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Os filhos dos reis

Tradução: Rubi Elhalyn


Tradução feita de fã para fã sem fins
lucrativos com o intuito de suprir a
carência da obra na língua portuguesa
(BR)

Conheça mais sobre a saga em


Darkover BR
The Children of Kings
A Darkover® Novel

Marion Zimmer Bradley


&
Deborah J. Ross
The Marion Zimmer Bradley Literary Works Trust
PO Box 193473
San Francisco, CA 94119
www.mzbworks.com
Copyright © 2013 Marion Zimmer Bradley Literary Works Trust.
DARKOVER® é uma marca registrada de Marion Zimmer Bradley Literary Works Trust.

Todos os direitos reservados All Rights Reserved.


Arte de capa por Matthew Stawicki.
DAW Book Collectors No. 1615.
Publicado por DAW Books, Inc.
375 Hudson Street, New York, NY 10014.

Todos os personagens e eventos deste livro são fictícios.


Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é coincidência.

DAW TRADEMARK REGISTERED


U.S. PAT. AND TM. OFF. AND FOREIGN COUNTRIES
—MARCA REGISTRADA
HECHO EN U.S.A.
Notas

Os leitores me perguntaram como era continuar a série Darkover e como foi trabalhar
com Marion e respondi então que foi como escrever uma ficção histórica. Tenho que fazer
minha pesquisa, o que significa estudar os romances publicados anteriormente e tantas
outras notas e cartas de outros materiais. Para este conto centralizado principalmente nas
Cidades Secas, usei não apenas A Corrente Partida, mas também um romance muito
anterior, de 1961, um tipo de "proto-Darkover", A Porta Através do Espaço. A Porta Através
do Espaço continha muitos elementos familiares aos leitores de Darkover, do jaco,
passando pelo vento fantasma até os nomes de pessoas e lugares (Shainsa, Rakhal, Cidades
Secas). Marion estava explorando um mundo em que os Terrans eram os visitantes e
aventureiros presos nas sombras de antigas cidades alienígenas. Depois ela editou e
desenvolveu esse material em A Corrente Partida (1976).
Esses livros refletiram o crescimento da visão de Marion, mas cada um deles também
fazia parte dos tempos em que foi escrito. Na década de 1960 os romances de ficção
científica eram frequentemente plotados, em ritmo acelerado e aquém pelos padrões de
hoje. Na maioria, embora de modo algum em todos, os protagonistas eram do sexo
masculino e os personagens femininos eram frequentemente vistos a partir dessa
perspectiva, no que hoje chamamos de "olhar masculino". Em meados da década seguinte,
os editores estavam interessados em trabalhos mais longos e complexos. Não só isso, o
movimento das mulheres e as lutas das questões de gênero influenciaram, bem como a
ficção convencional, abrindo caminho para fortes personagens femininos que se definiram
em seus próprios termos. Se Marion tivesse escrito A Corrente Partida uma década e meia
antes, duvido que tivesse encontrado a audiência receptiva e entusiasta que fez. Seu timing
(como aconteceu com As Brumas de Avalon e A Herança de Hastur) refletia brilhantemente
as sensibilidades emergentes daqueles tempos.
Agora vivemos em um mundo diferente. Isso não quer dizer que as lutas anteriores
foram resolvidas, mas sim que a consciência social de 1976 mudou com relação a de hoje.
Ao escrever Os Filhos dos Reis, considerei como as ideias de Marion sobre as Cidades Secas
(e qualquer cultura patriarcal de deserto) poderia ter mudado nas últimas três décadas. A
Corrente Partida, com o seu exame dos papeis das mulheres, suas escolhas (ou falta dessas
escolhas) e como eram enfrentadas, focou apenas em alguns aspectos da cultura das
Cidades Secas. E se fôssemos mais fundo, vendo isso de forma mais complexa, com os
aspectos admiráveis, bem como aqueles que achamos abomináveis? Com os costumes que
não podemos realmente compreender, mas devemos respeitar, assim como aqueles que
ressoam com o nosso? Além de compaixão dos homens e o poder das mulheres?
À medida que as Cidades Secas se desenvolveram em minha mente, liguei também ao
tema que caracterizava os primeiros romances de Darkover: o conflito entre uma raça
tecnológica e os zelosamente ricos e românticos, com sua tradição do Pacto e do talento de
laran do Comyn. E, adicionando à mistura, as antigas Cidades Secas baseadas no kihar.
Espero que você goste de ler esta aventura tanto quanto gostei de escrever.

-Deborah J. Ross
DEDICAtória
Em memória de

Cleopatricia Sandra (1962 – 2012)

Vá em paz, querida amiga.


ÍNDICE
Capítulo 01 ................................................................................................................... 10
Capítulo 02 ................................................................................................................... 23
Capítulo 03 ................................................................................................................... 31
Capítulo 04 ................................................................................................................... 37
Capítulo 05 ................................................................................................................... 44
Capítulo 06 ................................................................................................................... 49
Capítulo 07 ................................................................................................................... 60
Capítulo 08 ................................................................................................................... 69
Capítulo 09 ................................................................................................................... 77
Capítulo 10 ................................................................................................................... 87
Capítulo 11 ................................................................................................................... 95
Capítulo 12 ................................................................................................................. 104
Capítulo 13 ................................................................................................................. 114
Capítulo 14 ................................................................................................................. 124
Capítulo 15 ................................................................................................................. 135
Capítulo 16 ................................................................................................................. 145
Capítulo 17 ................................................................................................................. 152
Capítulo 18 ................................................................................................................. 163
Capítulo 19 ................................................................................................................. 172
Capítulo 20 ................................................................................................................. 180
Capítulo 21 ................................................................................................................. 185
Capítulo 22 ................................................................................................................. 198
Capítulo 23 ................................................................................................................. 204
Capítulo 24 ................................................................................................................. 215
Capítulo 25 ................................................................................................................. 225
Capítulo 26 ................................................................................................................. 236
Capítulo 27 ................................................................................................................. 246
Capítulo 28 ................................................................................................................. 255
Capítulo 29 ................................................................................................................. 268
Capítulo 30 ................................................................................................................. 275
Capítulo 31 ................................................................................................................. 285
Capítulo 32 ................................................................................................................. 291
Capítulo 33 ................................................................................................................. 300
Capítulo 34 ................................................................................................................. 309
Capítulo 35 ................................................................................................................. 317
Capítulo 36 ................................................................................................................. 324
Bônus do Tradutor ..................................................................................................... 332
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Capítulo 01

O disco do sol sangrento de Darkover mal havia crescido além das paredes e torres de
Thendara e o frio gelado ainda assombrava nas sombras. Um vento forte varreu as nuvens
no céu claro. Os ramos das árvores nos jardins da Cidade Velha tremeram, lavanda e flores
brancas desfocadas em meio às novas folhas. O ar já não cheirava a vela e gelo em camadas
de lã encharcada, mas de novas coisas em crescimento.
As estradas estavam abertas por uma tenday1, o mesmo nas Colinas Kilghard. Os
comerciantes chegaram à cidade, trazendo bens e fofocas. Os mercados ao ar livre
ofereciam cebolas de primavera e uma matriz de frutas precoces, um carregamento de
raízes para fervura e mingau muito bem-vindo.
O sol nascente iluminou o antigo Castelo Comyn, onde reinava sobre uma cidade como
parte dela própria, com suas paredes e pináculos, cúpulas e pátios, barracos e formação de
jardas da Guarda da Cidade, salões de baile e quartos para as famílias governantes quando
estavam na cidade. Uma multidão se reunira fora dos portões principais. Seu humor era
festivo, os tons escuros dos trajes de inverno se iluminaram por guirlandas de lírios de gelo
desajeitadas.
Os portões se abriram e um contingente da Guarda da Cidade saiu, abrindo um
caminho. Então mais homens armados vieram, montados em cavalos fortes. As pessoas
acenaram e alguém tocou alegremente em uma flauta de madeira. O líder dos Guardas
sorriu e assentiu, embora seu olhar nunca parasse de se mover pela multidão e uma mão
permanecesse no punho de sua espada.
Logo dentro dos portões, um segundo grupo muito menor se reuniu. Eram servos
domésticos e Lordes e Ladies do Comyn vestidos ricamente. No centro do pátio, havia uma
companhia de cavaleiros montados. Os cavalos se moveram e bufaram, sua respiração se
transformando em plumas de vapor branco. Servos e carregadores de bagagem
terminavam de fixar a cobertura em um vagão carregado.
Abrigado em uma porta arqueada e profunda do castelo, Gareth Marius-Danvan
Elhalyn y Hastur observou aos preparativos para a partida. A luz da manhã inclinada tocou o
cabelo dele que tinha escurecido da cor de linho de sua infância para o ouro avermelhado,
e as perfeitas linhas de seu rosto, refletindo a beleza masculina típica de sua linhagem. Sua
capa, embora fosse macio de lambswool2, não havia um brasão ou marca de identificação,
nem mesmo o abeto prata sobre o fundo azul do Hastur de seu pai nem a árvore coroada
da realeza de sua mãe Elhalyn. Nenhum de seus pais estava presente, tendo passado o

1
N. da T. – ‘Tenday’: semana darkovana formada por 10 dias de 28 horas cada.
2
N. da T.- ‘Lambswool’: tipo de lã fina retirada de uma ovelha jovem com textura mais macia.
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inverno no Castelo Elhalyn com seu irmão mais novo e irmã. Ele não estava sozinho, pois
raramente ficava desacompanhado, fosse pelos Guardas do Castelo, servos pessoais ou
pelos cortesãos que viviam em Thendara ou viajavam até ali assim que as estradas estavam
abertas. Normalmente ele era tão bem guardado que nunca tinha uma chance para usar a
espada pendurada no cinto, exceto na prática diária. Hoje, no entanto, ninguém tentara
atraí-lo para uma conversa. Talvez a hora anterior fosse a causa para que sua presença
passasse despercebida.
O principal motorista era um homem de meia-idade, o ouro de seu cabelo levemente
esbranquiçado. Como a mulher ao lado dele, ele usava roupas de viagem quentes e
brilhantemente coloridas. Seu manto revestido de pele estava sob a garupa de seu cavalo,
um doas fascinantes exemplares negros de Armida. Ele sorriu e ergueu uma mão em
saudação para a multidão além dos portões. Eles gritaram e bateram palmas.
- Dom Mikhail! O Regente!
A mulher ruborizou um pouco. Seu cavalo, um cinza da mesma criação excelente do
cavalo de seu marido, bateu os cascos no chão e puxou um pouco a cabeça. Ela acalmou o
cavalo com um toque e, quando o fez, o capuz de sua capa escorregou de sua cabeça,
revelando uma coroa de cabelo macio e vermelho.
Um suspiro varreu a multidão do lado de fora. Os aplausos diminuíram em sussurros
de admiração.
- Lady Marguerida...
Mikhail Lanart-Hastur deu a sua esposa um sorriso torto. - Eles se animam comigo,
mas é a você que oferecem maior honra. Eu não sei se fico aliviado ou orgulhoso.
Um truque da acústica no pátio levou suas vozes para onde Gareth estava. Ele sentiu
como se estivesse espiando uma conversa particular de família e desejou não estar ali. Ele
pressionou as costas contra a porta de pedra.
- Eu gostaria que eles não o fizessem. - Marguerida Alton respondeu em voz baixa. -
Prefiro ser respeitada pelo que conquistei do que pela cor do meu cabelo. Não podemos
tirar férias simples sem todo esse barulho.
- Isso é gratidão, preciosa.
- Mik, a febre das trilhas foi há dois anos!
- Os darkovanos têm memória longa. Ah, Nico! - Mikhail sorriu amplamente quando
seu filho mais velho e herdeiro se aproximou.
Aos vinte e dois anos, Domenic Alton-Hastur era apenas alguns anos mais velho que
Gareth. Pelos padrões do Comyn, ele estava vestido com simplicidade, uma jaqueta
atravessada pelo tartan de Alton e calças sob as botas de espadachim. Ele colocou uma
mão no ombro brilhante do cavalo negro, olhou para o pai e disse com uma expressão
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perfeitamente séria: - Não é tarde demais para mudar de ideia e voltar para longe dessa
insanidade.
- Nico! - Marguerida exclamou, depois riu. – Sem querer atrapalhar a nós mesmos,
mas você se ofereceu para cuidar deste lugar... Essa é a verdadeira insanidade!
- O castelo está em boas mãos. - Um canto da boca de Mikhail se contorceu. - Não
tenho preocupações quanto a isso. Estamos em dívida com você por tornar possível que eu
e sua mãe possamos fugir ao mesmo tempo. Se passou muito tempo desde todos nós, a
maioria de nós, de qualquer maneira, ficamos juntos em Armida.
Uma sensação peculiar, parte cobiça, parte alguma outra coisa, apertou o peito de
Gareth. Ele nunca duvidara do amor que seus pais tivessem por ele, mas nem eles e nem
mais ninguém em posição de poder alguma vez confiaram nele tanto quanto Mikhail
confiava em Domenic. Não ajudou lembrar que Domenic era mais velho, que ele havia sido
treinado desde a infância para assumir a Regência, além da disciplina de sua temporada em
uma Torre.
Ele tem um trabalho real, um trabalho importante. Ninguém pensa nele como um
acessório cerimonial inútil.
No entanto, Gareth não podia convocar nem mesmo sentir um fragmento de
ressentimento contra seu primo. Nenhum deles poderia mudar seu nascimento.
Ele será Regente e eu, o Rei desrespeitado. Como o avô Regis costumava dizer, se
queríamos outro destino, deveríamos ter escolhido pais diferentes.
Enquanto isso, Mikhail cutucou seu cavalo para a frente e abordou a multidão fora dos
portões. Lançando sua voz para alcançar as bordas da multidão, ele agradeceu e desejou-
lhes uma primavera alegre e uma colheita antecipada abundante.
- Deixo vocês aos cuidados de meu filho e herdeiro, Domenic Lanart-Hastur, bem como
seus conselheiros igualmente capazes. Eu lhes aviso, no entanto, que ele é um
superintendente mais severo do que eu. - Nisso, todos riram. – Lhes ofereço minha
despedida até a temporada do Festival de Verão!
Mikhail sinalizou ao capitão da Guarda para prosseguir. A multidão recuou quando
eles se aproximaram, indo para a estrada, a caminho da propriedade da família Alton em
Armida. Marguerida olhou para o castelo.
- Ele vai ficar bem. – Mikhail disse. - Danilo enviará uma mensagem ao menor indício
de problemas.
Levantando o queixo, ela cutucou o cavalo cinza para frente até que ficou ao lado do
marido. A companhia atravessou a rua pavimentada sob aplausos renovados e os portões
se fecharam atrás deles. Os espectadores começaram a se dispersar, servos correndo de
volta às suas funções. Os nobres cansados, trocando comentários e garantindo que eles
fossem vistos como pessoas de importância.
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O estômago de Gareth roncou lembrando-o de que ele não tinha tomado mais do que
uma xícara de água desde que acordou. Talvez Domenic, agora conversando com um dos
Guardas do Castelo, pudesse ser persuadido a tomar o café da manhã com ele.
Um dos Lordes menores roçou a capa de Gareth e recuou, claramente assustado. - Seu
perdão, vai dom! Que desajeitado de minha parte. Eu não o notei você de pé aí!
Gareth forçou suas feições em um sorriso suave e agradável. Não havia sentido dizer
ao homem para não dizer que era ele ali. Mesmo que o castelo estivesse vazio, a fofoca se
espalharia como um incêndio.
Gareth Elhalyn foi ver o Regente e Domna Marguerida, você pode acreditar?
Oh, sim, eu esbarrei nele. Ele estava parecendo muito pálido realmente.
Bem, o que você esperava? Ele é um Elhalyn! Ele provavelmente teme sua própria
sombra. Eles são todos fracos de espírito, isso quando não são insanos, toda a ninhada
deles. Lembra-se do Príncipe Derik, uma geração atrás? Tão demente quanto a maioria
deles. E aquilo que Gareth fez depois que Regis morreu! Você não acha que ele está
perdendo a pouca sanidade que tinha...?
Não, sua melhor esperança era evitar uma conversa longa que alimentaria uma fofoca.
Ele inclinou a cabeça e murmurou: 0 Com licença.
Gareth chegou a Domenic, enquanto o Guarda se curvava e pedia licença.
- Bom dia, primo! - Domenic disse com um aceno amigável.
O avô de Gareth, o lendário Regis Hastur, tinha sido irmão da avó de Domenic,
Javanne. Em sua juventude, Regis adotou formalmente o filho dela, Mikhail, como seu
herdeiro, o treinara para a liderança e manteve sua promessa mesmo quando seu próprio
filho, o pai de Gareth, nasceu. Dani Hastur escolheu uma vida privada ao invés da exibição
pública, então a Regência passaria de Mikhail para Domenic.
- Um bom dia para todos nós, espero. - Então, sentindo que deveria explicar sua
presença, Gareth acrescentou: - Vim desejar a seus pais uma jornada segura e rápida. - As
palavras pareciam pretensiosas, como se as dificuldades da estrada estivessem sujeitas à
seus desejos. Eles não precisam de meus desejos. Metade de Thendara veio reverenciá-los.
Por que eles dariam atenção a mim, que nem sequer falou com eles?
Antes que Gareth continuasse seus pensamentos, eles foram focado no homem mais
velho que se mantinha na vigilância inconsciente de um paxman de longa data. Danilo
Syrtis-Ardais era homônimo do pai de Gareth e tinha sido o bredu de seu avô, um termo
que significava "irmão jurado", mas neste caso também carregava conotações mais íntimas,
e até hoje permanecia amigo próximo de sua avó. Danilo agia como mentor e conselheiro
de Domenic quando ele não estava viajando pelos Domínios em busca de telepatas
latentes.
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- Tio Danilo! - Gareth aceitou, um pouco timidamente, o abraço paternal de Danilo.


Eles não tinham se visto mais que meia dúzia de vezes desde a última execução da ópera de
Marguerida. Danilo vivia em seus alojamentos no Castelo quando não estava viajando,
enquanto Gareth ocupava a casa que pertencera a Regis.
Danilo bateu no ombro Gareth. - Você está indo regularmente em sua prática de
espada.
Gareth nunca sabia como responder a esses comentários. Será que Danilo realmente
pensava nele como um preguiçoso? Mesmo o príncipe mais indolente devia ser preparado
para defender a tradição do treinamento militar. Além disso, ele lutara e treinara seu
cérebro para tentar dominar os idiomas dos darkovanos e da Federação. Danilo encorajou-
o, assim como sua avó Linnea.
- Bom rapaz. - Danilo se virou para Domenic e Gareth pegou um fragmento de uma
pergunta telepática.
Existe mais, Nico...você sentiu...?
Os olhos de Domenic se estreitaram, o movimento tão sutil que, se Gareth não tivesse
sentido a investigação de Danilo, ele não teria notado.
...tremores de terra...
A surpresa de Gareth quase o traiu. Até recentemente cada Domínio possuía um dom
psíquico característico. Agora os dons não eram mais específicos e novos surgiam
inesperadamente. O de Domenic era um desses, a capacidade de sentir condições
geológicas, embora nem mesmo Domenic soubesse se o que sentia vinha da crosta ou do
fundo do planeta. Talvez o dom fosse geneticamente ligado ao seu cabelo escuro, incomum
ao descendente de um loiro e uma ruiva.
Tremores de terra, Gareth repetiu para si mesmo. Ele havia estudado uma pouco de
planetologia, mas não conseguia se lembrar de nenhuma referência à atividade sísmica nos
Domínios.
Como se em resposta ao pensamento de Gareth, Domenic lançou sua voz baixa e
inclinada para Danilo. Gareth captou algumas frases: - Superficial...poderia ser impacto...Se
eu não soubesse de...
- ...não a Federação... Não há sinais... Projeto de rádio de Jeram...
Gareth conhecia o Terranan renegado, Jeremias Reed, que permanecera em Darkover
quando a Federação partiu e usava o nome Jeram. Seus caminhos não haviam cruzado,
exceto em eventos públicos como o baile do Festival do Meio do Verão. Jeram criara um
posto de escuta de rádio, usando o equipamento abandonado no antigo QG da Federação.
- Avise...acontecer novamente. - Danilo se virou e acenou para Gareth da mesma
maneira que Gareth dispensaria uma criança. Os dois homens se dirigiram para o portão da
cidade, cabeças inclinadas juntas, vozes baixas.
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Gareth forçou suas feições para não refletir nada do que sentia. Ele devia ter esperado
tal tratamento. Se ele esperasse ser levado a sério, ser tratado com respeito, então ele
mesmo devia se comportar de maneira responsável.
- Sua Alteza? Há qualquer coisa errada?
A atenção de Gareth estalou para o seu entorno imediatamente. Dois cortesãos
olhavam para ele a uma distância respeitosa. Um deles, um Vistarin de Temora, era recém-
chegado em Thendara e ainda não havia construído uma reputação. O homem tinha um
pouco de dinheiro devido o comércio de sal de sua família e nenhum um traço de laran. Seu
companheiro, por outro lado, tinha sido um pequeno acessório na Sociedade Comyn desde
que Gareth podia se lembrar. Forte e vestido desajeitadamente em cetim amarelo com
pele, Octavien MacEwain estava sempre tentando se insinuar na confiança de Gareth.
- Eu estava apenas pensando nas diversões noturnas que serão enormemente
reduzidas sem as composições musicais de Domna Marguerida. - Gareth disse com um tom
deliberadamente afetado. - Lady Bruna era a joia da temporada.
- Sua ausência nos deixa mais pobres. – O Lorde Vistarin disse.
- E ainda assim... - Octavien cortou suavemente: - Mesmo com os desapontamentos,
há mentiras e oportunidades.
As feições de Octavien não traíram nada de seu propósito, mas Gareth cresceu no
mundo traiçoeiro e retorcido da política do Comyn. O que o Octavien quis dizer é que a
ausência do Regente seria um excelente momento para Gareth afirmar sua reivindicação ao
trono. Em seguida, ele sugeriria que, embora ninguém tivesse alguma coisa a dizer contra o
jovem Domenic, o Conselho certamente apoiaria um Rei legítimo sobre um filho do mero
Regente. A Regência, iniciada duas gerações atrás por Danvan Hastur, nunca foi pretendida
como uma transferência permanente de poder.
Ele acha que sou são suficiente para ser coroado e fraco o suficiente para ser
controlado.
- Oh. - Gareth disse. - Tenho certeza que todos podemos encontrar algo com o que nos
divertirmos. - Com um elevar adequadamente arrogante de seu queixo, ele se virou e se
dirigiu para a saída mais próxima, o portão que levava à cidade.
Nem dez passos além das muralhas do castelo, Gareth percebeu que estava tremendo.
A parte de trás de sua garganta tinha gosto de ácido estomacal e suas têmporas latejavam.
O pensamento de comer o nauseou, mas ele devia comer alguma coisa. A avó Linnea
saberia no momento em que chegasse para sua lição se ele havia negligenciado o cuidado
mais básico com ele mesmo.
Gareth fez uma pausa em uma barraca de comida onde uma mulher de bochechas
vermelhas estava sobre um pequeno pote de cobre em um braseiro portátil. O pote
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emanava os aromas tentadores de óleo adocicada e massa frita. A sensação ruim na parte
de trás da garganta de Gareth diminuiu. De boca cheia, seu espírito se ergueria.
A mulher usou um longo espeto de madeira para pegar bolos trançados e fatias que
ela rolou em mel cristalizado antes de oferecê-los, fumegante e perfumado, o ar o
esfriando.
- Bolos de maçã, bom senhor?
Gareth comprou dois, embrulhados em papel. Sob a casca nítida, os pães estavam
úmidos com pedaços de frutas e levemente temperadas. O sabor lembrou-o das guloseimas
do Festival do Meio do Inverno. As maçãs provavelmente foram armazenadas desde a
última colheita e o padeiro engenhoso usou cada pedaço útil.
Da ralé vem o tesouro.
- Vai dom. - Veio a voz de um homem, pesado com paciência cultivada ao longo dos
anos. - Por favor, você não deve ficar aqui sozinho.
“Aqui” significava na área aberta, misturando-se com a população. “Sozinho”
significava sem seu guarda-costas.
Na verdade era mais parecido com uma babá.
Irritação queimou, alimentada pelo ressentimento ardente. Gareth imediatamente se
arrependeu. Narsin servia a família Elhalyn desde antes de Domna Miralys, a mãe de
Gareth, nascer. O velho teria dado sua vida por qualquer um deles e não merecia ser o alvo
do temperamento ruim de Gareth.
- Sinto muito se minha impulsividade lhe causou problemas. – Gareth disse. - Como
pode ver, não estou em perigo. Verdadeiramente, não era necessário você sair de casa a tal
hora simplesmente porque eu queria esticar minhas pernas nesta bela manhã.
As sobrancelhas tensas se uniram, o velho firmou os lábios, e Gareth entendeu o
significado.
Aparentemente não é seguro nem para o herdeiro da coroa dos Sete Domínios vagar
sem uma escolta. Não me diga que você pode se defender contra qualquer um. Até mesmo
um espeto pode ser tomado de surpresa.
Narsin dissera isso cem vezes. Mesmo quando menino, Gareth entendia que um
homem comum tinha mais liberdade do que um príncipe. E um príncipe que uma vez tinha
feito de tolo em frente ao Conselho Comyn devia aceitar as conseqüências de suas ações:
desconfiança e vigilância constante.
- Muito bem, então, - disse Gareth - mas não paire em meu cotovelo, olhando para
todos os transeuntes. Não há Destruidores de Mundos aqui fora esta manhã.
Sem esperar por uma resposta, Gareth voltou para o Castelo Comyn, mas lento o
suficiente para que o velho pudesse facilmente acompanhar o ritmo. Era cedo para sua
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lição com a avó Linnea, mas ele queria estar fora das ruas. No momento, ele sentia que
tinha atingido o limite do que poderia tolerar de ser vigilância e sussurros.
Não havia mais nenhum Destruidor de Mundos, ou sabotadores, agentes disfarçados
ou forças da Federação de qualquer tipo restante em Darkover. Exceto, claro, os poucos,
como Jeram, que ficaram por trás, leais a Darkover quando os Terrans retiraram suas
forças.
Gareth levantou o rosto para o céu, tentando imaginar como deveria ser lá fora, nos
vastos alcances do espaço. Darkover era um planeta insignificante, considerado
irremediavelmente primitivo pela Federação. Apenas sua localização estratégica no braço
galáctico, e mais tarde seu potencial para exploração, lhe concedera qualquer status.
Mesmo isso não poderia justificar a presença Terranan uma vez que a Federação entrou em
erupção na guerra interestelar.
O que está acontecendo lá em cima? Quem está ganhando, quem está perdendo?
Darkover tinha poucos aliados no Senado, mesmo antes da guerra. Eles voltarão? Quando
eles fizerem, estaremos prontos para eles. Gareth havia jurado mais vezes do que ele
poderia contar. Agora as palavras soavam vazias. Se a Federação retornasse, com suas
armas tecnológicas avançadas, determinada a aproveitar o que quisesse, quem poderia
impedi-la? E como?
Desde a infância, Gareth tinha sido ensido sobre importância do Pacto, o antigo código
de honra que proibia o uso de qualquer arma que não deixasse o agressor em igual risco.
De muitas maneiras, o Pacto era a alma de Darkover, dos Domínios, de qualquer maneira.
As Cidades Secas nunca juraram seguí-lo, mas seus habitantes não possuíam laran.
Laran. Quando o complexo de paredes e torres do Castelo Comyn surgiu, Gareth
tentou imaginar um mundo sem laran. Darkover era único na força e prevalência de
poderes psíquicos, poderes que, quando amplificados pelas matrizes psicoativas chamadas
pedras da estrela, eram capazes de sentir as emoções de outros plenamente, curar mente e
corpo, levantar baterias que podiam erguer um castelo, um poder criador...ou trazer a
destruição.
Os Terranan haviam pensado que o Pacto era uma superstição de uma raça primitiva.
Eles não haviam percebido que não era voltado a tecnologia deles, mas sim ao armamento
mais devastador produzido pela mente.
Uma vez, Gareth foi ensinado, uma guerra de laran havia sido travada em toda face de
Darkover. Muitas das técnicas foram perdidas e a maioria das pessoas achava melhor
assim.
Mas se a Federação voltar, nosso laran pode ser a melhor defesa que temos.
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Era arrogante pensar que ele poderia de alguma forma fazer a diferença? Por tudo
isso, supôs, ele era um romântico sem esperança, um príncipe que queria salvar seu reino.
Ou se provar digno disso.
Se Gareth estivesse sozinho teria usado uma das entradas laterais perto da Torre
Comyn. Isso só afligiria ainda mais Narsin que imaginaria uma emboscada no lugar um
pouco mais sombrio do bosque de rosas. Era melhor usar o portão principal, onde os
guardas armados ficavam atentos. Gareth fez uma pausa por alguns momentos para falar
com eles.
Gareth e Narsin cruzaram o pátio externo, um quadrado com pisos, bancos e árvores,
suas folhas ainda brilhantes. Camas de flores amarelas davam um perfume sutil e picante.
Embora o céu estivesse todo iluminado àquela hora da manhã, ainda estava frio nas
sombras. Narsin apertou furtivamente o manto em torno de seus ombros ósseos.
- Você não precisa permanecer comigo, velho amigo. – Gareth disse. - Vá para casa e
pegue uma refeição quente. Estou seguro dentro dessas paredes.
- Mas, Dom Gareth...
- Nenhum dano virá para mim, prometo. Olha, veja como os guardas me observam.
Eles estão, sem dúvida, imaginando qual coisa escandalosa o Príncipe Elhalyn louco vai
fazer a seguir. Tenho apenas que chamar e eles estarão aqui para me proteger. Além disso,
irei agora para os cuidados de minha avó. Do que você poderia me defender, que uma
Guardiã não poderia?
Os ombros de Narsin cederam minuciosamente. Eles tinham tido conversas e
discussões semelhantes cem vezes antes e ele sabia o quão longe ele poderia forçar Gareth.
Ele assentiu, inclinou-se e saiu da maneira furtiva que tinha vindo.
Gareth respirou um pouco mais livremente enquanto corria ao longo do labirinto de
passagens que conduziam à Torre. Por alguns momentos, ele não precisou barricar seus
pensamentos por trás de um escudo de granito. Sua vida era como um quebra-cabeças. Sua
avó Linnea era parte disso. Como seu amigo e Regente-herdeiro, Domenic era outra. Seus
pais o viam como o menino que tanto amavam. Os cortesãos e os Lordes Comyn o viam
como qualquer outro dos Elhalyns instáveis ou um peão para suas próprias ambições.
Gareth supunha que era assim para todos, especialmente aqueles amaldiçoados com
origem nobre. Talvez seu pai tivesse tomado a decisão mais sábia em abdicar do Domínio
Hastur em favor de uma vida doméstica privada.
Gareth fez uma pausa fora da porta que dava para câmaras privadas de Linnea.
Esculpido com um padrão de entrelaçamento de ramos, a porta sempre o fez pensar em
uma floresta encantada e sua avó como uma rainha chieri que vivia lá. Ela tinha sido rainha
em tudo menos no nome, embora ninguém teria desafiado Regis se ele quisesse o trono.
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Antes dos nós dos dedos de Gareth tocare a madeira fina, Linnea o mandou entrar. Ele
levantou o trinco e entrou.
Linnea Storn-Lanart sentava-se diante da lareira onde um fogo emitia pequenas brasa.
Ela tinha trocado suas vestes vermelhas de Guardiã por um vestido de lã não tingida. A sala
com o seu manto de opala-azul era organizada para uma pessoa pequena, delicada. Cabia-
lhe perfeitamente.
Ela levantou uma mão de seu tricô para cumprimentá-lo. A luz entrava pelas janelas
gradeadas e tocavam o cabelo prateado. Por um momento, com o rosto suavizado pela
sombra, ele imaginou como ela devia ter sido, uma jovem mulher com um rosto em forma
de coração e olhos profundamente expressivos. Em seguida, ela enfiou as agulhas e o
novelo de lã em uma cesta a seus pés, e ele a viu como ela era agora. Anos tinham plissado
sua pele como o enfraquecimento de uma flor, revelando a força de seu caráter.
- Como é bom te ver, chiyu. Estava começando a pensar que não viria esta manhã.
Gareth se contorcia, embora não houvesse censura nas palavras de Linnea apenas um
lembrete de que ela tinha esperado por ele depois de uma noite de trabalho no círculo da
Torre. Ele decidiu não mencionar os cortesãos. Ela tinha o suficiente de tais maquinações
em sua própria vida.
- Perdoe-me, avó. - Gareth puxou uma cadeira. – Vamos começar?
Com uma expressão de prazer, Linnea tirou sua pedra da estrela de seu medalhão
revestidas com a seda isolante. Gareth notou um flash de azul-claro quando a gema tocou
sua pele. Rapidamente, ele desviou o olhar. Os padrões da mudança de energia, que se
manifestava como torcer a luz, podia ser perigoso para qualquer mente diferente daquele a
que a pedra estava alinhada.
Gareth carregava sua própria pedra matriz no velho estilo, em uma bolsa de seda
debaixo de sua camisa. Simples bordados geométricos decoravam a camada externa, um
presente de uma de suas tias Elhalyn. Com um puxão praticado, ele soltou o nó e a pedra
da estrela caiu na palma de sua mão.
A pedra, tão perto de seu corpo, estava quente. O brilho azul-claro acendeu nas
facetas, dançando através dos padrões que ele conhecia tão bem. Às vezes, quando ele
estava começando a aprender a usar a pedra, esses padrões haviam assombrado seus
sonhos.
Gareth fechou os olhos, concentrando sua mente sobre a pedra. Como ele tinha sido
ensinado, ele imaginou um único ponto de luz que se deslocavam através de um prisma,
ganhando poder e clareza. A pedra da estrela iria amplificar seu próprio talento inato, mas
não poderia conceder um dom que ele já não tivesse.
Qual era o seu dom? Os Ridenow foram agraciados com a empatia, particularmente
com os não-humanos, sua habilidade com cavalos e falcões era de conhecimento comum. E
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os Altons... o relacionamento forçado não era uma coisa a ser levado com displicência e a
raiva desenfreada de um Alton podia matar. Outros dons haviam se perdido através da
diluição e da passagem do tempo. Ninguém vivo sabia qual era o dom dos Aillards. Também
não se sabia qual dom os Elhalyns, a família de Gareth, haviam possuído.
Os Aillards, ele refletiu, tinham sido quase todos extintos, mas seu Domínio era
representado no Conselho Comyn por um ramo distante. Quanto aos Elhalyns...
Depois de tantas gerações quase psicóticas, não é de admirar que não tenhamos um
dom!
Imediatamente, Gareth lamentou seu pensamento mesquinho. É verdade que sua avó
materna foi vítima de uma profunda depressão, ilusões e quem sabe o que mais. Mas sua
mãe, Miralys Elhalyn, nunca havia sido nada além de doce, constante e amorosa. Era
indigno condená-la à mesma instabilidade do velho Stefan ou a loucura de Derik.
Ou eu, como eu poderia ter sido.
Como ele ainda poderia ser?
Concentre-se apenas neste ponto de luz e nada mais... Veio o comando silencioso de
Linnea, claro como prata. Com força, Gareth trouxe seus pensamentos de volta sob
controle.
A luz... Não pense em nada além da luz...
Com um suspiro, ele baixou suas barreiras e permitiu que sua mente se fundisse com a
dela. Ela assumiu o controle com a precisão de uma Guardiã.
Gareth flutuou em um mar enevoado de cor azul claro. Ele derramou suas energias
mentais através de sua pedra da estrela manteve estável nela a corrente de poder de laran.
Ele foi preenchido por uma paz como raramente havia sentido antes. Ali, naquele lugar fora
do tempo, não havia decepção, não havia necessidade de disfarces, sem esquemas ou
culpas, nenhuma consideração ao seu status, sem passado...
Sua próxima consciência foi o toque da mente de sua avó, uma advertência gentil
antes que ela quebrasse o contato. Ele se sentiu caindo, como sempre sentia ao finalizar
uma sessão telepática. Eles não haviam trabalhado, como num círculo comum, mas seu
objetivo não era unir pedras da estrela a matrizes maiores, minerar minerais raros abaixo
da crosta de Darklover, produzir substâncias químicas ou produtos de combate a incêndios,
ou qualquer uma das centenas de coisas que poderiam ser realizadas com laran.
Ele se perguntou, não pela primeira vez, se ele deveria procurar a admissão em uma
Torre. Linnea acreditava que ele tinha capacidade para isso. E Aldones sabia que os círculos
sempre precisavam de mais trabalhadores. Foi por isso que seu tio Danilo passara a maior
parte de cada ano procurando novos talentos.
Me enterrar em tal mundo, um lugar de paz e comunhão... Mas um onde nada
mudara, onde a disciplina e a ordem eram a regra.
O s f i l h o s d o s r e i s | 21

Não, ele também não podia fazer isso.


Linnea levantou e se esticou. - Você fez bem, apesar de pouco, uma vez que você se
estabeleceu. Raramente o vi tão distraído.
- Eu...
- Não, não me diga. Não importa. Devemos deixar todas as considerações pessoais
para trás quando trabalhamos em um círculo. Essa disciplina é tão necessária para você
como para qualquer laranzu treinado em uma Torre.
Gareth abaixou a cabeça, se desculpando.
- Vamos, você não fez nada de mal. Eu não disse isso? - Ela passou as pontas dos dedos
na parte de trás do pulso, o típico toque dos telepatas. - Todos temos dias em que não
estamos no nosso melhor, afinal somos humanos, não é? Você é muito duro consigo
mesmo. Às vezes acho que você antecipa as críticas de outros criticando a si mesmo
primeiro!
- Se eu não definir altos padrões para mim, quem vai? Metade da cidade mal pode
esperar que eu falhe. Os apostadore provavelmente fazem apostas de que farei isso de
forma espetacular e imprópria.
Linnea balançou a cabeça. - Você era muito jovem quando Javanne colocou suas garras
em você. Ela não mais de seu melhor interesse no coração do que esses bajuladores que
seguem seus passos. Eles que são culpados, não você, a menos que você constantemente
me lembre disso por causar problemas ou fique aí todo trêmulo.
- É um antigo hábito. – Ele admitiu, sorrindo.
- E um que eu ficaria feliz em ver você se livrar.
- Por você, avó, vou tentar. - Gareth se inclinou para a frente para beijá-la na
bochecha. Ele se curvou e recuou, preparando-se para pedir para se retirar.
Uma expressão pensativa assumiu o rosto dela. - De certa forma, você é muito
parecido com Regis. Ele também tinha um espírito aventureiro, embora seu status o tenha
obrigado a abandonar seus próprios sonhos. Ele também esperava mais de si mesmo do
que qualquer outra pessoa poderia esperar.
- O avô Regis? O lendário Regis que se ergueu contra os Destruidores de Mundos e, se
metade das histórias for verdadeira, tornou-se a encarnação viva de Hastur, Senhor da Luz,
quando destruiu a matriz de Sharra.
- Sim, ele é mais conhecido por essas coisas. - Linnea respondeu ao pensamento não
dito de Gareth, pois ainda estavam em contato telepático leve. - Antes disso, ele liderou a
Expedição Allison. Oh, sim, ele era um alpinista quando jovem. Mesmo quando ainda era
um cadete, ele foi sozinho para as Hellers na época do primeiro desastre de Sharra, quando
Caer Donn foi destruída.
- Você está me dizendo que...
O s f i l h o s d o s r e i s | 22

Linnea sorriu. - Estou dizendo que talvez você não precise esconder seus próprios
sonhos de aventuras, pelo menos não de mim. É natural que os jovens queiram seguir por
conta própria. Todos nós temos pensamentos privados e, se você tivesse estudado em uma
Torre, teria aprendido a manter o seu firme sem atrair muita atenção para ele.
- Eu não sei o que dizer. - Suas bochechas queimavam.
- Não é necessário dizer nada. Eu só queria que você soubesse que não é o primeiro
jovem Comyn a desejar algo mais de sua vida do que os assuntos do Conselho, um
casamento pela vantagem política e produzir herdeiros. Vá agora. É minha hora de
descansar. Se você quiser, falaremos mais disso mais tarde.
Não havia sentido em discutir. Além disso, Linnea estava certa. Com o instinto infalível
de uma Guardiã para a verdade desconfortável, ela colocou em palavras o foco de seu
descontentamento.
Tinha que haver mais na vida do que ser educado para um lambe-botas como Octavien
MacEwain ou tentando infinitamente viver na culpa do passado e escapar de todas as
outras.
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Capítulo 02

Gareth emergiu da Torre para o sol. Essa parte do castelo era uma confusão de estilos
arquitetônicos, um misto de adições e remodelações durante os séculos, talvez milênios, e
ele se agitou com a atividade. Os servos tagarelavam um com o outro enquanto se
apressavam ao longo das passarelas, as empregadas carregavam cestas da lavanderia e
carrinhos de mão carregados de barris de maçãs, frascos de cerâmica com óleo de cozinha
e cordas trançadas de alho. Uma ama correu junto com uma criança bem enrolada em seus
braços. Por sua expressão, ambos estavam acordados a noite toda. Logo o lugar estaria
cheio de crianças quando as famílias nobres do Comyn começassem a chegar para a
temporada do Meio do Verão.
Assim que Gareth passou sob a porta arqueada que levava a um pátio no jardim, viu
dois homens vindo em sua direção pelo extremo oposto. Eles usavam chapéus de veludo e
vestes enfeitadas com fitas de tartã. Fios de cobre brilhavam em torno de seus pescoços.
Gareth gemeu silenciosamente enquanto reconheceu Rufus Diasturien e Lorrill Vallonde.
Apenas alguns anos atrás, Dom Lorill tinha planejado descaradamente casar Domenic com
sua filha e, quando isso falhou, havia movido suas ambições para Gareth. Sem dúvida, um
ou outro desses dois Lordes influenciara Octavien MacEwain. Gareth tinha ouvido rumores
de que alguns no Conselho acreditavam que o tempo para uma nova era de ouro da
restauração havia chegado. Eles iriam redobrar seus esforços para o incomodar com
lisonjas e promessas de poder ou de uma linda esposa, porque acreditavam que ele seria
um fantoche em suas mãos.
Os dois Lordes se inclinaram um para o outro, falando em tons baixos e urgentes.
Rapidamente, antes que o reconhecessem, Gareth se virou para a porta mais próxima. Sua
pulsação aumentou enviando uma emoção pelo peito. Sua visão afiada. Por um momento,
ele sentiu como se fosse um menino novamente, fingindo que era o Agente Especial Race
Cargill do Serviço Secreto Terran, enviado em uma missão secreta para salvar o Antigo
Império. Ele escapara de seus tutores em mais de uma ocasião, rondando as passagens ao
redor do Castelo Elhalyn e fingindo que estava se esgueirando até Charin para informar
Lisse. Onde Charin podia ser e quem ou o que era Lisse, ele não fazia ideia, embora sua
imaginação tivesse fornecido muitas possibilidades tentadoras. Muitas vezes parecia que
ele estava vivendo apenas através dessas aventuras e que os eventos comuns, reais e
diários não tinham nada a ver com ele.
Os dois nobres passaram pelo pátio e a coluna sombreada. Gareth desceu um corredor
através em uma parte mais antiga, que antes tinham sido alojamentos familiares, mas
agora eram escritórios, e depois subiu um pequeno lance de escadas. Ali ele poderia se
manter escondido até que saísse perto de um dos portões externos.
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No topo da escada, ele olhou para o corredor estreito na hora certa para ver Domenic
e Danilo correndo na direção oposta. Ambos usavam capas do tipo comum e prático para
não serem notados em qualquer lugar da cidade. Gareth derrapou ao parar, mas com seus
rostos escondidos atrás dos capuzes, eles não o notaram. Claramente, eles desejavam
evitar o alarme.
Um dia tedioso tinha acabado de ficar muito mais interessante. Gareth levou um
momento para garantir que suas barreiras de laran estavam firmes, de modo que nenhuma
aura mental reveladora pudesse passar. Ele se moveu tão ágil e silenciosamente quanto
imaginou que um Homem-gato pudesse fazer. Seguindo à distância, ele observou a dupla
deslizando pelo mesmo portão lateral que ele pretendia usar. Então memorizou a direção
que eles seguiram, ergueu seu próprio capuz e apressou-se a seguí-los.
Domenic e Danilo mantiveram-se a um ritmo moderado pela Cidade Velha, passando
por barracas de comida de canto e vendedores de jaco sem parar. Se eles sentiram Gareth
os seguindo, não demonstraram.
Quando eles entraram no Mercado de Kazarin lotado, Gareth quase os perdeu. A esta
hora, o mercado era lotado com as pessoas ansiosas para desfrutar do bom tempo, mesmo
que não tivessem encontrado nada para comprar. Ele ouviu a confusão de vendedores
gritando suas mercadorias, compradores e curiosos, ouriços de rua e Guardas da Cidade.
Por um tempo, ele perdeu os perdeu de vista quando uma carroça carregada com móveis
cruzou na sua frente e, quando passou, ele não podia mais vê-los.
Um momento depois, ele os viu no extremo da praça. Danilo parou e olhou para trás,
seus olhos se estreitaram. Por um instante, Gareth se sentiu totalmente exposto. O que ele
deveria fazer? Race Cargill não teria sido tão facilmente detectado.
Os músculos de Gareth destravaram. Ele se virou, abaixando a cabeça para esconder o
rosto nas sombras do seu capuz. Atrás dele estava uma mesa de objetos de couro. Ele se
atrapalhou para pegar a peça de mercadoria mais próxima.
Eu não estou aqui, ele pensou, praticamente não vendo o cinto finamente
ornamentados. Você não me notou.
Tão fortemente ele desejou a invisibilidade que o dono da barraca, que se dirigia a
Gareth, fez uma pausa, passou por ele e foi cumprimentar outro cliente. Gareth focou em
sua respiração, colocou o cinto na mesa e se virou tão casual quanto possível. Ele virou a
tempo de ver Domenic e Danilo deixar a praça.
Logo Gareth se viu em uma das áreas desgastadas da cidade, o tipo de lugar que
Narsin o teria proibido de ir se soubesse. As ruas eram tortas, suas pedras da pavimentação
rachadas e descoloridas. Um cheiro azedo permanecia no ar. Muitas das estruturas haviam
sido originalmente bem construídas, mas caíram no desgaste. Ele notou a argamassa em pó
entre pedras resistentes, as vigas cheias de lascas, os beirais flácidos e a tinta descascada.
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Homens com rostos avermelhados pelo clima se amontoavam em torno de fogos feitos
com lixo, aquecendo as mãos. Eles seguiram o caminho de Gareth com os olhos, talvez
calculando o valor de seu manto e botas. Ele ganhou um pouco de segurança, eastufando o
peito e balançando sua capa para trás para revelar a espada no cinto. Racionalmente, a
última coisa que ele queria era uma luta, mas sentiu uma pontada de desapontamento pela
rapidez com a qual os homens curvavam os ombros e se desviaram.
Gareth voltou sua atenção para a perseguição. O que eles estariam fazendo nesta
parte da cidade? Isso não podia ser um passeio matutino, uma maneira excêntrica de se
exercitar. É verdade que Domenic havia adquirido uma reputação por seu comportamento
não convencional. Sua mãe, Domna Marguerida, fora educada fora-do-mundo e o
encorajara a pensar por si mesmo. Essa abordagem não tinha aprovação universal entre as
antigas famílias Comyn. Uma das Ladies que visitavam frequentemente Miralys Elhalyn, a
mãe de Gareth, gastava todo seu fôlego saboreando qualquer escândalo sobre Domenic.
- Eu ouvi - ela sussurrara para a amiga quando pensara que Gareth não estava ouvindo
– que ele anda com os comerciantes comuns, só Zandru sabe o por quê!
- O filho do Regente? - Seu companheiro exclamara. - Chocante, sem dúvida chocante!
Mas o que você espera de sua linhagem? É o que sempre digo, o sangue fala...
De fato, sem dúvida, eles falavam a mesma coisa, ou pior, sobre Gareth. Talvez fosse
por isso que Gareth desenvolveu uma simpatia particular pelo jovem herdeiro.
Gareth se achatou contra a parede de pedra áspera de uma loja de vinhos, assim que
os dois entraram em um estabelecimento similar mais longe na rua. O prédio de dois
andares parecia em melhor estado do que seus vizinhos e, pela presença de outros clientes,
estava aberto para o café da manhã. Os aromas de salsicha, cebolas fritas e pão fresco
flutuavam pela porta.
Estranho vir por todo esse caminho apenas para uma refeição matinal... Mas talvez o
descanso dos olhares curiosos valesse a pena a caminhada.
A porta da frente, embora desgastada, abriu suavemente ao toque de Gareth. O
interior estava escuro depois da claridade da rua. Ele caminhou segurando uma barra ao
longo da parede dos fundos. Três homens em roupas de trabalhadores sentavam-se na
maior mesa, inclinados sobre tigelas de mingau de carne e canecas de jaco. Vários clientes
solitários ocupavam mesas menores.
Quando Gareth estava tentando decidir o que fazer, uma mulher de aparência forte
saiu da cozinha como uma explosão, equilibrando uma cesta de pães cravejados, um jarro e
duas travessas de ensopado cinzentos. A transpiração escurecera o lenço que segurava o
cabelo cinzento para trás. Gareth não conseguia tirar os olhos da verruga ao lado do nariz.
- Outro, é? - Ela jogou o pão na grande mesa e espalhou os pedidos para os outros,
pouco olhando para Gareth. Ela soou como se estivesse envolvida em um concurso de
O s f i l h o s d o s r e i s | 26

gritos com os corvos. - De todas as manhãs, tinha que ser nesta quando a garota está
doente e meu homem ainda não voltou do moleiro! Você quer café da manhã também,
suponho?
Levou Gareth por um momento para perceber que ela falava com ele. - Não, não
quero nada. - Ele murmurou, imitando o sotaque comum dos servos do castelo.
- Então fique no andar de cima antes de eu tropeçar em você!
A essa altura, a visão de Gareth havia se adaptado à luz interior bem o suficiente para
notar uma escada no final da sala comum. Lugares como este deviam ter uma câmara ou
duas para refeições privadas a uma pequena taxa adicional. Ele subiu. As escadas
terminavam em frente a duas portas fechadas em ambos os lados.
Passo a passo, cauteloso, o Agente Especial Cargill avança na entrada da câmara
secreta. Símbolos malignos brilham na madeira antiga, mas ele não deve abandonar sua
busca. O destino dos mundos repousa sobre ele. Ele se pergunta...
Qual porta? Ambas eram perfeitamente comuns, baratas, de madeira e gradeadas.
Gareth baixou seus escudos de laran levemente, procurando as assinaturas mentais
distintas de seus amigos. Ele tentou irradiar o mínimo possível de sua presença.
Um instante depois, ele sentiu o padrão familiar da mente de Domenic... Então a de
Danilo... E de outra pessoa. Este terceiro homem não era Comyn. Sua mente não tinha
laran, apenas uma básica intuição. Quase todos nos Domínios tinham algum grau menor de
sensibilidade ou algo a mais, sua avó dissera. Era por isso que telepatas surgiam de vez em
quando em famílias não-Comyn. Os próprios Comyn herdaram seus dons psíquicos da
descendência dos primeiros colonos e a antiga raça nativa chamada chieri. As antigas
famílias não se mantiveram separadas e, com o passar dos milênios, os filhos nedestros
espalharam o talento através da população em geral. A consorte de Domenic, Illona Rider,
era um desses casos, agora trabalhando como Sub-Guardião na Torre Comyn.
Enquanto isso, o terceiro homem levantava perguntas. O que estava acontecendo?
Uma reunião secreta? Com qual propósito? Danilo Syrtis passou sua vida servindo aos
Domínios e Domenic não era menos dedicado. Não teria alguma coisa a ver com esquemas
criminosos ou armações contra o Conselho Comyn. Talvez eles estivessem se preparando
para o dia em que a Federação Terran voltasse a Darkover. Ou seria para impedir algum
esquema dos senhores das Cidades Secas? Seja o que for, devia ser mais emocionante do
que a temporada social do Meio do Verão que se aproximava.
E o que quer que fosse, eles não ficariam felizes em descobrir que ele os havia seguido
até ali. Um homem de honra, Príncipe Comyn ou plebeu, não espionava seus amigos. Uma
imagem piscou em sua mente da porta de repente se abrindo e Domenic parado lá,
espanto em guerra com o desgosto em seu rosto e, além dele, seu tio Danilo refletindo a
decepção.
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Eu acreditava em você, disse Danilo na imaginação de Gareth. Eu pensei que você fosse
melhor que isso.
Com as bochechas em chamas, Gareth correu para trás tão rápido que quase tropeçou
na beira da escada.
Idiota! Desajeitado, estúpido!
Dificilmente ousar respirar, Gareth correu de volta pela escada. Race Cargill nunca
teria sido tão descuidado, para não mencionar tão descoordenado.
Gareth se forçou a desacelerar mais perto do final da escada. Não seria nada bom para
sua escapada se ele atraísse suspeita por sua presa. Para seu alívio, nenhum dos clientes
pareceu lhe dirigir qualquer atenção. A mulher que estava servindo o ignorou ocupada com
seu trabalho.
Tomando uma respiração lenta, Gareth se dirigiu para a porta. A qualquer momento,
Danilo e os outros poderiam descer e encontrá-lo ali. Ele não tinha ido mais do que a uma
curta distância do outro lado da sala quando passos soaram nas escadas. Ele não tinha se
esforçado para qualquer tentativa de continuar espionando, ele não queria ouvi-los e não
ousou voltar ou usar seu laran. Mas...
Em um momento de impulso, ele se dirigiu para o canto mais escuro, deslizou para o
banco, e puxou o capuz sobre o rosto. Assim escondido, ele daria uma espiada.
O homem que emergiu da escada era de meia idade, Gareth supôs, pois sua pele era
obscuramente resistente. Seu cabelo brilhou com a cor de palha típica da ascendência das
Cidades Secas, mas ele não parecia um membro dos povos do deserto. Sua roupa era igual
a que qualquer comerciante ou membro de caravana usaria, uma jaqueta acolchoada
ligeiramente esfarrapada nas costuras, boné de malha, calças e botas atadas. Sem o olhar,
ele atravessou a sala e empurrou a porta da frente.
Com o coração acelerado, Gareth recostou contra a parede. Ele tivera sorte desta vez,
mas não ousou ficar ali por mais tempo. Danilo e Domenic podiam aparecer a qualquer
momento.
Lá fora, o brilho do dia ardeu nos olhos de Gareth. A explosão de adrenalina
desapareceu, deixando uma sensação de alegria. Todos os seus nervos estremeceram com
a experiência. O ar pareceu mais inebriante do que o vinho. Mesmo as paredes ásperas, os
edifícios caóticos e a pobreza das pessoas que passavam por ele assumiram uma nova
clareza e brilho. Ele não conseguia se lembrar de já ter se sentido assim, certamente não
em todas as estações intermináveis no tribunal. Era por isso que os homens subiam
montanhas, lutavam em duelos ou se aventuravam nas profundezas do espaço?
Conforme ele continuava, a vizinhança mudou, tornando-se ainda menos familiar. O
espasmo de alegria diminuiu. Ele se viu sem saber que direção em particular seguir... Assim
como em sua vida.
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Que idiota patético ele tinha sido por se permitir derivar em tal prazer de uma
escapada infantil. Somente por sorte ele conseguiu não ser descoberto e seu
comportamento irresponsável exposto.
Seus pés diminuíram e ele parou. Ao redor dele, o brilho da rua desapareceu e os sons
dos transeuntes tais como os cocheiros, carrinhos, as crianças brincando, um par de
músicos itinerantes dedilhando uma velha balada, pareciam zombar dele.
Eu não posso encarar o tio Danilo e Domenic. Um olhar, um momento na minha
presença, e eles saberão que fiz algo vergonhoso, mesmo que não saibam o que foi. Eles são
telepatas e não tenho força para bloquear todos os meus pensamentos.
Um homem em roupas de pastor de ovelhas, inclinado sob um saco pendurado em
seus ombros, esbarrou em Gareth e murmurou o que poderia ser um pedido de desculpas,
mas parecia mais um xingamento.
Como ele poderia voltar? E como ele não poderia voltar?
As consequências de seu retorno seriam humilhantes e degradantes, mas seriam
piores do que o que ele já tinha enfrentado? Ele não tinha um bom nome que fosse
destruído e nenhuma honra a preservar. E absolutamente não tinha nenhuma razão para se
deliciar nesse caminho repugnante de autopiedade. Seja o que for que ele criasse em sua
vida, o que fizesse, era sua responsabilidade. Ele simplesmente teria que viver com os
resultados.
Mas, oh, se, se ele pudesse fugir de tudo! Juntar-se ao Serviço Secreto Terran, se
realmente houvesse algo para ele além daquela vida. Se a Federação voltasse para
Darkover, ele poderia pular em um cargueiro indo para as estrelas. Ou talvez se juntar a
uma caravana e partir para os locais mais distantes das Hellers, aventurar-se além da
Muralha ao Redor do Mundo, ou das areias de Ardcarran ou Daillon...
Gareth se forçou a parar essa linha de pensamento e a andar. Em vez de voltar da
mesma forma que viera em direção ao castelo, ele vagou nos arredores da Cidade Velha. O
lugar parecia vagamente familiar, então ele devia ter visitado aquela região antes. Ele saiu
do fluxo de tráfego, suas costas contra um prédio unilateral e estudou seu entorno. Em
uma direção viu estábulos e pátios cercados, na outra, blocos de armazéns. Os cheiros
misturados de esterco animal e forragem pendiam no ar. Ele notou muitos mais cavalos e
outros animais de carga do que nas áreas mais povoadas da cidade.
Então ele devia estar em algum lugar perto do Portão dos Comerciantes. De onde
estava, ele avistou uma linha de pôneis carregados, embora certamente fosse muito tarde
no dia para que qualquer caravana estivesse de saída. Um trio de mulheres no traje das
Renunciantes estava ao lado de uma sela, duas falando com um homem em um avental de
couro e a terceira observando a rua, uma mão no punho de sua longa faca. Seu olhar parou
O s f i l h o s d o s r e i s | 29

em Gareth e seu rosto se apertou. Ele se afastou da parede e, com um ar tão indiferente
quanto poderia reunir, caminhou na direção oposta.
Sempre havia a chance de ser reconhecido, pois ele era uma figura pública. No
entanto, as pessoas viam o que desejavam ver e quem esperaria que o Príncipe Gareth
fosse frequentar um pátio de gado?
Gareth passou por currais e estábulos até uma praça aberta lotada de linhas de
piquete. Carregados, vários animais de todas as caravanas estavam guardados juntos. Havia
de tudo, desde cavalos de carroças com ombros grossos e pés densamente emplumados a
chervines de chifres, cavalos jovens e pôneis desgrenhados. Em todos os lugares haviam
homens conversando, negociando, examinando os animais e discutindo uns com os outros.
Aqui e ali, algum homem trotava um cavalo em rédea firme para mostrar seus passos.
Gareth vagou de um caminho descendo outro, aproveitando os pontos turísticos e
sons do mercado de cavalos. Ele nunca imaginou que um lugar como aquele existia, embora
ele supunha que as pessoas deviam comprar e manter suas montarias em algum lugar. Seus
cavalos sempre foram fornecidos para ele, a maioria criados especialmente para sua casa e
por servos. Todos eles eram soberbamente treinados, das melhores linhagens sanguíneas.
Nenhuma despesa era poupada em sua preparação ou alimentação.
Alguns desses animais pareciam estar em condições decentes, mas a maioria era
muito inferior àqueles que ele estava acostumado. Ele viu muitos com velhas feridas
esbranquiçadas em suas patas, outros com olhos maçantes e pelos opacos, tendões
curvados, jarretes tortos e costelas como ripas de madeira tosca. Alguns pareciam estar à
beira do colapso.
- Procurando por um bom lote de cavalos? - Uma voz soou por trás do ombro de
Gareth. Virando, ele olhou para baixo e viu um homenzinho curvado que poderia ter trinta
ou sessenta anos. Camadas de roupas esfarrapadas e escuras obscureceram os contornos
de seu corpo. O restolho cinzento era parcialmente coberto por uma barba na mandíbula, e
as palavras seguintes revelaram várias lacunas nos dentes do homem.
- Para você, um bom jovem, posso fazer um bom acordo.
A garganta de Gareth foi incomodada pelo cheiro desagradável vindo do homem, mas
ele moldou suas feições em uma brandura insípida que usava na Corte. - Não tenho certeza.
– Ele disse com um sorriso um pouco relaxado do tipo que geralmente fazia com que nada
que ele dissesse fosse levado a sério. - Posso querer algo adequado para uma viagem.
- Para cima ou para baixo?
- Eu não te entendo.
O homem suspirou. - Montanhas ou Cidades Secas? Você quer uma besta que possa
subir como uma cabra ou passar pela areia?
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Cidades Secas... Eu poderia comprar um cavalo apto para viagens no deserto... Eu


poderia desaparecer...
Imagens varreram a mente de Gareth. Ele se viu andando por uma trilha, deixando
para trás sua vida em Thendara. Lá fora, ninguém o reconheceria. Ele poderia ser o que ele
fizesse de si mesmo.
Ele nunca teria permissão para viajar além das fronteiras dos Domínios, nem tão longe
quanto Carthon. O próprio nome evocava a brisa da noite carregada de perfume, mulheres
veladas, homens com acentos estranhos e espadas curvadas, comida exótica e música...
Enfim, coisas presentes em contos repletos de ousadia e coragem.
Ele precisaria ter cuidado. Como todos os outros jovensComyn, ele havia sido criado
com histórias de como os Lordes das Cidades Secas eram. Após as maquinações políticas, os
esquemas, evasivas e duplos significados dos tribunais Comyn, certamente ele sabia como
cuidar de si mesmo.
Seria uma breve visita, apenas pelo tempo suficiente para limpar a cabeça e acalmar
seus nervos. Quem sabe o que ele poderia encontrar, mesmo em um dia ou dois? Ele se viu
caminhando no escritório de Danilo, anunciando: Eu vi você falando com o comerciante de
Carthon, então decidi investigar. Eu descobri... Um enredo mirabolante sobre um Lorde de
Shainsa ou algo igualmente espetacular, sem dúvida. No momento seguinte, ele imaginou
Danilo surgindo demonstrando espanto e gratidão e, atrás dele, Mikhail, Domenic, Lady
Marguerida e seus pais. Príncipe Gareth, sua bravura e astúcia nos salvaram!
Conseguir um cavalo seria a parte mais fácil. Ele precisaria de um disfarce, uma razão
para sua jornada a Carthon. Talvez ele pudesse posar como um pequeno comerciante ou
um comprador das joias filigranadas de cobre das Cidades Secas? Não, isso seria muito
caro. Tudo o que ele fingiria estar interessado não devia ser algo que valesse a pena roubá-
lo.
Ele também precisaria de uma razão para se ausentar de casa, caso sua ausência fosse
notada. Narsin! O antigo protetor não ficava em paz se Gareth saía de sua visão por uma
hora, muito menos por um decanato!
O vendedor do cavalo estava olhando para ele, talvez calculando sua próxima
estratégia de venda. Gareth endureceu sua expressão em desinteresse. - Vou apenas olhar
um pouco.
- Você não deve esperar muito, jovem mestre. – O vendedor adulou. – Recebi ótimas
ofertas pelos melhores animais sem que os compradores pensassem muito.
Aposto que sim.
- Então voltarei outro dia. - Sem esperar por uma resposta, Gareth se virou e partiu
para outra parte do mercado de cavalos.
O s f i l h o s d o s r e i s | 31

Capítulo 03

Gareth não tinha ido muito longe, não mais do que outra fileira ou duas, quando
reconheceu o homem examinando uma mula castanho-escura. Um jovem testou as
ferraduras de chumbo de dois cavalos resistentes do tamanho dos pôneis da montanha. Ele
gesticulou de forma animada com o homem mais velho, apontando para o casco traseiro da
mula. Era o comerciante das Cidades Secas que se encontrara com Danilo e Domenic.
Gareth congelou no lugar. Um homem que conduzia o animal castanho de longo passo
esbarrou nele, quase o fazendo girar e continuou com um xingamento sobre a idiotice de
tolos que ficavam no meio do caminho. Gareth respirou fundo para exigir um pedido de
desculpas, mas o bom senso controlou seu temperamento. Certamente era um bom sinal
ele ter sido insultado e quase derrubado. Ninguém aqui ousaria falar com ele dessa maneira
se percebessem quem ele era.
Sentindo-se mais confiante, Gareth endireitou sua capa e se aproximou do
comerciante de Carthon. O jovem vendedor o notou primeiro, enrijecendo. O comerciante
se endireitou parando de examinar um dos cascos da mula.
- Um dia justo para você, amigo. - A expressão do comerciante era leve, mas
reservada, sem qualquer indício da falsa afabilidade do negociante de cavalos.
- É de fato. - Gareth respondeu. - Você parece um homem que conhece cavalos.
- Tenho alguma habilidade com eles, é verdade.
Gareth estava prestes a protestar que qualquer um que ganhasse sua vida negociando
entre Carthon e Thendara devia ter mais do que “alguma habilidade” com os animais sobre
os quais seu sustento dependia. Ele parou quando percebeu que as palavras do homem
eram uma clara forma de evitar de se gabar.
- Estou precisando de conselhos de viagem confiáveis. – Gareth disse. - Parece estar
em falta aqui.
O menino bufou e o comerciante parecia divertido. - Que tipo de conselho?
- Preciso organizar o transporte para Carthon. A pessoa, o agente do empregador que
geralmente lida com isso, não está disponível. - Mesmo quando as palavras deixaram sua
boca, uma história fluiu na imaginação de Gareth. O pretexto de vendedor de lentes
funcionaria muito bem. Tais artigos eram pequenos, facilmente transportados e tinham alta
demanda. Os Terrans fizeram muito para melhorar a tecnologia, especialmente com
dispositivos de detecção de incêndios florestais, mas a escassez de metal para construir
fornos adequados ainda tornava a produção de vidro de alta qualidade algo muito caro.
Crescendo em uma família privilegiada, Gareth lidara com vários tipos de instrumentos de
lentes. Ele possuía alguns desses dispositivos e poderia tornar seu fingimento mais crível os
exibindo como amostras.
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- O que você estaria transportando para Carthon? - A expressão do comerciante


mudou para um interesse disfarçado.
- Apenas eu e um pequeno pacote. Temo que esteja com um pouco de pressa, já
tendo passado um pouco do horário estipulado por meu mestre. - Gareth tentou soar
ansioso.
- Como geralmente acontece, pretendo partir na próxima manhã e posso oferecer a
proteção da minha caravana. Qual é o seu nome e negócio?
Gareth parou antes de deixar escapar seu nome verdadeiro. - Garrin. Garrin MacDanil.
- Isso era bem parecido com “Gareth, filho de Danilo”, e facilitaria que ele mesmo se
lembrasse. - Vou levar amostras comerciais para o meu mestre.
- Amostras comerciais? - Uma sobrancelha pálida amarelada se ergueu.
- Lentes polidas.
- Você fala com um sotaque excepcionalmente cultivado para um aprendiz de
comerciante.
Gareth tentou imaginar ter que ganhar seu pão, que tipo de trabalho ele poderia fazer.
Mesmo que ele fosse treinado no uso de uma espada desde a infância, ele não era
qualificado para ser um guarda-costas. Ele não era bem educado para ensinar ou fluente o
suficiente para traduzir. Na verdade, ele não era muito bom em qualquer coisa. Sem o
status e a riqueza de sua família, ele seria extremamente sortudo se conseguisse uma
posição como aprendiz de mercador.
O comerciante, vendo a confusão de Gareth, deixou o assunto morrer e deu seu nome
com um arco. - Cyrillon Sensar, z'par servu.
Depois de discutir a taxa para se juntar à caravana e decidir um local de reunião e a
hora, Cyrillon concordou em ajudar a comprar uma montaria adequada. Depois de enviar o
menino com os cavalos e a mula, ele vagou pelas linhas de piquete de cavalos, parando um
vez ou outra para avaliar os animais. Gareth sabia o suficiente sobre cavalos para entender
que Cyrillon estava avaliando sua solidez. Um olho aguçado poderia discernir rapidamente
as falhas mais sérias, mesmo sem a precaução de pegar o casco ou estimar a idade do
cavalo pela condição de seus dentes.
Depois de algumas olhadas, Cyrillon recomendou uma égua com um pelo castanho
escuro e brilhante e uma meia branca. Ela devia ter muitos anos de idade,
- Velha o suficiente para sentir. – Cyrillon dissera.
Ela era resistente o suficiente para levar Gareth facilmente. Suas pernas eram fortes e
limpas, seus cascos grandes e extraordinariamente duros. Além disso, Cyrillon apontou um
segundo cavalo, um preto-enferrujado, para servir como um animal de carga. Gareth achou
que era o cavalo mais feio que já vira, com seu balanço traseiro, jarretes de vaca e orelhas
tão grandes que parecia de um coelho-de-chifres, mas Cyrillon assegurou que era perfeito
O s f i l h o s d o s r e i s | 33

para a trilha. O vendedor parecia surpreso por quem alguém estar interessado em comprá-
lo, então Gareth fez uma boa pechincha pelo preto, bem como por seu suporte de carga e
uma sela para a égua.
Gareth pagou por ambos os cavalos e organizou para que eles fossem mantidos e
cuidados na área mesmo. Ele não ousava levá-los de volta ao pequeno estábulo ligado à
casa na cidade por medo de despertar muitas perguntas de Narsin.

~o ⭐ o~
Assobiando, Gareth caminhou de volta para a casa da cidade. Seu esquema podia ter
surgido no impulso do momento e pelo desgosto da alma doente por sua vida em
Thendara, mas ele seguiria como se o próprio Aldones houvesse ordenado isso. Se Cyrillon
Sensar tinha alguma dúvida sobre a história de Gareth, ele manteve-se quieto. Seu aprendiz
não era exatamente amigável, mas o que isso importava?
O sol tinha acabado de passar do meio-dia e o ar parecia doce e suave. Ele deixou cair
o capuz para trás sobre os ombros e sentiu o calor em seu cabelo.
O cabelo... Quando era mais novo, tinha sido tão claro quanto de um drytowner3.
Poderia haver algum produto feminino para clarear sua cor, mas ele não tinha certeza se
isso iria chamar mais ou menos atenção para si mesmo. Como era, ele teria o suficiente
para fazer: encontrar roupas adequadas, embalagens das lentes e criar uma série de
estratégias para que sua ausência não fosse notada. Ele duvidava que alguém no Castelo
fosse sentir falta dele, pelo menos até que seus pais chegassem. O verdadeiro problema
seria Narsin. No caminho até a casa da cidade Gareth elaborou um plano.
Narsin o esperava na entrada da frente. Os sulcos entre as sobrancelhas do velho
estavam ainda mais profundos do que o habitual. Seus lábios estavam tensos, como se
estivesse prestes a acusar Gareth de se atrasar deliberadamente.
Gareth soltou a capa e empurrou-a para o velho servo.
Um sorriso veio facilmente. - Narsin! Tenho uma notícia maravilhosa!
- Ótimo, vai dom. E você vai querer o almoço agora?
Gareth se sentou no banco ao lado da porta para Narsin afrouxar as botas, depois
enfiou os pés em chinelos de feltro. Ele deu ordens para que o vinho aromático quente e a
refeição fosse servida. Narsin organizara tudo com sua eficiência habitual. O velho criado
podia ser um incômodo com suas desaprovações, mas nunca deixou sua opinião interferir
na excelência de seu trabalho.
Um fogo aquecia a menor das duas salas de estar, onde Gareth afundou no divã
almofadado. A sala parecia envolvê-lo com tranquilidade e conforto discreto. A mobília,

3
N. da T.- ‘Drytowner’: se refere à um habitante das Dry Towns (‘Cidades Secas’ em português); por ser um gentílico, em
teoria não deve ser traduzido e evita a repetição desnecessária do termo ‘habitante das Cidades Secas’.
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embora muito bem construída, tinha-se tornado um pouco pobre com o tempo e uso. Eles
provavelmente remontavam ao tempo de Danvan Hastur, o avô de Regis. Regis se recusara
a desistir da casa da cidade, mesmo quando ele tinha passado a viver no Castelo. Gareth
poderia entender o porquê. Aqui não havia cortesãos, sem olhos espiões. A casa,
especialmente este pequeno salão, parecia um lugar de vida, um lugar onde as crianças
poderiam brincar diante do fogo, onde os pais podiam se sentar e conversar depois que as
crianças fossem para a cama. Seu próprio pai tinha nascido ali...
Gareth empurrou uma almofada atrás de seus ombros e descansou a cabeça contra
ela. Quando fechava os olhos, ele podia imaginar seu pai quando criança sentado no colo
de sua avó enquanto ela cantava uma balada, talvez um dos contos do burro de Durraman
ou da Floresta Dourada dos chieri. A sala podia guardar tais lembranças, mas agora não
havia risos, gritos encantados de uma criança. Nenhuma canção. Apenas uma, câmara
confortável e vazia. Gareth não podia imaginar trazer qualquer uma das jovens comynara
para viver ali. Quem quer que ele acabasse casando insistiria em viver na região dos
Elhalyn, no castelo, e sem dúvida passaria os primeiros anos do casamento cuidando da
redecoração. O pensamento o fez querer fugir para Carthon e continuar lá para sempre.
Narsin voltou a ficar em silêncio ao lado da porta. Gareth abriu os olhos lentamente,
como se não houvesse urgência em qualquer coisa que ele tinha a dizer. Odiava a ideia de
mentir para um homem que tinha servido a ele e sua família tão bem e por tanto tempo.
- Estou indo embora por um tempo, Narsin. Sei que é repentino, mas algo inesperado
surgiu. Devo estar de volta a tempo para as festividades do Meio do Verão, mas, para o
caso de meus pais decidirem vir mais cedo, quero que você leve uma mensagem para eles
antes. Você merece a chance de ir para casa, acredito que você tenha família no Castelo
Elhalyn, certo? - Ele estava falando muito rápido, sabia disso, meio que esperando que, se
passasse rapidamente pelas particularidades de sua ausência, não teria que explicar
melhor.
Narsin não o questionou diretamente. Ele era um servo bom demais para isso. 0
Quando você vai partir?
- Depois de amanhã. Se você sair de manhã, posso cuidar de mim até a partida.
- Meu Lorde, isso é sábio?
- Oh! - Gareth impulsionou-se do divã. - Vou estar nas melhores mãos, serei auxiliado
por um homem conhecido do tio Danilo e de Dom Domenic. Isso deve ser suficiente até
mesmo para seus padrões exigentes. - Ele caminhou até a mesa no canto. - Aqui, vou
escrever uma mensagem em um momento. Bem, vamos, comece a embalar tudo, cara!
- Meu Lorde...
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- Narsin, pare de se preocupar. Vou estar tão seguro como se tivesse ficado no castelo.
- Ele seria mais seguro do que com as bajulações de Dom Octavien, isso era tão certo
quanto neves do próximo inverno.
Para surpresa e alívio de Gareth, Narsin se retirou sem mais nenhuma discussão.
Gareth vasculhou a biblioteca em busca de qualquer referência que pudesse encontrar
sobre lentes. Ele aprendeu os diferentes tipos de preparo, diferentes qualidades de vidro,
os melhores tipos de areia para cada finalidade e que minerais poderiam ser usados para
clarear ou adicionar cor ao produto final.
Confiante em sua pose como filho de um homem rico, Gareth foi entrevistar os poucos
produtores de vidro da cidade. Para sua diversão, um vidraceiro idoso se ofereceu para lhe
mostrar alguns globos e ele passou o resto da tarde lutando com um fracasso após o outro.
Por fim, ele conseguiu produzir um único frasco deformado.
- É um primeiro esforço justo. – O vidraceiro disse. - Se puder perdoar minha
sinceridade, jovem Lorde, mas creio que se você tivesse começado seu treinamento tão
cedo quanto meus aprendizes, você poderia agora ter atingido pelo menos a mínima
habilidade. Não pretendo insultá-lo ao dizer isso.
- Não se preocupa. Por que eu me sentiria insultado? - Gareth disse. - Você é um
homem honesto e um mestre em seu ofício. Aqui em sua própria oficina, certamente você
tem o direito de me julgar.
O vidraceiro trouxe vários tipos de lentes, organizados para transporte em um suporte
acolchoado. Sob seu conselho, Gareth selecionou um sortimento consistente com o que um
mercador iniciante poderia precisar. O gasto, embora fosse modesto para ele, seria muito
caro para qualquer um sem os recursos financeiros de um Lorde Comyn. Gareth fez o seu
melhor para transmitir a impressão de que estava colocando toda a sua herança no
empreendimento. Ele saiu com o acordo de pegar a mercadoria após o pagamento. Quando
voltou para sua casa da cidade, as paredes de Thendara não pareciam sufocá-lo como
antes.
Sombras se alongavam nas ruas e torres da Cidade Velha quando Gareth se aproximou
da casa da cidade. Luz brilhava pelas janelas. Mesmo com a ausência de Narsin, a equipe
doméstica era eficiente. Ele poderia esperar uma refeição quente em breve.
Sussurrante, ele pisou pela porta aberta e encontrou outra serva, uma das mais
jovens, e entregou sua capa.
- Vai dom, você é aguardado na sala. – Ela disse em uma voz sem fôlego. - Se desejar.
- De fato. - Nem haviam muitas pessoas em Thendara com status suficiente para exigir
a presença de um Príncipe Elhalyn em sua própria casa.
Ele entrou na sala maior desta vez. A porta tinha sido deixada entreaberta, revelando
o brilho de um fogo alto na lareira. Sua avó estava sentada em uma das poltronas perto da
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lareira. Ela usava um vestido de visita formal e seu cabelo estava trançado e enrolado em
torno de sua cabeça como uma coroa, um lembrete sutil de seu status como viúva do
antigo Regente, bem como de comynara e Guardiã. Ela não estava sorrindo, nem Narsin, de
pé a uma distância respeitosa atrás dela, os braços cruzados sobre o peito.
- Bem, meu neto, que tipo de problema você causou agora?
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Capítulo 04

Eu ainda não fiz nada.


