Mas não por muito tempo; ela ouviu o som do
portão do jardim, e mesmo antes que sua mente alçasse vôo para tocá-lo, já sabia quem
era pelo passo trôpego e o leve odor de kirian que sempre pairava sobre ele; Rian Ardais, o
velho técnico que ela conhecia desde a infância.
Ele novamente estava bêbado por causa do kirian. Fiora suspirou; detestava vê-lo
assim, mas como poderia proibir, mesmo sabendo que ele cedo ou tarde destruiria si
mesmo? Ela lembrou que Janine, a antiga Guardiã que a treinara quando era uma recém-
chegada á Arilinn, mencionara a continua intoxicação de Rian:
— É o menor de dois males. Não cabe á mim negar á ele o que quer que precise para
manter o equilíbrio. Ele nunca permite que isso afete seu trabalho; na transmissão e no
circulo está sempre perfeitamente sóbrio. — Janine não dissera mais nada, mas ainda assim
Fiora ouvira claramente as palavras não ditas, como posso impedi-lo ou negar esse deslize,
quando a alternativa seria que ele já não poderia tolerar o trabalho aqui?
— Domna Fiora — o velho disse, instável — Eu não a incomodaria nessa situação sem
necessidade. A senhora fez por merecer um tempo livre, e...
— Deixe para lá — ela disse. Ela vira o velho uma vez, antes que a doença lhe privasse
da visão. Ainda o via belo e empertigado, embora soubesse que ele ficara esquelético e que
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suas velhas mãos tremiam. Exceto, é claro, ao trabalhar nas redes, quando elas eram
sempre perfeitamente firmes. Como era estranho que ele conservasse a habilidade de
permanecer firme dentro de uma rede de matriz, quando não podia sequer barbear-se sem
se cortar.
— Qual é o problema, Rian?
— Há um mensageiro no pátio externo, — ele disse —, de Ardais. O Jovem Dyan é
necessário em casa, e se for possível, eu devo ir também.
— Impossível — Fiora disse — Você pode ir, claro; sem duvida merece uma folga. Mas
sabe muito bem que Dyan não pode. — Ela ficara impressionada que ele sequer pedira; a
mais rigorosa das leis deixava claro que pelos primeiros quatro meses depois que um
noviço fosse aceito em Arilinn, nada poderia atrapalhar seu treinamento. Bêbado ou não,
Rian deveria ter sido capaz de lidar com isso sem apelar para uma Guardiã. — Mande o
mensageiro embora e diga-lhes que Dyan está em isolamento.
Então ela percebeu que o velho estava tremendo. Fiora adiantou-se com a consciência
que lhe servia melhor do que a visão. Devia ter percebido. Ele não a teria interrompido aqui
sem necessidade, afinal, e isso era de longe mais urgente do que ela acreditava. Ela
suspirou, dando-se conta do quanto ele se esforçava para impedir que qualquer indicio de
seu sofrimento á alcançasse, enquanto desfrutava da tranqüilidade do jardim.
— Diga-me. — ela disse em voz alta.
Ele falou, cuidadosamente disciplinando seus pensamentos para que Fiora não
precisasse captar nada além das palavras faladas se assim escolhesse.
— Uma morte.
— Lorde Kyril? — Mas esta era uma perda pequena para qualquer um, pensou Fiora.
Mesmo no isolamento de Arilinn, a jovem Guardiã ouvira falar sobre o Lorde de Ardais,
sobre sua vida dissoluta, seus acessos de loucura. Muitos do clã Ardais eram perigosamente
instáveis. Kyril louco; o próprio Rian, embora desse o seu melhor, viciado á intoxicação de
kirian. Era cedo demais para saber sobre o jovem Dyan, embora ela tivesse esperanças a
seu respeito.
— Mesmo por causa de uma morte na família Dyan não pode ser liberado tão cedo. —
Apesar de que, se tivesse sido Kyril, Dyan seria o Herdeiro de Ardais e não haveria razão em
permitir que prestasse juramento em Arilinn á serviço das Torres.
— Não é Kyril — A voz de Rian tremia, e embora ele tentasse manter o controle de
seus pensamentos ela ouviu claramente, quisera que fosse nada mais do que isso! — É pior
do que isso. Os Deuses são testemunhas de que amo meu irmão e nunca invejei seu direito
á herança de nossa casa; fiquei feliz em construir minha vida aqui.
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Sim, Fiora pensou, tão feliz que não pode passar uma semana sem se embebedar com
kirian ou alguma outra droga. Mas quem era ela para zombar das defesas do homem? Ela
tinha suas próprias. Ela disse apenas, novamente:
— Diga-me.
Ele ainda hesitava. Ela podia senti-lo pensar; Fiora era Guardiã, virgem jurada, tais
coisas não deveriam ser ditas em sua presença.
Finalmente ele falou, e ela pôde sentir o desespero em sua voz:
— É a esposa de Dom Kyril, Lady Valentina. Há anos que está inválida, e sua filha mais
jovem — Dyan é de fato o mais velho, filho dele com sua primeira esposa — sua filha Elorie
tem atuado como anfitriã. Algumas das festas de Kyril são — dissolutas. — ele disse,
cuidadosamente escolhendo a palavra mais neutra que conseguiu.
Foi o que Fiora ouvira. Ela fez um gesto de cabeça para que ele continuasse.
— Lady Valentina ficava relutante por Elorie participar dessas festas, — Rian disse —
mas Kyril não permitia o contrário. Então numa dessas festas, Domna Valentina apareceu,
apesar de sua doença, para proteger a virtude da jovem. E Kyril, num rompante alcoólico —
ou pior — a golpeou.
Ele parou, mas Fiora já sabia o pior.
— Ele a matou.
De fato era pior do que Fiora acreditava. Kyril sempre fora um homem dissoluto — a
lista de seus bastardos era conhecida, e não totalmente por zombaria, por igualar as
lendárias conquistas de Dom Hilario, um notório lascivo dos contos populares e fábulas — e
havia histórias de que ele pagara caro mais de uma vez para silenciar um espancamento
brutal. Fiora era inocente demais para estar a par das implicações sexuais da situação, e
teria acreditado que significava nada mais do que a brutalidade comum de um bêbado. Mas
assassinato, e de uma esposa legalizada di catenas — isso era algo mais, e provavelmente
não poderia ser totalmente silenciado.
Ainda assim Fiora hesitou.
— Você é o Regente de Ardais até que Dyan chegue á maioridade — ela disse após
pensar por um momento — e eu reluto em interromper seu treinamento. Ele sabe que não
tem o Dom Ardais, mas é um telepata potencialmente poderoso. Um telepata sem
treinamento é uma ameaça a si mesmo e á todos á sua volta. — ela acrescentou, citando
uma das mais antigas máximas do treinamento de Arillin. — Sei que essa é uma séria crise
em Ardais e talvez em todo o Comyn, Dom Rian; pode muito bem exigir uma ação do
Conselho. Mas deve envolver Dyan? Você é irmão de Dom Kyril e Regente. E pode partir tão
logo deseje; darei a minha permissão sem pensar duas vezes. Mas por que Dyan deve
acompanhá-lo? Nem mesmo é como se Lady Valentina fosse sua mãe; ela não era mais do
que uma madrasta. Acho que você devia ir de uma vez e que Dyan deve permanecer aqui.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 135

Rian torceu as mãos. Fiora podia sentir o desespero do homem; não precisava da visão
para isso. Mais uma vez ela estava perifericamente ciente do cheiro forte da droga que
aderia á ele, obstruindo os odores do jardim, e sentiu com irritação que ele havia profanado
seu retiro favorito; especulou se um dia caminharia novamente pelo local sem o
insuportável odor de droga e tristeza que ela podia sentir na brisa vespertina. Silêncio; a
mulher cega retesou-se pela dor do homem que a encarava.
Rian não era, Fiora pensou, um homem realmente velho; era o pesar e talvez os
efeitos secundários das drogas que faziam com que tivesse essa aparência. Ele devia estar
no mais saudável estágio da meia-idade; era mais de um ano mais novo do que Dom Kyril.
Contudo ele parecia decrépito, e ela o tem visto assim através dos olhos de todos em
Arilinn. Ele ainda permanecia de pé diante dela, silencioso, e após um momento ela ouviu o
breve som de um soluço reprimido.
— Rian, o que foi? Há algo mais?
Ele não falou, mas a Guardiã, aberta em empatia ao sofrimento do homem diante de
si, foi inundada pelo seu desespero. Neste momento ela soube por que Rian se drogava,
por que parecia um velho quando era mais jovem do que Kyril, enquanto ouvia sua primeira
palavra balbuciada e envergonhada:
— Eu tenho — sempre tive medo de Kyril. Não tenho a ousadia, nunca fui capaz de
enfrentar sua — sua raiva, sua brutalidade. Desde que eu era rapaz. Eu procurei nunca
sequer encará-lo. Dyan não tem medo do pai. Não me atrevo a ir para casa, especialmente
não agora, a menos que Dyan esteja comigo.
Fiora esforçou-se para ocultar seu assombro e piedade, dando-se conta de que não era
desprovido de um desprezo do qual ela sabia que devia se envergonhar. A fraqueza de Rian
não era de sua própria escolha. Ainda assim ela sabia que nada seria o mesmo entre os dois
novamente. Ela era uma Guardiã; alcançara esse alto posto por trabalho duro e realização,
e uma austeridade que teria derrubado nove de dez mulheres. Ela era superior a Rian, mas
o homem era mais velho, e ela sempre gostara dele e até o admirara. O vínculo permanecia
intacto, mas ela ficara impressionada e perturbada pela mudança em seus próprios
sentimentos. No entanto, a jovem Guardiã tornou sua voz gentil, sem julgamento.
— Bem, então, Rian, parece que não há como evitar. Falarei com Dyan. Se isso puder
ser feito sem arruinar todo o seu treinamento até aqui, lhe darei minha permissão para que
vá com você para Ardais. Mande que venha ter comigo — ela hesitou — mas não aqui. —
Ela não gostaria que seu jardim fosse ainda mais corrompido. — Esperarei por ele, daqui à
uma hora, na sala da lareira.

Dyan Ardais, nesta época de sua vida — ele tinha quase dezenove anos, ela pensou —
era tão frágil quanto um menino. Fiora, que por certo não podia vê-lo, vira-o com
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freqüência através dos olhos dos outros no circulo de Arilinn. Ele era um rapaz
sombriamente belo, o cabelo escuro grosseiramente caindo em cachos pelo rosto, que era
estreito e bem feito. Também tinha olhos do cinza-aço incolor que, Fiora sabia, por vezes
era uma marca dos mais fortes telepatas. Se Dyan fosse um telepata, no entanto, ele havia
aprendido a proteger seus pensamentos perfeitamente, até mesmo dela.
No treinamento que a tornou uma Guardiã, ela aprendera a ser imune a todos os
homens; e Dyan não era exceção. Mas embora Fiora fosse inocente, ela era uma Guardiã e
uma telepata e durante o treinamento inicial, quando Dyan chegara aqui, aprendera muitas
coisas sobre ele, e uma era essa: ele sempre seria imune á ela ou a qualquer mulher. Isso
não fazia diferença para Fiora; ele não era o primeiro nem o último amante de homens a
conquistar posição e reputação nas Torres. O que a incomodava era que um rapaz tão
jovem — a própria Fiora não chegara aos trinta, mas o treinamento de uma Guardiã fazia
com que se envelhecesse rapidamente tanto em corpo quanto em mente — fosse tão
tenso, tão impassível e invulnerável. Nesta idade, um noviço numa Torre devia estar aberto
á sua Guardiã. Seria esse um primeiro sinal de aviso da instabilidade de Ardais, que mais
tarde poderia revelar-se, como Rian, no vicio á alguma droga? Ou — imparcialmente, ela
recordou o que sabia de Dom Kyril — era apenas o efeito da criação na presença de um
louco? Pelo que ela tinha conhecimento, e ela poderia ter tomado conhecimento, Dyan
utilizava kirian apenas pela necessidade do trabalho nas Torres e para treinamento. E
embora alguns Ardais bebessem demais, ela percebera que ele bebia apenas
moderadamente e ao jantar. Ele não tinha, ao que ela sabia, nenhuma falha de caráter
evidente; algumas Guardiãs poderiam ter considerado sua homossexualidade uma falha,
mas isso não incomodava Fiora enquanto não criasse problemas dentro do circulo, e até
agora ela não ouvira falar de nenhuma dissensão que isso possa ter causado; os outros no
circulo eram tolerantes e pareciam gostar dele. Ele parecia um jovem quieto e inofensivo,
mas ainda assim algo nele, algo subliminar que ela ainda não conseguia identificar direito,
ainda a incomodava; por que um jovem da idade de Dyan seria nebuloso quando para sua
Guardiã ele devia ser transparente?
Dyan curvou-se numa reverência e disse, na voz musical que era, para Fiora, uma de
suas qualidades mais atraentes:
— Meu tio disse que queria falar comigo, Domna.
— Ele lhe disse qualquer coisa sobre o assunto?
— Disse que havia problemas em casa, e que eu era necessário lá. Nada além disso...
não; ele também disse que era importante o bastante para que eu voltasse para casa
mesmo que não tivesse passado pelo meu primeiro período de provação aqui. — Ele parou,
na expectativa.
Fiora perguntou:
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— Quer ir para casa, Dyan? — E pela primeira vez ela sentiu um vestígio de emoção
em sua voz.
— Por quê? Meu trabalho aqui tem sido insatisfatório? Eu tenho — tenho me
esforçado muito...
Ela disse rapidamente:
— Não é nada disso, Dyan. Nada me daria mais prazer do que você completar seu
treinamento aqui conosco, e talvez trabalhar conosco por um tempo, talvez muitos anos;
no entanto, já que você é o Herdeiro de Ardais, não pode passar uma vida aqui. Mas, como
Rian lhe disse, há um problema em casa que ele sente não ter competência para enfrentar
sozinho. Ele pediu-nos como um favor que permitíssemos que fosse com ele. Isso é muito
incomum nesse estágio do seu treinamento, e eu preciso ponderar se fará algum mal
interromper seu treinamento nesse momento. — Ela acrescentou sem rodeios — Se está
aqui apenas por que é infeliz em seu lar, como pode compreender, sua dedicação á Arilinn
está de fato em questão.
Ela podia sentir que ele sorria. Ele disse:
— É verdade que eu não tenho muito amor pela vida em Ardais. Não sei o quanto sabe
de meu pai, Dama, mas lhe garanto, um desejo de escapar ao caos da vida em Ardais é um
sinal saudável de uma mente sã. Que eu encontre prazer no meu trabalho aqui — é algo
ruim?
— Sem dúvida que não — ela disse — e eu não encontro nenhuma falha em particular
em você neste sentido. Quem tem treinado você?
— Rian, na maior parte. Ele me disse que acha que eu serei técnico. E Domna Angélica
disse que acredita que dominei o trabalho de um monitor. Ela disse que eu estava pronto
para o Juramento do monitor.
— Isso eu sem dúvida autorizarei — Fiora disse — e é até mesmo seu direito tomá-lo
das minhas mãos se desejar. Contudo, deve ter percebido enquanto conversávamos que
você não respondeu minha pergunta, Dyan. Quer ir para casa?
Ele suspirou, e esse suspiro pesado respondeu a pergunta. Fiora não era uma mulher
maternal, mas por um momento sentiu que gostaria de proteger o jovem em seus braços;
uma sensação fugaz, e que, ela sabia, teria perturbado Dyan tanto quanto a ela própria.
Recordando-se do dever de questionar, não apenas em palavras, ela o alcançou; podia
sentir a tensão em seus ombros, o peso das linhas em seu rosto, lhe dizendo melhor do que
a visão qual seria a resposta á sua pergunta.
— Não quero. Mas se sou necessário, como posso recusar? Rian parece bem, mas não
está — ele fez uma pausa, e ela sentiu que procurava por palavras sinceras que não
refletissem em seu parente — não está em seu estado normal.
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Ela não questionou a polida evasão do que ela realmente lhe perguntara; no entanto
sentiu, com alguma angustia, que ele deveria estar propenso a ser mais honesto com sua
Guardiã.
— Dyan, você é um rapaz responsável; qual é a sua opinião? Isso prejudicará seu
treinamento? Deixo a decisão por sua conta.
O suspiro que ele soltou parecia ter sido extraído das profundezas de seu ser. Ele
disse:
— Eu agradeço, Domna, por ter feito essa pergunta. A única resposta que posso
oferecer é que se o Domínio exige minha presença, não devo pensar em mais nada.
Novamente, sem realmente saber por que, Fiora sentiu uma enorme piedade pelo
rapaz diante dela.
— Falou como um homem honrado, Dyan.
Ela pôde sentir os ombros de Dyan se curvarem, como se ele carregasse o peso de um
planeta sobre eles. Não, não um planeta. Apenas um Domínio. Ela disse gentilmente:
— Assim só resta lhe conferir o Juramento do monitor, Dyan; não deve partir sem isso.
Depois, está livre para fazer como sua consciência ordenar.

~o⭐o~

Ela os dispensou poucas horas depois em frente aos portões de Arilinn. Rian já em sua
sela, curvado e parecendo mais velho do que realmente era; Dyan de pé ao lado de seu
cavalo, seu belo rosto marcado com a tensão que Fiora podia sentir, sem enxergar, da
distância de vários passos em que esse encontrava. Ele curvou-se respeitosamente sobre
sua mão e ela pôde sentir as linhas desenhadas em seu rosto.
— Adeus, Dama. Espero retornar em breve.
— Desejo-lhe uma viagem agradável.
— Isso é impossível. — Dyan disse com um leve toque de brincadeira — A viagem até
Ardais passa por algumas das piores montanhas nos Domínios, incluindo o Passo de
Scaravel.
— Pois então lhe desejo uma viagem segura; e eu espero que possa retornar em breve
e que quando chegar em casa encontre os problemas menos graves do que previu. — ela
disse, e eles montaram e partiram. Enquanto eles se afastavam, Fiora sentiu uma enorme
raiva. Não, pensou, eu nunca devia ter permitido que se fosse!
Os parentes cavalgaram em silêncio por algum tempo. Finalmente Dyan disse:
— O senhor soube que Fiora insistiu que eu prestasse o Juramento de monitor antes
de deixar a Torre. Essa pressa é comum, tio?
Rian suspirou e disse:
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 139

— De fato, é costumeiro conferir o Juramento até mesmo ás crianças assim que


tiverem idade o bastante para compreender seu significado.
— Então não foi uma declaração pessoal de que Fiora não confiava em mim — que ela
estivesse tão ansiosa para vincular meu Juramento? — Dyan perguntou.
Rian franziu o cenho e disse:
— Claro que não. É costumeiro.
— Sem dúvida.
— Você dificilmente pode ter qualquer remorso em prestar o Juramento de um
monitor — exclamou Rian, recordando as palavras do Juramento... não penetrar em
nenhuma mente a não ser para ajudar ou curar, e nunca forçar a consciência de ninguém.
— Talvez não — Dyan disse após um momento — mas ainda não posso evitar sentir
como se eu tivesse renunciado a algum direito sobre a minha própria consciência. Não
achava que eu precisava de algo para guardar minha consciência, nem um Juramento para
obrigar-me ao uso ético do laran.
— O Juramento é necessário principalmente para aqueles relutantes em prestá-lo —
disse Rian — aqueles que sentem que não precisam dele de fato não tem escrúpulos a
respeito.
Ele sentiu que Dyan queria falar mais. Mas não falou.