Gareth estava longe de ser inocente, e sabia disso. Ele havia seguido Danilo e
Domenic, o que já era impróprio o suficiente sem também ter uma conversa privada. Uma
vez que ele seguiu seu plano, enganara Narsin que servia a sua família com devoção e
lealdade. Nenhuma dessas ações era digna do homem que ele desejava ser. Por um
momento ele se perguntou se teria se comportado tão mal se não se sentisse tão inútil e
confinado. Ele não sabia o que era pior, sua vida em Thendara ou a perda da esperança
fugaz de sua fuga. Mesmo agora, a estrada para Carthon, brilhante com a aventura, parecia
desaparecer, ficar além do alcance.
- Narsin, deixe-nos. - A voz de Linnea interrompeu sua miséria. Observando o velho
arco do servo e sua saída, Gareth percebeu que seu estado emocional devia ter vazado
através de suas barreiras psíquicas.
- Sente. - Linnea indicou a cadeira desocupada.
Gareth se abaixou no assento e forçou-se a encarar o olhar de sua avó.
- Fiquei preocupada quando você não compareceu à nossa sessão agendada. Então
Narsin veio a mim com um conto de como você ordenou que ele fosse para casa com um
pretexto tolo. Ele teme por você, sabia? - Ela apertou as mãos no colo, como se para
mantê-las firmes. - Como eu não tinha percebido o quão infeliz você estava?
- Não é sua culpa.
- Eu não disse que era, apenas que, como sua mentora, se não sua Guardiã, eu deveria
estar ciente.
Gareth olhou para longe. Como ela poderia ter ajudado se soubesse? Ela poderia ter
silenciado a fofoca, excluído sua culpa e os esquemas dos cortesãos e lordes... O mesmo
dado a ele algo significativo para fazer?
Depois de um longo momento, ela disse: - Você tentou enviar Narsin para longe. Seus
pensamentos são de fuga. Você não vai confiar em mim e me dizer o motivo?
Por que não? Ele nunca iria conseguir fugir agora. Agora sua pouca liberdade lhe seria
arrancada. Ele estaria vigiado dia e noite, ou então preso no Castelo Elhalyn como uma
criança indisciplinada.
- Gareth, não posso ajudar se você não confiar em mim. Você sabe que não vou entrar
em sua mente sem o seu consentimento. Jurei nunca fazer isso.
Ela podia não forçar uma confiança, mas uma vez que ele confessasse, sua vergonha
seria pública. Ela e Danilo eram muito próximos. Illona Rider, sua Sub-Guardiã, certamente
daria um longo relatório para Domenic. Antes do verão, Mikhail e Marguerida, e seus pais
também saberiam.
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De uma maneira ou de outra, ele viveria na humilhação. Talvez fosse melhor encará-la.
Então ele percebeu que não seria o único afetado. Cyrillon Sensar não tinha falhadp
com nenhum voto de confiança e, no entanto, sua utilidade como agente de Danilo
terminaria. Que outras consequências poderiam exiastir para o comerciante, Gareth não
sabia. Uma coisa era arriscar sua própria reputação manchada, outra bem diferente era
sacrificar a de um homem inocente.
Pense o que quiser de mim, mas apenas de mim.
Gareth balançou a cabeça. Para evitar até mesmo uma sugestão de traição acidental,
ele manteve suas barreiras de laran tão firmes quanto podia.
Linnea, que estava ligeiramente inclinada para frente, agora se sentara mais reta na
cadeira. - Você se sente muito por isso. Não, eu não li seus pensamentos. Em todos os anos
que o conheço, desde que te segurei em meus braços quando você era um bebê, nunca o vi
tão determinado.
- Eu me desonrei novamente e fui falso com aqueles que acreditavam em mim.
- Você acha que qualquer coisa que você sente me assusta? Quando eu tinha a sua
idade, meu treinamento na Torre me mostrou mais da loucura humana do que a maioria
das pessoas vêem na vida. Eu posso ser protegida agora, mas não sou ingênua. Além disso,
suspeito que sei muito mais sobre você do que você mesmo. Você não é mal e nem
covarde. Impulsivo, explosivo, certamente, e às vezes pensativo demais, mas que jovem
não é? Eu vou te perguntar novamente. Você vai desabafar comigo? Prometo que, seja o
que for, ainda vou te amar, nenhum pouco menos, e eu vou guardar tudo o que disser em
estrita confiança.
Gareth piscou. - Você não vai dizer a ninguém?
- Não sem a sua permissão. - Um sorriso pairou nos cantos dos olhos dela. - Claro, se
você me disser que está pensando em um aot criminoso, um assassinato, por exemplo, ou
uma violação do Pacto, então farei o meu melhor para dissuadi-lo. Mas se não for algo pior
do que fugir para buscar riqueza nas Cidades Secas, você não tem nada a temer.
- Na verdade. – Ele disse. – É exatamente isso.
Ela sorriu. - Acho que você é melhor me contar toda a história, então.
Linnea não expressou surpresa quando Gareth descreveu como eram seus dias, os
esquemas para atraí-lo para o casamento ou para transformá-lo em um rei-marionete, os
dias de ociosidade e vigilância. Ela ouviu, a cabeça ligeiramente inclinada para um lado, os
olhos pensativos enquanto ele deixava sua confissão fluir como uma cascata. Ela assentiu,
como se muitas coisas agora ficassem claras. Às vezes, seu foco oscilava, como se estivesse
ouvindo outra voz e vendo outro rosto além do dela.
Gareth sentiu uma pontada de remorso por ter considerado esconder a verdade dela.
Quando ele tropeçou por um pedido de desculpas, ela sorriu e disse: - Você esquece que
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vivi boa parte da minha vida casada com uma pessoa pública, alguém que cada gesto era
analisado em busca de significados ocultos. Todos nós precisamos de um lugar dentro de
nossas próprias mentes onde nossos pensamentos, sentimentos e sonhos são inteiramente
nossos.
Gareth não esperava tal compreensão. Ele havia crescido preso em sermões sobre
dever e honra. - O que mais há para mim? Não consigo encontrar refúgio em uma Torre.
- Quando eu era muito jovem, nunca sonhei com mais nada. - Linnea balançou a
cabeça. - Você está certo. Você pertence muito ao mundo e ainda assim... Bem, voaremos
aquele falcão quando suas penas estiverem crescidas.
- Essa não é a razão pela qual eu tentei enviar Narsin embora.
Ela se sentou mais reta em sua cadeira, suas mãos ainda firmes no colo. Os tendões do
pescoço dela se destacaram, a única sugestão de sua agitação. – Fugir para as Cidades
Secas... Não foi apenas um exagero seu, então? Você tem alguma ideia do que esses
selvagens fariam se descobrissem você em seu meio?
- Eu pensei nisso. – Gareth disse. - Como herdeiro de Elhalyn, sofro um risco particular.
Estou plenamente consciente de que não sou um darkovano comum. Não vou ser
descuidado. Sei que isso não é uma brincadeira do Festival de Verão. Você não consegue
entender? Se eu quiser governar qualquer coisa um dia, devo me tornar digno.
- Seus sentimentos são admiráveis. No entanto, não deixa de ser irrealista se os
motivos nobres vêm de mortos que tentaram provar a si mesmos.
Paixão o fez ficar de pé. Ele jogou o cabelo para trás com uma mão e começou a andar.
- Eu tenho que fazer alguma coisa! Se eu não encontrar uma saída dessa gaiola, vou
verdadeiramente me tornar o que todos pensam que sou: apenas mais um Elhalyn inútil. Eu
quero ser mais do que isso! - Ele fez uma pausa, peito arfando e caiu de volta em sua
cadeira.
Ela olhou para ele, seus olhos tão cheios de luz que pareciam brilhar por dentro.
Ele queria se jogar diante dela e implorar: Deixe-me ir! Deixe-me encontrar o caminho
de minha vida! Mas ele não podia, por razões que ele não entendia totalmente. E o orgulho
não estava entre elas.
Ele sentiu, em um momento de contato, que ela desfez, que ela viu não só este
momento presente, mas outro, um longo passado infinitamente mais doloroso.
- Vejo que você tem seu coração focado nesta missão - disse ela - e há uma grande
fome em você. Embora me assuste dizer isso em voz alta, acho que se você ficar aqui, parte
desse coração morrerá.
Gareth não podia acreditar no que ele tinha acabado de ouvir. Ele esperava um certo
grau de simpatia, mas não tal aceitação. Ele não podia suportar a intensidade do momento.
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- Não sou totalmente impotente. - Ele a lembrou, tentando soar esperançoso. - Eu


treinei combate com espada e desarmado desde que eu tinha dez anos. Falo o dialeto das
Cidades Secas bem o suficiente para agradar meu tutor. Meu cabelo é quase da cor certa
para evitar atrair atenção. Tenho minha pedra da estrela e, graças a você, alguma
habilidade em usá-la.
O momento de intensidade emocional esmagadora passou. Linnea se mexeu em seu
assento, sua expressão mais uma vez prática.
- Usá-la para quê? Você não é um telepata poderoso o suficiente para enviar seus
pensamentos por uma distância tão grande. Às vezes, sob condições de grande desespero,
os leroni treinados conseguem alcançar as mentes de quem se sentem próximos. Acredito
que Marguerida e Mikhail podem fazê-lo, mas seu vínculo é extraordinário, mesmo entre o
Comyn. Como um conselho prático, se você se encontrar em uma posição onde precise
tentar, seria melhor se concentrar em mim. Não digo isso por ser sua avó, mas porque
tenho sido sua Guardiã. Não sou tão forte quanto fui uma vez, mas estou familiarizada com
sua assinatura mental. Se alguém pode reconhecer uma tentativa sua de contato
telepático, esse alguém sou eu. Além disso, aqui na Torre, tenho acesso a telas de matriz
capazes de focar e ampliar até o laran muito fraco.
Gareth engoliu em seco. - Espero que não chegue a isso.
- Eu também. Gareth, os drytowners são pessoas orgulhosas e cruéis. Temo que muitos
deles considerassem um ornamento à sua honra desmascarar um intruso dos Domínios. Se
eles descobrirem quem você realmente é...
- Eu morreria para não lhes dar a chance de fazer um refém real!
- Você tem certeza de que pode suportar os dispositivos de homens que fizeram da
tortura uma espécie de arte?
Gareth se manteve firme. - Assim como qualquer homem, com a ajuda dos deuses.
Claramente, a melhor solução é não ser pego.
- Seu discurso pode não te dar medo, - o olhar de Linnea foi para a bolsa de seda no
pescoço dele - mas isso certamente vai. Você sabe o que acontece se alguém, além de um
Guardião, tocar em sua pedra da estrela?
De boca seca, Gareth assentiu. Foi uma de suas primeiras lições quando ele recebeu
uma pedra da estrela. Ele tinha dez anos na época, seu laran dava apenas sinais ocasionais,
tão distante quanto as tempestades da puberdade, e mesmo assim ele ainda podia lembrar
as palavras de aviso ditas por Istvana de Neskaya, a Guardiã que lhe dera sua pedra da
estrela.
- Uma vez que o cristal de matriz esteja sintonizado com sua mente, - disse Istvana -
você não pode ser separado dele sem um grave risco para sua sanidade. Até mesmo um
toque casual por qualquer pessoa, exceto um Guardião treinado, pode resultar em choque
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ou mesmo a morte. Você deve tratar sua pedra da estrela como se ela fosse um ser vivo,
uma extensão do seu laran.
Gareth não podia deixar a pedra da estrela para trás em Thendara, nem mesmo com
sua avó. Uma vez, como experimento, ele tentou trancá-la em uma caixa forte em seu
quarto enquanto ele ia para algum compromisso oficial. Ele esperava que, sem ela, ele
fosse menos sensível às correntes psíquicas da assembleia. Foi em uma época quando ele
ainda ocupava os alojamentos da família Elhalyn no castelo. Antes de passar além do
primeiro pátio, ele começou a se sentir tonto. Cada passo intensificava seu desconforto até
que, dolorido e tremendo, foi forçado a voltar. No instante em que pegou a matriz em suas
mãos, seu mal-estar sumiu. Felizmente, ele não era esperado para fazer qualquer discurso e
ninguém lhe dispensou mais do que as habituais cortesias falsas. Ele não achava que
conseguiria dizer mais do que duas frases coerentes seguidas. Nos dois dias seguintes, ele
não fez quase nada além de dormir.
Ele apertou a gola de sua camisa. Talvez ele pudesse carregar a pedra guardada em
seu cinto, onde seria menos provável que fosse descoberta.
- Cintos e botas de couro são esconderijos pobres nas Cidades Secas. – Linnea
sinalizou. - As pessoas lá produzem tão pouco desses bens que são altamente valorizados.
Tenho uma ideia melhor.
Ela saiu da sala e voltou pouco depois com uma caixa sobre o antebraço. As teias de
aranha pendiam de um canto e se agarravam às mangas de sua roupa. Ela sentou-se com a
caixa no colo e afastou os fios da teia.
Gareth não tinha ideia de que aquilo existia na casa, mas também ele nunca havia
explorado todos os lugares e depósitos. Mobílias quebradas, lembranças descartadas e
baús de roupas fora de moda nunca o interessaram.
Linnea notou sua expressão e sorriu. - Sim, há uma coleção de detritos lá em cima. Eu
nunca cheguei a limpar o que tinha sido deixado antes de nós e temos que somos culpados
de contribuir com essa prática de descarte. Regis sempre tinha tantas coisas mais
importantes em sua mente e seu pai nunca se importou.
Depois de limpar os dedos em sua saia, ela forçou a tampa da caixa que resistiu por
um momento, depois abriu com um rangido de madeira velha e deformada.
- Não sei porque guardei isso, talvez porque era muito feio para dar a qualquer outra
pessoa. - Ela tirou um amuleto em uma corrente e entregou-o a Gareth.
Ambos eram de construção robusta, embora o metal fosse prateado de qualidade
pobre. O amuleto parecia ter resistido ao uso duramente. Ele tinha uma representação
estilizada de Nebran, a divindade sapo das Cidades Secas. Gareth concordou com a opinião
de Linnea sobre sua ausência de beleza.
- Obrigado... Eu acho. - Ele disse duvidoso.
O s f i l h o s d o s r e i s | 42

Os olhos de Linnea brilharam. - Abra.


Gareth olhou mais de perto e viu que o amuleto era de fato um medalhão, o fecho
bem escondido. Depois de várias tentativas, Gareth acertou o fecho com as pontas dos
dedos e o medalhão abriu. Cada metade estava alinhada com uma camada de algo que
parecia um tecido suave feito com teia de aranha.
- Coloque sua pedra da estrela aí dentro e feche.
Quando Gareth fez isso, as cores da sala ficaram opacas, como se toda a luz do mundo
tivesse subitamente esmaecido. Sua língua parecia grande demais para a boca e sua saliva
amarga. Ele reconheceu o mesmo mal estar que o atingira durante aquela experiência
desastrosa quando ele tentou deixar sua pedra da estrela para trás, embora muito menos
severa. Os sintomas agora eram desagradáveis, mas ele podia tolerá-los. Ele poderia até
funcionar com certa normalidade e talvez usar seu laran em um pequeno grau, não
amplificado pela pedra da estrela.
Linnea abriu a porta e convidou Narsin a entrar. O velho servo estava esperando a uma
curta distância.
- Dê o amuleto para Narsin. – Linnea disse.
Intrigado, Gareth fez quando ela mandou, embora no instante antes que o medalhão
deixasse seu alcance, seus nervos quase falharam. Narsin era um homem honrado e não
havia dúvida de seu amor por Gareth, mas ele não era um laranzu. Gareth segurou a
respiração e deixou o medalhão cair na mão dele.
Ele esperou a dor, mas nenhuma veio. Na verdade, ele não sentiu nada quando os
dedos de Narsin se fecharam ao redor da prata. Gareth olhou para Linnea esperando por
uma explicação. Ela gesticulou para ele esperar, pegou o amuleto, agradeceu a Narsin e
esperou até que ele saísse da sala.
- Eu não entendo. – Gareth disse. Com os dedos trêmulos, ele abriu o medalhão e
colocou sua pedra da estrela no lugar adequado. Uma onda de alívio passou por ele. Seus
pensamentos se afiaram quando a sala ficou mais brilhante e mais quente. Seu estômago
não revirou. Os músculos de sua barriga pareceram relaxar para que sua próxima
respiração fosse profunda. - É - ele indicou o amuleto de Nebran - um amortecedor
telepático como os da Câmara de Cristal? Eu não sabia que os drytowners faziam esses
dispositivos. - Ele não podia imaginar qualquer ferreiro dos Domínios criando tal peça.
Linnea balançou a cabeça. - Acho que o efeito é resultado de alguma contaminação na
prata. Tem estado aqui há muito tempo, desde os dias de Danvan Hastur, ou até antes.
Descobri em uma das minhas tentativas vãs de organizar as áreas de armazenamento.
Chegueu a pensar em pedir aos cientistas Terranans para analisar o metal, mas uma coisa
levou a outra, e nunca encontrei uma ocasião apropriada. - Sua expressão ficou pensativa.
Então ela se controlou e continuou: - Qualquer que seja o mecanismo, o medalhão é
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psiquicamente isolado e deve protegê-lo do pior se for retirado de você. Você ainda
enfrentará o problema da separação de sua pedra da estrela, mas pelo menos não entrará
em convulsões.
Gareth colocou a corrente em volta do pescoço. O amuleto pressionava contra seu
peito, diferente da bolsa de seda que mal era notada. Ele presumiu que se acostumaria com
o peso e, quanto mais ele usasse, mais cedo isso aconteceria.
- Por enquanto, devemos nos separar. Falarei com Narsin no caminho. - Linnea roçou
as pontas dos dedos sobre as costas do pulso de Gareth. Por um momento fugaz, ele sentiu
sua mente o tocando com amor, seu amor incondicional por ele, seus arrependimentos
pelo passado e a preocupação atual.
- Eu ficarei bem. - Ele lhe assegurou.
- Não há nada certo neste mundo, exceto a neve no próximo inverno. - Ela murmurou.
- Gareth, eu gostaria de compartilhar o que você me disse, seu fardo e preocupação, com
outra mente que te ama.
- Meu pai, você quer dizer?
Ela balançou a cabeça. - Não a menos que... Não, me refiro a Danilo Syrtis.
- Tio Danilo? Ele me impedira de ir se soubesse.
- Seus medos são errôneos.
Ele viu então a posição impossível em que ele a colocara, ir contra seus desejos
proibindo que ele fosse ou suportar em silêncio e a ansiedade de manter tal segredo.
- Diga a quem precisar. – Ele disse, incapaz de manter um traço de ressentimento de
seu tom. - Mas só depois que eu tiver ido embora.
- Como sua Guardião, dei minha permissão para você ir. Quem nos Domínios tem o
direito de desafiar minha decisão?
A vergonha trouxe o rubor para suas bochechas. Ele inclinou a cabeça.
- Adelandeyo, chiyu mio. - Ela murmurou, mal tocando sua testa com um beijo suave. –
Caminhe com os deuses.
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Capítulo 05

Gareth acordou antes que o primeiro traço de luz rosa-pálida atingisse o céu oriental.
Depois de um café da manhã apressado, ele começou a verificar sua roupa, sua bagagem,
até mesmo a espada indistinta, mas útil que substituiu sua lâmina cheia de joias. Depois
que sua avó Linnea o deixou na noite anterior, ele foi até os cômodos de armazenamento e
encontrou baús e mais baús de roupas velhas, algumas delas tão usadas que ele não podia
imaginar por que haviam sido guardadas. Além da roupa, ele descobriu um kit de trilha e a
espada. No final, ele decidiu não tentar alterar a tonalidade de seu cabelo, por medo de
que o resultado fosse tão antinatural, atraindo ainda mais atenção. Ele estava se
acostumando rapidamente com o efeito isolante do amuleto de Nebran.
Montado na égua marrom e guiando o preto-ferrugem, Gareth passou pelo Portão dos
Comerciantes. O céu estava ficando mais luminoso gradualmente, o calor aumentando,
desde que ele havia deixado a casa da cidade. O frio da noite se agarrava à terra como uma
névoa persistente. Ele puxou sua capa com mais força em torno de seus ombros e puxou o
capuz sobre a cabeça. Para seu alívio, nenhuma das pessoas dentro ou fora da cidade deu
qualquer atenção especial à ele.
Ele estava por conta própria agora. Poderia ir a qualquer lugar, fazer qualquer coisa,
ser alguém!
A uma curta distância pela estrada larga de Thendara, ele viu a caravana de Cyrillon de
um lado. Devia ter tido antes pouco mais de uma dúzia de vagões com muitos cocheiros,
alguns deles agora liderando cordas de animais carregados. O aprendiz de Cyrillon moveu-
se entre eles, falando com os motoristas e checando os arreios.
Cyrillon acenou uma saudação a Gareth. - Garrin, você já conhece Rakhal, meu
aprendiz. Ali está Korllen, nosso cozinheiro e Tomas... - Ele indicou dois homens, um com
uma barba loira, que assentiu silenciosamente na direção de Gareth - ...e Alric lá, com a
água. - Alric, um menino desgrenhado e bronzeado, sorriu timidamente.
O aprendiz fez uma inspeção completa da égua marrom e da embalagem, dando
especial atenção à suas patas e certificando-se de que as almofadas da sela não tinham
pregas ou rugas e eram grossas o suficiente para amortecer suas cerdas.
- Sua engrenagem está bem equilibrada, mas seus estribos são muito curtos. – Rakhal
disse depois de ajustar a alça no peito do animal. Quando ele olhou para cima, o sol brilhou
em seu rosto. Suas bochechas eram suaves e livres de qualquer barba, e seus olhos eram de
um azul claro como uma pedra da estrela, cercados por um anel de ouro.
- Acho que sei o comprimento de minhas próprias pernas. - Gareth montava desde que
podia se lembrar e tinha sido treinado pelos melhores instrutores do Castelo Elhalyn.
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- Para andar pela cidade, está bem, mas na trilha os joelhos sofrerão. - Rakhal se virou
para gritar para Tomas: - Não, não assim! A espinha do pobre animal ficará dolorida por
causa de uma almofada de penas logo no primeiro dia!
Gareth observou quando o homem mais velho correu para obedecer com a mesma
agilidade que obedecia as ordens do próprio Cyrillon. Olhando para o couro do estribo, ele
admitiu para si mesmo que sua resistência a mudar o comprimento veio de sua própria
inexperiência nas tarefas de um cavalariço. Suas selas sempre foram ajustadas por outra
pessoa, sem mencionar limpas e remendadas. Ainda assim, ele chamaria a atenção para si
mesmo se agisse como um aristocrata mimado. Ele desceu e se atrapalhou com o couro
como Rakhal sugerira.
- Na estrada, todos! - Cyrillon chamou quando Gareth estava arrumando. - Não vamos
mais perder a luz do dia!
Agarrando um punhado da crina grossa, Rakhal subiu em um roan salpicado. - Garrin,
venha comigo. Você vai andar na frente.
A caravana seguiu. Cyrillon dirigia o vagão de chumbo, com o menino Alric sentado ao
lado dele. Não demorou muito para perceber que a posição era muito importante. Os
animais agitavam uma quantidade surpreendente de poeira. Os membro que guiavam o
gado cobriram suas bocas e narizes com lenços longos. Um foi oferecido a Gareth, feito de
algodão estampado, azul desgastado e lhe indicaram com gestos de mão como envolvê-lo.
Gareth não confiava no temperamento da égua marrom o suficiente para soltar as rédeas,
então tentou fazer isso com uma mão. Não familiarizado com o manuseio das longas tiras
de pano, ele enrolou o lenço de qualquer jeito, meio atrapalhado. Quando pensou que
finalmente tinha conseguido, o pano escorregou sobre a testa. Não só ele não podia ver,
mas também não podia respirar, pois o pano dobrado acabou ficando sobre suas narinas.
Ele o soltou e, à essa altura, era o foco da atenção não apenas do vaqueiro que lhe deu o
lenço, mas de todos que não guiavam uma carroça, entre eles, Rakhal.
Gareth corou, esperando pela inevitável zombaria. O riso, quando veio, foi bem
humorado, convidando-o a compartilhar da piada. Ele sorriu timidamente por sua falta de
jeito.
Rakhal cutucou o roan salpicado perto o suficiente para pegar as rédeas da égua. –
Tente com as duas mãos.
Gareth o fez, dessa vez com certa eficácia. O resultado final podia ser cômico e não tão
uniformemente dobrado quanto os outros, mas pelo menos filtrou o pior da poeira. Para
sua surpresa, os espectadores deram sua aprovação. Rakhal sorriu e guiou o roan de volta
ao longo da linha, onde um dos animais de carga, a mula de pernas estranhas, estava
ameaçando chutar outra.
O s f i l h o s d o s r e i s | 46

Passado os arredores da cidade, a estrada seguia ao redor de pequenas fazendas que


forneciam produtos aos mercados da cidade. Alguns agricultores estavam carregando seus
carrinhos com alho-poró da colheita do dia, repolhos e as folhas da primavera. Gareth
sorriu e ergueu a mão em saudação.
No momento em que eles pararam para da água aos animais ao meio-dia, Gareth
estava começando a sentir os efeitos do tempo prolongado na sela. Em Thendara, ele podia
montar por apenas curtos períodos de tempo. Ele se mexeu na sela para aliviar uma
pontada na parte inferior das costas.
Rakhal devia ter notado, pois o jovem aprendiz trouxe seu cavalo ao lado de Gareth. -
Não nos atrase, você deve montar por mais algum tempo.
Ele me acha fraco, um entregador da cidade.
- Eu posso montar.
O aprendiz deu de ombros. - Qualquer tolo pode ficar sobre um cavalo no primeiro
dia. - Então ele virou o roan, chutou-o em um trote, e foi cuidar de seus assuntos.
A estrada ficou mais estreita em cada encruzilhada, até que fse tornou pouco melhor
do que uma trilha. Eles passaram por campos de cevada ondulando na brisa da manhã. A
cevada tinha um cheiro doce, como grama recém cortada. Campos de cereais deram lugar a
pomares e, em seguida, em pastos rochosos. O mato sussurrava com as coisas vivas. Um
coelho-de-chifres correu como uma mancha branca indo para seu abrigo. No alto, um
falcão de caça pairou nas correntes de ar.
Agora bem nas colinas, eles encontraram alguns outros viajantes além de uma
caravana de mulas carregadas e um comerciante de metal com guarda-costas bem
armados. Perto do crepúsculo, Cyrillon escolheu um lugar fora da trilha batida, onde a
grama ainda era exuberante. Seus homens começaram seu trabalho cavando poços de
latrina, arrumando os vagões e linhas de piquete para os cavalos.
Gareth os observou, tentando adiar o momento em que teria que desmontar. A
pontada nas costas tinha lentamente se tornado uma rigidez dolorosa que enviava
espasmos para as pernas. A égua se moveu, puxando o freio. Ela queria aproveitar a grama
e não ficaria calmamente parada ali sem motivo.
Cerrando os dentes, ele soltou os estribos, debruçou-se sobre o pomo, deslizou sua
perna direita sobre as costas do animal e caiu no chão. Ele conseguiu se equilibrar,
encostado na égua e se parabenizou. Um pouco de alongamento e ficaria ótimo. Ele
colocou as rédeas sobre a cabeça da égua e quase soltou um grito. Alguns demônios do
mais frio inferno de Zandru pareciam estar enfiando uma dúzia de agulhas afiadas em suas
articulações do joelho. No momento seguinte, ele percebeu Rakhal sufocando um sorriso.
Gareth ergeu sua mandíbula, inflou o peito e levou a égua para a linha de piquete. Tudo o
que podia fazer era dar um passo após o outro sem pestanejar, mas conseguiu. Se ele não
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tivesse seguido o conselho de Rakhal sobre o comprimento de estribos, ele não teria sido
capaz de andar. Agora ele não queria nem pensar na montaria do dia seguinte. Ainda assim,
se mover ajudou a relaxar os músculos. Ele conseguiu prender a égua e deixa-la pastar com
os outros.
O resto da caravana estava se preparando para a noite. Fogueiras foram acesas e o
cheiro de alimentos cozidos encheu o acampamento. Cyrillon acenou de uma das fogueiras,
onde seu aprendiz e sua tripulação haviam se reunido.
Korllen, o homem loiro barbudo, tinha preparado um ensopado de carne seca cozida
com frutas e grãos, pão de forma, e pão de mel com nozes. A barriga de Gareth roncou com
a visão. Ele se sentou em um lugar vazio no círculo. O menino, Alric, sorriu timidamente.
Além do jaco de costume, o cozinheiro também havia feito um pote de algo quente e
de cheiro forte. Ele estendeu uma caneca de cerâmica e indicou que Gareth bebesse. A
infusão estava quente o suficiente para queimar, mas Gareth conseguiu tomar um gole. O
gosto era muito pior do que o cheiro. Korllen deu um aceno encorajador. Outro gole e um
formigamento quente se propagou na boca de Gareth. O sabor era parecido com vinagre e
cinzas. Ele fez uma careta e abaicxou a caneca.
- Isso não é uma boa ideia. - Rakhal falou do outro lado de Alric. - Se você acha o gosto
é ruim agora, é dez vezes pior se você deixá-lo esfriar.
Korllen grunhiu e voltou sua atenção para a panela como se dissesse que tinha feito o
que podia, e se Gareth era bastante tolo para recusar a bebida, ele não seria responsável
pelas consequências.
Você queria aventura. Gareth disse a si mesmo. Bem, aqui está mais uma coisa que
você nunca fez antes.
Ele soprou o vapor, tanto reunir coragem e tomou um gole tão grande quanto
conseguia. O calor atingiu sua garganta, num primeiro momento na fronteira da dor, mas
desaparecendo rapidamente. Animado, ele bebeu outro gole. Ou seu paladar tinha
entorpecido ou a coisa não era tão ruim. A sensação de bem-estar infiltrou em seu corpo.
Seus músculos não doíam mais. Ele não tinha sentido nenhum indício de álcool na bebida,
mas sentiu o mesmo tipo de relaxamento e cordialidade que sentia depois de várias taças
de vinho. Quando Korllen serviu o ensopado, ele aceitou a sua parte com uma emoção que
beirava o prazer. Estava delicioso, uma fascinante textura em cada ingrediente. Ele não
conseguia se lembrar de qualquer refeição no Castelo, mesmo à mesa do Regente no
banquete do Festival do Meio do Inverno, que tivesse um gosto tão bom. Do outro lado do
fogo, Cyrillon acenou para ele e, em seguida, voltou para sua conversa com um de seus
homens, algo sobre os cavalos que puxavam a carroça.
Após a refeição, Tomas e Korllen se retiraram. Gareth suspeita que tinham ido jogar.
Cyrillon cantava algumas músicas, acompanhado por uma flauta de Rakhal. Algumas delas
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Gareth nunca tinha ouvido antes. Ele suspeitou que ou eram muito velhas ou vinham das
profundezas dos desertos além Shainsa.
No meio da música, os sentidos de Gareth voltaram ao normal. Ele ainda se sentia
relaxado, mas lúcido agora. O calor se instalou em seus tendões e articulações. Ele
suspeitava que iria dormir bem e acordar com muito menos rigidez. A poção, fosse o que
fosse, tinha sido um presente gentil.
A noite tinha caído completamente. Quando a terra exalava o último resquício do
calor do dia, um frio parecia descer do céu. Das quatro luas, apenas a azul-esverdeada
Kyrrdis brilhava da faixa leitosa de estrelas. As fogueiras estavam apagando. Uma labareda
ocasional se erguia das brasas, cada uma menor e mais rápida do que a anterior.
Gareth olhou ao redor do acampamento o quanto podia ver na escuridão invasora.
Rakhal, Alric e os outros tinham ido para a cama. Apenas Gareth, Cyrillon e um dos
tropeiros permanecera. Um sentimento dominou Gareth. Algo que ele nunca tinha
experimentado em sua vida dentro das paredes de Thendara.
O mundo era mais vasto e mais vivo do que ele tinha sonhado. Em algum lugar lá fora,
no escuro, lobos uivaram nas terras selvagens além do Rio Kadarin. Banshees seguiam nos
passes das Hellers. Homens-gatos rondavam. Talvez, escondidos nas florestas mais
distantes, os chieri dançavam sob a única lua. Através das areias áridas, oudrakhi se moviam
silenciosos, gigantes e desajeitados. Homens com lâminas de designs estranhos lutavam em
duelos de honra. Mulheres veladas observavam atrás de telas esculpidas em madeiras raras
e perfumadas. Ele queria ver tudo, provar tudo, dançar sob a lua e ouvir os segredos
sussurrados no perfume da noite.
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Capítulo 06

Linnea Storn fechou a porta para a sala de estar, encostou-se contra a madeira lisa e
fechou os olhos. Seus músculos doíam pelas horas de inatividade forçada durante o
trabalho da noite e sua espinha parecia ter sido arrancada e recolocada no copo. Ela
raramente sentia sua idade tão intensamente. O inverno passado parecia ter durado mais
tempo e sua umidade ter sido mais penetrante do que ela podia lembrar. Um pensamento
pairou na parte de trás de sua mente, uma verdade que ela ainda não estava pronta para
enfrentar, as primeiras limitações de sua vida como Guardiã. Sua mente podia ser tão clara
e seu laran tão poderoso como sempre, mas seu corpo acabaria por forçá-la a se aposentar
ou arriscar a vida e a sanidade dos leroni de seu círculo. Para reunir as energias psíquicas
focadas dos homens e mulheres, para tecer uma unidade e, em seguida, direcioná-la não
exigia apenas habilidade e concentração, mas também resistência física.
Pelo menos, ela deixaria uma Guardiã capaz e experiente em seu lugar. Se os deuses
fossem gentis, ela poderia ter tempo para começar a treinar outra.
Um dos noviços acendeu a lareira que ainda brilhava intensamente e deixou uma
bandeja com um jarro de jaco e um prato de nozes e queijo seco que ela adorava. Linnea já
tinha comido o suficiente para acalmar a fome após o gasto de seu laran, e o cheiro da
comida revirou seu estômago. Até mesmo o conforto da sala, a lareira elegante, a mesinha
com uma caixa esculpida repleta de seus biscoitos favoritos, uma das velas de cera de
abelha, o par de cadeiras macias do tamanho adequado para um pequeno corpo de mulher,
a cesta de tricô de fácil acesso, nada disso a ajudou a se acalmar.
Na verdade, ela não podia culpar o clima ou os anos por sua fadiga atual. Essas duas
últimas noites ela tinha se sobrecarregado deliberadamente, usando a disciplina do círculo
de matriz para evitar continuar pensando em Gareth.
Ela tinha sido tolamente indulgente ao deixá-lo ir? O mundo tinha uma enorme
quantidade de perigos: bandidos, deslizamentos, quedas e formigas-escorpião, por
exemplo. Carthon estava na beira das Cidades Secas e essas pessoas ferozes nunca eram
amigáveis com os Domínios. Os homens eram considerados fanáticos na defesa de seu
kihar, seu prestígio, e tão rápido em se envolver em um duelo quanto um piscar de olhos.
Qualquer coisa poderia acontecer lá, especialmente com um jovem acostumado a
privilégios.
Não pense nisso.
Ela se afastou da porta e foi até a janela. Metade do céu estava iluminado, ou assim
parecia.
E merade permanece na escuridão. Que humor sentimental! E na minha idade! Ela
esfregou os braços pelas camadas do xale de malha.
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Gareth não era muito diferente de qualquer outro nobre jovem do seu tempo. Ele era
um produto das antigas tradições do Comyn, e dos Elhalyn para piorar! , e da sociedade que
havia sido mudada para sempre pelos viajantes Terranan. Ele disse que viajaria com um
homem que Danilo confiava. Isso garantiria o bom comportamento de alguém realmente?
Gareth era menos preparado para se aventurar do que Domenic tinha sido, fugindo com os
viajantes? Ou mesmo Regis em seu tempo?...
Ah, amado! Você sonhou com as estrelas, mas nunca deixou este planeta. Tal foi o
preço da sua honra.
Ela e Danilo haviam abandonado as discussões e os ciúmes nascidos do amor pela
mesma pessoa. Uma vez que ela se ressentiu dele porque ele era o foco do coração do
marido. Mas a dor compartilhada tinha feito muito para acabar com a distância entre eles.
Linnea se moveu. Ela não podia receber um homem, nem mesmo o amante de seu
marido morto, em seus alojamentos enquanto usava as roupas de Guardiã. Esfregando a
parte de trás do pescoço, ela deixou cair o xale sobre o braço de uma cadeira e entrou em
seu quarto. Colocou um vestido comum de lã verde antiga que trouxera de Alto Barlavento
há muito tempo. Dentro de pouco tempo ela se sentiu menos gelada. Envolta no xale ela
ficou na frente da lareira, absorvendo o calor do fogo.
Gareth disse que Danilo conhecia esse homem, esse guia... Então Danilo poderia
acalmar seus próprio medos. Pelo menos alguns deles.
Ela se endireitou quando um som veio da porta. - Entre.
A porta se abriu, mas não foi Danilo que entrou, mas sim Illona Rider, Sub-Guardiã de
Linnea. Linnea não a tinha visto há alguns dias, pois a mulher mais nova tinha pedido um
breve descanso do círculo. Illona usava uma túnica até os joelhos sobre um vestido de
mangas compridas, o tipo de roupa quente e confortável apreciada pelas mulheres das
montanhas, afinal ela tinha sido treinada primeiramente na Torre Nevarsin nas Hellers. Um
fecho de borboleta filigranado de cobre prendia seu cabelo em um coque na parte de trás
do pescoço. Alguns fios sedosos emolduravam seu rosto.
- Oh! - Ela exclamou, captando mentalmente a surpresa mascarada de Linnea. Suas
bochechas tinham uma cor delicada. Ela parecia mais jovem do que sua idade. - Estou me
intrometendo? Você estava esperando outra pessoa?
- Eu estava, mas isso não significa que você está se intrometendo. Por favor, sente-se.
Illona olhou para a cadeira indicada e balançou a cabeça. Illona apertou as mãos,
depois afrouxou-as. Linnea nunca a tinha visto tão incerta. Illona era uma das mulheres
jovens mais autoconfiantes que ela conhecia.
Preocupada agora, Linnea estendeu sua mente. Apesar da evidente ansiedade de
Illona, nada de seu estado interior vazou através de suas barreiras de laran. Tudo o que
precisava dizer, ela pretendia falar em voz alta.
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- Muito bem. - Linnea se retirou do contato e firmou seus traços faciais com seriedade.
- Você veio falar comigo de mulher para mulher ou como uma leronis com sua Guardiã?
- Ambos. - A voz de Illona não carregava a fragilidade artificial de um esforço para
mascarar a agitação interna. - Acabei de vir de uma conversa com Michala - ela disse,
referindo-se a mais idosa dentre seus dois monitores, emprestada da Torre Dalereuth até
que Raynelle tivesse experiência suficiente para trabalhar sozinha - e ela confirmou o que
eu suspeitava. - Illona prendeu o fôlego. - Estou grávida.
- Oh, minha querida! - As palavras saíram antes que Linnea pudesse controlar ou
mesmo analisar seus próprios sentimentos confusos. Qualquer criança que resultasse dessa
gestação, um filho ou filha de dois poderosos telepatas para fortalecer o talento, significava
que Illona deveria desistir agora de seu trabalho, independência... Uma independência
inundada de tantas memórias... É arriscado, afinal, trabalhar num círculo de matriz nesse
estado, tanto para a mãe quanto para a criança.
Quando se conheceram, Regis emanava tristeza e, em um momento de compaixão, ela
se ofereceu para lhe dar filhos depois que duas crianças dele tinham sido mortas por
assassinos. Então ele lhe respondera: - Há tão poucos de vocês agora, os que podem
trabalhar nas telas de matriz. Como posso apagar mais luzes em nosso mundo?
Então ela havia escolhido, primeiro o trabalho exigente que só ela poderia se fazer, só
depois deixá-lo de lado para trazer ao mundo e criar seus filhos, e agora ela recebera uma
espécie de segunda vida que era apenas dela. Mas Ilona ainda não enfrentara essas
escolhas.
Domenic sabe?
- Ainda não. Vim até você primeiro.
- Oh, minha querida! - Parecia não haver mais nada que ela pudesse dizer. As duas
mulheres se abraçaram, rindo e soluçando ao mesmo tempo.
- Vou sentir muito a sua falta. - Linnea suspirou.
Illona recuou, encarando Linnea com sua habitual expressão prática. - Eu ainda não
decidi todos os detalhes. Devo falar com Domenic primeiro. Mas não tenho intenção de ir a
lugar nenhum.
Certamente Illona entendia por que ela não podia continuar a fazer o trabalho de
matriz. Todo estudante aprendia os princípios de monitorar as vias de energia psíquica no
corpo. Os mesmos canais que carregavam o laran também carregavam energia sexual,
fluindo através dos nós ao longo da espinha, o coração e os órgãos reprodutivos. Por esta
razão, a puberdade era muitas vezes um tempo perigoso para uma jovem telepata, quando
sentimentos sexuais e dons psíquicos despertavam, ameaçando sobrecarregar os canais de
energon. A própria Linnea sofreu apenas alguns ataques transitórios de desorientação e
náuseas, mas Regis quase morreu da doença do limiar.
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Uma mulher grávida arrisca não apenas a sua própria saúde, mas a vida de seu filho...
- Como sua Guardiã - Linnea declarou - não posso permitir que você trabalhe no
círculo.
- Claro. - Illona olhou para sua barriga, ainda plana sob sua túnica solta e vestido. - Mas
eu não serei uma inválida. Ainda posso trabalhar. Nós sempre temos mais candidatos à
Torre do que podemos acomodar. Eu pensei em usar minhas habilidades no ensino até o
bebê nascer.
- Sente-se. - Linnea indicou a cadeira mais próxima com um lampejo de seu olhar.
Illona respondeu à autoridade no gesto da Guardiã, sentando-se imediatamente e
dobrando as mãos na postura de um aluno.
- Eu entendo o seu desejo de continuar trabalhando. – Linnea disse, uma nota de
bondade em sua voz. - Realmente entendo. Também estive nessa mesma encruzilhada. Eu
era muito jovem quando conheci Regis, mas já estava realizando as funções de uma
Guardiã. Eu estava fazendo o que quase ninguém mais podia e o destino do nosso mundo
dependia desse trabalho. Era perigoso, pois os telepatas eram alvos dos Destruidores de
Mundos. Um risco que fiquei feliz, até ansiosa para enfrentar. Então eu reconheço, mais
intensamente do que você imagina, as escolhas que todos nós nas Torres precisamos fazer.
Illona, que estava ouvindo atentamente, agitou-se. - Eu cresci com histórias desse
tempo terrível, de envenenamentos e assassinatos realizados de forma a parecer acidentes,
mulheres morrendo no parto e as parteiras assassinadas antes que pudessem falar. E... - a
voz dela vacilou – bebês assassinados em seus berços. No entanto, esses tempos se foram.
A Federação se foi. Quem sabe se vão voltar? Se eles o fizerem, estaremos prontos. É por
isso que treinar jovens talentosos é tão importante.
- Sim, é. – Linnea concordou. - Eu não estava me referindo a qualquer ameaça externa.
Você está certa, estes são dias pacíficos. Evanda nos abençoou com um tempo para
recuperar nossos números e aprofundar nosso conhecimento. Não, eu quis dizer que, como
nós mulheres sempre enfrentamos escolhas difíceis. A partida da Federação pode ter
resolvido alguns problemas, mas não todos.
Illona ergeu o queixo.
- Uma leronis grávida é responsável não apenas por sua própria saúde, mas pelo bem-
estar de seu filho não nascido. - Linnea disse.
- Eu sei disso! Não sou ignorante e nem estúpida. É por isso que eu quero ensinar!
Ela está fora desequilibrada ou então veria a verdade sozinha, Linnea pensou com
compaixão. - O ensino carrega suas próprias responsabilidades. Você poderia ensinar por
uma hora, um dia, mesmo anos sem incidente. Mas nada é certo neste mundo, exceto o
nascimento e as neves do próximo inverno. Mesmo o aluno mais talentoso pode perder o
controle e, você como sua mestra, deve estar preparada para protegê-lo e a todos os
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outros na Torre. Você entende? Em uma Torre, um mestre faz mais do que dar palestras.
Nossa força torna possível para aqueles em nosso cuidado se esticarem, voarem... E,
ocasionalmente, cairem, sabendo que estaremos lá para pegá-los se tal coisa acontecesr...
Illona tinha ficado pálida. Ela não era, como ela mesma dissera, nem ignorante e nem
estúpida. Ela era uma leronis imensamente talentosa que um dia se tornaria uma das
melhores Guardiãs dos tempos modernos. Linnea se sentiu envergonhada por ter que
censurar ela.
- Se não passo... - Illona gaguejou. - Se é imprudente para mim ensinar, então o que
devo fazer? Eu não posso...eu não vou ser enviada para Armida! Me recuso a ser mimada
como flores de estufa!
- Não, claro que não! - O temperamento de Linnea rejeitou veementemente a ideia.
Illona e Domenic podiam nunca conseguir se casar, devido não apenas aos seus
compromissos com a Torre, mas ao status ilegítimo dela e o conservadorismo das mentes
fechadas do Conselho, mas ela não devia se separar do pai de seu filho. Entre telepatas, tal
coisa seria indescritivelmente cruel.
- Então, o que farei? - Os olhos de Illona estavam largos e brilhantes. - Vai leronis, o
que você fez?
Linnea hesitou. Ela não podia imaginar como explicar todas as coisas que mudaram
nas últimas duas gerações. No tempo de sua avó, esperava-se que uma Guardiã fosse não
apenas celibatária, mas virgem, mantido assim para sempre. Homens foram executados por
ousar um único olhar luxuriante direcionado a uma Guardiã. O casamento significava um
fim permanente ao trabalho de matriz e famílias nobres firmaram alianças em busca de
poder, prestígio e da reprodução dos dons de laran, independentemente dos desejos ou
talentos da mulher. Na época em que Linnea fora treinada como Guardiã, no entanto, as
coisas haviam mudado. Cleindori Aillard demonstrara que era possível que um trabalhador
de matriz fosse sexualmente ativo se precauções adequadas fossem tomadas. A própria
Linnea não era inexperiente quando ela e Regis se tornaram amantes.
Mesmo assim, ela não tinha sido poupada.
- Eu já tinha cessado meu trabalho como Guardiã quando engravidei de Dani. – Ela
disse com cuidado. - E então Regis se tornou Regente. Como Lorde Hastur, ele precisava de
uma castelã para o Castelo Comyn e uma parceira e aliada ao lidar com o Conselho, de um
lado, e a Federação do outro. Adicionado à criação de crianças, essas tarefas eram mais do
que suficientes para me manter ocupada.
- Mas se você não tivesse sido forçada a tal responsabilidade, se você pudesse ter
escolhido sua própria vida...
- Minha vida foi com Regis. - Linnea recuou às lágrimas em sua própria voz. - Se o
preço era assumir a posição de Lady Hastur, então eu pagaria de bom grado.
O s f i l h o s d o s r e i s | 54

- Então você desistiu? - Illona disse de forma apaixonada.


- Eu não desisti! Eu realizei o trabalho honroso e necessário que me foi dado! Assim
como você pode fazer, assim como as mulheres sempre fizeram. Criança, você tem tanto o
anseio quanto o talento para atuar como uma Guardiã, então você nunca teve que
enfrentar a dura realidade quando o desejo e a habilidade são incompatíveis. Você nunca
teve que lutar com o fato de que nem sempre recebemos o que queremos, nem sempre
podemos ser o que queremos, e às vezes as coisas que mais valorizamos são tiradas de nós.
Não é justo, não é fácil, mas é assim que é.
Illona engoliu, claramente surpresa pela veemência de Linnea. - Eu sei muito pouco
sobre sua vida naquela época. Você está certa, não sei quais escolhas você enfrentou ou
que sacrifícios você sofreu. Me perdoe. Eu não pretendia ser desrespeitosa.
Linnea lutou para controlar suas emoções. Ela não pretendia que suas palavras fossem
tão duras ou que ela fosse tão combativa. A antiga perda não era culpa de Illona. Por um
momento estranho, ela sentiu como se a sala estivesse lotada de fantasmas das pessoas
amadas ausentes: Domenic, é claro, e Marguerida, que trouxe sensibilidades de fora-do-
mundo para serem discutidas, Regis e até Dyan Ardais com sua adesão brutal à antiga
ordem, Dani, seus netos Gareth, Derek e Regina-Javanne.
Ela passou as pontas dos dedos ao longo do pulso da mulher mais nova, o toque sutil
de um telepata para outro. O contato catalisou um momento de contato.
Você é a filha do meu espírito. Não gosto de discutir com você, especialmente em um
momento que deve ser uma ocasião de alegria para todos nós. Eu desejo de todo o coração
que você não precisasse enfrentar as mesmas decisões dolorosas, e que suas filhas e suas
netas tenham ainda mais liberdade.
- Estamos ambas cansadas. – Linnea disse em voz alta. - Vá e conte ao seu amado.
Depois de descansar e pensar, conversaremos novamente.
Depois que Illona saiu, Linnea permaneceu em seu assento, olhando para o fogo. A
sala parecia de alguma forma mais fria, sombria.
Ela deliberadamente mencionou apenas seu filho, Danilo Hastur, que cresceu na
família mais quente e amorosa que ela e Regis poderiam fornecer. No final, Dani recusou a
Regência e o domínio de Hastur, a fim de se casar com Miralys Elhalyn, a quem ele amava.
Ele parecia se contentar com sua escolha, gastando a maior parte do seu tempo na
administração do Castelo Elhalyn e suas propriedades, bem longe dos esquemas e
maquinações de Thendara. Removido da linha de sucessão, nem os parentes e nem sua
família seriam afetados pela maneira como Regis tinha seguido, nem cobrados.
Linnea fechou os olhos, desejando poder desligar a inundação de memórias.
Eu mencionei apenas meu filho, porque todo mundo sabe sobre ele. Sua existência não
foi mantida em segredo para proteger sua vida. Kierestelli...
O s f i l h o s d o s r e i s | 55

Em sua mente, ela podia ver o rosto da filha tão claramente como quando se
separaram há tantos anos atrás. Ela tinha os mesmos olhos cinzentos, mas o cabelo de Stelli
era mais brilhante em tom de cobre. Provavelmente estarua mais escuro agora.
Não, não pense nisso!
Ela se lembrava do sinal da beleza dos Hastur, a forma da bochecha de sua filha, as
mãos de dedos longos. Stelli tinha sido alta para a idade dela, graciosa como um chieri, com
um sorriso que iluminava todo o seu rosto.
A criança tinha sido concebida durante o breve e intenso tempo depois que os
Destruidores de Mundos quase destruíram Darkover. Linnea se separara de Regis quando
Stelli era pequena, indo viver na propriedade de sua família em Alto Barlavento. Ela não
podia retornar a uma Torre, não com a responsabilidade sobre uma criança, mas ela tocava
todos os dias, a cada momento. Quando ela e Regis se reconciliaram quando Danvan
morreu, ele lhe ofereceu uma chance de usar suas habilidades de laran mais uma vez. O
que nenhum deles percebeu então era que o perigo para Regis e sua família não havia
terminado com a derrota dos Destruidores de Mundos. Desesperado para protegê-la, Regis
havia escondido Stelli de seus inimigos. Ele não revelou a ninguém a localização dela para
que o segredo não fosse exposto e ela colocada em risco novamente.
Como a Linnea poderia culpá-lo? Como ela não poderia culpá-lo?
Ele voltou para procurar por ela, de novo e de novo, uma vez que o perigo passara.
Cada vez que ele voltou, parecia que um pedaço de sua alma tinha perecido. A vida tinha
que continuar.
Linnea precisava acreditar que, onde quer que Regis tivesse deixado Kierestelli e não
conseguira recuperá-la por qualquer motivo, ela tinha sido segura e amada. Linnea tivera
mais dois filhos, agora casados por escolha deles, e ela os amava com todo seu amor
maternal, mas em seu coração ela nunca deixou de lamentar por sua primogênita.
Eu não tinha escolha a não ser deixá-la ir. É por isso que estou tão perturbada agora
quando tenho uma escolha sobre Gareth? A mente era uma coisa estranha e caprichosa, o
coração ainda mais.

~o ⭐ o~
Danilo Syrtis enviou uma mensagem para adiar seu encontro, alegando um assunto
urgente. Então outro dia se passou, um dia em que Linnea elaborou um programa de
trabalho que seria seguro para Illona. Ela cumpriu sua tarefa com cuidado especial e
arrependimento por sua postura dura anterior. Ela tinha justificado isso como sendo
causado por suas próprias escolhas e sua aceitação pela perda de sua filha. Com as devidas
precauções, Illona poderia servir nas telas de retransmissão ou mesmo fazer o trabalho de
monitoramento, porém limitado.
O s f i l h o s d o s r e i s | 56

A noite estava caindo quando Danilo chegou. A névoa colorida no céu ocidental,
desaparecendo rapidamente no silêncio aveludado da noite que dava Darkover seu nome.
Apenas algumas estrelas brilhavam através das nuvens.
Linnea e Danilo sentaram-se frente a frente diante do fogo. O brilho das brasas
iluminava a cor de seus olhos. Linnea não captou nada de seus pensamentos, mas isso não
era incomum. Danilo sempre foi uma pessoa intensamente privada. Ele tinha que ser, como
paxman e amante do homem mais extravagantemente público de Darkover.
- Peço desculpas para adiar nossa reunião. – Ele disse. - Uma questão surgiu e exigiu
minha atenção imediata.
- É algo que eu possa ajudá-lo?
- Na verdade, é tão de seu interesse e preocupação, quanto meu. O jovem Gareth não
foi visto a três dias.
Claramente ou ele não sabia que Gareth tinha saído com o tal homem, ou Danilo não
sabia do plano de Gareth. Resumidamente Linnea examinou sua consciência sobre a
confidencialidade do que sabia. Gareth tinha enganado ela, talvez porque ele não queria
mentir totalmente. Embora ela não pudesse ler os pensamentos de Danilo, ela sentiu sua
ansiedade como um arrepio através de seus próprios ossos.
- Ele foi para Carthon com um homem que ele disse ser conhecido por você.
- Carthon! Que idiota, irresponsável! O que o possuiu para ele querer fazer isso?
Ela tomou um gole de sua tisana de hortelã com mel, dando-lhe um momento para
responder.
- Algo como isso tinha que acontecer mais cedo ou mais tarde. – Ela disse e ele
balançou a cabeça. - Gareth nunca vai ser feliz com uma vida na Corte onde ele não tem
nada melhor para fazer do que ficar esperando, rodeado por intrigas. Nenhum trabalho
verdadeiro e importante lhe foi dado para fazer.
- E de quem é a culpa?
- Temos que todos nós devemos compartilhar a culpa. Poderia ter sido melhor mantê-
lo em Elhalyn quando era mais jovem, onde ele poderia crescer aprendendo a gerenciar as
propriedades da família, mas é tarde demais para isso agora. Aqui em Thendara ele
enfrenta um lembrete constante de que os jovens da sua idade, como Domenic, já estão
criando seu lugar no mundo.
É uma pena que Gareth não tem um chamado para o trabalho na Torre. Linnea
pensou. Ele tem o talento, certamente, mas seu coração não estaria feliz ali.
- Mas Carthon, dentre todos os lugares?! - Danilo exclamou. - Gareth é... Bem, ele é
um bom rapaz sob esse exterior mimado, mas não tem nenhuma experiência em lidar nem
com ele mesmo em uma crise.
O s f i l h o s d o s r e i s | 57

Linnea franziu a testa. Carthon podia ser duro e sem lei comparado a Thendara, mas se
passara muito tempo desde a última guerra formal entre as Cidades Secas e os Domínios. -
Isso é provável que ocorra? Em Carthon?
Danilo se mexeu em seu assento e Linnea pegou um lampejo de emoção desprotegida.
Seus olhos ficaram tensos.
- Eu não sei. – Ele disse sem encarar seu olhar.
- Então me diga o que você suspeita. Ou teme.
Ele hesitou visivelmente, talvez pesando as responsabilidades da discrição com sua
confiança. - É possível, remotamente, que a Federação tenha secretamente voltado a
Darkover.
- Que motivo você tem para tal suspeita?
- Muito pouco, na verdade, além da probabilidade de que isso vai acontecer mais cedo
ou mais tarde. A posição de Darkover no braço galáctico é importante demais para ser
abandonada por tempo indeterminado.
Isso era de conhecimento comum, embora Linnea raramente pensasse nisso. Jeram
vinha treinando um grupo de jovens para ouvir qualquer comunicação com o equipamento
no antigo complexo do QG Terran.
- Não, - Danilo disse como se sentisse sua linha de pensamento - não ouvimos nada
diretamente e Jeram acredita que o aparelho está a funcionando corretamente. Mas...
Você sabe que Domenic tem uma forma estranha de laran. Ele pode detectar mudanças no
próprio planeta.
- Atividade sísmica, creio eu. - Ela concordou. O talento do herdeiro do Regente tinha
se tornado um assunto repleto de curiosidade. Ninguém sabia ao certo o que ele podia
captar. Atividade sísmica, ela repetiu para si mesma, depois captou o pensamento de
Danilo. - Tremores de impacto? De um pouso de nave estelar?
- Nós não sabemos. Domenic diz que é tão fraco que devem ser provenientes de uma
longa distância. Ele não pôde determinar exatamente de onde, somente a direção geral.
Além das Cidades Secas.
- Carthon? Abençoada Cassilda, para o que eu enviei Gareth?
Danilo balançou a cabeça. - Nós não acreditamos nisso totalmente. Pode ser outra
coisa ou até mesmo nada. Mesmo que seja uma nave da Federação, não sabemos por que
eles não usariam o espaçoporto aqui. Se fosse um pouso de emergência, eles poderiam ter
nos contactado da forma habitual.
- Não houve nada nas telas de retransmissão para sugerir tal calamidade. É difícil
imaginar uma situação como essa, o terror, a dor, sem uma ou outra das Torres perceber.
- Isso supondo que os Terranan envolvidos tivessem laran suficiente para chegar até
você, certo? E se o desastre ocorresse no espaço?
O s f i l h o s d o s r e i s | 58

- Muitos fora-do-mundo têm uma pequena dose de talentos psíquicos. – Linnea


explicou. - Nós costumávamos acreditar no contrário, mas agora sabemos que os membros
do Comyn não são os únicos com dons. Mesmo que um indivíduo não seja forte o
suficiente, muitas mentes, quando alimentadas por terror ou desespero, podem fazer
coisas extraordinárias.
Danilo assentiu pensativamente. - De qualquer forma, pedi ao meu agente para
investigar a situação. Pode ser como tememos ou não ser nada. Independentemente disso,
não estou feliz com Gareth... – Ele parou.
- ... Ficando no caminho. - Ela terminou a frase. - Fazendo uma bagunça nisso? Não, ele
tem minha confiança. Eu sei que ele se comportou tolamente no passado, mas ele
trabalhou duro para mudar suas falhas. Pense em como ele se aplicou em seus estudos de
idiomas, como você aconselhou, e a como se dedica no trabalho de matriz comigo. Ele
ainda não se provou, mas acredito que irá.
Um sorriso pairou nos cantos dos olhos de Danilo. - Você o vê com o amor constante
de uma avó.
- E você, tendo amado seu avô, não?
- Você sabe que sim. - Danilo não fez nenhuma oferta de um toque físico, nenhum
gesto de garantia, mas ela notou a sutil mudança na tensão em torno de sua boca, os tons
harmônicos em sua voz. - Você quer que eu mande alguém atrás dele? Caravanas viajam
muito mais devagar do que os homens montados e Cyrillon vai ficar na estrada principal.
Enviar alguém atrás dele? Para arrastá-lo para casa em desgraça como um filhote de
cachorro fugitivo ou uma criança desobediente? Isso destruiria a confiança entre eles e
provavelmente também o destruiria.
- Eu não pensei nisso. – Ele disse. - No entanto, se vai acalmar sua mente, posso enviar
um mensageiro para a casa de Cyrillon em Carthon. Dessa forma, saberemos que eles
chegaram com segurança.
- Não acho que podemos fazer mais neste momento.
O olhar de Danilo floresceu e Linnea se perguntou se ele estava lembrando de como
Regis tinha ido invadir o castelo Aldaran quando Danilo tinha sido levado como prisioneiro.
Regis tinha, o que, dezesseis anos? Dezessete? E Danilo tinha a mesma idade, ambos mais
jovens do que Gareth era agora. Se Danvan Hastur tivesse despachado homens para trazer
Regis de volta, Danilo poderia não ter sobrevivido. Pior, a Rebelião de Sharra poderia ter
tido sucesso.
Regis...
Um desejo a dominou, sacudindo-a mais fundo do que qualquer fome física. Ela não
podia fazer nada por Gareth, mas Gareth tinha ido em uma aventura de sua própria
escolha.
O s f i l h o s d o s r e i s | 59

- Danilo, eu nunca te perguntei , - Linnea começou, sua voz falhando um pouco com a
pressa da inesperada emoção - mas se você não souber, duvido que qualquer homem no
mundo saiba. Regis lhe confiou a informação? Ele te disse onde escondeu Kierestelli?
Danilo ficou em silêncio por um longo momento. - Ele nunca disse. Suspeito que fosse
pelas mesmas razões pelas quais ele nunca lhe disse, para mantê-la escondida e para nos
manter a salvo de torturas. O que não sabíamos, não poderíamos ser forçados a dizer.
Aqueles eram momentos perigosos para todos nós.
Minha filha, minha linda menina! Onde ela estaria agora? Em alguma aldeia ou casada
com algum Lorde menor? Desgastada com a criação dos filhos ou morta em algum parto?
Não. Eu teria sentido se ela tivesse morrido.
- Ele nunca me disse, repetiu Danilo - mas pode ter dito a outra pessoa.
- Quem era mais próximo dele do que você?
- Lew Alton, à seu modo.
Linnea manteve suas feições controladas com esforço, mas não pôde disfarçar
inteiramente a impaciência em sua voz. - O que Lew poderia saber? Quando Kierestelli
nasceu, ele estava fora do planeta, representando Darkover no Senado Imperial.
Talvez Danilo tivesse alguma razão em pensar isso. Lew e Regis tinham um tipo
diferente de intimidade do que ela e Danilo tiveram. Sua amizade de infância e o fato de
serem irmãos em armas era um vínculo diferente daquele entre amantes. Ela sabia muito
pouco dos primeiros anos da vida de Regis. Ele havia sido criado por algum tempo na
propriedade dos Altons em Armida durante os anos iniciais de sua adolescência. Ele e Lew
renovaram sua antiga amizade depois que Lew retornou a Darkover.
Linnea sentiu os joelhos tremendo. Danilo também parecia cansado. Ela lhe desejou
boa noite como os velhos amigos que tinham se tornado, apertou seu xale em volta de seus
ombros e se preparou para o trabalho noturno. Ela iria tentar, mas não tinha certeza se
conseguiria evitar plenamente os pensamentos.
O que mais eu poderia ter feito? Regis estava tão assustado com a possibilidade de que
ela fosse capturada por seus inimigos e usada contra ele. Eu pensei que seria só por um
tempo, até que fosse mais seguro. E agora é tarde demais... Não, não pode ser tarde
demais!
Ela parou na escada para olhar para fora de uma abertura nas janelas. O vento
diminuíra as nuvens de modo que Liriel, com sua luz radiante como um pavão, brilhava pela
abertura estreita. O coração de Linnea se encheu de esperança com a vista. O povo em sua
terra a chamavam de ‘Lua de Evanda’, a deusa da misericórdia.
Você esteve olhando para baixo para cuidar de minha filha até agora, óh Abençoada
Lady?
Talvez não fosse tarde demais, afinal.
O s f i l h o s d o s r e i s | 60

Capítulo 07

À medida que os dias passavam, Gareth se estabeleceu na rotina da caravana. Seu


corpo se ajustou às horas na sela, o ritmo de movimento e descanso, de refeições, sono e
música. A égua acabou por ter uma firmeza como couro e uma marcha que sacudia os
dentes de Gareth a cada passo. Ele não se importava. Pela primeira vez que conseguia
lembrar, ele estava livre, por conta própria. Qualquer coisa poderia acontecer e ele
esperava por isso.
Ele nunca tinha passado tempo com homens como esses, faladores e alegres, lidando
com os animais com facilidade e competência. Às vezes, um ou outro cantarolava uma
sintonia em uma escala heptatônica estranha. As palavras não estavam no dialeto das
Cidades Secas, mas sim em algum muito mais antigo. Gareth se sentia tímido ao redor deles
por medo de chamar a atenção para si mesmo. Seu sotaque, seu jeito, até mesmo os tons
avermelhados em seu cabelo, qualquer um deles poderia entregá-lo. De vez em quando, ele
pegava Cyrillon olhando para ele, mas o comerciante nunca o confrontou com perguntas,
deixando as interações diárias para seu aprendiz.
As colinas se tornaram mais robustas, cortadas por ravinas erodidas. De vez em
quando, eles paravam em uma aldeia, onde algumas moedas compravam uma refeição
quente e forragem para seus animais. A caravana encolheu em tamanho conforme alguns
vagões deixavam o grupo principal nas ramificações da estrada, até que o grupo consistira
apenas dos próprios homens de Cyrillon e seus dois vagões. Gareth era o único estranho
entre eles.
A dois dias de distância de Carthon, enquanto seguiam através de uma garganta
estreita e sinuosa com fortes correntes, o eixo de um dos vagões quebrou. Levou a maior
parte da tarde para substituí-lo com o reserva. Quando o sol estava baixo, lançando o
desfiladeiro em profundas sombras roxas, um dos cavalos que puxava o outro vagão
começou a mancar. Uma pedra tinha ficado presa no meio da ferradura e de seu casco.
Gareth deu a ideia de continuar sem o cavalo e usar um dos cavalos de montaria para puxar
a carroça, mas Cyrillon disse que havia lobos nessas colinas e o pobre animal não seria
capaz de se defender ou fugir. Rakhal passou um longo tempo embalando a pata do pobre
animal, apalpando a coxa e, depois de fazer o cavalo andar para cima e para baixo, disse
que o casco deveria ser tratado com um cataplasma e o cavalo deveria descansar por um
dia, então estaria apto para viajar novamente.
- Então vamos fazer isso. - Cyrillon disse. - Nós não podemos ir muito mais longe hoje
mesmo.
Eles refizeram seus passos para a boca do desfiladeiro, onde havia um pequeno vale
com grama e cercado de pequenas árvores. Gareth ajudou a soltar e organizar os animais.
O s f i l h o s d o s r e i s | 61

Com sua eficiência habitual, Korllen montou o acampamento, colocou outra caneca da
bebida mau cheirosa, abriu o barril de cerveja e logo a refeição da noite estava pronta.
Depois de terem comido, Cyrillon saiu para fazer uma ronda pelo acampamento. Ele
emergiu das sombras, pouco tempo depois, com a testa franzida.
- O que foi? - Rakhal perguntou.
- Não posso ver ou ouvir qualquer coisa fora do comum, nem mesmo os cavalos estão
inquietos, nem há sinais de lobos, mas algo em mim está gritando. Vamos colocar dois
guardas esta noite. Garrin, você pega o primeiro turno. Korllen também. Depois vou ficar de
vigia com Tomas.
- E quanto a mim? - Rakhal perguntou. – Vou ficar no vagão com Alric como se eu fosse
uma criança?
A carranca de Cyrillon aprofundou. - Nós já tivemos essa discussão antes e não mudei
de opinião.
Seus olhos se encontraram. Mesmo sem a sua pedra da estrela, Gareth sentiu o
desafio em Rakhal e a determinação de Cyrillon. Finalmente, Rakhal murmurou: - Eu ouço e
obedeço.
Gareth observou Rakhal ir para os cavalos, sentindo-se como se tivesse sido
inadvertidamente parte de uma antiga batalha particular. Ele se retirou e seguiu para os
poços de latrina. No caminho de volta, ele permaneceu por um momento nas linhas de
piquete com a égua castanha. Ela não levantou a cabeça ao seu toque, mas continuou
arrancando bocados de grama.
Rakhal, prateado à luz das duas luas, estava penteando a cauda de um dos cavalos de
carroça, completamente inconscientes de sua presença. Gareth em sua mente algo que
pudesse amenizar a aflição do rapaz, mas o que poderia dizer?
Aqueles que nos amam nos querem seguros, ou o mais perto disso... Mas como isso
seria possível nesta vida?
No entanto, ali estava ele, longe de paredes de Thendara, sem a escolta armada
adequada a um Elhalyn. Ele era a última pessoa com moral para dar conselhos sobre isso a
qualquer um. Quando olhou novamente, Rakhal tinha sumido na noite.
Quando Gareth voltou para a fogueira para assumir seu turno, o cozinheiro estava
esperando por ele. Cyrillon e os outros já estavam dormindo.
- Vou te ensinar como fazemos isso à maneira das Cidades Secas. – Korllen disse. - Um
de nós deve ficar entre os cavalos, no perímetro, e o outro fica aqui no acampamento. Vou
chamar você assim... - ele assobiou pelos dentes - ...e você deve me responder para que eu
saiba que não adormeceu.
Gareth tentou várias vezes imitar o assobio, com pouco sucesso.
- Bah! - Korllen exclamou. - Você parece uma cabra asmática!
O s f i l h o s d o s r e i s | 62

- Que tal agora? - Gareth usou as mãos sobre os lábios e soltou um ‘huu-huu’ de dois
tons.
- Isso é bem melhor - Korllen admitiu, acariciando sua barba - embora apenas alguém
tão surdo quando um oudrakhi confundiria isso para um verdadeiro pássaro-da-chuva.
Suponho que é tão bom quanto qualquer habitante das terras baixas pode fazer. Agora
vamos, atento e devagar ao redor do perímetro externo.
Além do pequeno círculo de fogo, o mundo estava em silêncio repleto de uma série de
sombras. Gareth se moveu lentamente enquanto seus olhos se adaptavam ao brilho de três
das quatro luas. O ar, embora rapidamente frio, era leve e os únicos sons vinham da
mastigação da grama pelos cavalos, o ocasional som elo de sua corrente ou o baque suave
da ponta de um casco contra uma pedra. Não havia sinal dos lobos que Cyrillon mencionou.
- Tweet! - Veio o assobio de Korllen do acampamento.
- Huu-huu! - Gareth respondeu. A égua marrom levantou a cabeça, as orelhas em
alerta e ele deu um tapinha no pescoço dela. - Sim, também acho que é um pouco bobo. -
Ela soprou suavemente através de suas narinas e voltou sua atenção para a grama.
Gareth completou seu circuito e ficou confortável, estendendo-se ao lado do fogo.
Após um tempo adequado, ele assoviou sua imitação de pássaro-da-chuva, sendo
respondido por um apito distante. A temperatura estava caindo agora, embora ele achasse
que não iria chover. As brasas pareciam um calor sedutor. Seus músculos doíam, inchados e
pesados... Tão pesados...
Inicialmente ele percebeu que, naqueles poucos minutos, seus olhos haviam se
fechado. Ele realmente tinha adormecido? Quanto tempo se passara? Ele se sentou com o
coração acelerado.
- Huu-huu! – O assovio de Gareth parecia mais alto e ainda menos realista do que o
habitual.
- Tweet! - Veio o assovio tranquilizador.
Era melhor não deitar novamente. Depois de outro intervalo, Gareth repetiu seu
assovio.
Silêncio.
Ele piscou, imaginando se poderia ter adormecido novamente sem perceber.
- Huu-huu!
Embora Gareth continuasse esperando a resposta atentamente, ele não ouviu nada.
Korllen estava brincando com ele, provocando-o por seu lapso, se divertindo com o recém-
chegado? O que ele deveria fazer? Cyrillon e os outros dormiam nos vagões e, sem dúvida,
não gostariam de ser despertados sem motivos.
Uma ideia iluminou a mente de Gareth. Ele se esgueiraria até Korllen e viraria a
brincadeira contra ele. Movendo-se tão silenciosamente quanto podia, Gareth andou pelo
O s f i l h o s d o s r e i s | 63

acampamento. O brilho laranja do fogo recuou atrás dele. Ele seguiu a mesma rota de
antes, circulando os cavalos. Esatava mais escuro agora, Idriel já tendo sumido atrás da
crista do desfiladeiro. Um dos cavalos exalou e moveu o casco incomodado. Outro se
moveu, inquieto. Em sua mente, Gareth viu suas cabeças levantarem, as narinas alargando,
sondando...
Ele parou. A adrenalina dominando seus nervos o suficiente para deixá-lo incerto. Ele
percebeu então que havia deixado sua espada no acampamento. Lentamente colocou a
mão na boca.
- Hoo-hoo! - Vacilante, quase como uma última tentativa, desta vez seu grito
realmente soou como um pássaro-da-chuva.
O Silêncio o respondeu. Naquele instante, uma certeza varreu sua mente. Além do
único carvalho vermelho, um punhado de homens estavam agachados. Usando seu laran,
mesmo isolado pelo amuleto, ele podia sentir o cheiro do ferro nas mãos deles...
Ele não ousou chamar Korllen novamente. Se ele fizesse o menor som, os intrusos
seriam avisados. Eles esperavam usar surpresa como vantagem, então sustentariam seu
ataque até que estivessem mais próximos.
Gareth deu um passo para trás e depois outro. Sua bota desceu em uma pedra e ela se
moveu sob seu peso. Para seus ouvidos, o clique parecia intensamente alto, um alarme tão
estridente quanto uma trombeta. Ao seu lado, um dos cavalos balançou a cabeça, os aros
das correntes fazendo um som sutil. Gareth soltou a respiração.
Outro passo, outro, e, quando alcançou o longo trecho entre os cavalos que pastavam,
Gareth correu pela curta distância até o acampamento. Ele pegou sua espada e empurrou
com uma mão a pesada lona que fechava a entrada do vagão mais próximo.
- Cyrillon! - Ele chamou, tentando manter sua voz baixa. - Acorde!
- O que foi, rapaz? - Na escuridão só pôde ouvir o farfalhar das roupas.
- Há homens ao sul da posição de Korllen, lá fora. Ele não responde e...
- Eles te viram?
- Acho que não.
- Hai-yah! Hai! Hai! Hai! - Uma série de gritos, aumentando em ondas de ululações de
gelar o sangue, quebrou a quietude da noite.
Um instante depois, o acampamento estava repleto de homens lutando. Bandidos,
meia dúzia, pelo menos, na escuridão. Eles pareciam vir de todas as direções de uma só vez.
Cyrillon pulou da carroça, gritando. Aço se chocou contra o aço.
Com a espada sacada, Gareth se esforçou para ver algum adversário no escuro.
Alguém chutou o fogo, jogando uma cascata de faíscas no ar. O pequeno espaço foi
iluminado por pouco tempo, mas foi o suficiente para Gareth para ver um homem alto e
magro com uma camisa escura, empunhando uma espada curva. Ele correu em direção a
O s f i l h o s d o s r e i s | 64

Cyrillon, que estava focado em sua própria luta. Gareth se moveu para ajudar o Mestre da
Caravana, mas ele estava muito longe. No momento seguinte, outro bandido saiu das
sombras agitadas.
Anos de treinamento com os melhores armadores do Comyn agora fluíram pelos
músculos de Gareth. Seu corpo reagiu mais rápido que seu pensamento. Ele parou, usando
o impulso do outro homem para fechar a distância e enfraquecer suas defesas. À medida
que eles se afastaram, circulando, Gareth avistou uma figura delgada pulando da carroça.
Rakhal!
A luz de brasa moribunda refletiu a lâmina sendo puxada de sua bainha, uma longa
faca ou espada curta, Gareth não podia ter certeza. Ele não teve um momento para pensar
nisso quando seu próprio adversário veio para ele rapidamente. Ele desviou o golpe, mas
não antes de ver como o ombro direito do homem se curvou, deixando o flanco oposto
aberto enquanto se afastava.
Do outro lado do acampamento, um grito atravessou o clamor de gritos e os choques
do aço. Podia ter sido Tomas, mas Gareth não sabia dizer. Ele não ousou quebrar sua
concentração para olhar e descobrir.
O brilho do fogo desapareceu rapidamente. Em um momento, ele ficou cego. O
bandido gritou e se atirou em Gareth, lâmina chicoteando pelo ar.
Gareth tropeçou para trás, atordoado pela ferocidade do ataque. A espada do outro
homem, visível apenas como uma linha fina como fio de cabelo refletida pelo luar, borrada
contra a noite. A visão comum era inútil agora. Por sorte ou algo mais, Gareth pegou a
lâmina do outro homem em equilíbrio preciso, sacudiu-a para um lado e pulou para frente.
A borda de sua própria espada atingiu o couro por um momento terrível antes de atingir a
pele.
O homem gritou, desta vez um rugido animal sem palavras. Gareth não podia dizer se
ele sentiu com seu laran ou apenas sentiu o corpo do outro homem se enrolar em si
mesmo e cair na terra.
A luz brilhante e amarela surgiu. Alguém havia jogado uma tocha no fogo que creceu
como uma chama menor que uma fogueira. Por um instante, Gareth não enfrentou
ninguém.
Dois corpos escuros estavam caídos no esterco. O homem Gareth havia ferido ainda
estava vivo, tentando, mas incapaz de ficar de pé. Tomas estava caído nas sombras ao lado
da segunda carroça, suas mãos apertando uma coxa que brilhava molhada e escura.
Cyrillon ainda lutava, segurando sua espada contra um homem muito menor. Rakhal se
abaixou e se afastou, evitando a espada de outro bandido, correndo para ferir qualquer um
deles no caminho.
Dois deles à esquerda! Não!
O s f i l h o s d o s r e i s | 65

Um terceiro atacante agora corria para Tomas. Como os outros, ele usava uma camisa
internas e calças soltas escondidas em botas, uma faixa em forma de cinto trespassado e
cinturão em seu peito. Com intenção mortal, o bandido se dirigiu para Tomas, que estava
desarmado e incapaz de se levantar.
O fogo queimou nos nervos de Gareth. O drytowner estava longe demais para chegar
em poucos passos. Antes que Gareth pudesse dar outro passo, no entanto, o homem girou
sua espada com uma surpreendente graça.
A espada drytowner foi em sua direção, mas não antes de Gareth mover a dele. A
lâmina de Gareth parecia viva em sua mão, uma extensão de seu próprio corpo. Ele sentiu o
toque de aço contra aço e, naquele instante, fluindo através das lâminas unidas, uma súbita
consciência sem palavras. Seu corpo sabia como o outro homem iria sae mover, a mudança
infinitesimal de peso para o seu lado mais forte, a curva da espinha inferior, a fraqueza mal
notada no outro joelho. Como uma luz solar penentrando por densas nuvens, Gareth notou
a abertura e atacou.
No instante seguinte, a visão de Gareth voltou ao normal. Ele havia fechado a distância
e agora estava dentro do círculo da guarda do adversário. O equilíbrio do outro homem
estava prejudicado. Ele se retorceu, lutando para usar a espada. Ele era rápido, mas não
tinha espaço e nem tempo. Gareth, com sua lâmina já em posição perfeita, se adiantou.
Subjulgado, o outro homem tropeçou e caiu de joelhos, espada girando livremente para
longe.
Mais uma vez, a sensação sobrenatural atingiu Gareth. Ele sabia, instantes antes, que
o outro homem sacaria uma adaga de dois gumes. Mas, antes que a lâmina inimiga
deixasse a bainha, Gareth usou a lateral de sua lâmina pressionada contra a garganta do
outro homem.
A mão do homem se abriu e a adaga, envenenada no estilo das Cidades Secas, caiu no
chão. Uma luz cintilou nos olhos cinzentos sinalizando uma aceitação estóica.
- Parem, todos vocês! - Gareth gritou no dialeto das Cidades Secas. - Ou ele morre!
Ele não ousou mover seu olhar para longe do homem a seus pés, mas ouviu os sons da
luta.
Cyrillon pediu a Rakhal para ajudá-lo a pegar as armas. Alguém alimentou o fogo e
Gareth, com um olhar melhor para o homem com quem tinha acabado de lutar, notou as
características fortes, nariz afilado, barba bem aparada, olhos inteligentes. A idade do
homem era difícil de mencionar. A luz cintilante lançou sombras profundas em torno da
boca e dos olhos, uma cicatriz irregular estava no alto de uma bochecha, mas não havia
nenhum tom cinza no cabelo pálido e trançado.
O s f i l h o s d o s r e i s | 66

Esse não é, Gareth pensou, o rosto de um homem que ficou desesperado com pobreza.
Um fora da lei, então? Um chefe de bandidos? O que ele estava fazendo, invadindo neste
lado do Carthon, ainda em território dos Domínios então?
- Quem é você que vem contra nós na noite como um covarde? - Gareth perguntou,
ainda no dialeto das Cidades Secas.
Atrás, Cyrillon respondeu: - Não peça a um homem que envergonhe sua casa. Faça o
que deve ser feito e rápido.
Por Aldones! Eles esperam que eu o mate!
E, no entanto, se a luta tivesse sido diferentemente, poderia ser Gareth de joelhos na
poeira misturada com sangue e este bandido segurando a espada. Esse estranho teria
mostrado misericórdia?
Do outro lado do acampamento, Tomas gemeu sw dor. Korllen ainda estava lá fora,
provavelmente morto.
Os olhos cinzentos olharam para trás, para Gareth, inabaláveis. Sem pensar, Gareth
estendeu a mão com seu laran sem alcançar nada em especial. Durante a luta ele sentira
uma unidade tão fluida com a lâmina e o adversário que o fato de agora não sentir nada da
mente do outro homem o assustou. Não havia presença telepática, o que não era surpresa
em um drytowner. Gareth sentiu apenas uma onda de emoção: orgulho feroz, admiração e,
sim, de medo. Mas não medo da morte, medo da feitiçaria do norte, a suspeita de que ele
não enfrentara um guerreiro humano, mas sim um demônio devorador de alma, um
Comyn.
- O que você está esperando? - Cyrillon disse em uma voz distorcida com tensão. - Não
há honra em torturar um adversário honrado.
O que ele realmente estava esperando? Seu aço era afiado, a lâmina só precisaria
tocar o pescoço ao longo da artéria do drytowner. Um impulso rápido e leve e seria o fim.
Ninguém o culparia. Todos esperavam por isso. O próprio homem derrotado estava
preparado para morrer. Um homem das Cidades Secas, mesmo um homem comum dos
Domínios, não hesitaria.
Mas, Gareth pensou selvagemente, eu não sou um homem comum. Não vivo por mim
mesmo, mas por meu sangue Elhalyn, e o sangue nas minhas veias é o sangue dos reis.
Quando adolescente, Gareth tinha sido cegado pela ideia do poder real e ainda pagava
o preço dessa tolice. Agora que ele tinha um lampejo sobre o que realmente significava ser
o herdeiro de Regis Hastur, e ele não queria ter nada a ver com isso. A calma o domoniou,
mas se era em resposta à barbárie da situação ou às suas próprias ações passadas, ele não
sabia dizer. Mesmo que ninguém em casa soubesse sua decisão aqui, ele saberia, e isso o
mudaria e tudo o que viesse depois.
O s f i l h o s d o s r e i s | 67

Um drytowner o levara a esse ponto, um homem cicatrizado e sujo que não teria um
momento de hesitação em acabar com a vida de Gareth.
Rapidamente, antes de seus nervos falharem, Gareth retirou sua lâmina. Que Cyrillon
lidasse com a situação.
Gareth andou pela noite, em direção aos cavalos. A visão do drytowner, aguardando
sua morte com orgulho estóico, agora o deixou enjoado. Seu estômago revirou e, se ele
passasse mal, preferia fazê-lo em particular.