~o⭐o~

A viajem levou quatro dias, na velocidade máxima que podiam empregar nas
montanhas. Quando puderam ver o Castelo Ardais, Dyan notou que a flâmula carmesim e
cinza estava tremulando, o que anunciava que o Senhor do Domínio estava presente.
— Ele está aqui — Dyan disse. — Talvez eu desejasse que tivesse nos escapado. O
Domínio está de luto; isso é arrogância.
— O mais provável — Rian disse — é que ele se sinta tão justificado que não lhe
ocorreu escapar á justiça.
Dyan disse com um suspiro:
— Me lembro dele como era antes — quando eu era pequeno. Eu o amava; agora mal
consigo recordar quando ele não foi um bruto. Lembro de me esconder num armário
quando ele estava bêbado e berrando por todo o castelo, ameaçando a todos nós... acho
que o mais triste nisso é que Elorie lembrará apenas disso e que não tenha a lembrança de
um pai para amar; por que apesar de tudo, Rian, nunca duvide disso; amo meu pai, seja lá o
que tenha feito.
— Eu nunca pensei em duvidar disso, rapaz. — Rian disse gentilmente. — Eu também
já o amei, um dia.
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Quase no umbral, Elorie apareceu, pálida como a morte; pareceu aos homens que ela
não havia dormido ou se alimentado desde a morte da mãe. Ela lançou-se aos braços de
Dyan, chorando.
— Oh, meu irmão! Você soube — que minha mãe...
— Calma, irmãzinha — Dyan disse, acariciando seus cabelos, — Vim tão logo fiquei
sabendo. Eu também a amava. Onde está nosso pai?
— Ele se trancou no quarto da Torre e não permite que ninguém se aproxime, nem
mesmo seus pajens. Por todo o dia seguinte, ele ficou bêbado e gritou e urrou por todo o
castelo, oferecendo-se a lutar com qualquer um... — Elorie estremeceu, e Dyan,
recordando episódios similares de quando ele próprio era muito jovem, deu-lhe
palmadinhas como se ela fosse uma menininha. — Então ele se escondeu no quarto da
Torre e não quer mais sair. Tive que organizar tudo para — para a mãe...
— Eu lamento, irmãzinha; estou aqui agora, e você não precisa ter medo de nada.
Você deve ir descansar agora, e dormir. Diga á sua ama para colocá-la na cama, e que lhe
dê uma poção para dormir; eu tomarei conta de tudo, como é adequado ao Regente do
Domínio — disse Dyan — E assim que sua mãe for enterrada, você não pode ficar aqui
sozinha com o pai, não agora.
— Mas para onde eu posso ir? — ela perguntou.
— Encontrarei um lugar para enviá-la; talvez você possa ser acolhida em Armida ou
mesmo numa das Torres; você é Comyn e de nascimento nobre. — disse Dyan, — mas
agora você deve dormir, comer e descansar; deve ter uma aparência apresentável e devida
a uma dama quando sua mãe for colocada para descansar. Você não quer parecer como se
residisse sob sitio aqui — mesmo — ele acrescentou astutamente — que seja assim como
se sente.
— Mas o que será do pai? Vai permitir que ele se esconda lá na Torre a dizer coisas
perversas sobre como a mãe o levou a matá-la?
Dyan disse tranqüilamente:
— Deve deixar o pai por minha conta, Lori, criança.
E ante o seu olhar aliviado ele acariciou seus cabelos novamente e disse para Rian:
— Por favor, chame pela ama dela agora, e diga-lhe para levar Lori aos seus aposentos
e tomar conta dela adequadamente.
— Oh — Elorie suspirou, e ele pôde ver que ela estava quase desmaiando — Estou tão
cansada, tão feliz que esteja em casa, irmão. Agora que está aqui, tudo vai entrar nos eixos.
Quando Elorie foi levada para os seus aposentos, Dyan entrou no Grande Salão, e
chamou o coridom.
— Lorde Dyan, como é bom vê-lo — o homem disse, e curiosamente repetiu aquilo
que Elorie dissera: — Agora que está aqui, tudo vai entrar nos eixos. — Era como um peso
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sobre ele; Dyan pensou, com uma raiva sufocada, que eles deviam procurar facilitar as
coisas para ele, ao invés de esperarem até que a carga pudesse ser colocada sobre seus
ombros.
Ele não estava preparado para o peso do Domínio; não podia sequer completar sua
educação? Devia ter sabido quando foi intimado, um ano antes do que lhe prometeram em
Nevarsin, que poderia assumir o posto de Regente do Domínio, quando seu pai adoeceu
com a febre do outono; temiam que ele pudesse morrer e não perderam tempo em
nomear Dyan como Regente. Foi por causa da febre, pensou Dyan; algum dano ao seu
cérebro. Antes disso ele havia sido bêbado e dissoluto, mas são, e apenas raramente cruel.
Nunca houvera qualquer questão, ele pensou friamente, em nomear Rian como
sucessor de Kyril. Nem mesmo o mais otimista dos parentes de Ardais acreditaram que Rian
se adequava ao cargo; todos estavam prontos para atirá-lo nos ombros de um garoto de
dezenove anos.
O coridom começou a contar como o desafortunado banquete começara; mas Dyan
acenou para que se calasse.
— Nada disso importa; como foi que ele golpeou minha madrasta?
— Eu não tenho certeza se ele soube que golpeou alguém; estava bêbado.
— Então, em nome de todos os Deuses — Dyan gritou em frustração — quando todos
sabiam que ele tinha esses ataques quando fica bêbado, por que não evitaram que ele
bebesse?
— Lorde Dyan, se você que é seu filho, ou a Lady que era sua esposa, não conseguem
proibir, como podemos nós, servos, fazê-lo?
Dyan achou que havia um pouco de injustiça na indagação. Mas agora era tarde
demais para culpar os servos ou a sorte.
— Não há remédio; o homem está louco, devem tomar conta dele, talvez trancafiá-lo
a fim de que não faça mal a si mesmo ou á outros — Dyan disse.
— E o que será do Domínio, com minha Lady morta e você na Torre? — perguntou o
coridom.
Dyan soltou um suspiro pesado e disse:
— Deixe isso comigo. Agora eu vou ver meu pai.
Dom Kyril havia se trancado dentro do mais alto aposento da torre norte, e Dyan lutou
em vão com a porta pesada. Finalmente ele gritou e chutou a porta, e afinal uma voz
trêmula veio lá de dentro.
— Quem está aí?
— É o Dyan, pai. Seu filho.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 142

— Ah, não — a voz disse — Você não me engana. Meu filho Dyan está em Arilinn. Se
ele estivesse aqui, nada disso estaria acontecendo; ele asseguraria que meus servos
rebeldes cumprissem minha vontade.
— Pai, eu parti noite passada de Arilinn — Dyan disse, sentindo seu coração esmorecer
pela loucura astuta — real ou simulada — na voz do pai. Se eu estivesse aqui, é verdade,
isso não teria acontecido; eu antes o teria acorrentado.
— Droga, pai, abra essa porta ou eu a derrubo! — Dyan corroborou a ameaça com um
chute forte que agitou as dobradiças.
— Eu abro, eu abro — disse a voz com petulância. — Não precisa quebrar nada.
O vigoroso ferrolho rangeu, e depois de um momento uma pequena fenda aumentou
e Dyan viu o rosto do pai.
Dom Kyril já havia sido belo, com as boas feições de todos os homens Ardais. Agora
seus olhos estavam vermelhos, seu rosto gordo e inchado, as feições nubladas por bebida e
incerteza, suas roupas imundas e desalinhadas. Ele olhou para Dyan com uma careta hostil
e murmurou:
— O que está fazendo aqui? Você estava tão ansioso em ir para a Torre e dar o fora,
para que volta agora?
Então seria essa a sua defesa? Fingir que ignora o que acontecera e colocar Dyan na
defensiva?
— Eu fui com a sua autorização, pai. Como ia pensar que o Domínio não podia ser
confiado ao seu governante? Vamos, pai, não finja estar mais louco ou bêbado do que está.
Os olhos vermelhos de Dom Kyril se estreitaram; ele disse:
— Dyan, é você? De verdade? Por que estão todos zangados comigo? O que eu fiz
dessa vez? Preciso de um trago, garoto, e eles não querem me trazer vinho...
Dyan não ficou surpreso; mas agora ele compreendia os delírios do pai. Um alcoólatra
veterano, abruptamente desprovido de toda bebida — á essa altura ele sem dúvida estava
vendo coisas procurando por ele fora dos muros.
Ele podia compreender os servos; mas neste ponto se ele tivesse um discurso racional,
seu pai devia ao menos ter controle suficiente para dar a ele o simulacro de sanidade. Seu
cérebro se desacostumara a funcionar sem a bebida; Dyan podia ver as mãos tremulas, o
andar trôpego.
Nunca deviam ter permitido que ele chegasse a esse ponto. Sem duvida acharam mais
simples abandonar o homem á beber até a morte, ao invés de enfrentá-lo para seu próprio
bem. Se ao menos eu estivesse aqui, Dyan pensou dolorosamente, olhando para os restos
do pai que um dia amara. Mas como ele diz, eu estava ansioso para fugir do problema, e
assim a culpa é tanto minha quanto dele. Não sou melhor do que Rian.
— Vou lhe trazer uma bebida, pai — ele disse.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 143

Ele desceu até a base das escadas e encontrou vinho e disse ao coridom para trazer
comida. Seu pai bebeu com pressa e afoiteza, derramando vinho no peito da camisa, e
depois, quando os tremores haviam amainado, Dyan conseguiu persuadi-lo a beber um
pouco de sopa.
O tiritar e o tremor pararam lentamente. Agora, quando tinha bebido, Dyan pensou,
seu pai parecia mais sóbrio do que quando seu sistema estava livre da bebida. Era verdade
que ele não podia mais funcionar normalmente sem ela.
— Agora vamos conversar sensatamente — disse Dyan, quando o homem que o
encarou havia sido restaurado ao menos á uma semelhança do homem que conhecera. —
O senhor sabe o que fez?
— Estavam bravas comigo — Dom Kyril disse — Elorie e a mãe dela — malditas sejam
todas as mulheres lamurientas — eu a silenciei, isso é tudo. — ele disse astutamente —
Nunca houve uma mulher que não merecesse uma surra ou duas. Não faz mal nenhum. Faz
bem, isso sim, e elas na verdade gostam. Ela tem vociferado com você por que eu a
golpeei?
Mas Dyan ouviu a astúcia na voz do pai; ele ainda fingia estar mais bêbado do que
estava, e mais louco.
— Desgraçado, você a matou — ele explodiu — Sua própria esposa!
— Bem — murmurou o bêbado, fitando as dobras dos dedos. — Eu não fiz por querer,
não fiz por mal.
— Mesmo assim — não, pai, olhe para mim, escute — Dyan insistiu. — Mesmo assim,
o senhor não está mais em condições de governar o Domínio, e depois disso...
— Dyan... — Seu pai puxou seu braço — Eu estava bêbado; não sabia o que estava
fazendo. Não deixe eles me enforcarem!
Dyan removeu seu apoio com desgosto.
— A questão não é essa — ele disse — A questão é o que será feito com você para que
não mate a próxima pessoa que cruzar seu caminho. Acho que o melhor que pode fazer
agora é passar o Domínio, formalmente, para mim ou para Rian, e ficar confinado nesses
aposentos até que recupere o juízo.
— Então tudo é por causa disso — seu pai disse furiosamente. — Tentando de novo
tirar o Domínio de mim? Foi o que pensei. Nunca, está me ouvindo? O Domínio e o governo
são meus e eu devia entregá-lo á um garoto arrogante?
— Pai, eu lhe imploro; ninguém quer lhe fazer mal, mas quando estiver incapacitado,
eu posso tomar conta do Domínio em seu lugar sem problemas.
— Nunca!
— Ou se não confia em mim, entregue-o para Rian e ficarei ao lado dele
dedicadamente...
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— Rian! — Seu pai soltou um indescritível som de desprezo. — Oh, não, eu sei o que
está tramando. Olhem para mim, Deuses — ele estendeu as mãos e começou,
alcoolicamente, a chorar. — Meu irmão, meus filhos — todos meus inimigos, tentando
arrancar o Domínio de minhas mãos — me aprisionar...
Dyan nunca soube quando tomou a decisão que tomou neste momento, mas talvez no
começo fosse apenas um desejo de silenciar o lamento alcoólico. Ele o alcançou com a nova
força de seu laran — era a primeira vez que o usava desde que começou o treinamento em
Arilinn — e dominou seu pai com sua coação. As palavras consumiram-se á incoerência;
Dyan dominou mais e mais forte, sabendo o que devia fazer para que isso fosse resolvido e
o Domínio de Ardais ficasse livre do governo de um louco.
Quando ele parou estava branco e trêmulo, obrigando-se a parar antes de matar o
homem. Ele sabia, envergonhado, que era isso o que ele queria. Seu pai estava tombado no
chão, tendo deslizado, durante essa monstruosa batalha, de sua cadeira.
Dom Kyril balbuciou:
— É claro... a única coisa racional a fazer. Chame os administradores e o faremos.
Silenciosamente, sem uma palavra, Dyan foi convocar o coridom. Tudo o que ele disse
foi:
— Convoque os Administradores do Domínio: ele está raciocinando agora e está
pronto para fazer o que é preciso.
Dentro de uma hora eles chegaram; o Conselho dos Anciões do Domínio, que haviam
sido informados da emergência dos últimos dias; era com o seu consentimento que o
Governante de Ardais mantinha seu poder.
— Parentes — Dyan disse, encarando-os; ele havia ido aos seus aposentos e se
trocado, para um traje sóbrio das cores formais do Domínio. Ele também havia convocado o
pajen de seu pai para que lhe banhasse, barbeasse e tornasse apresentável. — Os senhores
sabem que urgência traz todos nós aqui. Mesmo antes de a Lady de Ardais ser colocada
para descansar, o Domínio deve ser assegurado.
— Ele concordou em entregar o Domínio para você? Tentamos persuadi-lo, mas — ele
concordou com isso de livre vontade?
— De livre vontade — Dyan disse. Mesmo se não tiver, que outra escolha temos? Ele
especulou, mas não fez a pergunta em voz alta.
— Então — disse o mais velho deles — estamos prontos para o testemunho.
E todos eles aguardaram enquanto Kyril Ardais, agora calmo e evidentemente em seu
juízo perfeito, realizava a breve cerimônia em que formal e irrevogavelmente abdicava a
administração do Domínio em favor de seu filho mais velho, Dyan-Valentine.
Quando acabou e o Conselho de Ardais havia prestado lealdade á Dyan, Dyan relaxou
a contenção cerrada que manteve sobre a mente de seu pai durante a cerimônia. O homem
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arriou ao chão, chorando incoerentemente e arfando. Dyan disse a si mesmo; isso foi
necessário, não havia outra forma; mas um gosto ruim ficou em sua boca. Ele sabia que isso
havia sido um uso indevido do seu laran. Deviam tê-lo mantido em Arilinn...
Qual era a alternativa? ele perguntou-se gravemente. Colocar seu pai nas mãos de
curandeiros — talvez por um ano — até que voltasse a si completamente? Não havia tempo
para isso. Não, ele havia feito o que devia: Nenhum homem pode guardar a consciência de
outro. Não, e nenhuma mulher também, ele pensou, escaldado pela lembrança de Fiora e o
Juramento do Monitor. Era essa, sem duvida, a razão pela qual ele relutara em prestá-lo.
Bem, ele não poderia abrir mão do direito de fazer o que sua própria consciência
ordenasse, nem por muitos juramentos. Mas isso nunca deveria ter acontecido. Ele nem
mesmo veria Elorie; ela estava entre aqueles que o obrigaram a fazer isso.

~o⭐o~

Fiora de Arilinn havia sido informada da chegada dos homens de Ardais; ela sentiu
alguma tensão em cada um deles que não era consoante com uma simples resolução de
assuntos de família. Rian parecia calmo; ainda assim, lendo em sua mente o que havia
sucedido, ela se enraiveceu. Não, Rian não era nem de longe o tipo de homem para
governar um Domínio; ainda assim também não estava certo que ele fosse ignorado.
Conferida a responsabilidade, ele poderia ter progredido; agora ele sempre aceitaria sua
própria fraqueza e inaptidão. Foi um erro permitir que ele se escondesse aqui, eternamente
incapaz de desenvolver-se ao seu próprio esforço, eternamente imaturo. Suas mãos
estenderam-se para ele, impulsivamente.
— Bem vindo de volta, meu velho amigo — ela disse, apertando suas mãos. — Eu temi
que estivesse perdido para nós. — Temeu? Ela tinha esperança de que ele adquirisse a
força para tomar o lugar de seu irmão; mas ele falhara no teste.
E voltando sua atenção para Dyan, ela percebeu que ele parecia cansado, mas calmo, e
a barreira havia caído; ele não estava nebuloso para ela; alcançara alguma força interior,
adquiriu algum potencial desconhecido.
— Dyan, fico feliz em vê-lo novamente — ela disse, sinceramente apesar de
imprecisamente, e tocou de leve em sua mão; e ao toque ele ficou transparente para ela,
ele não podia mais nem ao menos desejar esconder o que fizera, ou por que; e neste
momento ela ficou chocada. Ela disse:
— Dyan, eu lamento ver o que houve com você.
— Fiz o que era preciso, e se a senhora sabe o que fiz, sabe por que. Hipócritas, todos;
nenhum deles teve a coragem para fazer o que devia ser feito. Eu tive; agora a senhora,
também, vai me censurar?
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— Censurá-lo? Não. Sou a Guardiã de Arilinn, mas não a guardiã da consciência de


nenhum homem — ela disse, sabendo que não era verdade; ela procurara obrigar sua
consciência, e falhara. — Digo apenas que agora você não pode retornar para nós, e sabe
por quê. Lembre-se das palavras do Juramento do monitor: não penetrar em nenhuma
mente a não ser para ajudar ou curar e nunca forçar a consciência de ninguém...
— Dama, se sabe como forcei o consentimento de meu pai, sabe bem por que o fiz, e
quais alternativas eu tinha. — Dyan disse, seu rosto cuidadosamente impassível, evitando
seu toque. Fiora inclinou a cabeça.
Era um erro, o que ela devia fazer. Agora eles não teriam controle sobre ele, nenhum
vinculo para endireitar qualquer erro que fosse cometido; ele estava para sempre além do
que até uma Guardiã poderia ajudar ou tocar.
— Não o julgo. Apenas digo que tendo violado esse Juramento você não tem lugar
aqui. — Mas para onde, então, ela pensou enfurecida, ele poderia ir, tendo violado dessa
maneira seu juramento, ido mais longe do que já quis ir. Agora sua vida estava sendo
conduzida fora das leis, depondo todas elas. Ele precisava ser um fora-da-lei antes de sair
da adolescência? Desesperadamente, ela deu-se conta de que ele próprio se alienara até de
sua ajuda. Ela disse lentamente: — Aceitará a minha benção, Dyan?
— De bom grado, Dama. — Sua voz tremeu, e ela pensou, com profunda pena, ele é
apenas um garoto, precisa da nossa ajuda mais do que nunca. Malditas sejam nossas leis e
regras! Ele teve a coragem para quebrá-las; fez o que devia. Gostaria de ter ousado tanto.
Ela disse, lentamente, estendendo as pontas de seus dedos para ele:
— Você é corajoso. Se sempre agir de acordo com sua consciência, mesmo quando
violar os padrões de outros, não o censuro. Mas se me permitir um conselho, eu diria que
você embarcou num caminho perigoso. Talvez seja o certo para você; eu não posso dizer.
— Eu cheguei a um local em minha vida, Dama, onde não posso pensar em certo ou
não, apenas na necessidade.
— Então que todos os Deuses caminhem com você, Dyan, pois vai precisar do auxilio
deles mais do que qualquer de nós. — Sua voz partiu, e ele olhou para ela — ela sentiu —
com dor e compadecimento. Pela primeira e talvez ultima vez em sua vida ele está
buscando ajuda e eu estou obrigada pelos meus próprios juramentos e leis a não ajudá-lo.
Ela disse calmamente: — Pode enviar Elorie para cá quando quiser.
Dyan inclinou-se sobre a mão de Fiora e encostou seus lábios nos dedos pálidos como
os de um cadáver; ele disse:
— Se existirem quaisquer Deuses, Dama, eu lhes rogo por ajuda e compreensão; mas
por que eles não vieram em meu auxilio quando mais precisei?
Ele se empertigou, com um sorriso desolado, e Fiora sabia que ele havia novamente
erguido uma barreira; estava para sempre além do seu alcance.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 147

Então ele partiu de Arilinn sem olhar para trás.


O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 148

Caçada de sangue
Linda Frankel & Paula Crunk

Sherdra ficou feliz por ver o resquício do sol. Se pondo ele lançou grandes manchas
avermelhadas na floresta que escurecia quando o jovem homem-gato, seu pêlo cinza
enferrujado com manchas incrustadas, andava mancando cansado através dos espinheiros
gelados. Talvez as sombras familiares da noite pudessem velá-lo, oferecer um lugar seguro
para se esconder de seus supostos assassinos. Embora o melhor que ele tivesse feito até
agora fosse ficar um pouco longe de sua vista. Atrás dele, ele podia ouvir o uivo voraz
distante dos cães ainda em seu encalço. Passaram-se mais de dez dias desde que Sherdra, o
último guerreiro sobrevivente do clã dos Portadores do Fogo, pelo que ele sabia, fugiu da
última derrota de seu povo no lugar que os humanos chamavam de Corresanti. Alguns dias
antes ele havia pensado que o homem da Guarda havia desistido da perseguição. Mas ele
havia chamado irmãos caçadores para se juntar a ele. E eles vieram acompanhados por
cães de caça. Por que alguém deveria buscar com tanto fervor a vida de alguém com gyar
tão caído? Talvez algum humano tenha descoberto que ele era o irmão-caçador para seu
líder martirizado. Sherdra esperava que ninguém tivesse adivinhado o que ele carregava:
emblema de posição, bem como de poder.
Ele caiu de joelhos perto de um riacho estreito e frio, lambendo avidamente a água.
De repente, ele enrijeceu. Seus lábios finos se curvaram em um rosnado silencioso. Alguém
estava passando por esta floresta, ao longo da margem do riacho. Sherdra saltou para a
relativa segurança das árvores. Desembainhando sua espada de garra, ele lutou contra uma
náusea. Severamente esperou, preparando-se para o que parecia inevitável.
- Oh, o orgulhoso irmão Francis cavalgou um dia, pelas colinas até Edelweiss... - Uma
voz soou, assustando a quietude da floresta. Sherdra mal entendeu uma palavra. Mas ao
espiar por entre os galhos, ele sorriu, à sua maneira. Não. Não era um Guarda do Comyn.
Era um vendedor ambulante esfarrapado e espalhafatoso, cantando vigorosamente. E da
maneira mais estúpida, Sherdra pensou. Ele tensionou os músculos para atacar.
O homem cavalgava um elegante castrado cinza, com fitas vermelhas entrelaçadas na
crina e na cauda esvoaçantes. Um animal de carga menos vistoso seguia placidamente
atrás...
- Um vento fantasma o deixou todo torto e o colocou no caminho do vício...
Sherdra lambeu os lábios secos. Qualquer um dos animais seria uma refeição justa
para um guerreiro faminto. Mas agora o homem havia cessado seu canto estridente e
estava se aproximando mais devagar, como se estivesse inquieto. Uma mudança de
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 149

estratégia parecia útil. O mais rápido e silenciosamente que pôde, Sherdra começou a
escalar uma árvore convenientemente posicionada para seu propósito.
Aproxime-se, passarinho, Sherdra sussurrou silenciosamente, enviando sua vontade
através da joia roxa, Soulseye, ao longo dos caminhos mentais como seu irmão caçador o
havia ensinado. Venha, voe para a minha rede... Sherdra avançou mais alto no galho de
árvore desgrenhado que se projetava do caminho estreito. Graças à Deusa, o cavalo do
mascate, sem dúvida mais astuto do que seu mestre idiota, ainda não o havia farejado.
Suas unhas escorregaram no galho coberto de gelo. Tonto, ele quase perdeu o
equilíbrio. Sua mente estava escurecendo novamente. Desesperadamente, ele lutou para
limpá-la. O uivo dos cães-demônios, com olhos de fogo, ecoava e ressoava dentro dos
limites torturados de seu crânio. Por que aquele idiota não os ouve? Atrevo-me a correr este
risco? Ele quase podia ver o rosto de sua velha avó, seus olhos verdes brilhando com o fogo
da lareira, ouvir sua voz suave e gutural: O sábio caçador sabe qual presa deixar passar...
Sua visão clareou abruptamente e ele viu que não tinha escolha. O mascate puxou as
rédeas, quase abaixo dele. Seu cavalo bufava nervosamente. O homem murmurou para ele,
acariciando seu pescoço, mas seus olhos estavam olhando intensamente para ele. Sherdra
quase podia farejar sua suspeita crescente e medo. Respirando fundo para se acalmar,
Sherdra se lançou ao espaço...
...Para baixo, selvagemente contra as costas do homem, garras arranhando, dando o
aperto mortal no pescoço de carne tenra...o cavalo aterrorizado mergulhou bruscamente,
derrubando o cavaleiro e o agressor no chão. Gritando, o homem se livrou do aperto de
Sherdra, rolando vários metros, levantando-se, ofegante, e ficando de pé.
Ele parecia incapaz de mais um salto, como um coelho trêmulo paralisado pelo olhar
do caçador, o rosto branco e sem pelos, olhos pálidos assustados piscando rapidamente
sob uma touca desgrenhada de cabelo claro. Sherdra jogou a cabeça para trás e uivou de
forma imprudente, indiferente, pela pura alegria dessa captura.
- Ore para sua Deusa e peça pela passagem da morte, pele nua. - O homem-gato
rosnou, desembainhando sua espada e saltou novamente.
- Não... - 0 homem esquivou-se de seu salto, girando além de seu alcance com a graça
de um bailarino. Uma que Sherdra dificilmente teria creditado a um mero humano.
- Eu clamo para você. Pare. – O mascate disse, recuando e estendendo as mãos vazias
para Sherdra. - Certamente podemos discutir este assunto razoavelmente se tudo o que
você quiser são meus bens. Fale...é isso?
Sherdra, ofegando fortemente, furiosa consigo mesma por ter perdido um ataque tão
fácil, espreitou sua presa com mais cuidado.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 150

- Eu sinto muito por você, pobre fera. - O homem disse, alcançando dentro de sua
capa. Esquivando-se do amplo alcance da espada em forma de garra, ele se virou e ficou
atrás das costas de Sherdra.
Sherdra saltou, girando no ar. Atacando com a mão livre, garras arranhando o rosto do
mascate. O homem deu um grito agudo e se afastou novamente, desta vez tropeçando.
- Covarde! Castração! Isso é tudo que você merece! - Sherdra cuspiu, desejando que
sua verdadeira força não estivesse tão drenada a ponto de desonrar sua espada naquela
criatura... Severamente, ele perseguiu, ignorando a queimação que começava a serpentear
por seu lado direito, onde o antigo ferimento ainda inflamava. Ele colocaria um fim nisso,
era preciso.
Mas desta vez o mascate se manteve firme. Na verdade, seus reflexos eram
excelentes. Ele empunhou sua própria espada com a graça fria que só vem com longa
prática. Sua espada? Um mascate comum com uma espada? E que espada: as joias em seu
punho brilhavam vermelho-sangue com os últimos raios do sol enquanto Sherdra era
repelida sem remorsos, passo a passo. Quem era este homem? Como em nome da Deusa...
Ela se esquivou para evitar um golpe rápido e cortante, mas foi tarde demais: a lâmina
do mascate cortou o ombro direito de Sherdra.
Normalmente, Sherdra teria se recuperado rapidamente da surpresa e lidado bem
com este falcão caracterizado com as cores do pardal. Mas seus pensamentos estavam
girando, colidindo uns com os outros. Seus olhos estavam escurecendo. Ele evitou outro
ataque principalmente por instinto. Nesta névoa de dor e confusão, ele não podia esperar
enfrentar o humano. Lobos com olhos de fogo, saltando sobre ele na escuridão...
Não! Não deve ser! Para perder pra alguém como ele. Desesperado, ele deu um golpe
selvagem na cabeça do mascate. Isso foi habilmente defendido. Sherdra ficou de joelhos
sem fôlego. O humano poderia ter dado o golpe mortal então. Em vez disso, ele deu um
passo para trás, curvando-se com uma ironia perdida ao homem-gato que o encarava
através de uma névoa vermelha...
Sua última força foi embora. A espada caiu dos dedos entorpecidos de Sherdra. Então.
Então. Deve ser assim. Derrota e morte. Eles devem ser iguais como o gyar exige. Avó, você
estava certa. Eu não deveria ter... - Oh, Ashyr... - Ele sussurrou para sua irmã gêmea, que
estava longe dele há muito tempo. - Você devia ecoar uma canção passageira para mim... -

~o⭐o~
As luas brilham depois dos últimos momentos caça? Elas poderiam, mas a Deusa
dificilmente poderia ter trazido essas feições humanas vis para zombar dele pela
eternidade. Haveria pouca justiça divina nisso, apesar de todas as suas carências. Droga!
Por que o idiota simplesmente não o matou quando chegou a hora?
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 151

O sujeito mostrou os dentes. Não foi um gesto hostil, já que ele arrancou tiras de
tecido de suas roupas esfarrapadas para amarrar as feridas de Sherdra. A imagem de ser
banhado por mãos estranhas revoltou todos os seus sentidos. Um olhar
de...preocupação?...brilhou nos olhos de seu companheiro. Sherdra se encolheu ao toque
de um membro nu, quase sem pêlos, mas quando a mão se levantou, muita dor e o latejar
foram com ela. Não, este não poderia ser um mero mascate. O toque de cura...era algum
truque do Comyn para pegá-lo vivo. Sherdra amaldiçoou seu estado de desamparo,
pensando em todas as obscenidades dos Cinco Clãs. Se ele conhecesse mais, elas teriam
sido vomitadas prontamente em uma sequência de rosnados eloquentes.
- Agora veja bem. Admito que não sou tão belo, mas isso não é motivo para ficar
chateado.
O jargão era incompreensível, mas o tom parecia bastante amável. Seu captor do
Comyn podia se permitir generosidade. Sherdra resolveu permanecer impassível a
quaisquer propostas. Ele protegeu seus pensamentos contra qualquer intrusão. Seus
inimigos não aprenderiam nada.
O homem estava oferecendo a ele algo para beber. Sherdra cuspiu e deu um tapinha
fraco no rosto feio que ainda pairava sobre ele. O humano afastou a cabeça para trás, bem
a tempo.
O mascate disse outra coisa, seu tom incrivelmente frio. Os olhos estranhos pintados
de branco estavam desagradavelmente concentrados em Sherdra. Ele cobriu o rosto com as
mãos, não por medo, mas por desânimo que o homem tivesse tão pouco respeito. Em vez
disso, havia essa nauseante pretensão de gentileza.
- Se eu tivesse metade do bom senso com que nasci... - O humano balançou a cabeça e
se levantou. Sherdra enfiou a cabeça sob o braço e se forçou a relaxar totalmente, fingindo
dormir. Por fim, o homem fez um barulho no vento e foi embora.
As luas, duas delas, pelo menos, lançavam sua luz fraca e obscurecida pela entrada
longa e estreita de uma pequena caverna na montanha. Sherdra sentiu repulsa ao pensar
naquelas mãos nuas o levantando, carregando-o até aqui. Ele havia sido colocado contra a
parede traseira da caverna e enrolado em cobertores de um cheiro peculiar e inquietante.
No entanto, um guerreiro não pode ser tolo e orgulhoso na adversidade.
Graças a Deusa. Seu captor devia ser uma raça única de idiota, pois ele não tinha sido
vergonhosamente amarrado nem despojado da Soulseye, como tinha sido despojado de
todas as suas outras armas.
Cautelosamente, ele descobriu a cabeça, olhou furtivamente ao redor. Suas orelhas de
tufos negros se contraíram. Aquele rugido áspero e sibilante lá fora só poderia ser um
vento invernal avisando da aproximação de uma nevasca precoce. Sherdra se perguntou
por quanto tempo ele ficara indefeso ali, à duvidosa misericórdia de um inimigo. Mas a
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 152

simples sucessão de luzes e sombras o preocupava tão pouco quanto a qualquer outra
pessoa. Ele se preocupou mais sobre como ele iria continuar quando escapasse daquele
abrigo inesperado e seu anfitrião odioso.
Pela primeira vez em muitas luzes ele permitiu que seus pensamentos se demorassem
em Ashyr que o havia deixado sem dizer uma palavra. Bem, ela tinha sido sábia em fugir
antes do desastre final. Ele não conseguia se lembrar de quando isso havia acontecido. Sem
dúvida ela havia encontrado refúgio entre seus parentes do norte. Sem dúvida.
Uma fogueira ardia amarelo-avermelhada entre ele e a entrada da caverna. Sherdra
saboreou seu calor, mas não gostou da visão da figura alta e esguia, curvada sobre ele,
aparentemente cozinhando algo. Um aroma estranhamente saboroso e tentador atingiu as
narinas de Sherdra. A fome estava arranhando novamente suas entranhas.
O humano estava murmurando para si mesmo. O que, cantando de novo? Não, era
mais como xingamentos. Ele estava reclamando da perda de seu animal de carga que
evidentemente havia fugido e desaparecido na floresta quando Sherdra saltou sobre ele.
- Não é de admirar que nunca prosperemos, Picaro. – O sujeito disse a seu cavalo,
preso perto do fogo, que parou por um momento de mastigar ração de inverno e deu a seu
mestre um olhar sombrio e marrom como se ele o entendesse e simpatizasse.
Sherdra preferia não ter entendido. Mas uma parte de sua mente estava começando a
peneirar algum sentido no que o alienígena dizia. Foi por causa desse talento de
compreender rapidamente a língua e a fala mental de estranhos absolutos que Sherdra foi
escolhido pelas Mães do Clã para ser a voz delas nas tribos distantes e muito estrangeiras.
Ele tinha, na ocasião, até falado com alguns dos comerciantes humanos das Cidades Secas
com quem alguns de seu povo faziam negócios. Mas ele nunca tinha imaginado que
entenderia a mente tortuosa e instável do Comyn...
Ele considerou um salto rápido nas costas do homem. Mas seus músculos pareciam ter
a consistência de água. Água... Sim, ele ansiava por isso. Ele gostaria de não sentir o cheiro
do que o mascate estava cozinhando.
Severamente, ele reprovou o clamor crescente de suas necessidades corporais. O
Espírito nunca deve ceder às reivindicações de carne ignorante, especialmente na presença
de inimigos. O Grande Gato o teria aconselhado. Myor, que havia sido seu irmão caçador...
Ah, Myor, por que você não nos ouviu, quando Ashyr e eu trouxemos a você o conselho
das Mães do Clã, para desviar-se do caminho que elas previram como conduzindo apenas a
um fim desonroso e terrível para todos nós? Ashyr falou a verdade.
- Seu espírito adoeceu, Sherdra. Ele está muito bravo. Ele foi apanhado pela coisa
maligna que vive naquela grande pedra de bruxa antinatural que ele acaricia com tanto
amor, ele pensa que a usará para trazer a escuridão e o terror mortal sobre o povo
humano. Mas seus feiticeiros vão retaliar. Sinto o cheiro de carne viva queimando, não
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 153

faltam muitos dias. Sherdra, devemos amarrá-lo, levá-lo para cura. Ou então matá-lo, nem
que seja apenas para salvar para o gyar que ainda lhe resta.
E eu disse, olhando em seus olhos risonhos, triunfantes e possessivos, que não podia
fazer nada ao meu irmão. Quando você nos deixou, Ashyr na mesma época ou muitos dias
depois? Não o senti mais dentro do círculo de vigilância nas Cavernas. Foi bom que você
valorizasse mais a sua própria liberdade. Agora você certamente está seguro. Deusa, que
seja assim...
Não, não. Ele não devia insistir nisso. Fazer isso trouxe sobre ele a memória de Myor,
queimando, queimando, enquanto o enorme cristal da matriz explodia em chamas, posto
pela vontade dos Lordes das bruxarias. Queimando e gritando. Gritando por mim e por
ajuda...
E eu, caído choramingando no chão, paralisado, aterrorizado pelas visões que eles
lançaram sobre nós: as visões de lobos gerados pelo demônio...
Não. Ele não pensaria nisso. Ele não podia arriscar mais loucura. O uivo em sua mente
se acalmou...que assim continuasse.
Bem, lá vem ele de novo. Ele vê que estou acordado e está ansioso para satisfazer sua
curiosidade a meu respeito e desvendar meus segredos. Fico maravilhado com sua
ignorância. Eu gostaria de não estar tão fraco. Ainda assim... Vamos jogar um jogo,
pequeno cor de cobre? A aposta é insignificante...apenas uma vida.

~o⭐o~
- Teve um bom sono? - O homem perguntou com cautela, segurando sua adaga
desembainhada onde o homem-gato pudesse vê-la facilmente. O homem-gato pareceu
tremer, com os olhos arregalados. Seu olhar encontrou o do humano e timidamente se
afastou. Ele fez um débil esforço para se levantar, depois se acalmou, gemendo de dor.
O mascate pensou por um longo momento, simpatizando com o animal que tentara
matá-lo e certamente era perigoso. Mas ele parecia bom. Além disso, ele estava em
necessidade, e o empata sentia isso.
Ele se aproximou com cautela. Estranho, meu nome é Coryn. – Coryn. - O homem disse
em voz alta, apontando enfaticamente para si mesmo. - E você? - O homem-gato não deu
nenhum sinal de ter entendido, apenas se encolheu um pouco mais dentro de seus
cobertores.
Coryn pensou: é claro...somos completos estranhos para conversar, até mesmo com a
mente. Ele tinha ouvido contos de telepatas relacionados por sangue, mas forçados a falar
apenas com a linguagem do cego entre eles por causa da mera distância emocional que os
separava. Portanto, posso muito bem estar falando com um mudo. Será que ele sabe como
usar aquela pedra da estrela que carrega? Quase não é isolada adequadamente...
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 154

- Não tenho intenção de machucar você. – Ele disse. - Se quisesse, eu teria todo esse
trabalho? Não. Fiz um juramento de curandeiro em Nevarsin. Não posso reter a ajuda que
eu puder dar, mesmo para criaturas como você. Todas as criaturas, não importa qual seja
sua forma externa ou forma interna de mente, são iguais aos olhos do Poder Criador... É
assim que funciona... Por favor, deixe-me ajudá-lo. - Ele se ajoelhou ao lado do homem-
gato, colocou a mão livre contra a testa do outro, monitorando o ferimento remanescente.
O alienígena se afastou bruscamente, sibilando. A saliva voou no rosto de Coryn.
Coryn sentou-se sobre os calcanhares. De alguma forma, ele controlou o impulso de
puxar o homem-gato para cima e acertá-lo na boca.
- Suponho que eu não deveria esperar gratidão de sua espécie. - Coryn levantou-se
rígido, cansado e esgotado. Ele havia cuidado com toda a eficiência possível de suas
próprias feridas que estavam curando, mas seu esforço foi maior ainda em favor
desse...animal. Isso fez com que seus próprios ferimentos latejassem mais uma vez.
O alienígena, mais alerta agora, estava olhando para ele de cima a baixo. Um zumbido
curto e estrondoso saiu de sua garganta. O olhar de Coryn, hostil, curioso, encontrou os
olhos dourados que não piscavam. – Então você pode sorrir também, à sua maneira? Você
está satisfeito com o dano que causou?
O homem-gato fez um gesto estranho e trêmulo com uma pata. Coryn
inexplicavelmente se sentiu ainda mais insultado. Então o homem-gato fechou os olhos,
recostando-se na parede rochosa, como se estivesse dispensando seu olhar intrusivo.
Suspirando, Coryn começou a se virar, então pensou melhor. A criatura ainda estava
fraca e cansada, é verdade, mas a memória de seu encontro inicial ainda estava fresca na
mente de Coryn.
- Por alguma razão não gosto da ideia de amarrar você, mas também não quero um
bichano me atacando desprevenido... - Ele tocou o alienígena de leve no ombro. A única
resposta foi um leve afastamento, como se ele fedesse. O pobre animal precisa comer logo,
ele pensou. Não gosto de ter que alimentar com minha própria mão um prisioneiro
amarrado e furioso. E aquela tempestade que se forma lá fora vai nos manter aqui,
companheiros relutantes, por vários dias...
- Olhe para mim, - Ele disse asperamente, quase gritando - ou vou sacudir você até
arrancar sua pele diabólica! Olhe... - Ele bateu o pé, sentindo-se vagamente ridículo.
O homem-gato bocejou enormemente, mas um olho amarelo se abriu.
Coryn procurou em sua memória algo que ouviu um antigo comerciante, que se
declarava um ex-prisioneiro (embora altamente improvável) dos homens-gatos. descrever.
Lentamente, ele fez os sinais de paz e trégua. Ele as repetiu, sem efeito aparente.
- Muito bem, então. Deixe-me entretê-lo um pouco mais. - Ele tirou um comprimento
curto de corda, mas amplo o suficiente, de um bolso em sua capa de mascate. Ele o sacudiu
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 155

na direção do homem-gato, então fingiu amarrar as mãos e os pés. Ele jogou a corda para
baixo e novamente desenhou o símbolo da trégua no ar. O homem-gato não poderia ter
parecido mais entediado.
- Pr'ya hoom. - A criatura rugiu. - Ska dahasa tush...
Coryn reconheceu a zombaria, embora não reconhecesse as palavras. - Acho que me
pareço com o pobre idiota sem língua que vi na Feira do Festival, tentando imitar seus
desejos de uma multidão de idiotas da província. – Ele disse com tristeza. - Portador dos
Fardos, você sabe que sou um idiota! Eu disse a ele agora o que devo fazer, o que significa
mais mordidas e arranhões para o esperto Coryn, eu acho. Odeio fazer isso, mas... - Ele
enrolou a corda em sua mão direita e pegou novamente a faca. O alienígena rosnou
baixinho e se ergueu meio agachado. - Não lute comigo de novo. – O homem murmurou o.
Uma súbita imagem escaldante assaltou sua mente: um homem-gato emaciado,
acorrentado em um lugar escuro, uivando e dançando... Um delirante estúpido, seu pêlo
comprido emaranhado com seu próprio excremento, amarrado como o Povo faria a
nenhum outro, mas este está muito doente e pode dar dor de cabeça, assim como de
garras. A velha cuidando dele tão friamente... Não (ininteligível) coloque isso... Vergonha
sobre mim...
Coryn ficou em estado de choque. Eu ouço você, ele disse pelo toque mental. Entendo
o significado, apenas um pouco. Mas o sentimento... Oh céus! Você não pode tentar me
entender também?
Ele sondou avidamente a mente alienígena com barreiras, sem obter resposta. Mas o
homem-gato se levantou, lentamente e Coryn ficou tenso.
Com um gesto rápido e fluido, mãos delgadas e peludas formaram o sinal de trégua.
Coryn viu o quão incompleto e inepto seu próprio gesto tinha sido.
Assentindo, o homem repetiu o gesto. Olhos âmbar, aparentemente menos duros,
encontraram os seus brevemente. Então o alienígena voltou a sentar-se, tremendo
levemente.
- Talvez possamos aprender a dialogar, afinal. – O jovem disse. - Mas, por enquanto,
vou deixá-lo em paz. Um pouco de comida então, talvez?
Coryn mancou até a fogueira. Ele estava com muito frio. Ele ergueu o bule de chá
fumegante das brasas e despejou o líquido perfumado em uma tigela. Bebendo
lentamente, apreciando o calor da tigela contra dedos gelados, ele deixou pensamentos
estranhos virem à tona ao longo das correntes sonolentas de sua mente.
Eu nunca vi um homem-gato antes. Até recentemente eu pensava que essas pessoas
eram material de histórias assustadoras que minha velha tia costumava me contar, para me
assustar e fazer com que eu me comportasse bem...
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 156