~o ⭐ o~
Ele não tinha dado mais do que alguns passos quando ouviu o som de outro homem se
retorcendo entre os animais inquietos. Ele reconheceu a voz de Korllen e foi até ele.
O cozinheiro tinha levado um golpe na parte de trás da cabeça e estava mais surpreso
do que ferido. Gareth, tendo escorregado sua espada de volta na bainha, colocou o braço
do homem mais velho em seus ombros. Juntos eles voltaram ao acampamento.
Nos poucos minutos que Gareth tinha se afastado, a fogueira tinha sido construída
novamente, tochas acesas e colocadas nos suportes dos vagões. Rakhal estava ajoelhado ao
lado de Tomas, enfaixando sua coxa. A face do bandido caído havia sido coberta com sua
própria camisa e o que Gareth matara estava coberto por outra. O líder, como Gareth agora
reconhecia, estava diante de Cyrillon, segurando sua espada em ambas as mãos em uma
posição de oferta.
Eles se viraram quando Gareth e Korllen entraram no círculo iluminado. Um rubor
atingiu a pele escurecida pelo do sol do habitante das Cidades Secas.
- Você aceitará, então, a espada de Merach de Shainsa como pagamento dessa dívida?
– O drytowner perguntou.
- Eu não quero mais sua espada do que quero sua vida. – Gareth disse, ainda com
raiva. - Se você insiste, jure por sua honra que nunca irá invadir os Domínios novamente.
Por um instante, o drytowner não disse nada. Gareth sentiu seu choque. Então o
habitante das Cidades Secas, o tal Merach de Shainsa, fez um arco profundo e elaborado,
seu punho tocando a barriga, o coração e a testa.
- A antiga sabedoria nos diz que apenas um tolo retorna a uma batalha que ele não
pode ganhar. O homem sábio vive para lutar mais um dia. Posso saber o nome e a casa do
homem que detém kihar sobre mim?
- Meu nome é Garrin, se é isso que você quer saber. E você não me deve nada. Apenas
pegue seus mortos e feridos e vá!
- Garrin. - Merach disse o nome lentamente, como se estivesse testando a veracidade.
Ele se curvou novamente, um gesto abreviado desta vez, e com alguns gestos decisivos,
guiou seu bando de volta à noite.
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O menino Alric logo correu preparando água quente e ataduras. Tomas e Korllen
precisavam ser atendidos, mas o Mestre da Caravana e seu aprendiz escaparam ileso.
Cyrillon puxou Gareth de lado. - Você não tem ideia do que fez ao permitir que o
homem siga seu caminho.
- Eu não podia atacá-lo depois que ele ofereceu sua espada para mim. – Gareth disse.
Seus pensamentos saltaram e se atracaram como os cães enlouquecidos. - Esses bandidos
têm tão pouca honra que nos atacariam novamente ou levantariam uma disputa de sangue
contra mim?
- O oposto. - Cyrillon parecia sério. - Você não sabe quem ele é?
Gareth balançou a cabeça. - Merach de Shainsa, isso é tudo que sei. Ele mentiu?
- Merach não é um drytowner comum, mas sim um Lorde de Shainsa com laços de
parentesco com a Grande Casa. Não sei porque ele estava liderando um pequeno bando
invasos. Deve ter sido uma questão de kihar, seja dele mesmo ou de um membro de sua
família. Agora ele tem uma dívida com você que ele nunca poderá pagar. - Cyrillon baixou a
voz. - Podia ter sido mais gentil terminar com sua vida ao invés de deixá-lo sem qualquer
esperança de recuperar sua honra.
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Capítulo 08

A última parte de sua jornada demorou mais do que o esperado por causa dos dois
homens feridos. Korllen se recuperou o suficiente para retomar suas funções como
cozinheiro na segunda noite, embora seu rosto se contorcesse sempre que as rodas do
vagão passassem por cima de uma pedra. Tomas não podia andar, mas pelo menos sua
enxaqueca não era tão ruim.
No final do terceiro dia, eles passaram pela última colina. O sol, mais vermelho do que
o habitual contra a poeira insistente, inclinava-se no crepúsculo. Três luas estavam
agrupadas acima como um buquê pálido. De sua posição quase na frente da caravana,
Gareth olhou para uma ampla planície, onde Carthon se encontrava em uma curva no Rio
Kadarin, um grande monte de rocha esbranquiçada e tijolos. Em uma direção, sombras
escuras marcavam o sopé da cordilheira das Hellers. No outro, a um passeio de cerca de um
tenday, estava Shainsa.
Em um momento ou outro, Carthon tinha sido ocupada por forças das Cidades Secas e
dos Domínios. Suas ruínas, paredes muito quebradas e arquitetura mista demonstrava que
não era nem de uma cultura e nem da outra unicamente, mas sim um amálgama
desconfortável de ambas. Atualmente, sua importância primordial era como um lugar de
encontro e negociação, muitas vezes usada para equipar expedições. Seus mercados eram
conhecidos pelos fechos filigranados de borboleta apreciados pelas mulheres dos Domínios.
A caravana de Cyrillon marchou pelos arredores onde outros comerciantes já tinham
montado um acampamento fora dos portões da cidade. Um gritou, uma saudação no
dialeto das Cidades Secas soou e Cyrillon respondeu.
Equipes de homens paravam todos para perguntar o motivo para entrar na cidade. Os
guardas olharam para Gareth de forma estranha e feroz, com os rostos barbudos, cabelos
louros e as maçãs do rosto fortemente arqueadas. Eles carregavam abertamente suas
espadas e muitas facas como se sua masculinidade fosse medida pelo número de suas
armas.
Cyrillon parou sua carroça e se identificou, cumprimentando um dos homens pelo
nome. Passando dos portões, a principal estrada os levou para a praça central da cidade.
Mesmo para os padrões thendaran, o espaço era gigante. Uma enorme estrutura de pedra
opalescente dominava a área aberta, cercada por canteiros de flores brilhantemente
coloridas. Mais homens loiros visivelmente armados patrulhavam em frente às portas
duplas.
Um cortejo de comerciantes rebocando sacos de grãos e frutas secas em carrinhos
pesados havia os precedido na praça, acrescentando a profusão de cores e sons. Os
cavaleiros e tropeiros estavam agrupados em torno de várias fontes, uma das quais era
O s f i l h o s d o s r e i s | 70

claramente reservada para matar a sede do gado. Na névoa de poeira, Gareth não poderia
ver muito mais do que as formas gerais das barracas e manchas verdes, roxas e uma dúzia
de tons de marrom. Toldos sombreavam as frentes de lojas. Cabines e bancas estavam
repletas com bens de comércio e produtos esparramados sobre a extremidade da praça. O
ar tinha um cheiro alcalino e de especiarias. Gareth se sentia como se tivesse tropeçado nas
páginas de um romance.
Race Cargill, Agente Especial, olhou para fora, para a cidade da aventura...
Quando Cyrillon gesticulou uma parada, Korllen pegou seu pacote de pertences
pessoais do segundo vagão. Cyrillon entregou-lhe uma bolsa de couro surrada que tilintava
suavemente e os dois trocaram algumas palavras a respeito do curso para Shainsa. Rakhal
conduziu para perto de Gareth e estendeu uma corda de chumbo. Gareth olhou para a
corda.
- Este é o fim da nossa jornada. – Cyrillon disse. - Por lei e tradição, o cuidado de uma
caravana termina no centro da cidade de destino. Agora devo levar Tomas para sua família
e cuidar de meus bens e vagões.
Gareth pegou a corda de chumbo da égua. Agora ele estava verdadeiramente por
conta própria nessa estranha e misteriosa cidade, onde qualquer momento poderia tlsurgir
uma aventura. Ao mesmo tempo, ele se sentiu relutante em se separar da caravana.
- Uma palavra de cautela, Garrin dos Domínios. - Cyrillon acrescentou com um olhar
que sugeriu pela primeira vez que ele suspeitava de que 'Garrin' fosse um codinome. -
Carthon encontra-se na fronteira entre as terras que você conhece e aquelas onde a
ignorância dos costumes muitas vezes leva a consequências infelizes. - Ele enfatizou a
palavra de modo que isso poderia ter um significado de fatal em vez de apenas um
inconveniente. - Se você for a Shainsa ou Ardcarran, pelas leis desses lugares você deve
primeiro demonstrar seus respeitos na Grande Casa. Aqui em Carthon, pegamos um
caminho intermediário, não seguindo totalmente nem os costumes das Cidades Secas, nem
os dos Domínios. Nós não somos gentis com aqueles que atrapalham tal equilíbrio.
Gareth seguiu o olhar do comerciante em direção ao enorme edifício de pedra
branqueada pelo sol. Essa devia ser a Grande Casa, vazia durante os anos em que a cidade
pertencera aos Domínios, mas claramente habitada agora. Carthon podia não ser
formalmente parte das Cidades Secas, ainda não de qualquer maneira, mas seria sábio não
causar problemas.
- Obrigado pelo conselho. - Gareth disse e teria ido, mas Cyrillon acenou de lado pelos
agradecimentos com o ar de quem fez apenas o que a decência exigia.
Gareth abriu a boca para perguntar ao nome e direção de uma pousada respeitável,
mas depois percebeu que, como aprendiz de um mercador de lentes, ele teria recebido
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contatos locais, talvez até clientes, de seu mestre. Ele gaguejou uma despedida e observou
quando Cyrillon virou a carroça e desceu um dos caminhos que saiam da praça.
A égua puxou a corda com a boca no metal. Sedenta, ela havia sentido o cheiro da
água na fonte pública. Gareth, como todo Comyn, haviam sido ensinads a cuidar de sua
montaria antes de cuidar de seu próprio conforto. Ele afrouxou as rédeas e deixou a égua
beber.
A calha era larga e funda, um círculo de pedra em torno de um pilar central. As
estações com ventos mais fortes haviam virado as esculturas, deixando apenas um sinal das
figuras decorativas. Cada cavaleiro parava primeiro para dar algumas moedas a um homem
sentado em uma pilha de almofadas sob um dossel. O rosto do homem era tão obscurecido
que Gareth não pôde adivinhar sua idade, mas a barba era longa, amarela-pálida e os olhos
tão brilhantes quanto o aço. Tais olhos não perdiam nada e perdoavam ainda menos. Um
menino meio nu estava ajoelhado na sombra, abanando largamente para manter o frescor
de seu mestre.
Um homem no traje do povo da montanha se aproximou com um par de mulas, cujos
ombros e flancos estavam escuros com suor. Ele disse algumas palavras para o homem
barbudo, depois colocou vários anéis de cobre sobre um tapete. O coletor de imposto de
água levantou o queixo e não fez nenhum movimento para pegar o dinheiro. Murmurando,
o homem da montanha acrescentou mais dois. Desta vez a taxa foi aceita e guardada em
algum lugar nas vestes do coletor. Durante todo o tempo, o menino continuava abanando,
seu ritmo constante como se ele fosse uma das máquinas Terranans.
Gareth guiou o cavalo de carga e a égua para parar, sem nenhuma resistência já que
ela queria mesmo chegar à água. Ele escorregou para baixo, guiou com firmeza as rédeas e
se aproximou em um ângulo do coletor de impostos de água. Ela se opôs à parada por um
momento. Se ele tentasse puxá-la em linha reta, como acontecera com muitos cabaleiros
inexperientes que ele tinha observado, ela certamente teria firmado as patas, balançado a
cabeça para tentar e soltar de seu controle e se recusado a se mover. O velho truque
funcionou, desviando sua resistência e permitindo que ele se apresentasse de uma maneira
digna. O animal o seguiu, plácido como sempre.
- Estimável senhor, - disse Gareth no dialeto das Cidades Secas - como seu
discernimento aguçado já revelou, sou um estranho nesta cidade. Ansioso como estou para
mostrar todo o respeito aos seus costumes, estou na ignorância sobre direitos da água.
Talvez ‘direitos’ não fosse o termo devidamente diplomático para usar com um
funcionário, mas foi o melhor que Gareth pôde pensar. Ele havia memorizado os elogios
floridos que seu tutor assegurara que seria a diferença a forma normal de falar com alguém
para uma melhor classificação ou influência.
A expressão do coletor de impostos não vacilou. - Para os animais, dez anéis de cobre.
O s f i l h o s d o s r e i s | 72

Dez! O homem da montanha não pagara mais que cinco por suas duas mulas.
Naquele momento, Gareth notou vários homens se movendo pela multidão, talvez os
mesmos que questionavam todas as companhias que entravam na cidade. Ele não tinha
dúvidas de que também estavam cientes dele e que haviam mais homens que ele não
conseguia ver agora.
Gareth deu uma risada tola, bem praticada na Corte em Thendara. - Infelizmente, esta
pessoa pobre tem sido deficiente na previsão para dispor de tal moeda. - Movendo-se
lentamente, as mãos bem longe do punho de sua espada, ele cutucou dois dedos na bolsa
que usava abertamente e retirou um par de reis. Ele não tinha certeza de seu valor de
câmbio em anéis de cobre, quatro ou cinco, mas achava que devia ser um valor razoável.
As peças de reis tilintaram quando pousaram no tapete aos pés do coletor de
impostos. Por um momento, nada aconteceu além de um fraco aprofundamento da
carranca do funcionário. Então, com um movimento tão rápido que pareceu um borrão, as
moedas desapareceram.
Mantendo sua expressão impassível, Gareth se curvou e recuou, caminhando para trás
alguns passos para que um menino com par de cabras marrons empoeiradas tomasse seu
lugar.
A égua e o cavalo de carga empurraram suas cabeças para baixo, focados em beber
gananciosamente. Gareth mergulhou os dedos. A água, embora empoeirada e suja, era
surpreendentemente fria. Antes que os cavalos tivessem bebido tanto quanto queriam, sua
própria sede ameaçou o dominar. Ele ofereceu uma oração de agradecimentos, embora
não tivesse certeza de para qual divindade, quando os cavalos permitiram que ele os
levasse embora.
A praça estava ficando vazia, as multidões visivelmente mais escassas. Os
comerciantes estavam dobrando suas cabines. O coletor de impostos sobre a água parecia
ter adormecido, embalado pelo vento produzido pelo menino. As pessoas, algumas
mulheres, ainda se reuniam na área ao redor da segunda fonte. Algumas tinham o cabelo
escuro e o modesto vestido das mulheres das montanhas, movendo-se em silêncio e
falando entre si enquanto enchiam seus potes de cerâmica. Entre elas, Gareth viu outras
mulheres que deviam ser das Cidades secas. Elas mantinham suas cabeças orgulhosamente,
balançando seus quadris em um tilintar suave de suas correntes. Jóias brilhavam em seus
pulsos e cinturas e pendiam de orelhas apenas parcialmente escondidas por véus de gaze
com tons de borboletas. Elas lançaram olhares sorrateiros para ele e murmuraram frases no
dialeto das Cidades Secas, falando tão baixa e rapidamente que ele não conseguiu entender
o significado. Ele pegou uma palavra sendo repetida, charrat, talvez com o significado de
forasteiro, estranho, o mesmo de chaireth. Elas perceberam que ele estava olhando, mas
não se abalaram. Nunca em sua vida ele tinha visto algo tão bonito e misterioso.
O s f i l h o s d o s r e i s | 73

Gareth amarrou seus cavalos a um anel feito de um resistente granito rosa, mergulhou
as mãos na água clara da fonte e bebeu avidamente repetidas vezes até não conseguir
mais, e então encheu seus suportes de água. A água deu-lhe uma explosão de energia e
estava muito animado para sentir a fome. Haveria tempo para procurar uma pousada e dar
abrigo a seus animais, a noite ainda estava começando.
O anoitecer refrigerador tornou o ar doce e leve. Ele nunca se sentira tão ousado.
Durante anos ele brincou mentalmente com as aventuras de Race Cargill, Agente Secreto
Terran, mas agora estava experiementando um conto ainda mais vívido.
Um grupo de mulheres drytowners se aproximou da fonte, tagarelando. Elas não
pareciam menos misteriosos do que à primeira vista, envolvidas em camadas de véus
brilhantemente coloridos. Uma rajada da refrescante brisa noturna carregava seu perfume
almiscarado.
Ele não conseguia tirar os olhos de suas correntes. Pelo costume das Cidades Secas, as
mãos de cada mulher eram enfeitadas com uma pulseira de metal em cada pulso. As
pulseiras eram conectadas com uma longa corrente, presa por um anel de metal em seu
cinto, de modo que se ela movesse a mão, a outra se movia também ao redor da cintura.
Embora Gareth soubesse que os drytowners acorrentavam suas mulheres dessa
maneira, a realidade ainda o chocou e fascinou. Ele havia crescido cercado por mulheres
poderosas e independentes, ambas as suas avós eram forças consideráveis por si mesmas,
e a mãe de Domenic, Marguerida Alton, havia feito mais para moldar os tempos do que dez
homens comuns.
Que tipo de mulher se permitia ser algemada como propriedade de um homem que,
com toda a probabilidade, não a via como uma igual?
Repelido e curioso, ele passeou até a mulher mais próxima. Um véu de gaze
translúcida rosa, bordada em dourado e azul, a cobria, mas não escondia seu rosto. Ela
encontrou seu olhar corajosa, quase insolentemente. Ela tinha olhos pálidos e incolores,
cabelos amarelos como era típico de seu povo e sua pele exposta era levemente bronzeada.
Com graça flexível, ela se virou para mergulhar seu jarro no poço. Movendo suas correntes
em sua cintura tão habilmente que não impediram seu movimento, ela balançou o jarro o
colocando sobre um ombro.
Encorajado pela maneira direta da mulher, Gareth se aproximou. Ele sentiu seu
perfume de rosas e musk. Ele se perguntou como seria a voz dela, se ela afastaria o olhar
quando ele se aproximasse, se ela sorria em troca...
Sorrindo, ele a cumprimentou no dialeto das Cidades Secas, focando em usar o modo
mais respeitoso.
A dama de véu rosa congelou. Uma das outras mulheres engasgou em voz alta. Um
jarro de água caiu no chão, quebrando em alto e bom som.
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Pelos demônios de Zandru! O que eu fiz? Suas palavras foram impecavelmente


corteses, mesmo para os padrões normais.
No momento seguinte, ele se viu cercado por guardas armados. Por suas túnicas
elaboradamente douradas e capacetes emplumados, eles provavelmente serviam a algum
poderoso Lorde local. Seus rostos eram sombrios, suas mãos prontas nos cabos de suas
espadas.
Com um grande redemoinho de véus, gritos como um bando de pombas das
montanhas e uma confusão de correntes, as outras mulheres puxaram a dama para longe, a
apressando.
O principal dos guardas caminhou até Gareth. Gareth não era baixo, mas esse homem
era pelo menos uma cabeça mais alto e correspondentemente mais amplo no tórax. Gareth
notou um grupo de cicatrizes esbranquiças nos braços do homem e sulcos paralelos
profundos em uma bochecha.
- Que sujeira da mais baixa sarjeta em busca da morte ousa direcionar os olhos na
direção da concubina do Lorde Yvarin?
As entranhas de Gareth se contorceram quando ele percebeu que esse tal de Lorde
Yvarin devia ser o chefe da Grande Casa de Carthon. Ele tinha apenas mais um instante para
responder antes que essas espadas deixassem suas bainhas. Acima de tudo, ele não devia
fazer nada para impugnar a honra do guarda.
Ele pensou na emboscada e como era fácil entrar em uma briga. Na ocasião sua
espada parecera uma extensão fluida de seu corpo, ambos se movendo instintivamente. Ele
não tivera tempo e necessidade de pensar. A luta estava sobre ele antes aque percebesse.
Ele havia se movido sem considerar as probabilidades.
Ele não enfrentara três oponentes ao mesmo tempo, homens que o superavam em
tamanho e que claramente se felicitavam com a ideia de regar a poeira com o sangue dele.
Eu não estou aqui... Você não me nota...
Embora ele não quisesse nada mais do que se virar e correr, ou pelo menos se tornar
invisível, ele bateu as duas mãos nas laterais da cabeça, como ele tinha visto os
comerciantes fazerem para exagerar seu espanto.
- Verdadeiramente, estou surpreso, ó mais sábio e venerável senhor! Eu pensei que
estava na presença de uma deusa, um sonho enviado como um aviso da vida após a morte
se aproximando para os fiéis! Ela é realmente uma mulher viva? - Algum espírito
demoníaco parecia ter dominado seu cérebro, derramando uma frase depois da outra. - O
mais afortunado dos homens deve ser Lorde Yvarin que pode admirar essa beleza divina
sempre que quiser! Oh, o que eu fiz? Tal visão não pode ser adequada para homens
comuns...
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A próxima ideia que surgiu em sua cabeça foi a de implorar ao guarda choramingar
que preferia ter a luz dos olhos apagada em vez de perder a memória da concubina do
Grande Lorde. Mas esperava que sua língua não precisasse moldar tais palavras. Havia uma
excelente chance do guarda aceitar tal ideia.
Em Thendara, bancar o tolo sempre funcionara porque ninguém o levava a sério. Aqui,
obviamente não diminuiria a gravidade de sua ofensa. Os guardas não pareciam
impressionados com sua atuação. O cicatrizado franziu a testa ainda mais profundamente.
Sua enorme mão apertou o punho de uma de suas duas espadas.
Deuses, o que Race Cargill faria? Ele não teria se metido nessa bagunça em primeiro
lugar!
O coração de Gareth martelou tão alto que era quase certo que o guarda podia ouvi-
lo. Sua respiração travou em sua garganta. Ele se perguntou se alguém em casa saberia
sobre a indignidade de sua morte. Ainda assim, ele devia lutar, e provavelmente morrer,
com a honra que ainda possuia. Ele entrou em postura de luta e pegou sua espada. Se
Avarra fosse misericordiosa, seria rápido.
- Aí está você! – A voz de um menino gritou.
Uma figura vestida com as roupas das trilhas, empoeiradas, ficou entre Gareth e o
guarda.
Rakhal?
Agarrando o braço de Gareth, o aprendiz jogou os dois para o chão empoeirado, aos
pés do guarda, tagarelando tão rápido que Gareth entendeu apenas uma frase aqui e ali.
- ...guerreiro nobre e sagaz...mais misericordioso...
- O que é isso? – A voz do guarda rosnou de algum lugar acima da cabeça de Gareth.
-...meu irmão indigno... - Rakhal continuou - ...Tocado pelo sol, propenso a fantasias
selvagens...nenhum perigo...abandonei meu dever...permitindo-lhe, assim, ser assaltado
por suas sensibilidades...
- Garoto! Você é responsável por essa escória?
- ...Generosamente...seguir sua vida... - Rakhal balbuciou, lançando um discurso sobre
as virtudes de condescendência com os menos afortunados, sem mostrar qualquer sinal de
pausa nem mesmo para respirar.
- Eh, deixe-os, Sarn. - Veio uma voz de algum lugar na frente de Gareth, mais leve e
mais nasal do que a do guarda cicatrizado. Sobre os pedidos incessantes de Rakhal, Gareth
ouviu: - Eles não valem o esforço de limpar sua lâmina depois.
- Você teria que purificá-la ritualmente! - Um terceiro homem disse.
Uma rodada de gargalhadas ecoou por outras vozes a alguma distância em resposta.
Rakhal se esforçou para ficar de pé, deixando Gareth ainda no chão.
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- Oh mais astuto e valioso servo do Grande Lorde Yvarin, permita que esta pessoa
humilde corrija suas ações errôneas e absolutamente imperdoáveis...
- Fora do caminho, pele escrava! E leve essa carniça com você! – O primeiro guarda
zombou.
Gareth ousou levantar a cabeça apenas a tempo de ver o homem marcado escorregar
algo em sua faixa dobrada. Rakhal puxou Gareth de pé e o empurrou para a beira da praça.
Gareth teve apenas um momento para perceber que nem uma única mulher permanecera
perto da fonte.
O alívio de ainda estar vivo e inteiro o deixou tonto, e depois a noção preocupante de
quão facilmente ele havia invadido um terreno proibido o dominou. Que idiota arrogante
ele tinha sido! Se não fosse a intervenção de Rakhal e a disposição do guarda em aceitar
aquela desculpa, o incidente poderia ter terminado de forma bastante diferente.
- Você! Fique bem aqui! Não fale com ninguém! Nem sequer olhe para ninguém! -
Com um brilho no olhar que poderia congelar o Kadarin, Rakhal foi recuperar os cavalos de
Gareth.
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Capítulo 09

Gareth se arrastou atrás de Rakhal ao longo de uma rua estreita, mal capaz de ver seus
próprios pés à luz das tochas amplamente espaçadas. O último resquício de adrenalina
havia desaparecido junto com o sol e Gareth sentia todos os seus ossos doloridoas. A égua
marrom havia tomado uma repentina antipatia ao cavalo de carga, batendo as orelhas e
mostrando seus longos dentes amarelos. A segunda vez que ela tentou girar e chutar,
Rakhal agarrou suas rédeas e a moveu em um círculo curto, amaldiçoando sem
sensibilidade. Alguns momentos depois, a égua parecia ter esquecido sua animosidade e
ficara totalmente feliz em andar em silêncio ao lado do outro cavalo.
- Obrigado pelo que fez na fonte. Não sei o que teria acontecido se... - Gareth parou.
Ele sabia, só não queria pensar sobre isso. Toda essa aventura tinha sido criminalmente
imprudente, se aventurando fora dos lugares seguros que ele conhecia?
- Você sabia o suficiente para não enfrentar os guardas. Se você tivesse feito isso, nem
mesmo Nebran poderia ter te salvado. Mas você lutou bravamente na trilha, então
ninguém pode te chamar de covarde.
- Você tem opiniões muito decididas para um aprendiz.
- Eu conheço meu dever...e meu lugar. - Rakhal disse firmemente.
Um pensamento cruzou a mente de Gareth, uma conclusão tão óbvia que ele não
conseguia pensar por que não tinha visto antes. Agora tudo fazia sentido: a autoconfiança
de Rakhal com Cyrillon, a maneira fácil de dar ordens, o fraco sinal de superioridade que
Gareth achava irritante. - Seu lugar? Você é filho de Cyrillon, assim como seu aprendiz?
- Não.

~o ⭐ o~
Eles prosseguiram ao longo de um emaranhado de ruas mal pavimentadas e,
finalmente, para um distrito de vastas avenidas, empoeiradas e alastrados compostos.
Rakhal se dirigiu para um desses, não era diferente dos outros com suas paredes de tijolo
de lama e arenito marcados pelo vento. O sol havia tornado os pesados portões de madeira
esbranquiçados, de modo que, mesmo no escuro da noite, eles brilhavam como uma luz
fantasma. Tochas ardiam em seus pilares e um drytowner de rosto sombrio, fortemente
armado, observou-os se aproximando.
Sob o olhar vigilante do guarda, os portões se abriram. Além deles, Gareth vislumbrou
um quintal de areia rasa, uma casa retangular de pedra branca e outras dependências,
provavelmente alojamentos para servos, um estábulo para as montarias ou armazéns do
mestre para os bens domésticos, tudo dentro da proteção das paredes.
O s f i l h o s d o s r e i s | 78

Eles entraram na casa através de um portão de treliça intricadamente esculpido. Um


par de portas internas deram lugar a um pátio aberto. Entrando, Gareth inalou a doçura das
videiras fluorescentes da noite. Uma fonte gelada emitia um sussurro. Os ruídos da cidade
sumiram junto com o cansaço da jornada. Ele olhou para a extensão de estrelas e luas,
agora no alto do céu, e sentiu como se sua luz brilhasse através dele.
Em pouco tempo, enquanto Gareth ficou admirando o tranquilo jardim, uma mulher
emergiu de uma porta do outro lado, mostrada em silhueta contra a luz quente e cor de
mel atrás. Ele não podia ver sua forma, apenas das saias e camadas de véu. Ela se moveu
em direção a eles com o tilintar de correntes. Rakhal foi até ela e os dois trocaram palavras
murmuradas. Gareth não pôde entender seu significado, apenas a urgência de seu tom. Em
um ponto, Rakhal gesticulou em sua direção. Gareth imaginou o aprendiz dizendo: Ele não
tem mais juízo do que um oudrakhi! Ele vai se matar e trazer a vergonha sobre todos nós!
A mulher desapareceu na casa. Rakhal voltou-se para Gareth. - Isso resolve o assunto.
Você ficará conosco.
Gareth não protestou.
Uma hora depois, de banho tomado e usando um longe robe das Cidades Secas,
Gareth se juntou a Cyrillon para a refeição da noite. O Mestre da Caravana, resplandecente
em uma camiseta de seda cor de esmeralda, estava reclinado sobre uma pilha de almofadas
e gesticulou para Gareth fazer o mesmo.
Quando Gareth tentou agradecer a Cyrillon por suas boas-vindas, o comerciante o
cortou, dizendo: - Hospitalidade primeiro, negócios depois.
Gareth se perguntou a quais “negócios” Cyrillon se referia, mas perguntar
diretamente, especialmente antes da refeição, seria grosseiro. Em seus anos no tribunal de
Thendera, ele havia aprendido pelo menos a ter paciência, se nada mais.
A mulher que os recebera, que devia ser a esposa de Cyrillon, ofereceu pratos de
carne, picadas e enroladas com frutas secas e temperos salgados, com legumes em
conserva e pão plano. Uma segunda mulher, esbelta e de olhos escuros, movia-se
silenciosamente ao seu lado. Gareth não poderia dar uma boa olhada no rosto da mulher
mais nova por causa do véu. Ela se movia com a graça ágil de uma gazela, embora suas
correntes brilhassem à luz das lanternas. Exceto por um suave click ocasional, elas não
faziam nenhum som. Ele supôs que as mulheres das Cidades Secas passavam toda a vida
com as mãos acorrentadas e se acostumavam a elas.
Gareth se inclinou para sua refeição, tentando não olhar para as mulheres. Elas se
ajoelharam a uma curta distância enquanto mestre e convidado comiam. Ele pensou em
sua mãe e sua jovem irmã acorrentadas, em subserviência silenciosa, ou mesmo avó
Linnea.
O s f i l h o s d o s r e i s | 79

Os Terranan estavam certos em nos chamar de selvagens! O calor de um rubor se


espalhou por seu rosto e garganta. Ele inclinou a cabeça, incapaz de comer.
Cyrillon deu ordens para a comida ser removida. As mulheres tiraram da mesma
maneira graciosa e silenciosa e não voltaram.
- Você não vai fumar um cachimbo de água, eu sei. – Cyrillon disse. - Não posso agredí-
lo com isso, mas talvez você não se importe se eu me agredir, certo? É coisa dos homens e
proibido para as mulheres. Minha esposa e filha não nos perturbarão.
- Eu não gostaria que você se negasse a seus prazeres habituais por minha causa. -
Gareth respodeu.
Cyrillon pegou o cachimbo de água e se preparou para fumar. Gareth tentou não tossir
com os vapores pungentes e se perguntou onde Rakhal estava. Muito provavelmente, não
era costume um aprendiz jantar com seu mestre em casa. Gareth se viu perdendo a
camaradagem da trilha.
Ele se sentiu um estranho, reclinado em silêncio enquanto seu anfitrião fumava. Ele
olhou na direção em que as mulheres desapareceram, imaginando o que estavam fazendo,
desfrutando de seu próprio jantar ou, mais provavelmente, fofocando sobre os homens. O
que elas estariam dizendo sobre ele? Rakhal lhes contara sobre o incidente na fonte?
- Para você, um homem dos Domínios, isso deve parecer estranho e exótico, - disse o
Mestre da Caravana, gesticulando para incluir seu lar e a cidade além - mas é muito mais
parecido com os Domínios do que com as Cidades Secas. As terras selvagens do deserto são
ainda mais estranhas.
Gareth admitiu que não tinha nada para comparar com Carthon. - Certamente, há
muitos costumes das Cidades Secas aqui. Eu vi mulheres em correntes.
- O costume local ofende você. - Cyrillon fez uma pausa para um sopro meditativo. -
Nunca fui capaz de convencer minha esposa a deixar suas correntes. Suponho que ela se
sente tão nua sem elas como eu ou você andando desarmados ou sem casacos na via
principal de Thendara, no meio do inverno.
Gareth riu, admitindo que o homem tinha um ponto. O velho ditado dizia: somos como
os deuses nos fizeram.
- Quanto à minha filha, ela é minha única criança e o ornamento da minha casa. Ela faz
como lhe agrada.
- E ela se agrada por usar correntes?
- Talvez o que lhe agrade é poder vir e ir, tão segura quanto qualquer mulher pode ser
das predações dos homens. Desta forma, ela não atrai nenhuma atenção indevida para si
mesma e qualquer insulto a ela certamente seria respondido por qualquer homem que
tivesse a chave para desbloquear tais correntes.
Havia um toque de zombaria nessas palavras?
O s f i l h o s d o s r e i s | 80

- É fumaça suficiente por hoje. Um homem sábio é sempre temperado em seus


prazeres. - Cyrillon deu um sopro final e deixou seu cachimbo de lado. Ele desmontou e
limpou cuidadosamente o bocal com um pano mergulhado em água que havia sido
preparado para isso. - Agora, - disse ele, direcionando a Gareth um olhar sem humor - aos
negócios. Você lida com uma espada excepcionalmente bem para um mero assistente de
mercador de lentes. Não negue. Eu vi homens que vendiam espadas brigar com madeiras
desajeitadamente e chamar isso de luta com espadas. Mais do que isso, você polpou um
inimigo. Você foi treinado e muito bem, de fato, mas não creio que você já tenha matado
um homem. Nenhum homem comum teria poupado Merach como você fez.
Gareth tentou pensar em uma história convincente, mas o único pensamento que
surgiu à sua mente era que ele não tinha planejado lutar contra tudo nem se preparado tão
bem. Isso o lembrou da questão do por que ele carregava uma espada se não tinha
intenção de usá-la.
Cyrillon grunhiu, como se o silêncio de Gareth fornecesse a resposta que ele estava
procurando. - Você fala a língua das Cidades Secas muito bem, sabe. Você deve ter tido um
excelente tutor. Mas ele te ensinou a conjugação literária clássica dos verbos. Um
comerciante usaria apenas o vernáculo. Também há a questão da cor do seu cabelo que não
é normalmente encontrada aqui nas terras próximas das Cidades Secas. Nunca vi essa
tonalidade de vermelho, exceto entre os Comyn dos Domínios. E, se puder perdoar minha
ousadia em dizer isso, vai dom, você pensa muito sobre si mesmo e suas ações mais sutis.
Mais uma vez, o comerciante fez uma pausa. De dentro da casa veio o som do riso e da
música feminina, um som fluido tocado em uma flauta. A boca de Gareth ficou seca.
- Quem é você, de verdade?
- Isso importa? - Gareth perguntou, as palavras emergindo como um murmúrio.
- Faz se houver uma rixa de sangue jurada entre nossas casas.
- Não há.
- Mas há alguma coisa. Não, não consigo ler seus pensamentos. Não sou feiticeiro. Seus
olhos o traem, Garrin, se é que esse é realmente seu nome.
Uma imagem de estar em uma encruzilhada saltou na mente de Gareth. Ele podia se
apegar ao disfarce que criara e, neste caso, seria melhor nem tentar explicar as
inconsistências que Cyrillon havia listado. Ele poderia inventar outra história de que era o
filho mais novo de uma ou outra das menores casas da nobreza. Ele sabia o suficiente para
usar um nome que não pudesse ser facilmente refutado. Era razoável que uma pessoa
assim, com toda a educação do Comyn, mas sem esperança de herdar nada, fosse buscar
sua fortuna no comércio. Essa história alternativa podia parecer mais convincente, mas
seria honroso enganar o homem que demonstrou sua amizade uma segunda vez? Isso não
seria uma traição da hospitalidade e confiança?
O s f i l h o s d o s r e i s | 81

Havia terceira escolha. Ele poderia dizer a verdade.


E arriscar ser enviado de volta para Thendara sob escolta? Arriscar que seus pais e seu
tio Danilo, para não mencionar o Regente e toda a Corte, soubesse de sua escapada? Ele
sabia o que diriam e eles estariam certos.
Ele já havia jogado fora de qualquer exigência para ser respeitado quando seguiu
Danilo e Domenic. Não importava se eles soubessem o que ele fizera. Ele saberia.
Ele encontrou o olhar de Cyrillon corajosamente. - Você é um observador aguçado e
um juiz de homens ainda mais perspicaz. Não sou um aprendiz de qualquer tipo, nem
Garrin é meu nome verdadeiro. Sou Gareth Marius-Danvan Elhalyn y Hastur. Você conhece,
creio, o homônimo de meu pai, Danilo Syrtis Ardais.
O rosto de Cyrillon endureceu, mas não antes de Gareth notar o flash de espanto.
- Não sei nada de seus negócios com ele. - Gareth se apressou em dizer. - Só que você
leva informações de tempos em tempos e que ele confia em você.
- É claro que sim, já que ele me confiou a segurança do herdeiro da coroa. - Cyrillon
deu a Gareth outro daqueles olhares penetrantes.
Gareth engoliu em seco. - Ele não sabe que estou aqui. Pelo menos, eu não pedi para
vir.
Por um longo momento, Cyrillon não se mexeu. Lentamente, o sangue sumiu de suas
bochechas, embora sua expressão não tivesse se alterado, exceto pela pulsação de uma
veia em sua testa.
- Pai das areias! O mensageiro do Dom Danilo disse a verdade! O que você está
fazendo aqui, então?
- Isso importa? - Gareth disse envergonhado. - O que deve ser feito agora?
- Não podemos mudar o que já aconteceu, mas pelo menos você veio com segurança. -
A cor de Cyrillon voltou ao normal enquanto falava. - Quanto ao que fazer agora, não pode
haver dúvidas. Você deve retornar imediatamente a Thendara, Sua Alteza!
Gareth se forçou a manter a calma e aceitar o julgamento. Este era o único resultado
possível de sua escapada, ser enviado para casa em desgraça. Pelo menos, ele aproveitou
um breve período de liberdade. Agora ele devia pagar por isso.
- No entanto, como isso pode ser realizado? - Cyrillon murmurou, claramente
revirando o problema em sua mente. - Não pode haver dúvida do problema que seria se
você voltasse sozinho ou, pior ainda, permanecesse aqui quando eu partir. - A luz lançou
sombras profundas nas rugas de sua testa, dando-lhe um olhar sardônico. - Posso
comercializar com os Domínios, mas, a fim de manter a confiança dos drytowners, devo
seguir o costume. Meu simples contato comercial com o seu povo já me torna um suspeito
em algumas regiões. Mas se um jovem não relacionado a mim pelo sangue tiver liberdade
em minha casa na minha ausência, isso teria consequências terríveis. Há alguns... Se a
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informação alcançar os parentes de minha esposa, seus...como se diz isso em cahuenga?


Ah sim. Seus cojones estariam em grave perigo.
Gareth sentiu o sangue sumir de suas bochechas. - Então eu devo encontrar uma
pousada.
- Você deve ser meu convidado e, contanto que eu esteja aqui, não há nada impróprio.
- Cyrillon parecia não ter notado o protesto de Gareth. - Levará alguns dias para organizar
sua escolta e montar minha própria equipe. Tomas vai viver e andar de novo, mas não em
breve. Levarei Korllen, mas vou precisar de outro homem para lidar com o oudrakhi. Então
você voltará a Thendara enquanto estiver fora indo para Shainsa.
Shainsa! Se Carthon prometia aventura, mentindo por ainda estar na fronteira entre
os Domínios e as Cidades Secas, uma mistura do familiar e exótico, então quão mais
emocionante seria se aventurar para aquela cidade antiga?
Gareth voltou sua atenção para a conversa. Cyrillon parecia não ter notado o lapso e
passou a discutir os arranjos para uma escolta armada adequada de volta aos Domínios.
Gareth deveria permanecer ali, dentro das paredes do complexo de Cyrillon, até a sua
partida.
- Eu não gostaria que você ou sua família fosse colocada em qualquer inconveniente
por minha causa. - Gareth ouviu a rigidez em sua própria voz. - Ao mesmo tempo... Se não
vou voltar tão cedo, porque não posso ver nada de Carthon, exceto o interior dessas
paredes? Provavelmente não terei outra chance de novo. Tendo chegado tão longe e
arriscado tanto, desejo muito usar esses poucos dias para explorar uma cidade tão
diferente das minhas.
Gareth se preparou para uma recusa. Mesmo que Cyrillon disse não no começo, o
comerciante poderia se tornar receptivo após outra rodada de argumentos bem
fundamentados.
- Verdade, você está mais seguro aqui do que estava na estrada de Thendara - disse
Cyrillon - e certamente mais seguro do que você estaria em um lugar como Ardcarran.
Talvez alguns dias no distrito da praça o convençam de que não há nada mais em Carthon
do que calor e poeira, mais do que qualquer coisa que eu possa lhe dizer.
Gareth quase não podia acreditar em sua sorte. - Eu, claro, seguirei quaisquer
restrições que você aconselhe para minha segurança.
- Você daria sua palavra como um Comyn, como um Hastur, sem sequer saber o que
elas podem ser?
- Confio em sua experiência e seu compromisso com o meu bem-estar.
- Você estará bem o suficiente, desde que se mantenha nas melhores áreas e não fale
com nenhuma mulher usando correntes. Seria melhor, na verdade, nem mesmo olhar em
sua direção. Vou enviar Alric com você como um guia.
O s f i l h o s d o s r e i s | 83

- Não Rakhal?
- Rakhal? Ah, aqui em Carthon, Rakhal vai ter muito do que cuidar. Vamos vê-lo pouco
até que seja hora de partir.

~o ⭐ o~
Na manhã seguinte, Gareth comeu rápido e sozinho, pois Cyrillon já tinha ido cuidar de
seus negócios naquele dia. Fora de sua porta, ele encontrou uma bandeja esperando por
ele, com um prato de mingau de grãos, tanto quanto teria comido em Thendara, e alguns
doces, massas torcidas, frita e depois polvilhadas com cristais de mel alaranjado. Não havia
sinal das mulheres, mas Alric estava esperando na grande câmara abaixo. Timidamente,
mas com excitação óbvia, o menino se apresentou como guia.
Alric conduziu Gareth ao longo das principais avenidas, além da Grande Casa e da
guilda dos joalheiros, apontando os caros objetos de metal que protegiam as janelas
abertas, depois através de um mercado após o outro. Quase tudo que Gareth poderia
imaginar estava à venda ali: tapetes de Ardcarran, rolos de tecidos de linex e fardos dos
enfeites mais diversos de trabalho filigranado, selas do Domínio Alton, peixe seco e pérolas
de Temora, sal e enxofre de Daillon. No mercado de gado, cavalos e mulas esperavam
pacientemente ao lado de oudrakhis e cavalos de carga. Gareth udou algumas moedas de
cobre para provar as mercadorias das barracas de alimentos, comprando tortas
temperadas, bolos de um grão desconhecido que havia sido ressecada e servido com
manteiga ligeiramente ransosa, e espetos de pimentão doce, cebola e carne marinada
salgada.
As multidões reunidas se misturaram em um misto de cores: os marrons empoeirados
dos comerciantes, capas de lã azuis e verdes dos Domínios, capas curtas da cor da areia, e
uma vez, sob o som estridente de uma corneta de chifres, um Lorde das Cidades Secas,
talvez o próprio Lorde Yvarin, e seus retentores usando faixas e túnicas elaboradamente
borbadas.
Através de tudo isso Alric continuou, misturando informações e dados de fabricação,
muitos dos quais Gareth suspeitava que o menino estava inventando ou ouvira de algum
fofoqueiro na rua.
Eles chegaram a outra praça, varrida pelo vento no meio-dia carmesim. Para um lado,
Gareth notou uma desordem de belos prédios, lojas do tipo mais pobre, um santuário de
rua e um pequeno café. Do outro lado, as bocas de abertura escuras das ruas levavam mais
fundo na cidade. O cheiro do jaco despertou uma onda inesperada de saudade.
Gareth jogou para Alric uma das moedas de cobre. - Aqui, vá e compre um deleite. Eu
estarei esperando lá. - Ele apontou para a loja. - Não vou entrar em nenhum problema,
prometo.
O s f i l h o s d o s r e i s | 84

Alric parecia em dúvida por um momento, mas a tentação de uma hora de liberdade e
os meios para desfrutar disso pareceu vencer. Com um sorriso, ele embolsou a moeda e
correu para a multidão. Gareth levou um momento para admirar os pontos turísticos e
sons, o ritmo do mercado. Ele moldou seus pensamentos, sua postura, sua expressão facial
para a de uma pessoa sem importância.
Apenas um viajante empoeirado, ninguém importante...
Fora de uma loja, um toldo amenizava o pior do brilho do sol. Um tapete, usado, mas
surpreendentemente limpo, tinha sido desenrolado na sombra. Um trio de homens em
vestes fluídas e lenços na cabeça estavam se levantando, deixando uma pilha de almofadas
arrumadas em torno de uma mesa baixa. Sentar-se seria algo agradável e, além disso, ele
estaria à vista, onde Alric poderia encontrá-lo.
Gareth sentou-se em uma das almofadas. Um homem pequeno com a pele parecendo
couro escurecido pelo sol, se aproximou e, em voz suave, exigiu ver seu dinheiro. Quando
Gareth conseguiu satisfazê-lo, o homem retornou com um copo rachado na borda e um
prato com alimentos de confeitaria murchos e gordurosos. Gareth colocou o prato de lado
sem provar os doces. O jaco, por outro lado, era surpreendentemente bom, forte e sem
açúcar, aromatizado com uma especiaria desconhecida, mas agradável.
Vozes soaram de dentro da loja. Gareth ouviu a madeira raspando no chão, uma
cadeira sendo arrasada sobre um piso nu.
- ...disputa de água... Um daqueles pequenos oásis ao longo da rota da caravana para
Black Ridge... – Um homem disse, falando no dialeto das Cidades Secas com um sotaque
tão espesso que ele parecia ter seixos na boca. Gareth só conseguiu entender apenas uma
frase aqui e ali.
- ...fora além de Shainsa... - disse um segundo homem - ...deserto profundo... - A voz
dessa pessoa era mais sussurante, quase débil, porém mais fácil de entender.
- ...conhece o lugar...
Race Cargill, Agente Especial Terran, penetrou na fortaleza alienígena para descobrir
um plano... Gareth pensou.
- ...pastor de oudrakhi diz...foi enganado... - O primeiro homem continuou.
- ...Forasteiro estranho lá fora, feroz...
- ...Os filhos de demônios de fogo... – Um murmurou.
O perverso suserano pouco poderia fazer quando soubesse que seus agentes foram
descobertos e seus esquemas revelados...
- O vendedor de água...ensinou-lhe uma lição... - disse o contador de histórias em um
tom que fez os outros ficarem em silêncio. - ...uma briga... O homem do deserto clamou
seus deuses. Nebran? Não, alguém mais poderoso...enviou uma bola de fogo... - O homem
abaixou a voz.
O s f i l h o s d o s r e i s | 85

Gareth segurou a respiração, esforçando-se para ouvir o que viria depois.


- O comeu? – Um dos outros gritou.
Gareth ficou em alerta. Sua visão afiada, o brilho do dia ardndo nos olhos.
- ...explodiu em chamas... - O contador de histórias disse dramaticamente - ...e
desapareceu...
Um dos ouvintes bufou. O outro fez um som de zombaria, mas aos ouvidos de Gareth,
a descrença soava oca, tingida de medo.
- ...Miragens apenas... Calor e poeira criam coisas aos olhos de um homem...
- ... não acredito...não é a primeira vez... Eu ouvi outro conto. Alguns detalhes
alterados...imaginados... Mas uma coisa é certa...
- Nebran nos proteja! - Um dos ouvintes chorou e todos os três murmuraram o que
poderiam ser orações para proteção ou mais maldições sobre um inimigo.
A boca de Gareth ficou seca. Os povos do deserto eram considerados supersticiosos.
Qualquer truque de mão, até mesmo o sol brilhando na lâmina de uma faca, podia criar um
efeito de algo mágico em suas mentes. Ele sabia, assim como qualquer um, como as
histórias podiam ser rebuscadas na memória. Mas...
Ele não acreditava inteiramente em seus pensamentos tranquilizadores. Se o que o
contador de histórias disse era verdade, havia outra explicação muito mais preocupante
para o flash de luz e o desaparecimento da vítima. Uma arma de fora-do-mundo, um
blaster Terran, podia produzir o efeito que o homem descrevera.
Armas proibidas pelo Pacto... Nas mãos dos drytowners? A perspectiva era horrível
demais para falar em voz alta, até mesmo para pensar.
Como isso é possível?
Tanto quanto Gareth sabia, a Federação nunca havia comercializado com as Cidades
Secas e era absurdo demais pensar que o povo do deserto poderia ter tropeçado em um
lote de armas de fora-do-mundo abandonadas. Por que a Federação retornaria de maneira
tão secreta? Se sua guerra tivesse acabado, por que não renovar seu antigo relacionamento
com o Comyn?
A rua não estava completamente deserta, mas, naquele momento, os poucos homens
e as mulheres veladas e acorrentadas que se apressavam eram todos drytowners. Algo na
antiguidade do lugar e os tons opacos da poeira atingiram Gareth como algo mais
alienígena do que qualquer outro lugar que ele já havia visitado ali. Ele se lembrava das
antigas histórias, as especulações de que as Cidades Secas eram fruto de outros membros
da nave colonial perdida ou de outra nave que não a mesma que deu origem aos Sete
Domínios. Eles podiam ter vindo de Wolf IV, onde os homens uma vez nativos da Terra
também geraram híbridos com as raças nativas? Nenhum sangue chieri fluia em suas veias,
mas isso era algo muito estranho. Eles poderiam ser qualquer coisa, fazer qualquer coisa.
O s f i l h o s d o s r e i s | 86

Alguns minutos depois, Alric voltou, carregando um cone de casca fibrosa cheio de
doces de massa frita. Ele sorriu quando Gareth recusou sua oferta para compartilhar e
voltaram para o complexo de Cyrillon.
Gareth não estava mais ansioso para explorar. Ele se perguntou se havia imaginado o
que ouvira ou se tinha sido uma conversa perfeitamente inocente sobre lendas de perigo.
Ele poderia voltar para casa, como Cyrillon desejava e fazer um relatório sobre o assunto.
Talvez Mikhail já tivesse retornado até lá. Certamente, nenhuma ação poderia ser tomada
até que o Regente tivesse sido consultado. O atraso faria alguma diferença? Ou o tempo
adicional daria a quem agora possuía essas armas a chance de aproveitar e conquistar o
território... Talvez até atacar os Domínios?
Se haviam explosões, que outrosa poderes eles teriam?
E se ele estivesse errado? E se o que ele tinha ouvido fossem apenas contos, boatos,
bêbados ociosos se gabando? Ele já até podia ver... Ele mesmo correndo para casa para
soar o alarme, as conferências apressadas, as reuniões, a melhoria apressada de uma força
de expedição... O interrogatórios, a marcha para o território das Cidade Secas... Os
drytowners, rápidos em se enfurecerem, sempre defendendo seu kihar, respondendo com
desprezo e suspeita...
Deuses, ele poderia causar uma guerra.
- Lorde Garrin? - Alric interrompeu a agitação da Gareth. - Você está se sentindo mau?
Não, mas vou ficar louco muito em breve se eu continuar dessa maneira. Então tudo o
que eles disseram sobre mim, sobre ser apenas outro daqueles Elhalyns instáveis, será
verdade.
- Estou bem, rapaz. - Gareth se forçou para parecer casual. - Só não estou acostumado
a este calor. Onde vivo é mais frio. Mesmo no início do verão temos neve à noite.
- Neve! - O menino exclamou.
Eu não deveria estar aqui, Gareth pensou. E então, inesperadamente, veio a certeza.
Sei onde preciso estar. Eu sei o que tenho que fazer.
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Capítulo 10

Alric, claramente desapontado quando Gareth anunciou que tinha visto o suficiente,
pefou uma rota sinuosa para a casa de Cyrillon, sem dúvida para prolongar o passeio.
Tendo convivido algum tempo com ele, Gareth sabia que o rapaz estava ganhando tempo,
mas não tinha coragem de pressioná-lo e estragar sua alegria. O atraso lhe deu tempo para
reunir seus pensamentos. Ele tinha alguns ativos: um pouco de dinheiro, as lentes, dois
cavalos e sua espada. Ele não tinha aliados, nenhum amigo que pudesse confiar. E não
sabia como conseguiria sozinho, mas ele tinha que encontrar um jeito.
Eles passaram por outra praça, quase vazia, exceto por uma fonte pública, onde as
mulheres se reuniram em grupos de duas e de três, algumas delas drytowners com suas
roupas vivas e brilhantemente coloridas. Suas correntes tilintavam musicalmente, uma
contraparte ao riso delas. Uma em particular chamou sua atenção com a força e a certeza
de seus movimentos. Como as outras, ela estava velada e carregava uma cesta contra um
quadril. Gareth abrandou a parada, observando-a. Ele vira esse mesmo tecido com aquele
padrão de fios dourados. O ângulo do sol brilhou em seu véu obscurecia seu rosto.
A filha de Cyrillon?
Ela seguiu seu caminho para uma das lojas no lado oposto da praça. Gareth hesitou.
Parte dele queria seguí-la para ver se ela era de fato quem ele achava que era, mas outra
parte se conteve. Ele já tinha tido problemas sérios por falar com uma mulher acorrentada.
Enquanto Gareth ponderava o que fazer, Alric havia chegado a uma parada desleixada,
imitando os homens que se desviavam na área do poço. Embora nenhum deles se dirigisse
diretamente às mulheres, seu interesse mútuo mostrou-se na gargalhada feminina e
ocasional causando rubores nos homens. Uma garota em azul sorriu, com seus véus
tremulando ao seu entorno, antes de voltar para suas amigas. Sua postura, o movimento de
sua cabeça e de suas mãos, revelou sua consciência do interesse que despertara. Os
homens se endireitaram, posicionando os ombros para trás e murchando as barrigas.
Gareth sentiu um impulso imediato de inflar o peito. Um dos homens começou a contar
uma piada em voz alta. Carrancudas, as poucas mulheres das montanhas na multidão se
apressaram.
Só então, a mulher emergiu da loja. Ela caminhou até Alric sem nenhum dos gestos
graciosos da paquera, exibidos apenas pela garota de azul. Suas correntes sacudiram
quando uma mão disparou para tocar o ombro de Alric. Ao mesmo tempo, ela mudou a
cesta em seu quadril para permitir o livre movimento de seu outro braço.
- O que você está fazendo aqui? - Ela o sacudiu, mas não violentamente, apenas o
suficiente para enfatizar seu ponto. – Bancando o lerdo por aí como aqueles... - Gareth não
O s f i l h o s d o s r e i s | 88

reconheceu a palavra no dialeto das Cidades Secas, apenas sua clara implicação. - O que o
pai diria?
Alric recuou. - Eu estava apenas mostrando a Garrin...
- Você! - Ela soltou o menino e se voltou para Gareth. - Você não causou problemas
suficientes para si mesmo? Precisa corromper esta criança também?
Ele recuperou sua voz. - Eu conheço você! É a filha de Cyrillon!
- Nós estivemos no mesmo cômodo na casa do meu pai, você quer dizer. Mas isso não
constitui uma apresentação.
- Eu poderia perguntar por que você se enfurece comigo? - Ele reinou em sua
paciência. - Perdão, senhora. Eu não teria falado com você se soubesse que era
inadequado.
- Você é o convidado de meu pai. Estamos ambos sob sua proteção. – Ela disse mais
calma. - Este pequeno tolo deveria saber que não devia lhe trazer para tal lugar. SAó posso
atribuir seu lapso de julgamento à sua influência.
Essa praça era muito parecida com qualquer outra do mercado, mas nenhum
comerciando havia montado uma barraca alo. Seu único recurso era o poço. As mulheres
iam até ali pela água e para serem vistas pelos homens. Apesar do calor do dia, Gareth
estremeceu. Ele afastou o resíduo sutil de emoção desagradável, talvez até inadequada. –
Me permite acompanhá-la para casa?
- Eu não vou para casa. Você irá para casa e levará Alric com você! E não preciso de
uma escolta. - Ela levantou as mãos, uma confusão de sons suaves de suas correntes. -
Tenho toda a proteção de que preciso.
Gareth conseguiu ter a presença de espírito suficiente para fazer uma reverência breve
quando ela se virou, um redemoinho de rosa e dourado, e se afastou.

~o ⭐ o~
Alric desapareceu assim que chegaram ao complexo, presumivelmente indo cuidar de
seus assuntos, e Gareth não viu as mulheres. Os assuntos de Cyrillon o mantiveram em
outro lugar da cidade. Gareth foi para seu quarto onde passou as próximas horas
organizando e reembalando suas posses.
Ele sentiu a mudança no ar quando o dia chegava ao fim. Mesmo sem ser capaz de ver
o sol abaixando em direção ao horizonte, ele ficou consciente de um aroma subindo da
terra, não mais o cheiro de poeira e calor, mas uma frieza tingida com especiarias.
Gareth encontrou Cyrillon fora da câmara central. Cyrillon ofereceu uma saudação
formal e Gareth, mascarando sua impaciência, devolveu a cortesia.
- Cyrillon, preciso falar com você sobre uma questão muito importante.
O s f i l h o s d o s r e i s | 89

- Não é nosso costume nos envolvermos em discussões sérias antes da refeição da


noite. Vamos falar depois enquanto fumo.
- Eu prefiro dizer isso agora.
- Que assunto é tão grave que não pode ser discutido de forma civilizada? Não, não
responda, meu jovem amigo. Eu vejo que isso é de fato uma questão que não pode esperar.
Se fosse tão quente em seus Domínios quanto no deserto, seu povo teria aprendido a
prosseguir em um ritmo medido. Mas como não é, e você não aprendeu, vamos satisfazer
sua impaciência. Me acompanhe ao meu escritório pessoal, onde não seremos
perturbados.
Gareth seguiu Cyrillon para uma pequena câmara colocada bem longe das áreas
compartilhadas da casa. As janelas altas em dois lados permitiam a entrada da luz e uma
brisa refrescante. Abaixo delas haviam muitas pequenas gavetas, talvez para guardar
pergaminhos. Havia também almofadas ao redor de uma mesa baixa e ricamente decorada
com uma lâmpada de latão lindamente forjada e vários pedaços de vela recém-preparada.
Cyrillon caiu sobre uma das grandes almofadas e gesticulou para Gareth tomar a outra.
- Agora, meu jovem amigo, o que o aflige?
Gareth dobrou as pernas sob ele e desejou que Cyrillon parasse de chamá-lo de amigo.
A palavra estava carregada de responsabilidade mútua.
- Eu disse que retornaria aos Domínios assim que uma escolta adequada pudesse ser
organizada. – Gareth começou. - Peço para ser liberado do nosso acordo. Espero que você
conceda isso. Mas, independentemente disso, surgiram circunstâncias que exigem outro
curso de ação, mesmo ao preço de minha palavra dada.
Cyrillon pareceu assustado no começo, depois cauteloso. - Essas circunstâncias devem
ser extremas. Você pode ser jovem e tolo, se você perdoar meu modo de falar, vai dom,
mas você nunca demonstrou ser um homem que falha e pisa em seu kihar.
Ninguém o havia considerado uma pessoa honrada antes. Em uma voz subitamente
espessa, Gareth disse: - Meu...kihar...não é importante em comparação com o que pode
estar em jogo para os Domínios. Talvez até para todos em Darkover.
- Extremo de fato. – Cyrillon repetiu. - Posso saber que circunstâncias são essas?
- Ouvi o que primeiro pensei ser apenas histórias tolas, boatos, das terras além de
Shainsa, perto de um lugar chamado Black Ridge. - Gareth passou a resumir o que tinha
escutado e sua suspeita de que, por orgulho, o contador de histórias não mentira. Ele
terminou dizendo: - Oro a todos os deuses de nossas terras para que eu esteja errado. Mas
há muito em jogo e preciso ter certeza.
- Você quer ir pessoalmente para Shainsa? - A casualidade habitual de Cyrillon se
dissolveu. - Você está louco? Ou simplesmente é suicida?
O s f i l h o s d o s r e i s | 90

Gareth, recordando todas as insinuações sobre a instabilidade dos Elhalyns,


estremeceu. - Eu não sei! Isso importa?
- O que importa é que o herdeiro da coroa dos Sete Domínios não pode vagar pelas
Cidades Secas por um capricho!
- Estou bem ciente do que está em jogo! - Os dedos de Gareth se fecharem em punhos
ao seu lado antes que ele percebesse o que estava fazendo. Sua pele se arrepiou como se
tivesse caído em um ninho de formigas-escorpião.
Ele se forçou a respirar calmamente e baixar o tom de voz. - Eu poderia voltar para
casa e deixar você ou outro investigar. Eu poderia esperar por notícias que talvez nunca
chegassem ou viessem tarde demais. Se alguém lá fora está negociando com os Terranan
por armas proibidas pelo Pacto e eu pudesse pará-los em vez de me arrastar para casa
como um cachorro desobediente...em quais mãos você acha que estaria o sangue dos
mortos e feridos por tais armas?
Ele estava falando muito rápido, suas palavras e frases enrolando uma na outra,
provavelmente não fazendo muito sentido. Como ele poderia esperar cuidar de si mesmo
em Shainsa, com todos os perigos, se ele não podia nem controlar sua língua ali, onde
estava relativamente seguro? Do que ele tinha medo? De Cyrillon não acreditar nele,
discutir, tentar impedi-lo? Ou que Cyrillon o deixasse ir?
- É minha responsabilidade - ele disse devagar - apurar a verdade ou a falta dela
nesses contos. E tomar qualquer atitude necessária.
Então era isso que significava ser um Comyn. O sangue Hastur que corria em suas
veias, como ainda não fora testado para se provar nobre nas atitudes dele, agora fazia suas
exigências.
- Não, entendo. Vejo por que você não quer esperar por novos relatórios. - Cyrillon
assentiu. - Mas então isso é como qualquer homem honrado faria.
As palavras pairaram entre eles. Por um longo momento, Gareth não se atrevia a
acreditar no que ouvira.
- Eu ficaria muito grato se você me permitisse viajar com você para Shainsa. Mas eu
irei, com ou sem a sua ajuda.
- Nesta questão, devo considerar mais do que meus desejos. - Cyrillon disse depois de
uma pausa. Uma pausa em que Gareth imaginou objeções cada vez mais extenuantes. -
Tenho obrigações com Dom Danilo como meu empregador e como um amigo de muitos
anos. Apesar da rescisão formal do meu contrato com você, assumi uma parcela da
responsabilidade por seu bem-estar. Também devo salvaguardar os meios de apoiar a
minha família e honrar minhas outras obrigações empresariais. No entanto, como você
destacou, algumas circunstâncias transcendem a lei pessoal.
O s f i l h o s d o s r e i s | 91

Gareth sentiu vergonha por ter considerado Cyrillon um homem supersticioso, um


bárbaro das Cidades Secas que mantinha sua esposa e filha em correntes e não se
preocupava com qualquer coisa além das paredes de seu complexo.
- Sinto muito por ter te colocado em uma posição tão difícil. - Gareth disse. - Nunca foi
minha intenção causar problemas a você que só me trouxe coisas boas.
Cyrillon fez um gesto de desprezo. - Vamos raciocinar neste assunto juntos. Se os
Terranan voltaram e resolveram se isentar das leis e do Pacto do Comyn, isso é ruim. Muito
ruim. E não só para os Domínios, mas também para as Cidades Secas. - O Mestre de
Caravanas se inclinou para frente. - Estas duas terras são como noite e dia, como luz e
escuridão, duas metades equilibradas sobre a ponta de uma faca. Se, em suas montanhas e
suas planícies, você já não pode ver as cidades de Ardcarran e Daillon, imagine Shainsa que
está ainda mais longe. Você sabe pouco dos nossos costumes e sabemos menos ainda dos
seus. A bruxaria e a força militar dos Domínios mantiveram a ambição e crueldade dos
Lordes das Cidades Secas em seu lado da fronteira e ambas as terras se mantém em paz por
muitos anos agora. Mas se esse equilíbrio for derrubado, se os homens cujas vidas são
focadas na busca de vingança e poder, tiverem acesso a armas de fora-do-mundo, as
consequências serão de fato terríveis.
Gareth assentiu, sua garganta tensa demais para falar. Ele se preparou para uma
palestra sobre seu comportamento imaturo e irresponsável. Mas não esperava tal aceitação
sem alguma relutância. Ele não havia previsto a profundidade do entendimento do outro
homem.
- Vejo que nos entendemos bem. - Cyrillon concluiu. - Amanhã vou acelerar meus
preparativos e partiremos para Shainsa no dia seguinte.
Gareth fechou os olhos, suspirando de alívio.
- No entanto, tenho uma condição. Você não deve dizer a ninguém quem você é ou seu
objetivo real em Shainsa. Você viajará como Garrin, agente e aprendiz de um fabricante de
lentes Thendaran. Você não fará nada para se expor ou a qualquer um dos meus homens a
suspeita. Tenho sua palavra juramentada sobre isso?
- Não vou revelar minha identidade ou propósito. Tem minha palavra.
- Então, - Cyrillon disse - presumo que possamos jantar juntos como amigos agora?
Gareth se levantou e inclinou-se em uma reverência formal completa geralmente dada
um Lorde Comyn de igual status. - Como amigos.

~o ⭐ o~
Gareth e seu anfitrião tomaram seus lugares nas almofadas na câmara central.
Nenhum falou muito. Gareth não tinha vontade de manter uma conversa casual e, em seu
interior, o fascínio romântico tinha sumido. Ele não se imaginava mais como Race Cargill,
O s f i l h o s d o s r e i s | 92

Agente Secreto Terran. Ele se sentia como um imbecil enfeitado sendo confrontado com
uma tarefa além de sua capacidade, mas sem qualquer outra opção.
A esposa e a filha de Cyrillon deslizavam pela sala, carregando pratos contendo a
mesma variedade de antes. Elas montaram a refeição com a mesma graça silenciosa. A filha
se levantou e, sem uma palavra, partiu.
Gareth olhou para o arco sombreado da porta onde ela havia desaparecido. - Temo ter
ofendido sua filha, Mestre. Eu a vi na cidade hoje. Ela chamou a atenção de Alric, mas
também me responsabilizou pelo comportamento dele. Não entendo o que fiz de errado.
A esposa de Cyrillon se mexeu em sua almofada e Gareth sentiu seu lampejo de
diversão. - Seja gentil, minha querida. - Cyrillon disse, acariciando seu joelho. - Ele não
conhece nossa Rahelle como nós. - Então se virou para Gareth. - Se está preocupado, você
pode ir falar com ela e resolver o problema para sua própria satisfação. Vá, eu te aconselho
a ir!
Gareth desdobrou as pernas e ficou de pé. Quando passou pela porta, ele ouviu uma
voz suave e feminina dizendo: - Tem certeza de que é sábio, meu marido?
Gareth encontrou Rahelle no pátio do jardim, sentada em um dos bancos baixos sob
uma videira enfeitada com flores delicadas e pálidas ao luar. Ela estava tocando uma flauta.
Ele tinha ouvido essa melodia antes, embora não pudesse se lembrar onde. Devia ser uma
música de rua ou uma das músicas que tinham cantado na trilha.
- Rahelle?
Ela terminou a frase da música e baixou a flauta. No crepúsculo, seu véu brilhava como
prata translúcido. - Você me encontrou. Meu pai o enviou, sem dúvida.
- Eu quero pedir desculpas.
Ela inclinou a face velada, um gesto de consideração. - Não me sinto tão ofendida, é
mais raiva de mim mesma. Alric gostaria de ter a minha liberdade, embora ele não entenda
o quão difícil e breve é tal vitória. Ele só vê que eu vou a lugares que ele deseja poder ir. Ele
é tão jovem, tão disposto a acreditar na bondade do mundo... Para ele, o perigo é um conto
emocionante, cheio de glória e linguagem florida. Eu esperava que a emboscada na trilha o
tivesse ensinado alguma coisa. Mas você se sentiu um convidado honrado nela e ele copiou
isso!
- Eu não vi nenhum risco aqui, exceto por ser um tolo das planícies que não sabia que
não deveria se dirigir a uma mulher bonita. Alric não fez tal coisa e a praça onde a vimos
estava meio vazia.
- Aquele lugar já foi o mercado escravos de Carthon, quando tal comércio existia aqui.
Os comerciantes de escravos de Ardcarran ainda vão lá para observar meninos bonitos, que
nem sequer têm um meio de proteção que uma mulher tem.
O s f i l h o s d o s r e i s | 93

- Proteção? - Gareth ecoou, surpreso por suas palavras casuais. - Como você pode
dizer isso, logo você que vive velada e acorrentada? A mulher com quem falei tinha três
guardas armados, mas você não tinha ninguém!
- A vingança de um Lorde das Cidades Secas cuja mulher foi insultada não precisa ser
imediata para ser um impedimento poderoso.
Gareth pensou novamente em sua avó, domna Marguerida, na leronis Illona Rider, e se
perguntou o que elas diriam. - Como qualquer mulher pode se permitir ser tratada como
uma propriedade?
- Disse o homem que não sabe nada dos nossos caminhos! - Ela disparou de volta.
- No caso de sua mãe acho que é porque ela cresceu dessa maneira, então não
consegue se atrever a andar como qualquer mulher livre. Mas não há leis, nenhum lorde de
uma Grande Casa, para impor tais coisas a você. Certamente seu pai não o faz.
Ele foi cortado por uma onda de risos. - Você acha que eu uso correntes?
Rahelle levantou-se e cruzou a distância entre eles. Suas mãos surgiram tão rápido que
ele não conseguiu ver exatamente o que ela fizera, apenas um movimento dos pulsos e
depois, na luz fraca, um flash de metal. Ele sentiu o peso da corrente em volta do pescoço,
os elos cavando em sua pele, puxando-o para frente e o tirando de seu equilíbrio. Em suas
mãos, as algemas nos punhos brilhavam. Elas não estavam mais trancadas em seus pulsos,
mas livres em suas mãos. Se ela desse outro passo, poderia cortar seus olhos antes que ele
pudesse alcançar sua própria lâmina e se defender.
Rahelle falou a verdade. Ela não usava correntes. Ela usava uma arma tão mortal
quanto qualquer adaga.
Com um movimento da corrente, ele se viu livre. Rahelle já estava clicando as algemas
de volta no lugar e a corrente em em seu cinto.
- Senhor da Luz, todas as mulheres das Cidades Secas podem fazer isso?
- Você esquece de uma coisa, vai dom. Eu não sou mulher comum das Cidades Secas.
No escuro, ele a saudou. - Sim, eu vi.
Ela ficou em silêncio por um momento. - Quando estou na cidade, cuido de meus
assuntos desta maneira sem medo. Corro de um lado para outro dando os recados para
minha mãe, visito meus amigos, faço tudo o que é necessário. Exceto, neste caso, - ela
acrescentou com um traço de auto-censura – cuidar do meu irmãozinho.
- Seu irmão? Eu não tinha percebido...
- E quando eu não estou em Carthon... - Rahelle dobrou seu véu para cima.
Gareth olhou para ela, o cabelo de cor de mel dourado colocado preso em uma rede
de fitas trançadas, a pele lisa sobre ossos fortes, lábios escuros, olhos abaixados. Então ela
levantou os olhos e, à luz da tocha, ele viu que eram azuis, claros e inabaláveis, rodeados
por um anel dourado, como uma pedra da estrela cercada por ouro.
O s f i l h o s d o s r e i s | 94

Rakhal! Que tolo ele tinha sido, perguntando se ele era filho de Cyrillon!
- Eu sou um idiota.
- Sim. – Ela concordou. - Você é. Mas não é uma falha fatal, então vamos entrar e
comer juntos. Talvez minha mãe tenha se divertido o suficiente com seu lamento e consiga
falar com você sem desaprovações.
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Capítulo 11

Eles deixaram os vagões para trás em Carthon, pois a trilha para Shainsa era muito
áspera para veículos com rodas. Já fora da cidade, a caravana de Cyrillon se juntou a outras
para proteção. O Mestre da Caravana ocupou-se em organizar os cavalos carregados e os
oudrakhis, grandes animais resistentes com patas amplamente acolchoados e narinas em
forma de fenda, bem adequados para uma viagem no deserto. Eles também um
temperamento difícil, como Gareth descobriu quando guiou a égua marrom, passando por
eles, indo para a posição que Cyrillon lhe atribuira e distraidamente encostou contra o
ombro de uma fêmea.
Rahelle pegou o braço dele e se afastou assim que o oudrakhi balançou a cabeça
longa, seus olhos amarelos brilhando. Enormes dentes planos se fecharam a apenas alguns
centímetros do ombro de Gareth.
- Eles não são como os cavalos. – Rahelle disse.
- Sim, eu vi.
A égua marrom colocou as orelhas contra o pescoço e encolheu as costas, balançando
as partes traseiras na direção do oudrakhi. Reconhecendo o perigo, Gareth firmou o aperto
nas rédeas e virou-a bruscamente.
Rahelle fixou-o com um olhar rápido, lateral, depois foi repreender o cavaleiro cujo
trabalho era cuidar do oudrakhi. Gareth ouviu um pouco do sermão, o homem
resmungando um protesto e Rahelle insistindo que, se sua negligência quebrasse as lentes
do charrat, Gareth, Cyrillon que teria que arcar com o prejuízo.
No terceiro ou quarto dia, quando a caravana tinha estabelecido uma rotina, Gareth
aprendera a evitar o oudrakhi. Rahelle lhe deu lições para melhorar sua prática no dialeto
das Cidades Secas, embora ele talvez nunca pudesse se passar como um nativo. Da
tripulação original, apenas o cozinheiro, Korllen, fora com eles. Alric ficou para trás em
Carthon. Os outros homens estavam ocupados com seus assuntos.
Todos os dias, Cyrillon parava para a refeição do meio-dia e eles descansavam em
qualquer sombra que pudesse ser encontrada enquanto seus animais pastavam ou
cochilavam. À noite eles seguiam, viajando de um lugar com água para o outro. Eles
carregavam água em peles penduradas nas bolsas sobre os oudrakhis que podiam percorrer
uma longa distância sem beber. Mesmo assim, seria difícil se eles perderam mesmo um
único oásis.
Gareth, limpando o suor do rosto, lembrou-se do antigo conto. Quando Zandru fez as
Áreas Secas, os próprios ossos do mundo se rebelaram, se recusando a serem cobertos pela
areia. Ele envolveu seu lenço ao redor do rosto, deixando apenas os olhos descobertos.
O s f i l h o s d o s r e i s | 96

As colinas baixas e rolantes tinham apenas algumas árvores espinhosas e arbustos


aromático achatados como flora. As areias estéreis seguiam até a linha do horizonte. Aqui e
ali, os aglomerados de samambaias do deserto se espalhavam entre as dunas e
afloramentos de rocha negra, como massivos ossos queimados, se elevavam. Quando eles
pararam para descansar à sombra dessas rochas negras e intransitáveis, Gareth copiou a
postura dos outros homens, descansando a cabeça em seus braços cruzados e rapidamente
caiu em um sono leve. Depois de um tempo, eles continuaram.
Gareth montou lado a lado com Rahelle ao longo de um trecho plano onde o solo era
tão branco e instável quanto giz. A poeira esfoliante subia enquanto eles seguiam, um fraco
aroma alcalino surgiu da terra, dominando o interior do nariz e da garganta de Gareth.
Desde a última hora ele não tinha visto uma única criatura viva, exceto por um pássaro de
algum tipo, um kyorebni talvez, pairando alto nas correntes aéreas aquecidas.
- Você pensou que ele era uma criança de rua que meu pai havia adotado por
caridade? - Rahelle disse quando Gareth perguntou sobre Alric. - Ou o quarto filho de uma
família empobrecida? Oh sim, ele é filho do meu pai, embora não seja de minha mãe. Ele
não pode herdar sob as leis dos Domínios ou das Cidades Secas. Suponho que em seu país,
ele poderia ser legitimado, mas, mesmo assim, a casa e os negócios não seriam dadas a ele.
Meu pai se esforça para criar um lugar para ele no comércio que pertencerá a meu marido,
quando eu tiver um.
O estômago de Gareth se contorceu em ansiedade. - Você não parece com muita
pressa.
- Nem você, posso ver, embora imagino que não seja por falta de opções em seu povo.
Gareth quase respondeu: Sim, eu sou considerado um grande partido, embora seja
pelas mesmas razões que eu não posso suportar essa ideia. Para ela, ele não era mais do
que o aprendiz de um comerciante. Como tal, ele poderia trabalhar duro, ganhar uma vida
decente, mas nunca aspirar nada mais. Ele desejou que fosse verdade.
- Eu dificilmente estou em posição de considerar o casamento. – Ele respondeu.
- Mmmm. Seu futuro emprego seria um atrativo suficiente, mesmo que sua aparência
pessoal fosse revoltante para os olhos, o que não é.
Deuses, ela estava flertando com ele? Não, sua expressão era perfeitamente séria.
- O mesmo acontece comigo. – Ela disse com um traço de melancolia. - Assim, - ela
continuou - não estou mais ansiosa por tal perspectiva do que você. Nós dois temos
famílias indulgentes, mas no final, cumpriremos o nosso dever.
No final, eu não terei escolha.
- Então seu marido ajudará seu pai com a caravana, aprenderá o negócio e depois o irá
administrar por conta própria? - Gareth perguntou.
- E meu irmão terá um lugar e trabalho útil.
O s f i l h o s d o s r e i s | 97

~o ⭐ o~
Por fim, eles alcançaram um grupo de dunas relativamente baixas e olharam para o
que parecia ser um antigo oceano enorme e agora seco abaixo onde se via também uma
cidade. Nada havia preparado Gareth para sua primeira visão daquela planície branca e
cintilante, se elevando em penhascos pálidos, ou para a própria Shainsa, como uma
incrustação de ossos brancos parcialmente desmoronando. As casas eram altas, espalhando
edifícios feitos de pedra de sal das falésias que se erguiam atrás da cidade. Dessa distância,
a cidade tinha a aparência de ser imensa e muito antiga, mas não o vigor e a constante
mudança do Castelo Comyn e da Cidade Velha. Esta era uma cidade mais planejada, mais
fechada, como um velho ruim, focada em seus próprios sonhos envenenados pelas areias.
Ele piscou e afastou o sentimento. A cidade abaixo era antiga, certamente, e exótica,
cheia de pessoas estranhas e perigosas, mas não era malévola. Certamente devia haver
muitas pessoas dentro dessas paredes que viviam com honra e decência.
Eles desceram, através dos arredores e favelas habitadas por pessoas miseráveis
demais para pagar as taxas do interior dos portões da cidade, passando por grupos de gado
e vendas de enxofre e sal. Os homens se moveram sob eles, tão marcados pelo sol e
empoeirados quanto a própria terra. O pó alcalino parecia fixado no ar e no calor do meio-
dia, dificultando cada respiração. Os pulmões de Gareth doíam por isso.
Dentro dos portões, eles se separaram da companhia dos outros homens e suas
caravanas da viagem e montaram o acampamento em um amplo quadrado não
pavimentado em torno de um poço comum. O poço era muito velho, suas pedras
desmoronando e virando em pó ao redor das bordas. A água tinha um gosto fortemente
metálico, mas era potável. Eles não tiraram as selas de seus cavalos, mas descarregaram os
animais de carga e montaram tendas para dormir e abrigos para proteger seus cavalos
contra o brilho do meio-dia.
Um grupo de drytowners permaneceu nas proximidades do poço, observando os
procedimentos. Eles se comportavam como se a chegada dos comerciantes fosse um
entretenimento criado para sua própria diversão, fazendo comentários que nos Domínios
teriam sido desagradáveis e rudes. Gareth lutou para manter sua expressão distante e
Rahelle disse em voz baixa: - Essas palavras não quebram nenhum osso e não desonraram
ninguém, apenas aquele que as profere.
Depois de um tempo, um dos espectadores passeou até o acampamento. Cyrillon, que
havia cuidado da organização da bagagem, foi encontrá-lo. Gareth ouviu apenas parte da
conversa, o suficiente para entender que, em uma hora, metade da cidade saberia quais
bens Cyrillon tinha para vender.
O s f i l h o s d o s r e i s | 98

Finalmente, o acampamento foi organizado e os animais tinham bebido o suficiente,


recebendo também sua ração de grãos. Rahelle sugeriu a Gareth que encontrassem uma
loja de vinhos para saciar sua sede: - ...E algo para comer além da comida típica da trilha.
Vamos, vou te mostrar um pouco a cidade.
Eles fizeram o caminho através de uma série de distritos mercantis, forjas de metal e
revendedores em rubis e outras pedras preciosas, desceram ruas alinhadas por paredes de
arenito e tijolo de lama seca. Finalmente emergiram em um quadrado aberto e varrido pelo
vento, cercado de um lado por um edifício de pedra pálida de sal. Era muito maior que a
Grande Casa em Carthon, mas não tinha janelas ou camas de flores empoeiradas. Parecia
mais com uma fortaleza. Quatro guardas robustos e escuros, em libré de roxo e dourado,
estavam ao lado das portas duplas.
- Que lugar é esse? - Gareth perguntou.
- A Grande Casa de Shainsa. E não a olhe muito de perto ou você levantará suspeitas.
Os guardas vêem ameaças em todos os lugares.
Um par de homens tão forte poderia guardar a entrada da frente mesmo contra um
ataque direto.
- Lorde Dayan, que agora governa, - disse Rahelle - é descrito como alguém que não
ser pior do que nenhum outro lorde, e certamente não é um tolo. Mas todos eles têm
inimigos, seja por lutas por território, rixas de sangue, brigas antigas ou simplesmente a
tentação de todos os homens desesperados em melhorar seu kihar, derrubando o Lorde.
Ela liderou o caminho para uma loja de vinhos onde lanternas vermelhas queimavam
nas janelas abertas. Gareth estava acostumado com as tavernas de Thendara, um bar e
mesas onde os homens podiam se sentar para beber. Este era um pequeno cômodo
fechado, forrado com bancos de madeira velhos. Almofadas, muitas delas manchadas e
sujas, estavam espalhadas pelos tapetes coloridos e desgastados.
- Aqui?
- Não parece muito, eu sei, - ela disse - mas este lugar tem as melhores tortugas em
Shainsa. Só não use o molho verde se você não estiver acostumado com comida picante.
Seguindo o exemplo de Rahelle, Gareth se abaixou em uma das almofadas. Algum
tempo depois, uma garota com um cabelo emaranhado sobre as costas lhes trouxe duas
canecas, um jarro de vinho e um prato de bolos polvilhados com sementes e cristais de sal.
Suas correntes tilintaram suavemente enquanto ela se movia, reunindo canecas vazias e
reabastecendo jarros. Rahelle gesticulou para a menina, que voltou alguns momentos
depois com uma tigela de madeira carregada com bolos fritos do tamanho de um punho e
uma pequena xícara cerâmica de uma coisa que parecia lodo venenoso e verde.
Gareth bebeu um pouco do vinho que era surpreendentemente bom, apenas um
pouco doce para o seu gosto. Os bolos acabaram por serem saborosos, salgados, recheados
O s f i l h o s d o s r e i s | 99

com cebolas e feijões picantes. Seus olhos arderam na primeira mordida, mas a sensação
de queimor logo desapareceu, substituída por uma suculência derretida.
Como Rahelle não parecia interessada em falar, Gareth se contentou em observar e
escutar tão discretamente quanto possível. Talvez em mais um dia ou dois, ele pudesse se
sentir confiante o suficiente para iniciar uma conversa com homens como estes, fazê-los
falar sobre suas histórias e boatos mais recentes. Talvez isso pudesse levá-lo a alguém que
soubesse algo mais do que apenas rumores. Por enquanto, ele devia ir devagar até que
tivesse aprendido mais sobre essa cidade e seus caminhos.