Mesmo assim, ele é um belo selvagem...e com laran de sobra. É incrível! Me pergunto
se ele sofreu aquelas feridas em Corresanti... Corria certa fofoca pela pousada em
Vandemyr, onde eu poderia estar agora, tão contente como um pobre homem poderia
estar, enrolado ao lado da encantadora Illona, em sua cama ampla, ao lado do fogo... De
acordo com a conversa, à qual prestei pouca atenção, como de costume, alguns gatos
envolvidos com uma matriz ilegal, ou algo igualmente rebuscado, estavam aterrorizando
todo o Domínio Alton, até serem derrotados por Damon Ridenow... Ele dentre todas as
pessoas! Quem diria? Isso deve ser uma bela história! Bem, eu estive longe dessas áreas por
mais de um ano. Me pergunto se é verdade... Mas agora devo atender às necessidades do
meu convidado.
Ele serviu outra tigela de chá, pegou uma tigela de ensopado e levou para o homem-
gato, oferecendo-os com um sorriso hesitante. - Espero que goste de comida cozida.
O alienígena cheirou a comida com desconfiança, então desviou o rosto. Coryn podia
ter explodido com xingamentos, mas tinha aprendido muitas lições dolorosas sobre
paciência no mosteiro. - Olha... - ele tomou um gole de chá e deu uma mordida no grosso
ensopado - ...se isso for veneno podemos cantar uma canção de morte juntos. Não sou tão
mau cozinheiro.
Ainda assim, o homem-gato o ignorou, olhando fixamente para um ponto
aparentemente atrás da espinha dorsal de Coryn. Coryn mordeu o lábio. O sensato era,
claro, colocar a comida, um odre de água, onde seu convidado relutante pudesse alcançá-la
e depois se retirar. Mas tudo o que ele podia fazer agora era não se curvar, arfando, com
uma náusea afiada que ele sabia não ser sua. Ele podia sentir tão intensamente a tontura
do homem-gato, a dor de sua fome voraz.
- Pobre e orgulhoso idiota... Talvez você nem saiba o que está me deixando um pouco
desconfortável. Duvido que você tenha aprendido as cortesias adequadas de um telepata.
Também nunca fui muito bom em rastrear a dor. A única pequena desvantagem de meus
genes Ridenow, suponho.
Coryn respirou fundo. Ele percebeu que o conceito de "trégua" do homem-gato não se
estendia a aceitar o sustento de um inimigo.
Meu pai diria que minha compaixão supera meu bom senso, como sempre, e que eu
deveria ter deixado este aqui para morrer logo de início. Ele provavelmente estava correto.
Mas não posso, não posso escolher não ajudar. Portador do Fogo, ou qualquer que seja o
seu nome, ouça: prometi não te machucar. E falei sério. Por minha honra, não há truques
aqui. Você deve comer para recuperar suas forças...
Naturalmente, sua bela fala foi ineficaz. Como havia feito uma ou duas vezes ao cuidar
de um doente que não comia, ele projetou imagens de paz e cura, o caldo forte e rico
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 157

aquecendo ossos gelados, trazendo nova vida ao sangue, trazendo cura e paz... Paz... Ele
estendeu a mão novamente, para tocar, acalmar.
Ah, passarinho, você está com frio. Venha se abrigar contra meu coração.
Sim, ele estava com muito frio. Ele se inclinou para mais perto, olhando nos olhos
âmbar brilhantes, muito sábios, muito bonitos, acenando. Alguém estava cantando, em
uma voz rouca, quase incompreensível, mas não desagradável, lembrava o lar. Ele estava
em casa. Seguro e quente. Sua mãe embalando-o contra seus seios, acariciando seu pelo...
Seu pelo? Seu pai não estava zangado com ele, não mais, nunca mais. Uma barreira de
ferro frio estava derretendo, cedendo. O homem-gato, Sherdra, estava brilhando com
linhas de fogo gentil e acolhedor. Ele acariciou a mão do outro, tão quente aveludada, tão...
Ele recuou, quase tarde demais, apontando sua faca entre eles. As garras brilhantes
estavam quase em sua garganta. Os olhos amarelos brilharam como relâmpagos enquanto
o homem-gato recuava lentamente, cauteloso.
- Por Zandru! O que você fez comigo?
O alienígena fez um som suave e confuso. Parecia muito domesticado, muito quieto,
curvado como se estivesse desanimado, exausto até a morte, parecendo apenas uma fera
com presas e pêlo cinza, seus olhos vazios piscando para Coryn como se por simples
ignorância.
Coryn recuou, esfregando a cabeça. Ele podia ter imaginado... Então ele riu alto. As
orelhas do homem-gato se ergueram para frente com o som estranho. Ele virou a cabeça
para o lado, quase timidamente.
Achei que havíamos declarado uma trégua. Mas quero felicitá-lo, vai laranzu, pela sua
excelente técnica. Coryn sabia que seu sarcasmo não era compreendido pelo homem-gato,
mas ele não se importava mais. A questão é: o que faço com você agora...Sherdra? Que
correntes manterão suas garras longe da minha garganta...e dsa minha mente?
Então, mantenha suas...patas...fora da minha mente, Comyn.
Ofegante, Sherdra se pôs de pé. Coryn desembainhou sua espada e assumiu uma
postura defensiva.
A diversão borbulhou sob a maré negra da raiva de Sherdra.
O quê? Você ainda tem medo de mim? Você que é forte e está razoavelmente inteiro,
enquanto eu... O jogo é seu, no momento. Você pode tirar vantagem disso. Com medo de
algumas mordidas e arranhões? Não devo esperar mais de alguém que dá sua palavra tão
levianamente.
Você me acusa de quebrar minha palavra? Seu selvagem miserável, traiçoeiro e
mentiroso. Só tentei ajudá-lo, curá-lo, mesmo depois de você ter me machucado. Você
prova agora que eu estava certo em meu primeiro impulso de cortar sua garganta e deixá-
lo para os pássaros carniceiro...
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 158

Sherdra disse em voz alta: - Então venha, passarinho, tente corrigir seu erro! - Ele
bateu palmas, como se faz ao aceitar um desafio.
Coryn deu um passo à frente. Sherdra se apoiou na parede da caverna e brandiu suas
garras. Por que você hesita? Para alguém que se atreveu a fazer o que mesmo um bastardo
nascido de fora, sem clã não faria, forçar relacionamento com um Portador do Fogo quando
uma trégua de tolerância é acertada entre eles... Não deve ser difícil atacar um inimigo
desarmado. Vamos, Comyn! Você está começando a me aborrecer.
Mas Coryn, sorrindo com força, estava baixando sua espada. - Por que eu deveria
desperdiçar energia? Eu posso esperar você morrer. Já que você não aceita nada de minhas
mãos, não demorará muito para que a fome e a dor o tornem tão indefeso quanto...um
gatinho doente... Pense melhor, Sherdra, antes de tentar mais ataques suicidas contra mim.
Eu sou sua única esperança de sobrevivência. No seu lugar, eu seria mais educado.
Não te dei permissão para falar meu nome.
- Agora olhe aqui...
É o suficiente. Você já me sujou o suficiente com seu toque imundo. Eu não ouvirei /
estarei mais aberto a você.
As barreiras alienígenas subiram novamente, duras como pedra.
Coryn disse algumas palavras sob sua respiração que poderiam ter chocado seus
antigos mentores no mosteiro. - É melhor você se sentar, antes que você caia... Não? Tudo
bem, faça do seu jeito. - Com um ar de insulto deliberado, ele deu as costas ao homem-gato
e voltou para o fogo. - Será um prazer quando você voltar implorando. - Ele disse por cima
do ombro.
A última frase foi perdida por Sherdra que nos últimos momentos estava cuidando de
outra coisa. Uma visão de pesadelo atravessou as portas de sua percepção. Sua irmã, Ashyr,
cercada pelos lobos. Não! Eu pensei que você estava segura! Ele soltou um pequeno
gemido de protesto.
O humano ergueu os olhos de cuidar do fogo e riu. - Então você está aprendendo o
preço do seu orgulho, afinal? Você descobriu que está com fome?
Incrivelmente, Coryn percebeu então que Sherdra estava chorando, embora não de
qualquer maneira que ele normalmente reconheceria. O homem-gato tropeçou para a
frente, as mãos estendidas, tateando como se estivesse quase cego. Antes que Coryn
pudesse alcançá-lo, ele desabou.
Então, mais uma vez, parentes de sangue clamam por ajuda, em vão... Sherdra sentiu
as mãos do homem agarrarem as suas com força, puxando suas garras de sua própria
garganta. E então nada. Nada, nada além da escuridão misericordiosa.

~o⭐o~
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 159

Quando ela viu a estreita trilha na montanha bloqueada à sua frente por um enorme
deslizamento de pedras intransponível, a mulher sabia que não tinha chance. Ela tinha sido
uma idiota por deixá-los conduzi-la dessa maneira.
Uma idiota duplamente condenada, por ter se aventurado a sair do esconderijo seguro
que ela havia encontrado alguns dias antes, em sua luta para o norte em direção à fronteira
das áreas de caça de seus parentes e um esperado santuário. Exausta e doente de espírito,
ela pretendia descansar apenas o tempo que ousasse e depois seguir em frente. Mas,
mesmo sabendo que a floresta estava infestada por caçadores humanos e seus cães, esta
manhã Ashyr saiu de seu abrigo indiferente, impelida pela percepção aguda de seu irmão
Sherdra em algum lugar ao sul, atormentado e desesperado. Então ele finalmente deixou o
local da morte de nosso clã e me seguiu. Isso, pelo menos, tem algum significado. Ele não
respondeu ao chamado dela e Ashyr não tinha a pedra-bruxa para ajudá-la a rastreá-lo.
Mas, sabendo que ele estava em necessidade, ela continuou resolutamente, movendo-se
tão silenciosamente quanto qualquer fantasma pela floresta que exalava bastante dos
cheiros de seus inimigos.
Ela havia encontrado vestígios recentes da passagem de Sherdra em uma alta crista
que descer para um vale pequeno. Ela até começou a correr, gritando descuidadamente: -
Sherdra! - Mesmo sabendo que ele ainda devia estar a alguma distância. O choque que ela
sentiu ao ouvir os caçadores humanos gritarem com ela de uma sombra que a cobria, ouvir
os cães explodirem em um uivo triunfante, ainda formigava em todos os seus nervos
enquanto ela estava parada agora, impotente, contemplando sua morte. Ela usou todos os
meios que conhecia para fugir dos cães perseguidores e de seus mestres, mas sem sucesso.
Ela se perguntou se Sherdra algum dia saberia de que maneira ela o ajudara. Eles devem ter
estado em seu encalço, mas eu serei sua presa.
Agora eles estavam subindo a trilha atrás dela, os magros cães lobos negros, tendo
ultrapassado seus mestres em sua ânsia de matar. Por enquanto, eles estavam fora de
vista, mas ela sabia que estavam a apenas alguns metros de distância. Com o olhar
experiente de um alpinista nato, Ashyr examinou a parede íngreme do penhasco à sua
direita, viu que não havia nenhum ponto seguro em que sua mão boa pudesse segurar para
puxá-la para cima e para longe da morte que a perseguia. Ela correu até a beira da trilha e
olhou para baixo. Por que se incomodara? Era como ela tinha visto antes. Algum demônio
louco havia cavado um abismo de paredes escorregadias cujas profundezas, envoltas em
brumas, fez sua mente girar.
- Deusa! - Ashyr gritou, reconhecendo que não escaparia.
Ela devia pular. Estava muito cansada até para temer a morte. Mas não havia
vergonha maior para uma mulher Portadora do Fogo, Guardiã da Chama Sagrada, do que
ser despedaçada pelos animais dos não-homens. Ela devia pular. Mas, mesmo enquanto ela
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tensionava seus músculos trêmulos para pular, a nova vida agitou-se em seu útero. Minhas
crianças. Elas merecem uma escolha melhor do que essa... Ela deveria ter pensado nelas
antes de se colocar tão precipitadamente em perigo... E a eles. Sherdra a teria socado com
força por sua falta de previsão. Ela dera um presente muito mais precioso para um povo
dizimado e derrotado do que podia esperar.
Talvez ela pudesse resistir, até mesmo se esconder, ali entre as rochas caídas. Ashyr
girou e correu para o deslizamento.
Então primeiro dos cães apareceu, contornando um canto rochoso. Latindo
ferozmente, ele se lançou em cheio em sua presa. Ashyr o contornou habilmente,
desferindo um golpe selvagem. O sangue jorrou da cabeça escura, cortada até o osso.
Choramingando, ele caiu para trás e tentou rastejar para longe.
As garras de Ashyr se fixaram com força em seu corpo. Com um grito triunfante, ela
lançou o cão do penhasco.
Mas isso havia demorado muito. Agora o bando estava ao redor dela, rosnando e
avançando para ela, cortando a única rota possível para escapar. A espada de Ashyr brilhou,
bebendo sangue de outra garganta de lobo. Outro cachorro saltou sobre ela. Ela o chutou
habilmente para o lado e saltou para trás para evitar outro ataque. Mal a tempo, ela se
conteve. Atrás dela estava apenas o vazio. Ela balançou na beira do abismo.
Os cães sobreviventes recuaram inexplicavelmente, murmurando como se entre si.
Por um momento delirante, Ashyr os imaginou discutindo a situação. Ela sorriu para seus
olhos vazios e brilhantes, mostrando-lhes os dentes. Agora, como se avisados pelo destino
de seus camaradas, avançaram lentamente sobre ela, eriçados, mas em um silêncio
medonho.
Ashyr decidiu que gostaria de levar mais alguns com ela. Deu alguns passos na beira do
penhasco, desafiando-os a tentar uma queda com ela. O líder da matilha rosnou
amargamente. Então ele parou e manteve-se em seu lugar. Os outros cães também, apesar
de sua óbvia sede de sangue. Atenta, Ashyr se perguntou como o Mestre os treinara tão
bem.
Gritos humanos ásperos, o pisoteio irregular dos cascos dos cavalos quebraram o
silêncio anormal. Ashyr viu cavaleiros humanos chegando. Na vanguarda deles havia um
homem alto e magro em verde e preto, sua rala pele da cabeça da cor muito familiar e
amaldiçoada de um feiticeiro macaco. Ela viu a espada brilhando em sua mão esquerda e
uma corda enrolada à direita dele. Afinal, eles pretendiam capturá-la?
Gritando com ela, o Guarda esporeou seu cavalo. Os olhos de Ashyr se arregalaram
com tal tolice. Ela estremeceu quase em compaixão quando o cavalo do Lorde humano
tropeçou em um cachorro surpreso. Amaldiçoando, o homem expulsou os cães de caça de
seu caminho. Mas seu cavalo escorregou novamente, de lado, em um pedaço de gelo. O
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humano quase foi lançado. Ele lutou para se endireitar, apontando um dedo para ela,
gritando algo para seus companheiros logo atrás dele.
Tudo isso é muito divertido, mas agora devo partir, Ashyr pensou, com pena dos cães,
seu trabalho árduo estragado pela falta de jeito de seus mestres.
Dois homens desmontaram e correram em sua direção. Ashyr lançou-lhes um olhar de
desdém, então se virou para enfrentar o vazio. - Perdoem-me, crianças. - Ela sussurrou para
a filha e o filho que agora deviam ficar sem nascer. - Deusa, receba-nos gentilmente...
Mais tarde, o Guarda jurou que a mulher-gato riu ao cair do penhasco.

~o⭐o~
Ao cair da noite, os homens encontraram um lugar sob uma saliência de pedra que
oferecia um abrigo razoável do vento crescente que agora cuspia gelo e neve em seus
rostos. O Guarda de Thendara, seu líder e empregador, incrivelmente tinha tentado
convencê-los a retomar a trilha. Parecia que a criatura que eles haviam rastreado até a
morte não era a que Dom Julian queria. Ele queria um homem, não uma mulher.
- Mas que diferença fez, afinal? - Os homens exaustos resmungavam entre si.
O velho Dakstar disse a verdade: um gato morto é muito parecido com o outro. E Dom
Julian havia prometido a todos quando os contratou para esta caçada sete dias antes que
não demoraria mais do que três para levar a besta para a terra ou concluir que ela havia
escapado deles. Felizmente, Kraigan, seu rastreador, que parecia conhecer algo sobre os
costumes do Comyn, havia persuadido o jovem Lorde de rosto pétreo de que o tempo
justificava pelo menos encontrar um refúgio para a noite.
- Senão, neste momento estaríamos cavalgando no frio intenso. – O jovem Carlo disse
a Dakstar, empilhando mais restos de lenha no fogo. - O que ele quer, um troféu para as
paredes de seu castelo? Se for esse o caso, voltarei àquele desfiladeiro e descerei. E trarei
de volta seus dentes e garras, até mesmo sua cauda fofa.
- Rapaz, não seja bobo...
- Ele prometeu nos libertar quando esta caçada acabasse. Na minha opinião, acabou.
Você sabe, ele até disse que iríamos voltar para onde começamos, em Vandemyr, apenas
para pegar a trilha ‘adequada’? Dakstar, Dakstar. Eu não deveria ter vindo, não por todo o
cobre que ele nos prometeu. Minha Alissa estará preocupada comigo e a hora dela está tão
próxima...
- Shhh! - O homem mais velho olhou nervosamente por cima do ombro para Dom
Julian, que estava bem longe deles em uma colina rochosa, olhando, ao que parecia, para o
nada. Dakstar pensou novamente que o Guarda parecia mais uma figura esculpida de um
homem do que um ser vivo. Ele parecia alheio a qualquer coisa que eles pudessem dizer e
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 162

ainda... - Shhhh, Carlo. Ele ouve muito bem. E esses Comyn podem ver através do crânio de
um homem como se fossem feitos de vidro transparente e ver cada pensamento lá dentro.
- Ele não é um grande Comyn, por falar nisso, apenas sobrinho de um Lorde menor. Eu
o ouvi admitir isso para Kraigan. - Carlo retrucou, os olhos castanhos brilhando. - E
certamente se ele olhasse dentro do seu crânio vazio, é pouco o que ele encontraria lá.
Uma breve e acalorada discussão eclodiu entre eles. Isso foi silenciado por Terenz que,
voltando dos cuidados com os cavalos, perguntou friamente por que o jantar não havia
começado. Julian, perfeitamente ciente de tudo o que havia acontecido entre Dakstar e
Carlo, reprimiu uma risada. Terenz não tinha o dom de Carlo para expressões raivosas, mas
seu tamanho e um certo olhar que se fixava em seu rosto quando ele estava descontente,
geralmente ganhavam atenção imediata.
Julian estremeceu e envolveu-se com sua capa de pele fina e densa. Ele considerou
seus companheiros em suas roupas puídas e remendadas e, por um momento, sentiu pena
de tê-los atormentado tanto nesta longa e aparentemente inútil trilha. Ele sabia que eles
ansiavam pelo calor e segurança de suas casas. Julian também preferia estar em casa. Mas
ele tinha um dever a cumprir.
Oh, Alaric... Era difícil acreditar que mesmo agora ele não conseguia olhar para cima e
ver seu bredu sorrindo caprichosamente para ele, ouvir a voz profunda repreendendo-o por
sua última obsessão. Julian, Julian. Desista, vá para casa, faça as pazes com seu tio, case
com a linda donzela Lindir que ele escolheu como noiva para você. Há mais conforto lá do
que o que você busca agora. Você não me encontrará novamente nesta fria e desolada
trilha de vingança, querido, mesmo se você matasse mil homens-gatos.
Só pretendo matar aquele, Alaric. Apenas aquele que tirou você de mim... Então estarei
consolado.
Ele foi arrancado de seu devaneio sombrio pelo som de botas pisando em sua direção.
Kraigan, o rastreador, estava se aproximando, de cabeça baixa. Julian pensou que devia
estar enterrando seus cães mortos. A única emoção forte que Julian viu no homenzinho
estranho foi quando Kraigan reconheceu que não havia chance de recuperar o corpo do
cachorro que a mulher-gato havia atirado do penhasco. Ele explodiu em lágrimas
barulhentas e depois saiu pisando duro, mandando todos os gatos para o décimo inferno
de Zandru.
- Bem, é a sorte da trilha, como você tantas vezes disse. - Julian cuspiu atrás dele. -
Você esperava que ela ficasse lá e fosse atacada? - Kraigan provavelmente achou estranho
que ele pudesse sentir qualquer simpatia pela situação dos caçados. Mas ele não queria
livrar o mundo dos gatos. Apenas de um.
Kraigan parou a alguns metros dele e ergueu o rosto para o vento, quase como se
farejando. - Que golpe e tanto, Dom Julian! Zandru está bombeando seu sopro de gelo com
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força... - Seus olhos cor de mel, tão incongruentes em seu rosto moreno e murcho, olharam
maliciosamente de lado para o jovem Guarda.
- Eu já ouvi sua...previsão do tempo. - Julian respondeu rigidamente. - E isso significa
que somos forçados a nos esconder aqui outro dia enquanto o homem-gato fica cada vez
mais longe...
- Já seria difícil encontrar seu rastro com tempo bom, se ele estiver em qualquer lugar
nesta área. Meus cães precisam de descanso e curativos, em qualquer caso...
A deferência educada nunca foi o ponto forte de Kraigan e, quando Dom Julian não
respondeu, exceto com um encolher os ombros, o rastreador acrescentou: - Se me perdoa
por dizer isso, me pergunto por que você não trouxe seus companheiros da Guarda e
parentes do Comyn com você, já que esta besta em particular é tão importante.
- Todos eles estavam voltando para casa ou para seus casamentos, após a última
batalha. - Julian não compartilharia com Kraigan suas reflexões mais amargas: E, é claro,
esperava-se que eu voltasse ao meu dever legal: tirar bêbados das ruas de Thendara. O
assassinato de um bredu é muito lamentável, naturalmente, mas não justifica uma
perseguição selvagem e imprudente ao animal que, talvez, tenha sido o responsável por sua
morte e que, talvez, possua os poderes de uma matriz. Os jogos de guerra acabaram no
verão. Por que causar mais problemas? É o que meus parentes poderiam ter dito se eu
tivesse me incomodado em ficar para persuadi-los depois que eles se recusaram a vir
comigo...
Vagamente ele percebeu que não estava sendo justo com seus parentes. Não tinha
acontecido exatamente assim. Mas os primeiros dias após a morte de Alaric foram
misturados com sangue, quase afogados em dor e raiva. A primeira clara memória recente
que ele teve foi de tropeçar na taverna em Vandemyr, compelido pela necessidade de seu
corpo por calor e comida. Alaric estava morto e ele havia perdido o rastro do assassino de
seu amigo, em algum lugar dessas montanhas abandonadas.
A estalajadeira, uma mulher bonita e rechonchuda que Alaric poderia ter admirado,
viu seu problema, embora não pudesse adivinhar sua causa. Rapidamente ela trouxe
comida e bebida quente e murmurou algo sobre um quarto agradável no andar de cima,
onde o vai dom poderia descansar em privacidade.
- Obrigado, mas não. - Ele conseguiu responder. - Ainda tenho algumas horas de luz do
dia e não posso perder tempo quando eu... - Ele olhou para o outro lado da sala, onde
alguns sujeitos estavam vagando perto do fogo.
Ele disse "não" novamente para a mulher, que estava implorando: - Mas, senhor, você
está horrível.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 164