~o ⭐ o~
Na manhã seguinte, quando sombras ainda se estendiam, um mercado se ergueu no
breve frescor. Legumes, frutas secas, panelas de especiarias e óleo doce, e baldes de grãos
foram colocados em tapetes sob toldos grosseiros. Cavaleiros e tropeiros estavam
agrupados no poço comum, dando água a seus animais e fofocando. Os servos em librés
brilhantes transportavam cestas com as compras do dia, tapetes enrolados, arnês, jarros de
cerâmica e feixes de madeira preciosa.
Um homem alto que usava um capacete elaboradamente enfeitado se aproximou de
seu acampamento. Cinturões idênticos cruzavam sua túnica ornamentada e ele carregava
duas espadas e cinco facas visíveis. Cyrillon executou uma reverência formal típica das
Cidades Secas, com o punho indo para a barriga, coração e testa. Gareth se aproximou,
curioso.
- Sou quem você procura e estes são meus servos e aprendiz, - disse Cyrillon,
gesticulando na direção de Gareth - exceto por este que viaja nessas terras sob minha
proteção.
- É necessário que todos os que passem esses portões se apresentem. - Os olhos do
guarda cintilaram para Gareth, lamente o dispensando como uma pessoa sem importância.
- Quando, por favor, seria possível Lorde Dayan receber estas pessoas humildes? -
Cyrillon perguntou, sua voz suave.
- A glória de Shainsa ordena que você apareça na terceira hora deste mesmo dia. Que
a graça de Lhupan e de Nebran brilhem sobre seus passos, pois Lorde Dayan não será tão
misericordioso se você não obedecer a seus desejos.
Cyrillon fez um movimento de auto proteção e murmurou: - Que o fogo queime meus
olhos.
O guarda respondeu com um gesto abreviado de respeito e depois foi embora.
Cyrillon sinalizou para Rahelle e Gareth se aproximarem. – Continuem com nossos
preparativos usuais, mas não ofereça nada para venda. Não podemos nos atrever a arriscar
o descontentamento de Dayan negociando sem a sua licença.
O s f i l h o s d o s r e i s | 100

- O que ele quer? - Gareth perguntou. – É uma extorsão, uma taxa para negociar aqui?
- Os grandes senhores se divertem entrevistando viajantes recém-chegados. Eles
dizem que é para evitar os homens desonrosos, mas, realmente, é mais para descobrir
quem está vendendo o que e para ter certeza de que eles tenham primeiro a chance de
possuir os melhores bens com os preços mais baixos. Nós, claro, nos apresentaremos a
Lorde Dayan com presentes adequados. Prepare uma seleção de suas lentes, com talvez
uma ou duas da melhor qualidade, mas não mais, apenas o suficiente para parecer
respeitoso.
- Suponho que, se ele quiser comprar tudo o que tenho, eu terei que vender a seu
preço. - Gareth disse, pensando que isso eliminaria seu motivo para estar ali. Ele não tinha
contado com a possibilidade de ter de adquirir novos bens comerciais. Por outro lado, isso
poderia lhe dar uma excelente razão para fazer perguntas, como um comerciante à procura
de curiosidades para vender.
- Qualquer um de nós assim favorecido deve, naturalmente, aceitar os termos
oferecidos. – Cyrillon continuou.
- Perderemos o lucro. – Rahelle acrescentou.
- Ah, mas o Lorde que muito pressiona logo aprende que nós, os comerciantes, somos
como os ventos que seguimos. – Cyrillon comentou. - Podemos ser dobrados, pois esse é o
custo de fazer negócios, mas apenas a certa distância.
Cyrillon não acrescentou que Shainsa não era o único mercado nas Cidades Secas, pois,
embora ninguém estivesse por perto, não podiam ter certeza de não serem ouvidos. Como
suas cidades irmãs, Daillon e Ardcarran, Shainsa dependia fortemente de comida, couro e
outros bens importados, muitos deles vindos dos Domínios. Durante eras, os exércitos de
Shainsa tentaram de novo e de novo capturar e aproveitar Carthon como porta de entrada
para as terras férteis além.
- Suponho que, se desejar que um homem negocie com você, você deve fazer valer a
pena. - Gareth disse.
- Agora você está começando a pensar como um de nós. - Rahelle disse. - Todo
homem, não importa quão poderoso ou humilde, tem seu próprio orgulho. Sim, até mesmo
os mendigos da praça e os pastores com seus animais.
- Até as mulheres.
Ela olhou para ele sob cílios escuros e meio baixados. - Sim, até. Assim, o Lorde que
tira o kihar de outros e não deixa nada além de sonhos de vingança, esses sonhos virão,
mais cedo ou mais tarde, para colher o fruto de seus atos.
E isso é tão verdadeiro nos Domínios quanto aqui, Gareth pensou. Quando o Comyn
agiu sabiamente e usou seu laran com cautela, todos prosperaram, mas quando não o
O s f i l h o s d o s r e i s | 101

fizeram... Houve mais de uma revolta camponesa nas turbulentas Eras do Caos. O que quer
que acontece uma vez pode acontecer novamente.
De todas as coisas que ele previra nesta jornada, estar de pé em uma praça de Shainsa
discutindo política com uma mulher disfarçada de aprendiz de comerciante não era uma
delas.
Cyrillon estava ocupado em se preparar, trocando sua roupa suja de trilha para uma
camiseta limpa de linha fina aparada com bandas de tiras de couro intricadamente
trançadas. Gareth, na melhor de suas duas mudas de roupa, tinha uma aparência menos
imponente, assim como Rahelle. Eles seguiram Cyrillon através da praça, onde a multidão
da manhã já havia começado a se dispersar.
Quando chegaram à Grande Casa, os guardas diurnos de Dayan estavam ao lado das
portas duplas. Cyrillon falou com aquele mais alto e, depois de um momento, as portas se
abriram, e outro guarda os escoltou para dentro.
Passando por um hall de entrada que teria sido quase impossível de tomar pela força,
marcharam por colunas onde homens em vestes de seda de aranha bordadas paravam sua
conversa para observa-los. De um lado, um arco requintadamente esculpido proporcionava
o vislumbre de um pátio com jardim interior, silencioso, exceto pelo som de fontes. Gareth
sentiu o cheiro de flores sob o abrigo de árvores amplas. Ali nas Cidades Secas pouco
crescia, a menos que fosse plantado, exceto espinheiros. Este oásis era um tesouro além do
ouro. Gareth não havia percebido que havia tanta riqueza em Shainsa. Certamente, as
paredes externas davam pouca indicação dessa opulência.
Eles foram para a câmara de audiência de Dayan, um salão de pedra polida, brilhando
com iridescência em rosa e ouro. O ar estava denso com incenso e o ambiente era escuro.
Guardas, seus olhos brilhando, as mãos em alerta nas espadas, protegiam as três portas,
enquanto os servos deslizavam sobre o perímetro como sombras sem ruídos.
Espreguiçadeiras de couro flexível, com suas laterais ornamentadas com bordados de
fios de ouro, em padrões circulares, estavam sobre os tapetes enfeitados com joias. Ali,
alguns homens tão ricamente vestidos como aqueles do lado de fora, estavam recostados
preguiçosamente.
Na cabeceira deles, um homem em uma camisa escura e austeramente cortada
ocupava a única cadeira. Por algum truque de luz, seu cabelo bem penteado e barba
esculpida brilhavam como ouro, ou assim Gareth pensou até que ele percebeu que o efeito
era devido a minúsculos fios metálicos entrelaçados no cabelo natural. Mesmo sem a aura
de poder no homem e a intensidade de seu olhar, não poderia haver dúvida que aquele era
o atual Lorde de Shainsa.
O s f i l h o s d o s r e i s | 102

Em um lampejo do olhar do Lorde, um dos homens nas espreguiçadeiras se levantou e


veio em direção a eles, um homem mais velho que, ao contrário dos outros, não usava uma
espada.
- A Voz de Dayan. - Rahelle sussurrou para Gareth.
Gareth tinha alguma experiência com as frases floridas e elogios formais tão comuns
nas Cidades Secas. Agora, ouvindo-as serem trocadas entre a Voz e Cyrillon, sob olhar
vigilante e quase não notado de Dayan, cada palavra parecia assumir um significado oculto.
Gareth se orgulhava de seu conhecimento das subcorrentes de poder, afinal tinha crescido
sendo alvo da ambição de todos os Lordes maiores ou menores. Aqui, embora entendesse
os significados literais de cada discurso, ele captava apenas superficialmente o que estava
sendo dito.
Cyrillon falou por todos eles, oferecendo os presentes que haviam trazido. A Voz os
recebeu, exclamando ao notar as lentes de Gareth. O olhar de Dayan não deixou Cyrillon,
nem mesmo para olhar os presentes. Nem ele e nem seus cortesãos deram mais atenão a
Gareth e Rahelle do que davam a seus próprios servos. Gareth sentiu que havia sido
avaliado e dispensado.
A entrevista parecia interminável. As pernas de Gareth doíam pela tensão. Usando sua
experiência em Assuntos Sociais do Comyn, ele se manteve calmo com o semblante nunca
traindo seu desconforto. Ele manteve seu foco no processo tedioso com autodisciplina. Ele
não sabia nada do Lorde de Shainsa, mas presumiu que qualquer homem que pudesse
tomar e segurar o poder ali devia ser inteligente e implacável. Por outro lado, Cyrillon era
um comerciante experiente, de fala mansa e astuto.
Em um ponto, os servos trouxeram bandejas de comida e bebida, jaco em pequenas
xícaras de porcelana de um azul translúcido, bolos de frutas secas com nozes e especiarias
doces, e pães pincelados com mel. Dayan aceitou uma xícara e um dos bolos, depois
gesticulou para serem oferecidos a Cyrillon, observando com os olhos brilhantes de falcão
enquanto o comerciante tomava um gole e dava uma mordida. Gareth supôs que tais
homens viviam com a ameaça diária de envenenamento e era uma honra concedida a um
convidado quando o chefe da casa era o primeiro a provar uma refeição.
Dayan sinalizou para encerrar a entrevista e a Voz os escoltou para fora da sala. O
crepúsculo estava acabando quando outros convidados passeavam ou se apressavam para
cuidar de seus assuntos. A Voz deu a Cyrillon uma pequena caixa com especiarias e um
medalhão de porcelana em um cordão de seda. No caminho de volta para o acampamento,
Rahelle explicou que o presente era sua forma de sinalizar a permissão para que eles
negociassem não apenas ali em Shainsa, mas também em todas as terras onde Dayan tinha
influência.
O s f i l h o s d o s r e i s | 103

- É uma coisa boa, ela disse - e não é frequentemente concedida. Acho que ele ficou
satisfeito com suas lentes e deseja encorajar mais comércio com essas coisas. Nós faremos
um bom negócio amanhã.
O s f i l h o s d o s r e i s | 104

Capítulo 12

Na manhã seguinte, antes mesmo de Cyrillon terminar de montar os estandes para


mostrar sua mercadoria, um pequeno grupo havia se reunido. Ele não era o único
comerciante na praça do mercado, nem seus bens eram do tipo mais procurados, mas a
informação sobre o favor de Lorde Dayan evidentemente havia se espalhado. O medalhão
fora pendurado em um lugar de destaque de um dos postes de canto. Quando abriram para
os negócios, Gareth se perguntou em voz alta se alguns dos compradores teriam vindo
apenas para que pudessem ser vistos socializando com alguns comerciantes favoritos de
Dayan.
Rahelle riu, mas não discordou. Como ela havia dito, eles poderiam compensar o lucro
perdido nos presentes aumentando seus preços. No entanto, Cyrillon teve o cuidado de
não cobrar muito. Nenhum cliente poderia se queixar de um negócio injusto.
Houve um pouco de interesse nas lentes de Gareth e, no início, ele havia se
preocupado com a ideia de que vendesse todos muito rápido. Porém a maioria tinha ido
olhar em vez de comprar e, os que compravam, escolhiam apenas uma ou duas peças.
Apesar de terem grande utilidade, elas ainda eram bens de luxo. Graças à tutela de Cyrillon,
Gareth conseguiu negociar de forma crível.
O sol se moveu acima e a multidão se dispersou quando o calor carmesim do meio-dia
pareceu cozinhar o solo. Gareth, satisfeito com o trabalho da manhã, ajudou a fechar os
estandes. Não havia nada a ser feito até as horas mais frescas. Esse podia ser um momento
oportuno para ver o que conseguiria descobrir na cidade.
Cyrillon tinha se deitado para descansar e Rahelle tinha se sentado na sombra do toldo
na entrada da barraca. Sentada de pernas cruzadas, ela estava inclinada sobre um cinto de
freio. Gareth a observou manipular a agulha curva, mergulhando-a dentro e fora do couro,
usando o fio encerado na costura perfeita.
Ela olhou para cima. - O que você está olhando? Nunca viu ninguém costurando antes?
- Claro. Em casa, minha mãe sempre tinha alguma peça de bordado na mão,
geralmente para almofadas ou tapetes. Nada tão útil quanto o que você está fazendo.
- Fala um homem que nunca teve de contar os buracos nos lençóis. Bordados não são
apenas para beleza. Os fios adicionados fortalecem o pano contra o desgaste, assim como
as tiras em punhos e golas. Ou você acha que isso é mera decoração e que a costura não
tem outra função senão a de divertir as mulheres que não têm outra ocupação?
Para isso, Gareth não tinha uma resposta pronta. Ele nunca tinha pensado muito sobre
na contribuição das mulheres para a família. - Você não fica preocupada que alguém aqui a
veja está fazendo um trabalho de mulher?
O s f i l h o s d o s r e i s | 105

- Freios e peças de vestuário precisam ser reparados, havendo uma mulher para fazê-
lo ou não, - Rahelle respondeu sarcasticamente - e não há nada de efeminado em cuidar
dos equipamentos. Sou um aprendiz obediente, executo tarefas designadas para mim por
meu mestre. Você pretende ficar aí o dia todo? Há uma segunda agulha se quiser
remendar.
- Tenho a intenção de encontrar uma refeição e talvez um pouco de fofoca. - Num
impulso, ele acrescentou: - Você vem comigo?
Ela balançou a cabeça. - Agora que já abrimos para os negócios, um de nós deve ficar
aqui. - Ela guiou o fio por baixo do último ponto e usou uma pequena faca para cortar-lo. -
Não gosto da ideia de você sair sozinho. Você tem um talento natural para se meter em
encrencas. Cuidado com o que irá dizer por aí.
- E com o que fizer e para onde guiarei meus pés. Estamo no ápice da luz do meio-dia...
Quão perigoso pode ser? Eu cresci em uma cidade. Eu sei para o que não devo olhar.
Rahelle parecia incomodada, mas não disse mais nada.
Gareth começou vagando pelas áreas externas, onde um punhado de outras caravanas
tinham montado seus acampamentos. A maioria tinha acabado de negócios da manhã e
agora descansavam, ainda vigilantes, à sombra de suas tendas. Ele se aproximou deles com
certa confiança desde que tinha escutado Cyrillon iniciar uma conversa com os
comerciantes companheiros e pensou que poderia fazer o mesmo.
Comerciantes, como outros drytowners, raramente iam direto ao assunto
imediatamente. Gareth ofereceu cumprimentos e comentários sobre o gado e as condições
dos poços e estradas. Seguiram-se elogios e perguntas sobre de onde tinham vindo e o que
eles poderiam ter para vender ou se havia algum interesse em compras convencionais.
Gareth deixou escapar uma dica aqui e ali de que estava curioso sobre “bens comerciais
incomuns” e histórias de acontecimentos estranhos no deserto.
- Que histórias das terras distantes não são estranhas? - Um dos cavaleiros de
oudrakhi disse. - O sol suga a medula do cérebro de um homem de modo que o faz ter as
mais fortes visões.
- Você se refere a miragens no calor do meio-dia - Gareth perguntou - ou algo mais?
Homens desaparecendo em um flash de luz, talvez?
O tropeiro fez uma careta. - Não é prudente falar sobre essas coisas que apenas os
deuses devem ter conhecimento.
- Eu não pretendia ofender. - Gareth disse levemente. – Costumo colecionar contos
para levar para casa e divertir as crianças. Elas se cansaram das mesmas velhas histórias
contadas ao pé da lareira.
- Se é contos que você procura, deixe-me dizer-lhe um sobre um oudrakhi com os três
bezerros...
O s f i l h o s d o s r e i s | 106

O conto do tropeiro foi, como prometido, divertido, embora Gareth não entendesse
completamente o humor nele. Com um pouco de uso de seu laran, até mesmo sem ajuda
por sua pedra da estrela, ele foi capaz de sentir quando o contador de histórias achou algo
engraçado e Gareth riu como se tivesse entendido. Como alguma forma de reciprocidade
era claramente esperada, ele contou uma das muitas histórias das Hellers sobre Durraman
e seu burro terrivelmente decrépito e recalcitrante.
Eventualmente, Gareth se despediu de seus novos companheiros e foi mais para o
interior de Shainsa. A cidade era um labirinto, uma série de quadrados abertos ligados por
becos tortuosos. As paredes branqueadas pelo sol deixavam os rostos difíceis de enxergar
com o efeito da luz. Aqui e ali, crianças com cabelo pálido brincavam nas sombras. Alguns
velhos estavam nos bancos de pedra, seus rostos tão desbotados quanto suas roupas e
muitos deles tinha cicatrizes profundas. O que eles tinham testemunhado e o que poderiam
contar? Gareth não conseguia pensar em nenhuma maneira de se aproximar deles.
Ele notou uma figura, encapuzada e com manto amarelo, inclinado sob o peso de um
jugo onde dois grandes baldes estavam pendurados. A figura passou de um ancião
decrépito para o outro, oferencendo os baldes. Curioso, mas tentando não parecer
enxerido, Gareth observou a figura mergulhar uma xícara de água e dar a cada um. Nada foi
oferecido em troca. A visão o comoveu inesperadamente, pois ele não tinha pensado
encontrar caridade nas Cidades Secas. Talvez sentindo sua atenção, a figura encapuzada se
virou para ele e Gareth viu o símbolo costurado em seu peito, a mesma representação
estilizada do Deus-Sapo, Nebran, igual aquela no medalhão que sua avó lhe dera.
No final, ele voltou para a Rua dos Cinco Pastores e as lojas de vinho lá. A essa altura,
uma dispersão de lanternas vermelhas indicava estabelecimentos abertos para os negócios.
Gareth escolheu uma que não parecia nem muito pobre, nem muito rica, o tipo de
lugar que um homem com algumas moedas para gastar podia procurar. O interior
escureceu em sua visão após o brilho da rua. Um aroma penetrante de mofo envelhecido
pesava no ar. Homens estavam esparramados em almofadas manchadas ou encolhidos em
círculos no chão de pedra áspera. Por trás de uma cortina veio vozes e o barulho de
utensílios de cozinha.
Gareth se abaixou no chão e virou-se para o homem mais próximo. O colega parecia
tão sujo e cansado quanto qualquer um deles, meio inclinado sobre uma caneca de
cerâmica lascada que estava claramente vazia.
- O que você está bebendo? Posso lhe pagar a próxima rodada?
O homem grunhiu. Na luz parcial, seus olhos estavam brilhando como fendas. Gareth
hesitou, inseguro sobre se isso significava um sim ou um não. Então ele viu que metade dos
homens na sala notaram aquela interação, alguns olharam, seus semblantes ilegíveis.
O s f i l h o s d o s r e i s | 107

- Não entendo, o que quis dizer... - ele começou, então percebeu que era a coisa
errada a dizer. Ele procurou em sua memória pelas palavras que tinha ouvido em Carthon. -
Se você não tem uma rixa sangue com minha família, aceita beber comigo?
O que aconteceu em seguida foi rápido demais para Gareth acompanhar. Homens
que, apenas um instante antes estavam se esparramados pela sala como se não tivessem
vontade ou energia para se sentar direto, agora estavam de pé. Vários gritavam palavras
Gareth não reconheceu. O homem com quem Gareth falara sacou uma faca e cortou seu
rosto.
Gareth se afastou do alcance e se esforçou para ficar de pé. Uma linha em sua
bochecha ardia como fogo e ele sentiu um fio de umidade. Não era um corte sério. A dor
desapareceria em um momento. O perigo estava no motivo do ataque.
O homem que o tinha atingido, o que Gareth oferecera uma bebida, afundou na
posição de um lutador. O posicionamento do pé era um pouco diferente do que os mestres
de Gareth haviam ensinado, mas a intenção era inconfundível. Ao redor deles, os outros
homens formaram um círculo, murmurando.
Senhor da Luz! Sem querer, ele de alguma forma insultara esse homem. Ele havia sido
desafiado e, se não respondesse ou se dissesse a coisa errada, a sala inteira se voltaria
contra ele como um bando de lobos sobre um chervine ferido. Um homem sem orgulho,
sem kihar, era um alvo fácil. Essa fora a primeira lição que aprendera sobre a honra nas
Cidades Secas.
- Cérebro de calçador de sandálias! - O homem cuspiu. O “calçador de sandálias”
aparentemente era um insulto ali tanto quanto nos Domínios.
Um dos espectadores pressionou uma espada na mão do homem. Sem pensar, Gareth
puxou sua lâmina. Seu coração pesou quando seus dedos se fecharam ao redor do punho.
Os drytowners iriam derramar seu sangue, talvez até arrancar suas entranhas se tivessem
chance, sem nenhuma exitação e não havia saída. A multidão queria essa luta.
Alguma resposta parecia ser necessária. Gareth tentou lembrar o que como os
tropeiros chamavam seus animais teimososo. Se ele fosse forçado a uma troca de insultos,
tinha que ser uma boa, pelo menos.
- Imundo filho de um cralmac do deserto! Não vou sujar minha lâmina com seu
sangue!
Um dos observadores gritou em apreciação.
- Então murche e morra como os excrementos de um kyorebni na Planície de Fogo! - O
adversário de Gareth estreitou os olhos e pisou para o lado, circulando. Toda a aparência da
intoxicação pela bebida sumiu.
O s f i l h o s d o s r e i s | 108

Gareth ajustou sua posição para ter maior vantagem, equilibrou o peso de sua espada,
o tremor em sua barriga parou, o calor o percorreu, cada detalhe entrou em foco. A
adrenalina corria por suas veias.
Ele notou a mudança no olhar de seu oponente, um instante antes do ataque, então
girou movendo sua espada para parar o corte na parte mais forte da lâmina. O homem
atacou com a faca em sua outra mão, rápido e forte. Gareth pulou para trás, guiado por
sorte e instinto.
Eles se envolveram novamente, uma enxurrada de golpes e contra-ataques rápidos. O
homem tropeçou em uma pedra solta no chão e se moveu mais devagar. Ele realmente
estava bêbado, Gareth percebeu, e estava lutando por reflexo em um estilo projetado para
ser um show corajoso e uma vitória precoce.
Gareth não queria matar o homem. Não havia outra maneira de acabar com a luta?
Cada momento de atraso só aumentava a possibilidade de que um deles acabasse mutilado
ou morto. E porque? Porque um homem era ignorante demais para saber o que estava
fazendo e o outro bêbado demais ou apenas apaixonado demais por seu kihar? Isso valia a
vida de um homem? Era um desperdício! Um desperdício obsceno e fútil de vida.
Eles circularam novamente, atacando, bloqueando e então se afastando. Em um
impulso, Gareth entrou na abertura seguinte, apontando não para um alvo vital, mas para o
rosto do homem. A ponta de sua espada atravessou a maçãs do rosto, quase por acaso no
mesmo lugar que Gareth tinha sido cortado. O sangue escuro brotou.
Gareth recuou, momentaneamente abalado pela raiva que o guiara. Seu adversário
levantou uma mão para sua bochecha e olhou para os dedos sujos de sangue. O cômodo
parecia segurar sua respiração coletiva.
- Agora... – Gareth disse, agindo com toda a cautela. Ou será esse o problema? - Agora
você é tão feio quanto eu!
Os homens congelaram, tanto os espectadores quando os combatentes. Até os ruídos
da cozinha sumiram. O único som era o zumbido de uma única mosca enquanto circulava as
xícaras de vinho desacompanhadas.
O outro homem jogou a cabeça para trás e riu de forma escandalosa. Gareth olhou
para ele, estupefato. Os homens que assistiam relaxaram, batendo uns nos outros nas
costas e voltando às suas bebidas. Em pouco tempo o quarto voltou ao mesmo estado de
quando Gareth entrou. Seu adversário, guardou a espada de volta, abaixou-se no chão e
gesticulou para Gareth.
- É só olhar para você para ver que uma formiga-escorpião de cauda dupla te agraciou
com suas bênçãos. Ah, mas vejo que você está sob a proteção de Nebran...
A mão de Gareth foi para a abertura em sua camisa onde o medalhão de Linnea
balançou livremente em sua corrente.
O s f i l h o s d o s r e i s | 109

- E assim, como o sapo sobrevive à seca e vive para lutar com a formiga-escorpião,
todos os homens com kihar devem prosperar. Venha, venha, sente-se conosco. E se Nebran
estender suas bênçãos, a próxima rodada de bebida será paga.
Retornando sua espada para a bainha, Gareth se agachou ao lado dos outros homens.
À medida que a conversa continuava, ele descobriu que era desnecessário dizer qualquer
coisa, apenas acenar em concordância e dar ao dono da loja de vinhos uma moeda ou duas
quando ele chegava com jarros de vinho azedo e temperado.
Várias canecas depois, o oponente de Gareth, ainda mais bêbado do que antes,
tornou-se efusivamente amigável. O próprio Gareth tinha soltado mais do que pretendia.
Quando seu novo companheiro de bebida qual era seu negócio em Shainsa, ele encolheu os
ombros e tentou parecer entediado.
- Estou em uma tentativa de negócios. – Gareth disse. – E procurando por algo que
ninguém mais tem. Estou disposto a ir para lá ou... - ele gesticulou no que esperava ser a
direção de Daillon e Black Ridge - ...lá para conseguir. Bens comerciais incomuns, sabe.
Coisas que fazem boom ou tem flashes ou qualquer outra coisa. Sabe o que quero dizer?
Seu novo amigo, cujo nome era Rasham, Raseem ou algo parecido, bateu na coxa. -
Para ver coisas assim é preciso ser tocado pelos deuses. E para ser tocado pelos deuses é
preciso ser muito sagrado ou querer muito deixar essa vida amaldiçoada. Você não parece
sagrado. Eu pareço? - Ele se inclinou para frente, respirando pesadamente. O cheiro
horrível de vinho e suor atingiram Gareth. No instante seguinte, Rasham caiu de lado sobre
Gareth.
De repente, toda a situação pareceu repugnante e Gareth se livrou e levantou. Ele deu
ao dono da loja de vinhos mais algumas moedas e saiu. Ele havia desperdiçado o resto do
dia, quase se matado, recebeu um corte que certamente deixaria uma cicatriz que teria que
explicar a sua mãe histérica, e agora sua barriga se revirava ameaçando o fazer vomitar
todo o vinho barato que engolira.
Gareth não conseguia ver nenhum ponto de referência, apenas o sol pendurado no
céu, vermelho e inchado, mas onde ele estava em relação ao acampamento na praça e de
Cyrillon, ele não podia dizer. Quando desceu as ruas empoeiradas, ele tentou parecer
confiante, de modo a não se tornar um alvo óbvio para ladrões de carteiras. Por um tempo,
ele poderia jurar que estava sendo seguido, mas quando se virou para olhar, não viu nada
além de sombras.
Ele se virou e acabou em um beco sem saída, quente e cheirando a fogueiras com
mendigos ao redor no final. A rua estava longe de ser deserta, afinal, a essa hora a cidade
estava voltando à vida. Um vento surgiu, pesado com os cheiros de incenso de um
santuário de rua, especiarias desconhecidas e óleo de cozinha rançoso.
O s f i l h o s d o s r e i s | 110

Gareth sentiu uma agitação, uma respiração em seu pescoço. Ele virou. Um drytowner
sujo e com cicatrizes no rosto, usando uma camisa vermelha manchada, tinha surgido atrás
dele.
Gareth tentou se mover de volta para uma postura de vigilância. Ele cumprimentou o
homem: - Não conheço seu rosto. Tenho algum dever com você?
Os olhos do homem estavam tão pálidos quanto o gelo. Os lábios se contorceram
sobre dentes que eram surpreendentemente brancos. - Não, mas isso pode ser organizado.
Posso ter o que você está procurando. - Ele falou claramente, mas com um estranho
sotaque pesado.
O coração de Gareth deu um salto. - Vamos encontrar um lugar onde podemos falar
livremente.
- Aqui não. - Os olhos pálidos piscaram para onde um grupo de homens com roupas
irregulares estavam conversando, vozes baixas e as mãos próximas de suas espadas. - Hoje
à noite, quando apenas Mormallor brilhar no céu, venha a Região das Senhoras Fãs de
Prata. Talvez então possamos descobrir algo para a vantagem um do outro. - Mais uma vez,
o homem deu aquele sorriso e virou-se para ir.
- Não, espere!
- Há coisas no deserto profundo, coisas escondidas do sol nas areias, coisas além do
poder dos homens. Coisas enviadas em resposta às nossas orações. Coisas que nos
concederão uma vitória sagrada sobre as bruxas do norte.
Por Aldones, 'as bruxas do norte' significa o Comyn! O homem estava falando de
guerra contra os Domínios.
- Mas...
- Venha sozinho. Eu saberei se você for seguido. Até as sombras têm ouvidos.
Sem outra palavra, o drytowner se afastou.

~o ⭐ o~
Quando Gareth chegou ao acampamento dos comerciantes, a noite tinha caído
completamente. O resto de adrenalina desaparecera de suas veias, deixando-o enjoado e
abalado. Rahelle e Cyrillon estavam sentados em torno de uma fogueira de estrume seco
de oudrakhi, como tinham feito na trilha. O odor pungente despertou os sentidos de
Gareth.
Rahelle ofereceu-lhe chá e um prato de verduras fervidas e grãos temperados com
pequenas sementes. Enjoado, ele acenou dispensando a comida e abaixou-se ao chão. Ele
ainda estava um pouco bêbado, o corte em sua bochecha latejava, e seus músculos
começaram a endurecer depois da luta.
O s f i l h o s d o s r e i s | 111

- O que aconteceu com você? - Ela perguntou. - Que tipo de problema você conseguiu
nesse meio tempo?
Gareth tentou se gabar com humor do duelo, mas o encontro ainda parecia um erro
horrível. Rahelle olhou para ele, mas não disse nada. Sem dúvida ela estava pensando que
ele era um homem incapaz de abrir a boca sem colocar em risco sua vida. Na mente dela,
ele deixaria um rastro de sangue e acidentes onde quer que ele fosse.
Por que ele se importava com o que ela pensava? Ele não conseguia se lembrar de
uma época em que as pessoas ao seu redor o haviam encarado com qualquer coisa
distantemente inspirando respeito. A única diferença entre antes e agora era que ele não
estava mais se encolhendo na sombra de sua desgraça.
Cyrillon, por outro lado, não pressionou Gareth para mais detalhes. No final do conto,
ele assentiu e disse: - Vendo o quão bem você lutou na trilha, não creio que você realmente
estivesse em perigo. Você resolveu o problema e mostrou presença de espírito.
Eu mostrei o que idiota eu sou!
- Da próxima vez - Cyrillon terminou - você se sairá ainda melhor.
- Se quer a minha opinião, não deveria haver uma próxima vez. - Rahelle disse. Ela
parecia desejar amarrar suas mãos e pés para evitar que ele causasse ainda mais
problemas.
- É imprudente tentar controlar assuntos sobre os quais se tem pouco conhecimento e
ainda menos compreensão. - Cyrillon disse.
Ela deu a ele um olhar furioso, mas não disse mais nada. Gareth lembrou de como,
depois de ser mandada permanecer no vagão, ela lutou ao lado dos homens contra os
bandidos. Agora ela abaixou a cabeça e começou a reunir os pratos para esfregá-los na
areia.
- Beba o chá. - Embora Cyrillon não tivesse dito, em sua voz havia um tom implícita
que significava 'você precisará disso'.
O tisano4 aromático chá de ervas pareceu devolver a coragem de Gareth. Estendendo-
se em seu cobertor, ele fechou os olhos e pensou em apenas descansar por alguns minutos
enquanto o chá terminava seu trabalho calmante.
Depois de um momento de confusão, ainda grogue, ele percebeu que algumas horas
tinham se passado. Uma varredura de estrelas brilhava no céu noturno. Agora totalmente
acordado, ele escorregou para fora da tenda. As brasas de várias fogueiras brilhavam
vagamente. Além delas a cidade era um grupo de luzes em pequenos pontos. Ele checou
sua espada, a faça na bota e enfiou o amuleto contendo sua pedra da estrela dentro de sua
camisa.

4
N. da T.- ‘Tisano’: espécie de chá de ervas medicinais, feito sob infusão com várias partes de ervas.
O s f i l h o s d o s r e i s | 112

Fazendo o caminho de volta pela cidade, Gareth passou por um santuário de rua,
pouco mais do que uma cabana com um limiar enfeitado com ofertas de flores secas,
estatuetas de basalto ou pedras brancas, tigelas de cerâmica rachadas e uma dispersão de
doces embrulhados. Abrigado do sol por uma pequena telha havia uma tela pintada com a
imagem do Deus-Sapo.
Nebran estaria o seguindo em todos os lugares?
Ele refletiu que poderia ser um patrono pior patrono entre os deuses das Cidades
Secas. O Deus Sapo podia se manter agachado e ser feio, coberto de verrugas, mas pelo
menos seus seguidores faziam algo bom no mundo.
Não, espere... Gareth fez uma pausa, olhando em volta, tentando se lembrar se tinha
passado pelo mesmo santuário no início do dia. Ele deve ter virado errado em algum lugar.
Praguejando silenciosamente, ele refaz seus passos.
Eventualmente, ele encontrou um marco que reconheceu, uma loja de armas com um
sinal distintivo, seu emblema uma espada improvavelmente coberta por sangue. Tudo, até
as gotas de sangue pintadas, pareciam diferentes na noite. Idriel tinha sumido e Mormallor
agora pendia solitária no céu, um minúsculo mármore branco perolado.
Por fim, encontrou o lugar conhecido como Região das Senhoras Fãs de Prata, uma
pequena praça na beira do distrito das lanternas vermelhas. Luzes brilhavam nas janelas do
segundo andar. Uma porta se abriu e um homem tropeçou para a rua. Gareth captou um
cheiro de incenso e o tilintar de algum tipo de instrumento de cordas antes da porta ser
fechada novamente.
Cantando, o homem cambaleou em seu caminho. A praça ficou em silêncio. Gareth
hesitou e então algum instinto o apressou para a escuridão de uma marquise. Um
momento depois, ele notou o movimento em uma das ruas laterais.
Gareth sempre tivera boa visão noturna e seus olhos se adaptaram rapidamente. Ele
foi recompensado pela visão de uma forma magra e alta, movendo-se com a graça
calculada de um espadachim. A figura fez uma pausa, a cabeça se movendo ligeiramente de
um lado para o outro.
Gareth começou a se afastar de seu esconderijo, mas antes que ele pudesse dar um
passo três homens correram da escuridão e alcançaram a figura primeiro. Gareth não podia
fazer nada sobre eles devido o maior tamanho deles e a velocidade de seu ataque. Seus
ouvidos captaram o choque do aço contra aço e um som como um tilintar, talvez de alguma
arma menor ou uma corrente. Com dificuldade, ele se forçou a se manter quieto.
Suas vozes eram baixas, mas ele reconheceu o forte sotaque do homem com quem ele
deveria se encontrar. Ele ouviu algumas frases murmuradas dos outros, uma sílaba aqui,
uma palavra ali.
- ... Lorde Dayan...segredos...contos de fora do...o deserto...
O s f i l h o s d o s r e i s | 113

E então, tão rápido e baixo quanto a batida de seu coração: - Poder do raio...
Em uma enxurrada de sombras, os homens se afastaram na direção da Grande Casa.
Gareth não podia ver bem o suficiente para dizer se seu informante tinha ido
voluntariamente, mas isso não fazia diferença.
Os homens do Lorde Dayan estavam me seguindo. Eu os trouxe até ele.
Deuses, o que ele iria fazer? O que ele poderia fazer? Sua cabeça se encheu de
pensamentos sobre os torturadores de Dayan, fruto de cada conto da selvageria dos
drytowners que ele ouvira quando menino.
Eles arrancarão o segredo dele, se não por suborno então pela força.
Lorde Dayan estava procurando informações sobre estranhos acontecimentos e armas
no deserto profundo. Era por isso que ele questionava os comerciantes que passavam por
Shainsa. Ele devia ter ouvido os rumores, assim como Gareth.
Uma imagem surgiu atrás dos olhos de Gareth, o Lorde de Shainsa sentado em seu
trono, os olhos brilhantes, aguçados, medindo, testando. Um homem orgulhoso e
implacável o suficiente para pegar e manter o poder naquelas terras, com a inimizade de
eras que seu tipo tinha contra os Domínios.
Agora ele tinha ao seu alcance o melhor e único informante que Gareth tinha sido
capaz de localizar.
O s f i l h o s d o s r e i s | 114

Capítulo 13

- Mãe. - Dani Hastur chamou em uma voz controlada. - Você tem algo a ver com isso,
não é?
Linnea usou a calma que cultivou ao longo dos anos, primeiro como uma jovem
Guardiã, depois como Lady Hastur, depois novamente como Guardiã, e enfrentou seu filho.
Ela pensava agora que tinha feito bem em se certificar de que essa conversa ocorresse em
seu território, a Câmara da Torre Comyn reservada para receber convidados importantes.
Era um cômodo pequeno e graciosamente decorado, suas paredes um mosaico de granito
fino e pedra azul translúcida.
Dani Hastur nunca ficava à vontade na Torre. Ela não precisava de laran para ver isso.
Suas características normalmente relaxadas traíam sua tensão. Seus olhos de um cinza claro
que a lembrava tanto de seu pai, pareciam incomodados. Ele tinha chegado a anunciar na
câmara pública que seu filho desaparecera. Sua esposa, Miralys Elhalyn, agora escorregou
pela porta e fechou-a em silêncio atrás dela.
- Gareth vem estudando comigo, sim. – Linnea disse, deliberadamente não
respondendo a pergunta. Seu filho e a nora haviam chegado a Thendara mais cedo do que
o esperado tinham reagido a notícia da ausência de Gareth pior do que o esperado. - Tentei
ensinar o que ele teria aprendido em uma Torre, não apenas o conhecimento, mas também
a autodisciplina para o melhor uso de seus talentos.
- Não foi isso que eu perguntei. Eu quero saber se você tem alguma coisa a ver com a
saída dele em algum plano elaborado em seu cérebro imaturo que desconheço, com
alguém que também desconheço, e para onde. - Embora as palavras fossem irritadas,
Linnea notou o pulso de amor e preocupação abaixo delas.
- Você não quer se sentar? - Ela indicou o par de cadeiras bem acolchoadas em frente.
- Vocês dois?
Dani se recuperou, guiou sua esposa para a cadeira menor e sentou-se. - Sinto muito
por ter sido rude, mãe. Quando chegamos não encontramos Gareth em casa. O velho
protetor gaguejou uma história sobre uma expedição secreta às Cidades Secas... O que eu
deveria pensar? Gareth é um bom menino, você sabe disso, mas ele é impulsivo e
facilmente influenciado.
Fraco, ele quer dizer.
Linnea não disse nada. Claramente Dani estava pensando naquele episódio hediondo
de anos atrás. Se o próprio pai de Gareth não podia deixar tal episódio de lado, que
esperança poderia existir de os que não conheciam o menino o fizessem?
- Facilmente influenciado. – Miralys repetiu. Sua voz, embora baixa e agradável, os
tons bem modulados de uma dama, carregavam uma boa medida de preocupação. - Gareth
O s f i l h o s d o s r e i s | 115

sempre amou histórias de aventura e ousadia. Não pudemos deixar de pensar em Dom
Regis e todas as coisas perigosas que ele fez quando era jovem, como partir para o castelo
Aldaran para resgatar o tio Danilo. Gareth apenas é do tipo romântico incorrigível que seria
capaz de fugir em um capricho.
Ela não acrescentou, embora Linnea tivesse captado o pensamento: ...mas Gareth não
é Regis e estes tempos são diferentes. Ele precisa se provar como sério e confiável...mas há
tão poucos de nós...
E, Linnea adicionou silenciosamente, quem melhor para ajudar na rebelião de um
jovem do que uma avó que o ama? Sua avó, Desideria Storn, viveu a vida em seus próprios
termos, desafiando a convenção até o dia de sua morte. Eu tenho sido mais calma nesse
sentido.
Olhando para os rostos ansiosos de seu filho e da nora, no entanto, ela não podia rir
de suas preocupações.
- Gareth guardou segredo de mim e quando consegui falar com ele, forneci a melhor
ajuda que pude.
- Se eu soubesse que ele pretendia tal coisa, eu o teria parado. - Dani murmurou.
- Foi por isso que, como tenho certeza de que ele sabia qual seria sua reação, ele fez o
seu melhor para garantir que não soubesse de nada. – Linnea disse.
A expressão tensa de Miralys amoleceu conforme Linnea descrevia os arranjos que
Gareth havia feito, um guia que era experiente e confiável, um disfarce crível de
comerciante... – E se cercou de proteções que eu mesma teria planejado para ele.
Linnea deliberadamente omitiu a possibilidade de entrar em contato com Gareth
através de sua pedra da estrela. Poucas telepatas poderiam fazer tal coisa sobre tamanha
distância, por isso era uma medida a ser usada apenas em emergências.
- De qualquer forma, - ela concluiu - Gareth pretende voltar a Thendara antes da
abertura da temporada do Conselho. Ele está ciente de suas responsabilidades. Eu o
conscientizei, no entanto, de que, se você focar em censurá-lo, o resultado mais provável
será que ele tenha muito mais dificuldades na próxima vez que ele decidir fazer algo assim.
- Na próxima vez?! - Miralys chorou.
- Não haverá uma próxima vez. – O marido disse.
- Mas haverá uma próxima vez, - Linnea o corrigiu - e outra depois dessa, até que o
sentimento de liberdade e vontade de se encontrar termine seu curso dentro dele.
Podemos pensar junto com ele, podemos orar por ele, podemos tentar protegê-lo no
mundo, mas não podemos transformá-lo em um fantoche obediente. Javanne tentou e
todos sabemos o resultado.
O s f i l h o s d o s r e i s | 116

Por um longo momento, nem Dani e nem Miralys falaram. Uma pequena ruga de
preocupação marcou as características de Dani. Quando se desvaneceu, deixou um fio de
suor. A pele pálida de sua esposa não se alterou, a fazendo parecer feita de mármore.
- Você está certa, não há nada a ser feito. – Dani concordou, parecendo infeliz. Então
ele se voltou para Miralys e disse: - Gareth não é mais uma criança. Nós não podemos
trancá-lo como um prisioneiro. Como ele pode ter um futuro no Conselho, seja coroado ou
não, se ele nunca aprender a se governar?
- Essa é uma questão que os pais têm perguntado desde o início dos tempos. – Linnea
disse. - Queremos manter nossos filhos seguros e, no entanto, também queremos que eles
se tornem homens e mulheres seguros de si.
Eu queria levar meus filhos a pensar por si mesmos e agora é tarde demais para mudar
de ideia. Marguerida dissera uma vez.
- Eu gostaria que fosse tão simples quanto uma escapada de um jovem. – Dani disse. –
Mas há mais em jogo aqui do que a aventura de um jovem.
Linnea franziu a testa. Seu trabalho como Guardiã a mantinha isolada da política diária
da Corte e, geralmente, ela preferia dessa maneira. - O que está acontecendo?
- Tenho razões para acreditar que o Conselho levantará a questão da Regência de
Gareth. Eu esperava adiar isso em mais uma temporada ou duas.
- Regência de Gareth? Qualquer coisa precisa ser feita realmente? Certamente,
Mikhail é mais do que competente em seu trabalho.
- Sim, ele é. - Os olhos de Dani brilhavam muito como o de Regis e Linnea lembrou a si
mesma que ele havia crescido cercado por estratégias e alianças. - Metade do Conselho
gostaria que sua posição fosse permanente e a outra metade quer que ele seja substituído
por alguém que possam manipular.
- Gareth. – Linnea disse desnecessariamente.
- Se não ele, - Dani disse severamente - então Derek.
- Derek? Certamente que não, ele é jovem demais. - Ou seja, Linnea corrigiu a si
mesma, é perfeito. Derek tinha todos os ingredientes de um forte administrador de Elhalyn,
mas ele nunca havia sido educado para reinar. Ele desejava o trono?
Mikhail não era Regis, nem Danvan Hastur, mas, à sua maneira, ele era um verdadeiro
estadista, estável e ainda assim com pensamentos futuristas. Seu julgamento sempre fora
bom e havia sido habilmente aconselhado por sua esposa de fora-do-mundo. Seria um ato
criminoso dispensar suas habilidades.
Gareth... Bem, Gareth ainda não havia se provado. No tempo que eles tinham
trabalhado juntos no íntimo contato telepático, Linnea detectou nele flashes de paixão, de
visão e coragem, do mesmo sentido de responsabilidade e auto-sacrifício que conduziram
Regis. O que Gareth não tinha era tempo para desenvolver totalmente essas qualidades.
O s f i l h o s d o s r e i s | 117

Se Gareth fosse declarado permanentemente incompetente, o Conselho arriscaria um


impasse entre os partidários de Mikhail e aqueles determinados a ter um fantoche sob seus
polegares coletivos. No final, Darkover poderia perder não apenas Mikhail, Gareth e Derek,
mas também o filho promissor de Mikhail, Domenic.
A luta poderia continuar por anos, drenando recursos preciosos e deixando o Comyn
dividido e vulnerável.
Quando os parentes brigam, os inimigos entram na lacuna.
Linnea não era uma pessoa sem influência, afinal era Guardiã da Torre Comyn e
membro do Conselho dos Guardiões. Ela não permitiria que seus netos fossem sacrificados
pelo desejo de poder de qualquer homem.
- Agradeço a vocês dois por me informarem. - Ela disse. - Ainda temos tempo para
planejar antes do início da temporada. Vou falar com os outros Guardiões, com Danilo
Syrtis e algumas outras pessoas. Não há motivo para pressionar o fim de uma Regência que
está funcionando tão bem. Nós não somos tantos assim para que possamos nos dar ao luxo
de eliminar qualquer membro da nossa casta.
Dani e Miralys se despediram depois de concordar em se reunirem para um café da
manhã em dois dias. Depois que eles tinham ido, Linnea retornou aos seus aposentos
privados. Ela pretendia meditar, acalmar sua mente e reunir energia para o árduo trabalho
pela frente. Como uma sonâmbula, ela passou pelos movimentos de preparação.
Assombrada pelas palavras de Miralys: Há tão poucos de nós...
Ela atravessou os cômodos tocando as poucas posses que trouxera com ela de sua vida
com Regis: uma caixa esculpida com tampa articulada na qual ela mantinha o fecho de
borboleta para o cabelo e um xale velho. Ela tocou suavemente os objetos, uma impressão
marcada em sua memória despertada por cada um... A caixa lhe fora dada como um
presente de verão, o toque no cabelo de seu marido, os momentos compartilhando vinho
temperado quente em uma sombria noite de inverno e as lembranças de envolver a ambos
naquele mesmo xale.
Gareth era seu aprendiz, seu neto, cheio de possibilidades futuras e tumultuoso. Mas
ele era especialmente precioso porque o sangue em suas veias tinha vindo de Regis, assim
como dela.
Há tão poucos de nós...
Linnea pensou nos outros filhos de Regis, especialmente a filha que eles geraram em
uma noite de celebração selvagem. Por muito tempo, ela deixou essas memórias intocadas.
Mas ela tinha esperado por tempo suficiente.

~o ⭐ o~
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A única pista de Linnea sobre o destino de sua filha era a sugestão de Danilo sobre
Regis talvez ter confiado o segredo a Lew Alton. Lew tinha se isolado no mosteiro em
Nevarsin, onde ele tinha encontrado uma medida de paz depois de uma vida de tormentos.
Ninguém, muito menos Linnea, esperava que ele fosse deixar seu santuário. Ele tinha
sobrevivido a dois infartos, cada um deixando-o mais frágil. Linnea duvidava que ele
estivesse forte o suficiente para suportar as estradas montanhosas até Thendara. Ela
também não podia fazer a viagem para Nevarsin agora que Illona não podia realizar o
trabalho de uma Sub-Guardiã.
Quando a Torre Comyn foi restabelecida há vários anos, a câmara de retransmissão
tinha sido reativada novamente, tornando possível enviar mensagens telepáticas para as
outras Torres. As retransmissões, grandes telas de matriz que eram muito mais poderosas
do que qualquer pedra da estrela individual, amplificavam as transmissões de laran entre as
distâncias. Linnea ainda realizava esse trabalho quando seus deveres permitiam, em parte
porque a Torre Comyn ainda estava sem todo seu poder, mas também pelo simples prazer
de falar de mente para mente.
A jovem trabalhadora servindo naquela noite olhou com surpresa quando Linnea
entrou na câmara. Brunina Alazar era nova em Thendara, tendo sido descoberta por Danilo
Syrtis em uma de suas viagens através das Colinas Venza. Linnea pensava que ela podia ser
uma dentre os muitos filhos ilegítimos de Kennard-Dyan, e, portanto, parente de Illona
Rider, mas Illona não concordava.
Brunina ficou de pé, quase derrubando o banco acolchoado, e fez uma reverência. -
Vai leronis! Sinto muito, eu não estava esperando por você!
- Fique à vontade, criança. Não estou aqui para interrogar você. Illona diz que seu
trabalho é excelente e acredito. Quais são as notícias desta noite?
Brunina entregou-lhe o diário de bordo com a maioria das mensagens recentes
escritas em seu registro cuidadoso. A maioria tinha a ver com a próxima sessão, assuntos a
serem discutidos no Conselho dos Guardiões, além de algumas mensagens pessoais para o
pessoal da Torre. Linnea assentiu. - Isso está muito bom. Você gosta deste trabalho?
- Oh, sim! - Os olhos de Brunina brilharam. - Ouvir as vozes de pessoas que eu nunca
vi, vindas de tão longe, como se estivessem na mesma sala é mágico!
- Sempre me senti assim também. Agora tenho um assunto particular para tratar e
você ganhou um descanso. Vá até a cozinha e arrume algo para comer.
Com um sorriso e outra mesura, a moça pegou o xale e saiu quase dançando.
Eu fui assim quando jovem? Linnea acomodou-se no banco, assumindo uma postura
que lhe permitiria trabalhar por horas sem que a tensão lhe distraisse. Com sua mente, ela
fez alguns pequenos ajustes para nas telas de retransmissão. De maneira geral, elas se
O s f i l h o s d o s r e i s | 119

sintonizavam de modo que qualquer trabalhador Torre pudesse usá-las, mas Linnea queria
que a tela respondesse a seus pensamentos de forma tão focada quanto possível.
Ela concentrou sua mente, afastando todos os outros pensamentos, exceto a treliça de
pedras de matriz ligadas diante dela. Quando fechou os olhos, o padrão de luzes
permaneceu, uma constelação que ela podia sentir tão bem quanto ver. Com facilidade
praticada, ela guiou sua consciência nesse firmamento. Era, como sempre, como imergir
em um oceano de luz viva, ligada a ele até as profundezas de seu ser.
Quando alcançou o equilíbrio perfeito, ela começou a moldar as energias de laran para
manter o alvo em sua mente.
Nevarsin... Ela chamou.
Linnea visitara Nevarsin com Regis, pois ele havia estudado na escola do mosteiro, e os
cristoforos mantinham registros inestimáveis de muitas coisas. Agora ela imaginou uma
cidade antiga construída na lateral da montanha como se fossem parte dos ossos da terra.
Acima, como uma jóia bruta na borda da geleira que nunca derreta, estavam as paredes
cinzentas do mosteiro. Era um lugar difícil de alcançar, solitário, um lugar para isolar a alma
de um homem. Por que alguém, principalmente um velho torturado, escolheria esse
refúgio?
No entanto, quando Lew retornou a Thendara para ajudar a lidar com a febre da trilha,
ela havia sentido uma paz nele que não tinha palavras para descrever, difícil de alcançar até
mesmo no êxtase sem palavras do círculo.
Nevarsin...
Quem chama? A voz mental tinha um toque distintamente masculino. Linnea não o
conhecia, mas isso não era surpresa. Nevarsin era a mais isolada de todas as Torres.
Quando o Conselho de Guardiões era apenas uma ideia em discussão, Nevarsin tinha
enviado um único representante, Illona Rider. Illona permaneceu em Thendara, como Sub-
Guardiã na recém aberta Torre Comyn e como consorte de Domenic Alton. Nenhum outro
representante de Nevarsin havia participado das reuniões do Conselho até o momento. Os
Guardiões de outras Torres participavam de um ou outro encontro, mas não Nevarsin. Até
mesmo o contato nas telas de retransmissão era pouco frequente.
Quem chama?
Torre Comyn. Linnea respondeu.
De Thendara, tão longe? Há algo errado? O contato vacilou quando o trabalhador de
Nevarsin reconheceu a característica assinatura mental de um Guardião. Perdoe-me, vai
leronis. Sou Anndra MacDiarmid, mecânico de matriz. Como posso servir?
Eu gostaria de falar com Dom Lewis-Kennard Alton, no mosteiro. Por favor, avise-o
para que ele acesse as telas de retransmissão.
O s f i l h o s d o s r e i s | 120

Confusão tingiu a pausa que se seguiu. Linnea sentiu Anndra procurando por uma
maneira educada para recusar, o que, por si mesmo, era estranho. Seu pedido não era algo
fora da cortesia costumeira estendida entre as Torres. Lew podia não ser um membro do
círculo de Nevarsin, mas não era um estranho à ciência da matriz, tendo treinado em
Arilinn. Mesmo que ele estivesse sem prática, não deveria ter dificuldade em entender sua
pergunta e enviar uma simples resposta de sim ou não. Se ele não soubesse onde Regis
havia escondido Kierestelli, então seria o fim da conversa. Se ele soubesse, mas não
conseguisse explicar, então ela encontraria uma maneira de viajar as longas milhas até
Nevarsin.
Alguma coisa aconteceu com lew? Ela prendeu a respiração temendo a resposta. Ele
era velho, desgastado além de seus anos, e o clima de Nevarsin era duro mesmo nas
estações mais suaves.
Dom Lewis ainda está vivo e, tanto quanto eu sei, em boa saúde como qualquer
homem de sua idade, Anndra se apressou em dizer. Vinculados como estavam, seu instante
de medo havia sido claro para ele. Mas ele está em reclusão contemplativa neste momento
e não podemos pedir ao Padre Mestre para fazer uma exceção.
Não, claro que não. O equilíbrio de poder entre o mosteiro e a Torre era tão delicado
quanto o equilíbrio entre as várias partes que compunham o Conselho em Darkover. A
Guardiã de Nevarsin estava em uma posição muito melhor para negociar.
Então preciso falar com sua Guardiã. Linnea procurou em sua memória o nome da
mulher e percebeu o quão pouco sabia sobre a Guardiã de Nevarsin.
Qual era o nome dela? Solana? Silvana? Silvestra?
Vai leronis, eu gostaria de poder ajudá-la. O pobre homem parecia frenético em busca
de desculpas. Não há mais ninguém que servirá para isso ou qualquer informação que eu
mesmo possa fornecer?
Não era, afinal de contas, culpa de Anndra que ele não pudesse ajudá-la, e ele estava
claramente fazendo o melhor que podia.
Temo que isso não seja possível, não é? Lamento colocar você em uma posição difícil
pedindo para você levar meu pedido para sua Guardiã... Silvestra?
Silvana. Ela não se comunica com ninguém do lado de fora.
Ninguém? Sempre? Mesmo nas maiores Torres a sociedade não era tão confinada. A
intensidade do trabalho exigia a recreação mental e física. Quem poderia trabalhar em
intimidade tão exigente com o mesmo pequeno círculo, tenday após a tenday, ano após
ano? Certamente até mesmo o Guardião mais recluso devia sair um pouco para visitar sua
família ou alguns amigos que tivessem ido servir em outras Torres ou mesmo enviar
mensagens.
O s f i l h o s d o s r e i s | 121

Linnea enviou um pulso de pressão mental através das telas de retransmissão. A


Guardiã de Nevarsin podia recusar sua cooperação, mas teria que fazer isso ela mesma, não
através de um subordinado.
Como a vai leronis desejar, Anndra cedeu.
Linnea sentiu uma mudança nos padrões energéticos no outro extremo da
retransmissão quando Anndra se retirou. Ela se preparou para esperar, sustentada pelas
correntes do firmamento psíquico. Agora, como sempre, ela sentia como se estivesse se
dissolvendo, não perdendo a si mesma, mas como se as fronteiras entre sua personalidade
separada e o universo enfraquecessem. Dentre todos os dons milagrosos de seu laran, este
era o mais profundo e aquele para o qual ela tinha poucas palavras.
O tempo passou e então surgiu uma agitação no outro extremo da retransmissão, uma
condensação de poder mental. Uma mente treinada se juntou a dela, e não a de qualquer
leronis comum, mas a de uma Guardiã, assim como ela.
Silvana da Torre Nevarsin? Linnea da Torre Comyn a cumprimenta.
Durante um momento excruciante, o silêncio a respondeu. Através dos intrincados
pontos da tela da matriz, ela sentiu a mente da Guardiã de Nevarsin, a disciplina
estruturada, as barreiras do isolamento auto-imposto... Um antigo medo velho...
Então veio uma explosão de incredulidade e fúria.
Mãe?!
O espantou atingiu Linnea. Kierestelli?
Ela sentiu o recuo cobrindo os ecos de familiaridade há muito perdida.
Sou Silvana, Guardiã de Nevarsin. Não concedo a você ou qualquer outra pessoa
permissão para me chamar por qualquer outro nome.
Stelli, eu não tinha ideia... Procurei por você por tanto tempo! Eu quase desisti de ter
esperança. É por isso que eu queria falar com Lew Alton. Eu pensei...eu esperava que o
segredo de onde seu pai a escondeu pudesse ter sido confiado a ele. E aqui está você, depois
de todos esses anos!
Linnea se forçou para controlar a torrente de seus pensamentos. Ela estava atingindo
sua filha com uma alegria esmagadora. Seu coração estava tão cheio que ela não poderia
expressar em voz alta.
Minha doce filha, perdoe minha explosão. Estou muito feliz em te encontrar. Quando
podemos nos encontrar? Devo viajar para Nevarsin ou você virá a Thendara?
A resposta de Silvana veio lentamente, afiada como aço. Não tenho intenção de deixar
minha Torre, nem você é bem-vinda aqui.
Não é bem-vinda? Linnea ecoou. Certamente ela devia ter entendido mal. Como isso
poderia acontecer quando uma mente falava com outra, quando nenhum engano era
possível?
O s f i l h o s d o s r e i s | 122

Ela tentou aprofundar o relacionamento abaixo do nível do pensamento deliberado,


buscando a verdade por trás daquelas palavras duras. Ela encontrou raiva, amargura,
abandono e pesar. Distante, ela sentiu as lágrimas desconsoladas de uma criança.
Ele disse que voltaria para mim, mas nunca o fez. Ele me deixou... Ele me abandonou.
Você nunca me quis, nunca se importou. Então por que eu deveria me importar agora?
Oh, minha querida!
Nunca mais me diga isso!
Linnea se encolheu como se tivesse sido fisicamente agredida. Com a disciplina de
uma Guardiã, ela acalmou a onda de tristeza e culpa, a negativa em aceitar a verdade
daquela reação, a fúria do corroer os ossos naqueles que criaram tal necessidade de
arrancar uma criança de sua família para salvaguardar sua vida.
Cautelosamente, ela formulou uma resposta, exibindo sua própria mágoa pela
separação, depois a informação de que, não importa quantas vezes Regis procurava, ele
nunca encontrou nenhum sinal dela.
A situação era tão perigosa... Os inimigos do seu pai já haviam sequestrado sua prima
Ariel. Se eles tivessem levado você... Se eles te machucassem... Nós precisávamos ter
certeza de que você estava segura!
Ele me deixou lá.
Havia muita tristeza naquelas poucas palavras.
Ele tentou te encontrar quando a ameaça acabou. Abençoada Cassilda, como ele
tentou!
Linnea a animosidade da filha vacilar. Ela também tinha enfrentado escolhas difíceis,
decisões impossíveis. Ela podia sentir reconhecimento nas oscilações de raiva em
Kierestelli.
O lugar para onde Regis a levou era tão terrível? Linnea não podia acreditar que ele
tivesse confiado sua filha a quem não a amasse e cuidasse como ele mesmo o faria.
O peito de Linnea doía. Ela não podia sentir seu coração, apenas o vazio latejante onde
parecia ter se dissolvido. Ela queria implorar, volte para mim!, mas temia quebrar o
momento da fina teia de contato.
Algo estava entre elas, além da distância e indignação. Kierestelli... Não, Silvana, como
sua filha se nomeava...revelara sua solidão, seu desejo. Foi um presente muito precioso
apesar de tudo.
Mais poderia vir com a lenta criação de momentos de honestidade, de confidências,
de revelações e cautela. Linnea reconstruiu sua vida com Regis de maneira semelhante com
minutos de contato simples e depois anos de intimidade se seguiram. Uma vez que ela e
sua filha fossem próximas novamente, poderiam até mesmo sentir a alma uma da outra
sem necessidade de palavras. Talvez elas consigam encontrar o caminho de volta uma para
O s f i l h o s d o s r e i s | 123

outra, pois ela agora devia ser tão estranha para Silvana como essa mulher distante e irada
parecia parea ela. Linnea percebeu que não podia e não devia forçar o curso natural da
cura. Essa ponte precisava ser reconstruída de ambos os lados e ela tinha idade suficiente
para já ter aprendido a virtude da paciência.
Ainda assim, sentir-se à dor a atingiu. A anos Regis tinha morrido, Gareth tinha ido
para as Cidades Secas se arriscando a coisas que ela não podia nem imaginar, e agora
Kierestelli... Não! Silvana!... A memória que ela tinha escondido nas fendas mais distantes
do mundo dos sonhos estava ali, viva, reencontrada só para ser perdida novamente. Como
um coração humano podia suportar tal perda?
Eu fiz uma vida para mim, Silvana estava dizendo, inquieta e claramente ansiosa para
encerrar a conversa. Não tenho vontade de usar o nome ou status de meu pai ou sua vida.
Você não tem direitos sobre mim, pois você me enviou e não se importou em me encontrar
depois que o perigo havia passado.
Você sempre estava em meu coração.
Até pode ser, mas isso não compra o pão. Eu te aviso, mãe, não tente me forçar a um
contato de novo. Agora que você sabe onde estou, não posso ocultar tal conhecimento. Mas
não temos mais nada a dizer uma a outra.
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Capítulo 14

Gareth cambaleou para fora das sombras com o coração acelerado. Ele revirou seu
cérebro em busca de qualquer coisa que ele pudesse fazer para evitar que Lorde Dayan
descobrisse a verdade por baixo dos rumores. Certamente ele não podia invadir a Grande
Casa e exigir ver o homem que acabara de ser levado. Se ele tentasse, teria sorte se
sobrevivesse por cinco minutos, pior ainda levar seu informante para a segurança.
Atrás dele, algo se moveu nas sombras. Sua mão voou para o punho de sua espada.
Antes que ele pudesse sacar, dedos finos se fecharam ao redor de seu braço. Uma voz
sussurrou para ele esperar.
Rahelle. Uma Rahelle furiosa.
- O que você está tentando fazer, se matar? - Sua respiração tocou a orelha dele. Ela
estava perto o suficiente para aquecer sua bochecha com o calor de sua pele. A
proximidade trouxe um inesperado e fugaz contato de laran. Ele sentiu a irritação e o fluxo
de algumas emoções, principalmente sua determinação em proteger Cyrillon e seu medo
de que seus poucos anos de liberdade estivessem chegando ao fim.
- Volte. – Ele murmurou. – Isto não é algo para você se preocupar.
- Sua pele sem valor de fato não é algo que me preocupe. Mas se você for morto,
esfolado ou dado como alimento para os ratos da rua em Shainsa enquanto está sob a
proteção de meu pai, isso refletiria muito mal na honra dele. E é exatamente o que
acontecerá se você continuar se comportando assim!
Gareth olhou na direção dos homens de Lorde Dayan, meio esperando vê-los correndo
de volta, alertados pela veemência daqueles sussurros. Com os dentes cerrados, ele disse: -
Eu absolvo seu pai de toda responsabilidade.
- Já foi muito ruim ele pegar um arrogante, teimoso, imprudente - ela usou termos do
idioma das Cidades Secas que teriam escandalizado o tutor de Gareth - até Carthon. Não
tenho ideia do que o possuiu para trazer você tão longe!
- Eu disse...
Ela emitiu um som que era rude nos três idiomas. - Você não entenderia de
responsabilidade nem se ela fosse inscrita em uma tela de latão e presa em seu pescoço!
A vontade de rir quase escapou pela garganta de Gareth. Ela era tão segura de suas
opiniões, tão justa em sua raiva e estava certa... Ou ela teria estado a um mês atrás.
Gentilmente ele se soltou do aperto dela. - Algumas coisas são mais urgentes do que a
honra e mais importantes do que minha pele sem valor.
Ele ouviu sua rápida inalação, sentiu a mudança da fúria para o espanto. Ela o
compreendia, não o significado total do que ele dissera, mas o choro silencioso de seu
espírito.
O s f i l h o s d o s r e i s | 125

Desde que me lembro, fui um peão para os esquemas e ambições dos outros, não
valendo nada por mim mesmo, ele queria contar a ela. Pela primeira vez, encontrei algo
maior que minhas preocupações e isso mudou tudo.
Como ele poderia expressar uma coisa tão nova, tão cataclísmica, uma mudança
drástica de toda a sua vida anterior, algo que ele mal conseguia dizer para si mesmo?
Eles estavam de pé apenas à distância de uma mão, envoltos em semi-escuridão. Os
sons noturnos da cidade quase tinham sumido. Ele sentiu um toque suave em uma
bochecha, o calor persistente na mão.
- Diga-me. – Ela sussurrou. Naquelas palavras curtas, ele ouviu sua própria fome, seu
anseio por algo além de correntes, véus e um disfarce temporário de menino.
Ele não podia afastá-la ou negar aquilo. A memória brilhou como um relâmpago seco
em sua mente e, por um instante, ele se viu de volta à trilha para Carthon, lutando por sua
vida e Rahelle também estava lá, lutando tão arduamente quanto qualquer homem.
A rua parecia vazia, mas Gareth não podia ter certeza. – Apenas onde não sejamos
ouvidos...
Ela pegou a mão dele, fortes dedos quentes se entrelaçados aos seus, e o levou de
volta ao santuário de Nebran na rua, o mesmo em que ele havia passado antes. Embora
não fosse mais do que uma cabana grosseira com um suporte pequeno, suficiente para
abrigar as poucas ofertas, era bem afastada das outras estruturas. Ninguém, só um
fantasma, poderia se aproximar sem o conhecimento deles. Eles se agacharam ao lado do
altar.
- Em Carthon, - disse Gareth - ouvi uma história, talvez não alarmante para os
habitantes locais, mas para mim sugeria que a Federação podia ter retornado a Darkover,
mas não ao Espaçoporto em Thendara. Mais distante, perto de Black Ridge.
- Os Terranan... Cansaram de viver ou simplesmente são loucos? Nenhum estrangeiro
conseguiria durar muito nas areias sob o sol. - Ela encolheu os ombros, um movimento que
Gareth mais sentiu do que viu. – Encontrar águas sem plantas não é fácil. O deserto vai
enterrar seus ossos e será como se nunca tivessem existido. Por que você se importa? Você
tem alguma obrigação de parente ou rixas de sangue com eles?
Ele ignorou o tom provocador dela. – Não é com eles que me preocupo, mas cim com
as armas que eles carregam. Armas que podem vaporizar o corpoo ou atordoar um homem.
Talvez coisas ainda piores. - Depois de um momento, ele continuou. – Nosso Pacto proíbe o
uso de qualquer arma que não traga ao portador igual perigo ao atacado. Não foi fácil
convencer a Federação a respeitar essa lei.
Rahelle moveu seus calcanhares. - Por que eles deveriam? Por que qualquer homem
deveria se abster de usar sua espada mais afiada?
O s f i l h o s d o s r e i s | 126

- Essa atitude.... - Gareth replicou, erguendo a voz. - É exatamente por isso que tais
armas nunca devem cair nas mãos de vocês, drytowners!
- Eu não sou uma drytowner, como você bem sabe, Garrin dos Domínios! E se eles
conseguirem tais armas, que mal teria, exceto torná-los iguais ao seu povo que sempre teve
a vantagem militar?
Ele forçou sua irritação crescente a ficar sob controle. Era assim que as guerras
começavam, com palavras cada vez mais quentes, insultos trocados, mãos alcançando
espadas que eram prontamente sacadas?
- Se aprendemos alguma coisa em nossa longa história desde as Eras do Caos, - ele
respondeu – é que ter armas leva inevitavelmente a usá-las. Como os próprios Terranan
descobriram em Caer Donn.
A respiração de Rahelle assobiou entre os dentes. - Pensei que Caer Donn tinha sido
destruída pelo fogo.
"Não por nenhuma arma de fora-do-mundo. Foi pela força descontrolada da matriz de
Sharra. - Como ele poderia dizer de uma forma que ela entendesse tal poder imenso? -
Uma arma da mente. O Pacto existe não para nos proteger de blasters e espadas longas,
mas das mais terríveis criações do laran.
- Bah! Bruxaria e superstição! Contos espalhados por pessoas excessivamente crédulas
para explicar eventos naturais como o fogo da montanha! - Mesmo quando ela cuspiu essas
palavras, Gareth ouviu o tremor em sua voz.
- Não. É verdade. Meu avô e meu tio Danilo estavam lá. Assim como Dom Lewis Alton
que, pelo que sei, ainda está vivo em Nevarsin. Você vê, se o que temo for verdade e a
Federação voltou em segredo por razões desconhecidas, o Comyn não se renderá à
ameaça. Darkover poderia se tornar um campo de batalha muito pior do que Caer Donn.
- Isso tudo é muito interessante, mas não explica o que você está fazendo,
esgueirando-se pela cidade a esta hora.
Ele poderia dizer a ela também. No pouco tempo em que a conhecia, ele aprendeu o
quão infrutífero era discutir com qualquer coisa que ela dissesse nesse tom. - Eu devia
encontrar um homem que tinha mais informações.
- O que ele disse?
- Nada. Os homens de Lorde Dayan o capturaram. - Sua garganta fechou, metade com
pavor e desesperança, metade com a simples impotência de sua situação.
- Os homens de Dayan... Então é por isso que ele tem questionado os viajantes como
nunca fez antes, pelo menos não com tanto interesse. Ele não é uma pessoa humildo e ama
o poder. Ele não arriscaria que qualquer outro Lorde conseguisse essas armas. Ele as quer
para seus próprios planos.
O s f i l h o s d o s r e i s | 127

Gareth assentiu, embora provavelmente ela não pudesse vê-lo. – É o que temo. E é
por isso que não tenho escolha. Tenho que chegar lá primeiro.
- Para impedir ele? - Ela bufou. - Quem você pensa que é?
Seu nome quase escorregou em seus lábios antes que ele pudesse controlar. Ele
apertou os dentes, controlando a respiração. - Não posso te dizer.
- Não pode ou não vai? – A suspeita ecoou em seu tom.
- Dei minha palavra.
Rahelle agarrou seus ombros, os dedos cavando em sua pele, e deu-lhe um forte
chacoalhão. - Meu pai sabe?
Gareth agradeceu a todos os deuses de ambas as terras por ter sido capaz de
responder honestamente. - Ele sabe desde Carthon. Manter minha identidade em segredo
foi sua condição para me permitir viajar com ele até Shainsa.
- Então é isso. - Ela o soltou com um pequeno empurrão. - Eu não conseguia entender
por que ele deixou você vir junto. Depois de quase ter se matado no primeiro dia, pensei
que ele não iria querer mais ter nada a ver com você.
- Acredito que ele tinha essa opinião... Até que as circunstâncias mudaram.
- Então ele sabe? Sobre essas armas?
- Ele só sabe o que ouvi em Carthon, minhas suspeitas e o por que era vital que eu
descobrisse mais. Sobre os eventos desta noite ele ainda não sabe nada.
Cyrillon não ia gostar da ideia de deixá-lo ir mais longe e ainda por cima sozinho. Por
um momento, Gareth se perguntou se Rahelle concordaria em defender seu caso. Ele teria
que convencê-la primeiro e isso podia ser ainda mais difícil do que enfrentar o pai dela.
Ele limpou a garganta. - Se o que suspeito é verdade, o melhor, talvez a nossa única
esperança é chegar lá primeiro e convencer o Terranan sobre o perigo se Dayan consegui r
armas proibidas pelo Pacto. Se pudermos, até mesmo fazer uma oferta melhor. - Embora o
por que esses Terranan haviam se estabelecido nas terras estéreis além de Shainsa e não
em Thendara, ele não conseguia imaginar.
- Shh! Eu preciso pensar!
Gareth ficou tão surpreso com a força do comando de Rahelle que manteve o silêncio
sem contestar. Seus olhos se adaptaram à escuridão do santuário, vagamente iluminado
pela luz do luar passando através das rachaduras no telhado bruto. O mundo assumiu uma
qualidade de sonho, onde nada parecia sólido ou bastante em foco. Ele supôs que o efeito
era devido à pouca luz que havia ali, no limite físico de suas retinas. Ele fechou os olhos,
tocou o amuleto de Nebran em seu peito e tentou ver o mundo através de seu laran.
Inicialmente ele não sentiu nada através do isolamento psíquico, apenas seu próprio
corpo, a proximidade de Rahelle e correntes giratórias vagamente quentes e quase visíveis
O s f i l h o s d o s r e i s | 128

de sua agitação. Ele quase desistiu, afinal qual era o ponto de tentar trabalhar com uma
pedra da estrela isolada? No entanto, havia algo, pairando no limite de sua percepção.
Rahelle se moveu, esfregando os braços conforme ficava de pé, e a impressão fugaz
desapareceu. Ela fez uma pausa, uma silhueta contra a rua iluminada em tom de lavanda
quase cintilante, e fez um gesto para ele a seguir.
Juntos, eles correram para o acampamento da caravana. Rahelle não disse nada,
exceto para cortar a tentativa de pergunta por parte de Gareth. Claramente, não adiantaria
tentar argumentar com ela. Ele raramente tinha encontrado alguém, homem ou mulher,
tão teimoso.
Ela puxou-o para uma parada sob um arco em ruínas na beira da praça dos
comerciantes. Um pouco além, fogueiras oscilavam em círculos luminosos. Homens se
moviam entre elas, haviam sons de conversa murmurada, enquanto cuidavam da refeição
noturna e o encerravam os trabalhos do dia. Gareth sentiu o cheiro da gordura e
especiarias, evocativo de muitos desses momentos desde que deixara Thendara.
Rahelle empurrou-o contra uma das colunas. - Fique. Aqui.
Enquanto ela revelava toda a história para Cyrillon? Gareth balançou a cabeça. Ele
devia ao homem mais velho sua honestidade, no mínimo. Ele ia explicar sua partida de
qualquer forma quando voltasse para devolver os cavalos, afinal ele não poderia partir para
as Areias do Sol a pé.
Ele afastou-se da coluna de tijolos de grãos grossos.
- Você não escuta, não é? Você quer que todos saibam para onde você está indo e por
quê? Não? Então deixe-me lidar com isso.
Preso entre surpresa e alívio, Gareth murmurou seu assentimento. Ela o deixou,
deslizando através das sombras e os círculos de luz das fogueiras. Na sua ausência, a
autoconfiança o abandonou. Ela pensava que ele era um tolo, arrogante e incompetente,
um perigo para aqueles ao seu redor, bem como para si mesmo. Por que ela iria ajudá-lo
com o esquema mais inverosímil que ele lhe revelara?
E ainda havia aquele outro momento, o sentido de seu próprio anseio, a ligação de
espírito entre eles, a simpatia sem palavras. Talvez ela não entendesse, mas ele tinha
entendido ela.
Rahelle voltou tão rápido que certamente não tivera tempo de falar sobre seu plano e
muito menos de debater a sua falta de mérito com Cyrillon. Ela estava conduzindo dois
cavalos selados, sua própria montaria e a égua castanha de Gareth.
- O oudrakhi seria melhor em viagens no deserto, - ela disse quando entregou as
rédeas da égua nas mãos de Gareth - mas você iria cair ou ser chutado onde mais dói, e,
então, o que seria de nós? Pelo menos você pode montar um cavalo.
O s f i l h o s d o s r e i s | 129

Gareth se atrapalhou com o estribo. Quando passou a perna direita sobre garupa da
égua, ele encontrou a espessura de cobertores laminados, bem como os alforjes habituais.
Odres tilintavam suavemente. Ele acomodou-se, deslizando sua espada embainhada no
lugar.
Ele não entendia por que ela o estava ajudando. Se ele perguntasse, ela
provavelmente repetiria o que já havia dito sobre defender a honra de seu pai. Mas se ele,
Gareth, partisse por conta própria no escuro da noite e perecesse nas areias ou em
qualquer lugar de uma dúzia de outras maneiras, quem culparia Cyrillon? Quem sequer
saberia? Rahelle tinha alguma outra razão, talvez mais pessoal. Rakhal, o aprendiz, podia
agir apenas como agente de seu mestre, mas Rahelle, a garota que dissera ‘você acha que
uso correntes?’ tinha seus próprios sonhos.
Rahelle já havia montado e estava virando seu cavalo na direção do deserto profundo.
Gareth deixou de lado suas especulações.
- Onde estamos indo?
- À região das colinas, cerca de três dias de viagem na direção de Black Ridge. – Ela
respondeu, acrescentando: - Os parentes de Korllen vêm de uma aldeia de lá.
A égua marrom balançou a cabeça, fazendo um tilintar nos anéis do freio, e deu alguns
passos antes de Gareth a acomodar em um passo fácil e longo.
- E então o que? - Ocorreu a Gareth que ele mesmo não tinha pensado nada além de
correr naquela direção. Pelo pouco que ele sabia, Black Ridge era um vasto deserto
desabitado.
- Existem apenas algumas aldeias por ali e nem todas são permanentes. Poços secam
rapidamente e depois os pastores seguem em frente. As aldeias menores são tão
hospitaleiras quanto podem, mas não recebem viajantes quando não têm nem água
suficiente para seus próprios animais. Histórias sobre rixas causadas pelos direitos aos
poços acontecem em mais do que um dos maiores assentamentos. É lá que vamos olhar
primeiro.

~o ⭐ o~
Eles seguiram lentamente, os cavalos pegando o caminho ao longo do leito seco do
antigo oceano. Em certos lugares o chão era tão pálido que brilhava fracamente, embora
isso pudesse ser um reflexo da luz das luas. Os passos dos cavalos pareciam ocos. Gareth
ficou contente quando eles passaram a pisar em áreas que pareciam abafar o som da areia,
embora fizessem um progresso mais lento.
Rahelle ordenou uma parada assim que os primeiros raios carmesins apareceram no
céu oriental. À frente, Gareth notou os contornos do que poderia ser pequenas colinas ou
O s f i l h o s d o s r e i s | 130

dunas de areia mais grossa. O ar tinha um cheiro diferente aqui, seco com poeira, mas livre
do salitre do antigo fundo do mar.
Eles deram um pouco de água aos cavalos e alguns punhados de grãos. Gareth relaxou
seus músculos, a luz do amanhecer aumentou. Agora ele via que as colinas eram muito
resistentes, erodidas pelo vento e pelo calor, marcadas pelas ocasionais chuvas de
primavera. Montes de plantas roxas-cinzentas pontilhavam as encostas, mais densamente
nas ravinas baixas e enseadas que haviam se formado conforme a terra era desgastada.
Eles se dirigiram para um desses lugares em busca de abrigo.
Rahelle guiou seu cavalo depois de soltar a sela. - Descanse um pouco. – Ela disse para
Gareth e foi reunir galhos caídos. Em pouco tempo, ela construiu uma pequena fogueira.
Ela encheu uma panela velha de trilha, acrescentou um punhado de algo escuro e colocou
no meio do fogo. A boca de Gareth enrugou no vapor pungente.
Rahelle envolveu a mão em seu lenço de cabeça dobrado, pegou a xícara e engoliu
metade do conteúdo. Quando estendeu a xícara, Gareth balançou a cabeça. Ele já tivera
tisanos suficientes na estrada para Carthon.
- Você deve beber. - Ela insistiu. - Isso fortalecerá seu sangue contra o calor.
- Sou forte o suficiente. - Gareth disse, irritado com a afirmação não científica.
- Você conheceu apenas o clima de Carthon e Shainsa, ambos lugares com sombras e
água fria. Agora estamos nos aventurando aonde o sol e o calor, a areia e o vento, testam
até o coração mais forte. - Ela fez uma pausa, seus olhos se esestreitando- É melhor quando
está quente.
Gareth suspirou e tomou um gole. O gosto amargo do chá rastejou na parte de trás de
sua garganta, mas ele o forçou. Rahelle já havia começado a apagar o fogo.
As colinas mergulhavam e se erguiam na distância, como se a terra em si fosse uma
fera que se cansara e se abaixara para descansar. À noite, Rahelle preparou o tisano
novamente, tomando também sua porção.
No segundo dia, surgiu um vento forte. Segurando mais firme a rédea da égua, Gareth
puxou o lenço mais firme em seu rosto. No começo, isso ajudou, mas as correntes secas e
carregadas de poeira logo se tornaram irritantes mesmo com o lenço e, tanto ele quanto
Rahelle tinham coberto todo o rosto, deixando apenas os olhos à mostra. Os cavalos
apertaram suas caudas em suas garupas e arrastaram os passos, as cabeças baixas.
Quando o sol pairou logo cima, Rahelle encontrou um cópico de áárvores retorcidas
que forneciam um pouco de sombra. Com um pouco de sua preciosa água, ela umedeceu
um pano para limpar os olhos dos cavalos e narinas. Liberando-os para pastar sobre as
gramas secas que pudessem encontrar, ela se enrolou sob a maior das árvores, colocou o
lenço de cabeça em cima de um galho, se enrolou no solo de cascalho e foi dormir.
O s f i l h o s d o s r e i s | 131

Gareth a imitou o melhor que pôde. Embora estivesse acostumado a dormir no chão,
ele não conseguia se sentir confortável. Estava muito quente, com o vento sibilando e
uivando acima. O jogo de bancar o nobre herói acabara. Ele não era Race Cargill, Agente
Secreto Terran, e agora precisava enfrentar a realidade quente e deprimente de uma auto-
indulgência infrutífera e imprudente.
De alguma forma, entre sentir-se envergonhado por seus devaneios e tentar ignorar
com seus muitos desconfortos físicos, ele devia ter apagado. Então ele despertou com seus
olhos pegajosos com secreções secas, enquanto Rahelle estava ajoelhada sobre ele,
cutucando seu ombro.
Eles deram o resto de sua água aos cavalos antes de montar. Embora o calor parecesse
menor, o sol estava pendurado no comprimento de uma mão em direção ao Ocidente.
Trilhas marcavam os caminhos mais baixos entre as colinas, nenhuma delas fresca. As
nuvens rodopiantes de poeira surgiram e rapidamente sumiam. Uma ou duas vezes, Gareth
notou o movimento nas alturas, piscando em tom de branco e bronzeado contra as
gramíneas queimadas de sol. Rahelle disse que eram antílopes do deserto, tímidos e
ariscos. Nenhum cavalo conseguia se aproximar o suficiente para pegá-los, embora eles
pudessem ser presos onde costumavam ir para beber.
A trilha se elevou, seguindo a inclinação do passe. Os cavalos grunhiam com esforço,
cabeças abaixadas, desacelerando. Eles estavam sedentos e cansados. Gareth desceu e
pegou as rédeas de sua montaria. Depois de uma aparente avaliação, Rahelle fez o mesmo.
Eles se arrastaram para cima em silêncio, economizando a respiração para a escalada. O ar
ficou rarefeito, mais do que Gareth esperava. Quando o sol mergulhou em direção ao
oeste, ficou escondido ainda mais vermelho do que antes.
Por fim, chegaram à cúpula, uma abertura ampla entre duas rochas com fortes ventos.
Eles pararam para deixar os cavalos respirarem. Diante deles, as colinas se afastaram
drasticamente em uma extensão de falhas rochosas, marcadas aqui e ali com manchas
escuras de vegetação.
- Esta é Kharsalla. - Rahelle apontou e Gareth observou o aglomerado de edifícios, a
maioria feitos com o mesmo material de tom bronzeado da terra ali, bem como postes de
gado e algumas faixas verdes do que devia ser linhas de jardins irrigados.
Antes de montar, Gareth olhou para o caminho por onde tinham vindo, descendo as
colinas enrugadas e inclinadas para o leito do mar de areia além. A luz da tarde inclinada
substituiu a cor de giz lavado da terra pela cor de sangue.
Ele congelou, a respiração travando em sua garganta. Na distância em meio ao calor,
ondas de poeira se elevavam no ar. A poeira obscurecia o motivo dela, mas Gareth não
precisava ver para reconhecer os movimentos de uma companhia de rápidos cavaleiros.
O s f i l h o s d o s r e i s | 132

Seu palpite era de que eles estavam a pelo menos um dia atrás deles e isso não era longe o
suficiente. Rahelle, talvez respondendo ao seu alarme silencioso, desceu para o seu lado.
- Teremos tempo suficiente? - Ele perguntou a ela.
- Naquele ritmo eles vão matar seus cavalos antes de alcançar o primeiro poço. - Ela
fungou. - Olhe para a trilha de poeira. Eles estão indo para o sul. Vão contornar esta aldeia.
Um punhado de garotos de rebanho irregular os viu antes de chegarem aos arredores
de Kharsalla e acompanhou-os, sem muito prazer pela chegada de estranhos. No momento
em que passaram os postes de gado, meia dúzia de homens e mulheres se reuniram para
encontrá-los, todos tagarelando animadamente. Seu dialeto cantarolado era tão
estranhamente acentuado e rítmico que Gareth compreendeu apenas o sentido geral do
que era dito. As mulheres usavam pulseiras e cintos de lã colorida, amarradas por cordas
trançadas em vez das correntes dos moradores das cidades.
A primeira preocupação do chefe dos aldeões, depois de reconhecer ‘Rakhal Sensar’,
foi se algo havia acontecido com Korllen. Rahelle assegurou-lhes que ele estava bem e
prosperando. O alívio do aldeão se transformou instantaneamente em expressões de
hospitalidade, sem mais questionamentos sobre seus assuntos ali. Rahelle se curvou para o
chefe, chamado Rivoth, e apresentou Gareth como ‘um homem de Carthon’, como se isso
explicasse qualquer excentricidade de sua parte. O chefe não devia ter mais do que
quarenta anos, mas sua pele era desgastada, seu cabelo da cor da pedra de sal e seus olhos
tão pálidos que eram quase incolores.
Em pouco tempo, Gareth e Rahelle foram levados pela aldeia até a cabana de Rivoth.
As mulheres ficaram do lado de fora junto com os meninos, que haviam assumido o
cuidado dos cavalos dos visitantes. Por sua tagarelice e a maneira como eles tocaram os
cavalos, os animais se tornariam animais de estimação mimados dentro de um quarto de
uma hora.
Eles se estabeleceram no chão de terra da cabana. O interior era escuro e, por algum
truque de construção, surpreendentemente fresco. Rivoth ofereceu chá e fumo. Gareth não
precisava do olhar acentuado de Rahelle saber que era inaceitável recusar.
Em silêncio, o chefe preparou o aparelho de fumo em uma antiga moldura de metal
sobre um pequeno fogo. Quando a fumaça estava borbulhando através da tigela de vidro,
ele passou para Gareth. Gareth se curvou tão profundamente quanto sua posição de pernas
cruzadas permitia, colocou o bocal entre os lábios, e inalou como tinha visto Cyrillon fazer.
A fumaça quente, pungente encheu seus pulmões. Um desejo quase incontrolável de tossir
o atingiu. Naquele momento, no entanto, ele se lembrou dos exercícios que a avó Linnea o
ensinara, a respiração profunda e repetitiva, o foco único. Ele fechou a garganta ao redor
da fumaça e contou os batimentos cardíacos.
Três...quatro...
O s f i l h o s d o s r e i s | 133

O desejo de tossir recuou. A fumaça fluiu suavemente através dele. Sua visão se
iluminou e ele sentiu sua pulsação reverberando através de seu crânio. Ele exalou, assentiu
e devolveu o tubo para o anfitrião.
O chefe irradiava aprovação. Ele deu outra longa tragada e depois removeu o aparelho
de sua posição. Gareth entendeu que esse era um luxo para ser apreciado apenas em
ocasiões especiais e que o chefe o honrara, mas também notou que o chefe não incluiu
Rahelle. Mesmo como o agente de Cyrillon, Rakhal ainda era um menino, não um
convidado privilegiado.
Uma das mulheres mais velhas entrou na cabana, arrumou uma bandeja de madeira
com duas xícaras de um líquido escuro e fumegante e se retirou sem uma palavra. Rivoth
gesticulou para Gareth escolher um copo e depois pegou o outro. A infusão era
agradavelmente amarga, mas inesperadamente calmante conforme descia na garganta de
Gareth.
Nos minutos seguintes, ninguém disse nada. O chefe fechou os olhos, uma expressão
calma em seu rosto, claramente saboreando os efeitos da fumaça. Em seu dialeto
carregado, o chefe se dirigiu a ele dando uma abertura para Gareth declarar seus assuntos
ali. Gareth fez uma pausa, ponderando sobre como começar. Até aquele momento, ele
esperava que Rahelle negociasse como um guia. Ela, ou melhor, seu pai, era quem tinha
laços com esta pequena comunidade. Mas aparentemente os aprendizes tinham um status
insignificante em comparação com os estranhos exóticos.
- Sou um comerciante de lentes em Carthon. - Gareth tentou dizer a verdade até onde
podia. - Ouvi uma história por alguns homens em Carthon que viram flashes brilhantes,
próximo de Black Ridge, entende? Lentes podem ser usadas dessa maneira. - Ele gesticulou
usando uma lente para refletir a luz do sol. - Talvez até encontre materiais para cria-las...
- Sim, sim! - O chefe assentiu vigorosamente. - Boa areia ser encontrada no Black
Ridge! Boa areia faz boa lente!
- Talvez sim. Ou pode não significar nada. - Gareth deu de ombros. - Outros ouviram
essa história, então eu devo descobrir a verdade disso primeiro.
- Ah. – Os olhos brilharam como pedaços de aço no rosto resistente. - Você precisa de
guia e estrada rápida através de areias?
- Sim, sim exatamente!
- Estrada rápida. Estrada segura.
O chefe bateu as mãos duas vezes e um jovem se abaixou na entrada da cabana.
Gareth reconheceu-o da multidão que os cumprimentara.
- Este Adahab, primeiro filho. – O chefe disse.
Adahab tocou os dedos da mão direita na barriga, coração e testa. Ele ouviu
solenemente enquanto seu pai falava, sem fazer perguntas e sem nenhum murmúrio. Por
O s f i l h o s d o s r e i s | 134

sua expressão, ele estava sendo agraciado com a maior honra por ser escolhido para guiar o
homem de Carthon e o aprendiz de Cyrillon, onde quer que eles quisessem ir. Ele manteve
a compostura até que Rivoth o dispensou, então saiu da cabana. Um momento depois,
Gareth ouviu sua voz alta, chorando:
- Tajari kihara! Emell-tajari kihara!
Não era preciso um tradutor para entender que o prestígio do jovem de toda a sua
família acabara de receber um enorme impulso para cima.
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Capítulo 15

Por insistência de Rivoth, eles descansaram até o pôr do sol. O chefe tentou oferecer-
lhes sua própria cabana, mas Gareth, vendo Rahelle balançar a cabeça, inventou uma
explicação que exigia que eles permanecessem com seus cavalos. Dentro de pouco tempo,
apenas o suficiente para Gareth para terminar suas desculpas, os jovens construíram um
tipo de abrigo, aberto em dois lados para permitir a brisa, mas também fornecendo um
cômodo com sombra. Seus cobertores haviam sido desenrolados na outra extremidade, as
bagagens empilhadas perfeitamente ao pé de cada um. Os cavalos já estavam amarrados
em uma extremidade e claramente tinham bebido, sido alimentados e cuidados. O pêlo da
égua brilhava e toda a areia e poeira tinha sido tirado de sua sela e freio, mas nenhum
único botão havia sido perdido. Os alforjes e rolos de cobertores, até mesmo a bolsa
contendo as amostras da lente, estavam exatamente como Gareth havia deixado.
Embora ele tivesse certeza de que não seria capaz de dormir, Gareth se estendeu em
seu cobertor. Os cavalos ainda mastigavam os poucos resquícios de grama e grãos que as
crianças haviam dado a eles. Uma mosca zumbiu e a égua balançou seu flanco.
Ociosamente ele pensou nos homens de Shainsa. Agora mesmo eles poderiam estar
seguindo em direção a Black Ridge. Ele não deveria desfrutar dessa moleza. Havia muito em
jogo.
Ao lado dele, Rahelle murmurou algo e virou sem acordar. Ela estava cansada. Ele
decidiu deixá-la dormir um pouco mais.
Sob o cobertor, a terra irradiava calor como os tijolos de um forno e se infiltrou, gentil
e implacável, nos músculos de Gareth. Seus olhos se fecharam. Um dos cavalos soprou
suavemente por suas narinas, limpando a poeira. Ao longe, um bebê chorou até que uma
mulher começou a cantar para confortá-lo.
- Garrin.
Ele sentou-se tão de repente que seus sentidos rodopiaram por um momento. Sua
pele parecia ressecada com poeira e suor seco. Mas estava melhor do que quando ele
adormecera.
Rahelle se agachou, enrolando seu cobertor com movimentos ágeis. Ela deu um
sorriso brilhante antes de colocá-lo no cavalo selado. A égua marrom esatava carregada,
pronta para ir, exceto pelo cobertor em que Gareth estava. E o próprio Gareth, claro.
- Você não devia ter me deixado dormir por tanto tempo. - Resmungando, ele ficou de
pé. Uma dor de cabeça pulsava em suas têmporas e sua boca parecia como se ele estivesse
mastigando giz.
O s f i l h o s d o s r e i s | 136

- Na verdade, deveria. – Ela disse. - Nós não íriamos a lugar nenhum. Além disso,
devemos manter as aparências. – Ela se referia ao fato de que, como um mero aprendiz,
seria esperado que ele preparasse tudo.
Do lado de fora, a largura do orbe do carmesim pendurado no céu, acima das colinas
ocidentais, era a de uma mão aberta. O céu ao leste tinha um fraco tom índigo. A aldeia
agora exalava vitalidade, os gritos de crianças brincando, o mastigar de animais famintos, o
ar repleto com aromas de cebolas fritas, de grãos cozidos com alho e carne seca, e algo
pungente como vinho.
Parecia que a aldeia inteira se reunira para vê-los. Uma das mulheres mais velhas
estendeu um prato de madeira pálida polida de tal forma que parecia uma concha do
oceano, contendo panquecas finas enroladas em torno de uma mistura de carne triturada e
pimentas. Seguindo o exemplo de Rahelle, Gareth comeu sua porção e lambeu os dedos
para demonstrar sua apreciação. A mulher corou, curvou-se e correu para longe.
Adahab já tinha selado sua montaria, um oudrakhi cinzento de aparência tão retorcida
e decrépito que parecia que não aguentaria andar de uma extremidade da aldeia para
outra. Ele conduziu um segundo animal em uma corda, carregado com feixes envoltos de
pano e sacos de couro inchados.
Gareth aceitou as rédeas da égua marrom das mãos de um garoto pequeno de cabelos
despenteados que o olhou com olhos questionadores. Um impulso se agitou em Gareth. O
tipo de desejo espontâneo de ação que ele estava começando a confiar. Ele desatou a bolsa
de lentes. Quando ele olhou para dentro, ocorreu-lhe que seu conteúdo representava mais
do que o valor de toda a aldeia e todos os seus rebanhos e pastagens. Ele selecionou duas
lentes de qualidade moderada, adequadas para telescópios simples, o tipo que poderia ser
útil em um lugar tão remoto quanto este, e entregou a bolsa para Rahelle para ser colocada
em sua sela. Ela o iluminou com um sorriso.
Quando Gareth colocou as lentes nas mãos de Rivoth, o homem mais velho olhou para
elas. As crianças murmuraram entre si. Um ou dois correram para as mulheres que
emitiram uma ondulação de gritos como pássaros felizes e depois calaram de uma só vez.
A quietude de Rivoth fez Gareth se sentir preocupado. Ele tinha errado no presente?
As lentes eram muito caras ou insignificantes demais? Ele, em sua ignorância, presumira
erroneamente que essas pessoas não sofisticadas teriam alguma noção do que fazer com
pedaços de vidro polido? Ele não tinha jeito de reverter isso agora.
No entanto, Rahelle sorrira.
Finalmente o chefe olhou para cima. Seus olhos, aquele azul claro cinzento, pareciam
mais claros ainda. Ele levantou as lentes em seus lábios, seu rosto cainda na sombra delas.
Então Gareth entendeu a magnitude do que havia dado. O valor monetário das lentes não
era nada comparado ao que elas trariam para a vida da aldeia, uma maneira de ver através
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das distâncias, ter um aviso antecipado de tempestades e invasores. Uma maneira de salvar
vidas preciosas.

~o ⭐ o~
Eles partiram no crepúsculo, uma subida nas colinas que escureciam e, em seguida,
uma breve descida conforme a terra em ruínas dava lugar à areia. Adahab assumiu a
liderança, tão confiante como se fosse um dia claro. Os cavalos seguiram, pisando nas
cavidades feitas pelos largos pés acolchoados do oudrakhi. Aqui e ali, as rochas se
projetavam, escuras contra a areia mais pálida. Uma fantasia na mente de Gareth de que
eles estavam pisando em uma crosta fina e traiçoeira sobre uma vasta gama de montanhas,
das quais apenas os picos mais altos podiam ser vistos. A qualquer momento, a crosta
poderia se abrir e eles mergulhariam para a morte.
Ele olhou para cima, virando o rosto para a frieza de uma brisa perdida. Uma pequena
faixa de luzes multicoloridas, cercada por um céu maioritariamente malva e prata,
impregnava o céu. Conforme ele observava, a luz diminuiu na noite repentina que inspirara
o nome de Darkover. Pontos de luz enfeitaram o céu sobre o ar do deserto seco. Por um
instante, Gareth viu-as como estrelas individuais, mas muito numerosas para contar. Então
ficaram borradas em um vasto véu lácteo. Ele entendia intelectualmente que estava vendo
a posição de Darkover no braço galáctico, mas parecia-lhe que o céu estava repleto de
luzes. Mais distante do que qualquer olho humano podia ver, milhares de sóis se enchiam
com seu fogo eterno. Mesmo as duas luas, em um crescente delgado, não podiam superar
a massa de estrelas. A visão o deixou sem fôlego. As estrelas brilhavam exclusivamente com
sua própria luz e, com sua onda de lágrimas repentinas, ele não podia nem imaginar contar.
Isso permanecerá aqui mesmo depois da minha morte. Ele pensou.
- Garrin? - Veio a voz de Rahelle, doce como a luz das estrelas.
Ele tirou seu olhar da glória acima. - Estou bem, só estou... - Onde estariam as palavras
para descrever o momento de admiração e humildade? - ...atônito.
- Eu também nunca me canso do céu noturno. Em Carthon, há muita umidade no ar
para vê-lo corretamente. - Ela ficou quieta por um momento.
Ao redor deles, as areias brilhantes se estendiam até onde Gareth podia ver, abafando
os sons dos cascos dos cavalos.
- Suponho que os deuses não querem que a gente se canse de tal presente, - disse
Rahelle - então eles o colocam aqui, onde apenas os homens mais resistentes se
aventuram.
- Ou os mais desesperados. - Foi um comentário e indigno do momento de fascínio. -
Eu poderia ter vivido toda a minha vida sem ver isso.
O s f i l h o s d o s r e i s | 138

- Cada terra tem sua própria beleza. Eu vi apenas um pouco da sua, apenas Thendara e
a estrada para Carthon.
Ela parecia melancólica e Gareth se perguntou o que ansiava ver: o gelo glacial nunca
derretido das Hellers, o país exuberante ao redor do Lago Mariposa, as ricas Planícies de
Valeron, a Costa do Mar de Temora, talvez a casa de sua família no Castelo Elhalyn. Ele
pensou em todos os lugares que tinha ido e aqueles que ele nunca tinha visto, e uma
pontada desconhecida atravessou seu peito.
Me deixe te levar lá! Vamos explorar esses lugares juntos! Por que ele pensaria tal
coisa, muito menos ofereceria a uma mulher que por sua própria admissão não via um
futuro além de um casamento em correntes? Se ele sobrevivesse a esta aventura, seu
destino era talvez mais luxuoso, mas não menos confinado.
Eles continuaram em um ritmo que os cavalos poderiam aguentar, mais lentamente do
que viajaram no terreno duro. Embora Gareth não encontrasse pontos para marcar seu
caminho, Adahab parecia saber exatamente para onde estavam indo. Talvez ele usasse uma
ou outra das constelações como orientação.
A temperatura caiu e Gareth e Rahelle se envolveram em seus casacos. Na liderança,
Adahab e seu oudrakhi formaram silhuetas escuras contra o horizonte estreito. Eles se
arrastaram quase em silêncio, exceto pelo assobio de areia ao vento e o som ocasional dos
cavalos limpando suas narinas.
Depois de algumas horas, Adahab parou para dar água aos cavalos dos sacos de couro.
Gareth não tinha percebido como ele estava com sede até sentir o aroma úmido da água.
- Beber. - Adahab pediu. - Nós montamos na noite. Dormir no dia.
Imperceptivelmente, as estrelas desapareceram do céu oriental até que apenas as
mais brilhantes permaneceram. Uma das luas menores estava se pondo. Eles tinham
viajado a noite toda através das areias sob a luz das estrelas.
Adahab levou o oudrakhi para uma visão em um vale formado por dunas de ambos os
lados. Os cavalos pararam, suas cabeças baixas. Gareth se inclinou na sela. Atrás dele,
Rahelle não disse nada. A luz era forte o suficiente agora para que Gareth pudesser ver a
expressão de Adahab, o elevar e inclinar de sua cabeça, o rápido inflar de suas narinas
como se estivesse sentindo ou buscando algum cheiro. Gareth não sentia cheiro de nada
além de ar seco, poeira e dos corpos dos animais. Então seu guia gesticulou, apontando
para um lado. Eles seguiram a rota mais baixa e, dentro de um curto período, entre as
dunas sopradas pelo vento surgiu um bosque de árvores ramificadas.
O ar úmido atingiu os sentidos de Gareth. Um momento depois ele estava cercado
pelas dunas e árvores, sem qualquer trilha, mal acreditando na existência daquele pequeno
oásis que se abria à sua frente. Enterrado entre as dunas, certamente estava oculto de
O s f i l h o s d o s r e i s | 139

qualquer um que não soubesse sua localização previamente. Um homem poderia montar
ao redor sem perceber que estava lá.
No coração do bosque, havia a sombra de uma grande pedra que estava tão quebrada
e desgastada que Gareth não poderia adivinhar sua idade. Em um lado estava um santuário
de antiguidade semelhante. Gareth ficou surpreso ao ver o emblema erodido de Nebran.
Na areia diante do altar estava uma fita esfarrapada, esbranquiçada, quase incolor por
causa do sol, enrolada em torno de alguns talos murchos.
Adahab tocou o ombro do oudrakhi. Quando o grande animal parou, resmungando um
protesto, ele pulou levemente para a areia. Adahab se ajoelhou diante do santuário, tocou
as pontas dos dedos em sua testa, nos lábios e depois no emblema, deixando para trás uma
mancha de umidade. Gareth entendeu que aquilo era tanto um ato de fé como de
reverência. Fé de que a preciosa água seria sempre restaurada, que a vida continuaria até
mesmo através dos tempos mais desesperados. Sem pensar, ele enrolou seus dedos ao
redor do amuleto que sua avó Linnea tinha lhe dado, o medalhão que guardava sua pedra
da estrela que era como seu um segundo coração, a pedra ligada ao seu laran. Movido por
algo que não pôde entender, ele escorregou da sela da égua e repetiu o ritual. Quando se
endireitou, viu Rahelle o observando atentamente.
Adahab bateu no ombro de Gareth. - Agora nós bebemos. Cavalos primeiro, então
homens, então, - ele fungou como se sentisse um cheiro ruim - ...oudrakhi. - Por seu tom,
ele implicava que as feras mal-humoradas exigiam lembretes regulares de seu lugar no
mundo. - Então coma. Então durma.
A água era fresca e surpreendentemente boa. O toque metálico lhe dava um seu
caráter refrescante. Gareth teria trocado o melhor firi importado de Vainwal por um único
cálice deste poço.
A paz hipnótica da viagem à noite desapareceu com a vinda total do sol no céu. Depois
que os animais tinham sido cuidados, Gareth sentou-se debruçado sobre uma xícara do
tisano de cheiro forte que Rahelle lhe dera. Ele não podia evitar a sensação de que toda a
extensão de areia trazia cada vez mais perto uma catástrofe. Ele devia estar fazendo
alguma coisa... Planejando uma emboscada para os homens de Dayan, descobrindo
exatamente ele localizaria os agentes da Federação e o que diria a eles, como os
convenceria a não ter ligação com as Cidades Secas...
- Você está incomodado. - Adahab suavemente interrompeu a ruminação de Gareth.
Com um movimento de seu queixo, ele indicou a direção de onde vieram.
Gareth assentiu e engoliu o resto do tisano, mal sentindo seu gosto.
- Shainsa'imyn! - Adahab gesticulou com a mão esquerda de uma maneira que Gareth
sentiu que era extremamente depreciativa.
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Levou um momento para ele entender o que Adahab queria dizer, de que, assim como
havia conflitos e diferenças entre Domínios e algumas de suas aldeias mais distantes, esses
aldeões, que viviam sob as mais severas condições, eram desprezados pelos moradores da
cidade ou, pelo menos, pelos grandes Lordes.
- Eles pensam ser mestres da areia, mas não sabem nada do verdadeiro deserto. –
Adahab disse.
- Eu não os dispensaria rapidamente. – Gareth disse. - Eles podem não ser tão sábios
quanto o seu povo nos caminhos dessas terras secas, mas eles têm armas e sabem como
usá-las.
- Espadas e chicotes, as ferramentas de kifurgh, o que são contra o sol e a areia? Eles
podem forçar a água da pedra? Ou amizade das tribos da aldeia?
- No entanto, seu povo nos ajudou a pedido de Cyrillon e ele é um homem de Carthon.
- Cyrillon é um comerciante, sim, mas ao longo das areias do sol, ele também é
conhecido como homem de honra e um verdadeiro amigo. Ele paga suas dívidas, ao
contrário dos Shainsa'imyn, que leva o que não é seu para vender. - Ele abaixou a voz,
olhando por baixo para Rahelle que estava ocupada limpando os pratos com areia e depois
passando um pano neles. - Água, cabras...crianças. Onde você acha que os mercados de
escravos em Ardcarran os cpaturam? Meu primo – ele se referia a Korllen - traz o dinheiro
que Cyrillon paga ele. E nós, por sua vez, pagamos os invasores que levariam nossos
pequeninos.
Gareth percebeu o brilho feroz nos olhos azuis de Adahab. Se os homens de Dayan
chegassem na aldeia, eles receberiam uma recepção aparentemente educada, mas
nenhuma sugestão da honraria que vira em Rivoth, muito menos da vontade de ajudar os
viajantes. E Gareth suspeitava que seria o mesmo em qualquer uma das outras aldeias na
fronteira das Areias do Sol. Eles teriam até mesmo um especial orgulho em enganar os
intrusos. Ele se perguntou se os agentes da Federação, de quem ele se lembrava como
sendo um bando de arrogantes e de mente fechada, fariam melhor no contato com essas
aldeias.

~o ⭐ o~
Durante quatro noites eles atravessaram as areias, em cada amanhecer alcançando
um oásis escondido. Um estava quase seco, outro sujo pela carcaça de um pequeno
oudrakhi selvagem, ou o que o kyorebni do deserto tinha deixado dele. Eles beberam e
deram de beber aos animais o conteúdo de seus sacos de couro e descansaram o melhor
que podiam na sombra.
No sexto dia, a primeira luz da manhã revelou uma elevação de terra em uma série de
cumes. Gareth não era geólogo, mas a pedra parecia como se fosse resultado de um fluxo
O s f i l h o s d o s r e i s | 141

vulcânico, algo raro em Darkover, que ao longo de incontáveis milênios tinha clareado a um
tom de cinzas. Ao longo da base das fissuras, cachos verdes escuros se reuniam como
contas em um colar. Uma névoa embaçava seus contornos. Ele avaliou que devia haver
cerca de uma meia dúzia de oásis ali, alguns com pouco mais que alguns arbustos e
matagais, outros do tamanho de aldeias.
- Nuriya. - Adahab apontou para um dos pontos maiores, preenchendo uma lacuna no
cume. Ele bateu os calcanhares nos lados de seu oudrakhi. Sem protestar, a fera de aspecto
decrépito acelerou seu ritmo. Os cavalos, também aceleraram, parecendo ansiosos, embora
tivessem viajado muitas milhas naquela noite. Eles deviam estar sentindo o cheiro da água
e da forragem fresca à frente.
Gareth acenou para Rahelle quando ela freou seu cavalo ao lado dele. Ela lhe deu um
sorriso hesitante. - Nuriya, é o nome daquela aldeia para onde estamos indo. - Ele disse. -
Você conhece?
- Só de nome. Nunca fui mais longe do que Kharsalla. Que é tão profundamente no
deserto quanto Cyrillon me permitiria ir, e somente por amor de Korllen.
- Acho que eles devem muito a Cyrillon. Ele é um homem extraordinário.
- Ele sempre reverenciou a virtude da caridade. Nós nas Cidades Secas falamos da
compaixão de Nebran, mas não a praticamos muito. - Distraída, ela moveu as rédeas para o
lado e esfregou o pulso com a outra mão. - Kihar é para os homens, de modo que a
bondade é deixada para os deuses.
- E a justiça? E a compaixão?
- Essas coisas podem ser procuradas, mas será que estão no mundo dos homens para
serem encontradas? Ou mesmo o ato de tentar é loucura? Meu pai acredita que devemos
procurar e praticar, mas o que ele sozinho pode fazer? Dar um pouco de esmola aqui e ali,
empregar um homem do deserto que envia para sua casa seu salário para sua família?
Trocar fragmentos de informações, contos e meias-verdades em Thendara? Que bem isso
faz?
Em sua voz, Gareth ouviu as ressonâncias da indignação, do desespero. E quanto as
crianças retiradas de suas casas para se tornarem ajudantes de cozinha e brinquedos de
homens inescrupulosos? Ela parecia perguntar. E quanto às pessoas que ficaram feridas ou
morrem de fome para que os grandes lordes como Dayan ou Evallar de Ardcarran podem
viver no luxo?
E eu, ele perguntou a si mesmo, eu que nunca conheci nada além de privilégios e
facilidades, eu que não fiz nada para merecê-los, qual é a minha parte em tudo isso?
A resposta estava diante dele, cintilando ligeiramente enquanto o sol ressuscitado
aquecia a areia.
O s f i l h o s d o s r e i s | 142

- A justiça é possível? - Ele disse em voz alta. - Eu não sei, mas se não tentarmos, ela
não acontecerá.
- E você é o único que pode ou tenta fazer isso? É você quem vai conseguir?
Para isso, ele não tinha resposta.
Enquanto se aproximavam Nuriya, Gareth notou flâmulas brilhantes ondulando nos
pólos do terreno e uma equipe de homens descarregando madeira moída de cima de
oudrakhis. Eles desmontaram e guiaram seus animais para o buraco do poço com um
emblema pintado indicando que era apenas para animais. Um homem, de pele resistida ao
tempo e queimada pelo vento como qualquer morador do deserto, estava dando água a
um par de oudrakhis, suas selas brilhando claramente novas, seus pelos enfeitados com
borlas e pequenos objetos de vidro colorido facetado. Ele sorriu para eles de uma maneira
amigável, revelando uma lacuna entre seus dentes descoloridos.
Quando a homem dos oudrakhis levou seus animais, Rahelle se aproximou de Gareth,
fingindo ajustar a os arreios do animal dele. - Onde os aldeões tirariam dinheiro para selas e
enfeites, sem mencionar a madeira?
- Há alguma nova riqueza aqui, isso é certo. – Ele murmurou em resposta.
O olhar de Adahab cintilou sobre os mesmos detalhes incomuns. – Venham, meus
amigos. Se seus cavalos já terminaram, vamos beber. Então eu os apresentarei ao chefe...
Se ele ainda for o chefe aqui.
Gareth e Rahelle o seguiram para o poço designado para uso humano. Um punhado de
crianças e algumas mulheres o cercavam, mergulhando jarros na água. As crianças eram
magras de barrigas redondas, vestidas com camisas até os joelhos, usadas para os
momentos de brincadeira, agora da cor da lama. Eles se afastaram quando Gareth e os
outros se aproximaram, os olhos arregalados em seus rostos finos. Uma das mulheres tinha
os cabelos cinzentos, era encurvada e seus cordões presos aos pulsos estavam tão
desgastados que um mero puxão os soltaria. A segunda mulher, mal saída da adolescência,
balançou a cabeça e olhou para os recém-chegados. Suas bochechas brilhavam como se seu
rosto estivesse banhado em óleo. Com uma languidez insolente, ela equilibrou seu jarro
contra um quadril, a água respingou sobre a borda feita com um aro de cobre embutido.
Enquanto ela se afastava, suas correntes tilintavam escorregando pelo anel em seu cinto de
metal.
Adahab pegou sua caneca, encheu e ofereceu a Gareth. A água era fria o suficiente,
mas ainda temperada com uma acider já familiar a esta altura. O que quer que estivesse
acontecendo nesta aldeia não diminuíra a situação dos mais necessitados.
Eles foram para a praça aberta no coração da aldeia, onde Adahab parou na frente de
uma cabana. Era maior e parecia ser de melhor construção do que a maioria das outras,
embora não houvesse sinais de reparos.
O s f i l h o s d o s r e i s | 143

- O chefe aqui é Cuinn. – Adahab disse a Gareth. - Ele conhece meu pai há muito
tempo, mas eles não tiveram nenhum negócio desde antes de eu nascer. Ainda assim,
lealdade e obrigação mútua suportam muito tempo no deserto.
Um homem emergiu, sobressalente no quadro, mas com um ar de autoridade. Seu
cabelo tinha um brilho maçante que sugeria que fora brilhante como ouro polido em sua
juventude, antes que os anos os deixassem opacos. A pele ao redor de seus olhos se
enrugou quando ele espiou os estranhos.
Adahab apresentou as saudações de seu pai. Enquanto o chefe ouvia, suas feições
relaxaram, refletindo um bom humor inato. - Sim, sim, por Lhupan, o Compassivo, que anda
as areias no disfarce de um estranho, o convidade que habita em nós cumprimenta o
convidado que habita em você.
Gareth fez um gesto de respeito. - A generosidade do seu povo é um ornamento para
os céus.
- A hospitalidade é ordenada pelos deuses como uma bênção tão importante para
aqueles que dão quanto para os que recebem.
Eles trocaram mais algumas saudações nessa linha de pensamento e então o próprio
Cuinn conduziu Adahab e seus companheiros para dentro como convidados. O lugar era
uma cabana de tijolos cozidos pelo sol, muito parecida com as outras, fornecendo proteção
contra o sol e o vento. Adjacente a ela estava uma estaca e galpão para gado, ambos
bastante desgastados.
O interior da cabana consistia em um quarto individual com chão de terra. Não havia
uma fonte de calor ou para cozinhar, exceto por um círculo de pedras enegrecidas fora da
porta. Uma vez Gareth teria desprezado tais acomodações como indignas até mesmo de
um burro, mas agora, quando expressou seus agradecimentos a Cuinn, a profundidade de
seu sentimento de gratidão o surpreendeu. Era admirável que tal aldeia, existente nas
margens da civilização, dedicasse uma parte de seus recursos escassos para manter um
abrigo para as necessidades de estranhos.
Uma vez que haviam descarregado os cavalos e levado os cobertores e alforjes para a
cabana, Adahab se virou para Gareth. - Meu amigo, aqui eu me despeço de você.
Retornarei em cinco dias para guiá-lo de volta nas Areias do Sol, a menos que você envie
uma mensagem para mim em Duruhl-ya de que sou necessário mais tarde. Ou mais cedo.
Assustado, Gareth retornou o gesto de dispença. Ele não podia confundir o brilho da
ânsia nos olhos de Adahab quando o homem mais jovem andou pela cabana. Um momento
depois, Adahab montou seu decrépito oudrakhi cinza e chutou o animal em um trote
relutante.
- Eu devo entender que esse Duruhl-ya é uma aldeia vizinha, certo? - Gareth
perguntou a Rahelle, que estava organizando sua roupa de um lado da cabana.
O s f i l h o s d o s r e i s | 144

- Sim. O nome significa ‘orvalho infalível’. - Rahelle não olhou para cima. - Acho que ele
está cortejando uma mulher lá.
A cabana de repente parecia muito pequena. Embora eles tivessem compartilhado um
acampamento muitas vezes na trilha, dormir dentro das mesmas paredes levava a um novo
grau de intimidade. Ansioso para quebrar a tensão, Gareth sugeriu que eles começassem
sua busca caminhando pela aldeia. Talvez eles ouvisem algo sobre a história do vendedor
de água.
Cercado por um cortejo de crianças curiosas, eles passearam pela aldeia. As mulheres
se sentavam sob toldos na frente de suas cabanas, tecendo ou batendo em grãos. Algumas
tinham a mesma curiosidade tímida que as crianças, mas outras apenas estreitavam os
olhos. Todas usavam algum tipo de corrente.
Eles quase tinham completado um circuito pela aldeia quando uma companhia de
cavaleiros se aproximou vindos da direção das Areias do Sol.
- Yi-yi-yi! - Veio seu grito ululante.
As crianças correram, gritando com excitação. O líder montava um cavalo tão raquítico
e atrofiado que tinha apenas o tamanho de um chervine. A carcaça de um animal estava
pendurada na garupa do cavalo. Gareth tinha visto aquele padrão branco e bronzeado,
embora só de longe. Aquele devia ser um antílope do deserto.
- Nenhum cavalo consegue pegá-los. – Rahelle dissera.
O cavaleiro riu, rodeando com seu cavalo para mostrar seu prêmio. As pernas do
antílope estavam alinhadas contra os ombros do cavalo. O sol brilhava em sua pele, exceto
pela faixa em toda a sua dianteira, onde a pele estava crua e enegrecida.
Gareth tinha visto ferimentos como aqueles, mas nunca na vida real. Apenas em fitas
de vídeo no QG da Federação, as que seu tio Danilo insistira para que ele assistisse, ao invés
de só imaginar tais ferimentos.
O piloto alcançou seu cinturão e segurou um objeto com alça curta, um pequeno barril
preso, mas inconfundível. Sol brilhou no metal polido.
Um blaster!
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Capítulo 16

O que no nome de todos os deuses a Federação estava pensando? Eles tinham


abandonado completamente o Pacto? Ou Sandra Nagy e seu Partido Expansionista
pretendem deixar para trás todo o respeito pela lei e costumes locais?
É mal negócio acorrentar um dragão para assar sua carne, dizia o velho provérbio.
Assim como era um mal negócio dar dispositivos de tal poder destrutivo para aqueles
que não tinham tradição ou treinamento para usar com sabedoria.
O cheiro da carne carbonizada dominou as narinas de Gareth. A explosão havia
chamuscado até os ossos do antílope. Ele sentiu o frio distante onde sua faísca de vida
havia estado. Ela fora extinta tão rapidamente, mas com tamanha dor, que o instante de
agonia ainda permanecia na carne.
Gareth pensara e tinha vindo preparado para confirmar que a Federação tinha sido
descuidada com seu armamento. Não havia ocorrido a ele que a falta de descuido poderia
se estender tanto a ponto de dar os mesmos armamentos aos aldeões.
- Devo falar com Cuinn imediatamente. - Gareth disse a Rahelle. - Ele deve saber onde
a Federação pousou, de onde vieram os blasters.
- Ele não vai te contar. - Ela parecia totalmente certa. Quando ele deu a ela um olhar
questionador, ela enrugou os lábios. – Para você? Um estranho de Carthon? Olhe para este
lugar! Você não pode ver a ligação entre esses dispositivos Terranans e as melhorias
recentes? Por que essas pessoas compartilhariam a fonte de sua riqueza?
- Se eles não me contarem espontaneamente, então falarão com os homens de Lorde
Dayan com muito menos compreensão da parte deles.
O cavaleiro com o antílope saiu em direção ao centro da aldeia. Os sons da celebração
recuaram para murmúrios distantes.
- Os homens podem ser violentos, - Rahelle concordou - mas não tão duros quanto o
deserto que essas pessoas enfrentam em todos os dias de suas vidas.
Imagens surgiram na mente de Gareth, de homens em trapos pálidos, sujos de areia,
lutando contra as dunas... Uma erupção de poeira subindo muito alto, abrangendo o sol
carmesim... Areia derretendo como cera, surgindo em alguns pontos pedaços de vidro
opalescentes, tanto quanto o olho pudesse captar... A aldeia subindo em plumas de fumaça
gordurosa, as colinas derretendo em pilhas de detrito e corpos enegrecidos...
Ele piscou e as imagens se dissolveram. Ao redor dele, ainda havia uma vila viva,
cabanas, animais, crianças e mulheres em seus serviços.
- Então vou ter que persuadi-los. – Ele disse.

~o ⭐ o~
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Cuinn escutou, seu rosto impassível, quando Gareth apresentou seu caso. - Os homens
de Lorde Dayan estão a apenas um dia ou dois atrás de nós. – Gareth concluiu. - Eles
querem essas armas e eles pretendem roubá-las se necessário. Por esta razão, eles
cruzaram as Areias do Sol.
A expressão de Cuinn estava ainda mais resguardada do que antes. - Não temos medo
deles.
Você deveria ter! Gareth pensou, mas segurou as palavras.
- Talvez seja você e não as armas do sol que colocam Nuriya em perigo. – Cuinn
acrescentou sombriamente.
- Eu não guiei os homens de Lorde Dayan até aqui! - Gareth disse tão calorosamente
que Rahelle segurou sua mão para não fazer um gesto de calma, pois nenhum menino de
aprendiz se atreveria a fazer isso.
- Se eles vierem, vamos lidar com eles. - Cuinn adicionou um tom menos beligerante: -
Você quis fazer o bem com seu aviso, homem de Carthon. Suas intenções são honrosas,
mesmo se você tiver pouca compreensão do deserto e da força de seu povo. Nós não
somos facilmente enganados: - A frase tinha um significado implício de que eles eram
exímios nos jogos de enganos, inteligência e ardil.
O olhar de Cuinn cintilou para as colinas, depois voltou para Gareth. – Fique à vontade
conosco esta noite. A lei da hospitalidade ainda é mantida nestas terras. Amanhã você deve
retornar ao lugar de onde pertence, já que você acha esses homens de Shainsa tão
intimidantes.
Gareth sabia quando era dispensado. Ele se curvou, tocando seu punho em sua
barriga, coração e testa e retirou-se. Rahelle o seguiu de perto. Quando estavam fora do
alcance da audição, ele se virou para ela. - Alguma ideia do que fazer agora?
- Seria insensato tentar voltar pelas Areias do Sol sem Adahab para nos guiar e ele
disse que não retornaria por mais cinco dias. Devemos seguir para uma das outras aldeias e
descobrir se elas também têm essas armas Terranans.
A praticidade de Rahelle fazia sentido, mas Gareth sentiu uma tremenda resistência a
seguir em frente. Podia ou não ter armas da Federação em outro lugar, mas ele sabia com
certeza que elas estavam aqui.
Cuinn olhou para as colinas, não mais do que um minúsculo mover de olhos, mas o
suficiente para trair seus pensamentos. Apesar de todas as suas palavras confiantes, o
chefe havia parecido preocupado.
A base da Federação está lá em cima, Gareth pensou. E ele tinha apenas uma noite
para encontrá-la.

~o ⭐ o~
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Depois que os homens terminaram de esfolar e preparar a carcaça do antílope,


removendo certas veias e tendões de acordo com o costume, as mulheres esfregaram a
carne com especiarias e colocaram-na em um poço de pedra. A atividade foi acompanhada
por um frenesi prévio, um conjunto de tarefas de preparo da comida que eram
desconhecidos para Gareth. Ele não reconheceu nenhum dos pratos. Se Rahelle o fez, ela
não disse nada quando tomaram seus lugares junto com os outros homens no amplo
círculo.
As mulheres carregaram a carne assada, em fatias grossas e cercadas por montes de
frutos secos escuros, algum tipo de pasta de vegetais de aparência deslumbrante e bolos de
grãos cozidos e pegajosos. Elas colocaram as travessas no chão e tomaram seus lugares
atrás dos homens. O círculo ficou em silêncio. Com lentidão dolorosa, um homem idoso se
levantou, ajudado por dois jovens. Ele ergueu a voz e, em um dialeto tão arcaico que
Gareth mal conseguia entender, cantou uma oração de ação de graças.
Cuinn sinalizou para a refeição começar. Ao redor do círculo, grupos de cinco ou seis
homens se agruparam em torno de cada prato. Cuinn e os outros aldeões tiraram suas
próprias facas para cortar lascas de carne. Gareth seguiu seu exemplo. Colocando um
pedaço de carne de antílope em sua boca, ele a achou dura, mas intensamente saborosa.
Os bolos de grãos eram firmes o suficiente para serem facilmente consumidos, mas os
legumes eram duros demais para o conforto.
Passada cerca da metade da refeição, Cuinn levantou-se e começou a cantar,
improvisando mal, porém em uma estrutura fixa. A canção exaltava as virtudes dos
caçadores e sua proeza com armas. Assovios e gritos de aprovação da plateia pontuaram
sua apresentação. Com cada repetição do refrão, os aldeões rugiam ainda mais
entusiasmados.

"Somos os homens do sol, da areia!


Vermelho é o amanhecer e vermelho o rio!
Nossa força é uma faca afiada pela seca e tempestade!
Como o deus do poço, nos levantaremos novamente! "

Vermelho o rio...vermelho é também o sangue de seus inimigos... Gareth não gostou


do som disso. O deus do poço deve ser Nebran. Dizem que sapos sobrevivem às estações
secas, cavando sob a lama. O resto do verso não precisava de tradução.
A celebração ficou cada vez mais barulhenta depois que as mulheres se retiraram. Os
jarros de pele redondos de bebiba passaram ao redor do círculo. Quando um chegou para
Gareth, ele levantou-o aos lábios, mas parou ao notar a expressão de aviso de Rahelle. Ele
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afastou um pouco, fingindo beber. Um pouco permaneceu em seus lábios, queimando


como fogo líquido, demonstrando a potência da bebida.
Em seus anos na Corte, Gareth havia aperfeiçoado em aparentar embriaguez. Ele sabia
que tinha pouca resistência para qualquer coisa mais forte do que cerveja ou vinho
temperado. Ele também sabia que homens como o Octavien Vallonde deliberadamente o
fizeram beber licores muito mais fortes, a fim de torná-lo mais maleável. Sutilmente, ele
olhou ao redor do círculo para ver como os outros respondiam à bebida. Foi quando ele
notou que não tinha sido o único a levantar a pele com toda a aparência de prazer, mas
sem engolir. O outro homem foi Cuinn.
O aldeão que trouxera o antílope não mostrara tal restrição. Seu rosto corou no brilho
refletido do fogo. A cada poucos momentos, ele ou um de seus amigos explodia em risadas
grosseiras, gritando fragmentos de contos e piadas. Alguém começava uma música e outros
participavam de um verso ou dois, geralmente uma variante da canção da vitória.
Todos os aspectos da festa mostraram a Gareth como esses aldeões eram pobres,
vivendo uma existência marginal e precária. Eles viviam cercados por potenciais catástrofes.
Uma temporada sem chuva, um poço secando, predadores atacando seus rebanhos,
invasores ou doenças... Qualquer uma dessas coisas significaria o fim de sua pequena
comunidade. Não é de admirar que eles comemorassem a rara recompensa da caçada de
forma tão intensa. Não admirava que Cuinn não falasse dos blasters por medo de perder
sua tênue vantagem.
- Cante para nós, homem de Carthon! - Um dos homens gritou.
- Minhas músicas são muito pobres para tal ocasião. - Gareth protestou.
- Uma canção! - Os outros gritaram. - Uma música para louvar nossos homens
corajosos!
- Uma homenagem ao kihar e proeza de todos em Nuriya!
- Nuriya, Jóia das Areias!
Gareth os deixou continuar dessa maneira enquanto ele buscava em seu cérebro por
uma canção adequada. Ele tinha uma voz muito boa, mas a maior parte do que ele sabia
era em casta, a língua do Comyn. A pausa valeu a pena, pois ele se lembrou de várias das
músicas cantadas pelos homens de Cyrillon na estrada para Carthon. As melodias eram
fortes e simples, as palavras repletas de gírias do dialeto das Cidades Secas e cahuenga, e
os sujeitos eram obscurecidos na maioria das frases. Essas músicas nunca seriam cantadas
para o Príncipe Elhalyn. Seus pais teriam ficado escandalizados e, por isso mesmo, ele ficou
encantado.
Ele cantou três delas, deslocando sua voz e inventando sílabas sem sentido quando
não conseguia lembrar as frases exatas. Com alguma sorte, ele soaria como um estranho
bêbado de Carthon. Como ele esperava, seu canto provocou um sentimento de alegria
O s f i l h o s d o s r e i s | 149

generalizado, tanto pelo que os homens conseguiram entender das letras quanto em sua
encenação de um bêbado.
A essa altura, as mulheres voltaram e tiraram os restos da comida, mais propensas a
compartilhá-los entre si. Alguns dos homens cambaleavam para fora do círculo, mas a
maioria deles permaneceu, bebendo, cantando e contando histórias.
Um dos que saíram, silenciosa e sutilmente, foi Cuinn. Gareth memorizou a direção
que o chefe tomara. Ele esperou por um momento para que pudesse seguir sem ser
notado. A sorte estava com ele, por dois ou três dos homens da aldeia começaram uma
dança do lado de fora do círculo perto de onde Gareth estava sentado. Chutando e girando,
cambaleando e uivando em meio ao riso, os dançarinos atraíram todos os outros olhos para
eles. O público gritou palavras de encorajamento conforme cada dançarino se esforçava
para superar os outros.
Gareth se arrastou para trás do círculo. Uma vez passado o círculo da luz do fogo, ele
se levantou e seguiu o caminho entre o aglomerado de cabanas. Não havia sinal de Cuinn.
Gareth se apresou, preocupado que pudesse ter perdido sua rota. Seus passos de couro
sobre o solo nu pareciam muito altos.
Na base da colina mais próxima, Gareth parou. E se ele tivesse cometido um erro e
Cuinn tivesse tomado alguma outra rota? Ou ido tratar de seus negócios perfeitamente
comuns dentro da aldeia?
Então vou ter que continuar sozinho. Seria insano vagar nessas colinas à noite. A
chance de tropeçar na base da Federação era pequena, especialmente em comparação com
o risco de algum acidente, uma queda ou o encontro com um predador. Ele não sabia que
tipo de fera costumava caçar ali, mas os antílopes deviam ter inimigos naturais além dos
aldeões.
Atrás dele, um seixo rolou sobre a sujeira. Foi um som fraco que Gareth poderia nem
ter ouvido se não estivesse se esforçando para notar qualquer sinal do chefe. Ele congelou,
não ousando respirar. O som veio de atrás dele, mas onde? Em que direção exata?
O riso ecoou alto vindo dos celebrantes ao redor do fogo. Quem estava seguindo
Gareth poderia avançar outro passo, ou três, o som mascarado pelos aplausos. Seus
sentidos comuns eram inúteis. Gareth escorregou sua pedra da estrela para fora do
amuleto de Nebran e estendeu a mão com seu laran.
A aldeia assumiu uma aparência completamente diferente. Pontos de localização e
globos de energia viva ardiam, alguns muito pequenos, provavelmente de crianças e
animais adormecidos em suas camas. A grande luz, como uma fogueira de atividade atrás
dele devia ser o círculo. Ele sondou os pontos brilhantes, separando humanos de animais,
animais morrendo nas plantas colhidas que agora ardiam em brasas. Os aldeões emanaram
apenas a conversa mental sem foco e surtos emocionais daqueles sem laran, mas atrás
O s f i l h o s d o s r e i s | 150

dele... Como o único toque de um sino, um som doce, colorido, com o cheiro de um prado
depois de uma tempestade...um lampejo de calor...
Ele a conhecia. Ele a reconheceria em qualquer lugar.
- Lá! - Rahelle sussurrou, tão perto que sua respiração tocou sua bochecha.
Deslizando sua pedra da estrela de volta para o medalhão, ele olhou para onde ela
apontou. Sombras vacilaram, movimentos escuros na noite, em uma curva das colinas.
Não havia sentido em tentar convencer Rahelle a ficar para trás. Ele pensou em uma
dúzia de razões pelas quais era muito perigoso, sabendo que ela iria interpretar todas como
insultos. A verdade era que ele não conseguiria impedi-la. A verdade mais difícil era que,
sem sua visão afiada, ele não teria notado o lampejo do movimento do homem contra as
colinas. Então eles continuaram juntos. Ele tentou não pensar no que poderia acontecer,
tentou não vê-la como Rahelle, mas sim como o forte e engenhoso Rakhal.
Eles não tinham ido longe nas colinas, seguindo os barrancos erodidos, quando a visão
da aldeia ficou para trás. A trilha era íngreme para cima, embalada entre os cumes.
Felizmente, a noite estava clara e os céus sem nuvens. Uma ou duas vezes, Gareth ouviu
um grito de cima, provavelmente uma coruja do deserto.
As colinas não eram totalmente nuas como pareciam à distância. Gramas ondulantes
se alinhavam nos cantos da trilha em ambos os lados. As folhas farfalhavam em seus talos
secos, talvez pela presa natural dos perseguidores. O cheiro de terra mudou enquanto eles
subiam, aqui e ali insinuando umidade de plantas ainda verdes, do mel-almiscarado de
brotos maduros.
As luas definidas, lançando as colinas em tons de semiescuridão. Apenas algumas
estrelas brilhavam no Ocidente, enquanto que, além do cume oriental, uma leve insinuação
de luz parecia contaminar o céu.
Gareth tropeçou em um obstáculo invisível, provavelmente uma rocha, se controlou e
continuou. Ele subiu com cuidado, um pé, depois do outro, tropeçando com maior
frequência até que percebeu que começava a poder ver seus pés.
Por fim, eles chegaram a uma crista, um lugar plano antes da trilha mergulhar para
baixo. O amanhecer, vermelho e oblíquo, sobre um amplo chão do vale rachado com
paredes crescentes em ângulo agudo. Muito disso estava escondido pelo afloramento
abaixo. Não havia sinal do chefe da aldeia.
Gareth avaliou a visão, seus pensamentos correndo. Sua primeira impressão era de
uma cratera, embora, até onde ele soubesse, Darkover não tinha atividade vulcânica
significativa. Poderia muito bem ser uma formação natural, ainda resistindo apesar da
passagem de muitas eras, de modo que agora a fazia parecer com uma tigela enorme.
Eles seguiram pela trilha, deslizando nos seixos soltos, até que passaram a ser
rodeados por uma parede de rocha lascada. Abaixo deles, a bacia agora parecia ampla e
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plana. Sombras se alongavam da borda oriental, exceto onde, não muito distante da parede
em que eles estavam, cordões de luzes amarelas brilhavam em forma de pontos. Um
campo de brilho não natural cercava edifícios dispostos em forma de arco, galpões e pilhas
altas de caixas... Além de um objeto que certamente devia ser a menor e mais feia nave já
criada.
Não haviam insígnias distintivas marcando o ofício, pelo menos nenhuma que Gareth
pudesse ver. Suas superfícies exteriores pareciam feridas, enegrecidas em algumas partes
ou profundamente marcadas como se tivessem sido arranhadas pelas garras de um
predador celestial. A nave estava no meio de um terreno irregular de areia fundida.
Como a maioria dos membros de sua casta e geração, Gareth tinha passado por um
período de febre espaço. Ele visitou o espaçoporto em Thendara, devidamente
supervisionado é claro, e observou as Grandes Naves da Federação decolar. Em uma
ocasião memorável, ele e sua escolta haviam sido permitidos a bordo. O capitão lhe dera
um punhado de imagens lindamente impressas dos vários tipos de embarcações capazes de
aterrissagens planetárias. Apesar de que aquilo tinha sido alguns anos antes da Federação
se retirar de Darkover, Gareth lembrava da elegância, das linhas funcionais e manutenção
impecáveis.
Esta dificilmente parecia grande o suficiente para uma tripulação e muito menos para
qualquer carga. Ela o fazia lembrar de um desses cavalos de patas curtas, pouco musculosos
das Planícies de Valeron que poderiam se tornar um ponto menor do que a extensão de sua
mão sem muita distância, e lançar-se de pé para um galope em um único passo ágil.
Rápido. Ágil. E, pelo seu exterior, sem o luxo de atender às aparências.
Alguns homens se moveram entre as caixas, os edifícios e o lado oposto da nave, onde
a escotilha devia estar localizada. Nenhum deles usava uniformes.
Rahelle murmurou sob a respiração: - Então você estava certo sobre a Federação ter
pousado aqui.
Ele finalmente encontrou sua voz e conseguiu falar: - Isso não é uma nave da
Federação.
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Capítulo 17

- Então o que é?
- Eu não sei. Preciso me aproximar.
- Nós precisamos.
Argumentar teria sido inútil. Ele fechou os olhos, orou pedindo por paciência e não
disse nada.
Rahelle tocou em seu braço e apontou para baixo, chamando sua atenção para a trilha
e os lugares onde saliências ásperas da rocha forneciam alguma cobertura. Eles ainda
estariam expostos se alguém viesse em certa direção, mas haviam boas chances de que os
fora-do-mundo não ficariam no lugar certo e na hora certa para vê-los.
Ir mais longe implicaria um risco criminosamente irresponsável. Eles deveriam voltar
da mesma forma que vieram, correr de volta para Nuriya, localizar Adahab e ele deveria
retornar a Thendara. Agora ele deveria estar em qualquer lugar, menos ali.
Embora Rahelle representasse um dilema, sua presença o firmou. Ela se mantinha tão
imóvel, quase sem respirar, e, ainda assim, em sua mente ela era como um dos oásis que
eles passaram através das areias do Sol. No limite de sua consciência mental, ele sentiu a
batida constante do coração dela, a luz que era o seu espírito. Isso o lembrou das noites
claras, olhando para a faixa de estrelas e que, se ele sustentasse o olhar por algum tempo,
mal podia discernir as estrelas do pálido braço da galáxia. No instante em que ele olhava
diretamente para elas, a ilusão de ótica desaparecia. Sua percepção de laran sobre Rahelle
era assim. Ele não ousava olhar diretamente para ela por medo de que ela, como as outras
gloriosas estrelas, inacessíveis, desaparecesse.
Em vez disso, ele estendeu sua mão física, aquela feita de osso, sangue, nervos e
tendões. Ele tocou os dedos pequenos, fortes e os sentiu apertar em torno da mão dele.
Ele agachou-se e desceu deslizando para o primeiro dos afloramentos com Rahelle o
seguindo como sua sombra. Eles fizeram uma pausa, estudando os homens em seu
trabalho logo abaixo.
Depois de mais duas etapas vozes soaram abaixo, com sons indistintos. Gareth pensou
que os homens falavam o Padrão Terran, mas não conseguia distinguir as palavras. Ele
estava se preparando para deslizar mais para o próximo ponto de vigia quando três homens
saíram de trás de uma peça da nave pousada, um aparelho em forma de uma pá curta e
grossa. Dois deles eram claramente de fora-do-mundo e ambos usavam uma peça única de
vestuário de cor castanha escura. Um era normal em estatura, mas o outro parecia uma
aranha inchada com pernas finas, alongadas e ombros enormes. O padrão de cor azul sobre
sua careca podia ser um chumaço de cabelo ou uma tatuagem.
O terceiro homem era Cuinn.
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Por sua postura, o chefe não estava nada satisfeito com a conversa. Suas palavras
eram acompanhadas por um gesto que indicava urgência, uma questão de kihar. O homem
de pernas magras não deu sinal de que tinha entendido as palavras ou os movimentos da
mão. Ele virou-se para seu companheiro, que consultou um instrumento na palma da mão,
talvez um dispositivo de dicionário e tradução. Gareth tinha ouvido falar sobre essas coisas
pelo amigo de Lew Alton, Jeram, que já tinha sido um soldado Terranan e depois ficou para
trás quando eles se retiraram.
A discussão continuou por mais alguns minutos. Cuinn ficou visivelmente mais agitado,
mas os fora-do-mundo pareciam alheios ou indiferentes.
O que eles estavam dizendo? Gareth praticamente se coçava de curiosidade. Ele
considerou e rapidamente descartou a ideia de usar sua pedra da estrela. Rahelle exigiria
uma explicação e ele duvidava que, mesmo com a capacidade de amplificar a energia
psíquica, seria capaz de captar muita coisa de valor. Cuinn podia ser um drytowner, mas seu
povo devia ter as mesmas raízes genéticas, ainda que distantes, e ninguém nunca havia
relatado que eles tivessem qualquer laran, mas também não os haviam testado. Rahelle, no
entanto, tinha algum traço de habilidade psíquica, possivelmente por sua ascendência
paterna nos Domínios.
Quanto aos fora-do-mundo... Vendo a arrogância ocasional de sua postura e a forma
como eles persistentemente ignoravam o aumento da intensidade das exigências de Cuinn,
Gareth não tinha certeza de que queria sentir seus pensamentos.
Cuinn colocou a mão nas dobras da frente de sua túnica. Os músculos de Gareth
apertaram reflexivamente. Seu corpo reconhecia, se sua mente ainda não o fizera, a
mudança das palavras para os atos. Um instante depois, mais dois foras do mundo sairam
de trás do aparelho de pouso para flanquear seu líder. Um usava o mesmo vestuário
castanho-escuro, mas o outro estava vestido com calças e colete de mangas, ambos com
bolsos abaulados. O cinto largo de algum material brilhante circulava sua cintura e nele
havia uma variedade de objetos que Gareth imaginou serem ferramentas... Exceto o blaster
ao alcance da mão direita. Claramente, eles esperavam por problemas.
O chefe da aldeia fez uma pausa. O líder dos fora-do-mundo exclamou algo no Padrão
Terran. Cuinn alcançou as dobras de sua camisa e tirou um blaster. Ele se moveu devagar,
mantendo o cano para baixo. Com a outra mão, ele apontou para o líder, depois para a
arma, e finalmente de volta para as colinas onde Gareth e Rahelle se agachavam.
Ele não sabe que estamos aqui, Gareth disse a si mesmo. Ele deve se referir a aldeia.
Os guardas se moveram incomodados. Gareth quase podia ver a maneira como seus
olhos se estreitaram e sentiam a adrenalina no ar. Um deles fechou os dedos da mão direita
ao redor da alça de seu blaster.
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A mudança pareceu surtir efeito com seu intérprete. Cuinn repetiu seus gestos, desta
vez enfatizando-os com um passo em direção à colina, depois voltando-se para apontar
novamente para o seu blaster e o dos dois guardas.
Blasters. Ele tem um e quer mais.
Os dedos de Rahelle se apertaram ao redor do braço de Gareth. Ele não ousou falar
em voz alta.
O tradutor consultou seu dispositivo novamente. Sua voz era muito baixa para Gareth
ouvir mais do que uns poucos murmúrios. Então o líder se virou para Cuinn, de cabeça
erguida e espinha rígida, mas o aldeão se manteve firme em uma postura de desafio.
O movimento não parecia vagamente cômico como antes, mas sim como uma
estranha e gigantesca formiga-escorpião e tão mortal quanto. Ele o ouviu respondendo,
mas só conseguiu entender os murmúrios de algumas palavras.
Gareth não precisava de laran para sentir a resposta de Cuinn. O único passo que ele
deu em direção ao líder foi tão intenso quanto qualquer explosão verbal. Será que o outro
homem não percebeu que estava se dirigindo a um homem de orgulho e dignidade altas,
talvez as únicas coisas de valor que Cuinn possuía? Ou ele simplesmente não se importava?
Rahelle também viu e praguejou baixinho.
Uma quietude como a sombra de uma frente de tempestade se espalhou pela cena
abaixo. O líder dos fora-do-mundo inclinou a cabeça, um movimento tão leve e tão
convincente que pareceu ecoar no silêncio. Movendo-se com velocidade semelhante a um
homem-gato, os dois guardas cercaram Cuinn. No instante seguinte, um tirou o blaster do
chefe e o outro ficou pronto para contê-lo.
Independente de quem fossem esses estranhos, Cuinn não era tolo. Ele permaneceu
parado, uma estátua de gelo e chamas. Na imaginação de Gareth, o ar ao redor de Cuinn
brilhava com sua indignação.
O líder dos fora-do-mundo estava novamente, mais rapidamente agora e gesticulando,
embora em um padrão desconhecido. Ele parecia lembrou a Gareth de um cortesão
fazendo um discurso que transmitia a ameaça de poder e a vontade de usá-la, não só da
boca para fora.
Cuinn não o tipo de homem que se intimidava por uma demonstração de força.
Qualquer um que entendesse um pouco dos costumes das Cidades Secas teria pensando
em uma estratégia melhor do que a intimidação. Gareth não teria ficado surpreso se Cuinn
se atirasse sobre o outro homem, armado apenas com seus próprios dentes.
Mas Cuinn não fez tal movimento. Astúcia e a nutrição da vingança por tempo muito
longo eram coisas consideradas em alto valor pelas Cidades Secas e ele devia ter crescido e
se tornado experiente nisso. Ele podia ser dispensado, mas não sairia barato.
Como os Terranan diriam, aquilo custaria caro.
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O líder dos fora-do-mundo parecia alheio ao rancor que estava criando. Gareth viu a
autoconfiança desenfreada na maneira como ele se dirigia a Cuinn, não como um homem
orgulhoso falando com outro, mas como alguém tão superior que podia dispensar sem
mesmo a cortesia comum.
Ele vê um selvagem, ignorante e supersticioso, sem armas mais eficazes contra blasters
do que algumas pedras e chicotes. Bem, a Federação no passado também considerou assim
os homens dos Domínios. Isso foi antes de Sharra, a imensamente poderosa matriz que
destruíra facilmente Caer Donn, deixando a cidade em ruínas enegrecidas pelas chamas... A
mesma que também derrubou uma nave dos céus.
Depois disso, a Federação escrupulosamente aderiu ao Pacto. Esses foras do mundo
não tinham experiência com armas mais avançadas do que as suas.
Portanto, eles são os selvagens ignorantes.
Gareth se abaixou atrás da rocha assim que Cuinn se virou e, com dignidade e mais
ainda com um olhar de ameaça, voltou para cima na trilha.
Rahelle puxou o braço de Gareth. Tão silenciosamente quanto podia, ele rastejou de
volta, se ocultando atrás de uma rocha até que não fosse visto na trilha.
Cuinn não fez nenhum esforço para se esconder quando subiu. Ele se movia
rapidamente, com o passo firme de um homem em pleno comando de seu próprio destino.
Os grãos e seixos pisoteados sob seus pés foram descendo a trilha. Correntes de ar giraram
atrás dele.
Com a cabeça contra a rocha preta e porosa, Gareth esperou até que os últimos sons
da passagem de Cuinn silenciaram. - Ele vai fazer alguma coisa. - Gareth deslizou para
frente e deu uma olhada para o acampamento dos fora-do-mundo. - Eu gostaria de saber o
quê.
- Eu concordo. Ele certamente vai exigir vingança pelo insulto ao seu kihar. Qualquer
drytowner o faria, mais ainda um chefe.
- Cuinn e seu povo não representam uma ameaça. O que eles poderiam fazer? Jogar
pedras em uma nave estelar? Lutar com facas contra os blasters? Ou o kihar de um chefe é
suicidamente estúpido?
- Você é um Comyn! - Rahelle zombou. Gareth endureceu antes de perceber que ela
dizia o termo de forma generalizada, significando um ‘homem dos Domínios’. - Você acha
que usar violência contra o outro é a única maneira de resolver uma questão de honra!
- O que então? Recusar-se a negociar com eles?
- Por comida ou outros bens? Isso seria uma ameaça ociosa. Mas por água...
E água ali significava vida.
- Pensei que as pessoas aqui seguiam a trégua de água, assim como o povo das Hellers
pausam suas diferenças quando há um incêndio para ser enfrentado.
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- Cuinn não reteria água, nem mesmo contra seu inimigo mais amargo. Mas ele pode
muito bem garantir que esses estranhos desejem que isso tivesse acontecido.
Gareth balançou a cabeça. A nave espacial devia ter seu suprimento de água e comida,
mas Cuinn talvez não soubesse disso. Seria muito mais seguro para todos se os fora-do-
mundo saíssem Darkover. Ele se perguntou se conseguiria convencê-los. Até agora, ele não
conseguiu realizar qualquer coisa que tinha se proposto, exceto andar como um coelho-de-
chifres da tigela para o fogo.
- Não podemos parar Cuinn. - Gareth disse como uma declaração, não uma questão, e
ouviu o suspiro de concordância de Rahelle. - Mas posso conseguir fazer os fora-do-mundo
ver a razão. Falo o Padrão Terran de forma aceitável. Não é exatamente um plano brilhante,
mas não consigo pensar em um melhor.
Ela ficou de pé e saiu para a trilha.
- Você não.
Rahelle firmou sua mandíbula, seus olhos firmes como rochas e Gareth lembrou como
ela havia lutado ao lado dos homens durante a emboscada na estrada para Carthon, apesar
da proibição de seu pai. Em sua memória surgiu a imagem de quando ela levantou o queixo
e perguntou: Você acha que uso correntes?
Em toda a sua vida ele nunca tinha desejado algo tão desesperadamente como agora
desejava mantê-la ao seu lado.
- Alguém tem que levar as notícias. Para seu pai e ele levará para o meu povo em
Thendara. Não há mais ninguém em quem eu possa confiar. – Ele disse.
Ela olhou para ele como se dissesse que aquele não era um argumento justo. Ele não
queria brigar com ela. Aquilo era verdade até certo ponto. Depois de um momento, no
entanto, ela assentiu. – Voltarei a Nuriya e garantirei que uma mensagem seja enviada ao
meu pai informando da situação aqui.
- Minha espada... Leve com você. Se alguma coisa acontecer... - Ele queria pedir para
trocar com a dela, mas nenhuma mulher nos Domínios, menos ainda nas Cidades Secas,
podia possuir uma espada.
- Vou guardar para você. - Ela não estava concordando em ir para Carthon, ele
percebeu.
Ele a pegou pelos ombros e disse: - Não volte por mim.
- O que te faz pensar que...
Incapaz de pensar em qualquer outra maneira de silenciá-la, ele cobriu a boca dela
com a sua. Seus lábios eram cheios, suaves e tensos. Algo cedeu nela e também nele.
O laran brilhou, lavando seus sentidos em fogo azul-claro. Naquele momento ele não
precisava de uma pedra da estrala. Ele era uma pedra da estrela. O calor esculpiu o
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momento em perfeição cristalina, toda pretensão queimando e sumindo, deixando duas


mentes e um único coração.
Ela o empurrou para longe e deu um passo para trás, tremendo como uma folha em
uma tempestade nas Hellers.
Não, por favor, eu não quis dizer que...!
Ele poderia ter suportado se ela ficasse enojada, entediada ou simplesmente chocada
com ele. Mas ela estar assustada o paralisou com horror.
Ela deu a ele um longo olhar, depois girou e disparou para a trilha para Nuriya.
Depois de um longo momento, ele afastou o olhar e se forçou a se concentrar no
acampamento abaixo.

~o ⭐ o~
Ele desceu, pisando cautelosamente nas manchas de grãos soprados pelo vento e
certificando-se de que as pessoas abaixo tivessem tempo suficiente para vê-lo. Ele queria
que sua chegada fosse aberta e não sigilosa.
Eles claramente o tinham visto, como ele pretendia, pois o líder de pernas finas e seus
guarda-costas se posicionaram perto do perímetro do acampamento. Quando Gareth
chegou ao fundo da colina e moveu-se para a região plana, um terceiro guarda saiu para
bloquear seu caminho. Esse homem seria impressionante em qualquer lugar, imponente
acima da altura de Gareth em mais de uma cabeça, e estava armado com um blaster e um
chicote de couro trançado. Ele manteve as mãos de tal modo que as pontas dos dedos
roçavam nas duas armas. Olhos desconfiados em um rosto pálido que não refletia nenhum
traço de boa vontade, avaliavam Gareth.
Gareth parou e disse no Padrão Terran: - Sou um amigo!
As palavras produziram uma reação visível, embora não do guarda, cujo
comportamento permaneceu o mesmo. Os outros o olhavam com surpresa e curiosidade.
- Não estou armado, exceto por uma pequena faca em minha bota. - Gareth levantou
as mãos bem longe de seu corpo.
- Quem é você? O que está fazendo aqui? – O líder perguntou.
Com exceção de sua identidade, Gareth já decidiu ficar com a verdade. - Garrin de
Carthon. Estou aqui com um aviso.
- Deixe ele vir.
O guarda se moveu para as costas de Gareth, movendo-se com uma velocidade
surpreendente para o tamanho dele. Todo Gareth sentiu era uma série de toques suaves
que não se seguiram por nenhum padrão particular, mas ele não tinha dúvidas de teriam
denunciado se ele carregasse qualquer arma oculta, até mesmo um palito. Houve um
ligeiro puxão em sua bota quando a pequena faca escorregou e depois um tapinha entre as
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omoplatas. Entendendo isso como um sinal de que passara na inspeção, ele se aproximou
do líder.
Ele tinha mesmo achado esse homem cômico? Em comparação com aqueles olhos, tão
negros que parecia ser totalmente as pupilas, mas alertas com astúcia e suspeita, e aquela
boca emoldurada por linhas rígidas de um vigilante, o jeito desajeitado do resto do corpo
do líder parecia trivial. Tatuagens azuis, como hieróglifos borrados, estavam espalhados por
seu couro cabeludo.
Um canto da boca do líder se apertou, deixando sua expressão com um tom distante
de escárnio. Ele parecia estar perguntando: Por que eu precisaria de um aviso de alguém
como você? Ele não perguntaria isso em voz alta, não assim, não se comprometendo
antecipadamente. Ele preferia manter suas opções em aberto, fazendo apenas ameaças e
promessas que podia sustentar.
- Estou ouvindo.
- Eu te dei meu nome e propósito. Não é costumeiro oferecer o seu?
O quase-escárnio se aprofundou. - Para um homem da aldeia, você aprende rápido.
Não achei que nenhum de vocês falasse muito bem assim. O que algo ruim, pois eu poderia
ter usado você - um movimento dos olhos escuros em direção ao homem que atuara como
tradutor - mais cedo.
- Não sou drytowner. – Gareth disse, balançando a cabeça para dar ênfase: - E Cuinn, o
chefe com quem você falou, não sabe que estou aqui.
O tradutor se aproximou. - Político local?
- Tem seus usos. – O líder respondeu. Ele voltou sua atenção para Gareth. - Carthon,
você disse?
Gareth assentiu. - Na fronteira entre as Cidades Secas e os Domínios... Onde a
Federação tinha seu QG.
A menção provocou um flash de emoção, rapidamente suprimida, na mente do líder.
Surpresa? Medo? Gareth não podia ter certeza, só que o fora-do-mundo não ficara feliz
com a possibilidade de encontrar as autoridades Terranans.
Eles pousaram aqui para evitar serem notados. Isso significa que, quem quer que seja,
e o que quer que estejam fazendo aqui, não pode ser legal.
Eles eram foras da lei? Fugitivos? Desertores? Uma facção rebelde?
- Olha, - disse Gareth, tentando soar sério e um pouco desesperado - eu não me
importo com quem você é ou o que você está fazendo aqui. Mas foi você quem deu a Cuinn
aqueles blasters e isso vai causar mais problemas do que você pode imaginar, não apenas
para o meu povo, mas também para o seu.
O líder não corrigiu o uso do plural, blasters, confirmando, assim, o medo de Gareth de
que havia mais de um.
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- Sou Poulos Windhoven, Capella IX, Capitão da Lamonica. Vamos conversar. - O líder
indicou com a cabeça para a maior das estruturas, depois dirigiu-se nessa direção com um
ritmo incerto, mas surpreendentemente rápido. O tradutor o seguiu, depois Gareth e, a um
quarto de distância, o guarda atrás dele.
Gareth passara tempo suficiente no QG deserto da Federação para reconhecer o
edifício como pré-fabricado, feito para ser rapidamente montado e retirado. Este, e a fileira
de estruturas semelhantes além, era de um material da cor da areia, ligeiramente
translúcido. Parecia velho e desgastado, talvez fosse reciclado de algum descarte. Logo
depois da porta, uma câmara apertada funcionava como uma recepção e área de
exploração. Gareth sentiu um pouco de emoção quando entrou. Ele sentiu o aroma,
detectando um cheiro fraco e desconhecido, um pouco como o ar reciclado no prédio do
QG. Não havia janelas, embora três tiras luminescentes paralelas seguissem o comprimento
do teto para lançar uma luz ligeiramente azul.
As fileiras de caixas empilhadas enchiam a parte de trás do edifício, as menores
empilhadas em várias camadas. As caixas tinham sido asperamente manuseiadas, mas não
tinham insígnias ou marcas de identificação além dos símbolos rabiscados e desconhecidos.
Gareth não achava que a espaçonave contivera todas elas, a menos que fosse um veículo
de transporte, indo entre esta base e uma nave maior em órbita.
Um escritório bruto ocupava o centro, consistindo de uma mesa de trabalho, uma
variedade de cadeiras e um suporte de aparelhos, talvez dispositivos de comunicação ou
computadores, Gareth não tinha certeza. As xícaras de líquido marrom eram reconhecíveis
e o cheiro de café estava impregnado no ar. O guarda parou no perímetro, de onde ele
poderia observar toda a área de escritório.
Poulos Windhoven sentou-se no maior e mais confortável dos assentos com uma
facilidade que indicava ser seu lugar habitual. Ele pegou a xícara mais próxima, tomou um
gole, franziu a testa e abaixou-a novamente.
- Agora, Garrin de Carthon, vamos ouvir mais sobre esse problema. Vá em frente,
sente-se.
Gareth se estabeleceu na cadeira mais próxima, uma engenhoca dobrável que se
mostrou tão desconfortável quanto parecia. O tradutor empoleirou em outra cadeira e
inclinou-se sobre o dispositivo, talvez fazendo uma gravação.
- Darkover não é uma cultura uniforme, mais do que a Federação o é. – Gareth
explicou. - Temos nossas facções e alianças, mesmo dentro de um único território. Aqui,
onde não há nada além de areia, as únicas pessoas que você encontrou são pobres e
impotentes. As únicas coisas que possuem são algumas cabras, seu conhecimento da terra,
suas fontes de água e seu orgulho.
Que você ofendeu. Ele não adicionou.
O s f i l h o s d o s r e i s | 160

Poulos fez um som através dos lábios soltos. Gareth se perguntou se ele estava
lembrando de outro lugar e outra pessoa que atestariam a verdade disso em sua memória.
– Isso... - ele usou uma palavra desconhecida, provavelmente de sua língua nativa, em vez
do Padrão Terran - ...não entendi bem, foi por ter o brinquedo dele. Vou devolver depois
que ele tiver a chance de se acalmar. Acredite ou não, não estamos interessados em
rivalizar com os moradores locais. Arranjos cooperativos são mutuamente lucrativos. Eles
recebem seus blasters e nós recebemos...
- Anonimato.
Poulos ergueu seus massivos ombros de uma forma que parecia ligeiramente com um
encolher de ombros. - Digamos, uma ausência de problemas, além de alguns extras como
carne fresca e abastecimento de água. Oh, vamos conseguir o que queremos,
independentemente disso. Nós simplesmente preferimos não ter que lutar por isso. Muito
trabalho, muitas coisas que podem dar errado e para quê? Convencer um monte de
camponeses que seus deuses não podem nos machucar? Ou você está aqui para nos dizer
que devemos ter medo de seus pequenos amuletos?
- Não deles. - Gareth disse com tal firmeza que o tradutor olhou preocupado e o
guarda deu um passo mais perto. - Rumores voam pelo deserto como tempestades de
areia. A informação vazou. Há uma companhia armada em seu caminho, homens de Lorde
Dayan de Shainsa. Eles suspeitam que alguém aqui tenha armas avançadas e pretendem
consegui-las. Eles são implacáveis e violentos. Eles estiveram em guerra com meu povo por
um século. Então me escute quando digo que eles estão desesperados por uma vantagem e
tais armas dariam isso a eles.
- Bem, vejamos. - Poulos disse quando Gareth fez uma pausa para respirar. - Isso não é
interessante? Você quer que acreditemos que esses velhos inimigos representam uma
ameaça, então cuidaremos deles por você? É isso?
O rosto de Gareth ficou quente. - Eu não estava...
- Ouça, filho, eu não critico você. Você quer a vantagem para o seu próprio lado. É
natural. - O tom do capitão fora-do-mundo não alterou, mas seus olhos se estreitaram. -
Talvez possamos fazer um acordo, dependendo de como as coisas forem. O antigo QG da
Federação fica em seu território, acredito. Isso pode nos interessar...
- Você acha que eu quero seus blasters? - Gareth se indignou.
Senhor da luz, o avô Regis iria explodir em chamas com tal ideia!
- Eu não quis dizer... - Gareth gaguejou, desejando que não corar tão facilmente. - Eu
não estava esperando... Digamos só que não usamos essas coisas. Elas são desonrosas! Por
razões óbvias, não podemos permitir que os drytowners também as tenham.
- Manter o equilíbrio de poder, heim? Soa como um objetivo admirável. - O capitão
acenou com uma mão de longos dedos em um gesto desleixado. - Não me importo se um
O s f i l h o s d o s r e i s | 161

ou outro matou seu inimigo e o servirá no jantar desta noite, desde que não sejamos
envolvidos. -E Na expressão de Gareth de repulsa, ele acrescentou: - Tudo o que estou
dizendo é que vocês precisam resolver seus próprios assuntos. Nós não vamos interferir.
- Você já fragmentou a paz e criou um alvo ao armar os aldeões nuriyan com blasters!
O tradutor fez um som como riso abafado.
- Acalme-se. - Poulos disse. - Respire fundo. Quer um café frio?
- Você precisa pegar esses blasters de volta, qualquer um que ainda esteja lá fora, e
sair deste planeta!
- Não, filho, não precisamos fazer tal coisa. Olha, você é um garoto decente e
claramente já teve alguma exposição à tecnologia moderna para reconhecer um blaster,
mas nos dar um pouco de crédito aqui. Nós demos alguns que são tão obsoletos que nem
conseguirão peças para eles. Os capacitores podem conter mais uma recarga, talvez duas
no máximo. Quanto a esses homens de Lorde Dayan, nossa defesa de perímetro é mais do
que adequada. Se eles ficarem muito espertinhoas, temos algumas surpresas que farão os
blasters parecerem truques de festa. Prefiro não desperdiçar munição, mas como você vê,
não há realmente nada para se preocupar.
Gareth olhou para o capitão. Ele deveria contar a ele sobre a catástrofe em Caer Donn
e o que as armas de laran podiam fazer? Não, ele só soaria ainda menos crível e ele já
sentia como se tivesse feito muita bagunça. Pela maneira como a conversa atual estava
indo, ele não seria capaz de convencer o homem se afogamento da existência da água.
Tempo, ele precisava de mais tempo para estabelecer confiança e tentar outra tática.
- Eu me sinto como um idiota, correndo até aqui para avisá-lo. - Ele permitiu-se cair
um pouco. - Quero dizer, olhe para tudo isso! O que você teria para se preocupar? Pelos
infernos de Zandru, você vem das estrelas e nós somos apenas um pequeno planeta longe
de tudo com nada que alguém queira.
- Bem, a localização oferece algumas vantagens. - Poulos observou.
- Se você diz. - Gareth se levantou, limpando as palmas nas coxas de sobre suas calças.
Não foi difícil soar ansioso. - Não suponho que eu poderia espiar dentro da nave, não é? É
provavelmente a única chance que terei... Não, acho que não. - Ele suspirou. - Olha, não
posso voltar para a aldeia. Eles saberão que falei com você. Eu precisava de um guia para
atravessar as Areias do Sol, mas agora ele se foi e estou preso aqui. Eu poderia trabalhar
para você, poderia traduzir. Talvez eu possa ajudar Cuinn a se acalmar, explicar as coisas
para ele. Ele terá que me ouvir se souber que estou com você.
O tradutor disse: - Ele viu o acampamento. E ele parece saudável o suficiente. Nós
poderíamos usar outra fonte de contato.
Poulos esfregou seu couro cabeludo tatuado e pensou por um longo momento. - Que
diabos, por que não? Mas você pode se arrepender da oferta, criança, quando trabalhar
O s f i l h o s d o s r e i s | 162

com Offenbach ali, mas vamos tentar. Você terá um local para dormir e comerá com o resto
da tripulação. Negócio fechado?
Gareth deixou suas características relaxarem em uma expressão de alívio. – Negócio
fechado.
- Primeira coisa. - Poulos disse com uma careta. – Não devo crer que você saiba como
fazer uma xícara de café decente, não é?
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Capítulo 18