Ele olhou novamente, mais nitidamente, para a multidão de rústicos da aldeia e riu. -
Com licença, mestra. - Ele havia reconhecido um dos homens. Talvez sua sorte finalmente
tivesse mudado.
Abordado com o plano improvável de Julian, Kraigan primeiro recusou, incrédulo de
que alguém estivesse interessado em ter mais qualquer coisa a ver com uma das "bestas
assassinas", qualquer que fosse a provocação. Julian persistiu em seus apelos, sabendo que
Kraigan, um rastreador profissional às vezes empregado pela nobreza local em caçadas de
sangue semelhantes, tinha as habilidades e o conhecimento de que precisava. Certa vez, ele
até observou Kraigan em primeira mão, trabalhando com seus cães como se eles
compartilhassem a mesma mente, rastreando o pobre fugitivo com admirável sucesso. O
fato de Kraigan escolher negar seu laran e permanecer sem marcas entre os camponeses e
parentes cegos-mentais, não significava nada para Julian, exceto que esse dom poderia
servir aos propósitos do Guarda. Finalmente, depois de ver o cobre de Julian, o homem
aceitou. Ele havia observado que, se houvesse alguma chance de encontrar um homem-
gato fugitivo em particular, seus cães soberbamente treinados poderiam ter sucesso.
- Eles já rastrearam essas criaturas antes, inclusive alguns recentemente. Na verdade,
tenho um pedaço de pele nova em meu equipamento, para refrescar suas memórias do
que eles seguirão. - Kraigan riu.
Julian não queria saber onde Kraigan havia conseguido esse artigo útil. Era o suficiente
ele finalmente ter encontrado ajuda para realizar seu desejo de vingança. Na verdade,
Kraigan tinha sido muito útil, reunindo provisões tão rápido como se por alguma feitiçaria,
alistando os outros homens na taverna, dentre eles seu sobrinho Terenz e alguns primos
distantes, Julian concluiu, para se juntar à caça. Eles pareciam ansiosos o suficiente para
matar um dos animais que atacavam seus vizinhos distantes ao sul. Julian não tinha ficado
encantado com a qualidade desses homens, nem com sua força de propósito. Mas ele não
estava em posição de ser exigente.
Julian havia se permitido, principalmente por causa da insistência de Kraigan, apenas
algumas horas de descanso. Em pouco tempo todos já estavam na trilha. Dentro de um ou
dois dias, os cães encontraram um rastro de homem-gato. E então, esta mesma manhã,
Cario gritou com uma surpresa devastadora ao ver a criatura ereta de pelos negros
correndo, por assim dizer, ao lado deles, por entre as árvores. Julian se lembrou da onda de
alegria congelante que o atingiu como uma chama em seu coração antes nublado, como ele
havia imaginado que a sorte finalmente o havia abençoado. Em vez disso, no final da trilha,
havia apenas aquela mulher miserável, provavelmente pega inocentemente nas redes do
caçador. E até ela escapara dele... Como dizia o ditado: Não planeje galinha assada para o
jantar antes de pegar a ave.
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Kraigan pigarreou, trazendo Julian para o presente. O rosto do rastreador tinha uma
expressão estranha. Julian supôs que estivera murmurando para si mesmo novamente.
- Dom Julian. – Kraigan disse gentilmente. - Você vai morrer ficando aqui sozinho na
escuridão fria. Acho que o jantar está quase pronto. Vai participar conosco, senhor?
Julian supôs que precisava comer algum dia. Ele se virou em silêncio e acompanhou
Kraigan em direção aos outros homens, amontoados em torno da fogueira.
- Quanto tempo você acha que ficaremos aqui?
- Bem, é uma tempestade precoce e pode terminar rapidamente. Suponho que...não
mais do que três dias.
- Três dias! Kraigan...!
Kraigan girou sobre seu empregador, que, assustado, deu um passo para trás.
- Sim, vai dom. Três dias! E, durante esse tempo, iremos nos abrigar, como qualquer
homem sensato faria. Você não é dessas partes. Você não viu o que mesmo uma leve
tempestade de verão pode fazer. Você vai correr sozinho para o vento, meu jovem, sem
nem mesmo um guia? Porque é isso que você fará se insistir em sair a qualquer momento
antes que eu diga que é seguro. Todos nós temos esposas e filhos em casa que se
preocupam conosco e nós com elas.
- Presunçoso... - O rosto de Julian escureceu, sua mão caiu para o punho de sua adaga.
Kraigan esperou impassível, para ver o que ele faria.
- Ei! Ei! Não lute! - Dakstar gritou, movimentando-se até eles. Ele tentou empurrar seu
corpo magro entre os dois homens.
Julian deu uma risada desagradável e empurrou o velho fazendeiro. - Paz, amigo. Não
desejo o mal para ninguém, exceto meu inimigo.
Ignorando Kraigan propositalmente, que ainda estava olhando fixamente para ele,
Julian foi até o fogo e sentou-se diante dele. Ele notou que os outros lhe deram muito
espaço.
- Dom Julian, - Carlo perguntou depois de um tempo - você pode nos dizer por que
encontrar um homem-gato em particular é tão importante? Se você me perdoa por dizer
isso, parece quase impossível. Existem milhares de léguas de floresta selvagem lá nas quais
ele pode estar se escondendo.
- Acho que já te disse o porquê antes, - Julian respondeu enquanto colocava o guisado
da panela na tigela – mas, para refrescar sua memória: aquele que procuro era um de seus
principais guerreiros. Ele carrega uma matriz e é habilidoso e perigoso em feitiçarias
maliciosas. Eu o vi pela última vez nadando no vau de Corresanti depois que ele matou
quase vinte homens da Guarda em sua fuga. Eu o teria seguido imediatamente, mas... Tinha
um amigo que precisava da minha ajuda naquele momento. Acredito que ele não está
simplesmente fugindo para salvar sua vida, mas pretende alcançar seus parentes
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sobreviventes ao norte e clamar por vingança. Portanto, teremos mais demônios para
enfrentar no próximo verão, se não antes. Mais alguma pergunta?
A expressão de Carlo refletia dúvida e desconfiança. Julian supôs que o rapaz estava se
perguntando se ele insistiria em que seguissem sua presa até as margens do Kadarin e além
ou para o fim do mundo, se fosse necessário.
- Não, Carlo. – Ele disse, muito baixo. - Vamos pegá-lo muito antes. Eu sei disso... Eu
sei. - Ele repetiu enquanto Carlo se retirava com um pedido de desculpas murmurado,
aparentemente, que iria cuidar do fogo. Julian pensou: há algo em meu rosto que assusta o
rapaz?
Kraigan resmungou do outro lado da fogueira: - Não temos como saber disso como
você, vai dom. Somos apenas homens simples e podemos seguir apenas nossos sentidos
normais, nem mesmo tão bem quanto Derhi, aqui. - Ele deu um tapinha no nariz de um
cachorro que se esfregou contra seu lado para se consolar. - Cormac, esse seu pé ferido
ainda está incomodando você? - Perguntou carinhosamente a outro cão aninhado a seus
pés. - Vamos ver... - Ele ficou ocupado com seus cães por algum tempo, cuidando de suas
feridas, ajustando as pequenas botas ásperas que usavam como proteção contra o terreno
gelado.
- Mestre Kraigan não deveria ser tão modesto. - Julian disse suavemente, quando o
rastreador terminou.
- Perdoe-me? - Kraigan voltou, olhando para cima com os olhos arregalados, como se
realmente não soubesse o que Julian queria dizer. - Bem, - ele continuou depois de não
receber nenhum esclarecimento – agora podemos dormir um pouco. Se houver alguma
chance de começar cedo amanhã, todos estaremos descansados.
Ele olhou incisivamente para Julian, que deu de ombros e disse: - Vou ficar de guarda
por um tempo. Depois um de vocês pode me substituir. Não me diga que uma sentinela e
um guarda-fogo não são necessários.
- Vai dom, meus cães não são surdos. - Kraigan começou e então pensou melhor. Com
um suspiro estrondoso, ele rolou nos cobertores. Quatro ou cinco cachorros correram para
se deitar ao lado dele. Carlo e Dakstar logo seguiram seu exemplo, aconchegando-se um ao
outro. Julian os considerou, a cabeça morena e encaracolada do menino aninhada no
ombro ossudo do homem mais velho. Ele suspirou, sem saber que o fazia. Afinal, eles não
eram diferentes de alguns guardas que ele conhecera.
- Eles ficarão aquecidos, com certeza. – Terenz disse. Julian saltou ligeiramente. O
homem corpulento e de feições rudes era fácil de esquecer sua presença. Mas ele estava
mais quieto do que o normal esta noite. Terenz cutucou o fogo, exclamando: - Que sorte
temos por não ser pegos ao ar livre em uma noite como esta! Brrr, está frio lá fora! O
homem-gato pode não ser tão privilegiado quanto nós...
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- Oh, ele encontrou um esconderijo, não se preocupe.


Terenz acenou com a cabeça. - Sim, vai dom, você provavelmente está certo. - Depois
de uma longa hesitação, ele disse: - Espero que possamos começar de novo amanhã. É uma
bela aventura na qual você nos conduziu. Acha que rapazes como nós teriam outra chance
de aventura? Não com meu tio, juro. Ele pensa pouco de nós. E...eu concordo com você.
Todos esses animais devem queimar, até o menor filhote. Eu... Eu tenho uma irmã mais
nova que foi com o marido cultivar nas terras dos Alton, anos atrás. Não ouvi nada deles
até o ano passado, depois que os problemas começaram. Então, um dia, minha esposa
ergueu os olhos e viu uma pobre velha esfarrapada à nossa porta. Ela pensou que era uma
mendiga. ‘Você não me reconhece, Mhari?’ Minha irmã perguntou. Minha esposa gritou
por mim e eu vim correndo do campo. Deirdre caiu em meus braços, soluçando e
tremendo. Eles assassinaram seu marido e filhos, as feras, e colocaram tanto terror sobre
ela que temo que nunca mais volte a pensar racionalmente. Ela tem...tantos pesadelos.
Acordada e dormindo... Bem... - Ele desviou o olhar, como se estivesse envergonhado. -
Sem dúvida você testemunhou coisas piores. Eu só queria que você soubesse...que penso
diferente desses outros aqui... Boa noite.
- Boa noite, Terenz. - Julian respondeu, surpreso e comovido. Ele não achava que
Terenz revelava muito de si mesmo a ninguém. - Durma bem. Durma sem sonhos.
- Obrigado, vai dom. - O outro sussurrou, se aconchegando dentro de seu saco de
dormir. - Eu sabia que você poderia entender.
Havia pouco barulho agora, exceto o crepitar lento do fogo, a respiração rouca dos
homens, o gemido queixoso do vento. Julian se levantou e rondou ao redor do fogo.
Kraigan está certo. Que tempestade infernal. Realmente nem preciso ficar de guarda
com esses bons cães como protetores. Qual é o problema comigo?
O jovem olhou para as brasas brilhantes, sua verdadeira visão repleta de imagens de
um rosto sorridente e sardento, olhos azuis brilhando com malícia e ternura.
Oh, Julian. Você é muito sério e sóbrio! Venha, tome uma bebida comigo na taverna
quando tudo isso acabar. Há uma mulher bonita trabalhando lá. Muito...beijável...hmmm.
Escute: você ouviu a piada que Domenick contou sobre os dois Terrans, a riyachiya e o tão
educado cralmac? Parece que você precisa de uma boa risada, bredu. Bem, é assim...
- Alaric, fique quieto. - Julian disse em voz alta. - Não é hora de fazer piadas.
Não devo pensar em você ou me lembrarei muito bem de como você morreu,
soluçando em meus braços, seu rosto bonito todo estragado. Vou me lembrar de quanto
tempo você levou para morrer. Vou sair de novo pela manhã, sozinho se necessário. Deixe
todos eles descansarem aqui e se divertirem com o louco.
Julian se separou dos outros, fora do círculo de luz, onde a batida fria do vento poderia
despertar qualquer sonhador desamparado para um estado de razão.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 168

Isso não ajudou tanto quanto ele esperava. Por fim, ele disse à presença
fantasmagórica de Alaric: - Quando ele te matou, ele matou qualquer riso que houvesse em
mim. É mesquinho para mim pensar isso, mas o odeio tanto por isso quanto pelas outras
mortes de que ele e sua espécie são culpados.
Oh, eu rezo para que você ainda esteja vivo, homem-gato. Eu me deleito com os
sonhos do que farei com você.

~o⭐o~
Esses desmaios prolongados estavam se tornando muito irritantes, particularmente
quando alguém emergia de sonhos desagradáveis para uma realidade mais desagradável.
Para ter certeza, ele foi movido para mais perto do fogo. As mãos do curandeiro estavam
acariciando suavemente sua testa. Sherdra ficou consternado por ele não conseguir sequer
sentir o desejo de atacar novamente. O homem deu-lhe água para beber. Ele a bebeu com
avidez, não sendo mais capaz de suportar a sede.
- Nem mesmo o seu toque pode sujar a fonte da vida. - Ele murmurou, mais para si
mesmo do que para o outro, que não conseguia entender. Ele viu o homem fazer aquele
movimento peculiar de sua boca (um sorriso?) que devia significar zombaria. Eu realmente
caí em suas armadilhas? Ele se perguntou.
- Eu senti alguém próximo a você morrer. - Coryn disse. Então, pelo toque mental, ele
continuou, Não consigo te entender bem. Mas se fui eu quem quebrou a trégua entre nós,
buscando contato contra a sua vontade, peço perdão.
É a febre persistente em minha mente que distorce tanto seu significado, Sherdra
pensou. Ele lançou a imagem de uma lança em Coryn. Você ainda está falando. Fala, fala.
Você me cansa, Comyn. Deixe-me sozinho.
Receio que não possa. Vejo agora que deve haver paz entre nós ou uma morte. Ah,
cara, não rosne para mim. Gostaria que eu pensasse que você é apenas um animal e não
merece meu cuidado. Estou certo?
Sherdra riu, à sua maneira. Um animal, pelo menos, conhecia seu inimigo.
Mas eu não sou seu inimigo. Não participei das guerras contra seu povo. Minha
própria família pode me chamar de traidor, pois tratei você com bondade.
Sherdra o excluiu. Ele queria pensar em Ashyr, em como ela deve ter morrido. Ele não
conseguia expressar tristeza, nem cantar as canções de passagem para ela e seus filhos,
diante deste humano. Mas ele poderia obter uma satisfação desoladora em planejar como
iria encontrar seus assassinos e o que faria com eles, se apenas essa criança tola parasse de
falar.
- Hrrta! – Não rudemente, ele empurrou o humano para longe.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 169

- Vamos lá. - Coryn levantou sua faca entre eles. Não quero usar isso. Precisamos
apenas nos abster de matar um ao outro até que a tempestade diminua. Então, eu te
prometo, seguirei meu caminho. Tenho negócios mais importantes do que atender aos seus
desejos.
Silencioso como uma pedra fria, o homem-gato olhou além dele, para a escuridão
rodopiante fora da boca da caverna.
- Não. - Coryn se moveu entre ele e a entrada da caverna. - Você vai morrer lá fora. -
Ele jogou sua adaga aos pés de Sherdra. Pegue-a, se ele lhe der conforto.
As narinas largas de Sherdra dilataram-se, seus olhos velaram quando o objeto ficou
entre eles. Ele chutou a adaga, a girando no chão.
Coryn lutou contra uma onda de raiva. Ele se levantou e pegou sua faca.
- Já que você não terá de outra maneira...
A cabeça do homem-gato descansou em seus joelhos dobrados. Então ele não vai
confiar em mim, nem mesmo nisso. Pode ser uma gentileza livrar-se dele agora, Coryn
refletiu. E certamente um serviço à humanidade, como diria meu pai. Apesar do orgulho e
desafio contínuo do homem-gato, apesar da força óbvia de seu laran, seus instintos eram
totalmente bárbaros. Claro. Esse era o peso das histórias sobre essas pessoas. Eles eram a
selvageria encarnada, sem nenhuma afinidade com a vida e os vivos. Eles afogariam o
mundo em sangue se pudessem.
E outra voz se agitou na mente de Coryn, uma voz vinda de uma memória que o jovem
geralmente tentava esconder de sua consciência desperta. A voz gentil do irmão Stefan: Ele
não ousa confiar na bondade de um humano, nunca. O que ele deve ter sofrido em nossas
mãos?
Ele se virou como se tivesse sido compelido e fez a mesma pergunta a Sherdra.
Você ousa alegar ignorância sobre o que sua espécie fez? O alienígena cuspiu. Ou
melhor, sua presença na consciência de Coryn irradiava uma amargura como o lago uma
vez envenenado onde, alguns diziam, um deus havia caminhado.
Eu não matei sua irmã, Sherdra.
Não. Lobos usando peles humanas. Como todos vocês. Vá embora e me deixe em paz.
Coryn aceitou realizar seu desejo. Ele próprio estava mortalmente cansado. E ainda
assim...
Temos estado cegos um para o outro, Coryn reconheceu. Ele esteve dentro de minhas
barreiras sem ver. O mesmo quando me iludi pensando que isso era uma mera fera. É hora
dessas barreiras da má vontade desmoronarem. E eu, como empata, devo tomar a
iniciativa. Oh, Stefan, você está certo: não desejo a morte dele. Realmente nunca desejei.
Então devo me abrir totalmente para ele. Nada de procurar, sondar, irritar seu orgulho e
enfiar como uma faca em todas as suas dores inflamadas. Não, devo abrir para ele as boas-
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 170

vindas e esperar. Ele ainda pode ser forte e potente na mente. Ah, ele morde as garras e me
encara com tanta força! Santo Portador dos Fardos, que sua imagem me dê força. Estou
com tanto medo! Coryn orou sinceramente. Isso é difícil, muito difícil para eu fazer...
Ele rapidamente relaxou cada partícula de suas defesas, sem se dar a chance de
reconsiderar. Qualquer pensamento racional iria apenas ecoar o medo e o preconceito que
ele estava tentando derreter com sua rendição total. Desta vez o felino iria perceber o que
estava vendo, com sinceridade.
Venha agora, orgulhoso inimigo, e festeje o quanto quiser. Esse é quem eu sou.
A consciência do homem-gato se agitou e se fortaleceu. Coryn mal podia acreditar que
ainda era tão forte. Ele esperou. Algo com olhos brilhantes e loucos veio caçá-lo com pés
deslizantes e com garras. Caçando, farejando sua vida mal escondida e vulnerável. Esse não
é Sherdra, mas sim a imagem do meu medo. E então pareceu que ele olhava do portão de
Nevarsin para o rosto perplexo de um jovem muito estranho. Um jovem perdido que estava
tremendo com o vento invernal, mas que não queria entrar em busca de conforto. De nada,
estranho. Entre. Ele estendeu a mão, abriu todas as portas, derrubou todas as barreiras e
todos os escudos, deixando sua luz interior bem externa para iluminá-lo claramente. Um
choque estonteante percorreu todas as correntes de seu ser quando o estranho o tocou e
entrou.
Sherdra veio e hesitou, abrindo apenas uma pequena parte de si mesmo em troca.
Não tenha tanto medo. Para Coryn, a voz mental do outro era remota, distante. Vejo que
possivelmente não é um truque. E este jogo mortal deve terminar.
Eles caçam você com cães, então. Mas por que?
É você quem deve compartilhar sua vida comigo. Eu não vou fazer o mesmo, Coryn. Eu
não posso.
Coryn suspirou. Também não gosto de me dar a conhecer a um estranho. Mas venha.
Veja. Fique comigo. Aqui.
Coryn tentou não conter nada. Muito havia para mostrar, para compartilhar com um
estranho que tinha apenas a mais vaga concepção dos caminhos de um ser humano, muito
menos sua vida interior. Ele pensou primeiro em Illona, surpreendendo a si mesmo. Ele não
havia percebido o quanto ela significava para ele. Ele pensou, tremendo à beira das
lágrimas, na jovem mulher da montanha que amara, mas não pudera salvar da morte. E
Sherdra recuou, como se visse uma obscenidade grosseira. Suas mulheres estão sempre
prontas para se oferecer.
Sherdra, sou eu! Você não pode... Coryn quase interrompeu o relacionamento com
raiva.
Eu pensei que você poderia fazer isso. Sherdra começou a se retirar, com algo como
verdadeiro pesar, Coryn percebeu.
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- Não. - Ele agarrou as mãos de Sherdra nas suas. O homem-gato não se mexeu.
Você espera com mais paciência do que eu, por algo que você possa entender. Muito
bem. Cada um de nós teve a experiência do crescimento, não foi?
Afinal, não foi tão difícil. Coryn compartilhou com Sherdra o que ele esperava que o
alienígena pudesse entender. As primeiras memórias: acordar em qualquer manhã em uma
pobre cabana de caçadores, perto da Floresta Naderling. Coryn se aninhava junto com seu
irmão e irmãs mais novos para se aquecer em um amanhecer sombrio após o outro, a irmã
menor às vezes chorando de fome enquanto sua mãe procurava lenha do lado de fora e
qualquer coisa remotamente comestível. O homem coxo e desarrumado geralmente se
esparramava entre as melhores peles perto do fogo crepitante. As inevitáveis bofetadas e
gritos enquanto ele batia na mãe quando ela chegava em casa com pouco para manter o
frio longe. As outras crianças foram ensinadas a chamar esse homem de pai, mas Coryn
logo aprendeu que não deveria. Ele ficou quase feliz por ter esse privilégio negado. Quando
em uma manhã sua mãe o acordou silenciosamente e, levando-o a um lugar onde sua
conversa furtiva não perturbaria seu marido, contou-lhe suas novidades, ele não conseguiu
entender. Mas ele riu alto de alegria, por poder deixá-los todos...
De alguma forma, sua mãe conseguiu enviar uma mensagem para Ridenow sobre a
existência de seu filho e de como o rapazinho tímido tinha o hábito desconcertante de
responder a perguntas antes que elas fossem feitas. Então ele foi reconhecido, um
nedestro, e um futuro brilhante se abriu.
Então você a deixou com a crueldade de seu companheiro bárbaro. Não sei como...
Sherdra projetou-se confuso.
Sim. Eu deixei minha mãe. O desgosto tomou conta de Coryn. Ele nunca tinha visto sua
partida como deserção ou associado com vergonha. Ela havia desistido dele de boa
vontade. Ela me vendeu, Sherdra. Ele se perguntou quanto cobre os aliados de seu
verdadeiro pai tinham pressionado em suas mãos naquela noite, quando eles vieram atrás
dele.
- Perdoe-nos, chiyu. – ela sussurrou por fim, segurando-o com tanta força contra seu
corpo magro e seco que ele quase gritou de dor. - Esqueça-nos. - Ela não chorou
abertamente. Ela nunca o fez, nem quando o marido batia nela, nem mesmo quando a irmã
mais nova havia morrido. - Nunca olhe para trás.
Você chora com aquele que você tenta esquecer.
Eu tive que tentar. Nunca suportei a dor muito bem, e então... Você deve saber,
Sherdra, ela nunca teve direito a mim! Por que acaso meu pai veio se deitar com uma
mulher tão, tão fora de sua casta, eu nunca soube. Nem me importou. Ela não deveria ter
me mantido por tanto tempo naquele lugar, com aquele homem. (Uma criança gritou de
dor ao sentir o rosto da mãe se abrir com a força dos golpes do marido. Ele correu para o
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homem, golpeando furiosamente com os dois pequenos punhos. O homem riu e o chutou,
ele atingiu a parede, sangrando). Ela...ela deveria ter feito algo. (A imagem da criança
soluçando diminuiu. Um rapaz do Comyn elegantemente vestido, uma versão posterior de
Coryn, considerou com repulsa o espetáculo que seu eu mais jovem havia feito e começou
a dar um sermão ao homem-gato sobre a lei dos Domínios.) Aprendi em Nevarsin, em meus
estudos, que minha mãe não tinha base jurídica para me afastar de meu pai. Os
precedentes são claros. Eu pertencia a ele por direito, desde o início. Ele me queria, mesmo
que apenas por causa do meu laran. E ela, como a maioria das mulheres, deve se curvar à
vontade de qualquer homem. Qualquer que seja sua qualidade.
Isso dava o direito de... (Sherdra usou um conceito que Coryn não pôde compreender,
apenas que era indescritivelmente vil) ...de bater e degradar a mãe de seus filhos? Diga-me
como isso pode ser!
- Sherdra, por favor...
A Deusa uiva de indignação. Entre nós, cada mãe é considerada uma imagem da
Sagrada Presença. Dizer que ela não tem direito aos filhos é uma loucura.
Nesse caso, então todos os Comyn são lunáticos delirantes.
Você gosta de se considerar um Comyn?
O coração de Coryn deu um pulo. Stefan poderia ter dito isso a ele em algum
momento. A relação na época era de pura emoção, raiva, repulsa e uma dor amarga. Agora
podia sentir o mesmo, embora não entendesse, em Sherdra. Mas suas próprias emoções
estavam tão misturadas que ele mesmo não conseguia entendê-las. Oh, mãe... Ele
finalmente te matou? Coryn se pegou pensando.
Você nunca saberá até que volte e veja. Não chore mais. Uma lágrima tardia não pode
acabar com uma seca de verão. Então. É isso. Você deixou sua mãe... Ou nunca voltou para
ajudá-la, o que é pior... Foi para a casa de cavernas de seu pai nobre, se é que posso chama-
lo assim. E isso lhe rendeu muito gyar. E quando veio pra essa Nevarsin em que você
aprendeu coisas tão peculiares?
Coryn refletiu que Sherdra devia estar perto de entrar em colapso. Talvez fosse melhor
acabar com isso agora. - Você não vai demorar agora... O que precisa das minhas mãos? -
Ele perguntou. - Realmente, sinto sua necessidade.
Nenhuma trégua de irmão foi falada entre nós ainda. Continue.
Claro, vai dom.
Sherdra fez um gesto de desdém em resposta ao sarcasmo de Coryn. Eles poderiam
ter terminado então, em antagonismo mútuo. Mas Coryn sussurrou: - Sinto muito. Ou devo
dizer j’dara?
- J'sidarra. - Sherdra o corrigiu e não se retirou.
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Coryn continuou. Na verdade, Nevarsin estava no centro de seu coração. Serrais, o lar
de seus antepassados, pouco significava para ele. E há pouco para te mostrar de Serrais,
pois não passei muito tempo lá. Não fui bem-vindo. Nem em qualquer outro lugar, ao que
parece. Meu pai... A imagem de um homem de feições frias, olhos afiados,
extravagantemente vestido, formou-se na mente de Coryn. Ele estava dizendo algo sobre
responsabilidades e deveres.
- ...Um irmão mais novo de Lorde Serrais. Oh, o nome não importa. Só conversamos
uma ou duas vezes. Ele era quase cego de cabeça, como o chamamos. Ele viu que eu
aprendia boas maneiras e esgrima. No início esperei que ele me amasse. Ele foi honesto
sobre isso.
Eu não sou capaz de emoções mais suaves, Coryn. Seu pai disse. Desde que meu bredu
morreu...mas você é muito jovem para entender isso. Entenda que eu não vou te maltratar,
como fez aquele cão camponês, e providenciarei para que você tenha o que precisar. De
alguma forma, de alguma forma. E o que você merece. Sinto muito, filho, mas não espere
mais.
- Ele estava interessado no que eu poderia transmitir aos meus filhos. Os filhos que eu
poderia dar ao nosso clã, devo dizer. Quando soube que eu estava desenvolvendo laran
ainda jovem, isso o agradou. Eu acho. Ele providenciou para que eu fosse aceito em
Nevarsin. Ele pediu a um dos servos que me contasse sua decisão.
Sherdra parecia não entender. Coryn o puxou para mais perto e pegou ele em suas
memórias de Nevarsin. Você pode compreender esses lugares, essas moradas do espírito?
Sim.
Tenha paciência. Devo mostrar isso a você, pois é...o que me tornou o que sou.
Coryn chegou a Nevarsin rebelde e dolorido. Ninguém vai me querer aqui também.
Mas uma estranha alquimia começou a transformá-lo logo depois que ele entrou pelos
portões de Nevarsin. Pois lá ele experimentou uma variedade de calor que nunca havia
conhecido. A dura disciplina dos monges dificilmente o intimidou, pois Coryn nunca vivera
com facilidade. Ele olhou para os mimados jovens do Comyn, que resmungavam do frio
com desprezo evidente. Eles, por sua vez, zombavam dele por suas atitudes camponesas e
por sua ignorância no casta. Ele não encontrou amigos entre esses jovens e arrogantes
estranhos, mas os irmãos eram muito gentis. E Stefan era mais do que simplesmente gentil.
Foi o Irmão Stefan quem percebeu a solidão do menino e deu generosamente seu
tempo livre, sem de forma alguma se esquivar das tarefas atribuídas. Foi o Irmão Stefan
quem primeiro percebeu o desenvolvimento do dom de cura de Coryn e persuadiu o rapaz
a aceitar o treinamento para colocá-lo em prática, mesmo depois de Coryn ter dito a ele
que ele não tinha bondade para dar a ninguém. Foi o Irmão Stefan quem tocou e trouxe à
tona a gentileza da criança que temia que ele fosse tão cruel quanto o marido de sua mãe
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ou tão frio quanto seu verdadeiro pai. Foi o Irmão Stefan quem o ensinou a não desprezar
sua masculinidade.
E havia mais. Houve longas e satisfatórias conversas durante o período entre as
meditações matinais e as devoções vespertinas, quando Stefan respondia pacientemente às
suas ansiosas perguntas sobre os princípios da fé cristoforo. Além da miséria da existência
da aldeia e das disputas por precedência entre aqueles que se consideravam superiores,
havia valores eternos. Em Nevarsin, havia mais honra para o homem que buscava a verdade
do que para o homem cujo orgulho residia apenas no nascimento. Esse era um credo de
sabedoria que Coryn podia abraçar de todo o coração. Ele não pertenceria a nenhuma casa,
mas apenas à casa do espírito.
No entanto, não foi assim. Seu pai soube de sua inclinação para a vida dos irmãos. Um
lacaio foi enviado para resgatá-lo, de modo que pudesse ser despachado com segurança
para uma Torre onde pudesse ser treinado para fazer truques úteis para o Comyn.
Ele hesitou, então compartilhou com Sherdra sua memória mais amarga: o dia em que
o Irmão Stefan veio informá-lo de que ele seria novamente desenraizado. Ele perderia tudo.
E, ao que parecia, e todas as suas esperanças de uma vida digna baseada em suas próprias
aspirações e crenças recém-adquiridas eram irrelevantes.
Eu não irei humildemente seguir a vontade de nenhum homem! Com um sentimento
inebriante de rebelião, ele formou um plano desesperado.
- Diga ao homem de meu pai que desejo meditar antes de ir. – Ele disse a Stefan. -
Você não pode me recusar isso.
Como se sentisse algo do estado de espírito de Coryn, o monge colocou uma mão
gentilmente restritiva em seu ombro.
- Medite, então, nas virtudes da perseverança e da humildade. Essa é a maneira do
Portador de Fardos. Não fuja do destino.
- Eu farei o que devo, Irmão Stefan. - Ele desviou o rosto. Ele queria expressar sua
gratidão por aquelas horas de comunhão, aqueles vislumbres da verdade que ele teve o
privilégio de compartilhar. Mas as palavras eram inadequadas. Como ele poderia dizer o
que realmente sentia? O homem santo podia interpretar mal... A própria suspeita de
prática abominante devia ser evitada. Então Coryn juntou seus poucos pertences e saiu da
breve presença de amizade em sua vida. O calor de tal proximidade pode chamuscar os
incautos.
Ele escorregou para a neve silenciosa, usando alguns truques que aprendeu para evitar
chamar a atenção, e entrou em um destino desconhecido. Se Coryn chorou enquanto
corria, não foi de medo.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 175

O que Sherdra aprendeu com o último presente que Coryn deu de si mesmo, ele não
disse. Uma pergunta se formou e se lançou através da lacuna que ainda havia entre eles.
Como você pode desafiar seus mais velhos para se tornar um mascate e ficar livre?
Pego no crime mais hediondo de todos, Coryn pensou divertido. Certamente não há
nada pior do que vagar pelo mundo com mercadorias à venda nas costas. A ilegalidade
seria desculpável, mas nunca uma perseguição tão ostensivamente pacífica. Você não
entende, homem dos gatos? Eu estou livre. Eu não respondo à vontade de ninguém além da
minha.
E você é tão sem-teto quanto eu. Isso é alguma coisa. Duas pessoas poderiam ter
coisas em comum? Isso parecia incrível para Sherdra. Até mesmo dois clãs devem controlar
suas diferenças para coexistir. No entanto, não posso negar o que a Deusa deve ter
moldado. Ela não faz nada sem propósito. Devo aceitá-lo como...amigo? É isso que deveria
ser?
Coryn sorriu para Sherdra enquanto o relacionamento diminuía. Sherdra havia se
levantado e estava andando para cima e para baixo rapidamente na frente da entrada da
caverna, respirando profundamente o ar úmido e frio.
- Eu me pergunto como você enfrentou tudo isso? - Ele perguntou em franca
admiração.
As mãos de Sherdra, garras embainhadas, o pegaram pelos pulsos, o ajudaram a se
levantar. O homem-gato não o soltou imediatamente. Coryn pensou que não era mais um
rosto estranho que o confrontou gentilmente.
Você ainda carrega uma bela espada, Coryn. Entre meu povo, os comerciantes simples
não fazem isso. Acho que entre o seu próprio povo existe uma lei semelhante. Por que reter
um privilégio que pertence a um estilo de vida que você rejeita?
- Ora, rapaz, para proteção contra pessoas como você. - Coryn disse e então percebeu
que essa não era a resposta que Sherdra buscava. A pergunta foi um teste final. Se sua
resposta fosse satisfatória...
Minha espada não é a única coisa que conservo. Sherdra o soltou e puxou sua bolsa de
matriz. Isso eu obtive após um teste em Neskaya. Você sabe o seu significado? É uma parte
de mim.
Achei que você devia ter uma dessas. Sherdra ergueu a mão direita, a que trazia
Soulseye. Por um momento Coryn imaginou que a joia flamejou através de sua cobertura.
Você não tem bom senso, passarinho. Você deveria ter tentado pegar isso enquanto eu
dormia. Sim. É algo parecido com a sua. É um dos poucos que nos resta. Não usei isso toda a
minha vida, foi um presente. Mas não pense que você pode tocá-la agora, mesmo com uma
trégua justa entre nós. Se seu povo soubesse de sua existência...
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 176

Coryn se abraçou mentalmente. Ora, pobre coitado estava realmente tremendo,


absolutamente abjeto em sua vulnerabilidade. Zandru! Eu sou um empata! Como você pode
acreditar que eu colocaria a mão na matriz de outra pessoa? A reação iria me matar.
Você não deve ter irmãs verdadeiras, então. Ashyr pode tocar nisto sem causar danos.
Coryn esperou por mais, mas não houve nada. – O ensopado está gelado. Você não me
deixou cuidar do fogo. – Ele disse por fim, esperando que o homem-gato agora estivesse
disposto a ouvir a voz da praticidade.

~o⭐o~
O amanhecer estava surgindo vagamente através de nuvens escuras e cinzentas. A
nevasca mal havia diminuído. Sherdra sabia que não estava em condições de impedir os
homens que o perseguiam. Ele percebeu que o acampamento deles não estava longe. Bem,
ele podia tentar surpreendê-los. Será que os lobos gostariam disso, o caçador que se
transforma em caça? Mas, por enquanto, ele não tinha escolha a não ser depender desse
estranho humano pária que negava sua herança do Comyn. Enquanto isso, ele provaria o
sabor da culinária humana.
Enquanto Sherdra pegava outro prato de ensopado de suas mãos, Coryn fez uma
última pergunta.
- Você realmente se permitiria morrer de fome quando eu tinha comida para oferecer?
Sherdra deu uma mordida no ensopado e, com cuidado, tirou da boca um pedaço de
cogumelo. A carne não estava ruim, só cozida demais.
- Pontos fortes que Sherdra tem e que Coryn pode não ver ainda. - Ele respondeu,
tentando falar em algo semelhante ao cahuenga. Quando Coryn continuou a encará-lo com
o que Sherdra acreditava ser perplexidade, ele explicou entre garfadas. - O que Coryn
ofereceu antes, Sherdra, isto é, eu, não poderia aceitar por muitos motivos. Muitas razões.
Você entende? Mas não seria desonroso para mim tomar, enquanto você dormia.
- Ou me matar e pegar tudo o que quisesse.
- Por favor! Não seria necessário.
Coryn começou a praguejar. Então riu até ficar sem fôlego.
- Que espiral! - Ele disse. - Você deve entender que durante toda a minha vida fui
ensinado a ser cauteloso, até mesmo a desprezar, estranhos como você. Certamente você
não fez nada a princípio para dissipar meus preconceitos.
Sherdra devolveu o prato. - Mais. Então ire dormir. Isto é, se você terminou de falar.
Coryn assentiu. - Nós dois precisamos descansar. - Ele voltou para o fogo. Desta vez,
será observado de perto, como o marido de minha mãe tão dolorosamente me ensinou. Ele
me alertou contra demônios peludos à espreita na floresta também. E aqui estou eu na
floresta, compartilhando um acampamento com um antigo atacante.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 177

Sherdra conteve o rosnado que subia até sua garganta. - Você tem que me lembrar
disso? O que perdemos com a escuridão...
- Perdoe-me, Príncipe Sherdra. - O humano disse. Ele fez um gesto que parecia quase
um sinal adequado de desculpas. - Queria apenas dizer... O que começa mal pode acabar
bem com a ajuda da paciência e da boa vontade. Assim diz o ensinamento cristoforo. Assim,
o homem...todos nós poderíamos sobreviver.

~o⭐o~
- Entende? A tempestade está enfraquecendo com o amanhecer. Tanto para as
previsões meteorológicas do seu tio.
Terenz encolheu os ombros com a zombaria do vai dom. Ele e seu tio nunca foram
próximos. Pegando as rédeas de seu cavalo, ele inspecionou o vale estreito e escassamente
arborizado que ele e Dom Julian finalmente encontraram, depois de uma descida de
arrepiar os ossos que ele logo apagaria de sua memória. Ele gesticulou em direção do brilho
gelado da água entre aquelas árvores raquíticas.
- Isso parece familiar. Aquele riacho, eu acho, é onde nós erramos, saímos na trilha até
a pobre gata. Talvez ela estivesse tendo um encontro com seu companheiro e seja ele
quem você procura? Não parece provável. Mas não temos mais nada para continuar.
Julian estava segurando sua pedra-da-estrela nas mãos. - Você está quase certo. – Ele
disse. – Quase... quase posso senti-lo em algum lugar próximo. Mas a sensação dele vem,
depois vai. Não sou particularmente habilidoso neste tipo de rastreamento. Talvez um
Ridenow... - Ele sentiu os olhos questionadores de Terenz sobre ele e se endireitou, com
um suspiro nervoso.
- Sim, Terenz. Eu deveria ter acordado seu tio, explicado o assunto com franqueza e
pedido sua ajuda novamente. Mas o atrevimento daquele sujeito, Carlo e dos outros,
quando se recusaram a me seguir esta manhã... Bem, isso não me acalmou. É o suficiente
você que veio cavalgando atrás de mim. - Ele tossiu como se estivesse envergonhado. -
Você deveria esperar por isso. Mas não importa. Vamos descer e ver se você está certo.

~o⭐o~
- Esta experiência será uma grande história para os ouvidos dos meus filhos, se eu
viver para falar sobre isso. - Coryn murmurou para si mesmo enquanto olhava para fora,
semicerrando os olhos, para a tarde cristalina. Ele havia dormido pouco desde a refeição
matinal, durante a qual ele e Sherdra lutaram durante toda a noite. E seu descanso foi
intermitente, interrompido por sonhos sombrios e inquietantes. Em um deles, enquanto ele
lutava para reacender um fogo fraco antes que o marido de sua mãe acordasse, ele foi
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agarrado por trás por homens estranhos com olhos de lobo. Eles o chamavam de traidor de
todos os nascidos humanos. Um agarrou a bolsa que continha sua pedra-da-estrela.
Ele não queria examinar esses medos muito de perto. Ele olhou para Sherdra, que
estava quase tão imóvel quanto um morto. Coryn resistiu ao impulso de invejar aquele
assombrado por seu sono. Estou muito melhor. Isso é claro.
Ele alimentou a si mesmo e a Picaro, então ficou pensando em como ele poderia
desempenhar o papel de um homem sábio, em vez de um tolo, para variar. Ele poderia
fazer as malas, deixar o homem-gato dormindo, deixando algumas provisões para ele, é
claro, talvez um ato mais gentil do que ele merecia. Se eu começar agora e esta pausa no
tempo continuar, poderei chegar a Vandemyr não muito depois do pôr do sol.
Ele se levantou, apagou com cuidado as poucas brasas restantes do fogo e foi verificar
o tempo novamente. Estava definitivamente clareando. Um deus mais gentil obstruiu o
vazamento da tempestade no céu. Esse foi um pensamento confuso nascido da insônia,
Coryn se castigou. Mas onde tudo isso vai acabar? O que fazer com meu companheiro
peludo agora? Seria uma misericórdia simplesmente deixá-lo dormir, mas e aqueles
inimigos que ele temia? Eles eram apenas uma fantasia febril? A morte de sua irmã não foi
uma fantasia.
Picaro puxou sua corda e relinchou inquieto. - Eu sei que você não gosta do cheiro
dele. - Coryn sussurrou, esfregando o nariz do cavalo cinza. - Mas logo, eu prometo... -
Picaro balançou a cabeça, bufou, parecendo olhar com uma curiosidade quase humana por
cima do ombro de Coryn.
Algo chamou a atenção de Coryn quando ele se virou: um lampejo de movimento, um
lampejo de cor não natural, na mata rasteira do outro lado do estreito riacho, um som de
cavaleiros se aproximando.
- Não...não. Incrível, não consigo acreditar nisso.
Coryn esfregou os olhos ardentes e olhou uma segunda vez. Certamente os dois
cavaleiros agora à vista eram apenas viajantes encontrados por acaso em uma missão
bastante inocente. Se esses eram os perseguidores de Sherdra, onde estavam seus cães?
Mas suas maneiras denotavam algum propósito comum e sombrio. Coryn não gostou
da aparência do homem de verde e preto.
Ele se moveu para trás e caiu sobre um joelho para se tornar menos visível. - Fique
quieto. - Ele sibilou para Picaro.
Tarde demais. O homem maior estava olhando em sua direção. O homem apontou
para a caverna e murmurou algumas palavras para seu camarada. O Guarda estava olhando
para algo preso entre suas mãos. Coryn tinha certeza de que estava usando uma pedra-da-
estrela. Ele estava tentando detectar traços mentais de sua presa?
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 179