Kierestelli.
Tremendo, Silvana empurrou seu banquinho para longe da tela de retransmissão. As
pernas de seu banco rasparam contra o chão de pedra sem adornos. O fogo havia morrido.
Lá fora, ventos uivaram das encostas de montanhas glaciadas e bateram na Torre Nevarsin.
Ela sentiu a fraca vibração, como se passasse através de seus próprios ossos.
Ela estremeceu, ela que nunca sentia frio.
Kierestelli.
Ela pensou que nunca ouviria esse nome sendo mencionado por lábios humanos. Por
todos esses longos anos, desde que seu pai chieri tinha se despedido dela nas fronteiras da
Floresta Amarela, ela tinha sido Silvana. Silvana, Mulher da Floresta. Silvana sem família,
sem origem, nada, exceto seu extraordinário talento de laran. Só mais tarde ela se tornou
Silvana da Torre Nevarsin, leronis e Guardiã.
Nevarsin tinha sido um refúgio, mas nunca um lar. No entanto, para onde mais ela
poderia ter ido? Já passara da hora dela deixar a Floresta Amarela. Ela lera essa verdade no
desbotar da temporada, na expressão grave nos olhos pálidos de Diravanariel e no vínculo
cada vez mais forte entre ela e Lianantheren, filho primogênito do chieri Keral e do humano
David Hamilton.
Mesmo agora, tantos anos depois, ela se lembrou de Lian, tão gracioso quanto um
salgueiro, tão resiliente quanto as gramíneas altas e azuis da primavera. Os olhos de Lian
eram da cor da chuva, de prata e do amanhecer. Mas ela não conseguia se lembrar a forma
da boca ou das mãos, a cor do cabelo, o rubor da bochecha, a música na voz.
Eles estavam apaixonados? Eles conheciam algo sobre paixão, se era algo além das
sensações inquietantes e emocionantes quando estavam juntos? Isso importava para duas
jovens criaturas crescidas como eram, sem outros membros de sua idade?
Agora que ela havia vivido com humanos, ela entendia que tais sentimentos eram o
fruto natural e saudável dos surtos hormonais da adolescência. Crianças humanas
aprendiam sobre sexualidade e amor em estágios mais lentos. Humanos tropeçam e coram,
flertam e suspiram, se tocam com os olhos e as mãos, e depois com lábios e corpos. Eles
cometiam erros, escolhiam mal, choravam como se seus corações tivessem sido realmente
quebrados, consertados com o próximo rosto bonito e olhos brilhantes, então o ciclo
recomeça.
Às vezes, ela pensava enquanto observava os jovens que vinham à Torre para o
treinamento básico, que eles ganhavam tanto quanto perdiam em seus erros e acertos.
Eventualmente, eles aprendiam que aparência em dia, nome de família nobre ou até
mesmo a maneira como a chama da paixão mascarada como intimidade contava muito
O s f i l h o s d o s r e i s | 164

menos do que a qualidade do caráter de outra pessoa e, acima de tudo, a simpatia entre
personalidades e a mente.
Se ela e Lian tivessem seguido suas inclinações juvenis, se tivessem se tornado
amantes, ela não teria sofrido nenhum dano duradouro. Lian, por outro lado, o tesouro
mais precioso do povo da Floresta Amarela, a primeira criança de um chieri a ter nascido
em muitas vidas humanas...
Lian teria mudado, polarizado, corpo, mente e desejo no coração fixados para sempre.
Ligado muito jovem, ancorado à masculinidade em resposta à sua própria feminilidade, Lian
nunca teria tido a chance de crescer na completa maturidade dos chieri. Nunca seria capaz
de escolher quem e o que ele ou ela se tornaria.
Lian tinha andado com ela para os limites da Floresta. As folhas haviam lançado um
tom de ouro em seu caminho. Por um momento, ela imaginou que o céu estava chorando
flores para ela, para ambos. Lian não a havia tocado durante a jornada, nem mesmo o
menor roçar de dedos. Sua pele parecia como se estivesse morrendo de fome. David
Hamilton fora com eles, seus olhos atentos, sua expressão sombria.
Eles tinham alcançado a borda da sentinela do bosque. Além, as árvores ficavam
amplamente espaçadas e solitárias. Lian tinha parado e não a olhava nos olhos.
Nenhuma palavra para mim, meu coração, nenhum olhar? Estou tão morta para você
como uma vez estive para meus pais? Ela pensara.
Ela moveu sua mochila em seus ombros e virou as costas para a pessoa que alguma
vez acreditara ser a rocha, a força de sua alma.
- Kierestelli. – David dissera. - Amada filha de meu amigo. Quando você o encontrar,
diga a ele que o mantemos sempre em nossos corações.
Eu não vou ver meu pai, ela pensou em uma súbita onda de raiva, apertara os lábios e
não dissera nada.
- De todos os homens dos Sete Domínios, Regis Hastur é quem temos na mais alta
honra. - Diravanariel murmurara, as palavras como água corrente sobre a pedra.
Em qualquer outro momento, ela teria se inflado de orgulho com essas frases, as
deixado nutrir seu espírito. Tendo vivido entre os chieri, sentido-se acalentada por eles,
tinha visto a alegria que sua existência dera a eles, ela tinha esquecido a verdade
agonizante no centro de sua própria vida.
Seu pai, aquele mesmo Regis Hastur honrados por eles, a levara até aquele lugar e a
deixara com eles. Na época ela entendera que ele fazia isso por sua própria segurança. O
mundo dos homens continha aqueles que prejudicariam qualquer um, mais
particularmente os filhos de seus inimigos. E Regis Hastur, o homem que poderia ter sido
rei, tinha muitos inimigos.
O s f i l h o s d o s r e i s | 165

Ele a levara até ali e prometera voltar quando o perigo tivesse passado. Temporada
após temporada, ela esperou por ele e ele nunca voltou. Ele não enviou nenhuma
mensagem, nenhum sinal, nada. De sua mãe, cujo amor ela nunca duvidara antes, houve
apenas o silêncio. Eventualmente, ela foi forçada a reconhecer a verdade.
Eles haviam se esquecido dela. Eles não a queriam mais. O filho que sua mãe carregava
tinha tomado seu lugar em seus corações. Ou isso ou ambos estavam mortos. No final, a
diferença não importava.
Então chegou ao dia em que ela teve que deixar as pessoas que se tornaram sua faília,
cujo amor lhe dera uma medida de paz. Ela tinha sido uma tola por confiar em sua
constância. Quem em todo o mundo poderia aliviar essa segunda traição? Quando colocou
os pés no prado além, ela olhou para trás. Um momento foi o suficiente e esse momento
mudou tudo.
A umidade brilhava nas bochechas de David. O chieri não chorou, mas em seu jeito ela
viu dor e entendeu como um sinal também de vergonha.
Lian tinha olhado para cima, cabelos caindo como uma cascata de lágrimas ao redor
daquele rosto perfeito. Os olhos cinzentos como chuva encontraram os dela. Um
pensamento como notas distantes de uma harpa tocou sua mente.
Eu nunca deixarei de amar você, Kierestelli.
E agora, anos depois e tantas léguas de distância, nesta Torre que ela tornara sua
fortaleza, o mesmo nome reverberou através dela.
Kierestelli.
Ela sabia que sua mãe, Linnea Storn, ainda vivia, agora a Guardião da Torre Comyn.
Notícias até podia demorar para chegar a Nevarsin, mas chegaram. Seu irmão, Dani Hastur,
alcançara a maturidade, deixou de lado sua herança, casou por amor e era pai de um filho.
Com o tempo, Regis morreu. Essa notícia veio mais rápido, mas nem mesmo pelo funeral de
seu pai ela se expôs. Nada que ela pudesse fazer o traria de volta. Ele havia deixado há
muito tempo de ser um pai adorado.
Depois de todo esse tempo, quando ela acreditava que estava a salvo do passado, sua
mãe a encontrara.
Sem pensar, Silvana foi para a mesa ao lado da porta. Frutos secos, biscoitos de
manteiga e nozes enrolados e cristalizados com mel tinham sido arrumados em um prato,
ao lado de um jarro de menta açucarada e água. O trabalho de laran drenava as energias do
corpo, às vezes perigosamente. Ela não estava com fome e isso era um mau sinal. Choque e
fadiga podiam ser uma combinação mortal, especialmente quando combinados com o frio.
Ela pegou um punhado de maçãs secas e se forçou a mastigá-la, a doçura da torta fluiu
sobre sua língua logo na primeira mordida. Ela comeu algumas nozes e um pedaço dos
O s f i l h o s d o s r e i s | 166

doces. Seu tremor diminuiu. Ela se sentia firme o suficiente para caminhar para seus
aposentos.
A autoridade de um Guardião dentro de sua própria Torre era absoluta. Ninguém
havia questionado o desejo de privacidade de Silvana, mesmo quando beirava à reclusão.
Ela se sentia segura, suas barreiras invioláveis. Agora que seu isolamento foi violado, agora
que o pior aconteceu, ela não sabia o que fazer.
Linnea aceitaria sua rejeição? Ela diria a mais alguém? A Torre Nevarsin logo seria o
centro da atenção do Comyn?
Silvana sentou-se em uma poltrona ao lado da lareira vazia de sua câmara,
plenamente ciente da vulnerabilidade dessas paredes de pedra. Ela não desconhecia as
fofocas, lutas de poder, ambição, alianças e ciúmes mesquinhos. A sociedade da Torre
podia ser pequena, mas era em todos os sentidos um microcosmo do mundo maior.
Eles não me deixarão em paz. A criança perdida de Regis Hastur foi encontrada, eles
dirão. E então alguns vão sussurrar que tenho direitos ao Domínio Hastur...
Seu coração parecia se chocar contra suas costelas. Ela se perguntou em um momento
selvagem se poderia explodir para fora do peito em uma imagem sangrenta.
O quarto, uma vez seu refúgio de calma, agora parecia se fechar ao seu redor como
uma gaiola. Toda a mobília, os ornamentos, todas as coisas que ela havia colecionado com
tanto cuidado ao longo dos anos, cada simples e graciosa, assumia um aspecto sinistro. Elas
se alteraram em sua visão se transforamando em instrumentos de tortura, como tinham
feito durante as Eras do Caos.
Eu não pertenço aqui. Eu nunca pertencí a este lugar.
Silvana nunca tinha sido no tipo que mergulha em autopiedade. Tal abuso do espírito
era desconhecido entre os chieri. Ela tinha visto seus efeitos devastadores em muitos no
mundo humano, como no povo da vilha em Nevarsin e nos viajantes. Os feridos na mente
buscavam a cura na Torre, pouco suspeitando que eles mesmos eram a origem de seus
males. Em seu cuidado de tais infelizes, ela nunca foi menos do que escrupulosa, pois em
todos os seus trabalhos de laran nunca se permitira o menor lapso ou auto-indulgência.
Não era hora de afrouxar seus próprios padrões de integridade. A pergunta que ela
tinha de se fazer agora era se, tendo sido descoberta, ela deveria continuar em seu papel
como Guardiã ou não. Ela fora ensinada, e aceitara de todo o coração, que o
funcionamento das Torres eram mais importantes do que distinções de nobreza e
privilégios. Nenhum Lorde Comyn, nem mesmo um Hastur de Hastur, tinha o direito de
influenciar o trabalho do círculo. Esse princípio só fora estabelecido após uma longa e
sangrenta história. Durante as Eras do Caos, quando reis e grandes Lordes comandavam
suas próprias Torres, a terra em si tinha sido ferida e envenenada, a morte vinha de fogo
O s f i l h o s d o s r e i s | 167

que chovia dos céus e gerações de animais e crianças tinham sido transformadas em
monstros deficientes e com as mais cruéis anomalias.
Silvana se levantou em um pulo e caminhava por seu quarto. Seus pensamentos,
geralmente tão calmos e racionais, agora estavam confusos e misturados como sombras
rachadas. O que havia de errado com ela? As tristezas do dia eram mais do que suficiente
para qualquer pessoa suportar, por que ela criava mais em sua mente?
Se os Lordes Comyn, descendentes daqueles antigos líderes de guerra, soubessem
quem e o que ela era... Se eles viessem atrás dela, procurassem atraí-la para seus esquemas
de poder... O que então? Mesmo que ela se recusasse, mesmo que aceitassem sua recusa,
sua identidade, seu nome, seu parentesco, sua história, tudo se tornaria público.
Independentemente de seu parentesco, ela era uma Guardiã treinada. E não tinha
cedido o comando sua consciência a qualquer outra pessoa. Não era da conta de ninguém
quem eram seus pais, se ela possuía o dom de Hastur, se crescera entre os chieri ou que
sonhos acalentava, desde que fizesse seu trabalho com a mesma maestria de sempre.
Silvana parou, encarando a janela multicolorida com vista para um pátio e jardim. Ela
voltou sua atenção para dentro de si mesma, sentiu os ossos fortes de seu corpo, o
equilíbrio dos nervos e músculos, o fluxo de seu sangue, o ritmo de seu coração
desacelerando. Abaixo de seus pés, as pedras da Torre cantaram com as impressões
psíquicas acumuladas de um milênio de mentes talentosas. Seu pânico recuou, mas não sua
cautela.
Agora que seu choque inicial havia diminuído, Silvana sentiu ressurgimento de sua
confiança. Ela poderia afastar aqueles que tentariam invadir seu santuário. Mesmo que os
Guardiões não fossem mais considerados com uma reverência quase religiosa, ela poderia
incapacitar e até mesmo matar qualquer homem tolo o suficiente para colocar as mãos
sobre ela sem seu consentimento.
Se por algum golpe de sorte, no entanto, eles soubessem onde ela esteve todos esses
anos, onde se abrigara... Se eles refazer seus caminhos, o que aconteceria então? As
chances eram minúsculas, mas mesmo o menor risco era intolerável. Uma vez que o mundo
tivesse sido alertado, ela não se atreveria a entrar em contato com seus velhos amigos,
nem mesmo para avisá-los. Se ela fosse fazer isso, precisava ser agora.
Sair agora, como um coelho-de-chifres sem cérebro, abandonar suas
responsabilidades como Guardiã, nada disso era racional. Ela poderia estar errada. Ela
orava a Aldones, Senhor da Luz, Pai de seus pais, que de fato estivesse errada.
Ela não sabia se poderia viver com as consequências se estivesse certa.

~o ⭐ o~
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Em seus primeiros anos na Torre Nevarsin, Silvana raramente se aventurara no lado de


fora a menos que algum dever exigisse. Conforme ela subia na hierarquia dos trabalhadores
matriciais até o cargo de Guardião, ela tinha cada vez menos motivos para fazê-lo. As
antigas paredes de pedra se tornaram uma barreira bem-vinda, separando a aldeia e o
mundo além dela.
Levou-a apenas um curto período de tempo para enviar para Arilinn uma mensagem
pedindo por um dos seus Sub-Guardiões, reivindicando uma emergência, e separar e
arrumar as poucas posses que ela considerava necessárias. Ao longo dos anos, ela manteve
tão bem a indiferença de uma Guardiã que ninguém a questionou quando deixou a Torre
numa hora em que o resto dos leroni estavam descansando. O trabalho de matriz, incluindo
a comunicação na retransmissão, tendia a ser feito à noite a fim de minimizar as distrações
causadas pelas emanações psíquicas desfocadas da população da aldeia.
O sol estava brilhando, mas ainda não no ponto mais alto, quando Silvana fez seu
caminho ao longo das ruas estreitas e retorcidas da cidade. Vestindo um manto de lã
marrom comum, botas desgastadas e um pacote pendurado nas costas, sua cabeça e
ombros curvados, ela parecia com qualquer outra mulher das montanhas. O manto e as
botas foram um presente de um pequeno aldeão para a Torre por salvar sua esposa e bebê
durante um nascimento difícil.
Este era um dia de mercado. As ruas de pedra em forma de paralelepipedo
carregavam um fluxo de agricultores, seus carrinhos empilhados com verduras, cebolas e
melões de gelo, comerciantes de pele de chervine carregados, animais de campo
antecipando um dia de alegria, donas de casa em busca do melhor preço para panelas de
cozinha, agulhas e uma trupe de músicos.
Silvana desacelerou, tomando cuidado para não chamar muita atenção, afinal era
alguém deixando a aldeia quando todos estavam chegando. Ela puxou o capuz da capa
sobre seu cabelo cor de cobre brilhante que seria uma forte distinção. A multidão girava em
torno dela. Ela notou as crianças de bochechas vermelhas, as vozes musicais das mulheres,
a chamada e a resposta dos fornecedores...
- Lã fina de chervine jovem! Macia como cabelo de bebê!
- Nozes torradas! Bolos e biscoitos! Quem quer comprar minhas nozes frescas
torradas?
E uma dúzia de pequenos atos de bondade. Um menino pouco mais velho do que uma
criança se inclinou para dar um biscoito ao cachorro velho deitado aos pés do seu mestre,
um vendedor de fitas. Um grisalho vendedor de cavalos dando uma maçã a um pônei. Uma
jovem, visivelmente grávida, ajudando um homem idoso a dar vários passos até uma porta.
O s f i l h o s d o s r e i s | 169

Um sentimento estranho, parte surpresa e parte arrependimento, surgiu nela. Ela não
tinha visto a maior parte dessa comunidade em todos os anos em que vivera ali como tinha
visto nesses poucos minutos. Ela não esperava que fosse tão difícil sair.
Essas pessoas não eram suas inimigas, mas nunca poderiam ser suas amigas. Ela os
servia com os dons de laran de sua mente, a fabricação e entrega de produtos químicos de
combate a incêndios para proteger as florestas das quais muitos deles dependiam e
comunicações rápidas através das telas de retransmissão. Mas ela nunca os conhecera ou
eles a ela. Eles eram bons, simples e sem poder de influência. Mas suas primeiras
experiências lhe ensinaram muito bem a impotência da boa vontade diante do mal
determinado.
Esse pensamento a impeliu através dos mercados, descendo as ruas íngremes e
muradas, além da periferia da aldeia. Só então ela se permitiu olhar para trás. Além da
aldeia, o mosteiro cristoforo se agarrava ao gelo eterno. Um truque do vento trouxe o som
dos sinos que chamavam seus habitantes à oração. Ela se perguntou se Lew Alton estava
entre eles e por um momento se arrependeu de não se despedir. Eles haviam trocado
visitas, mais raramente nos últimos anos devido à sua saúde em declínio, mas ele
lamentaria sua ausência. Não demais, ela esperava.
A trilha seguiu o contorno das montanhas enquanto mergulhava para o vale abaixo.
Silvana se estabeleceu em um ritmo rápido de viagem. As botas eram muito grandes para
ela e ela considerou brevemente usar sandálias como as que os monges usavam. Um
impulso a levou a resolver o problema com dois pares de meias grossas. Logo ela percebeu
que havia sido uma escolha perfeita e sortuda. A trilha, embora tão usada nesta parte das
montanhas quanto possível, estava repleta de pequenas pedras. Quando ela vivia com os
chieri isso nunca a incomodara. Ela teria até mesmo dançado pela trilha. Seus anos de
trabalho na Torre haviam tornado seus pés mais suaves, então logo se sentiu grata pelas
camadas amortecedoras da lã e do couro.
Eu me tornei uma criatura amante da pedra e do fogo, ela pensou e se perguntou
como seus parentes da Floresta a receberiam.
Suas dúvidas não demoraram em sua mente. Os ventos montanhosos, carregando os
aromas selvagens doces da primavera, a alegraram. Nuvens no céu pareciam de alguma
forma serem muito maiores e mais profundas do que as que via em Nevarsin. Ela jogou a
cabeça para trás para observar um falcão pairando nas correntes térmicas e seu espírito
subiu para encontrá-lo.
Seus músculos doíam pelo esforço desacostumado, mas seus ossos cantaram em
contentamento. Sua memória se tornara mais afiada. Ela se lembrou de quais plantas a
nutririam e quais deveria evitar. Por enquanto, ela não se atrevia a atrasar seus passos.
O s f i l h o s d o s r e i s | 170

O dia passou. A terra ficou mais acidentada, a vegetação mais indomada selvagem e
retorcida. Sombras agrupadas nas dobras das colinas, relaxantes como noites de inverno. À
distância, um lobo uivou. Pelo menos ela estava bem abaixo da linha da árvore, então ela
não precisava temer os gigantescos banshees. Mas ela estava ficando cansada e a fadiga a
tornaria mais vulnerável ao frio.
Silvana agachou em uma saliência com mudas amarelas emaranhadas e um salgueiro e
considerou sua situação. A noite logo estaria sobre ela e estava relutante em acender uma
fogueira. Ela podia usar sua disciplina de Guardiã para evitar a hipotermia, mas isso gastaria
sua energia metabólica a uma taxa acelerada.
Na Floresta Amarela, ela nunca tinha passado frio. As estações mudavam como
dançarinas em um ciclo, de verde a ouro, prata e depois verde novamente, cada uma com
sua própria harmonia.
Ela colocou uma mão no tronco mais próximo. Amigo, ela pensou, usando a palavra
chieri.
Ela tirou a bolsa de seus ombros e se estabeleceu em uma postura de pernas cruzadas.
Seus joelhos incomodaram, mas depois relataram assim como os músculos da parte inferior
das costas. Ela fechou os olhos, respirando profundamente barriga para focar seus
pensamentos. Sua consciência do mundo se focou na casca, sua textura e densidade, depois
na madeira viva dentro. Como se fluísse através de suas veias, ela sentiu o movimento da
seiva, o anseio lento pelo calor e a luz, a inteligência certa e íntima vinda do solo, as
gotículas minúsculas de água banhando as raízes, a rocha firme. Umidade e minerais se
elevavam, molécula por molécula, nas folhas que brotavam. Criaturas minúsculas, insetos,
vermes e coisas invisíveis para o olho humano, transformavam os detritos das folhas do ano
anterior em adubo.
As fronteiras de sua personalidade humana se dissolveram. Tão sem esforço quanto à
deriva em sono, ela se viu em comunhão com a união de solo, água e coisas vivas. Ela
conhecia o peso e a textura de tal unidade, assim como a de um círculo de matriz. Em vez
de mentes humanas onde cada um centrava-se através de uma pedra da estrela e depois se
reunia, harmonizada, aqui a diferença é que tal união era tecida sozinha, sem um Guardião,
pois esses fluxos e correntes eram puramente naturais em sua origem. Nenhuma árvore
exigia uma pedra da estrela para amplificar sua essência. Nenhum pássaro trabalhou sob
uma vida de ansiedade toda vez que abria suas asas. Nenhuma mariposa já tentara dominar
seus companheiros.
Distantemente, como se estivesse acontecendo com outra pessoa, Silvana sentiu a
umidade nos cantos de seus olhos. Ela estava em casa, no lugar que havia abandonado há
muito tempo, que havia desaparecido de seus pensamentos. No entanto, seu corpo, seus
O s f i l h o s d o s r e i s | 171

sonhos mais profundos e seu interior que se fortaleceu com a prática de seus dons
psíquicos não haviam esquecido.
Embora sempre tivesse sido capaz de sentir coisas que não podia ver e tocar, seu laran
havia acordado completamente durante sua convivência com os chieri. Árvores, pedras,
céu, riacho e lobos foram seus professores, seus companheiros. Ela havia aprendido a
reverência ao equilíbrio entre rápido e lento, quente e frio, claro e escuro, vida e morte.
Não admirava que o trabalho de um Guardião tivesse sido tão facilmente aprendido por ela
que dançara na floresta. Às vezes aquele tempo parecia um sonho, bonito demais para ser
real. Agora ela percebeu, enquanto sua consciência oscilava e ela voltou para o seu eu
separado, que os anos na floresta tinham sido a realidade duradoura e os anos entre pedra
e fogo apenas um momento fugaz.
Ela cruzou as mãos no colo e estudou seus arredores com uma nova perspectiva. O
cópico e a encosta, sombria com a chegada da noite, eram abundantes em recursos. Tudo o
que ela precisava estava ali. Ela não se sentia mais fria ou rígida. Uma teia de energia viva a
cercava, a preenchia e unia em harmonia ao mundo vivo, além de também a proteger de
qualquer presença indesejada. Um caçador de peles que passasse veria apenas plantas e
rochas.
O último brilho colorido da luz solar desapareceu do horizonte ocidental irregular. A
noite dobrou seu manto sobre a face do mundo. Um silêncio surgiu das colinas, um aroma
natural no vento. As nuvens diminuíram revelando o vasto braço galáctico. Cem centenas
de sóis queimavam como pontos de luz, seus números além do conhecimento humano.
Em algum lugar lá fora estava a Terra, Antiga e Lendária, e os mundos que compunham
a Federação, como Castor, Ephebe, Wolf e Thetis. Os assassinos, governantes e suas
batalhas distantes diminuíram para meras inconveniências fugazes. Entretanto ela devia ter
cuidado para não subestimar tais conflitos, pois o corpo em si era muito frágil, mas também
não haveria tanta dificuldade em encontrá-la e controlá-la através do medo.
Ela era uma mulher adulta, uma Guardiã... Uma filha de Hastur. Ela enfrentaria a vida
em seus próprios termos.
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Capítulo 19

Mesmo antes de chegar aos arredores da Floresta Amarela, Kierestellli sentiu a


mudança nas árvores. Na maior parte de sua jornada, ela passara de bosque a bosque, se
moldando em harmonia com a paisagem natural. Agora ela sentia uma diminuição gradual.
Encosta e floresta pareciam mais opacas e os ventos frios roçavam a borda de sua
consciência. Folhas secas eram trituradas sob seus pés, quando apenas um dia antes ela
caminhara sem emitir nenhum som.
Ela diminuiu o ritmo. Não havia sentido em acelerar mais, insistindo que as forças que
guardam o coração da floresta mostrassem o lugar por sua vontade. Ela era a suplicante
aqui, retornando sem qualquer expectativa de que a casa ela tinha deixado ainda fosse
dela.
Essa parte da floresta encheu uma cavidade entre as colinas. As árvores eram mais
altas, seus troncos mais largos com a idade. Conforme ela continuava, suas Copas se
entrelaçavam para formar um dossel, imperfeito e movendo-se com o vento.
É como toda a vida, cada parte dela, fluísse para se unir a um todo maior, ela pensou.
Nenhum de nós é verdadeiramente sozinho e separado.
Ela parou, inclinando o rosto para sentir a luz solar filtrada em pontos. Os pontos
brilhantes piscaram atrás de suas pálpebras fechadas. Por um momento, ela sentiu como se
flutuasse em um mar de luzes suavemente brilhantes ou talvez de estrelas vivas. A
intimidação do frio recuou. Como se à distância, ela captou o som de notas doces, uma
risada como se em harpa, a ondulação de um riacho na neve, o som de um monte de
pássaros depois da chuva.
Com o vento as folhas farfalharam. Eixos de luz solar brilhavam na poeira florestal. Tão
rápido quanto os feixes apareceram, logo desapareceram quando os galhos se moveram.
Seu calor permaneceu como uma reflexão na mente de Silvana a embalando, erguendo e
sustentando. Em sua imaginação, as árvores se inclinavam em saudação, depois se
separavam diante dela. Ela hesitou.
- Então você voltou para nós. - As palavras vieram em voz baixa, no casta arcaico, mas
perfeitamente claro como um canto antigo que seria entendido em espírito, bem como em
cada sílaba.
Entre um pulsar de seu coração e o próximo, um chieri emergiu. A figura era, como
todas aquelas pessoas antigas, altas e esbeltas, androginavelmente lindas. Cabelos
cinzentos caíam a meio caminho para os quadris estreitos. A única peça de sua roupa era
uma túnica sem mangas que parecia ter sido tecida de casca de árvore e luar. Olhos
incolores encararam Silvana sem uma pitada de emoção.
O s f i l h o s d o s r e i s | 173

Sem boas-vindas, sem censura, sem curiosidade. Apenas o imenso dom de


reconhecimento.
Ela levantou as pontas dos dedos para a testa e disse: - Pai de criação. – Usando uma
palavra na língua chieri que significava ‘nutridor de crianças que pertencem à sua espécie’.
- O rio flui apenas em uma direção. – Diravanariel disse, mantendo o casta.
- Toda a água é uma. – Ela respondeu. - Você não me ensinou essa verdade?
Uma risada respondeu quando uma segunda figura surgiu por trás da maior das
árvores. - Você deve reconhecer o ponto, Dirav. Não há esperança quando ela começa a
citar suas próprias palavras de volta para você.
- Tio David! - Todo o ar de dignidade sumiu e ela correu para os braços do médico
Terranan.
Quando ele a puxou contra ele, sentiu a magreza de sua pele, os músculos murchos, a
fragilidade dos ossos. Muito parecido com uma dessas antigas árvores, ele mantinha uma
vitalidade surpreendente para um homem de sua idade. Ela se afastou, olhando para os
olhos sorridentes, viu as linhas de riso entre a boca, a massa de cabelos prateados e
pensou: Meu pai poderia se parecer assim, se ainda fosse vivo.
- Você está tão crescida. - Ele disse, sorrindo ainda mais profundamente.
- Muitos anos se passaram. Agora sou Guardiã na Torre Nevarsin! - Para seus próprios
ouvidos, ela parecia uma criança cumprimentando um tio amado, se gabando de suas
conquistas.
- Não me surpreende. - Ele apertou os lábios secos em sua testa. - Estamos todos
muito orgulhosos de você.
Todos? Seu olhar cintilou para o chieri. Diravanariel ficou como uma ilha de
imobilidade contra o constante jogo de luz filtrada.
- Por que você voltou? – Dirav perguntou.
- Ela acabou de chegar! - David protestou. - Dê-nos um pouco de tempo para
recuperar o tempo ou ela suspeitará que nós da floresta perdemos todas as noções de
hospitalidade.
Silvana foi até o chieri. Ela sabia que não deveria tocá-lo sem ser convidada, mas
estendeu as mãos. - Você me acolheu quando eu era uma criança pequena e não tinha
escolha no assunto. Não há lugar para mim em seu coração agora que estou crescida e
venho até você livremente?
- Criança, você sempre será querida entre nós. Mas algo está em risco, mais espero
que não apenas a um só indivíduo, mesmo que um muito amado. Eu falo pelo que resta do
nosso povo e daquelas poucas e frágeis novas vidas que guardamos. Você esqueceu o quão
perigoso é o mundo dos homens? Então pergunto novamente. Por que você voltou? Que
perigo a caça desta vez e seguirá você para o nosso meio?
O s f i l h o s d o s r e i s | 174

Silvana baixou as mãos. Onde estava Lian? Algo tinha acontecido... Ou a ausência de
Lian era uma maneira de impedir um se encontrasse no caminho do outro novamente?
Se eu ver Lian, se o que uma vez existiu entre nós não mudou... Posso nunca mais
querer sair daqui...
- Se tivesse alguma consciência de tal perigo, - ela disse firmemente - eu nunca teria
vindo. Sou uma Guardiã treinada. Não há muita coisa importante que escapa ao meu alerta.
A postura de Diravanariel suavizou. Uma brisa curva levantou o cabelo pálido como a
lua. Uma mão esbelta de seis dedos tocou a dela tão delicadamente quanto uma asa de
borboleta. Ela sentiu como se toda a floresta, árvores, céu, plantas rasteiras, aves distantes,
pequenas criaturas, flores e prados brilhantes ao sol a estivessem envolvendo em um
abraço de volta ao lar.
Em uma voz repentinamente embargada, ela disse: - Minha mãe me encontrou. Não
queria ser encontrada. Eu não sabia para onde ir.
David engasgou em sua respiração. Naquele som fraco e aguçado que Silvana sabia
que previa uma enxurrada de perguntas. Ele não fez nenhuma delas, no entanto, afinal já
viver muito tempo com os chieri para entender certas sutilezas. Em vez disso, ele colocou
um braço em volta de seus ombros. Ela sentiu o desejo dele em tranquilizá-la, mas não
poderia oferecer o refúgio que não era só seu. Ela percebeu então que, para ser recebida,
deveria estar igualmente preparada para aceitar a recusa. Diravanariel estava certo.
Nenhuma necessidade pessoal, não importava quão grande, devia ser permitido para
colocar toda a comunidade em risco.
Ainda assim, era bom ver estes dois novamente, o chieri que a ensinara, dando a ela
tantos dons de mente e espírito, e o homem que mantivera viva sua própria identidade
humana. Ela recuou deles, sinalizando sua aceitação de que essa breve saudação podia ser
tudo o que ela iria receber.
Com uma inclinação da cabeça, Diravanariel indicou a parte mais profunda da floresta.

~o ⭐ o~
Os chieri não se agrupavam da mesma maneira que os humanos faziam. Talvez uma
vez, em seu passado distante, eles tinham vivido em cidades tecnologicamente sofisticadas,
mas não mais. Com a passagem de Eras e sua retirada para seu planeta de origem, eles
haviam abandonado as armadilhas da civilização pela simplicidade do mundo natural. Se
somos todos os que existem ou jamais seremos tantos de novo, eles pareciam estar
dizendo, então vamos viver cada dia com alegria.
Alguns chieri viviam em cavernas ou em casas em árvores grosseiras. A longa família
de Diravanariel construira abrigos de galhos e tecidos feitos de fibras de casca caídas
naturalmente e de penas caídas. Tal habitação podia durar um punhado de temporadas ou
O s f i l h o s d o s r e i s | 175

ser abandonada ao vento e à água quando o desejo de comungar com uma parte diferente
da floresta surgia.
Silvana seguiu seus pais adotivos em um terreno um pouco mais aberto, apenas cerca
dez passos. Entre grossas raízes de árvores, ela viu meia dúzia de estruturas de cinza claro e
reflexos brilhantes, com sulcos ao longo do centro de seus telhados para facilitar o
escoamento da chuva e da neve. O maior parecia conter facilmente várias câmaras do
tamanho da dela em Nevarsin. Embora não houvesse sinal de fogueira para cozinhar ou
outros fins, dois teares alcançando até a altura da cintura tinham sido criados. Um chieri
sentava-se de pernas cruzadas diante do tear mais próximo, usando uma veste longa e
solta, seu cabelo pálido ondulou como uma cascata de luz das estrelas com seu movimento.
Com a chegada de Silvana e seus amigos, o tecelão parou seu trabalho e se levantou em um
único movimento gracioso de tirar o fôlego. Os lábios macios se curvaram em uma
expressão de deleite.
- Donzela da estrela, filha de meu amigo! Como ilumina meus olhos vê-la novamente!
- E você aos meus, S'Keral. - As mãos de Silvana se moveram em um gesto de respeito
que ela não tinha usado desde que deixara a floresta.
Keral deu um passo para encontrá-la e o tecido do manto fluiu em torno das curvas de
seus seios e barriga. O toque das pontas dos dedos nas pontas dos seus tocou a mente de
Silvana. As sensações telepáticas correram através dela, a complexa textura padronizada da
personalidade, o prazer de Keral em seu encontro, a alegria intensa e permanente na vida
nova e totalmente inesperada.
Quando David veio para cumprimentar Silvana, Keral permaneceu para trás no ninho
protegido, grávida de novo. Os dois gerarem Lian já tinha sido um milagre além da
imaginação. Nem mesmo a linguagem chieri, tão rica nas nuances de alegria, tinha palavras
para descrever o que um segundo filho significava todo seu povo.
Por um longo momento, Silvana ficou lá, mal tocando a chieri. Lágrimas borraram sua
visão física, intensificando sua visão interior. A sensação de abundância transbordante
saturou-a. Cada galho, cada broto, cada semente no solo, toda criatura que atraía seu
sustento da rica queda de folhas, todas cantavam para ela, a erguiam em espírito.
Como poderia um único evento, um nascimento iminente, transformar assim o mundo
inteiro?
A mente de Silvana se esticou mais. Nessa unidade fundamental, o povo de
Diravanariel estava ligado a todas as outras uniões de chieris. Aqui e ali, como montes
brilhantes ao sol, ela sentiu as auras cintilantes de fertilidade. Parecia que as próprias
Hellers, seus picos subindo como gigantes envoltos de neve, ecoavam sua alegria.
Ela queria que essa felicidade que estava em seu coração uma afirmação do amor, de
conexão, de alegria mútua durasse para sempre.
O s f i l h o s d o s r e i s | 176

Eu quero ficar. Eu não quero deixar vocês nunca mais.


- Nós nunca fomos separados. - Diravanariel havia deslizado para o lado dela sem
emitir nenhum som. Essas palavras, ditas com a tom de intimidade de um pai murmurando
para uma criança amada, varreu todos os outros pensamentos. - Você sempre esteve aqui
conosco.
Como ela poderia ter sido tão cega? Em sua dor infantil, ela se sentiu expelida,
rejeitada. Abandonada. Na verdade, a mudança tinha sido na aparência externa, como tirar
uma roupa e vestir outras, as paredes de pedra da cidade substituindo as árvores, círculos
de laran substituindo as danças sob as luas. O vínculo não havia diminuído. Ela levara junto
com ela, embora ela mesma tivesse barricado a lembrança em um canto distante de sua
mente. Ela nunca mais faria isso.
O pico de intensidade do contato amenizou. Silvana voltou a si mesma, para seu eu
limitado e separado.
David trouxe um assento com um apoio traseiro e colocou-o ao lado do tear de Keral.
Com um sorriso, ele disse a Silvana. - Lian fez para mim quando comecei a ter dificuldade
em ficar sentado no chão. Ou melhor, de levantar do chão.
Lian. Apenas ouvir o nome dito em voz alta a perfurou. Uma dúzia de perguntas
pressionaram os limites de seus pensamentos.
Onde estava Lian? Não aqui, com David e Keral? Alguma coisa aconteceu?
Ela forçou sua mente à quietude. Keral lhe deu um olhar avaliador, gentil e inabalável,
mas não disse nada. Dirav sentou-se confortavelmente na terra nua, olhando quando três
outros chieri emergiam da floresta. Silvana não os conhecia, nem eles a ela, e eram tímidos
e curiosos. David perguntou sobre a vida de Silvana desde que deixara a floresta, seu
trabalho primeiro como leronis e depois como Guardiã, e o estranho chieri ouviu
atentamente. Keral retomou sua tecelagem, cantarolando suavemente.
Como se se movesse através dos passos de uma dança formal, um ou outro dos chieri
deixou o grupo e retornou com pratos de comida, frutas de muitos tipos, legume, e a
espessa e doce pasta de nozes que Silvana amava quando criança. Dirav começou a cantar
alegremente uma balada, uma doce canção em um dialeto muito antigo. Outro chieri se
juntou a ele, suas vozes fazendo um contraponto para a melodia constante de Dirav. Eles
cantaram sobre os muitos mundos onde seu povo haviam andado, as estrelas distantes não
mais do que um borrão na névoa galáctica, sobre se afastarem das cidades cujas torres
cobriam metade do céu, de criar guerras e armas terríveis da mente e também da matéria...
E de voltar para casa.
Para casa nessas florestas sob o sol carmesim.
Para casa, a terra, a neve e o longo crepúsculo de sua raça.
O s f i l h o s d o s r e i s | 177

Dia entrou no crepúsculo. A música terminou, substituída por outra, desta vez um
canto de boas-vindas. Com o aumento das sombras, no entanto, a temperatura caiu.
Silvana estremeceu um pouco.
- Você ficará dentro de casa hoje à noite. – David disse. - Estes velhos ossos não
toleram o frio tão bem quanto quando eu era mais jovem.
Dirav fez um gesto de aprovação e a reunião começou a se romper. Silvana foi desejar
boa noite ao Pai adotivo do grupo. Juntos, eles passearam pelo perímetro do
assentamento.
- Você cresceu bem e forte. – Dirav disse. - Por um tempo depois de você nos deixou,
tememos que o mundo dos seres humanos pudesse mudar você negativamente.
- Não sei se sou melhor ou pior do que teria sido se tivesse ficado. - Ela era o que se
tornara, o que humanos e chieri, cada um em seu tempo e maneira, fizeram dela.
- É sábio também entender que nunca entramos no mesmo rio duas vezes.
- Não, realmente. - Ela não pôde resistir a um sorriso. - Há uma coisa que gostaria de
saber.
- Pergunte, então.
- Meu pai, Regis, veio procurar por mim? Ou ele apenas se esqueceu de mim?
Dirav a analisou, seus olhos pálidos brilhando com sua própria luz interior. - Ele veio.
- Mas... - Ela mordeu o lábio, presa em uma torrente de sentimentos, alívio e
indignação e coisas que ela não tinha palavras para descrever ainda. - Eu nunca soube disse.
Você nunca me contou!
- Eu mesmo fechei a floresta contra ele. Depois de um tempo, ele parou de vir.
- Depois de um tempo? Quantas vezes ele veio?
- Muitas.
Uma onda de estranha correu através dela, como se o mundo tivesse acabado de se
deslocar em seu eixo, de modo que o sol agora se levantasse no Ocidente. Então poucas
coisas na vida eram certas, apenas a neve do próximo inverno... E que seu pai a
abandonara.
Por quê? A pergunta uivou através dela. Porque os homens maus ainda ameaçavam os
inocentes? Por causa da memória de seus meio-irmãos, mortos em seus berços
simplesmente porque eram os filhos de Regis Hastur? Porque as crianças não prosperam
em isolamento e Lian precisava de alguém com idade semelhante?
Porque eles me amavam demais para me deixar ir?
O motivo fazia diferença? Alguma coisa nisso importava? Sim. Uma. Linnea, chorando
na noite por sua filha perdida, importava. Regis, retornando de novo e de novo,
atravessando essas colinas em vão, importava.
O s f i l h o s d o s r e i s | 178

E ela mesma, crescendo até a feminilidade e construindo sua vida em torno de um


núcleo de amargura, sua dor, isso também importava.
Ela olhou dentro de si mesma procurando a justiça em sua fúria contra aqueles que
haviam roubado a vida e a família dela, mas não conseguiu encontrá-la. Não houve egoísmo
em Dirav, Keral ou qualquer um deles. Apenas o longo declínio lento de uma raça
moribunda. Apenas a esperança e alegria trazida por uma única criança humana. Apenas
amor.
Se eu tivesse retornado com meu pai, ela pensou, eu poderia nunca ter me tornado
uma Guardiã. Minha linhagem teria me tornado muito valiosa por razões que nada têm a
ver com minha própria felicidade. Talvez eu pudesse ter forjado meu próprio caminho... Mas
eu não estaria aqui agora, neste lugar sob as estrelas.
- Eu devo pensar sobre isso. – Ela murmurou. Muito ousada, ela escorregou os dedos
no braço de Dirav. Juntos, eles se voltaram para a clareira.
Luzes suaves piscavam dentro da habitação compartilhada por David e Keral. Deixando
suas botas bem organizadas ao lado da porta, Silvana entrou. O ar estava quente e cheirava
a espinhos e ervas da coníferos. Alguns pontos do ambiente pareciam iluminados por laran,
aquecendo o interior. As paredes foram padronizadas em tapeçarias grossas de um azul
translúcido, fornecendo isolamento e beleza. O efeito lembrava o antigo estilo Comyn,
apenas sem o uso de pedra.
Na extremidade da câmara, Keral e David estavam conversando com um chieri.
Quando Silvana entrou, o recém-chegado se virou para encará-la, mais bonito do que sua
memória mostrava...
Lian.
O coração de Silvana pareceu preso em sua garganta. O cabelo de Lian tinha sinais de
vermelho entre os fios pálidos, como brasas vivas. Silvana havia esquecido as luzes
prateadas no olhar de Lian que davam a impressão de que ele estava sempre olhando para
algum lugar distante, um reino feito de coração e espírito crescente. Ela tinha esquecido
também quão alto Lian era, embora não tão alto quanto Keral, e quão gracioso.
Os lábios de Keral se curvaram em um sorriso quando ele cruzou a distância entre eles
e estendeu as mãos, palma para cima, em convite.
Não, Silvana percebeu. Não ele, pois o movimento de Lian o trouxera mais sob a luz e
agora, através do tecido de fino da túnica de Lian, Silvana viu a arredondamento dos seios e
quadris, o inchaço fraco sob a cintura esbelta.
No instante seguinte, as pontas dos dedos encontraram as palmas das mãos de Lian. O
toque deixou-os em contato. As barreiras de anos e distância, de gênero e as cicatrizes da
vida desapareceram. Era como se nunca tivessem se separado, uma intimidade ainda mais
próxima do que a que Silvana experimentava ao trabalhar em um círculo de matriz. Essa
O s f i l h o s d o s r e i s | 179

proximidade não precisava de aprimoramento artificial da energia da mente, do


pensamento e da emoção. Cada um fluía naturalmente para o outro.
Em um breve instante, Silvana sentiu o declínio de sua esperança, de seu desejo não
reconhecido. Ela tinha de fato fora a companheira de infância de Lian e, em um de sua
mente, ela esperava que o vínculo fosse vitalício e mútuo. Lian havia crescido em um adulto
totalmente funcional, capaz da profundidade do apego necessário para a mudança. Mas
não com ela, não como o macho que poderia ter sido seu amante.
A tristeza durou apenas uma fração de um batimento cardíaco. Lian irradiava tanto
contentamento quanto um deleite em tal grau que a Silvana se sentiu varrida, levada com
felicidade. O riso, doce como um córrego da montanha, soou. Ela não podia dizer se fora
dela mesma ou de Lian, e não se importava.
Quanto o contato desapareceu, uma dúzia de pensamentos saltaram na mente de
Silvana. Ela se sentia desajeitada novamente, um pouco envergonhada por ter esperado
que, embora ela pudesse ter mudado, Lian permanecesse o mesmo de quando se
separaram.
Eu nunca deixei de amar você, Kierestelli, Lian disse em sua mente.
- Meu amigo do coração. – As palavras saltaram de seus lábios. - Nada é como eu
imaginei.
Nem a inconstância do amor de seu pai, nem a dor de sua mãe em sua separação, nem
as esperanças secretas que ela havia acalantado ao retornar ali. Talvez nem quem ela
mesma era ou o que significava ser uma Guardiã... Ou seu lugar entre o Comyn como filha
de um homem que poderia ter sido rei.
Ela se mantivera sozinha por muito em sua vida adulta, então como poderia saber?
- Não. - Lian disse. - É melhor.
Silvana captou uma impressão vívida da mente de Lian, um caleidoscópio de imagens e
sensações, um estranho chieri, alto como todas aquelas pessoas, mas forte, com uma
beleza masculina como o Pai do grupo, cabelos como um rio de iridescência, dançando
junto com Lian, em êxtase sob as quatro luas...
Ela se viu ofegante, deslumbrada e com falta de ar pela memória compartilhada.
Lágrimas picaram em seus olhos e seu coração doeu, embora não com tristeza.
Davi colocou um braço ao redor de cada um deles, sempre e sempre o carinho
humano. - Dê um pouco de tempo a si mesma aqui conosco, Stelli, tanto quanto precisar.
Converse, descanse, pense nas coisas. Vagueie por essas árvores. Você está seguro entre
aqueles que te amam.
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Capítulo 20

No final de dia, ela e Lian subiram no alto das colinas. Silvana carregava um cobertor e
um pouco de comida em sua mochila, pois ela não tinha certeza de quão tarde eles
poderiam se deitar sob as estrelas. O prado onde eles costumavam brincar quando as
crianças eram menores do que ela se lembrava, mas não sabia dizer se isso era porque o
mundo inteiro era maior então ou porque as árvores estavam lentamente invadindo o
espaço aberto.
O calor do dia se agarrava à grama. Quando ela se deitou, sobre o cobertor, o cheiro
de mel e rosa fresca se ergueu e ficaria em sua pele, no cabelo, evocando memórias dos
longos dias sonhadores da infância.
Eles deitaram lado a lado, em silêncio, a um braço à distância, enquanto a luz diminuía
no céu. Silvana sentiu como se estivesse flutuando em um lago nublado pelo crepúsculo e
os sons de pássaros noturnos. Sua mente e a de Lian estavam em unidas, tão sutil e
sensívelmente que ela podia sentir a batida do coração do bebê.
De certa forma, é meu filho também.
Sim, querida amiga do coração, pois pertence a todos nós. Como nós pertencemos uns
aos outros.
Tristeza pairava na fronteira dos pensamentos de Silvana. Sua permanência, como a
de Lian, estava se aproximando do fim. Ninguém precisava lhe dizer isso. Ela simplesmente
sabia que não poderia ficar, não porque ela não era bem-vinda, mas porque sua vida tinha
uma forma diferente, um ritmo diferente.
Quando ela encontrou o olhar de Lian, olhou para o espelho de sua própria alma. Eles
não eram os mesmos, mas cada um incorporou a melhor mistura de humanos e chieri. Cada
um tinha sido concebido em uma noite quando as diferenças se apagaram, quando não
havia fronteiras entre os amantes.
Lian olhou para longe, para as estrelas que agora haviam aumentado o brilho contra o
crepúsculo coração de lavanda, formando um fino véu de luzes. A temperatura já estava
caindo.
Silvana rolou de lado e se apoiou em um cotovelo. Lian parecia tão pacífica, sem nada
mais na mente além do prazer que essa noite gloriosa oferecia, mas Lian era meio chieri e
fora criada em harmonia com a floresta. Ela, por outro lado, era inteiramente humana,
tinha vindo para as árvores com medo e confusão, e passara a melhor parte de sua vida
adulta tentando manter distância de seu próprio povo. Certamente, ela fizera tudo o que
podia para impedir que sua família descobrisse seu paradeiro.
Ela tinha que voltar. Ela sabia, e também sabia que não podia tirar a paz desse
momento, a alegria de seu vínculo psíquico com Lian. Uma dúzia de perguntas zumbiam em
O s f i l h o s d o s r e i s | 181

sua mente como abelhas irritadas, mas nenhuma delas valia a pena ser feita. As que Lian
responderia, ela já sabia a resposta, mas as que ela não conseguia descobrir e que mais a
atormentava, não poderiam ser respondidas por Lian.
O que devo dizer à minha mãe? Minha vida como Guardiã pode voltar a ser o que era
antes?
Uma ondulação atingiu a serenidade da mente de Lian. - Você está incomodada, amiga
do coração.
- É a normal condição humana. - Ela sorriu em suave auto zombaria. - Estamos sempre
entre uma coisa e outra, sempre querendo o que não temos. Eu não sei porque pensei que
poderia ser diferente aqui. Eu mudei minha localização, mas não o que está dentro de mim.
- Em seu tempo na Torre você não tinha entrado em acordo com seu passado, o
porquê de você ter vindo para cá e depois ter partido?
Ela balançou a cabeça. - Eu aprendi a examinar meus pensamentos e motivos em
todas as áreas da minha vida, exceto essa. Agora sei que meu pai voltou por mim, isso
aliviou a amargura, mas não me deu nenhuma nova direção. Eu sou uma Hastur, filha de
um rei, mas não sei o que isso significa. Eu tenho responsabilidades além daquelas que
aceitei por mim mesma? O que eu devo a quem? Minha mãe? O Comyn? E o que eles me
devem? É muito confuso.
- Confuso, sim. Humanos e todas as coisas que pertencem a eles são, ou assim meu pai
me ensinou. - Pano farfalhou sobre a grama enquanto Lian mudava de posição, aliviando o
peso do bebê. - Este é um momento de mudança para todos nós, para o meu povo também.
- Dias novas crianças...
- Muito mais que isso. Sim, meu povo se alegra porque agora temos esperança quando
antes não havia nenhuma, mas não pode ser mais do que um período fugaz. Eu falei da
mudança que veio sobre o nosso mundo inteiro. Os... - Lian usou uma palavra que
significava, aproximadamente, 'aqueles que mostram desrespeito à terra' - ...mudaram
Darkover quando eles removeram suas naves, mas não se foram.
Silvana olhou para o céu. Ela não viu nada de errado entre as estrelas, mas o que ela
esperava? - Eles ainda andam em outros mundos, suponho, e voam suas naves entre eles. -
Ela se perguntou se os Terranan ainda estavam envolvidos na guerra que precipitou sua
retirada.
- Sim, eles o fazem.
- Como você pode saber disso? Não ouvi nada sobre eles nas telas de retransmissão. -
Ela se perguntou se sua mãe tinha contactado a Torre Nevarsin por este motivo.
- Nós costumávamos vagar pelas estrelas. - Lian disse, de tal forma que Silvana
entendeu a referência ao passado distante dos chieri. - No final, voltamos cá, para nosso
mundo de origem e, por um longo tempo, não pensamos em tudo o que tínhamos
O s f i l h o s d o s r e i s | 182

aprendido e construído. Mas o conhecimento não se perdeu. Desde o tempo em que você e
eu fomos concebidas, alguns entre nós já mergulharam de novo na antiga aprendizagem.
- Darkover jamais deve voltar a ser vulnerável aos que saqueiam nossos recursos. -
Silvana murmurou. Seu próprio pai tinha lutado contra os Destruidores de Mundos. Ela
como uma Hastur devia agora responder a uma nova ameaça? - O que devo fazer? - A
pergunta veio como um sussurro, como se ela estivesse não esperasse ouvir uma resposta.
- Querido, não estou dizendo 'esses' malfeitores realmente já voltaram. Mas há
outros...lá em cima, passando e se estabelecendo longe, nas areias distantes. Dirav me
mandou lhe falar disso. Considerou-se que você poderia ouvir isso mais claramente se
viesse de mim.
Por um longo momento, ninguém falou. Lian estava esperando que ela processasse a
informação.
- Essa é a razão pela qual eu preciso voltar. Assim que eu estiver pronta. - Silvana ouviu
a frieza em sua própria voz e dispensou sua autoindulgência. Ela era uma adulta, comynara
e Guardiã. Ela também era uma Hastur, embora, como ela havia dito, ainda não sabia o que
aquilo significava. Mas ela descobriria.
Ela olhou para as estrelas, como pedras preciosas em pó espalhados sobre um pano de
veludo preto, e se perguntou qual delas era uma nave estelar e o que aquela nave poderia
trazer para Darkover.

~o ⭐ o~
Quando Silvana e Lian voltaram à habitação dos pais dela, Dirav estava esperando. Eles
se instalaram em torno de um fogo feito com lascas de madeira perfumada e resinosa. As
chamas queimavam em uma tonalidade azul-esverdeada. Keral pegou uma harpa e cantou,
uma melodia doce sem palavras que Silvana se lembrava da infância. Parecia que as
próprias árvores ficaram quietas ouvindo. Ela se conectou sem esforço por causa da
melodia, seu laran tão vívido quanto a visão, audição, tato ou paladar. Quando a música
silenciou, ela se viu sozinha com Dirav. Os outros haviam se retirado.
Dirav estendeu uma mão e deixou cair um cristal em tom rubi sobre a dela. No
instante em que ele tocou sua pele, pareceu ficar vivo. Ela observou um redemoinho de
luz queimando em suas profundezas. Ela o segurou para que a luz do fogo brilhasse através
dele, porém ele brilhou mais intensamente com sua própria luminosidade carmesim. Em
uma inspeção mais próxima, ela não viu apenas uma única luz cintilante, mas uma
multiplicidade delas, refletindo ao dançar no reflexo umas das outras. Cada uma tinha seu
próprio padrão, seu próprio ritmo. Era como se mais de cem das mentes mais talentosas
tivessem impressas nessa única joia.
Ela abaixou o cristal e encontrou o olhar de Dirav. Como isso é possível?
O s f i l h o s d o s r e i s | 183

- Quando seu povo chegou a Darkover, milênios atrás, meu povo o ensinou o segredo
das pedras da estrela, onde minhas, como focalizar para unir as mentes individuais e como
fazê-las construir telas de matriz de ordem superior.
Silvana assentiu. Um pouco disso era a história que todos os novatos das Torres
aprendiam.
- As pedras da estrela azuis são as mais adequadas para o laran humano. - Dirav
continuou. Mas não são o único tipo. Outras podem manter a impressão de uma
personalidade ou mesmo a encarnação de uma força elementar.
Como Sharra, a Forma de Fogo.
- E esse é o mais raro de todos. Nós chamamos isso de Coração.
Silvana fechou os olhos, concentrando seus sentidos internos na pedra. Ela sentiu
ressoar com o toque mental, mas não havia nenhuma das amplificações características no
laran de uma pedra da estrela azul. Ela poderia, por força de vontade, canalizar seu laran
através dela, mas isso era feito para algum outro propósito. Ela relaxou seu foco,
convidando a pedra a guiá-la, contar-lhe como funcionava...
...a pedra se encontrava ligada a outras mentes, mentes chieri, como em um círculo...
Muitas mais do que ela já havia experimentado... Algumas nesta floresta, outros na solidez
da Montanha. Elas não tinham o senso de concentração e esforço do trabalho de matriz.
Em vez disso, facilitavam a unidade, dando-lhe uma capacidade de resposta e fluidez além
de qualquer círculo humano. Nessa união, a distância não existia mais. Nem o tempo, ela
suspeitava.
Esta é a tecnologia que usamos uma vez, brilhava a voz em sua consciência. E agora,
em tempo de necessidade, nos lembramos dela.
Com esforço, Silvana separou uma parte de seus pensamentos da união chieri. Sua
visão dobrou-se sobre as imagens sobrepostas do que ela via com seus olhos físicos e o que
sentia com sensações mais profundas e seguras. - Tempo de necessidade?
Outros. Lian dissera. Lá em cima, passando e se estabelecendo longe, nas areias
distantes.
Os dedos esbeltos se fecharam sobre os dela. - Pode vir o momento em que você
precise nos chamar. Só porque nos retiramos para nosso planeta de origem não significa
que nos esquecemos do que uma vez aprendemos durante aqueles momentos em que
estávamos igualmente em casa nos vastos alcances do espaço.
Era para isso que servia o Coração?
O fogo brilhou nos olhos cinzentos e prateados. - É uma das coisas. Mas não é bom
para um humano, mesmo um acostumado a nossos caminhos e treinado em laran como
você, gastar muito tempo em suas profundezas.
O s f i l h o s d o s r e i s | 184

Relutantemente, Silvana se retirou da mente da pedra. A perda de contato parecia


como se um amortecedor telepático tivesse acabado de ser ligado, como se parte dela que
tivesse estado vividamente acordada agora fosse cortada. Quão fácil seria mergulhar de
volta à consciência maior, se fundir e perder todo o caminho do tempo.
Com as mãos trêmulas, ela tirou um quadrado de seda isolante da bolsa que usava em
um cordão em volta do pescoço, envolveu o Coração, e enfiou ao lado de sua própria pedra
da estrela. O Coração emitiu um pulso de calor, suavemente silenciado e depois diminuiu a
um estado que não era nem inerte nem completamente quiescente. A unidade tocada do
rubi pairava à beira dos sentidos de laran. Com isso, ela nunca ficaria verdadeiramente
sozinha.
Quando soltou a respiração, ela admitiu a si mesma que não sabia o que teria feito se
não fosse seguro manter as duas pedras em tal proximidade. Ela não achou que teria tido
forças para colocar o Coração de lado.
Dirav, observando-a, fez um gesto de aprovação. Ela passara no teste. Se ela não fosse
uma Guardiã treinada, teria sucumbido.
- Em tempo de necessidade. - Ele disse em voz alta, implicando uma promessa e um
aviso.
- Em tempo de necessidade, e só então. - Ela concordou.
O s f i l h o s d o s r e i s | 185

Capítulo 21

O capitão Poulos não havia exagerado seu aviso. A partir do momento em que o
companheiro, Offenbach, aceitou seu comandá-lo, ele havia recebido uma tarefa
fisicamente extenuante após a outra. Ele não conseguia lembrar de ter trabalhado tão duro
em sua vida e parecia ter recebido as tarefas mais pesadas. A razão para isso se tornara
clara durante uma de suas rupturas infrequentes. Um membro da tripulação, um homem
mais velho com uma barriga e um nariz grandes, explicou que a Lamonica não podia
aproveitar sua gravidade artificial e, apesar de um programa de exercício, o tempo
prolongado no espaço enfraquecera músculos e os ossos. Eles haviam passado muito
tempo procurando por um porto seguro, ou seja, onde a Força Espacial da Federação não
os encontraria. Eles ficaram mais fracos, mas sua carga não se tornou menos pesada.
- Trabalhador local, essa é a coisa. Barato e a gravidade não cansa ninguém. – O
homem de nariz grande, Potbelly, concluiu, cuspindo algo de cor castanha e fedida. O cuspe
não acertou os pés de Gareth por pouco, pousando com um som de mole.
Trabalho local, de fato.
No crepúsculo, Gareth se sentava no chão em um círculo com o resto da tripulação da
Lamonica. Eles se sentavam do lado de fora, relaxando na brisa que vinha das sombras
alongadas. Não era muito mais leve do que o ar no resto do dia e carregava um aroma
amargo, mas era melhor do que o ar velho e pesado das estruturas pré-fabricadas. Gareth
ainda não tivera a chance de entrar na nave em si, mas soube pelos outros homens que o ar
era ainda pior.
Gareth descansou a testa contra os braços cruzados sobre os joelhos. Ele desejou ter a
privacidade para pegar sua pedra da estrela e tentar um pouco de cura com laran em si
mesmo. Sua avó Linnea lhe ensinara apenas o monitoramento mais básico, mas tendo
agora a melhor motivação com a dor em todas as articulações e músculos, ele tinha certeza
de que poderia descobrir o resto.
- Você está indo bem. – O narigudo Potbelly disse para Gareth, socando-o gentilmente
no ombro.
- Para um nativo. – Um dos outros homens brincou, mas sem malícia.
- Se você, superior fora-do-mundo, quiser - Gareth gemeu - pode carregar minha cota
amanhã.
- O tímido atirou de volta, Taz. - Um dos outros disse.
- Tímido? De onde você tirou isso?
- Deuses do espaço, não outra das piadas ruins de Robbard! Poupe o pobre menino!
- Poupe você, é o que você quer dizer! - A discussão amistosa continuou de um para o
outro, sem ninguém ter muita energia para citar mais do que alguns termos enigmáticos.
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- O que há naquelas caixas, afinal? - Gareth falou quando a pausa se alongou. -


Rochas?
- Nada que você precise saber. – Robbard disse, um tom de alerta em sua voz.
- Deixe o garoto em paz. – Taz disse. - É só uma pergunta. Se você estivesse
carregando várias vezes esse peso o dia todo, você também ia querer saber o que gastava
todo o seu tempo.
- O garoto não precisa saber. - Robbard olhou contra o sol, abaixo contra a linha das
colinas ocidentais. O capitão não gostaria disso.
Gareth manteve a cabeça baixa. - Eu não quis me intrometer em nada.
- Robbard está certo. - Potbelly disse. - É mais seguro não perguntar. A curiosidade não
é muito saudável em certas linhas de trabalho, se você entende o que digo. Se o capitão
Poulos quiser que você saiba, ele te dirá.
A cabeça de Offenbach apareceu em uma das estruturas menores. - Comer!
Com os outros, Gareth coletou um pacote de cubos de alimentos e uma xícara de
algum material sintético. Ele balançou a cabeça na oferta de uma ração da bebida espacial.
O forte cheiro o convenceu de sua potência e ele não tinha intenção de prejudicar suas
faculdades e percepções. Os cubos alimentares espumaram e se tornaram uma pasta
espessa em contato com o ar. Alguns da tripulação pegavam com os dedos, outros usavam
colheres de metal. Gareth achou a mistura sem cor e sem sinal de despertar o apetite,
embora ele presumisse que era nutricionalmente adequada. O antílope assado e o grão
temperado que ele tinha comido em Nuriya se tornou um sonho que parecia ter acontecido
com outra pessoa.
Ele tirou uma caneca de água no barrio, depois fez uma pausa. Parecia e tinha um
aroma bom o suficiente, embora com o característico traço alcalino da água do Oasis. Ele
estava bebendo o dia todo sem pensar nisso.
- Algo errado? - Taz apareceu no cotovelo dele.
- N-não. Eu só estava me perguntando. Este local é autosuficiente, não é?
- Você acha que temos combustível para queimar à toa, se podemos carregar a nossa
própria água? Nah, nós economizamos fogo.
Gareth deu de ombros. A água era pesada, como ele percebera com a caminhada
pelas Areias do Sol. - Da aldeia?
- Deuses do espaço e das coisas terríveis! - Taz virou a válvula, encheu sua própria
caneca, engoliu um bocado, gargarejou e cuspiu. - Você não desiste de nem se depender da
decência de um planeta! - Franzindo a testa, ele analisou Gareth. - O que é você e de onde
vem?
- Eu só estava curioso. Me perguntava o que os aldeões deram ao capitão em troca dos
blasters.
O s f i l h o s d o s r e i s | 187

A expressão suspeita do astronauta diminuiu. - Agora você está pensando como um de


nós! Você entende? Tudo é uma barganha. O segredo está em saber o que o outro quer e
quanto ele pagará por isso. Esses caipiras mijões acham a água algo tão valioso! Eles são
muito idiotas para perceber que na verdade é deste lugar que realmente precisamos.
Ele se refere a Darkover, uma base ideal agora que a Federação não está mais aqui
para impor suas leis.
Gareth quebrou a pausa que se seguiu. - Você vai para a aldeia buscar água? Não
haverá problemas depois da maneira como o capitão Poulos mandou de volta o chefe da
aldeia?
- Nah! - Com um rolar de olhos, Taz indicou uma fenda na borda interior da parede
rochosa, talvez a uma milha de distância. - Isso é algo que eles entregam lá de fora. Você
não se preocupe com os moradores que estão chegando. Sabemos como proteger nosso
pessoal. Se um deles tentar algo... BAM! - Ele fez uma expressão desagradável.
- Por que você não montou o acampamento para mais perto da água?
- Muito perto das rochas. - Taz fez um som através de seus dentes enquanto apontava
a encosta erodida e rochosa. - Os ventos não são exatamente amigáveis.
Gareth assentiu, pensando nas correntes de ar imprevisíveis das Hellers que fizera o
mapeamento e exploração por aeronaves impossível. Seções inteiras dessas montanhas
permaneciam desconhecidas, pelo menos por exploradores humanos. Várias raças
sapientes não humanas de Darkever, como os os arbóreos e os chieri, encontraram seu
santuário lá. Os chieri provavelmente estavam extintos. Ninguém tinha visto um deles vivo
desde que Keral se aventurou para fora das florestas para ajudar o Regis contra os
Destruidores de Mundos.
- Além disso, - Taz continuou - não é como se o poço fosse longe, não comparado com
as medidas espaciais. Nós podemos ir e voltar com um veículo-robótico, mas só temos um,
então cuidamos bem. Precisamos encher amanhã, aparentemente. Quer vir?
Gareth fez uma expressão de ansiedade. - Se o capitão me liberar.
Em resposta, Taz tomou outro gole depois jogou fora o resto em sua xícara. Nesse
momento Gareth deduziu que haveria pouca chance de que ele não fosse considerado
necessário nesse trabalho.
Como se para enfatizar sua dúvida, um aviso sonoro elétrico emitiu uma série de sinais
curtos e estridentes. Os outros homens foram cuidar de seus assuntos, terminando a
refeição e uma variedade de tarefas pessoais, incluindo seu alinhamento fila para o banho
de ar comprimido que substituía a água, perto da nave de transporte.
Gareth permaneceu, observando o movimento em ondas de poeira superaquecida. A
nave de transporte a um ponto brilhante refletido contra o céu púrpura. Agora que ele
sabia como procurar, encontrou a nave-mãe como um ponto menor do que a perolada
O s f i l h o s d o s r e i s | 188

Mormallor, porém maior que qualquer uma das estrelas. A própria Lamonica nunca
aterrissou na superfície de um planeta. Não fora construída para a descida através da
atmosfera. Em vez disso, duas naves de transporte alternavam a subida e descida. Além
disso, cada uma era capaz de fazer um voo de baixa altitude.
Refeição e banho realizados, a tripulação partiu para seus quartéis em um dos
menores pré-fabricados. Gareth pensara que eles, como os personagens enosa vídeos ou
nas histórias que ele tinha ouvido falar sobre os darkovanos proscritos, ficariam até metade
da noite bebendo e apostando, ou pelo menos afiando suas armas. Mas não havia nada
para beber além da água e à pequena ração espacial, esses homens não lutavam com facas
e a gravidade implacável os deixavam exaustos. Eles nem sequer colocaram um alarme no
relógio que era feito por instrumentos mecânicos. Gareth se perguntou o que Dom Mikhail
ou seu tio Danilo, ambos que tinham servido na Guarda da Cidade em seu tempo, diriam
disso.
Embora seus músculos doessem, Gareth não estava cansado o suficiente para dormir.
Ele não podia ouvir nenhum dos ruídos noturnos habituais. Do centro do acampamento, as
luzes de seus pólos emitiam um crepitar ocasional e várias outras máquinas cantarolavam
ou clicavam. Ele tentou imaginar como devia ser no espaço, envolto em toneladas de metal,
tudo muito frio e barulhento.
Ele pensou em procurar o capitão Poulos novamente, antes que ficasse tarde demais e
tentasse convencê-lo mais uma vez. Por seus cálculos, os homens de Lorde Dayan não
poderiam ter chegado a mais do que um dia ou dois. Por que eles não apareceram? Os
aldeões não conseguiriam ter montado uma resistência efetiva e Cuinn bem poderia ter
feito eles como aliados poderosos, como instrumentos de vingança.
Talvez a companhia de Shainsa não tivesse seguido através das Areias do Sol. Talvez
eles tivessem tentado uma rota mais curta e não encontraram os poços, ou haviam perdido
seus cavalos para exaustão e morte. Gareth, tendo crescido com pessoas que valorizavam
seus cavalos, estremeceu com a ideia, mas ele era suficientemente realista para saber que
nem toda cultura, ou todo homem, sentia o mesmo nesse assunto. Para alguns, cavalos não
eram mais do que um meio de transporte, descartáveis e intercambiáveis, cujas vidas e
sofrimento contavam não importavam nada. Cavalos...e pessoas.
Ele se perguntou se tinha sido um desses, poderia ter sido ou mesmo se ainda era. Ele
fugiu de Thendara sem pensar nas preocupações que causari, a ansiedade que traria para
as pessoas que o amavam. Ele pensou em seus pais chegando e esperando encontrá-lo, na
expressão de seu tio Danilo.
Ele tinha sido tão tolo e irresponsável quanto todos acreditavam que ele era. Nada
havia mudado desde que ele tinha quatorze anos. Não importaba o quanto tentasse, nunca
mudaria. Você não pode construir um castelo sobre a casca de um ovo, afinal. Ele jogara
O s f i l h o s d o s r e i s | 189

fora a pequena dose de respeito e confiança que ganhara, e pelo que? Para alguma noção
de dever? Mais como uma ilusão!
A ameaça que ele imaginara romanticamente, a companhia invadindo a partir de
Shainsa, nunca iria se materializar. Não havia mais nada para ele, nenhuma justificativa
para prolongar toda essa escapada equivocada. Ele não viu outra escolha além de voltar
para Nuriya no dia seguinte, à primeira luz para implorar por um guia através do deserto.
- Você. Garoto. - O guarda gigante se aproximou tão silenciosamente que ele parecia
uma fantasma saindo das sombras. Sem tirar os olhos de Gareth, ele inclinou a cabeça para
a nave.
Poulos tinha convocado ele.
Quando Gareth e sua escolta entraram, Poulos e Offenbach estavam se curvando
sobre uma caixa no final, sua tampa parcialmente aberta. Como as outras caixas, não era
feita de madeira, mas de algum material sintético. Marcas de arranhões e amassados se
destacacam pálidas e ásperas na superfície cinza escura.
Offencah reagiu à chegada de Gareth, com um blaster na mão enquanto se
endireitava. Gareth congelou. A adrenalina varreu qualquer traço de curiosidade quanto ao
que estava na caixa. O que quer que fosse, não valia o que um único olhar poderia custá-lo.
- Como você é... – Poulos disse e Offenbach abaixou o cano de sua arma. - Segure isso.
– Poulos se referiu à caixa. - Vamos terminar mais tarde. É hora de conversar com nosso
novo recruta.
Alguns momentos depois, Gareth se viu como antes, de pé do outro lado da mesa
gasta de trabalho do capitão que estava sentado. Offenbach saiu ela porta, mas o guarda
permaneceu. Também como antes, Gareth não tinha dúvidas de que qualquer
comportamento suspeito de sua parte seria prontamente e desagradavelmente terminado.
- Ouvi que você é um bom trabalhador. – Poulos disse, seu tom parecendo satisfeito. -
Mas então, este é um mundo primitivo. Esses lugares oferecem pouco tempo para
vadiagem.
Gareth quase riu em voz alta, pensando em quantos em Thendara tinham a opinião de
que ele era exatamente isso, um vadio mimado. Em vez disso, ele assumiu sua expressão
mais útil. – Só fiz minha parte.
- Nenhum problema com a tripulação?
Gareth deu de ombros. Então, já que mais era claramente esperado, ele acrescentou: -
Eu me dou bem. Eu acho que eles gostam de mim bem o bastante.
O capitão pegou uma haste de metal fina da mesa e passou através de seus dedos,
indo e vindo dessa maneira. Gareth não reconhecia o objeto. Poderia ser qualquer coisa,
desde uma caneta até uma arma em miniatura ou um instrumento médico. Seja o que for,
ele sentiu a ameaça implícita na maneira como Poulos lidou com isso.
O s f i l h o s d o s r e i s | 190

Poulos disse, novamente naquele tom casual: - Então você não se oporia a tornar seu
status conosco permanente.
Foi uma declaração, uma demanda, sem espaço para desfeita. A garganta de Gareth se
fechou.
Clique... Clique... A haste de metal contra soou contra a superfície da mesa.
- Eu não esperava uma oferta. – Gareth disse.
- Eu não estava planejando fazer uma. Você criou um problema, filho, entrando no
acampamento assim. Se você fosse um aldeão, o que claramente você não é, eu não teria
preocupações. Por sua própria história, você é de outro lugar, e seu Padrão Terran é bom
demais para você ter aprendido em um livro.
O clique parou. Poulos segurou a haste tão firmemente que a pele sobre os dedos
brancos empalideceu. - Você tem um sotaque fraco, embora eu não possa identificá-lo.
Mas vou te dar cem créditos e aposto que você aprendeu isso de alguém da Força Espacial.
Gareth pensou, Jeram.
Lentamente Poulos abriu os dedos e inclinou a mão para que a vara rolasse para a
mesa. - Eu imaginei que você fosse apenas o que parecia ser. Mas talvez não. Talvez possa
ser mais.
Aquilo significava ‘talvez você seja ou possa ser um espaçonauta, um dorminhoco, um
espião ou tudo isso. Pelos demônios de Zandru, por que ele se imaginara como Race Cargill,
Agente Especial Terran?
- Então, você vê, é muita vantagem para você aceitar isso... A oportunidade de uma
vida. – Poulos disse. - A vida acima mencionada pode ser sua.
Gareth engoliu em seco, plenamente ciente de como sua laringe se movia sob sua
pele. A haste de metal brilhava, escorregadia e inteiramente apontada.
Poulos riu. - Deuses de olhos verdes do espaço, filho! Não estou pedindo para você
assinar seu nome com sangue! Ou me trazer o couro cabeludo escaupelado de uma avó!
Apenas para que fique no acampamento, de preferência à vista, mantenha o trabalho duro
e prepare-se para o inferno de uma aventura! Você compreende?
- Sim...sim senhor.
- Bom então. Sem desculpas aqui. Nenhum absurdo sobre dormir sob as estrelas
também. Você vai dormir com a tripulação. Onde podemos ficar de olho em você.
Gareth sabia quando tinha sido dispensado. Ele fez um arco, o aceno abreviado de
alguém em posição superior para alguém que devia ser reconhecido, mas nunca como igual
e sentiu uma pequena emoção quando Poulos apenas sorriu.