Foi uma escalada difícil até a entrada da caverna. Os dois homens desmontaram. O
Guarda colocou a joia de volta na camisa. Fogo, depois gelo, pulsando ao longo de suas
veias com cada salto de seu coração acelerado, Coryn se esforçou para ouvir o que os
homens estavam dizendo.
- Alguém está realmente se abrigando lá? - Ele pensou ter ouvido o Guarda dizer.
- Tenho certeza de que vi o rosto de um homem olhando para nós. Não, naquela
caverna, lá em cima, vai dom. Se você tem certeza de que o gato está por perto, o homem
pode ter visto algo.
Suas vozes foram sumindo com o vento enquanto o homem se aproximava. Coryn
lançou um olhar para Sherdra. Ainda dormindo, embora tivesse começado a se mover
inquieto, fazendo ruídos suaves de rosnado. Devo acordá-lo? Coryn não precisava de
pesadelos, nem de dons precognitivos para informá-lo do que poderia acontecer se aqueles
homens o encontrassem com o homem-gato juntos. O que Sherdra fez para provocar tanto
interesse?
Ele caminhou em silêncio até onde Sherdra estava deitada e observou o rosto do
homem-gato por um momento. Havia uma série de coisas que ele poderia fazer para se
proteger. Ele balançou sua cabeça. - Vou ter que tentar isso. - Ele murmurou, bocejando. -
Se eu falhar, vou tentar acordá-lo enquanto ainda há tempo.
Colocando uma faca na mão de Sherdra, ele orou a seu santo para protegê-lo, então
saiu para saudar seus visitantes.
Apesar de seu humor sombrio, ele parecia ter perdido totalmente o foco telepático do
gato, Julian não conseguiu conter um sorriso. O que ele temeu ser um bandido desesperado
era apenas um homem desgraçado e trêmulo, possivelmente muito bêbado e apenas um
mero mascate, vestido de forma mais excêntrica do que o normal. Ao encontrar Julian e
Terenz, o mascate fez uma reverência frágil e afetuosa. Ele gaguejou uma saudação formal
em um casta muito ruim. Então, mal dando a eles a chance de responder com seus nomes,
ele se lançou em uma explicação desconexa de como tinha vindo parar em tal lugar. As
sobrancelhas de Julian se arquearam. O homem parecia nervoso. Talvez ele fosse uma
espécie de ladrão.
- Você realmente passou a noite se abrigando naquela caverna, bom sujeito? - Julian
perguntou em tom condescendente.
Momentaneamente, o homem pareceu irritado. - O nome é Francis, vai dom. - Então
ele baixou os olhos e coçou ativamente o ombro. - Onde mais um pobre mascate pode se
esconder dessa tempestade? - Ele choramingou. - Como tenho dito a você, e muito
obrigado por sua graciosa paciência, eu estava a caminho de Vandemyr, quando aquele
bandido faminto me jogou na estrada. Eu me defendi daquele cão, mas não sem me
machucar. - O sujeito deu um tapinha na bochecha marcada que Julian estava olhando. - E
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 180

meu chervine fugiu durante a briga, com minha mochila e a maior parte de minhas
mercadorias. Terei muito pouco para trocar por meu sustento em Vandemyr. Ah, como é
triste o mundo para um homem sem sorte! - Ele disse e enxugou o nariz na manga.
No passado, Julian poderia ter simpatizado com o problema do homem, até mesmo se
oferecido para ajudá-lo. Mas suas preocupações atuais estavam em outro lugar. Por
Zandru, ele estava cansado! E sem paciência com idiotas.
- Estou caçando um gato sujo e assassino. – Ele disse. - Você viu algum sinal disso?
- Um demônio, de fato! - Terenz gritou. Julian agradeceu com um olhar. O mascate
parecia chocado. Ele fez um sinal de aversão.
– U-um homem-gato? - Terenz balançou a cabeça severamente. O mascate
estremeceu. - P-perdoem-me, amáveis senhores, mas não! O pobre Francis teria caído
morto de medo se tivesse só sentido o cheiro daqueles demônios. Estou surpreso que
vocês dois sejam tão corajosos, rastreando um monstro, e também durante uma
tempestade. - Torcendo as mãos, ele olhou para o céu. - E se você me perguntar, vai dom...
Sei que você não me perguntou, mas talvez eu deva chamar sua atenção... Parece que a
nevasca ainda não acabou. Está ficando escuro maravilhoso de novo. Você não sente o
vento?
Para Julian, o tempo não parecia mais perigoso do que no início do dia. Ele e Terenz,
de alguma forma, passaram por coisas piores. Mas Terenz estava dizendo: - Ele pode estar
certo, Dom Julian. Acho que teremos mais.
Julian reprimiu um gemido de consternação e deu as costas para os dois.
- Se vocês têm um acampamento por perto, nobres senhores, é melhor voltar
enquanto essa calmaria está durando. – O mascate disse.
- Você realmente acha que é apenas uma calmaria, então? - Terenz disse.
Francis concordou. - Conheço os sinais. Perdoe-me, mas imagino que você não viaja
muito por aqui. Essa tempestade certamente estará batendo em seus ouvidos antes do pôr
do sol, vai dom.
Terenz parecia inseguro e olhou para cima com uma ruga de ansiedade na testa. -
Pode muito bem ser isso. – Ele disse após o exame. - Esse céu é como uma mulher que não
sabe o que pensa. É melhor não procurarmos mais hoje.
Cruzando os braços, Julian se apoiou contra uma grande rocha. – Certamente. - Ele
demorou. - Vá em frente, Terenz. Rasteje de volta para o acampamento e junte-se àquele
bando de covardes, se quiser. Estou cansado de ser avisado de que algumas gotas de chuva
podem soprar em nossa direção. Droga, cara, esse gato está perto. Eu quase podia...como
Kraigan diria? Ah sim! Cheirá-lo!
- Vai dom, eu imploro... - Terenz disse.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 181

- Nos últimos dias, - Julian continuou - ouvi reclamações suficientes sobre o tempo por
uma vida inteira. Terenz, pensei que pelo menos você estivesse comigo. Eu pensei que você
entendia. Ou toda aquela conversa sobre vingar sua irmã era apenas conversa vazia?
- Eu entendo. E minhas palavras não eram vazias. – Terenz respondeu. Ele caminhou
para cima e para baixo por um minuto, como se quisesse evitar chorar de pura frustração.
Então seu rosto se iluminou. Ele apontou para além do mascate, em direção à caverna.
- Nós poderíamos nos abrigar lá por um tempo, pelo menos nos aquecer, até que seja
seguro continuar. Perderemos menos tempo assim. Isto é, se o Mestre Francis não se
importar em compartilhar seus aposentos.
- Não. – Julian disse.
- Dom Julian, tenha pena de si mesmo, se não tem de mim. Você parece prestes a cair.
Não encontraremos nada além de nossas próprias mortes se a tempestade cair sobre
nossas cabeças!
Julian sorriu para ele. O mascate pigarreou.
- Você deve estar pensando que esqueci minhas maneiras. Mas é um lugar úmido e
prejudicial, adequado apenas para pessoas humildes como eu.
- E para as bruxas-gato. - Julian murmurou para si mesmo.
- Claro que são bem-vindos, muito bem-vindos. Mas, como deveria ter dito antes,
tenho um jovem criado comigo que está muito doente. No começo eu pensei que ele havia
se machucado com o bandido e estava orgulhoso demais para me dizer a princípio. Mas
não, ele pegou uma febre estranha. Pode ser contagioso. Ele está todo quebrado em
pontos feios. - O mascate coçou o braço direito novamente, vigorosamente.
- Vamos nos arriscar, Francis. Talvez possamos ajudar o pobre rapaz. – Terenz disse.
Ele começou a caminhar em direção à entrada da caverna.
- Tenho pouco para Jamie ou para mim. – O mascate respondeu. Julian se perguntou
por que seu rosto ficou tão branco. - Você realmente ficaria mais confortável em seu
acampamento.
- Fica a mais do que meio dia de viagem de volta. Se de fato os rapazes ainda esperam
por nós... E não quero vê-los de novo tão logo, Dom Julian. Teremos o maior prazer em
compartilhar o que temos com você. - Terenz tentou empurrar o outro homem, que muito
bêbado, ao que parecia, cambaleou diretamente em seu caminho.
- Você faria isso? Você é muito gentil! Eu devo admitir que estou meio faminto. O
pobre Francis ficaria grato, tão humildemente grato...
-Eu ficaria muito grato, cara, se você se afastasse e nos deixasse sair desse frio terrível!
Eles ficaram discutindo a poucos passos da entrada da caverna. Então o mascate deu
uma risadinha e fez uma reverência. - Mas o vai dom deve entrar primeiro, não é? Boas
maneiras, meu rapaz, boas maneiras! - Ele balançou um dedo no rosto surpreso de Terenz.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 182

Julian riu alto, para encobrir a vaga suspeita que começava a sentir. Ele se juntou a
Terenz, que olhou para ele com o que parecia ser um grande alívio.
- Dom Julian, este tolo descortês...
- Correção, Terenz. Esse idiota mentiroso. – Julian disse, muito baixo.
Mas agora o mascate estava se movendo para o lado, dando a ambos um sorriso
excepcionalmente caloroso. - Cuidado com suas cabeças. A entrada é baixa e estreita. – Ele
disse. – Bem, entrem, cavalheiros.
Disse a aranha, Julian pensou. Ele puxou Terenz de volta pelo braço.
- Dom Julian, por favor. – Terenz disse, então mordeu a língua quando a bota do
Guarda desceu sobre seu pé direito.
- Obrigado por sua oferta generosa. - Julian disse ao mascate, no mesmo tom que
usaria se fosse convidado a uma câmara real em Elhalyn. - Mas não ousamos demorar mais
em nossa caçada. Especialmente porque, como você nos disse, podemos não ter muitas
horas restantes. Boa sorte para você, Mestre Francis. Espero que seu companheiro fique
bom. Vamos, Terenz. - Ele apressou o outro homem que estava lutando para abafar seus
protestos.
- Eu teria dado boas-vindas à sua companhia. – O mascate suspirou e arrotou
novamente. - Mas se você deve ir, você deve ir. - Grandemente ele acenou para eles
enquanto caminhavam de volta para seus cavalos. - Adelandeyo, nobres senhores.
Depois de terem atravessado o riacho e cavalgado um curto caminho até a floresta
coberta, Julian indicou a Terenz que desmontassem novamente. Então Terenz explodiu. -
Dom Julian, que nova loucura é essa? Eu penso que...
- Você não foi contratado para pensar. Você deve me seguir sem questionar. Isso foi o
que você prometeu fazer esta manhã, não foi? Ou você prefere se reunir com seus amigos
no acampamento?
- Não, senhor. - Terenz suspirou e baixou a cabeça bastante magoado, Julian percebeu.
Ele lamentou, mais do que jamais pensou ser possível, por magoar Terenz assim. Mas ele
não deu nenhuma explicação até que tivesse considerado completamente o perigo que
pareciam enfrentar. Se o gato realmente tivesse conquistado um protetor humano, ele
poderia ter outros, agora os seguindo. Poderia até haver observadores e ouvintes nesta
floresta.
Talvez eu esteja apenas louco, afinal. O mascate pode ter sido tão inocente quanto
parecia. Mas sua maneira era estranha e eu senti algo ruim naquela caverna. O fedor de
gato? Devo ter certeza de que temos os meios para enfrentar a besta e vários aliados
humanos antes de nos aventurarmos mais longe. Habitantes das Cidades Secas, talvez?
Avarra nos defenda, que tipo de homens podem ser esses?
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Ele tentou ouvir internamente a voz de Alaric, mas sentiu apenas o mesmo silêncio
vazio que tinha estado com ele desde a manhã. Ele também se sentia muito sozinho. Bem.
Eu sei que você não concordaria comigo, de qualquer maneira.
- Vamos acampar aqui? - Terenz estava perguntando.
- Por um tempo. Observe se alguém sai daquela caverna. Espero que não haja túneis
laterais ou traseiros pelos quais eles possam escapar de nós. E fique quieto! Podemos estar
sendo espionados. - Ele tirou a bolsa que continha sua pedra-da-estrela. - Vou tentar entrar
em contato com Kraigan. Não sou um telepata de longa distância. Nem sei se ele pode
receber uma mensagem. Mas podemos precisar dele e de seus cães.
- O que? - Terenz ficou boquiaberto.
Julian deu um tapinha em seu braço. - Podemos ter encontrado o que estávamos
procurando.

~o⭐o~
- Está tudo bem, Sherdra. Eles se foram. - Coryn tateou seu caminho de volta para a
caverna. Ele mal podia ver por causa das lágrimas de tensão e alívio que inundaram seus
olhos. - Eles se foram. - Ele repetiu para as duas bolas brilhantes de olhos que surgiram de
repente da escuridão. - Eles se foram. - Ele caiu de joelhos, tremendo como um paralítico.
Eu não estava com medo. Nem você deveria estar. Você deve se orgulhar e cantar seu
orgulho. Nós diríamos que você ganhou muito gyar.
Sherdra relaxou sua postura defensiva e saiu do esconderijo silenciosamente. Eu ouvi
seu chamado de alerta, como você vê. Muito Obrigado. Ele tocou Coryn em sua orelha
direita, então ofereceu a ele sua faca.
- Fique com ela, por favor. Muito obrigado a você, também, por não atacá-los. - Ele
tentou se levantar. Seus joelhos não paravam de ceder. Sherdra o ajudou a se acomodar
em seu saco de dormir.
Esperei para ver o que você faria com os caçadores. Ainda não estou forte o suficiente
para arriscar uma luta. Você me ensinou que humanos não são pegos tão facilmente. Ainda
assim, podemos tê-los esmagado entre nós. Eu estou certo disso.
Coryn abaixou a cabeça, os dentes batendo. - Estou tão frio. Esse Guarda! Acho que
ele está louco...pronto para ser acorrentado, como você diria. O jeito que ele olhou para
mim! Eu sei que ele adivinhou a verdade.
- Se ele está louco, então ele não pode ver tão bem.
- Você poder estar certo. Mas a história que contei a ele não enganaria nem mesmo
um idiota congênito. O grande caipira, talvez, mas não outro telepata... Acho que eles vão
voltar. Com os cães. - Ele balançou para frente e para trás, escondendo o rosto nas mãos. -
Eu sou um tolo em pensar que um ato tão bobo o enganaria.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 184

Eu teria atacado eles se entrassem neste lugar. Enquanto isso, esperei sua palavra.
- Eu não queria ver ninguém morto. - Coryn sussurrou.
- Então? - Sherdra foi até a entrada da caverna e olhou para fora. Sua cauda atarracada
se contraiu. Ele fez um som sibilante e lento. - Nenhum observador à vista. Mas isso
significa pouco. É melhor você me devolver minha espada em forma de garra e chicotes de
duelo. Não consegui encontrá-los quando você me acordou.
O homem-gato o encontrou no meio do caminho enquanto ele voltava para o saco de
dormir com as armas de Sherdra. - Eu vou pegá-los. Você se senta e descansa. Ou devemos
discutir uma noite sobre isso?
- Temos que sair daqui, Sherdra. Agora. Eles podem estar voltando.
- O quê? Com esse tempo? - Sherdra parecia sorrir a seu modo.
Então você ouviu tudo o que foi dito.
Um pouco. Meu clã não corre para a surdez.
- É bom que você saia. - Sherdra observou enquanto Coryn começava a guardar seus
pertences dentro de sua mochila. - Seu parente de sangue pode de fato matá-lo se
descobrir que você estava me ajudando.
Coryn derrubou o pacote. - Olha aqui, cara, certamente você não está pensando em
ficar para trás nesta ratoeira? Se você não se importa de viajar comigo por um tempo, eu
conheço um lugar nas colinas onde eles nunca vão nos encontrar, eu juro.
- Sherdra sabe como se defender em cavernas.
- Eu sei disso, mas...
- Tenho uma dívida que não posso pagar. Você não deve mais arriscar sua vida.
- Sherdra! Eu gastei tempo e energia suficiente com você para não querer que isso seja
desperdiçado.
- Por que você me ajudou depois que eu tentei te matar? Você não me mostrou isso.
- Por quê? Muito simples... - Ele enviou uma imagem mentalmente para Sherdra do
horror que uma vez vira na floresta do sul, um fora-da-lei atropelado por uma matilha de
cães de caça. Ele sentiu o homem-gato estremecer. Eles disseram que o homem havia
assassinado uma criança. Ainda assim, fiquei meio doente por dias depois só por lembrar.
Supondo que esse era o seu problema, fui compelido a evitá-lo. Sim, há mais nisso. – Ele
disse em voz alta, engolindo em seco. - Mas realmente temos que parar de falar e começar
a nos mover, como o marido da minha mãe costumava dizer.
Então vá. Faça o que achar necessário para seu próprio bem.
- Mas, Sherdra...
Não consigo correr rápido ou ir longe. Se os cães dos caçadores nos farejarem a céu
aberto, eles podem puxar você para baixo comigo. Eu disse que não vou permitir que você
corra esse risco. Além disso, estou muito cansado de fugir.
O o u t r o l a d o d o e s p e l h o | 185

Sherdra ficou em completo silêncio, sentando-se sobre as patas traseiras. Seus olhos
estavam turvos e enigmáticos, como os da selvagem da floresta que Coryn vira uma vez
perto de Serrais, enjaulada para a diversão de um de seus primos cegos de cabeça. A culpa
por não ter tentado libertar o pobre animal ou acabar com sua miséria permaneceu com
ele por toda a vida.
Coryn tentou vários outros argumentos. Ele implorou, persuadiu, usou as táticas
refinadas de lógica que aprendera em Nevarsin. Sherdra permaneceu impenetrável.
- Muito bem. - Coryn se levantou e empurrou sua mochila no lombo de Picaro. - Vou
ficar com você só mais um dia, para observar enquanto você descansa.
Sherdra sinalizou: - Não.
Mas Coryn continuou, severamente: - Não posso fazer de outra forma. Não me
pergunte o porquê. Eu mal me reconheço.
- Coryn também está cansado e deveria dormir enquanto eu observo.
- Em Nevarsin, aprendi a suportar muitas horas de insônia.
- Minha dívida para com você aumenta. Devo pensar em uma maneira de retribuir.
- Não quero nenhum pagamento.
- É uma dívida. Eu perderia gyar aos meus próprios olhos se não pagasse.
- Você não vai pagar nenhuma dívida em seu estado atual. Siga meu conselho, pelo
menos uma vez, e descanse em silêncio.
Sherdra esticou seu longo corpo felino no chão da caverna. Começo a obedecer a você
como hábito, ele projetou.
Se isso for verdade, é uma surpresa. Você está finalmente aprendendo a sabedoria?
Coryn esperava que Sherdra percebesse a afeição subjacente a seu pensamento enquanto
o homem-gato adormecia.

~o⭐o~
Kraigan e seus cães estavam tropeçando nas encostas mais baixas da montanha
quando a mensagem brilhou em sua mente. Ele freou bruscamente, quase erguendo seu
cavalo. Por natureza, ele era mais cuidadoso, mas não estava acostumado a esse tipo de
coisa.
Uma voz fria soando em sua cabeça disse-lhe como Dom Julian reconsiderou o assunto
e agora precisava dele. O Guarda pareceu satisfeito ao saber que Kraigan estava seguindo
ele e Terenz, afinal. Ele não pediu explicações de por que Kraigan reconsiderou sua própria
decisão de não continuar na caçada sob condições das quais apenas um louco não
zombaria. Kraigan disse a si mesmo que foi a preocupação com seu sobrinho que o obrigou
a começar uma busca pelos caçadores rebeldes depois que ele foi acordado por Carlo no
início desta manhã e informado que os tolos haviam partido. Mas seus motivos não eram
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claros até para ele mesmo. Na verdade, ele finalmente concluiu que sua busca era inútil.
Seus cães não podiam sentir nenhum cheiro provável. Ele havia começado a circular de
volta ao acampamento quando Julian o contatou. Tão maravilhoso e tão estranho...
Vai dom...
Ouça, velho lobo. A imagem mental de uma mão sacudindo-o com urgência, como se
fosse o sono incauto de um tolo. Kraigan engoliu em seco, reprimiu suas reservas internas e
lutou para se manter aberto ao que Julian estava lhe transmitindo.
Foi mostrado o que o Guarda havia encontrado, o que ele suspeitava e onde eles
podiam se encontrar. Venha rápido, mas silenciosamente, muito silenciosamente. Tente não
deixar seus animais gritarem inesperadamente, qualquer que seja o cheiro que eles possam
sentir. Eles terão um estômago cheio de carne se tivermos sucesso. Não mais. Não
posso...não me atrevo mais a manter esse contato. Sim, Terenz está bem. Vou dizer a ele
que você...
É certo que ele está louco, Kraigan pensou quando o contato tenso foi interrompido.
Mas parece ter lido seus sinais corretamente se houver alguma verdade no que ele diz. Ele
pode ser aquele que está são o suficiente quando o vento está na direção certa.
Em qualquer caso, ele não sentiu nenhuma relutância ao vontade de desobedecer. Se
tudo corresse como Dom Julian propôs, a caçada seria um sucesso. Seu ânimo melhorou.
Ele nunca havia falhado com um vai domyn em ajudar a rastrear sua presa. Nunca deixara
de terminar uma caçada de sangue, para o bem ou para o mal. Ele reconheceu para si
mesmo que sempre teve prazer, tanto quanto qualquer um de seus cães, em derrubar um
homem-gato.
Se ele fosse um tipo de ladino imprudente, poderia ter soprado seu chifre de prata
enquanto esporeou seu cavalo mais uma vez para a trilha. Em vez disso, a canção de um
caçador se elevou em seus lábios enquanto os cães negros corriam silenciosamente ao
redor dele, seus olhos brilhando com tanta alegria quanto os lobos deviam sentir.