~o ⭐ o~
Entre o ronco dos outros homens, o interior cheio e com cheiro estranho dos quartéis,
O s f i l h o s d o s r e i s | 191

e seu próprio estado emocional, Gareth não dormiu bem. Ele tentou se convencer de que s
eu único recurso, a única opção racional era jogar junto, ganhar a confiança do capitão e es
perar por uma abertura para fugir, mas ele não conseguia acalmar a sensação de desastre i
minente. Deviam ser nervos, nada além dos notórios nervos dos Elhalyn, e não o dom da pr
ecognição dos Aldaran.
Na manhã seguinte, ele caminhou na luz do dia junto com os outros e ficou em fila por
sua parte da bagunça gelatinosa encharcada que era o café da manhã, junto com uma xícar
a de café. Ele nunca gostou de café quando domna Marguerida lhe oferecia um pouco de se
u precioso estoque, que, diga-se de passagem, era muito superior em qualidade. Essas coisa
s podiam ser usadas para desinfetar um ninho de banshee. Ele engoliu e tentou não pensar
no que poderia estar fazendo ao seu estômago.
Não havia dúvida sobre a direção no veículo-robótico de água. Taz, que era o motorist
a, tinha sido alertado para a situação de Gareth. Ele sorriu de seu assento no veículo estreit
o e esboçou uma saudação na direção de Gareth enquanto orientava o veículo na direção d
o poço. Robbard e Potbelly passaram, deixando Gareth com os outros dois membros da trip
ulação, Offenbach, o capitão e o guarda, sempre próximo do capitão, no acampamento. Gar
eth ainda não tinha aprendido o nome do gigante e estava começando a suspeitar que ele n
ão tinha um.
- Não se preocupe, garoto, - disse um dos outros homens, um tripulante com cara que
lembrava um rato, com um nome longo e quase impronunciável que havia sido abreviado
para 'Viss'. – O capitão não nos faz trabalhar sempre tanto assim. Não haveria nenhum
ponto lógico, entende? Acontece apenas de tempos em tempos, quando precisamos
intensificar, caso contrário, viveríamos apenas empurrando caixas de uma extremidade do
acampamento para a outra sem parar.
Gareth não tinha certeza sobre isso. Conforme a manhã progredia, ele conseguiu
juntar o suficiente dos comentários do outro homem para deduzir que outra nave era
esperada para encontrar-se com a Lamonica, na qual as pechinchas seriam feitas e os bens
trocados. Quando ele ouvira o suficiente para concluir que Poulos e seus homens eram de
fato contrabandistas, Viss fez um comentário enigmático que implicava que a pirataria
também poderia estar envolvida. No final, isso não importava. O que importava era a
disposição de Poulos, ou qualquer um de seus homens, para fazer o que fosse necessário
para manter sua presença ali oculta dos olhos da Federação.
Por volta do meio-dia, Taz e os outros voltaram com o veículo carregado com barris
cheios. O trabalho de descarregá-los mais do que ocupou a manhã de Gareth e seus
pensamentos. Ele e Robbard lutaram para os colocar no lugar ao lado dos velhos barris.
Robbard limpou a testa e usou a caneca pendurada no rack de metal frágil. Ele encheu-
a no barril que tinham acabado de montar e virou nos lábios, um verdadeiro riacho saindo
dos cantos de sua boca, descendo por sua mandíbula e pescoço, molhando a frente de sua
O s f i l h o s d o s r e i s | 192

camisa. Com um murmúrio apreciativo, ele limpou a boca com a parte de trás de uma mão,
depois estendeu a caneca para Gareth.
O cheiro do frescor atingiu Gareth. Até aquele momento, ele não tinha percebido o
quão sedento estava. Ele estava tomando goles do velho barril a manhã toda até não
conseguir mais tirar o gosto acre da boca. Mesmo assim, algo, alguma cutuca de seu
instinto talvez, ou algum sinal de rebelião incipiente o conteve.
A breve hesitação foi suficiente para os outros homens se multiplicarem na frente
dele. Parecia haver um costume não dito que ninguém bebia dos novos barris antes dos
homens que descarregavam. Robbard havia tomado sua parte e agora Gareth parecia
disposto a renunciar ao seu próprio direito.
- Deuses do espaço! - Viss disse, entre goles. - Pensei que iria enlouquecer de sede.
Taz derramou uma caneca de água sobre a cabeça. - Este lugar pode secar até uma
lesma-de-sol.
- Quando esta missão acabar, vou correr para Thetis. - Potbelly disse. - Vou me molhar
naquelas águas por cerca de um mês. Deve ser o mínimo de tempo que levarei apenas para
me reidratar.
- Você ficará como uma ameixa! - Viss disse e todos riram.
Offenbach surgiu do edifício principal, caminhando e observando o descarregamento
dos barris.
Potbelly estendeu uma caneca. - Quer uma amostra grátis?
Offenbach balançou a cabeça, bateu no ombro do outro homem de maneira amigável
e voltou para o escritório.
- Ele não bebe da mesma água? - Gareth perguntou.
- Claro que sim, exceto quando ele compartilha a do capitão. - Pela aparência intrigada
de Gareth, Potbelly baixou a voz. - Poulos não gosta de mencionar isso, mas ele tem, certas
dificuldades para, você sabe... – ele balançou as sobrancelhas - Então, algum charlatão o
vende uma água destilada, sem nenhum embriagante, nada que possa fazer mal ao seu... E
agora às vezes o cara prova por ele. É uma cadela de um incômodo, mas ele é o capitão,
então fazemos as coisas do jeito dele. Melhor ele do que eu, certo?
Os outros homens, tendo bebido sua cota, começaram a retornar às suas tarefas.
Robbard permaneceu, com a caneca na mão, observando Gareth. - Vamos? O que você está
esperando? Um convite gravado?
Gareth olhou a linha de barris. Com um encolher de ombros, ele encheu uma caneca
do velho barril. A água era do fundo do barril, quase espessa o suficiente para ser chamada
de lodo. Virando-se, Robbard balançou a cabeça não compreendendo o gosto pela água de
segunda. Os moradores locais não podem dizer a diferença de qualquer maneira, então por
que desperdiçar água decente?
O s f i l h o s d o s r e i s | 193

~o ⭐ o~
Depois que os barris de água tinham sido organizados, os homens beberam mais e
algumas outras tarefas do acampamento foram relizadas, mas não havia muito mais o que
fazer. Poulos permaneceu dentro da casa, junto com Offenbach e o guarda sem nome com
cara de lua. O resto da tripulação dividiu seu tempo entre dormir, reparar seu equipamento
pessoal e resmungar.
A tarde seguiu aquecendo a terra nua. Até mesmo a nave parecia ter uma camada de
poeira sobre ela que nunca sumiria. Gareth andou pelo acampamento, parando aqui e ali,
mas tendo cuidado para não parecer estar escutando propositalmente.
- Garoto, você vai guiar a todos para a loucura se não acalmar seus ossos num lugar. -
Viss disse, quando Gareth passou por ele pela décima vez. Viss tinha se jogado contra a
lateral da sombra do quartel, junto com Taz e Robbard. Parecia que eles estavam
envolvidos em um jogo com dados de seis lados, embora Gareth não visse nenhum sinal de
dinheiro.
- Sente-se. – Taz disse. - Conte-nos sobre as mulheres locais.
Robbard fez um som no meio do caminho entre um bufo e um gemido. - Por todo o
bem, isso nos fará.
- Nós podemos sonhar, não?
Viss observou enquanto Gareth dobrou as pernas e se estabeleceu ao lado dos
homens. - Derrame.
- Elas são mulheres drytowners. - Gareth disse. - O que mais há a dizer?
- Tem que nos dar mais do que isso! Você passou pela aldeia, não foi? - Taz perguntou.
Robbard fez uma expressão de interesse mal contido. - Nós não pudemos espreitar
tanto nessa área. - Ele expirou através dos lábios soltos. - O capitão é um ser rigoroso.
- Mas o que não entendo é o porque disso, afinal? - Taz disse, seu tom mais animado. -
Claro, se o capitão quer manter sua boa aparência, posso entender. Você nunca sabe o que
esses locais vão entender errado. Olhe para as mulheres do jeito errado e BAM! Temos uma
guerra em nossas mãos. Certo, garoto?
Em sua mente, Gareth viu esses homens correndo de volta pela trilha sobre as colinas
e fugindo de Nuriya. Ele não conhecia o nível de habilidade de combate à mão dos
espaçonautas ou dos homens da aldeia. Mesmo se fossem aproximadamente iguais, os
resultados não seriam bons. Isso presumindo que Robbard e os outros não usassem as
armas de fora-do-mundo... Ou os aldeões não tivessem mais blasters. Mesmo assim, seria
muito fácil esmagar os postes ou cabanas de gado, e os nuriyanos viviam perto do limite da
sobrevivência. Pelo menos Rahelle não estaria lá.
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- Pff! - Taz bufou. - Não vejo uma mulher desde aquela colônia de mineração em
Bellatrix e elas não contam! Não é como se fôssemos machucá-las. Só quero um pouco de
diversão! As mulheres do deserto sabem como se divertir, não é?
- Não o que você chamaria de diversão. – Gareth disse, tentando fazer uma expressão
de desgosto. – Encolhem as coisas, tornam mais feias do que sapos e com cheiro pior ainda.
Então logo estarão arrancando e assando sua pele para comer.
Taz e Viss trocavam olhares. O estômago de Gareth ficou ácido quando ele percebeu
que eles tinham entendido o sentido conotativo implicando o canibalismo, mas de modo
sério. Ele não queria descobrir o por quê. Sua história podia desmoronar com poucos
testes, mas com sorte, ele teria conseguido desencorajar seu interesse.
Robbard se levantou. O sol havia mergulhado no meio da linha de cume e a luz
inclinada banhava o rosto em um tom insalubre. - Não sei você, mas estou cansado de
tagarelices. Se essas mulheres são algo parecido com essa bosta de planeta, você pode
amarrar todas elas em algum lugar sob o sol e largar lá! - Incomodado, ele esfregou a
barriga.
- Você está bem? - Taz perguntou.
- Sim. Você deve saber que não é bom beber tanto de uma só vez. Vou me deitar um
pouco e logo estarei melhor.
Gareth observou quando Robbard passou pela porta do quartel. Embora o espaçador
espaçonauta parecesse firme em seus pés, Gareth se lembrava de que cavalos podiam ficar
doentes por beber água demais depois de terem passado muito tempo sem ela. Mas
cavalos não eram homens. Os homens não costumavam ter cólicas por isso.
Nem Taz e nem Viss pareciam doentes, mas a vontade de conversa tinha sumido deles.
Eles não pareciam mais se importar com as mulheres da aldeia.
Quanto a Gareth, ele estava contente em sentar ali, observando as sombras
alongadas, enquanto seus companheiros se arrastavam para seus beliches. Um calor
soporífico se agarrava à terra. Seus músculos estavam pesados. Os sons dos maquinaria
recuaram, distantes e maçantes. Ele inclinou a cabeça, descansando a testa em seus braços
cruzados e fechou os olhos...
... Ele os abriu ao som dos gritos de Offenbach. Pela luz ocidental quase sumida, ele
calculou que dormira por uma hora. O ar estava notoriamente mais frio.
- Hai-yi-yi! - Um grito, estridente como o choro de animal de caça, quebrou o
anoitecer.
Gareth se esforçou para ficar de pé quando um cavalo corria, montado. Os cascos
batiam sobre a terra nua, levantando ondas de poeira. Seus olhos transbordaram lágrimas
tão livremente que ele mal conseguia ver os atacantes. Havia um segundo cavaleiro... Um
O s f i l h o s d o s r e i s | 195

terceiro, todos eles gritando a plenos pulmões e brandindo lanças. Gritos vieram do
quartel.
Os cavaleiros galopavam entre ele e o prédio que abrigava o escritório do capitão. Eles
circularam, desviar e mudaram de direção. Gareth estava quase certo de que eles não o
viam. Ele poderia se apressar contra eles.... E fazer o que? Tudo o que ele tinha era a faca
que obtivera permissão para manter, totalmente inútil em uma briga. Suas mãos doíam por
uma espada.
Um dos cavaleiros correu para o campo de visão de Gareth, rodou seu cavalo usando
joelhos para o equilibrar e arremessou alguma coisa. No momento seguinte, a poeira se
elevou na frente da porta do quartel. Uma figura tropeçou pela parede de poeira, alguém
que Gareth pensou ser Viss ou Taz, e caiu de joelhos, segurando a barriga.
Gareth esfregou os olhos e lamentou no mesmo instante. Suas pálpebras queimaram
como se alguém tivesse jogado um punhado de pimenta em seu rosto. Com esforço, ele
afastou as mãos. Através das lágrimas de seus olhos irritados, ele vislumbrou o centro do
acampamento. Uma lança entrou na lateral do metal do veículo com braços robóticos, um
instante antes que outra aterrissasse entre dois barris de água.
Gareth andou ao longo da lateral do quartel e puxou Viss de pé. Quase vomitando, o
homem mais velho caiu nos braços de Gareth. Gareth o arrastou de volta para a porta
aberta do quartel. O cheiro de vômito encheu a sala, seu estômago se contorceu em
rebelião. Quando ele o soltou, Viss se inclinou de joelhos dobrados. No beliche mais
distante, Taz lutava para se erguer, mas caiu de volta. Tristemente, Gareth não conseguia
ver qualquer reação de Robbard ou Potbelly. Não havia mais nada que ele pudesse fazer
aqui, então correu para fora do quartel.
Aos gritos, duas figuras emergiram do prédio de escritórios. Gareth não podia
distinguir suas palavras sobre a cacofonia do clamor de guerra, relinchos dos cavalos, sons
dos cascos e os gritos abafados atrás dele. Uma das figuras, pelo tamanho e pelo poder
controlado de seu passo, era definitivamente o guarda.
O guarda levantou sua arma e mirou. Um raio luminoso saiu e perfurou as camadas de
poeira. Um cavalo gritou e se ergueu. Somente por uma façanha de habilidade o cavaleiro
se agarrou ao animal. Aparentemente, o cavalo não tinha sido atingido, apenas se
assustado, pois, no momento seguinte, seu cavaleiro o incitou a um galope forte em
direção ao prédio de escritórios.
O cavaleiro recuou o braço, preparando sua lança. O guarda mudou seu peso,
aprofundando em sua postura de disparo e mirou seu blaster.
- Não! - Gareth gritou e virou o rosto, enjoado com a certeza da tragédia iminente e
imparável. Seu aviso atravessou a poeira.
O s f i l h o s d o s r e i s | 196

Um segundo cavaleiro se voltou, tão perto que apenas um reflexo de sorte salvou
Gareth de ser atropelado. O cavaleiro se juntou ao da lança, os dois correndo para o prédio
de escritórios. Gareth correu atrás deles.
Ele deslizou para parar quando o feixe da arma do guarda disparou. Um grito de
agonia desumana abafou todos os outros sons. Com lágrimas ainda inundando seus olhos,
Gareth não conseguia ver quem tinha sido atingido. Ele ouviu gritos no dialeto das Cidades
Secas, um alto choro de lamento, depois as batidas sincronizadas de um galope em recuo
dos cavalos.
O guarda ficou a meio caminho na frente de Poulos, com Offenbach no ombro do
capitão. O guarda ainda segurava seu blaster em ambas as mãos. Sua postura silenciosa
irradiava perigo. A poucos metros de distância estava a forma arredondada de um cavalo.
Suas pernas abrigavam um corpo imóvel.
Alguém choramingou de dor.
- Robbard! Taz! Viss! Onde diabos eles estão? - O olhar do capitão brilhou sobre
Gareth, seu rosto uma máscara de fúria.
Gareth gesticulou para o quartel.
Poulos empurrou o queixo em direção a Offenbach, que se dirigiu nessa direção quase
correndo. Então, para o guarda: - Fique de olho nele.
O guarda mudou seu blaster para apontar diretamente para Gareth. Gareth não ousou
se mover além do suficiente para respirar. Um truque de luz fez os olhos do guarda
brilharem, escuros como obsidianas.
Poulos caminhou sobre o cavalo caído. Gareth ouviu outro som de dor excruciante. O
cavaleiro estava preso sob seu animal, ainda vivo? O momento passava lentamente
enquanto o lamento do cavaleiro vacilou, depois se elevou novamente. No entanto, Poulos
assistiu a tudo, impassível.
Faça alguma coisa! Não deixe que ele sofra assim! Gareth não ousou falar sob a mira
do guarda implacável.
Offenbach surgiu do quartel e correu para o capitão. - Taz e Viss estão em estado
deplorável. Robbard está morto. Lakrin... - Esse devia ser o nome real de Potbelly - ...ele
está apenas respirando.
A vigilância do guarda aumentou. Nada se moveu, nem mesmo o ar na garganta de
Gareth. Então, xingando em uma linguagem que Gareth não conhecia, Poulos atacou com
um chute de sua bota. O chute pousou com o som de couro contra carne, de osso lascando,
e então não havia mais gemidos de tortura.
Poulos inalou, o ar assobio entre os dentes. Um pouco da tensão furiosa saiu de seus
ombros maciços. - Deixe o garoto enterrar Robbard. Tem que ser feito imediatamente
neste calor. Quanto aos outros... - Com um lampejo de seu olhar para o guarda que olhou
O s f i l h o s d o s r e i s | 197

de volta impassível: - Faça o que puder por eles. Offen, precisaremos de um antídoto, se
você puder detectar o agente.
Offenbach assentiu. - Farei o meu melhor.
Poulos respondeu com um aceno breve e quase invisível de um ombro enquanto ele
girava e voltava para seu santuário. Offenbach, sombrio, seguiu-o como uma sombra. O
guarda esperou por um longo momento antes de baixar seu blaster.
Gareth engoliu em seco. – Foi a água. É por isso que o capitão não ficou doente.
- Ele sabe, filho. Ele sabe.
Algo nas palavras do guarda, ditas sempre tão suavemente, gelaram a medula de
Gareth.
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Capítulo 22

Gareth parou na porta do quartel. O odor de dentro bateu nele como um golpe físico.
Em sua morte, Robbard claramente defecara em si mesmo. O cheiro adicionado ao fedor
geral, uma mistura de vômito e suor, só piorava tudo. A boca de Gareth se encheu de saliva
com gosto de bile. Engolindo de volta, ele lutou contra a necessidade reflexiva de seu corpo
de se limpar.
- Fique estável, garoto, controle-se. - Surpreendentemente gentil, o guarda tocou o
ombro de Gareth.
Eles entraram. Um tubo de iluminação em tom amarelo corria ao longo do centro do
telhado, lançando uma iluminação doentia sobre o interior. Corpos se agitaram em dois dos
beliches. Nem Robbard nem o quarto homem, Lakrin, moveram-se. O guarda os verificou e
depois puxou os cobertores sobre ambos os corpos.
- Oh, deus... - O homem mais próximo gemeu em uma voz tão distorcida que era
irreconhecível.
Gareth se inclinou sobre o homem contorcido e debiltado. Era Taz. Ele nunca parecera
robusto, mas, nas últimas horas seu corpo tinha enrugado e encolhido. Ele lutou para
levantar a cabeça, depois caiu de volta, tossindo secamente.
- Vamos. - Gareth disse, deslizando um braço sob os ombros do homem doente. -
Vamos tirar você daqui.
O guarda cutucou Gareth para o lado e pegou Taz sem esforço visível. Gareth dobrou
as almofadas do beliche desocupado e os levou para fora. Em poucos minutos, eles
conseguiram colocar os dois homens doentes ao ar livre.
O crepúsculo brindou o céu em matizes de malva e roxo profundo. O anoitecer,
quando viesse, seria rápido. No momento, havia luz suficiente para trabalhar.
Gareth se ajoelhou ao lado de Viss, que estava em pior estado do que seu
companheiro. Sua língua inchada se projetou para fora de sua boca e sua respiração era
rápida e superficial. Sua pele estava seca e quente ao toque.
- Ele precisa de sais de água e hidratação. - O guarda se agachou em seus calcanhares,
surpreendentemente fácil para um homem seu tamanho.
- Acho que há pouco de água à esquerda, do antigo estoque. – Gareth disse. - Deve ser
seguro. Eu bebi e estou bem.
O rosto redondo de lua do guarda permaneceu impassível. Gareth não podia sentir
nada de seus pensamentos ou emoções. Ou o homem tinha barreiras psíquicas naturais
extraordinariamente fortes ou então ele vinha de uma linhagem que não tinha laran.
Finalmente, o guarda se levantou e desapareceu no quartel. Então Gareth entendeu que
ele deveria cuidar dos dois doentes enquanto o guarda cuidava dos cadáveres.
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Não havia como protestar dizendo que ele não tinha experiência em cura, certamente
não com pacientes tão terrivelmente doentes como estes. Ele simplesmente teria que fazer
o que fosse necessário.
A desidratação devia ser abordada primeiro. Gareth usou sua própria caneca para
transportar água. Agachando-se ao lado primeiro de Viss, ele levantou a cabeça de cada
homem e colocando a caneca em seus lábios e os fazendo beber. Pelas bênçãos de Evanda,
ambos conseguiram engolir. Gareth não sabia o que ele poderia ter feito caso contrário.
Um de cada vez, o guarda arrastou os corpos para fora do quartel. Ele improvisou um
trenó com os trilhos desmontados de um beliche e o que parecia ser um casaco de longo.
Depois ele desapareceu no escuro.
Offenbach saiu e pegou uma amostra da água contaminada. Ele parou por um
momento para observar Gareth. Gareth manteve-se obstinadamente em seu trabalho,
embora cada caneca drenasse a pequena quantidade de água deixada no velho barril ainda
mais. O guarda retornou, pegou uma ferramenta parecida com uma pá de um dos galpões
de armazenamento e saiu novamente, tudo sem dizer uma palavra.
Depois de um tempo, Gareth decidiu que Viss e Taz tinham bêbado tanto quanto era
prudente. A água agora estava gosmenta e ele temia que isso pudesse prejudicar mais do
que ajudar. Ele encontrou uma pilha de roupas enroladas em um armário dentro do quartel
e rasgou em tiras a camisa mais desgastada, molhou as tiras e começou a limpar os rostos e
as mãos de seus pacientes. Ele odiava a ideia de deixá-los em suas roupas de cheiro vil. Sua
explosão inicial de energia havia desaparecido e dúvidas circulavam como um kyorebni. Se
ele se aventurasse de volta ao quartel em busca de roupas limpas? Ou fosse limpar a
bagunça lá dentro? Seu estômago revirou com a perspectiva, mas se ele não ficasse
pensando, se ele apenas fizesse isso...
Então um dos homens gemeu e se virou de lado e tudo ficou claro para Gareth. O
quartel dos alojamentos não importava. Roupa limpa não importava. O que importava era
apenas cuidar desses dois homens nesta noite.
Gareth abaixou-se no chão ao lado de Taz e segurou o lado do rosto do outro com uma
mão. Taz se afastou, murmurando incoerentemente. Sua pele não estava mais quente, mas
úmida e alarmantemente fria. O toque físico catalisou uma onda de sensações fugazes e
confusas. Gareth controlou um xingamento antes que saísse. Ele sentiu como se fosse meio
cego e meio surdo justo quando mais precisava ver e ouvir.
Ele olhou em torno em busca de qualquer sinal do retorno do guarda e não viu nada.
Offenbach não havia emergido da sede desde que coletara a amostra de água. Taz e Viss
estavam delirantes demais para prestar atenção, ou assim Gareth esperava.
Depois de algumas tentativas para encontrar o fecho, finalmente o medalhão de
Nebran se abriu. A luz azul clara brilhou quando a pedra da estrela caiu em sua palma
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aberta. Por um instante, parecia que uma luz de entendimento, de compreensão surgia
dentro de seu núcleo. O brilho o encheu quando uma luz revirou dentro do cristal.
Gareth se acomodou ao lado de Viss, endireitando sua espinha como havia sido
ensinado. Seu corpo é sua fundação, seu local de partida, sua âncora, sua avó Linnea lhe
dissera com mais frequência do que ele poderia contar. O torna forte e estável para que os
pequenos desconfortos mesquinhos não dominem sua mente.
Desconfortos mesquinhos... Sistematicamente, Gareth voltou sua atenção para como
estava sentado, o equilíbrio de seu torso enquanto acima de sua pélvis, a elevação e
descida de seu peito, a posição de sua cabeça, a flexibilidade de seu pescoço. Ele estava
mantendo seus músculos abdominais tensos novamente. Sua avó Linnea o repreenderia se
ela estivesse aqui. Visualizando sua respiração descendo ao longo de um canal de luz
diretamente na frente de sua espinha, ele sentiu sua barriga amolecer. Os nós da energia
laran inflamaram dentro dele como uma cadeia de sóis em miniatura.
Em sua mão frouxamente fechada, a pedra da estrela irradiava calor. Ele se
concentrou nisso, sabendo que seu corpo permaneceria pronto e energizado. Por trás de
suas pálpebras fechadas, ele ainda podia ver o jogo de luz em suas profundezas facetadas.
Ele abriu sua mente e sentiu a joia psicoativa aumentando suas habilidades. E, no entanto,
ele notou curiosamente, que era como se a pedra fosse mais um espelho do que um
amplificador.
Uma vez que estabelecera o fluxo de laran através de sua pedra da estrela, ele o guiou
para o homem deitado diante dele. No começo, ele visualizou o esboço rústico de um
corpo. Então, conforme sua mente penetrava mais profundamente nos campos de energia
do paciente, ele sentiu uma rede de fios luminosos. Alguns eram cordões grossos, outros
como linhas de teias de aranha. As cores pulsavam ao longo delas...
Gareth observou os padrões correspondentes a órgãos internos. As matizes vermelhas
tinham escurecido para o marrom e o cinza, sombrias e feias lebrando a estagnação e a
deterioração.
Se ele pelo menos tivesse mais conhecimento saberia o que fazer! Vendo o que via, ele
não achava que Viss se recuperaria sozinho.
Treinado ou não, competente ou não, era com ele. Não havia mais ninguém.
Aldones, Senhor da Luz, o que devo fazer? Doce Evanda, Abençoada Cassilda! Não
permitam que eu estrague tudo e guiem minha mão. Não punam esse homem por minhas
deficiências! Mostrem-me como ajudá-lo!
Não havia resposta. Claro, não havia resposta.
Ele procurou os canais mais escuros e desgastados, encontrando uma teia de
filamentos cor de carvão, enrolados como uma rede de pescadores. Quanto mais ele se
concentrava neles, mais sua distribuição geral ficava clara. Ele não via sangue, vasos
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linfáticos, nervos, ossos ou tendões, mas sim uma tapeçaria composta por milhões de
pontos brilhando fracamente... Células vivas?
Lá, uma voz sussurrou em sua mente, ou talvez fosse apenas sua imaginação, vá lá...
Ele não tinha a menor ideia, mas decidiu confiar no instinto que tinha sido colocado
em sua linhagem desde que os humanos desembarcaram em Darkover.
Deixe a luz te guiar...
A pedra da estrela acendeu em resposta, queimando ainda mais brilhante até que seu
próprio corpo se encheu de chama azul clara. Ele abriu as barreiras de sua mente e deixou a
energia derramar, seguindo seu próprio caminho.
Por um momento selvagem e aterrorizante, o fogo se enfureceu através de seus
sentidos internos. Ele perdeu toda a orientação, toda a conexão com seu corpo, com sua
pedra da estrela e com o homem em cujo corpo de energia ele se aventurava.
Abaixo... Por aqui... Procure...
Ele se agarrou aos comandos telepáticos como uma linha vital e se manteve firme
neles. Ele se encontrou mais uma vez flutuando acima de uma teia que variava entre tons
de laranja a cinza escuro, marcado aqui e ali por manchas negras. Enquanto ele olhava,
mais fios diminuíram, se apagaram e as zonas mortas aumentaram. Ele entendeu que esses
fios estavam morrendo e as células intestinais fracas, mas ainda atuantes, estavam
sofrendo danos irreversíveis ao rim, fígado...
Para baixo, a voz disse e ele foi. Entre os fios cintilantes, abaixo, havia um mar de
partículas que ficavam borradas e mudavam rapidamente, ele não podia acompanhar as
mudanças. Um surto repentino de energia, como grupos de relâmpagos invisíveis, o atingiu.
O medo endureceu dentro dele, gélido e enervante, um temor de que ele se perdesse ali,
destruído, separado de seu corpo, incapaz de retornar. Na parte de trás de seus
pensamentos ele se lembrou das advertências contra o trabalho laran não monitorado, os
perigos que um telepata destreinado representava não apenas para os outros, mas
também para si mesmo. Qualquer que fosse o risco, era tarde demais para recuar agora. Ele
abaixou as últimas barreiras de sua mente e deixou a luz levá-lo.
Naquele momento, ele se tornou a luz e ela se tornou parte dele. Exuberante,
extravagante, insaciável, apartado de toda a consciência de si mesmo como uma entidade
separada. Os limites sumiram. Ele não pensava mais no que devia fazer ou como. A luz que
crescia o levou, comandou e penetrou nas células do moribundo.
Faíscas brilhavam enquanto luz respondia a outra luz. Sulcos de brilho do próprio
material da vida se infiltraram nos nós escuros. Moléculas se combinaram neutralizando as
toxinas. Ele não tinha conhecimento dos processos que estava testemunhando, apenas a
profunda sensação intuitiva de vida.
O s f i l h o s d o s r e i s | 202

Incêndios metabólicos inflamavam como reações bioquímicas em cascata. Os fluidos


seguiam pelas veias, encharcavam os tecidos, uma inundação que levava embora o cinza
das células moribundas e varria os detritos coagulados nos túbulos renais. Membranas
musculares se reconstituíam, nervos brilhavam com carga elétrica, as lacunas sinápticas
dançavam com transmissores, fibras musculares do diafragma se tensionavam e as costelas
se erguiam com o ar se apressando pelos bronquíolos.
Correntes de ar e sangue o atingiram. As imagens se aceleraram e variaram
esmagadoramente rápidas para ele reconhecer. Flashes coloridos batiam nele. Dentro de
pouco tempo, ele perdeu todo o sentido de orientação.
A luz que o sustentava vacilou. Seus sentidos ficaram desordenados e ele tentou
compreender, achar a estabilidade. Mas não encontrou nenhuma e cada esforço só
intensificava seu desespero.
Saia... Veio a voz, tão fraca e distante que ele mal conseguia entender as sílabas. Antes
que seja tarde demais...
Sair? Ele ecoou atordoado. Como?
Fora...costas...
Todo contato desapareceu.
Sozinho... Ele estava sozinho em um lugar escuro e sem peso... Rasgado e desfiado em
mil pedacinhos, finos... A luz brilhou e vacilou... Náusea subiu em ondas que pareciam
chicotear como uma tempestade... Músculos sofreram espasmos...
Ajude-me... Ele pensou, e então seu pensamento em si o deixou como um repentino
vazio que também o sugava.
Ele bateu em algo duro. O impacto chocou ao longo dos ossos e pele pareceu
machucar. Seus pulmões lutavam por ar, mas sua respiração parecia exageradamente
jogada sobre ele.
Ofegante, ele empurrou contra a superfício dura. Ele se viu sobre suas mãos e joelhos.
Uma mão enrolada em torno de algo pequeno e afiado. Luzes amarelas lançavam uma
iluminação doentia. Ele notou um homem em um palete improvisado ao lado dele.
O homem se mexeu. - Garrin?
Garrin? Em uma corrida, os últimos dias voltaram para sua memória.
Ele abriu seu punho. A pedra da estrela brilhava com sua própria luz interior.
Movendo-se desajeitadamente, ele conseguiu envolvê-la em sua camada de seda e colocá-
la de volta no medalhão. Suas mãos estavam tremendo tanto que foi preciso toda a sua
concentração para manipular o fecho, mas o movimento pareceu ajudar a estabilizar sua
visão.
- Viss? Você está melhor? - Sua boca formou as palavras, embora sua língua parecesse
estar revestida com lodo azedo.
O s f i l h o s d o s r e i s | 203

- Um pouco. Deuses do espaço, garoto, o que aconteceu comigo?


O que aconteceu com você? O que aconteceu comigo? Mas ele sabia a resposta. Em
um momento de insanidade, ele realizara uma profunda cura com laran. Uma além dos
maiores talentos, feita apenas pelos poderosos trabalhadores de matriz. Mesmo sem os
reptidos avisos de sua avó Linnea, ele deveria saber que não era prudente tentar tal coisa
sem um monitor salvaguardando sua mente e corpo. Somente por muita sorte ele e seu
paciente tinham sobrevivido. Se ele sofrera algum dano duradouro depois lembraria de
verificar isso.
Enquanto isso, Viss estava tentando se erguer. - Taz, Lakrin... Robbard... Eles estão
bem?
Gareth balançou a cabeça. Robbard e Lakrin estavam além de qualquer ajuda, mas Taz
podia precisar da mesma limpeza profunda nas células.
Abençoada Cassilda, não posso passar por isso de novo!
Viss pareceu não ter notado que Gareth não tinha respondido. Com um suspiro, ele se
mexeu de lado, olhando para Gareth, e adormeceu.
Uma tontura borrava os sentidos de Gareth. Ele lutou para lembrar o que deveria
fazer...
Comida, sim. Linnea insistia para que ele comesse depois de uma sessão de laran e
para que ele se movesse para estabilizar aquelas partes do cérebro.
Mas Taz... Comida primeiro, ele disse a si mesmo severamente. Você não será capaz
de ajudar ninguém se desmaiar de fraqueza.
O s f i l h o s d o s r e i s | 204

Capítulo 23

Com esforço, Gareth conseguiu ficar de pé, embora não estivesse muito estável. No
processo, ele se lembrou de algo que Robbard havia dito durante a última refeição, sobre
manter os pacotes de doces para os nativos. A última coisa que Gareth queria era colocar
algo em seu estômago e nunca tinha gostado muito de doces, mas seria melhor do que
nada.
O fedor que o cumprimentou na porta do quartel quase o fez cair de joelhos. Ele se
agarrou ao quadro, incapaz de se forçar a entrar. Sua outra opção, ele pensou atordoado,
era implorar na sede para comer algo.
Ele pulou com o súbito peso de uma mão em seu ombro, perdendo seu equilíbrio e
quase caindo contra o sólido guarda.
- Garoto.
Com sua sensibilidade aumentada, Gareth sentiu a mistura de curiosidade e suspeita
do guarda e a gentileza profundamente mascarada.
- Viss...ficará bem. - Gareth balbuciou, não fazendo sentido nem para si mesmo, e
orando para que não parecesse tão incoerente para o guarda quanto para si mesmo. - Eu
preciso comer...e depois ver Taz. Ele não estava tão mal..."
O aperto em seu ombro aumentou por um momento. Então o guarda o soltou e se
afastou. Respirando pesadamente, Gareth se inclinou contra a porta.
Mova-se! Ele pensou, mas suas pernas não obedeciam. Lágrimas se formaram em seus
olhos, distorcendo ainda mais sua visão. Desesperadamente, ele disse a si mesmo que se,
desistisse agora, estaria jogando fora qualquer esperança de salvar Taz. Não importava que
estes não fossem seus parentes, seu povo. O que importava era que ele era o único que
poderia reverter o envenenamento. Então ele ficou de pé.
Alguns minutos depois, o guarda reapareceu. Ele trouxe duas refeições embaladas,
fumegando de tão quentes e uma garrafa de vidro de água destilada do estoque do capitão.
Com a visão, os joelhos de Gareth dobraram-se sob ele. Suas mãos pararam de tremer o
suficiente para ele colocar a comida em sua boca. Depois de apenas alguns bocados, ele
sentiu uma tremenda e dominante fome. Seu corpo reconheceu o que precisava e exigiu o
sustento. A água parecia insípida, mas enviou um arrepio de prazer através de sua barriga.
Ele devorou uma das refeições e bebeu toda a água. No momento em que entregou a
garrafa vazia, ele estava se sentindo mais forte e cautelosamente esperançoso de que, se
Taz precisasse de uma cura semelhante, seria capaz de realizá-la.
- Com certeza você estava com fome. - O guarda sugou ar pelos dentes. – Pronto para
ir? - Gareth praticamente pulou de pé em resposta. - Quando você terminar, pode começar
a trabalhar limpando lá. – O guarda sinalizou para o quartel. - Eu deixei desinfetante e
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algumas outras coisas para você. Apenas fique no acampamento, você me ouviu? Você é
um bom garoto e seria uma pena se entrasse em problemas. Entende o que digo? - O
guarda desapareceu no edifício da sede.
Gareth não podia pensar em mais nada além de cuidar de Taz, orando para que tivesse
forças para uma segunda cura. Se ele fosse ou não bem sucedido, ele não teria energia,
certamente não o suficiente para escapar.
Viss estava dormindo em silêncio, seu peito subindo e descendo em respirações
profundas e fáceis. Taz estava em melhor forma para começar, e tinha sido capaz de beber
mais da água não contaminada. Mesmo assim, sua pele parecia fria e escorregadia de suor.
Ele estremeceu quando Gareth tocou o lado do rosto dele.
Gareth se arrumou ao lado de Taz, com as pernas cruzadas. A pedra da estrela se
iluminou quando ele a segurou em sua palma nua. Uma respiração o levou quase em
transe. Desta vez ele sabia o que estava procurando. A memória do entrelaçamento das
teias de energia ainda estava fresca em sua mente. Ele não perdeu tempo. Como antes,
dirigiu sua energia mental nos tecidos moribundos e sentiu a vitalidade retornando em
resposta. Ele ficou aliviado em descobrir que o dano não era tão extenso quanto o de Viss.
Taz teria sobrevivido sem intervenção, embora seus rins e fígados pudessem ter sido
prejudicados.
Só depois que Gareth retornou ao seu próprio corpo que ele percebeu que estava
sozinho. A voz que o guiara através da cura Viss não tinha falado com ele novamente. Por
um momento vertiginoso, ele se perguntou se a voz tinha sido real ou apenas uma
invenção de sua própria necessidade desesperada.
Não, ele pensou enquanto tocava a testa de Taz, ainda fira, mas não mais úmida, eu
não imaginei isso. Ele estendeu a menteimplorando por ajuda e algo ou alguém tinha
respondido.
Gareth, como a maior parte de sua geração, cultuava os quatro deuses primordiais dos
Domínios: Aldones, Evanda, Avarra e Zandru. Nem por um momento ele acreditara que
qualquer ser sobrenatural poderia ou iria querer responder orações pessoais. No entanto,
alguém o guiara através da cura.
A explicação mais provável era que sua avó Linnea deixara um resíduo de sua
personalidade e conhecimento em sua pedra da estrela, talvez por ela ter sido sua Guardiã.
Outra possibilidade era que, na necessidade extrema do momento, ele conseguira acessar
memórias enterradas do que tinham lhe ensinado sobre a cura de laran.
Sim, devia ser isso. O que mais poderia ser?
Cuidadosamente, ele embalou e colocou sua pedra da estrela no medalhão, depois
enfiou o amuleto dentro de sua camisa. O cansaço o encharcou de suor. A fome roía suas
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entranhas, mas não mais ameaçava dominá-lo como antes. Mesmo assim, ele estava firme
o suficiente sobre seus pés.
Gareth encontrou a segunda das refeições pré-embaladas onde a havia deixado,
embora não estivesse mais quente. Ele caiu sentado contra o exterior do quartel para
comer. A comida o estabilizou, mas não sumiu inteiramente com sua fadiga. Em vez disso,
ele sentia todo o impacto de ter gastado tanta energia mental em tão pouco tempo.
Eu vou descansar aqui...só por um minuto. Sua cabeça caiu para frente. Vagamente,
ele sentiu a embalagem deslizar de seus dedos moles.
Ele despertou algum tempo depois, embora não pudesse dizer o que o havia
acordado. O acampamento ainda estava sob um céu escuro que não tinha nem mesmo
uma sugestão de luz ocidental. Estrelas se espalhavam pelos céus, perfurando o ar do
deserto seco. Das quatro luas, apenas Idris havia se erguido.
Taz e Viss ainda dormiam. Pela regularidade de sua respiração e resiliência de sua pele,
ambas estavam indo bem. Gareth foi até a porta do quartel. Um pouco do odor tinha se
dissipado, mas a sujeira seria mais difícil de limpar por estar totalmente seca. Ele
melhoraria isso.
Ele encontrou uma grande garrafa de plástico rotulada como desinfetante, bem como
um balde, um saco de panos e uma escova grande e grosseira. Suspirando, ele disse a si
mesmo que, se tivesse sido permitido a se alistar nos Cadetes da Guarda, ele teria sido
designado a deveres semelhantes e deveria realizá-los, independentemente da hora ou de
suas próprias inclinações. Além disso, o trabalho precisava ser feito e não havia mais
ninguém para fazê-lo. Taz e Viss estavam bem o suficiente onde estavam agora, mas apenas
por um tempo. A noite estava aumentando rapidamente e eles ficariam melhor lá dentro.
Gareth começou a trabalhar pela área ao redor do beliche de Robbard. Em pouco
tempo, ele esfregava, lavava e reefresgava, a ponto de seus dedos doerem, mais do que
algumas vezes. O desinfetante pingou em sua pele desgastada. Seus olhos arderam com os
odores e a gosma nojenta que se formava durante a limpeza, ou talvez pelas imagens que
piscavam em sua mente, impressões fraturadas de um homem lutando para respirar,
reivindicar e se controlar quando seu corpo lutava para se livrar do veneno.
Gareth apoiou-se em seus calcanhares, um pano pendurado em uma mão mole. Dois
homens estavam mortos, criminosos, talvez, mas não homens maus, e agora ninguém
saberia, ninguém que se lembraria ou cuidaria deles. Eles nunca voltariam para casa e seria
como se nunca tivessem existido...
Seu peito se elevou, mas não pelo esforço de resistir às ondas de náusea. Dentro dele,
um grande choro estava acumulado, empurrando pela garganta, derramando na noite. Ele
se curvou, inclinando-se para o chão com o pano em ambas as mãos, esfregando, chorando
e esfregando, como se pudesse afastar a perda terrível e sem sentido. Seu nariz escorreu,
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seus olhos queimaram e sua garganta doía como se a carne não pudesse conter sua dor. Ele
não conseguia entender por que se sentia tão abaldo. Ele mal conhecia esses homens.
Ele passou de um pedaço de piso imundo para o próximo, desde os quadros do beliche
com vômito aos armários, pequenas caixas, cada um marcado com as iniciais do
proprietário.
AT. L. JV. RE.
As letras, no alfabeto Terran, o trouxeram curto. Então Robbard era um primeiro
nome, um nome pessoal. E a outra letra devia representar um nome de família.
Gareth agachou ao lado dos armários dos dois mortos, passando as mãos sobre as
iniciais. Ele pegou-os, empilhando um em cima do outro e ficou de pé. Eles eram
surpreendentemente leves. Talvez as outras posses dos homens mortos permanecessem na
nave. A melhor coisa a fazer seria levar os armários para o capitão Poulos.
- Capitão? Capitão Poulos? Offenbach, vocês estão aí? - Ninguém respondeu quando
Gareth colocou os armários no chão e bateu na porta do edifício da sede. Ele bateu uma
segunda vez, ainda sem resposta. A porta tinha sido trancada.
Gareth começou voltar para o quartel, pensando em deixar as caixas para o dia
seguinte, quando percebeu que o veículo-robótico tinha sumido. Ele correu para onde
estava estacionado com uma sensação de medo crescente.
Poulos, Offenbach, o guarda... Também sumiram!
Gareth parou no local vazio. Mergulhado nas profundezas de uma cura de laran, ele
não teria notado um rebanho de banshees saltitando pelo acampamento, muito menos um
veículo-robótico saindo.
No próximo batimento cardíaco, ele percebeu onde eles haviam ido. E porque.

~o ⭐ o~
Gareth atingiu as colinas em uma corrida de adrenalina. Com Idriel e as estrelas, havia
luz suficiente para ver a trilha. Seus pés se aceleram na inclinação.
A trilha subiu, seguindo os contornos instáveis da terra. Ele tropeçou nos pés
aproximados, uma ou duas vezes quase indo de joelhos. Seus pulmões pareciam banhados
em fogo. Seu coração batia dolorosamente. O calor irradiava por seu corpo, mas o vento de
sua corrida secava seu suor quase tão rapidamente quanto refrescava sua pele. Ele se
forçou ainda mais.
Ele tropeçou em uma pedra do tamanho da sua mão e se esparramou no chão. De
alguma forma, ele conseguiu se apoiar em suas mãos. O impacto fez sua respiração oscilar.
Ele se sentou em seus calcanhares, esfregando as mãos. Seu corpo inteiro tremia com a
força de sua respiração.
O s f i l h o s d o s r e i s | 208

Limpando as mãos nas coxas de suas calças, ele se levantou. Pequenos pedaços de
cascalho tinham grudado em sua pele. Os machucados como picadas sangraram quando ele
tirou as pequenas pedras.
Engolindo entre uma respiração e outra, ele prosseguiu. Sua corrida desesperada fora
mais em sua cabeça do que qualquer outra coisa. Abaixo dele, as luzes amarelas marcavam
a base dos fora-do-mundo. Quando ele olhou para a trilha acima, o topo da crista parecia
quase ao alcance.
As colinas ao redor dele estavam tão quietas que ele sentiu como se fosse a única
coisa viva no mundo. Acima dele, as estrelas desapareceram. Idriel estava baixa no
horizonte.
Se não estivesse acostumado ao silêncio aveludado da noite, ele poderia ter perdido
os sons do outro lado do cume. Sobre o martelar de seu coração, ele pegou o lampejo de
um motor, o som de solo de rocha solta atinginda pelo metal.
Sem um segundo pensamento, ele saiu da trilha. Um momento depois, apareceu um
par de faróis onde a trilha cortava o topo da colina. Eles pareceram pairar por um momento
antes de descer. A trilha se curvou, tirando o veículo-robótico da visão direta, mas o
barulho de sua abordagem ficou mais alto.
Gareth se achatou contra a pedra. Ele disse a si mesmo que os passageiros não podiam
ouvir a batida de seu coração sobre o som do motor. Eles não estavam procurando por ele.
Eles não tinham motivos para acreditar que ele havia saído do acampamento.
Mas assim que chegassem, eles saberiam.
O veículo-robótico estava quase sobre ele agora. Ele até podia sentir o cheiro do
exaustor. Assim que passou, ele ouviu uma voz que acreditava ser de Poulos, mas não
conseguira entender as palavras. Então o veículo passou a descer em direção ao
acampamento e ele conseguiu respirar novamente. Ele estava tremendo, suas mãos
cerradas com tanta força que suas unhas cavavam em suas palmas abertas.
Lentamente ele ficou de pé. Uma sugestão de luz pastel tocou o céu oriental. Pelo
menos ele sabia onde o veículo-robótico e seus pilotos estavam. Com esse pensamento, o
senso de urgência, que havia sido coberto pela iminência do encontro, retornou
integralmente. Desta vez, no entanto, ele manteve o controle de si mesmo. Ele subiu de
forma constante e deliberada, sem pressa em sua cabeça.
Pouco depois que Gareth começou sua descida no lado mais distante do cume, a
aldeia entrou em seu campo de visão, entre dois braços de rocha escura. Ele tropeçou para
parar. Seus músculos estavam moles com o horror.
Mesmo na escuridão da noite, ele podia ver a aldeia, ou o que restava dela,
queimando.
O s f i l h o s d o s r e i s | 209

Linhas de fumaça e incêndio recém extinto marcavam estruturas de madeira, galpões,


cabanas e os postes de animais. Aqui e ali, paredes de pedra formavam borrões escuros.
Nada se movia contra o brilho do fogo que ainda persistia em muitos pontos.
Ele mergulhou pela trilha, quase voando e meio caindo. Seixos estavam pulverizados
debaixo de seus pés. Ele deslizou e escorregou, mas de alguma forma continuava sem
parar.
Obscura Lady Avarra, que não seja tarde demais!
Não, havia alguém lá em baixo. Tinha que haver...
Gareth se forçou por mais velocidade. Ele explodiu em uma onda de energia repentina
e correu para a aldeia, acelerando pela periferia. Ele passou por algumas das cabanas mais
pobres, distantes do resto, que pareciam estar intactas.
Ele circundou o que restava de uma cerca formada por postes de gado. Metade dos
outros postes havia caído e o resto estava quase queimado. Cabras tentavam correr dali,
urrando desesperadas. A maior correu para ele, depois deslizou parando bruscamente e
caiu em suas patas traseiras. O fogo colocava reflexos estranhos em seus olhos. Suas
pupilas estavam tão dilatadas que não se via a íris. Furioso, Gareth chutou o poste mais
próximo. Seu pé colidiu com a madeira enfraquecida pelo fogo, o poste estremeceu, mas se
manteve inteiro. Um segundo chute e os postes de um lado da cerca explodiu em
fragmentos de chamas. As cabras correram pela abertura. Algo do outro lado gritou.
Outra cabra... Um cavalo ou um oudrakhi? Ou...
Por favor, Lady Negra, não!
Um humano? O som estava tão distorcido, ele não podia ter certeza.
O poço... Onde ficava o poço?
Alguém capaz de fugir do perigo já teria feito isso. Poderia haver alguém ferido... Ele
precisaria de água.
Outra corrida frenética o levou para o centro da aldeia. O fedor de carne carbonizada
o atingiu como um golpe físico. Uma mortalha de fumaça estava pendurada no ar, um
miasma psíquico sufocante, o resíduo de terror e dor. Uma onda de fumaça provocou uma
crise de tosse.
Havia uma pilha no lugar onde ele festejara com Cuinn e os outros... Um
amontoamento lodoso... Aquilo eram corpos.
Corpos... Ele se forçou a se aproximar... Estava tudo carbonizado e retorcido, mas não
por um natural.
Blasters! Eles usaram blasters nos aldeões!
Gareth se dobrou em um espasmo renovado de tosse. Os últimos resquícios de
adrenalina que alimentara sua corrida pelas colinas desapareceram, deixando um frio
O s f i l h o s d o s r e i s | 210

doentio, arrepiante até suas entranhas. Ignorando a dor, ele balançou as mãos em punhos
e pressionou-os sobre a boca.
Isso era culpa dele, dele! Ele tinha sido indescritivelmente arrogante e tolo,
retratando-se em uma grande aventura, sem avaliar as consequências.
Race Cargill do Serviço Secreto Terran! Ele zombou.
Agora seus amigos pagaram com suas vidas.
Pare! Ele se enfureceu consigo mesmo. Essa seria a pior indulgência de todas, se
chafurdar em autopiedade ao invés de agir, como se seu ego fosse mais importante do que
aqueles que ainda podiam estar vivos. Ele enviou uma promessa para qualquer que
divindade que pudesse estar o ouvindo que qualquer bem que pudesse realizar ou resultar
daquilo, ele nunca reivindicaria nenhum crédito por isso.
Náusea cresceu. De alguma forma, ele resistiu à onda de vômito que ameaçava surgir,
então recuou. Deixando as mãos cair ao seu lado, ele inalou bruscamente. Os incêndios
quase tinham terminado e o céu oriental estava visivelmente mais brilhante. Pelo menos,
pedra, areia e a terra nua não podiam queimar. Ele precisava encontrar sobreviventes, se
houvesse algum.
Como se convocada por seu pensamento, uma figura emergiu por trás de um dos
edifícios, arrastando outra. Gareth chamou. A figura se endireitou e virou-se para ele.
Era Rahelle.
Por um momento, Gareth não a reconheceu sob o pano cobrindo o nariz e a boca. Ele
correu para ela, agarrou-a pelos ombros e sacudiu-a, desarrumando o pano. Ele viu-se
gritando com ela, com acusações incoerentes, exigindo explicações, palavras confusas de
alívio e fúria.
Ela não fez nenhuma tentativa de responder, apenas ficou ali a seu alcance, tremendo.
Sua falta de resistência primeiro alimentou a indignação dele, depois a extinguiu. Ele viu a
umidade brilhando em suas bochechas e toda a raiva sumiu. O que acontecera ali não era
culpa dela.
Rahelle se afastou. Ele não tinha força para segurá-la.
Ela poderia ser um desses corpos no centro da aldeia. Se alguma coisa tivesse
acontecido com ela...
- Há mais alguém vivo? - Ele gaguejou.
Ela lhe deu um olhar rápido e duro. - Eles estão fora do perímetro da aldeia. A fumaça
não é tão ruim lá. - Sua voz tinha um tom rouco, provavelmente pela fumaça.
- Quem... - Ele parou em um espasmo de coceira em sua garganta e apontou para a
pilha de corpos.
- Alguns deles são humanos, sim, mas nem todos. Um dos nossos cavalos está lá, temo
que seja sua égua. Ela entrou em pânico e correu na direção do tiro da arma de fora-do-
O s f i l h o s d o s r e i s | 211

mundo. Seu corpo era pesado demais para mover, então eu a deixei. Os outros saíram com
o oudrakhi.
Você fez tudo isso sozinha? Sua garganta se recusou a dizer as palavras. Ele olhou para
o corpo que ela estava arrastando, uma mulher.
Rahelle se inclinou para colocar uma mão no peito da mulher. - Ela ainda está
respirando. Acho que é a esposa de um dos filhos do chefe.
Gareth ergueu a mulher deslizando a forma esbelta em seus ombros. Rahelle liderou o
caminho passando por algumas cabanas em chamas.
Brasas e fumaça persistiam transformando o ar em uma névoa luminosa. Seria belo se
não fossem as circunstâncias.
Os sobreviventes estavam amontoados, Cuinn no centro. O chefe parecia atordoado.
Havia em sua testa um nódulo extremamente inchado, enegrecido e com sangue
escorrendo. Ninguém emitiu nenhum som quando Gareth e Rahelle se aproximaram. Mães
agarravam seus filhos nos seus seios. Fuligem manchava seus rostos e roupas. Seus olhos
tinham uma expressão vidrada de incompreensão. Um homem mais velho tomou a mulher
inconsciente dos braços de Gareth e caiu no chão de areia, embalando-a e acariciando seus
cabelos. Em seguida, vários dos bebês e crianças desataram a chorar.
Por um momento Gareth ficou dividido entre a gratidão por muitos aldeões terem
sobrevivido e a impaciência por seu estado quase de torpor. Alguém tinha que ver se os
feridos estavam adequadamente cuidados. Algo se quebrou nele, uma barreira que Ele nem
sabia que existia, e ele disparou uma série de ordens. Ele enviou os homens mais jovens de
volta para a aldeia em busca de sobreviventes, salvar suprimentos, comida e roupas, e
outros para buscar água e qualquer coisa que pudesse ser usado como bandagens.
Permanecer vivo nos próximos dias seria a parte mais fácil. Ele não achava que Poulos
voltaria, a menos que fosse para procurá-lo. Mesmo assim, os moradores não poderiam
ficar ali. Eles tinham perdido muito e eram poucos para reconstruir uma comunidade,
mesmo supondo que conseguissem recuperar seu gado. Mas sem cavalos ou oudrakhis, a
caminhada para a aldeia mais próxima seria perigosa. Ele desejou saber mais sobre a
sobrevivência no deserto. Se não fosse por Adahab, ele nunca teria alcançado Nuriya.
Adahab tinha prometido voltar em cinco dias, quatro agora. Havia esperança, afinal.
Enquanto isso, Rahelle foi para cada um dos aldeões restantes e gentilmente os
questionou sobre onde e quanto tinham sido feridos. A idosa que atuava como curandeira
da aldeia tinha morrido, e a mulher que Gareth carregara morreu antes de recobrar a
consciência. Duas das crianças menores pareciam tão atordoadas, como tamanho vazio em
seus olhos, que Gareth temia que elas nunca recuperassem seu juízo.

~o ⭐ o~
O s f i l h o s d o s r e i s | 212

No meio da manhã os incêndios tinham se extinguido e algumas cabras estavam nos


arredores, então haveria um pouco de leite para as crianças. As cabanas com muros de
pedra sobreviveram, algumas em melhores condições do que outras, mas pelo menos
haveria abrigo o suficiente para todos. O melhor de tudo é que o poço estava intacto.
Os homens se ocuparam em cortar o cavalo morto. Eles trabalharam sem falar,
terminando o que devia ser feito. Como Gareth não tinha habilidade em massacrar, ele
ajudou com os enterros, arrastando os mortos para fora dos limites da aldeia. Quando ele
voltava com cada novo corpo, parecia que os que ele havia colocado nas areias, afundando,
estava embalando as formas retorcidas como se a própria areia fosse uma coisa viva. Na
manhã seguinte os corpos estariam cobertos. Talvez houvesse rituais a serem seguidos e
orações a serem ditas, mas Gareth não conhecia. O Comyn seguia a antiga tradição do
enterro em sepulturas não marcadas, com familiares e amigos compartilhando lembranças
dos que partiram, cada um encerrando com a frase ritualística: 'deixe essa memória aliviar
a dor'.
Depois de um curto período de tempo, Gareth não conseguia mais sentir o cheiro da
carne carbonizada, seu olfato inutilizado ou apenas tendo se habituado. Cada um desses
corpos tinha sido uma pessoa viva, um homem, uma mulher ou uma criança com quem ele
poderia ter falado, rido... Ele ficou grato pelo silêncio e o peso dos trabalhos físicos, pois
não tinha memórias para oferecer à altura da luta interior.
Todos, exceto uma das mulheres, se reuniram, organizando as crianças, colocando os
feridos em paletes improvisados de pedaços de cobertores recuperados. Onde eles
encontraram acessórios de cozinha e comida, Gareth não sabia. Quando uma mulher mais
nova timidamente ofereceu a ele e Rahelle caneca de mingau, ele notou que suas
"correntes" de cordas pendiam de seus pulsos, rasgadas.
Gareth e Rahelle se sentaram na pequena sombra ao lado da cabana de Cuinn. Sua
caneca, uma cerâmica grosseira, estava enegrecida e lascada. O mingau tinha gosto de
queimado, mas era nutritivo e quente. Rahelle bebeu, franziu os lábios e colocou a caneca
no colo. Gareth sentiu a mesma relutância pelo gosto.
- Você deveria comer. - Ele disse, tanto para si mesmo quanto para ela. Seus músculos
latejavam com cansaço. Quando fora a última vez que ele descansou? As poucas horas de
sono que ele tinha conseguido na noite anterior há muito tempo tinham perdido qualquer
efeito. Ele se forçou a engolir mais um bocado.
Ela arqueou uma sobrancelha enquanto olhava em sua direção, depois voltou seu foco
para a caneca. - Não me diga o que fazer.
- Eu já descobri a inutilidade disso. Você nunca ouve ninguém. Você deveria estar em
seu caminho de volta para Shainsa e seu pai! Você tem alguma ideia de como é perigoso
aqui? Você poderia ter sido morta...
O s f i l h o s d o s r e i s | 213

- E suponho que você estava muito mais seguro no acampamento Terranan, certo? E
se eles descobrissem quem você é? Você tem tanto a esconder quanto eu!
- Quem eu sou? - Ele estalou, ouvindo o temperamento irracional em sua própria voz. -
O que você quer dizer com isso?
- Só que alguém tem que mantê-lo longe de problemas!
- Quem te nomeou minha guardiã? Eu estava indo muito bem sem você!
Por seu olhar de incredulidade, algo como um riso histérico se revirou dentro dele.
Seu olhar vacilou. - Eu saí. Corri para Duruhl-ya. Adahab concordou em nos guiar de
volta, mas ele precisava de outro dia para finalizar seu contrato de noivado. O retorno me
tomou mais do que eu esperava. Suponho que eu deveria ter passado a noite em Duruhl-
ya. Passava pôr do sol quando cheguei. Vi os incêndios e...
Por um longo momento, eles se sentaram em silêncio. Gareth finalmente disse: - Eu
não conseguia pará-los.
Outra pausa, então ela perguntou: - Por que eles fizeram isso?
- Cuinn envenenou o poço. Dois homens morreram.
Rahelle desabou de uma só vez, encostada na parede. Gareth fechou os olhos,
descansando a cabeça contra a pedra áspera da parede. Ele sentiu os dedos, fortes e
magros, como um fio através dele. O contato trouxe uma onda de conforto inexpressável.
Pensei que você tinha ido embora, que estava em segurança longe daqui. Seus braços
doíam de vontade para segurá-la, embora ele estivesse dolorosamente consciente do risco
até mesmo desse toque em sua mão. Sua melhor esperança para a segurança dela estava
naquele disfarce de garoto. Ao contrário do Comyn, os drytowners não toleravam os
amantes dos homens.
Gentilmente, ele afrouxou os dedos dela. Quando ela se mexeu, ele sentiu o aumento
da tensão em seu corpo. Ela estava se esforçando para ouvir atentamente. Seus ouvidos
eram mais afiados do que os dele, mas agora que notara sua atenção, ele também ouviu
algo. O som abafado de um oudrakhi.
Quando Gareth se levantou um punhado de aldeões já estavam se reunindo em uma
direção lateral e deserta da aldeia. Seguindo-os, Gareth disse a Rahelle: - Adahab retornou
mais cedo do que prometera.
- Acho que não
A poeira e a areia se moviam como ondas baixas que não escondiam os cavaleiros se
aproximando. A companhia estava claramente em um ritmo desesperado. Seus cavalos
lutavam, as cabeças baixas, patas agitando ainda mais poeira. Na frente deles vinha um
oudrakhi, esforçando-se em suas rédeas e emitindo um som queixoso e vociferante. Gareth
pensou que era um animal que pertencia à aldeia e fugira no ataque. Os cavaleiros deviam
ter encontrado e percebido que certamente os levaria à água.
O s f i l h o s d o s r e i s | 214

Poeira cobriu os corpos dos cavalos e as roupas dos homens. Eles cobriam suas faces
inferiores com lenços, no estilo deserto. Mesmo assim, Gareth não confundia o estilo de
sua formação ou as espadas que pendiam presas em suas selas ou em suas costas.
Em pouco tempo, os cavaleiros e os aldeões se encontraram. Gareth cutucou Rahelle
para o centro dos aldeões, de modo que os dois não se destacariam. Não havia nenhum
traço do entusiasmo habitual pela chegada de tantos estranhos, sem murmúrios de
curiosidade, nenhuma criança se afastando para ver melhor, nenhuma das boas-vindas que
Gareth recebeu. Essas pessoas ainda estavam em choque e ainda não chegaram ainda na
plenitude de sua dor. Eles temiam mais ataques agora.
O mais importante dentre os cavaleiros puxou sua montaria para parar e largou a linha
de chumbo que prendia o oudrakhi. Com uma mão pousava no punho de sua espada, ele
usou a outra para soltar seu lenço.
- Eu sou Hayat, filho de Dayan, Alto Lorde de Shainsa! Quem fala por este lugar?
Filho de Dayan? Gareth não se lembrava de ter visto esse homem entre os cortesãos
na câmara de audiência. Com sorte, Hayat também não o conheceria. No entanto, homem
do lado direito de Hayat parecia familiar. Seu olhar brilhou ao ver Gareth e os músculos ao
redor de seus olhos se enrugaram em reconhecimento.
Gareth conhecia aquele olhar inabalável e avaliador, aqueles olhos cinzentos. Quando
ele vira esse homem antes, o fogo e a vergonha haviam corado aquelas bochechas
bronzeadas pelo sol das Cidades Secas.
A antiga sabedoria nos diz que apenas um tolo retorna a uma batalha que ele não
pode ganhar. O outro homem havia dito na ocasião. O homem sábio vive para lutar mais
um dia.
E então Merach tinha vivido.
Merach, braço direito de Dayan de Shainsa. Merach, cuja vida Gareth havia poupado
na emboscada na estrada para Carthon.
O s f i l h o s d o s r e i s | 215

Capítulo 24

Os aldeões se uniram, murmurando sob suas respirações.


- E então? - Hayat exigiu. - O fogo roubou suas línguas, assim como sua inteligência? O
que aconteceu aqui?
Ninguém se adiantou para responder. Ele apertou as mãos tão firmemente em torno
das rédeas que seu cavalo que estava cansado, embora firme, balançando a cabeça e
emitindo sons de protesto. Os lábios do homem recuaram mostrando seus dentes
surpreendentes e sua testa franziu. Gareth tinha visto essa expressão muitas vezes na Corte
de Thendera, geralmente nos rostos de homens com pouco controle sobre seus
temperamentos, homens que esperavam uma obediência instantânea, mas não tinham a
capacidade de encarar a realidade. Então, tal reação do povo ou o divertiria ou o irritaria.
Ele já tinha ultrapassado muito de sua posição ali pra agora não ter muito a temer por
tomar uma atitude. Ele sabia que esses homens descontariam sua frustração nessas
pessoas sem status ou protetores poderosos, pois não se importavam o suficiente com
servos e pessoas humildes, isso sem mencionar dependentes da família de cujas vidas tais
homens tornariam uma miséria.
Ele deveria avançar agora, chamando a atenção dos aldeões, que ainda não haviam
recuperado seus sentidos após o ataque? Ele deve tentar se passar por um deles ou Merach
o identificaria como o espadachim treinado de Carthon?
Enquanto Gareth hesitava, Merach cutucou seu cavalo para mais perto. - Olhe ao seu
redor, Lorde Hayat. Certamente essas pessoas lhe dariam respostas se pudessem. Não há
rebelião em seus rostos. Eles são ignorantes, supersticiosos, resistentes o suficiente para o
trabalho braçal, mas não sofisticados.
Hayat grunhiu em resposta. A tensão em suas características diminuiu. Ele deixou as
rédeas deslizarem um pouco através de seus dedos e o cavalo branco abaixou sua cabeça. -
Suponho que você, em sua sabedoria superior, pode me dizer o que aconteceu?
- Eu não pretendia informar o grande senhor do que ele certamente deduz pela
evidência de seus próprios olhos. Creio que já reconheceu que as marcas de queimaduras
não poderiam ter sido feitas por qualquer incêndio simples e acidental.
Gareth soltou sua respiração, inconsciente até aquele momento que a estava
segurando. Uma das crianças choramingou de forma estridente.
- As armas de fogo do demônio. - Hayat murmurou e então gesticulou para seus
homens. - Desmontem! Os cavalos precisam de água. Você e você, - ele apontou para dois
de seus homens - e vocês dois, - e então para Rahelle e um dos meninos mais velhos da vila
– ajudem eles. E cuidem dos equipamentos e arreios também, ratos de areia. Se um único
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anel de freio estiver faltando ou um único fio da cabeleira do meu cavalo estiver mal
penteado, vou arrancar tiras de suas peles!
Houve uma breve elevação de poeira quando os cavaleiros de Shainsa desmontaram e
removeram suas armas de suas selas. Rahelle e o menino levaram os cavalos em direção ao
poço.
- Você aí! - Hayat indicou Gareth com o movimento de um dedo. – Um passo à frente.
O resto de vocês, preparem uma refeição. Meus homens estão com fome.
As mulheres, assustadas, começaram a correr de volta para o centro da aldeia. Gareth
encolheu os ombros e abaixou a cabeça, tentando parecer tão confuso quanto os outros,
assim como assutado pela presença de tantos homens armados. Merach não seria
enganado... Mas Merach já tivera a chance de trair Gareth e não o fizera.
- Sua Magnificência. - Gareth murmurou e fez um movimento como se pretendesse se
ajoelhar como tinha visto os homens em Shainsa fazer.
- Oh, levante! - Hayat rosnou. - Se eu quisesse ver a parte de trás de sua cabeça, eu
teria a tirado do seu corpo. Eu quero ver seus olhos enquanto você fala comigo para ver se
você está dizendo a verdade!
Gareth fez uma demonstração de relutância, querendo demonstrar um medo de
levantar o rosto.
- Você parece ter uma pequena medida de inteligência. – Hayat disse. - Você tem uma
língua também? E um nome?
- Ga...Garrin, grande senhor.
- Garrin, é? Diga-me o que aconteceu aqui. Quem atacou esta aldeia? De onde eles
vieram?
- Sinto muito, grande senhor. Eu não sei. - Gareth manteve suas feições em branco.
Então Lorde Hayat pensava que podia ler a verdade nos olhos de outro homem? Era mais
provável que Dayan tivesse dado a seu filho o comando desta missão apenas com Merach
como garantia de mantê-lo fora de problemas. Sem dúvida, tinha sido ideia de Hayat correr
pelas Areias do Sol, independentemente do risco para os cavalos.
- Você não sabe? - Hayat perguntou em um tom incrédulo e desdenhoso. - Como você
pode não saber quem fez isso com sua própria aldeia? Afinal, você é um idiota? Ou você
sofre de cegueira seletiva, bem como de surdez?
- Eu...eu não estava aqui. - Gareth estendeu as mãos para frente de seu corpo para
mostrar sua roupa não danificada. - Eu tinha ido procurar por um oudrakhi que se desviara.
– Como se fosse um simples reflexo, ele virou a cabeça na direção da fera que os homens
de Hayat haviam seguido.
- Há alguém neste buraco de poeira de débeis mentais subumanos que sabe? Onde
está o chefe?
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- Grande senhor, ele está ferido...


- Eu não perguntei por sua saúde! - Hayat atingiu Gareth com um tapa sonoro no
rosto. - Eu perguntei onde ele está! Ou sua audição é tão defeituosa quanto a sua
inteligência?
O golpe fez Gareth cair. Quando ele levantou a mão até a boca, sentiu a liquidez do
sangue. Um dos anéis pesados de Hayat tinham aberto seu lábio.
Ele olhou para os dedos em incompreensão. Ele fora ferido antes, às vezes por
acidente no campo de esgrima ou em sua própria desatenção ou falta de perícia. Mas
nunca antes em sua memória um homem deliberadamente o atingira sem motivo.
Quando Hayat recuou a mão para atacar novamente, Gareth se encolheu. Ele fez isso
sem pensar, embora, mesmo quando afundou de joelhos, ocorreu a ele que parecer estar
exageradamente amedrontado ou ser ferido não seria uma estratégia ruim. Se Hayat
pensasse que ele estava muito abalado para falar, poderia valer a pena que estivesse
prestes a receber.
- Senhor. - Gareth ouviu a voz de Merach. - Não há necessidade de sujar suas mãos
com vermes como esse. Sua própria inteligência certamente revelará a habitação do chefe.
Gareth permaneceu como estava, agachado na poeira, até que os passos soando mais
baixos lhe disseram que Hayat e seus companheiros haviam se afastado. Ele ficou de pé,
mas não rapidamente para o caso de um deles estar observando. Fingindo mancar, ele se
dirigiu para o centro da aldeia.
Pela reunião de cavaleiros ao redor da cabana de Cuinn, o chefe não havia saído de
onde Gareth e Rahelle o deixaram. O choro de uma mulher se elevou acima das vozes dos
homens. Gareth ouviu os tons imperiosos de Hayat, depois um rumor rouco em resposta.
Ele se embrenhou na pequena multidão de aldeões.
- ... maldição dos forasteiros... – A voz parecia de Cuinn - ...não lhe devo nada.
- Lorde Hayat, gracioso e compassivo, deseja vingar o seu povo. - A voz de Merach
soou alta sobre os outros sons. Eles ficaram em silêncio, até mesmo a mulher que chorava.
- Você permitirá que essa afronta fique sem resposta? Justo agora que você ganhou um
protetor tão poderoso? Pense em seus filhos, se não em si mesmo!
- Eu não vou cumprimentar outro amanhecer... - A voz de Cuinn se tornou um
murmúrio indistinguível. Gareth não conseguia mais entender o discurso do chefe, mas o
sentido estava muito claro. Mesmo sem laran, Gareth não tinha a menor dúvida de que
Cuinn estava contando toda a história dos blasters e onde ele os tinha conseguido. Cuinn
preferia ver essas armas nas mãos dos homens cujo status e honra ele respeitava, do que
permanecer com aqueles que destruiram uma aldeia inteira. Era uma espécie de vingança,
firmada na crença de que Hayat e seus cavaleiros eram poderosos o suficiente para superar
as defesas dos fora-do-mundo.
O s f i l h o s d o s r e i s | 218

Claramente, Hayat também pensava assim. Ele saiu da cabana, dando ordens para
seus homens colocar um guarda no perímetro e se preparar para a batalha no dia seguinte,
mas seu comportamento não era o ato vazio de um covarde. Ele realmente acreditava em
sua vitória. Ninguém tinha ficado contra ele em Shainsa. Até agora, Merach garantira seu
sucesso nessa expedição.
Mas ninguém da companhia de Shainsa, nem mesmo Merach, entendiam o que eles
enfrentariam. Com toda a probabilidade, eles mesmos tinham invadido, queimado, tomado
escravos ou destruído aldeias inteiras. As ruínas de Nuriya e a desolação de seus habitantes
não estavam fora de sua experiência. Confiante na vitória, eles se ergueriam contra os
blasters usando espadas.
O grupo se dispersou, com os aldeões salvando o que podiam e cuidando dos feridos.
Dois dos homens de Hayat ergueram um pavilhão e o resto se aproximava da melhor das
cabanas restantes. Gareth ficou fora de seu caminho. Ele se sentia dividido entre sua
indignação pelo incêndio da aldeia, seu desejo de ver Poulos e suas forças sofrerem pelo
que haviam feito, e a tolice de qualquer ataque à base. Ele se lembrou que havia mais em
jogo do que uma simples retaliação. Se, por algum capricho do destino, Hayat vencesse,
isso colocaria os blasters nas mãos dos inimigos dos Domínios.
Apesar do horror que tinha sido a destruição da aldeia, os fora-do-mundo não eram a
pior ameaça aos Domínios. O perigo real vinha daquelas armas caindo nas mãos de homens
como Hayat. Gareth não tinha nenhuma esperança real de fazer Hayat desistir de seu
esforço para obter os blasters, fosse pela força ou persuasão, mas precisava tentar.
Imperfeito como ele era para a tarefa, ainda cabia a ele fazer o que fosse necessário para
evitar uma aliança entre Poulos e Hayat. Talvez ele pudesse semear a suspeita, crie uma
fenda, mas ele não tinha ideia de como poderia realizar isso.
Sentindo-se como um homem andando por um caminho entre duas catástrofes
iminentes, ele se aproximou do pavilhão. O telhado de pano fornecia sombra e as abas em
dois lados haviam sido arrumadas para admitir a pouca brisa. Uma pilha de cobertores, lã
tecida em padrões de distintivos de Shainsa, cobria o chão. Hayat se estendera nos
cobertores com a cabeça apoiada em uma mão, uma caneca na outra.
Um drytowner montava guarda do lado de fora bloqueando o caminho de Gareth. Ele
era um dos cavaleiros que carregavam sua espada nas costas, o cabo logo atrás do ombro
esquerdo. Um cinturão mantinha uma dupla de facas cruzando na frente de seu peito. -
Suma, rato de areia. A menos que você esteja procurando por uma surra.
- Por favor... - Gareth insinuou um tom de humildade desesperada em sua voz, como
ele tinha ouvido tantas vezes daqueles que procuravam os favores dele na Corte. - Eu
imploro para falar com o grande senhor...
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O guarda fez uma careta, claramente cético que um aldeão pudesse ter algo de
interesse a dizer.
- Deixe-o se aproximar, guarda. – Hayat chamou. - Ele fornecerá a diversão de um
momento, se nada mais.
Na sombra do pavilhão, Gareth caiu de joelhos. Surpreendeu-o como ele naturalmente
se prostrou, logo ele que nunca havia sido obrigado a se curvar nem a um superior.
- E então? - Os olhos de Hayat brilhavam quando ele perguntou. - Dificilmente creio
que você veio até aqui para mais punição. Então o que é?
Gareth respirou, lembrando-se de que era melhor manter a verdade o máximo
possível. - Esses fora-do-mundo, aqueles que o chefe falou... Eles não receberão um
emissário nativo. Você estará levando seus homens para a morte certa se tentar. Sim, uma
vez estiveram dispostos a negociar algumas de suas armas em troca de manter sua base
secreta. Mas esse pacto está quebrado agora. Eles insultaram a honra de Cuinn e, em troca,
ele envenenou o poço de onde eles tiravam a água.
Pela reação de Hayat, Cuinn não havia revelado essa parte da história.
- Dois deles morreram e outros adoeceram. Seu líder ordenou esse ataque. - Gareth
gesticulou para a fumaça ainda subindo dos restos ardentes das estruturas de madeira. -
Eles têm armas muito mais poderosas do que os blasters e não hesitarão em usá-las. Se eles
destruíram uma aldeia para evitar que Cuinn revelasse sua presença no mundo, você acha
que eles hesitarão em eliminar qualquer outra pessoa que possa dizer algo sobre eles?
Gareth parou. Ele já tinha dito mais do que era prudente. Sua língua parecia ter
adquirido vida própria por um momento.
Hayat não dispensou Gareth, apenas o estudou por um longo momento. Um canto da
sua boca se contorceu. Merach saiu de trás de um dos lados da tenda. O olhar de Hayat
cintilou para seu conselheiro e depois de volta para Gareth. - Como exatamente você sabe
tudo isso?
- Eu já vi a base.
- Mais do que apenas viu. – Hayat corrigiu.
Gareth abaixou a cabeça dele. – É como você diz, grande senhor.
- Humpf! Merach, o que você acha? Vale a pena ouvir este aqui e crer como verdade?
- Sua história explica o que vimos aqui. Não faria mal abordar essa base como amigos e
aliados, em vez de como conquistadores, apenas no caso do resto ser verdadeiro. Se esse aí
teve ligações com esses foras-do-mundo, ele poderia lhe ser útil, Lorde.
- E melhor não haver punição?
Merach inclinou a cabeça em reconhecimento. - Por enquanto.
O s f i l h o s d o s r e i s | 220

- Eu não confio nele. – Hayat continuou. - Ele não é como os outros. Ele tem olhos em
sua cabeça e uma língua na boca. - Ele parecia desejar mudar isso, mas não queria
prejudicar uma ferramenta útil.
- Ele parece familiar, esse Garrin. – Merach disse. - Eu já o vi antes...
Gareth se curvou novamente, desta vez para Merach, mantendo cuidadosamente seu
rosto sem expressão. - Em Carthon, meu senhor. Acredito que na praça quando eu cuidava
dos negócios de meu mestre.
- Carthon. - Merach repetiu, um traço muito sutil de ênfase. - Sim, deve ter sido. Um
comerciante, como me lembro.
- Você está muito longe de casa. – Hayat disse.
Gareth abaixou a cabeça mais profundamente.
- Em Carthon, ele poderia ter tido negócios com os Hali'imyn. – Merach disse. - Talvez
até tenha aprendido sua língua. Como é chamada? Chasta?
- Muitas vezes falei essa língua. - Gareth murmurou. - Conheço um pouco do idioma
dos fora-do-mundo também. É assim que sei o que relatei para Sua Magnificência.
Hayat grunhiu novamente. Então, depois de um momento de reflexão: - Ele pode
servir como tradutor. Sim, é isso! Merach, você vale seu peso em rubis! Pegue o rato de
areia e certifique-se de que ele não fuja. Descubra o que mais ele sabe. Nós vamos levá-lo
conosco amanhã e ver se ele está dizendo a verdade. Se não, ele será um bom exemplo
para mostrar a esses fora-do-mundo como fazemos negócios aqui.
Merach colocou uma mão no ombro de Gareth e o impulsionou, com firmeza, mas não
grosseiramente, na direção da cabana de Cuinn. Quando eles estavam fora do alcance do
pavilhão, Merach disse: - Eu deixaria você fugir como pagamento da minha dívida de honra,
mas isso garantiria sua morte. Hayat o acharia culpado de enganá-lo e não descansaria até
que colocar sua cabeça cortada em uma vara. Ele gosta da caçada.
Gareth levantou a cabeça para encontrar o olhar do outro homem. - Eu não fiz o que
fiz para exigir o pagamento no futuro. Você não me deve nada. O que eu disse para Hayat é
tudo verdade. Se ele tentar ameaçar os fora-do-mundo ou mesmo se ele não atacar, mas
acharem que ele vai, eles eliminarão todos vocês. Você não tem ideia de quão poderosas
suas armas são.
- Fogo de demônio.
- Não são demônios. É uma tecnologia de fora-do-mundo.
Merach fez um gesto desdenhoso, como se a origem das armas não importasse, mas
sua expressão permaneceu séria.
- Hayat está acostumado a seguir seu caminho apoiado nos guerreiros de seu pai, não
vai querer recuar. - Gareth disse. - Ele vai marchar para o acampamento Terranan, não se
importando com quem ofende ou coloca sem risco, agindo como se ele tivesse direito a ter
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o que quiser. Espadas são inúteis contra as armas lá. O que ele vai conseguir para si mesmo
e todos que o seguem é a morte. - Nisso, os olhos de Merach se estreitaram ligeiramente e
Gareth soube que seu ponto atingira uma ferida. - Olha, eu posso não ter dito isso da
melhor maneira. Hayat não me ouvirá, mas ele ouve você.
- A espada de um homem é apenas uma ferramenta a serviço de seu kihar. - Merach
disse como se estivesse citando algum provérbio.
Nenhum homem de honra fica sempre desarmado.
Eles tinham alcançado a cabana de Cuinn. Alguém tinha substituído a porta de
madeira carbonizada por um cobertor. - Permaneça aí dentro. - Merach, soando
genuinamente arrependido. - É para sua própria segurança. Se Lorde Hayat ver você
vagando pela aldeia, ele terá certeza de que você não é tolo ou está armando uma fuga.
Então nem mesmo poderei te salvar.
- Eu não vou fugir. - Gareth agarrou a borda do cobertor, criando uma abertura larga o
suficiente para entrar de lado. Os cheiros de madeira queimada, suor, de dor e pesar
fluíram do interior escuro. Ele se virou para Merach. - Irei com você amanhã para fazer o
que puder para evitar outro massacre. Eu falei sério sobre os perigos de ter algo com os
fora-do-mundo.
- O que Hayat é para você para que se comprometa assim a serviço dele?
- Eu não gostaria de vê-lo, ou a qualquer homem, morto por nenhuma razão além de
sua própria ignorância. - Gareth respondeu. - Além disso, matança não pararia com a morte
dele. Lorde Dayan retaliaria. Ele seria obrigado pela honra de parentesco a fazê-lo.
Merach inclinou a cabeça, os olhos sombreando. - De fato. Ele mandaria um exército
para vingar a morte de seu filho e herdeiro.
- E ele teria tão pouca chance quanto Hayat. A violência aumentaria até que nada mais
pudesse pará-la. Olhe para esta aldeia! Você gostaria de ver toda Shainsa reduzida a isso? -
Gareth se interrompeu, sua mente cheia de imagens de incêndios através das Hellers até as
planícies férteis de Valeron. Um vasto alcance de cinzas... Até mesmo Thendara em ruínas.
Sem esperar pela resposta de Merach, Gareth entrou na cabana. A escuridão o cegou
até os olhos se ajustarem. Seu coração, que estava martelando suas costelas, desacelerou.
Uma figura em um longo robe escuro e lenço na cabeça estava agachada ao lado da
cama onde Cuinn estava. Por um momento, Gareth achou que estava vendo Avarra, a Lady
Negra que conduzia os que estavam morrendo para a paz da morte, mas ali era apenas uma
mulher velha e quase viúva. Ela mergulhou um pano em uma bacia de água, torceu e
passou sobre a testa de Cuinn.
A mulher olhou para cima, seus olhos como borrões escuros no rosto oval pálido, e
voltou para sua tarefa. O chefe rolou a cabeça de um lado para o outro, murmurando
O s f i l h o s d o s r e i s | 222

incoerentemente. Gareth se inclinou contra a parede ao lado da porta e lentamente


deslizou para o chão.
Não havia nada a fazer, exceto esperar. Esperar e desejar que Rahelle tivesse o bom
senso de chegar ao cavalo, onde quer que o tivesse escondido, e escapasse para Duruhl-ya.
Suas próprias chances de sobrevivência eram quase inexistentes. Se pudesse, ele faria
outra tentativa de dissuadir Hayat, mas não acreditava que teria mais sucesso. Merach era
um homem de bom senso e inteligência, mas nem ele desafiava abertamente o filho de seu
mestre.
A mulher terminou sua tarefa e saiu. Horas se passaram. De tempos em tempos,
Gareth se levantava e se esticava, então acabou dormindo de forma incomparável,
despertando apenas quando a mulher voltou. Ela trouxera não apenas uma bacia com água
fresca, mas um jarro e um prato de grãos cozidos com um cheiro forte de fumaça e
ofereceu para Gareth. Ela repetiu o banho, mas desta vez Cuinn estava deitado já
parecendo morto. Algum tempo depois, Gareth ouviu o som da respiração de Cuinn e então
não ouviu mais.
Quando a mulher voltou pela terceira vez já era noite. Ela parou logo após a cortina de
cobertor, farejou duas vezes e se retirou. Alguns minutos depois, dois dos meninos mais
velhos da aldeia tiraram o corpo de Cuinn.
Sozinho, Gareth perdeu todo o sentido da passagem da noite. Ele não podia se deitar
na cama vazia de Cuinn. Sua mente, que estivera tão cheia de dúvidas e perguntas, ficou
em branco. Ele não se sentia calmo, ele se sentia vazio, vazio de propósito, vazio de pesar.
Eventualmente, ele dormiu.