~o⭐o~
Coryn havia superestimado sua própria resistência. Sua necessidade de dormir tornou-
se um grande inimigo. Ele estava cochilando, mas alguém tinha que vigiar para o caso
daquele Guarda... Aquele Guarda... Ele estava sendo levado para Serrais em uma jaula
enquanto cuspia nos captores e tentava agarrar... Garras? A cena mudou. Ele e seu pai
lutavam. Qual pai? O rosto continuou mudando. De repente, ele se viu mergulhando uma
espada em um corpo enegrecido que ganhou vida diante de seus olhos e se transformou
em Sherdra, que empurrou a espada de volta para ele e gritou em uma linguagem que
nenhum humano deveria saber: ‘Isso é por Myor’. Então Coryn sentiu-se caindo, caindo, e
acordou com um grito nos ouvidos. Não era sua própria voz.
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Coryn foi até o adormecido Sherdra, que estava fortemente enrolado e


choramingando. O grito se transformou em uivo e depois diminuiu novamente. O pesadelo,
ou o que quer que seja, não tinha fim. Ele, Coryn, devia ter recebido fragmentos do horror
entrelaçado com seus próprios medos. Isso não podia continuar. Ele sacudiu Sherdra
suavemente para acordá-lo. Sherdra se agarrou a ele e continuou chorando.
Pouco tempo antes, Sherdra parecia muito mais forte. Se recuperando, ele discutiu e
brincou à sua maneira, até se oferecendo para devolver a ajuda que Coryn lhe dera. Agora
Coryn percebeu que não havia tratado o ferimento mais profundo e sutil, a fonte de um
veneno fulminante para o corpo e o espírito.
Você sonhou? Coryn perguntou.
Assassinato. Myor. Ashyr. O Comyn nos caçando até o fim. Sem esperança. Sem futuro.
Apenas sangue.
Coryn embalou Sherdra em seus braços, tentando romper a parede de desespero.
Uma parte de sua própria mente estava começando a tagarelar em pânico, Corra, esconda-
se! Não. Não era apenas o medo que sentia em Sherdra. Pois chegou a seus ouvidos um
grito distante e bestial, como o de lobos. Veio à sua mente uma visão sombria de três
homens se encontrando na floresta não muito longe, trocando apenas algumas palavras,
olhares de expectativa e, em seguida, cavalgando rapidamente em direção à caverna. Coryn
escondeu esse conhecimento de Sherdra com uma força de vontade que nunca soube que
possuía. Ele devia lidar com esse perigo, mas, neste momento, ele deve confortar esta
pobre criança, que nunca poderia ajudá-lo no estado em que se encontrava agora. Criança?
Não. O felino não era uma criança assustada, mas um adulto sofrendo, cheio do tormento
de uma tragédia real passada e que ainda estava por vir. Como alguém poderia dizer a este
homem para ter esperança quando toda esperança estava em frangalhos? No entanto, sem
esperança, Sherdra nunca poderia se levantar para ficar ao lado de Coryn enquanto eles
enfrentavam os caçadores. Sem esperança, ele nunca se recuperaria de seus ferimentos.
Coryn os havia monitorado e eles podiam curar, mas a cura está na mente do ferido e
também na do curador. Ele não poderia lutar contra o próprio Sherdra e lutar pela
sobrevivência do homem-gato contra todas as probabilidades. Sherdra teria que saber
disso...
Eles vêm? As garras de Sherdra cravaram em seu braço. Olhos fechados clarearam,
ouro fundido resplandecente. Coryn vislumbrou na mente do homem-gato o estrago que
ele causaria aos caçadores e seus lobos antes que o derrubassem. Soulseye estava
acendendo. Coryn engasgou com a sensação de queimação em suas mãos. Ele quase soltou
Sherdra.
Perdoe me pai. Para este aqui não há ajuda em seu credo gentil.
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Esta era a resposta? Para recuperar Sherdra para si mesmo deveria convocar o
guerreiro dentro dele? O eu cristoforo de Coryn se rebelou contra isso, mas havia uma
parte dele que exultava com a violência e odiava o Comyn. Odiava seus pais. Odiava sua
família. Alimentar o guerreiro em Sherdra despertaria o monstro em si mesmo. De que
forma, então, ele seria melhor do que o Comyn que desprezava? Ele ouvia interiormente as
vozes dos santos irmãos. Sim... Era realmente muito simples. Se alguém podia ser levado a
isso... Ele já tinha visto a chave antes. Pensar e compartilhar uma ideia, embora ele não
fosse nenhum Alton para forçar o relacionamento. Ele percebeu que não precisava ser.
Novamente o latido de cães foi ouvido, mas agora mais perto. Agora mesmo eles
deviam estar escalando a colina que ficava em frente à caverna. Sherdra o cutucou com
força. Oh falcão, voe comigo nesses caçadores. Coryn alcançou sua espada. Então ele se
comprometeu novamente com seu propósito e enviou sua mente para longe. Ele encontrou
outra com menos força, mas concentrado em seu objetivo. O Guarda do Comyn deve estar
louco, Coryn pensou, para levar o desafio da caça tão longe. No entanto, era dessa loucura
que a salvação de Sherdra dependia.
Aproxima-te. Encontre-me, caçador.
O rosto eriçado de um cão, rosnando, olhou diretamente para ele do lado de fora da
entrada da caverna. Sherdra rosnou de volta. Coryn conseguiu segurá-lo. O momento certo
seria muito rápido.
Agora que a armadilha foi acionada, deixe-me atraí-lo, Sherdra, para encontrar seu
verdadeiro inimigo. Podemos lidar facilmente com esses cães. Sherdra! Venha comigo!
Mostre a ele seu sonho de medo e morte.
O caçador se lançou sobre a presença do laran como em resposta ao seu próprio raio
de pensamento lançado com desprezo, mas não pensou em encontrar o que viu. Suas
memórias de Corresanti e o que ele e seus parentes fizeram lá, eram muito diferentes
dessa visão perversa. Tanto massacre e ele participara desse massacre?
Mesmo se fossem animais, você trataria um cachorro louco assim?
Julian rejeitou o pensamento selvagemente. Essa coisa matou Alaric! O que quer que
seja, homem ou animal, causou uma perda muito grande! Ah, bredu!
Dois seres felinos fizeram um juramento inquebrável. Caçavam, comiam e dormiam
lado a ladom compartilhando todas as coisas. Myor, meu irmão caçador, disse a mente
alienígena. Então veio uma visão sombria do mesmo gato estando de joelhos, derrotado,
sozinho, enquanto uma crueldade humanamente desumana mergulhou uma espada de
poder no corpo felino....enquanto queimava e enegrecia...enquanto ele se contorcia. Myor
assassinado, veio o pensamento amargo e sombrio.
E havia algo mais: algo sobre uma mulher, ferozmente viva, linda como o amanhecer
que lhe deu esse nome. Uma mulher dançando, cantando dentro do círculo de fogueiras de
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vigia, cantando de alegria pela nova vida que ardia dentro dela. Algo sobre uma mulher, sua
beleza, sua vida completamente destruídas, a esperança viva que ela carregava também
destruída. Para sempre deitada imóvel e sem voz no fundo de um grande abismo. Você fez
isso, disse o homem-gato.
Fora da caverna, Julian Castamir parou.
- O que você está esperando? - Kraigan rosnou para ele.
Julian balançou a cabeça, confuso.
- Então eles também têm bredin. - Ele murmurou. - E aquela mulher...era sua irmã? A
pontuação deve ser igual, então. Não! Ele é um animal. Alaric....
- Meu Lorde! Os cães encontraram o cheiro. Sem dúvida. Lá dentro. - Kraigan cuspiu,
indicando as profundezas da caverna.
Julian jogou a cabeça para trás. ‘Pegue-os’, ele queria dizer, mas não podia. Ele se
sentiu transformado em gelo. Alaric estava sussurrando por dentro, Sem piadas agora. É
hora de me deixar ir, Julian. Mas essa ação sangrenta que você planeja pode nos acorrentar
juntos para sempre. Outra coisa me chama para longe. É difícil deixar você, mas devo.
Bredu, você não consegue entender? Não houve malícia real no que ele fez comigo. Eu
simplesmente entrei em seu caminho enquanto ele tentava escapar de nós, não posso mais
odiá-lo. Agora eu vejo... Oh, como eu gostaria de poder contar a você tudo o que vejo!
Desista. Desista de seu ódio, por você e também por mim. Julian, por favor...
Julian nunca saberia se Alaric tinha realmente falado com ele mesmo de dentro das
fronteiras da terra da morte ou se a voz de seu bredu tinha sido apenas a criação de uma
mente desordenada. Mas, naquele momento ele sabia que isso significava que iria perder
Alaric completamente. Vagamente ele percebeu que Kraigan se afastou dele com nojo.
Ouviu, como se de uma grande distância, o rastreador gritando: - Você aí! Você pode
muito bem sair e nos enfrentar como homens.
- Kraigan! - Ele empurrou Terenz e correu atrás do rastreador, pegando-o pelo braço
enquanto ele tentava puxar sua faca de caça.
- Chame de volta os cães. – O Guarda disse.
- Chamar de vo... Ora, vai dom! - A respiração de Kraigan assobiou para dentro. -
Pensei que você poderia fazer isso. - Ele se livrou de Julian, então assobiou para seu cão
mais próximo ficar entre eles. - Depois de todos os nossos problemas? Não!
Julian tentou alcançá-lo mentalmente, mas sentiu algo mais animal do que humano.
Ele deu um passo para trás. Kraigan sorriu, mostrando todos os dentes.
- Apenas fique aí e deixe meus cães e eu cuidarmos deles. Você mudará sua mente
confusa rapidamente quando o gato morrer. Terenz...
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Ele olhou para o sobrinho, para comandar sua obediência. Ao fazer isso, o punho
pesado da adaga arremessada de Julian atingiu-o com força na base de seu crânio. Kraigan
cambaleou e caiu.
Terenz correu para frente. Julian pensou que talvez tivesse que lutar contra o grande
homem da montanha também. Mas Terenz afastou o enorme cão de caça que saltava para
a garganta de Julian e o atirou esparramado pelo íngreme declive rochoso. Ele ajudou Julian
a se defender e subjugar os outros cães zangados e confusos que agora enxameavam sobre
o corpo inconsciente de seu mestre. Talvez Kraigan os tivesse controlado muito forte. Sua
presença dominante desapareceu momentaneamente de suas mentes, os cães foram
rapidamente reprimidos por algumas palavras duras e chutes de Terenz.
- Não tenho a capacidade dele de comandá-los. Mas eles vão me obedecer por um
tempo. - Terenz disse.
Curvando-se sobre Kraigan, Julian avaliou seu ferimento e com alívio percebeu que
não era sério. - Ajude-me a carregá-lo de volta morro abaixo. Gentilmente, homem,
gentilmente! Vamos levá-lo de volta para o outro lado do riacho. Não se preocupe com os
cavalos. Eles vão nos seguir. Talvez quando ele acordar, nossos amigos na caverna tenham
partido. Ou pelo menos ele verá a luz da razão.
- Por quê? - Terenz perguntou enquanto ajudava Julian. - Por que você fez isso. Não
sou como meu tio. Eu nunca poderia desafiar alguém como você. Ainda assim, você o
machucou. Veja como seu sangue mancha suas roupas. E tudo isso por nada.
Julian estava olhando por cima do ombro, para se certificar de que os cães os
seguiam. Ele imaginou ter visto, agachado na boca da caverna, uma besta de pêlo cinza,
observando-o com olhos muito brilhantes. Ele voltou seu olhar lentamente para o rosto
duro de alguém que poderia ter se tornado um amigo.
- Cuidado com os passos. – Ele disse, mais para si mesmo do que para Terenz. O
rastreador era mais pesado do que parecia, o terreno era irregular.
- Por quê, vai dom? - Terenz persistiu.
- Perdi o interesse em meu coração, cara. Nada mais.
- Você deve estar enfeitiçado, Lorde. O gato é um assassino.
Julian se lembrou claramente de algumas coisas que tinha visto e feito em Corresanti. -
Terenz, se você está procurando por assassinos, não precisa ir tão longe assim.
Então um silêncio caiu entre eles. Um silêncio que Julian sabia que, em essência, se
aprofundaria quando eles finalmente deixassem este lugar e voltassem para casa. Eles iriam
se abrigar nesta floresta durante a noite que se aproximava, cada um sem dizer uma
palavra ao outro, cada um voltado para o cuidado e conforto de Kraigan. No dia seguinte,
Julian percebeu, ele poderia ter que enfrentar Kraigan novamente. A essa altura, o homem-
gato e seu aliado humano podiam ter tido o bom senso de se afastar do perigo. No mínimo,
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ele teria que suportar os comentários escaldantes do rastreador quando Kraigan visse que
sua caçada estava estragada, sua presa partindo em segurança. O Guarda não se importou
muito. Ele havia se despedido de Alaric. Ele havia deixado todos eles irem em liberdade. O
homem-gato. Seu bredu. Ele mesmo. Nada importava, além disso.
A neve estava caindo, como um fantasma, ao redor dos homens enquanto eles
alcançavam um provável abrigo e colocavam seu fardo vivo no chão. Flocos flutuaram pelo
rosto de Julian, manchando suas bochechas com algo como lágrimas frias. Eu sou muito
sentimental para o meu próprio bemm, ele zombou de si mesmo.

~o⭐o~
- Não consigo acreditar que isso realmente aconteceu.
Coryn havia se unido a Sherdra na entrada da caverna para observar os caçadores que
partiam, seus cães arrastando-se cansados (E tristes? Ele se perguntou) atrás deles.
- Eles feriram o velho caçador, o lobo que corria sobre duas pernas. - Sherdra
respondeu. - Os outros... Ha! Eles eram apenas cães domesticados, afinal. Mas derrubá-lo
enquanto ele encurralava sua presa! Isso eu não consigo entender.
- Fizemos o Guarda entender.
- Ele? Deviam tê-lo capturado e acorrentado. E o levado para sua mãe para ser curado.
Ele realmente... Como você diz? Perdeu a cabeça?
Não. Em vez disso, agora, ele a encontrou... Quando você mostrou a ele seu sonho
sombrio. Quando você se compartilhou com ele, Sherdra. Não finja que você falhou em
entender esse significado. Estamos unidos demais para isso. Talvez...talvez ainda haja
esperança para todos nós. Espero que um dia todo o seu povo e o meu aprendam a olhar
por trás da pele. Espero que todos vejamos que não somos tão diferentes, afinal.
Ele estava tão exausto agora que mal conseguia enquadrar em seu pensamento a
ideia que tentava transmitir. Ele tentou começar a explicar em voz alta.
– Não. - Sherdra disse, seu tom como aquele que se usaria com uma criança. - Muita
coisa aconteceu. Muita dor de ambos os lados.
- A promessa de uma amizade não pode construir uma ponte sobre um rio de sangue.
- Coryn disse. - Mas começamos a construir essa ponte. Talvez, com o tempo, até mesmo
este pequeno começo... - Ele bocejou, depois cambaleou. Sherdra estendeu a mão firme.
Mas os joelhos de Sherdra também estavam dobrando. Eles se agarraram para se apoiar,
meio rastejando juntos de volta para os cobertores jogados de Coryn. Logo eles
adormeceram, quase nos braços um do outro.

~o⭐o~
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Uma manhã razoavelmente clara e fresca amanheceu. Sherdra saiu da caverna. Ele
não viu ou farejou nenhum sinal dos caçadores. Quando voltou, encontrou Coryn
meditando sobre o fogo reacesso. As barreiras do humano foram levantadas novamente e
Sherdra achou que ele parecia preocupado.
- Provavelmente é seguro deixar este lugar agora. – Ele disse. - Será bom caminhar de
novo pelo vasto mundo, saborear sua doçura sem medo.
- Sim. Lembre-me de escolher um abrigo com mais cuidado da próxima vez. - Coryn
respondeu. - Não que eu não ache a ideia interessante. Eu simplesmente odeio sentir frio.
Ou ficar preso nele.
- Este lugar tem sido bom o suficiente para mim.
Coryn encolheu os ombros e começou a colocar as coisas em sua mochila. Então as
tirou de novo, como se insatisfeito com o arranjo. Sherdra pediu para ver as mercadorias do
mascate que não tivera a chance de inspecionar.
- Pegue o que quiser. – Coryn disse. – Não é necessário nenhum pagamento. Eu
deveria viajar com pouca bagagem. É improvável que encontre acomodações melhores do
que esta por algum tempo.
- Você acabou de dizer que não gosta de ficar em cavernas.
- Não posso me tornar um morador de cavernas como você, por hábito. - O homem riu
e depois ficou sério. - Estava pensando em ir para Vandemyr, onde há uma pousada barata,
confortável e uma mulher que pode me receber lá. Mas duvido que deva arriscar voltar
para lá em breve. Não verei o Guarda novamente, isso é certo. Mas aqueles outros dois
companheiros... Agora me lembro, Sherdra. Eu já os vi na pousada antes. Terenz, era esse o
nome dele? Ele vai se lembrar de mim. E se ele me visse novamente? O que ele faria? Oh,
não importa, Sherdra. Nos reencontrarmos é uma coincidência muito improvável.
- Isso pode ser algo com que se preocupar. Pode não ser sábio voltar onde alguém se
lembra do que um certo mascate fez. Você tem algum outro lugar para ir?
- Oh, sim, suponho que sim. Bem fora deste país, creio. Até um simples mascate pode
ser...aceito. Embora eu tenha o hábito de evitar me envolver na vida de outras pessoas. -
Uma memória, depois outra, trazida à frente da mente de Coryn por uma longa noite de
luta e compartilhamento, fluiu para a consciência de Sherdra como se fossem do próprio
homem-gato. Sherdra não conseguia entender todos eles, mas ele pensou ter reconhecido
alguns dos fantasmas de Coryn, as pessoas deixadas para trás na jornada de Coryn até ali:
sua mãe, Irmão Stefan, um ou dois outros.
- Não sei como irei conseguir... Mas um pouco mais adiante, há alguns que devo ver
novamente. – Coryn disse. - Negócios inacabados... - Ele parou no meio do provérbio, com
uma tosse envergonhada.
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- É uma boa trilha a seguir. Mas até que você a encontre, e isso pode demorar muito,
Sherdra tem uma sugestão.
Coryn estava balançando a cabeça antes que Sherdra terminasse de explicar. - Vejo
seu ponto. Pode ser benéfico para nós dois viajarmos juntos por um ou dois dias. Mas
Sherdra, eu realmente não tenho tempo.
- Obviamente, a simples passagem de luzes e escuridão é considerada uma espécie de
deusa por vocês. Você pode me explicar isso quando eu tiver mais paciência e você mais
tempo. Agora ouça, Coryn. Quando você retornar aos países humanos, talvez ninguém
acredite sobre o que você fez. Quem poderia imaginar, afinal, que um Gato e um pele nua
poderiam ser companheiros de viagem? Ou mais.
Ele sentiu o outro hesitante, procurando tocar aquela parte de si mesmo que ele
sempre escondeu, por necessidade e também por hábito. Ele tentou suportar isso e
comunicar o calor e a garantia de que achava que Coryn precisava.
Não precisamos ir tão longe quanto você pensa. Não até onde o grande rio de gelo
encontra a Mãe de todas as águas. Onde, espero, haja alguém esperando para me receber.
Eu não o colocaria em perigo. Vou pedir a Mãe do Clã, por proteção? Sabedoria daquele que
foi o primeiro a aconselhar a paz entre o nosso povo e o seu. Ela vai pedir que eu use
Soulseye de outras maneiras além de completar um jogo de vingança. Muitas crianças vão
chorar de fome nesta temporada.
Ele viu que seu companheiro ainda estava preocupado. Mas ele pensou ter
reconhecido o início de um sorriso, uma certa rendição. Este pássaro estava quase ao seu
alcance. Ele o pegaria com ternura, não fazendo mal.
Não. Isso não era algo para prender, domar, usar contra sua vontade. Este era um
homem. Um caçador deixando essa presa passar.
- Sherdra também não quer fazer isso. – Ele disse em voz alta.
- O que você não quer fazer? - Coryn perguntou, após uma pausa.
- Desistir de ti.
- Ora, Sherdra... - O humano olhou para os próprios pés, seu rosto sem pelos
adquirindo uma cor mais brilhante.
- Coryn! Independentemente do que você possa ter ouvido sobre nós, nem sempre
gostamos de viajar sozinhos no escuro.
Meu irmão: você vai caminhar um pouco comigo?
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Bônus do Tradutor

Arte de capa (1079 x 1430)


https://www.deviantart.com/a-rubi/art/O-outro-lado-do-espelho-antologia-Capa-
863801020
https://i.imgur.com/7kJIWhV.png
Artista: Richard Hescox

Darkover Antologias®

O preço da Guardiã (The Keeper’s Price)- 1980


A Espada do Caos (Sword of Chaos)- 1982
As Amazonas Livres de Darkover (Free Amazons of Darkover)- 1985
O outro lado do espelho (Other Side of the Mirror)- 1987
Sol Vermelho de Darkover (Red Sun of Darkover)- 1987
Quatro luas de Darkover (Four Moons of Darkover)- 1988
Domínios de Darkover (Domains of Darkover)- 1990
Renunciantes de Darkover (Renunciates of Darkover)- 1991
Leroni de Darkover (Leroni of Darkover)- 1991
Torres de Darkover (Towers of Darkover)- 1993
Darkover de Marion Zimmer Bradley (MZB's Darkover)- 1993
Neves de Darkover (Snows of Darkover)- 1994
Música de Darkover (Music of Darkover)- 2013
Estrelas de Darkover (Stars of Darkover)- 2014
Dons de Darkover (Gifts of Darkover)- 2015
Reinos de Darkover (Realms of Darkover)- 2016
Máscaras de Darkover (Masques of Darkover)- 2017
Encruzilhadas de Darkover (Crossroads of Darkover)- 2018
Fortalezas de Darkover (Citadels of Darkover)- 2019
Uma onda de calor nas Hellers (A Hate Wave in the Hellers and others)- 2019
Esquiar as Hellers (Ski the Hellers)- 2020

www.mzbworks.com

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