~o ⭐ o~
Na manhã seguinte, um dos homens de Hayat veio dizer a Gareth para se preparar
para sair. Gareth recebeu alguns pedaços de pão, provavelmente do suprimento dos
homens de Shainsa, e lhe foi permitido beber e lavar o rosto e as mãos no poço. Uma
espécie de altar fora criado ao lado do poço, algumas peças de madeira parcialmente
queimada em que alguém havia desenhado com carvão a figura bruta de um sapo. Um dos
homens de Hayat se ajoelhara lá. Seus olhos estavam fechados e seus lábios se moviam
silenciosamente. Ele colocou um pedaço de frutas secas ao lado das flores secas no altar.
Sem pensar, Gareth ergueu uma mão para o seu amuleto. Se ele fingisse ser um
devoto de Nebran, mas não conseguisse fazer nem mesmo uma única oração por proteção,
alguém poderia notar. Ele ainda tinha algumas moedas escondidas nas dobras do cinto. Os
homens de Hayat podiam ser duros, mas não eram ladrões. Ele colocou uma pequena peça
de cobre ao lado das outras ofertas e ficou de joelhos imitando o outro homem. Ele não
tinha ideia do que era apropriado nas orações, mas ninguém o questionou. Talvez não
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houvesse um procedimento predeterminado e os homens simplesmente diziam suas


esperanças e preocupações. Ajoelhando-se ali, movendo os lábios, seus olhos se fecharam
contra a ruína da aldeia e a luz plana e intransigente, Gareth sentiu uma inesperada calma
se espalhar por ele.
Ele se assustou ficando em alerta ao som de cavalos, de homens chamando um ao
outro e gritando ordens para montarem. Ele se levantou e se arrastou para o grupo de
cavaleiros. Alguém pegou um par dos cavalos da aldeia e os guiava.
Rahelle! Cabeça dura, mulher teimosa! Gareth estava furioso demais para olhar
diretamente para ela. Ele a mandara embora, ela deveria estar segura! Em vez disso, ela se
tornou o menino que cuidava do cavalo de Hayat.
O próprio Hayat estava de bom humor. Ele riu alto quando ele fez seu cavalo branco
empinar e girar sobre suas patas traseiras. Um punhado de crianças da aldeia assistia,
silenciosas e de olhos arregalados. Merach estava sentado em silêncio em sua montaria
pura, não desperdiçando a respiração e a força de seu cavalo em um show ocioso. Ele olhou
para Gareth, seus olhos cinzentos sombrios.
Ele sabe que isso não é desfile de companhia. Talvez houvesse esperança se Merach
acreditasse no aviso.
O guarda indicou que Gareth devia montar uma égua cinza salpicada. Não havia sela
ou almofada, apenas uma capa feita de cordas. A linha de chumbo tinha sido enrolada sob
o nariz, através da boca do animal e depois amarrada em rédeas. Eles começaram e logo
estavam subindo nas colinas cheias de fuligem.
Gareth lutou para se manter em seu assento. Ele montara sem sela em algumas
ocasiões, mas sempre em um cavalo com passo suave e corpo macio. A espinha dorsal da
égua era ossuda e parecia uma crista de facas. Quando a trilha tornou-se mais íngreme,
Gareth segurou em sua crina para evitar deslizar. Por outro lado, as selas usadas pelos
homens de Hayat tinham lugares grossamente acolchoados para o conforto. Enquanto se
aproximavam da crista da colina, ocorreu a Gareth que descer seria muito pior, sem nada
entre suas partes sensíveis e as costas ósseas da égua. Rahelle, Gareth notou, estava
empoleirada em seu cavalo com aparente facilidade. Pelo menos ela se mantinha em seu
disfarce de menino do cavalo. Nenhum dos homens de Hayat olhava duas vezes para ela.
Merach, na liderança, levantou um braço para sinalizar uma parada. Hayat cutucou
seu cavalo ao lado dele. Gareth tentou imaginar como a base devia se parecer para homens
que nunca tinham visto um espaçoporto antes. A visão claramente excitou Hayat ainda
mais, embora ele tivesse mantido o bom senso para não galopar para baixo no resto do
caminho.
- Lorde Hayat, se podemos vê-los, eles também não podem nos ver? - Merach
perguntou.
O s f i l h o s d o s r e i s | 224

Gareth notou na expressão de Hayat, um brilho de frustração rapidamente se


transformando pela luz da razão. Ele era inteligente o suficiente para perceber que um
avanço controlado era sua melhor esperança de uma recepção amigável.
Ele provavelmente prefere uma luta aberta, Gareth pensou. Ele não podia ver os
homens se movendo no campo abaixo, mas ele não tinha a menor dúvida de que Poulos
sabia que os cavaleiros estavam ali, assim como seus números e armas. Poulos não era tão
idiota para descartar a possibilidade de uma retaliação da aldeia.
Hayat começou mais uma vez no caminho da colina. Ele manteve o cavalo branco em
um ritmo contido, com Merach próximo à ele. A trilha forçou os cavaleiros a seguir em fila
única. Os cavalos mergulhavam suas cabeças, percebendo a superfície desigual do caminho.
Ninguém tentou conversar. Os únicos sons eram o dos cascos, o de seixos sendo pisados e
uma ocasional expiração mais forte de um animal ou o bater de uma cauda.
Foi bom para Gareth essa descida mais lenta. Ele continuou deslizando na égua, e
então, quando não podia suportar a pressão, ele segurava o fino tórax com os joelhos até
que seus músculos da coxa queimassem com o esforço. Em pouco tempo, ele foi
alternadamente machucado e dolorido. Seus quadris pareciam ter sido torcidos fora de
suas órbitas.
Eles estavam a cerca de dois terços na colina, com o acampamento da base à vista,
quando Merach gritou um aviso e apontou. Hayat ordenou uma parada. Os cavalos se
aglomeraram. Por um momento, Gareth não pôde ver o que estava acontecendo, mas
então uma lacuna abriu entre o cavaleiro na frente dele e o cavalo de Merach. Ele viu uma
comoção na base da nave. Parecia haver muitos homens, mesmo presumindo que Taz e
Viss tivessem se recuperado.
Um dos homens, provavelmente Offenbach, correu para o prédio de escritórios. Uma
massa de luz brilhante, mais brilhante do que qualquer chama natural, inflamara abaixo da
nave. Retumbando, um som como trovão ecoou no vale. As pedras sob o cavalo de Gareth
tremeram. Seixos e poeira caíram no declive. O cavalo branco pareceu vencido pelo terror e
tentou virar. Atrás de Gareth, outro cavalo tentou se virar. Ele escorregou na rocha e
apenas a habilidade de seu cavaleiro o impediu de cair. A montaria de Gareth ficou com a
cabeça baixa, placidamente alheia a qualquer coisa além de uma chance para descansar.
O som aumentou, rapidamente se tornando ensurdecedor. A nave não estava mais no
chão. Havia uma lacuna distinta abaixo dela. Então subiu, a princípio lentamente, mas
aumentando a velocidade a cada momento que passava. Em pouco tempo, havia saído da
cratera a caminho do espaço.
O s f i l h o s d o s r e i s | 225

Capítulo 25

- Hai! - Hayat exclamou. - A vitória é minha! Veja como os covardes fogem diante de
mim!
Dificilmente estão fugindo, Gareth pensou.
Ele lutou para dar um sentido à cena abaixo. Certamente os contrabandistas não
abandonariam sua base, não com os edifícios intactos, as luzes brilhando, as caixas em suas
pilhas... Não, havia lacunas aqui e ali. Ele poderia não ter notado se não as tivesse movido e
ficado esgotado no trabalho.
Dois homens surgiram da sede. Um ele reconheceria em qualquer lugar: Poulos.
Com o enorme guarda em suas costas, Poulos assumiu uma posição de frente para a
trilha. Pelo ângulo de sua parte superior do corpo, ele estava olhando para os drytowners.
Tanto ele quanto o guarda empunhavam armas desconhecidas, cilindros longos nos
antebraços com suportes de energia perto dos punhos. A pele de Gareth se arrepiou,
embora não acreditasse que os fora-do-mundo sabiam que ele estava entre os cavaleiros.
Ele esperava que Nebran, ou qualquer divindade para quem esses shainsans tivessem
orado, os atendesse. Ele desejou que houvesse alguma maneira de fazer Rahelle sair dali,
embora isso fosse impossível agora.
Hayat percebeu que os homens abaixo não estavam apenas cientes de sua presença,
mas também estavam prontos para os problemas. Com um olhar para Merach, ele cutucou
o cavalo branco para baixo novamente. Os cavalos, captando a tensão de seus cavaleiros,
balançaram as orelhas infelizes.
No momento em que chegaram ao fundo da colina, um terceiro homem se juntou a
Poulos e o guarda. Gareth não o reconheceu, embora tivesse se encontrado com todos os
homens no acampamento. Os três mantiveram suas armas longas à vista e com uma
facilidade que demonstrava não apenas habilidade, mas confiança suprema. Esses homens
não tinham nada a temer de cavaleiros armados apenas com espadas. Gareth pensou no
poço envenenado e do ataque dos drytowners usando astúcia e engano. Talvez as
probabilidades não fossem tão desiguais quanto Poulos claramente presumira.
Por outro lado, Poulos destruira facilmente toda a aldeia.
Hayat gritou uma saudação razoavelmente educada que não tivera um efeito visível
nos fora-do-mundo. Poulos permaneceu imóvel, seu rosto firme, seu olhar nunca vacilando.
Quando Hayat continuou, cuspindo as frases tradicionais que cada drytowner reconheceria,
Poulos não respondeu. Offenbach se mexeu desconfortavelmente. Talvez ele tivesse
entendido um pouco ou quisesse pegar seu dispositivo tradutor, mas não ousava abaixar
sua arma. Por fim, quando Hayat estava em sua quarta ou quinta iteração e ficando
visivelmente impaciente, Poulos empurrou o queixo na direção de Offenbach.
O s f i l h o s d o s r e i s | 226

- Pergunte o que diabos ele quer.


Offenbach disse algo no dialeto das Cidades Secas, tão distorcido e sem gramática
clara que, se Gareth não soubesse o que o espaçonauta pretendia, poderia ter entendido
muito errado.
Hayat se virou para Merach com uma expressão de desdém. - Que tipo de resmungo
animal é esse?
Na pausa que se seguiu, Gareth chutou seu cavalo para frente. - Senhor magnífico, se
eu puder...
- Puder o que?! - O temperamento de Hayat mal estava sob controle.
- Atuar agora como tradutor?
- Merach, qual a sua opinião?
- Não creio que ele nos minta, meu Lorde. Ele não tem motivos para amar esses
forasteiros. - Merach quis dizer, depois do que eles fizeram na aldeia, mas se conteve.
- Vá em frente, garoto miserável! Mas no primeiro sinal de problema, esfolarei sua
pele de seus ossos.
Gareth se curvou o melhor que pôde na sela. Ele não esperava que Hayat concordasse
tão prontamente. Ele pesou e descartou a ideia de andar até Poulos. Um homem a cavalo
tinha vantagens psicológicas e táticas, mas ele não queria antagonizar desnecessariamente
com o chefe dos fora-do-mundo. Poulos seria sensível à indignidade de ter que procurar
alguém que ele considerava ter um status menor. Ficar de joelhos ali afetaria
negativamente o respeito que Poulos pudesse ter por ele, Gareth se inclinou sobre o
pescoço da égua, arrastou a perna direita sobre a garupa e deslizou para o chão. O ardor
disparou através de suas coxas internas e articulações do quadril. Ele se agarrou à crina,
forçando-se a respirar fundo. Ele não precisava fingir hesitação em se aproximar de Poulos.
Ele mal conseguia andar.
Os olhos do chefe dos fora-do-mundo se estreitaram quando Gareth parou, bem além
do alcance do braço e se curvou.
- Seu pequeno e furtivo traidor. O que você está fazendo com eles?
Deuses, isso não seria fácil.
Gareth tentou sem sucesso controlar o tremor em ainda suas pernas. Agora que ele
estava tão perto, ele tinha certeza de que nunca conhecera realmente o espaçonauta. Ele
disse, usando o Padrão Terran: - Você destruiu a aldeia.
- Então agora você trouxe a força policial local para acertar as coisas? Não achei que
você fosse tão idiota. Ingênuo sim, mas não estúpido.
Gareth respirou. Ele não ganharia nada respondendo a insultos. - Esses homens não
têm nada a ver com os aldeões. Eles são de Shainsa, do outro lado do deserto, e seu líder,
aquele sobre o cavalo branco, é o filho do Lorde daquela cidade. Ele estava
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cumprimentando você com a maneira respeitosa de seu povo. Talvez as palavras não se
traduzam corretamente sem as conotações culturais.
Quando Poulos considerou isso, sua expressão tornou-se um pouco menos
beligerante. - O que ele quer, então? O mesmo acordo que eu tinha com os aldeões? Diga a
ele, SEM CHANCES! Eu já cometi esse erro uma vez.
- Seria melhor falar com ele o senhor mesmo. Se eu puder traduzir...?
- O garoto fala sua língua. – Offenbach lembrou.
- Você vai saber se ele armar algo? - Poulos murmurou, sem tirar os olhos de Gareth e
dos drytowners além dele.
- Em qualquer coisa essencial, acho que sim. Embora não nos pontos mais delicados e
eu poderia cometer erros ainda piores. O tradutor não lida bem com variações regionais e é
definido para o dialeto da aldeia.
Poulos fez um som profundo em sua garganta. - Tudo bem então. Mas em primeiro
lugar diga ao chefe deles que, ao primeiro sinal de problemas, eles estarão todos fritos.
Mortos. Entendeu?
Gareth curvou-se novamente e voltou a Hayat, para quem ele se inclinou ainda mais
profundamente. Ele estava se acostumando com tudo isso e descobriu, para sua surpresa,
que o movimento ajudou a soltar suas costas.
Após algumas trocas, com Gareth indo para frente e para trás, as conversações
evoluíram o suficiente para Poulos para permitir Hayat e Merach para se aproximarem,
desmontados. Com passos lentos e sutis como foram avisados, Merach conseguiu
convencer Hayat a sugerir que, embora os shainsans procurassem um acordo pelas armas,
eles tinham muito mais a oferecer do que os aldeões.
- As notícias correm rapidamente através das areias e há muitos que procuram essas
armas de fogo para seus propósitos pessoais. - Gareth traduziu as palavras de Hayat. Ele
não acrescentou que o ataque a Nuriya só iria alimentar o desejo de obter tal poder
destrutivo. Em seguida, ele explicou: - Lorde Hayat diz que ele é um grande guerreiro entre
seu povo, capaz de lidar com tais... Acredito que o termo para as palavras que ele usou é
‘lixo estável’ em troca de proteção.
- Proteção, hein?
- Ele está se oferecendo para lidar com os habitantes locais, assim você não terá que
ser incomodado. - Gareth voltou para Hayat. – Lorde Magnífico, não creio que o chefe de
fora-do-mundo está disposto a ceder as armas do sol devido à maneira traiçoeira com a
qual os moradores trataram sua generosidade.
- Talvez ele possa considerar uma troca. – Merach sugeriu. - Temos muitas riquezas
Shainsa, como o nosso ouro filigranado que é sem comparação nas Cidades Secas. Esses
foras-do-mundo parecem ser comerciantes e os comerciantes sabem o valor do artesanato.
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Mesmo artigos diários podem tornar-se bens preciosos quando ninguém mais tem acesso a
eles.
- Bens preciosos, hmmm. - Hayat tirou um anel do dedo mínimo da mão esquerda. Ele
não obviamente ficou em dúvida de usar um de seus menores ornamentos pessoais, usado
no menor de seus dedos, mas não iria oferecer uma lâmina para um estrangeiro, nem
mesmo uma faca usada para comer.
Poulos examinou cuidadosamente o anel. Embora ele mantivesse sua expressão
impassível, Gareth detectou seu interesse na forma como ele virou o anel, testando seu
peso em suas mãos, correndo os dedos sobre o ouro. O rubi era de excelente qualidade ou
o filho do Lorde de Shainsa não o estaria usando.
Quando Poulos levantou os olhos após o exame, estava sorrindo. - Acredito que essa
discussão vale a pena continuar. Proponho um período experimental, com início após a
conclusão do meu negócio atual. Até lá estou certo de que poderemos confiar um no outro,
no entanto, não vou cometer um comércio de armas ainda. - Ele estendeu o anel.
Depois que Gareth traduziu, Hayat recusou o anel com um sorriso generoso e Poulos o
segurou como um sinal de boa vontade. - Que este seja o primeiro de muitos presentes que
trocaremos.
Poulos colocou o anel no bolso e sugeriu que a companhia montasse seu
acampamento na borda da base, bem longe das grades. - Descansem. A água está segura
agora e há o suficiente para seus animais também.
Nesse momento, a discussão parou quando uma nave de transporte apareceu logo
acima e começou a descer. O ar vibrou desagradavelmente e uma ventania começou. O
cavalo branco de Hayat se moveu de lado, as orelhas sacudindo, a cauda batendo
fortemente. Os outros cavalos bufaram e circulara enquanto seus cavaleiros lutavam para
mantê-los sob controle.
- Você! - Poulos gritou para Gareth sobre o barulho dos motores da nave espacial. – Vá
para o quartel!
O ultraje cintilou nas feições de Hayat, mas desapareceu quando Merach moveu sua
atenção para a nave se aproximando cada vez maior. O insulto feito ao kihar de Hayat por
essa apropriação imperativa de um membro de sua companhia teria que esperar para ser
cobrado.
Quando Gareth saiu correndo, ele olhou para Rahelle que já estava ocupada em
acalmar os cavalos. Ele desejou que conseguir pensar em uma maneira de levá-la com ele,
mas um cavalariço não poderia abandonar suas responsabilidades em um momento como
este.
Abaixando a cabeça, Gareth correu cambaleante. As correntes de ar giravam
violentamente pela agitação das nuvens de poeira. Ele passou pela porta aberta do quartel
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que estava um tanto escuro. As paredes tremeram com o som da nave descendo. O ar
ainda cheirava a desinfetante, porém menos intenso do que antes. Taz estava sentado,
largado contra a parede. Ele levantou a mão em saudação e apontou para o outro beliche.
Com a aproximação de Gareth, Viss levantou a cabeça. Ele disse alguma coisa, mas sua
voz era tão suave que Gareth não conseguia entendê-lo com tanto barulho.
Gareth levantou a voz. - Precisa de alguma coisa?
Viss fez um esforço ineficaz para girar um cotovelo e fez um gesto de beber. Gareth
encontrou uma caneca e uma garrafa de plástico com água. Ele encheu a caneca. A água
parecia e tinha um bom cheiro, mas sem usar sua pedra da estrela, ele não poderia ter
certeza. Poulos dissera que a água estava segura, então talvez Offenbach tivesse
encontrado uma maneira de neutralizar o veneno. Ele olhou para Taz que assentiu
encorajando e apontou para a garrafa ao lado de sua cama.
Gareth colocou um braço sob os ombros do doente e segurou a caneca em sua boca.
Viss engoliu a maior parte da água, depois deitou-se com um suspiro visível.
O som do pouso cessou. Um cavalo relinchou. O quartel foi fechado, uma prisão.
Gareth se perguntou se encontraria o guarda de plantão do lado de fora.
- Offen disse que você tinha partido. - Taz comentou.
- Eu voltei. Como você está se sentindo?
- Ah. Mais fraco do que um cachorrinho-de-lama5 de Vainwal. Mas estarei por perto
para a próxima estação chuvosa.
- Cachorrinhos-de-lama? Em Vainwal? - A referência fez Gareth se lembrar de Nebran.
- Os drytowners adoram um deus sapo;
- Mitos de ressurreição. Todo planeta tem. - Viss se interrompeu em uam crise de
tosse.
Gareth riu, embora a situação não fosse humorística. Aqui estava ele, discutindo
religião comparativa com um contrabandista espacial, quando Hayat podia estar concluindo
seu acordo.
- A nave decolou, - disse ele - e outra aterrissou.
- Cliente. – Taz disse como se isso expliquei tudo.
- Para o que está nas caixas?
Taz revirou os olhos enquanto retornava o olhar de Gareth, como se dissesse, óbvio, o
que mais?
Viss teve outro episódio de tosse. Gareth não gostou do som dessa tosse, chiando e
congestionada. Ele tinha ouvido falar de homens contraindo pneumonia depois de inalar
seu próprio vômito. Diziam que era muito ruim.
- Você estava nos meus sonhos... – Viss disse.
5
N. da. T.- ‘Cachorrinho-de-lama’: nome popular da salamandra Necturus Maculosus, muito comum nos EUA e Canadá.
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- Você estava muito doente. - Gareth disse, desconfortavelmente ciente de que Taz
estava ouvindo e se poderia se lembrar de sua própria cura.
- ...Cercado por uma luz azul...como um anjo...
- Você deve ter alucinado. - Gareth balançou a cabeça, esperando que parecesse
razoável. - Tudo o que fiz foi te dar água limpa para que seu corpo pudesse se livrar do
veneno.
- Sim, não vá transformar o garoto aqui em algum tipo de herói. - Taz disse. Um tom
em sua voz claramente indicava que ele não via bem alguém que fugia deixando seus
companheiros no meio de uma crise.
A acusação incomodou. - Eu fui para as colinas. Para a vila. Sabe o que aconteceu?
Poulos, - Gareth quase cuspiu o nome – queimou tudo com suas armas! Mulheres, bebês,
idosos, todos! Eles vivem na beira do deserto, mal sobrevivendo. Agora, aqueles que foram
polpados, não têm nada!
- Esqueça eles...
- Não me diga para esquecer! - Gareth não conseguia se lembrar de já ter ficado tão
irritado. Ele sabia que não era racional jogar isso nesses dois homens. Eles não tiveram
parte na decisão. Eles estavam sofrendo ali, doentes demais para levantar as cabeças,
enquanto a aldeia queimava. – Ouça... Se você estivesse lá...
- Não. Ouça você, garoto. Ou você não estava aqui quando eu e Viss quase seguimos o
Caminho Estrelado? Eu poderia jurar que você estava.
Gareth se recusou a ser desviado do ponto. - Se Poulos tivesse o bom senso de um
coelho-de-chifres saberia que Cuinn nunca deixaria aquele insulto sem revide. - Ele fechou a
boca, chocado por estar prestes a justificar o envenenamento do poço.
Taz suspirou. - Garoto, não importa. Sobre os aldeões, foi muito ruim, mas quando
tudo está dito e feito, esse é o caminho devemos trilhar. Nesses planetas com regiões de
pouca água, se não for uma coisa, é outra. Guerras entre Lordes, pragas ou simplesmente
estar no lugar errado na hora errada causam tragédias. Melhor eles aprenderem
imediatamente a não mexer conosco. Se eles nos atacam, nós os atacamos de volta mais
forte. Este não é um negócio para corações moles.
O peito de Gareth doeu com a batida de seu coração. Sua respiração saiu tão rápida e
quente como se tivesse acabado de correr todo o caminho de volta para a aldeia. De certa
forma, em sua mente, ele tinha feito isso. Que tipo de homens eram estes, amigáveis o
suficiente um momento e sinceros e rudes no próximo? Que tipo de negócio Taz fazia e que
atraia esse tipo de homem?
- O que nos Nove Infernos há nessas caixas? - Gareth perguntou.
O s f i l h o s d o s r e i s | 231

O olhar duro de Taz para Gareth tinha um brilho que claramente dizia que homens
tinham morrido antes por fazer essa mesma pergunta. Viss ficou em silêncio, exceto pelo
chiado de sua respiração.
Gareth engoliu em seco. - Desculpe. Não é da minha conta.
- O capitão decidirá se é ou não. Ele contará a você se decidir assim. Mas preciso dizer
que não é um bom momento para perguntar isso. Não que eu não seja grato pelo que fez
por nós. Você cuidou bem de nós quando você poderia ter fugido. Mas... - Taz balançou a
cabeça, recostou-se contra a parede e fechou os olhos.
- Como um anjo... - Viss murmurou. Gareth desejou que ele calasse a boca sobre isso.
Gareth foi até o beliche vazio de Robbard que estava sem nenhuma roupa de cama e
tinha apenas uma almofada. Ele sentou-se, apoiou os cotovelos nos joelhos, descansou o
rosto em suas mãos e tentou não pensar sobre o que poderia estar acontecendo lá fora.
Ocorreu-lhe que ele não tinha motivos para ficar no quartel. Nem Taz e nem Viss
estavam em forma para pará-lo. Ele poderia se esgueirar e... E então o que? Desarmar
sozinho tanto a companhia de Shainsa quanto os fora-do-mundo?
Ele simplesmente teria que esperar. Esperar e refletir o quão mal preparado estava
para lidar com qualquer problema sério.
Balançando a cabeça, ele disse: - Se tiver alguma chance de Poulos me manter aqui,
gostaria de saber o que está sendo vendido. Ok, você não pode me dizer o que há nas
caixas. Como sobre as naves... Há mais de uma, certo?
- O planejado era ter três, mas uma foi perdida na saída de Ephebe depois de um
acordo ruim. - Taz, evidentemente decidindo que este era um tópico seguro o suficiente,
continuou a história. - Não que fosse uma grande perda, realmente. Eygen, nossa
engenheira cuidava tanto dessa nave, passando muito tempo em microgravidade a ponto
de seus ossos não aguentarem mais a superfície de um planeta ou lua, então ela nunca
deixa a Lamonica. Bem, Eygen tinha concertado, unido as peças da tal nave tantas vezes,
que você poderia ter aberto ela com um... - E aqui ele usou um termo que Gareth não
conhecia - ...facilmente. A regra geral é manter um a bordo, um verdadeiro incômodo, na
nave principal. Quando adquirimos um cliente em órbita, nos revezamos com cada nave.
- Então elas nunca estão no mesmo lugar ao mesmo tempo. – Gareth completou.
Defensivamente, isso fazia sentido. Sem reforço, com uma nave sem capacidade de pouso,
não podia se dar ao luxo de ter a carga ou tripulação encalhada, sem qualquer meio de
alcançá-los. Ele se perguntou por que Poulos tinha vindo ao solo. Talvez o que estava nas
caixas não poderia ser confiado apenas à tripulação.
- Ephebe. - Ele repetiu, girando o nome em sua mente. Ele já o ouvira antes, algo sobre
uma intervenção da Federação lá. - Não foi em Ephebe que houve alguma grande ação
militar?
O s f i l h o s d o s r e i s | 232

- Sim. - Taz sugou o ar pelos dentes. Do lado de fora, os homens estavam gritando uns
com os outros. – Ruim para os moradores, bom para os negócios. Agora há uma dúzia de
Ephebes a mais todos os dias. Deuses de Hyades, que bagunça! Eu ficarei tão feliz quando
puder sair e encontrar algum bom e pequeno planeta de que ninguém nunca ouviu falar.
Se você nos encontrou, então outra pessoa te encontrará, Gareth quase disse. Então
duas partes de seus pensamentos se uniram. A Lamonica estivera em Ephebe...A Ephebe
que a Federação sentira necessidade de subjugar... Bom para negócios... Sua mente ecoou.
- Armas! - Gareth exclamou. - Vocês são comerciantes de armas, contrabandistas,
vendendo para planetas que se rebelam contra a Federação.
- Eu nunca disse isso. E nem você.
Gareth pegou uma onda de emoção na mente do outro homem e isso foi confirmação
suficiente. Não admirava que Poulos tivesse se estabelecido em um local remoto, bem
longe dos Domínios que ainda poderiam ter contato por rádio com a Federação.
Só então, uma figura apareceu na porta, vista em silhueta contra a luz do lado de fora.
Era o fora-do-mundo que Gareth não conhecia.
- Você trabalha. – O tripulante disse tentando usar o dialeto local.
Gareth ficou de pé. - Eu entendo o Padrão Terran. - Ele disse nessa linguagem.
- ...Um anjo... - Viss murmurou.
O espaçonauta franziu a testa. - O que há de errado com Viss?
- Eu não sei. Sua tosse tem um som ruim.
O tripulante hesitou. Por tudo que Gareth sabia, os dois podiam ser amigos, assim
como os companheiros de guerra. - Nós vamos levá-lo em nossa última jornada. A nave do
setor Castor tem um médico. Então, quanto mais cedo você parar de falar e vir comigo,
mais cedo ele receberá ajuda.
- O que preciso fazer?
- Carregar caixas na nave. - O tripulante olhou para Taz, como se Taz tivesse criado
uma crise de trabalho deliberada ao ficar doente. Taz deitou ainda mais em seu beliche.
Gareth seguiu o tripulante, cujo nome era Jory, para as pilhas de caixas. Havia apenas
três, com ele e Offenbach. Taz e Viss não estariam aptos para o trabalho por mais algum
tempo. Offenbach dirigiu o veículo-robótico, com Gareth e Jory carregando e
descarregando as caixas em cada extremidade. Os braços dentados do veículo ajudaram,
fazendo com que o trabalho fosse relativamente mais fácil.
Poulos estava dentro da nave, direcionando a arrumação das caixas. Ele continuava
olhando na direção dos drytowners, embora estivessem a alguma distância.
Um dos cavaleiros correu em seu cavalo para a trilha na crista, provavelmente
buscando seus animais, provisões e a tenda de Hayat. Rahelle tinha arrumado os outros
cavalos sem rapidez e alguns mancando. Um de cada vez, ela estava levando-os à área da
O s f i l h o s d o s r e i s | 233

água. Merach estava de pé, a mão na espada, alerta. Hayat, por outro lado, estava
reclinado na sombra lançada por seu cavalo, apoiado em uma sela enfeitada com seu
próprio cobertor. Ele não poderia estar confortável, mas havia uma certa dignidade em sua
pose. Isso podia ser todo o luxo que um cavaleiro do deserto teria desejado.
A meio caminho em seu trabalho com as pilhas de caixas, Offenbach parecia horrível.
Ele estava suando muito, respirando pesadamente e ao redor de sua boca havia um tom
cinzento. Jory também estava tendo dificuldades, embora fosse mais jovem e mais apto.
Gareth terminou de carregar uma das caixas até a rampa da nave, e caminhou até
onde Poulos e o guarda estavam. - Offenbach precisa de um descanso.
- Eu não te contratei como consultor médico.
- Com todo respeito, senhor, você o fez quando me pediu para cuidar dos homens
doentes.
- As janelas do trânsito não se acomodam por nossos desejos. Não podemos nos dar
ao luxo de desacelerar agora. - Poulos olhou para cima, além do céu nebuloso. - Offen! Dê
um tempo! O garoto e Jory vão continuar.
- Capitão... - Gareth se aproximou e abaixou a voz. O guarda olhou em sua direção,
depois voltou a examinar os drytowners. - Hayat sabe o que há nas caixas.
- O que você quer dizer? Quem disse a ele? Você?
- Eu não sou um idiota. – Gareth retrucou. - Eu percebi sozinho e, se eu o fiz, Hayat
também. E se ele não percebeu, Merach sim. Eles sabem que você não está carregando
tapetes ou perfumes finos, não aqui onde ninguém tem dinheiro para comprar tais coisas.
Na forma como eles pensam, há apenas um tipo de bens comerciais que valem toda essa
segurança e apenas uma razão para destruir a aldeia por isso. - Ele parou para deixar Poulos
preencher o resto do argumento por si mesmo.
Poulos se aproximou de Gareth. - Você está apenas meio certo. A maior parte dessa
coisa não é para guerrilhar em solo. São peças de reposição para armas de naves, ligadas ao
Setor de Castor. Só temos armas de mão suficientes para nós mesmos e algumas caixas de
blasters desatualizados demais para o comércio, e a maioria deles estão quase fora de uso.
- Então os que você deu para Cuinn...
- Eram pouco mais que bugigangas extravagantes. Normalmente, o acordo funciona
muito bem. O chefe frita alguns animais de caça, depois prende o blaster em um bastão
para que todos se curvem e ninguém percebe que está sem poder de fogo. Mas Cuinn ficou
ganancioso... E, bem, você sabe o resto. - Poulos deixou expirou cansado. – Não há nada a
ser feito sobre isso agora.
- Hayat não vai aceitar isso como resposta. Ele vai pensar que você está tentando
enganá-lo.
O s f i l h o s d o s r e i s | 234

- Então é melhor você orar para todos os deuses que existam aqui para que ele nunca
descubra. - Por seu tom e a mudança em sua postura, Poulos indicou que a conversa tinha
acabado.
Indo e vindo várias vezes, Gareth e Jory carregavam uma caixa após a outra para o
veículo-robótico, então Jory dirigia e Gareth se pendurava na lateral para a viagem lenta e
balançada até a nave. Então o ciclo se repetia. Gareth nunca tinha pensado em si mesmo
como sendo alguém muito forte, mas ele conseguiu aguentar até a mais pesada das caixas.
Mesmo assim, Jory fez muito também.
A pilha de caixas diminuiu progressivamente. Uma das últimas estava em más
condições, sua superfície desgastada e amassada. As caixas podiam ter sido projetadas para
suportar o manuseio rude, mas esta tinha sofrido mais do que um único manuseio. No
processo de movê-la, ela escorregou das mãos de Jory e caiu em um canto. Quando Gareth
se inclinou para arrumá-la, ele viu que uma das travas tinha se desfeito. A tampa estava tão
desgastada que ele não conseguia fechá-la sem desativar as outras travas para reposicionar
a tampa. Uma camada de material claro, provavelmente destinada a amortecer um choque,
não ocultou as letras dentro da caixa.
Cepheid6 X pistolas de luz.
Fosse o que fosse, Gareth teria apostado todo o Castelo Comyn de que havia mais
daquilo nas outras caixas.
- Não assim. Me deixe cuidar disso. – Tomando de Gareth, Jory se inclinou com força
sobre a tampa. Ele cuidou das travas, primeiro a mais próxima, depois a diagonal em frente.
O veículo-robótico levou uma eternidade para alcançar a nave, ou talvez só parecesse
assim. Eles encontraram Offenbach caído no chão ao lado da rampa de transporte. Sua
respiração foi difícil. Poulos estava dando ordens para decolagem com a voz rouca de
cansaço.
Gareth se agachou sobre seus calcanhares ao lado de Offenbach. O pensamento lhe
ocorreu de que, de um jeito ou de outro, quando os fora-do-mundo e os darkovanos se
encontravam as pessoas morriam. Os primeiros anos de contato com a Federação tinham
sido repletos de acidentes e mal-entendidos. Ele foi ensinado em história política e mas
parecia ter entendido muito pouco do custo humano envolvido. Nenhum de seus tutores
havia mencionado aldeias queimadas, crianças com olhos vazios ou homens como Robbard
ou Viss.
Offenbach lambeu os lábios rachados.
- Vou te trazer um pouco de água.

6
N. da T. – ‘Cpeheid’: estrela variável de um ciclo regular de brilho com uma frequência relacionada à sua luminosidade,
portanto, permitindo a estimativa de sua distância da Terra.
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Gareth encontrou várias das garrafas plásticas e encheu-as dos barris. Não havia muito
à esquerda, pois os cavalos drenaram o fornecimento. Quando ele se aproximava da nave,
notou o veículo-robótico que se dirigia para sair do caminho levando o guarda, Offenbach e
Jory. Um estrondo soou na nave. Os motores soaram e os bicos alongados na parte inferior
começaram a brilhar.
- Suba a bordo! - Jory gritou sobre o crescente barulho. Ele desacelerou o veículo-
robótico para Gareth pegasse as barras de segurança ao lado. Até que a nave alcancesse
altitude suficiente, a conversa seria impossível.
Gareth ajudou Jory a colocar Offenbach em sua cama no prédio da sede. Offenbach
estava respirando um pouco melhor agora. Gareth pensou que ele melhoraria com o
descanso.
Como Offenbach estava exausto demais para pilotar com segurança a nave, como era
o plano original, Poulos tinha ido embora.
- Posso te dizer que ele não ficou feliz em deixar Deeseter para trás. - Jory disse para
Gareth. – Mesmo não havendo escolha. Não com eles aqui. – Ele se referia aos drytowners.
Deeseter? Então esse era o nome do guarda.
Com Taz e Viss fora de ação, Offenbach também e agora com Poulos fora... Não era
uma boa situação, mas Gareth não achava que os contrabandistas entendiam o quão
vulneráveis estavam.
O s f i l h o s d o s r e i s | 236

Capítulo 26

- Acha que Taz vai ficar de pé em breve? - Jory tinha os olhos semiserrado por causa do
sol vermelho se inclinando no horizonte, já bem tarde. Ele e Gareth, tendo terminado de
cuidar de Offenbach, ficaram na porta da sede, olhando para o quartel.
Gareth deu de ombros. Ele parecia ter se tornado o curandeiro do acampamento,
embora não tivesse o conhecimento adequado. Ele deu um palpite conservador. - Amanhã,
talvez?
- Bom. Se ele puder dirigir, enviaremos os dois no veículo-robótico para obter mais
água.
- Pode não ser uma boa ideia esperar. – Gareth disse. Com o olhar ele indicou Rahelle
liderando dois cavalos à área da água. Os contrabandistas não tinham contado com o
quanto os cavalos precisavam de água, mesmo aqueles animais criados no deserto. Seria
perigoso arriscar ficar sem água em um momento em que qualquer coisa podia dar errado.
Gareth disse em uma voz relativamente alta.
Jory não respondeu imediatamente. Sua testa se franziu e ele começou a mastigar seu
lábio inferior, depois se percebeu e parou. Uma coisa era cumprir as ordens que recebia
para quando fosse um líder temporário, outra diferente era ter que tomar decisões
inesperadas. Jory não era idiota. Ele entendia claramente o ponto de Gareth e os riscos de
enviar a maior parte dos homens a seu dispor.
- Você tem um plano melhor? - Jory perguntou.
Sim, arrume tudo e saia daqui! Encontre algum outro planeta!
Em voz alta, Gareth disse: - Deixe-me ver se Taz consegue se sentar. Se ele puder
dirigir, isso vai deixar você e Deeseter em guarda aqui. Offenbach também, uma vez que ele
tiver descansado.
Jory esfregou o lado do nariz. - Sim, será uma coisa a menos para nos preocupar se
estivermos abastecidos. Não gosto da ideia de esperar até que o capitão volte. Tem certeza
de que pode lidar com isso? Depois de transportar essas caixas hoje?
Uma inspiração repentina explodiu sobre os pensamentos de Gareth. - Vou precisar de
ajuda.
- De quem? Das rochas?
Gareth gesticulou para o acampamento dos drytowners.
- Eles? Você está louco?
- Nenhum guerreiro das Cidades Secas se rebaixaria ao trabalho manual, mas há o
menino dos cavalos. Ele parece forte o suficiente. - Gareth refletiu que, se conseguisse levar
Rahelle para longe de Hayat, seria porque Merach, não Hayat, achava que era uma boa
ideia.
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- Você não está esquecendo que ele é o cavalariço deles? Não gosto da ideia de pedir
ajuda a qualquer um relacionado a esses lordes da guerra locais, se eles aceitarem, claro.
- Hayat não se opôs quando Poulos me mandou para o quartel. Posso dizer que o
capitão precisa de mim e do menino dos cavalos. - Gareth deu de ombros. - Esse tipo de
coisa acontece o tempo todo como forma de estabelecer dominância. Não acho que Hayat
recusará, mas se ele o fizer, não estaremos piores do que estamos agora. Se acontecer, vou
descobrir outro meio ou farei o trabalho sozinho. Mas se ele aceitar, estará menos
propenso a nos desafiar em outros assuntos.
Jory concordou que isso seria uma coisa boa e disse a Gareth para tentar. Gareth saiu
em direção ao acampamento dos drytowners, onde a tenda de Hayat já havia sido erguida.
Os tecidos laterais haviam sido abaixados. Hayat devia estar lá dentro, relaxando na sombra
e privacidade. Merach e outro homem estavam de guarda.
Quando Gareth se aproximou, Merach ficou alerta, a mão no punho da espada. Gareth
parou e curvou-se, um pouco menos baixo do que antes. - Lorde Merach, vim pelo garoto
dos cavalos. O capitão fora-do-mundo reivindica seu serviço.
O tecido que servia como porta se abriu. Hayat colocou a cabeça para fora. – Para
que? Ele não tem cavalos para serem cuidados.
- Grande senhor, o garoto dos cavalos é necessário para ajudar a carregar os barris de
água.
Merach se inclinou para murmurar: - Lembre-se, meu senhor, que dois desses homens
morreram pela água envenenada. - Assim, ele sutilmente lembrava a Hayat que os
contrabandistas estavam sem muitos braços fortes.
Hayat assentiu em compreensão. Ele acenou os dedos na direção da área da água. -
Muito bem, então.
Gareth se curvou várias vezes ao recuar. Rahelle terminou de dar água aos cavalos e
estavam os levando de volta ao acampamento dos homens de Shainsa. Ele viu a sutil forma
como que ela o cumprimentou com um aceno de cabeça, como se estivesse avisando ou se
preparando para uma nova crise. Então ela abaixou a cabeça e continuou.
- Rakhal! - Ele chamou e se aproximou em uma pequena corrida.
Ela parou e esperou por ele, mexendo na poeira do chão com um pé. Ele parou a
distância de um braço, buscando na memória a última vez que eles conversaram. Havia
tanto que ele queria dizer, mas não encontrou nenhuma palavra que pudesse expressar
adequadamente.
Para um momento fugaz, ela encontrou os olhos dele. Sua postura não mudou. Ela
ainda olhava para todo mundo como um aldeão tímido, exceto pelo sutil brilho no olhar,
claro e intransigente.
O s f i l h o s d o s r e i s | 238

Ele limpou a garganta. - Você deve ajudar a trazer água do poço. Os fora-do-mundo
precisam de outro braço forte.
- Esse é o seu trabalho, não é? - Rahelle franziu a testa. - Você não pode realiza-lo bem
o suficiente sozinho? Hayat já está ciumento com seus trabalhadores o suficiente com seu
kihar como está. Provavelmente ele verá essa ordem como uma afronta pessoal.
- Ele deu sua permissão.
Ela se endireitou e parou de desenhar círculos na poeira com o pé. Um dos cavalos
cutucou o lado de sua cabeça. - Haverá um preço. Ele não renunciará facilmente a qualquer
coisa que considere ser dele.
- Ouça-me. – Gareth disse, controlando o impulso de agarrá-la pelos ombros. - Você
está absolutamente certo. Hayat está acostumado a conseguir o que quer, mas Poulos
também está. Nenhum deles realmente aprecia o poder destrutivo do outro ou tem
vontade de usá-lo. Esta barganha que eles conseguiram é suscetível a desmoronar com a
menor coisa dando errado... E algo vai dar errado.
Ela soltou a respiração com um som que indicava cansaço. - Sempre dá. Essa é a
primeira coisa racional que você disse.
- Quando isso acontecer, - ele continuou - não haverá nenhum lugar seguro neste vale
inteiro. O lugar menos perigoso, no entanto, vai ser estar com os fora-do-mundo. Eu prefiro
ter você aqui, com os homens de Hayat vindo para nós com espadas, do que lá onde Poulos
e seu povo irão com seus blasters.
As bochechas de Rahelle ficaram pálidas. Na intensidade do momento, em seu desejo
fervoroso de fazê-la entender, Gareth captou uma imagem cintilante de sua mente. A
aldeia em chamas.
Por que você não continuou indo para longe? Ele queria perguntar e então percebeu
que conhecia a resposta. Agora eles estavam ali, cada um tentando proteger o outro.
Ele abaixou a voz. - Eu nunca quis que você se arriscasse por mim.
Por um longo momento, ela não respondeu. Seus lábios estavam pressionados como
se ela estivesse tentando abster-se de falar. Então, disse: - Você fez uma confusão três
vezes.
- Sim. - Vendo sua reação assustada, ele completou. - Eu fiz tudo errado. Mas tenho
que continuar tentando.
- Então, - ela disse com outro daqueles olhares surpreendentes - vamos tentar juntos.

~o ⭐ o~
Taz não só foi capaz de sentar-se, mas também estava procurando uma desculpa para
sair ao ar livre.
O s f i l h o s d o s r e i s | 239

- Passe tempo suficiente em uma nave espacial e a última coisa que você vai querer
fazer em solo é deitar na cama e olhar para as mesmas paredes cinzentas.
Taz dirigiu o veículo-robótico, mantendo-se em seu assento enquanto Gareth e Rahelle
enchiam, carregavam e empilhavam os barris de água. Rahelle trabalhou de forma
constante, sem reclamar, embora ela ficasse visivelmente tensa para levantar os barris
cheios.
Os cavalos tinham feito uma confusão enlameada em torno da área de água, mas que
tinha secado quase totalmente pelo calor e o movimento do veículo-robótico. O sol tinha
desaparecido atrás do cume ocidental e as sombras longas e inclinadas tinha ido do roxo ao
preto. As linhas de luzes amarelas brilhavam contra a escuridão e as rochas negras. Jory,
observando na lateral do campo, saiu para ajudar Taz a voltar ao quartel. Rahelle fez a sua
parte na descarga e empilhamento dos barris, sem dizer uma palavra, então se arrastou de
volta ao acampamento dos homens de Shainsa.
Uma refeição embalada esperava por Gareth no quartel. Sentado no beliche de
Robbard, ele a abriu, mas mal provou a comida. Viss estava roncando de um lado e Taz do
outro. Ele pretendia descansar ali por um momento antes de se encontrar com Jory e
Deeseter. Talvez Poulos estivesse logo de volta, talvez com mais homens, talvez com o
anúncio de que eles estavam indo embora...
Acordando sem nem perceber que tinha dormido, Gareth se sentou sobressaltado e
esfregou suas pálpebras. Pelos demônios de Zandru, ele não tinha a intenção de cair no
sono! Ele esperava que não tivesse dormido por muito tempo ou em sono muito profundo.
De qualquer forma, se tivesse feito isso, podia ter acordado com a espada de Hayat em sua
garganta. Ou nem ter acordado.
Ele ouviu o som de uma discussão acalorada antes mesmo de entrar no edifício sede
do QG. A forma volumosa de Deeseter, sua silhueta contra a luz artificial, bloqueou a visão
de Gareth. Offenbach estava discutindo daquela forma lenta, baixa, típica dele, em
contraste com a voz elevada de Jory.
- Eu digo para deixá-los ir, explodir uns aos outros e nos deixar de fora de seus
assuntos! Quanto tempo o capitão espera que nós... - Jory se virou em alerta.
- Sou eu. - Gareth disse quando todos se viraram para ele. - Qual é a organização dos
turnos de vigia para esta noite?
Jory olhou para Offenbach e, em um movimento sutil e rápido, Gareth compreendeu o
dilema de Jory. O comando tinha sido dado a ele, mas Jory se sentia profundamente
desconfortável em comandar sobre Offenbach, que sempre tinha sido seu superior.
Offenbach não estava desafiando Jory. Era a própria falta de experiência que minava a
confiança de Jory.
- Dois e dois. – Jory disse. - Você e eu, Offen e Deeseter.
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Gareth acenou com a cabeça. Fazia sentido para unir os dois mais fortes deles com os
mais fracos.
Então Jory disse: - O capitão disse que você pode ter um blaster.
Algo se quebrou em Gareth. Uma explosão de horror reflexiva deixou o deixou
trêmulo e com náuseas.
- Eu... – Ele gaguejou. - Eu não saberia como usar um.
- Faça como quiser. - Jory deu de ombros. – Eu vou dormir com o meu debaixo de meu
travesseiro, pronto para usar.
Deeseter, que aparentemente tinha uma coleção de armas de cada planeta onde ele
tinha trabalhado, ofereceu a Gareth uma faca longa, de lâmina serrilhada ao longo de sua
borda exterior curvada, e um longo bastão. Gareth tinha praticado com um bastão muito
parecido com esse, embora sem as marcas curiosas que pareciam sangue seco
serpenteando ao redor de cada extremidade.
Eles começareraseu turno. Jory estava quieto, focado. Gareth tentou imaginar a si
mesmo como alguém, não o Race Cargill do Serviço Secreto Terran, mas sim como seus
melhores instrutores de espada. Talvez seu tutor, o velho guarda sombrio que tinha lutado
na Batalha da Antiga Estrada do Norte, pouco antes da Federação deixar Darkover. Ele não
respondia as perguntas de Gareth sobre como tinha sido. Às vezes, depois de perguntar
sobre isso, Gareth notava o brilho nos olhos do velho, então ele tinha que tomar cuidado
porque sabia que a próxima luta seria para valer, nada contida, sem pontos dados de graça.
O que acontecia depois não seria uma lição de técnica, mas sim uma lição de sobrevivência.
Assim como esta noite seria.
A onda inicial de adrenalina tinha sumido, um pouco mais rapidamente do que
aconteceria se ele já não estivesse tão cansado, embora estivesse alerta a cada som
noturno. Ele conseguiu encontrar um equilíbrio entre o coração alerta batendo forte, a
boca seca e o sonambulismo. Ele estaria pronto no momento necessário. Pelo menos, ele
esperava.
Perto do fim de seu turno, Gareth perguntou a Jory do que se tratava a discussão com
Offenbach. A expressão de Jory escureceu. Ele disse, com um brilho em seus olhos
desaparecendo, um olhar rápido para as estrelas. - As coisas estão esquentando. Nós
vendemos, os clientes compram, isso é tudo. - Pela emoção mal disfarçada por trás de suas
palavras, isso não era tudo. Gareth não precisava de laran para ver quão profundamente
preocupado o fora-do-mundo estava.
Se as coisas estavam ‘esquentando’, se houvesse conflito aberto entre os
contrabandistas e os rebeldes que eles forneciam... Se a Federação seguisse os rebeldes até
ali... Gareth soltou um suspiro tenso. O Lorde de Shainsa e seus seguidores seria o menor
de seus problemas.
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Vamos voar esse falcão quando suas penas tiverem crescido, Gareth lembrou a si
mesmo, embora, neste caso, o falcão podia muito bem vir a ser um dragão.
A luz era interrompida no céu oriental. As sombras aglomeradas como neve meio
derretida ao longo da base das colinas. Gareth terminou seu turno com uma sensação de
alívio e espanto. Ele realmente esperava que Hayat aproveitasse a ausência do capitão.
- É isso, amigo. - Jory disse, bocejando. - A nave deve estar de volta a qualquer
momento. Vá conseguir algum tempo de descanso enquanto pode.
Depois de devolver as armas a Deeseter, Gareth voltou para o QG. Taz resmungou
meio dormindo, mas Viss abriu os olhos e sentou-se. Ele parecia um pouco grogue, mas sua
respiração estava mais fácil. Gareth se jogou no beliche que agora via como dele sem
sequer tirar suas botas, apenas pegando sua faca, segurando-a ao seu lado e então fechou
os olhos...
- Ei, garoto. - Alguém balançou o ombro de Gareth com uma persistência irritante.
Gareth nadou para a consciência como um mergulhador se movendo pela lama
quente. Seus olhos arderam e algo de espesso revestiu o interior de sua boca. Seus
músculos responderam lentamente, todo movimento provocando alguma nova pontada. A
faca ainda estava em sua mão, uma descoberta tranquilizadora. Ele balançou os pés para o
lado do beliche e olhou para Taz. Eles estavam sozinhos no quartel.
- Você estava dormindo como... - Taz usou um termo que Gareth não reconheceu. -
Você ficará feliz em ouvir que Viss está mais uma vez de pé. Não que ele possa fazer muito
mais do que eu, mas é um começo. Offen disse que a nave está se aproximando. Hora de
ganhar sua manutenção.
Gareth se inclinou para colocar a faca em sua bainha. Ele parou, o cabo ainda na mão,
inseguro se tinha ouvido alguma coisa do lado de fora ou apenas sentido um arrepio de
adrenalina, o entusiasmo misturado com o medo. Ele olhou para Taz, que parecia tranquilo.
Gareth ficou de pé, mantendo sua faça na mão. Taz virou-se, mas também lentamente,
Gareth já estava se movendo, passando por ele, ficando na porta.
O acampamento parecia quieto e imóvel. O sol tinha se posto totalmente, apenas um
leve tom de roxo no céu ocidental. Um brilho mais forte surgiu. A nave estava se
aproximando.
- Garoto! - Taz colocou a mão no ombro de Gareth. Gareth quase o atacou com a faca.
Com o coração acelerado, ele afastou a mão. - O que deu em você?
Gareth abaixou a faca. - Nervos, eu acho.
- Este negócio faz isso com você. Trabalhe duro por um tempo e você não saberá se
está sonhando. Mas aquilo é real o suficiente.
Com o olhar de Taz, Gareth levantou o pescoço para olhar para cima. A vibração no ar
aumentou. Eles observaram enquanto o ponto brilhante aumentava. Os motores de luz
O s f i l h o s d o s r e i s | 242

quente da nave aqueceu o ar e criou tempestades de poeira em miniatura. Quando o ruído


de sua aproximação aumentou, Gareth pensou em sua primeira visão e audição de uma
nave em vôo, em seu retorno à base depois que a aldeia havia sido destruída. Ele se
lembrava do mesmo trovão antinatural, a mesma sensação de que a própria terra estava
sendo puxada de suas amarras. Ele pensou na arrogância dos homens para quem tal poder
era uma coisa cotidiana, tão comum quanto uma faca de comer. Com a nave se
aproximando de seu lugar de pouso, ocorreu a Gareth que se Hayat fosse aproveitar para
tomar a base, esse poderia ser um bom momento, sob toda aquele barulho e poeira. No
entanto, a nave pousou sem incidentes, deixando Gareth se sentindo um pouco tolo.
Poulos desceu e Offenbach o cumprimentou. Os dois homens trocaram algumas
palavras e depois seguiram para o edifício do QG. Gareth e Taz se juntaram aos outros,
sentados com as costas contra a parede do quartel de alojamentos, mas com uma boa visão
do resto da base, esperando para carregar a nave com o veículo-robótico novamente.
Antes que o trabalho pudesse começar, Hayat se aproximou. Ele usava duas espadas,
ainda embainhadas, e era acompanhado de um lado por Merach e, do outro, por uma
guarda, cada um igualmente armado. Hayat parou em frente ao edifício da sede, esperando
claramente que Poulos saísse para o atender. Ele tinha a postura de um homem
acostumado a controlar a situação.
Dentro de alguns minutos, Gareth e os outros que descansavam fora do quartel
haviam formado um semi círculo em torno dos drytowners. Nem Hayat e nem seu cortejo
deram qualquer aviso notório ou um toque agradável. Hayat poderia controlar sua própria
Corte de audiências, como Gareth fizera em Thendera.
Poulos certamente percebera o que estava acontecendo, mas esperou mais alguns
minutos para aparecer, deixando claro que ele não respondia aos caprichos do Lorde de
Shainsa. Ele parou na porta, gesticulando para Hayat e seus homens entrarem. Quando o
fizeram, Poulos deu uma série de ordens para seus próprios homens, dispersando todos,
exceto Gareth. – Você. Comigo. Preciso de você para traduzir.
No interior, Offenbach olhou por cima de um equipamento de comunicações e
assentiu para Gareth. Poulos, movendo-se com uma casualidade estudada, tomou o lugar
dele em sua própria cadeira com a mesa entre ele e os drytowners, deixando Hayat na
cadeira mais humilde, como um suplicante. Hayat, para seu crédito, não deu nenhum sinal
de sentir perturbado nem o mínimo. Ele cruzou os braços sobre o peito e olhou para o
capitão fora-do-mundo.
- Eu garanti a segurança de sua base, conforme acordado. - Hayat parou para Gareth
traduzir, e dessa maneira ganhou uma medida de controle sobre o encontro. - Agora é hora
de você cumprir sua parte da barganha. - Ele fez uma pausa novamente, desta vez para um
efeito dramático.
O s f i l h o s d o s r e i s | 243

Gareth ouviu as palavras de Hayat e pela primeira vez hesitou em transformar as


frases no Padrão Terran. Ele já havia incorrido no desagrado de Poulos correndo para a
aldeia em chamas. Ele trabalhara para reconquistar sua credibilidade desde então, embora
entendesse, por sua própria lembrança de uma adolescência dolorosa, que tais memórias
tendiam a durar por muito tempo depois que a ofensa deixasse de ter algum significado
prático. Quanto mais ele tentara impedir que os drytowners adquirissem armas de alta
tecnologia, maior a probabilidade de se tornar um alvo.
Seria tão fácil mentir, fabricar alguma declaração ofensivamente arrogante no lugar do
que Hayat realmente dissera, algo que inflamaria as suspeitas do fora-do-mundo. Ele
poderia dizer o que realmente queria, o que ensaiara em sua mente cem vezes.
Não confie em nada do que Hayat diz! É uma barganha com o diabo. Ele levará suas
armas e vai virá-las contra você!
Mas o momento oportuno já havia passado. A carranca de Hayat se aprofundou e
Merach mudou para uma postura sutilmente mais vigilante.
Poulos olhou para Gareth. – Vamos, garoto? O que ele disse?
Gareth traduziu. Poulos parecia estar considerando o assunto atentamente. - Não
creio que nossos amigos aqui realmente fizeram muito para defender a base, não é? Afinal,
uma vez que cuidamos da aldeia, não vejo nada remotamente perto de ser uma ameaça.
Vamos ver o que ele diz sobre isso.
Hayat escutou com expressão impassível conforme Gareth traduzia. - Ha! - Ele
exclamou, gesticulando e sorrindo. - Isso é porque nós lidamos com todas elas! Este não é o
trabalho de guerreiros qualificados e dedicados? E tais homens não são dignos de suas
recompensas prometidas? Ou o seu capitão é um homem sem kihar, que diz uma coisa com
sua língua bifurcada e pretende outra em seu coração de covarde?
Gareth limpou a garganta. - Lorde Hayat diz que seus homens neutralizaram qualquer
ameaça antes de se tornar aparente para você. Ele repete que tem direito ao que lhe foi
prometido. Senhor, não temos como verificar a verdade de suas afirmações, ou suas
intenções, assim é dever cumprir a promessa e entregar as armas. Mas... É sábio armar
esses homens, que não servem a nenhum mestre, além de seu próprio Lorde em Shainsa?
Isso é...
Poulos o cortou com um gesto. O pedido de Gareth tinha sido uma esperança vã na
melhor das hipóteses, mas o capitão tinha o direito a pelo menos ouvir isso. Hayat não era
idiota e certamente perceberia que Gareth havia falado mais palavras do que tinha sido
proferida. Até mesmo uma tradução solta não poderia ser tão detalhada. Hayat
suspeitaria...
Idiota! Idiota! Filho de um imbecil e confuso coelho-de-chifres banhado em tolice!
O s f i l h o s d o s r e i s | 244

Agora Poulos havia sutilmente ficado irritado, porém disfarçando com um sorriso sem
humor no rosto. Gareth tinha visto esse tipo de sorriso antes e nunca era um bom sinal.
- Diga ao Lorde do Deserto que ele fez o seu ponto. Vejo que ele é um homem que
mantém sua palavra, como eu mantenho a minha. Farei meu próprio pessoal carregar
caixas dessas armas para o acampamento de Lorde Hayat. Ele pode selecionar as que lhe
agradas, quantas quiser e testá-los à sua própria satisfação.
- Mas... - Gareth tentou contestar.
- Quem dá as ordens aqui, Garrin? Você ou eu? Diga também que lamento não poder
lhe dar as caixas em si, pois são necessárias para os negócios de um comerciante. Diga!
Quando Gareth repetiu o discurso no dialeto das Cidades Secas, ele sentiu Poulos
olhando para ele, como se o desafiando a se atrever a mudar qualquer pequena palavra.
Offenbach também estava ouvindo e entendia uma medida do dialeto. Em uma onda de
saudade, Gareth pensou na confiança entre Mikhail Lanart-Hastur e seu filho, entre os dois
e Danilo Syrtis, até mesmo na confiança entre Danilo e Cyrillon Sensar. Eles estavam ligados
não apenas pelo propósito comum, mas por sua consideração mútua, por lealdade e
integridade. Esses contrabandistas não eram estadistas. Eles viviam em um mundo de
alianças oportunistas que viviam mudando. Poulos mentira sobre as pistolas de luz. Hayat
não devia lealdade a ninguém, além de si mesmo e possivelmente a seu pai.
Gareth não tinha como esconder inteiramente sua reação à medida que a reunião se
dispersou. Hayat disse: - Esta criatura o desaprova. Se eu fosse você, eu arrancaria sua mão
direita para ensiná-lo a ter respeito.
- O que ele disse? - Poulos perguntou a Gareth depois que os drytowners haviam
partido.
- Nada de real importância.

~o ⭐ o~
Offenbach saiu para o acampamento dos drytowners para supervisionar a abertura das
caixas. Poulos deliberadamente segurou Gareth no QG, e Gareth viu a chance de falar
novamente.
Poulos acenou para as preocupações de Gareth. - Não é importante. Nós carregamos
uma quantidade dessas armas, bens comerciais para tais ocasiões como esta. Caso você
não tenha notado, sabemos como lidar com os nativos.
Gareth balançou a cabeça não acreditando que Poulos conseguia entender o erro
usando com Hayat o mesmo truque que tinha usado com Cuinn, dando-lhe blasters que
funcionavam apenas por um curto período de tempo. Hayat não era nenhum pobre chefe
de aldeia.
O s f i l h o s d o s r e i s | 245

Poulos reagiu à expressão de Gareth de desânimo. – Anime-se, Garrin. Tudo vai


funcionar bem. Olhe. - Ele apontou para o acampamento e o veículo-robótico que já
começava sua jornada de retorno. - Eles estão felizes, nós estamos felizes. Inferno, até
mesmo as pessoas do Setor de Castor estão felizes, e só Zhu sabe que eles têm motivo
suficiente. Não há nada aqui que valha a pena se preocupar.
Gareth não concordava, e concordou menos aind quando, um pouco depois, Hayat e
um par de seus homens cavalgaram para a trilha de Black Ridge, lavando e brandindo seus
blasters.
O s f i l h o s d o s r e i s | 246

Capítulo 27

Hayat e seus homens voltaram para a base no final daquele dia. Mesmo à distância,
Gareth podia ver que eles haviam montado seus cavalos à exaustão. Eles ignoraram seu
próprio acampamento, galopando diretamente para o centro do QG. O grito furioso de
Hayat se elevou acima do som dos cavalos excitados.
Quando Gareth chegou ao prédio do QG, Poulos saíra e estava esperando
calmamente. Deeseter estava de pé, braços cruzados sobre seu peito maciço, logo atrás de
seu comandante.
- Seu animal de língua bifurcada que copula com um oudrakhi morto! - Hayat rodou
seu cavalo selvagem e ofegante. - Aquele que usa de artifícios falsos para enganar um
inimigo, ganha sua vitória com astúcia. Mas aquele que jura falsamente em uma barganha é
um homem sem honra! - Ele puxou as rédeas fazendo o animal se erguer sobre as patas
trasseiras e depois voltar ao normal. Então ele apontou o blaster para o tronco do fora-do-
mundo.
Nada aconteceu. Nenhum feixe emergiu do barril da arma. Poulos ficou lá, tão
externamente calmo quanto antes. Um por um, os outros drytowners dispararam seus
blasters, sem mais efeito.
Poulos tinha uma sorte quase insana ou esses blasters, como os de Cuinn, já estavam
quase sem carga quando foram dados.
Hayat arremessou o blaster inútil no chão que deslizou até parar ao lado dos dedos do
pé do capitão de contrabandistas. Poulos se inclinou para pegá-lo. Ele limpou a poeira e
virou a arma como se estivesse examinando o objeto. Ele levantou, olhando para o suporte
parecendo um barril que mantinha a carga, mas com o cano apaontando diretamente para
Hayat.
Doce Cassilda! Gareth pensou com uma onda de horror. E se os blasters não tivessem
drenados? E se Hayat e seus homens tivessem apenas operado indevidamente?
E se Poulos agora pretendia dar uma lição nos homens de Shainsa?
Hayat devia ter percebido isso também, pois estava congelado na sela, não mais
forçando seu cavalo a uma exibição. Merach não sofreu de tal paralisia. Ele guiou seu
próprio cavalo para a frente, embora tal gesto fosse de pouco uso contra um blaster
totalmente carregado.
Com um sorriso que não alcançava os olhos, Poulos apontou o blaster para o céu. -
Meu amigo, você tem todos os motivos para estar descontente. Minhas desculpas pelo
mau funcionamento. Por favor, aceite minhas garantias de que, pelo que eu sabia, os
blasters estavam em perfeita ordem de funcionamento quando os entreguei a você. Tais
dispositivos não são destinados a serem utilizados sob condições primitivas. Manipulação
O s f i l h o s d o s r e i s | 247

rude e exposição à poeira podem desalinhar suas configurações. Pessoalmente


supervisionarei o teste das substituições a que você, é claro, tem direito. - Poulos entregou
o blaster a Deeseter e esboçou um arco na direção de Hayat.
- Ah, Garrin, você está aí. Recolha os outros blasters. Suponho que você sabe como
lidar com eles, caso eles ainda tenham um pouco de poder.
- Capitão, este é um jogo perigoso! – Gareth disse.
Poulos acenou colocando a objeção de lado. - E transmita o que eu disse, deixando de
fora a referência às condições primitivas. Não seria útil antagonizar com os locais
desnecessariamente.
Antes que Deeseter pudesse pará-lo, Gareth se colocou diretamente na frente de
Poulos. - Sim, Hayat pode estar disposto a ouvir desta vez. Mas ele não ficará feliz e não
confiará em suas garantias. Ele vai testar os novos. Nós dois sabemos que a mesma coisa
acontecerá. O que fará então?
Poulos enfrentou o olhar de Gareth sem a menor hesitação.
- Capitão, por favor! - Gareth implorou. - Anule o acordo!
- Não há nada para se preocupar. - Poulos disse em uma voz fria como o espaço entre
as estrelas, uma voz que fez Gareth lembrar que este era o homem que havia ordenado a
destruição de Nuriya. - Acredito que Lorde Hayat me entendeu melhor do que pensa.
Acabamos de esclarecer quem tem o poder nesse relacionamento, isso é tudo. Sua opinião
não é interesse para nenhum de nós. Agora siga minhas ordens... Sem comentários.
Não adianta, Gareth pensou. Nunca adiantaria tentar usar o raciocínio com Poulos. Os
contrabandistas viam Darkover como uma estação, um porto insignificante, mas
conveniente. Se todo homem, mulher e criança de Temora à Muralha ao Redor do Mundo
desaparecessem, seria para ele como tragédia que eliminara uma uma fonte de
aborrecimentos. Que idiota ele tinha sido por desperdiçar seu ar tentando fazer Poulos agir
com bom senso!
Lutando contra uma onda de desgosto por sua própria ingenuidade, Gareth se virou
para Hayat e traduziu, resumindo as palavras do capitão fora-do-mundo. Hayat exigiu saber
quanto tempo o teste levaria e quando ele receberia armas funcionais. Poulos prometeu a
ele, através de Gareth, que os blasters estariam prontos na manhã seguinte. Não era
necessário nenhum laran para reconhecer que a desconfiança de Hayat persistia. Seu rosto
corado e sobrancelhas franzidas eram prova suficiente.
Comor era o velho ditado datado dos primórdios da fundação de Darkover? Me
engane uma vez, a vergonha é sua. Me engane duas vezes, a vergonha é minha? Hayat
claramente não tinha intenção de sofrer uma segunda humilhação.

~o ⭐ o~
O s f i l h o s d o s r e i s | 248

No momento em que o sol tinha se pôs, deixando um véu de luz roxa em todo o céu
ocidental, Gareth tinha elaborado um plano. Ele ficara no QG dos fora-do-mundo por um
tempo muito mais longo do que era prudente, preso pela esperança de que ele pudesse
impedir que os drytowners adquirissem os blasters. Os eventos desse último dia o
convenceram de que Poulos não tinha intenção de dar armas totalmente funcionais, então
a situação havia mudado. Gareth se permitiu ser apanhado nisso também, quando a coisa
inteligente teria sido deixar as duas partes em sua própria loucura. Se Poulos estava tão
seguro de sua própria invulnerabilidade para não conseguir reconhecer a ameaça, então ele
merecia o que aconteceria em seguida. Quanto a Hayat, Gareth estava farto da sua
arrogância drytowner.
A única coisa o segurando ali era Rahelle. Se ela tentasse fugir e fosse pega, Hayat não
teria escrúpulos sobre chicoteá-la até arrancar-lhe a vida, mesmo colocando em risco os
cuidados com seu cavalo. E se Hayat descobrisse que ela era uma mulher... Esse destino era
muito horroroso para contemplar. Eles tinham que escapar juntos.

~o ⭐ o~
Através do anoitecer, Gareth manteve a vigia no acampamento drytowner, na
esperança de abordar Rahelle enquanto ela levava os cavalos para a água. Ele estava
contando com o ritmo que o drytowner mantinham em um acampamento no deserto, a
tradição de dormir durante o dia e esperar o frescor do crepúsculo para as tarefas mais
ativas. Embora ele observasse atentamente, não conseguiu vê-la.
- Ei, garoto! - Taz chamou da direção do quartel. - Você vai comer?
- Estou indo.
Ele teria que encontrar outra maneira de chegar a Rahelle. Não só ele não sairia sem
ela, mas também precisava de ajuda com os cavalos. Se eles pudessem sair com dois e
libertar o resto, podiam ter uma chance. Eles poderiam checar ao cume de Black Ridge a pé,
mas não atravessar as Areias do Sol.
O tempo estava se esgotando. Eles precisavam fugir naquela noite, antes que Poulos
entregasse o próximo conjunto de blasters. Se ele não pudesse falar com Rahelle logo, teria
que esperar até escurecer e depois se esgueirar no acampamento drytowner. Enquanto
isso, ele tinha que agir normalmente.
Taz e Viss estavam sentados do lado de fora do quartel, terminando sua ceia. Idriel,
mais brilhante das quatro luas, parecia uma jóia solitária no crepúsculo persistente. Com a
aproximação de Gareth, Taz sorriu e estendeu um pacote de refeições.
- Fresco das cozinhas de... Onde nós escolhemos isso, Viss? Vainwal?
O outro contrabandista bufou. - Você é um sonhador! Mais como alguns roubos além
das Hyades Exteriores.
O s f i l h o s d o s r e i s | 249

- Bem, de onde quer que seja, coma, garoto.


Gareth sentou para comer, encostado na parede do quartel de alojamentos e olhando
discretamente na direção dos postes de cavalos. A comida, outrora estranha e sem gosto,
parecia familiar. Embora não seja particularmente apetitosa, fazia seu trabalho nutritivo.
Com um arrepio de saudades, ele se lembrou dos jantares no Castelo Elhalyn quando era
criança. Ele adorava os vegetais frescos sazonais cozidos, pão escuro cravejado de nozes
ainda quentes do forno... Mesmo as refeições que ele tinha comido na trilha de Carthon
pareciam mais apetitosas do que essa papa cercada por papel ou plástico sintético. Ele
colocou o pacote de refeições de lado, ainda pela metade.
- Não quer o resto? - Viss perguntou esperançosamente, assim que um som abafado
deixou Gareth em alerta.
A mão de Gareth, inconscientemente, ordenou silêncio. Segurando a respiração, ele
sacou sua arma, a faca em sua bota. O som veio novamente, tão fraco que se ele ainda não
estivesse focado em observar Rahelle, certamente não o teria notado.
Seus sentidos de laran entraram em alerta, embora o amuleto isolasse a maior parte
de seu poder. Como se um véu tivesse sido arrancado de seus olhos, ele viu através de
paredes e em torno dos cantos.
Os homens de Hayat se agachavam em prontidão de batalha. A luz de Idriel brilhou em
suas espadas sacadas. Eles também carregavam lâminas mais curtas escondidas sob suas
faixas na cintura. Merach gesticulou silenciosamente em direção ao edifício da sede do
QG...
Drytowners correram para o centro do acampamento, Hayat na liderança. Seu grito de
guerra soou uivos de lobos entre seus dentes. Mesmo correndo o mais rápido que podia,
Gareth estava longe demais para intercepcioná-los. Atrás dele, Taz gritou xingamentos
desconhecidos para Gareth.
Hayat e o homem em seus calcanhares chegaram à porta. Um dos outros, na posição
da retaguarda, girou para enfrentar Gareth. Gareth se esquivou e desviou do alcance da
espada do drytowner. Por sorte, ele interceptou a lâmina inimiga com a lateral da de sua
faca. Aço zumbiu quando enfrentou o aço. O impacto fez seus dentes baterem.
Gareth libertou sua lâmina com uma estocada lateral. Por sua visão periférica, ele viu a
porta se abrir. Hayat correu para dentro.
O drytowner redobrou seu ataque em Gareth. Treinamento e instinto despertaram e
refletiram na defesa de Gareth. Ele desviou sem pensar. Seu oponente se lançou para
frente, brandindo sua espada curva em um arco diagonal.
Desta vez, Gareth julgou mal o ângulo. A borda entrou em uma abertura dele muito
fina. Ele se contorceu lateralmente e quase perdeu o equilibrio.
O s f i l h o s d o s r e i s | 250

De dentro do prédio, vieram mais gritos e sons de luta. Alguém deu um grito
inarticulado. A agonia ressoou através do laran de Gareth. Sua mente se encolheu com isso.
O lapso momentâneo foi suficiente para o espadachim ter uma vantagem. Gareth
tentou desviar o ataque com sua faca, mas sua defesa foi muito lenta, foi tarde demais. Ele
sentiu a ponta da lâmina da espada em sua garganta.
Com um olhar ameaçador, o drytowner levantou o braço para que uma pressão ínfima
atingisse o pequeno ponto de tecido mole entre as clavívulas de Gareth.
Gareth se forçou a ficar parado. Ele manteve os braços bem longe de seu corpo,
embora ele não largassesua faca.
A base caiu de repente, fincando angustiantemente silenciosa, exceto pela voz de
Merach, gritando ordens, e alguém gemendo de dor.
Gareth manteve seu olhar fixado nos olhos de seu captor. Ele captou o cintilar
momentâneo quando a atenção do homem foi distraída.
Em um movimento, Gareth deu um passo para o lado, levantou a faca até o nível de
sua garganta e girou. Ele jogou toda a força de suas pernas no movimento. A ponta da
espada deixou uma trilha ardente no pescoço, mas a pressão afiada desapareceu.
A faca de Gareth se firmou contra a pressão da espada. Um impulso levou as duas
lâminas em uma varredura circular. Gareth conseguiu manter o controle por um instante
crítico pelo choque do contato, então as duas armas se afastaram. Ele firmou seu aperto no
cabo da faca se preparando para o próximo impacto e atacou. A espada, impulsionada pelo
golpe de Gareth, balançou descontroladamente para o lado.
Se forçando para dentro do arco da espada, Gareth deu um longo passo e levantou o
joelho. Seu chute pegou o lado da coxa do drytowner. Não fora um golpe incapacitante,
mas a dor fez com que o homem se desconcentrasse. Seu joelho se abaixou, seu aperto na
espada afrouxou momentaneamente. Gareth desceu o pé que usara no chute, ficando mais
dentro das defesas de seu oponente. Um soco forte no plexo solar enviou o homem para o
chão, ofegando e tossindo.
Gareth pegou o cabo da espada dos dedos inertes do homem. Era diferente em
comprimento e equilíbrio daquelas com as quais ele havia treinado, mas se estabeleceu em
sua mão como se pertencesse a ele.
O drytowner estava lutando para respirar e segurando sua coxa. Ele não conseguiria
ficar de pé por algum tempo. Gareth passou por ele, seguindo para o edifício sede do QG.
Antes de chegar à porta, um 'crack' ensurdecedor ecoou. Uma mancha cor de cinza
carbonizada apareceu na parede externa. Mais gritos se seguiram, as palavras
indistinguíveis.
Alcançando a porta, Gareth viu Merach em pé, fora do alcance de sua espada. Jory
estava de joelhos em uma pilha de caixas. O sangue brilhante encharcava a frente de uma
O s f i l h o s d o s r e i s | 251

perna da calça. Ele segurava um blaster em ambas as mãos, apontando para o par lutando
um pouco mais distante.
Offenbach também estava de joelhos, com Hayat em pé atrás dele. Com um aperto no
cabelo, o Lorde de Shainsa moveu a cabeça de Offenbach para expor seu pescoço. Hayat
segurou sua espada precisamente sobre os grandes vasos sanguíneos.
Poulos? Onde está o capitão? E Deeseter?
- Deixe ele ir! - Jory gritou, sua voz rouca. - Ou vou fritar todos vocês! Eu juro!
Jory pode ter apenas selado a morte de seu companheiro, Gareth pensou. Jory falara
no Padrão Terran, que nenhum drytowner entendia. Só Aldones sabia o que Hayat pensou
que ele dissera. Pela quantidade de sangue e a velocidade com que ele perdia mais, Jory
tinha apenas um curto período de tempo até que desmaiasse. Os drytowners estavam
apenas esperando por um sinal de Hayat para matá-lo.
Gareth ainda tinha um momento livre antes que alguém o notasse. Ele poderia se
apressar e provavelmente se matar, junto com Offenbach e Jory, que não ia sobreviver sem
cuidados. Seria um final glorioso, mas ele não queria a glória. Ele queria uma saída desse
impasse e não conseguia ver uma.
Onde nos Sete Infernos Congelados está Poulos?
Gareth fechou a distância para lutar contra Merach. Merach reagiu, sua lâmina em
prontidão, mas, apesar de Gareth ter previsto o ataque, Merach não fez o primeiro
movimento ofensivo.
- Ouça o fora-do-mundo! - Gareth decidiu sua própria posição e gritou no dialeto das
Cidades Secas. - Ele promete por sua honra que irá matar todos vocês, a menos que você
libere seu companheiro!
A resposta de Merach foi se acomodar mais firme em sua posição de luta. Gareth
sentiu o drytowner focando sua energia em um centro fixo, um centro do qual ele
explodiria em um ataque rápido. Hayat tinha que dar a ordem.
Hayat deu um sorriso que enviou um arrepio na espinha de Gareth. - Diga isso na
língua dos bárbaros! Diga que ele vai assistir seu homem morrer diante dele. Diga que os
kyorebni das areias espalharão seus ossos e será como se nenhum deles tivesse andado
pela terra.
Jory vacilou de joelhos. Embora apoiado nas caixas, suas mãos tremiam visivelmente.
Seu rosto estava da cor do giz. Ele piscou forte, lutando para manter os olhos em foco.
- Não é bom. - Offenbach disse em uma voz sufocada, forçando as palavras através do
ângulo torcido do pescoço. - Eu enviei uma mensagem. A nave foi advertida. Eles vão
explodir todo o acampamento do espaço. Garrin... Diga-lhes...
O s f i l h o s d o s r e i s | 252

Não, Gareth pensou, isso é mentira. Mesmo que a nave tenha essas armas, Poulos
tentará resgatar sua tripulação primeiro. Ele valoriza seus homens. É por isso que ele
queimou a aldeia em retaliação.
Gareth queria gritar para as duas partes exatamente qual dos infernos de Zandru os
aguardavam. Em vez disso, ele disse, usando o Padrão Terran. - Não adianta blefar. Hayat
não se importa com a nave. E, se não terminarmos esse impasse, Jory vai sangrar até a
morte.
- Jory... Aguente... - Offenbach disse e, logo depois, o blaster caiu da mão de Jory,
seguindo por ele mesmo.
- Aí está sua resposta. -Gareth disse para Hayat. Ele se ajoelhou para colocar sua
espada no chão da maneira respeitosa como se entrega uma arma de honra. - Você ganhou,
grande senhor. Certamente a morte deste homem não adiciona nada à sua glória. - Ele se
referiu à Jory. - Você permitirá que um de seus camaradas o atenda?
Hayat impulsionou Offenbach para a frente com um joelho. Offenbach caiu
esparramado no chão. - Vá então. Ele lutou bravamente. Você...
O ar entre Hayat e Merach de repente brilhou e oscilou como uma miragem causada
pelo calor. Sem aviso, Merach caiu de joelhos, seus músculos tensos.
Dois feixes de luz brilhante vertical surgiram entre os drytowners, duas figuras
brilhantes dentro deles, cada uma erguendo um braço na direção de um drytowner, com
algo na mão. Um som sibilante acompanhou os feixes de luz pálida, fazendo a distorção
visual desaparecer, revelando Poulos e Deeseter.
Hayat se virou para Poulos, a espada levantada. Deeseter se moveu mirando sua arma
em Hayat. Hayat congelou.
Offenbach se esforçou para ficar de pé e foi até a mesa. Abrindo uma gaveta, ele
removeu uma caixa plana com o emblema de cobra enrolada em um bastão da medicina
Terranan. Ele se ajoelhou ao lado de Jory e envolveu a ferida que escorria com um largo
cinto elástico. Gareth teria gostado de ver mais da tecnologia de cura, mas o confronto
diante dele ainda não terminara.
- Aquele é um atordoador neural ativado em seu modo mais baixo. - Poulos disse para
Hayat. - Não é letal. Seu homem voltará em torno de alguns minutos. Contanto que você
coopere.
- Eu sou o filho do Lorde da Shainsa! - Hayat rosnou. - Eu não me curvo aos caprichos
de ladrões!
- Eu não diria isso a um homem que tem uma arma apontada para mim. - Gareth
respondeu suavemente.
- Eu desafio essas crias de uma formiga-escorpião doentes para um duelo por kifurgh!
O s f i l h o s d o s r e i s | 253

Enquanto Hayat emitia seu desafio, Poulos desapareceu em outra ondulação quase
invisível de ar. Um instante depois, ele solidificou atrás de Hayat, um antebraço indo sob o
queixo do drytowner em ângulo. Com o outro, Poulos encostou o cano do atordoador
neural na têmpora de Hayat.
- Largue. A. Espada. - Com cada palavra, Poulos fez um pouco de pressão, de modo que
Hayat se encolhera visivelmente. A espada bateu no chão. - Offen? Diga-me que Jory irá
viver.
- Cheguei bem a tempo, capitão. Ele perdeu uma boa quantidade de sangue, mas nada
que não possamos substituir. A nave de Castor tem um estoque de soro sintético.
- Garrin, diga a este besouro da poeira que é seu dia de sorte. - Poulos não relaxou o
aperto quando Gareth seguiu a ordem. - Agora você vai me escutar, homenzinho. Ninguém
me ameaça ou a meu povo, muito menos um projeto de valentão sem água como você.
Você queria um acordo, você conseguiu um acordo. Aqui está. Você receberá suas armas
quando e como eu disser que receberá. - Ele parou enquanto Gareth traduzia. -
Compreendeu?
Hayat fez um mínimo aceno de cabeça. Gareth pensou que ele parecia tão
aterrorizado quanto um homem poderia ser sem sujeitar a si mesmo ao ridículo. No chão,
Merach gemeu e começou a se mover fracamente.
- Eu não falei que ele se recuperaria? - Poulos disse. - Agora você e meu amigo aqui, -
ele se referia a Deeseter - vão dar um passeio pelo QG. Você vai recolher seus homens e
levá-los de volta ao seu acampamento. E vai ficar lá até que eu diga que você pode sair.
Gareth repetiu as palavras do capitão de contrabandistas pensando que, assim que
Hayat se recuperasse de seu susto, ele não permaneceria tão vacilante quanto estava
agora. Ele podia não tentar outro ataque à base, mas talvez tentasse fugir sob a escuridão
da noite. Essa poderia ser a melhor solução e Poulos não se importaria. Mas Rahelle teria
que ir com eles, a menos que ela conseguisse escapar.
Gareth se forçou para guiar seus pensamentos de volta ao momento presente. Ele
pensara antes que os contrabandistas estavam irrealisticamente confiantes. Agora, depois
de impedirem um ataque em massa de um exército de Shainsa, algo improvável
considerando os homens rudes e animais fortes, ambos acostumados às dificuldades
cotidianas deles e por estarem em seu território nas Areias do Sol. A vantagem na verdade
era dos fora-do-mundo e sua tecnologia.
Poulos liberou Hayat para ajudar a Merach a se levantar, embora ele ainda os
observasse atentamente. Offenbach foi para o equipamento de rádio, colocou o dispositivo
de escuta e estabeleceu a comunicação com a nave em órbita. Gareth captou apenas
algumas frases que indicavam que Offenbach estava fazendo arranjos para a nave do Setor
O s f i l h o s d o s r e i s | 254

de Castor fornecer tratamento médico para Jory. Houve uma longa pausa enquanto
Deeseter escoltou oas drytowners para fora do edifício sede do QG.
- Eu deveria ir com eles... - Gareth começou, mas Offenbach estava sinalizando
freneticamente e Poulos se apressou até o rádio.
Poulos deslizou para o local que Offenbach desocupou e pegou o dispositivo de escuta.
Seu rosto se apertou em uma carranca.
- Offen? - Gareth chamou em voz baixa. - O que está acontecendo?
- Shhh. Chamaram o capitão.
- Entendo. – Poulos disse. - Não, você está certo. Comece a contagem regressiva para
deixar a órbita. Vamos entrar mais cedo. - Ele tocou uma série de vezes no painel de
controle, depois abaixou o dispositivo de escuta. - Porra! Esses idiotas do Setor de Castor!
Eles devem ter chacoalhado um grande ninho de vespas para serem rastreados tão longe.
- Ou eles têm um espião a bordo. - Offenbach murmurou.
- Sem honra entre ladrões e rebeldes, heim. - Poulos disse, sarcástico. - Acho que
somos os últimos homens honestos por aqui.
- Evacuar, capitão?
- Evacue e esterilize, limpe nossos rastros. Se tivermos sorte, teremos ido antes que os
tubarões cheguem, então eles não vão procurar por nós.
O s f i l h o s d o s r e i s | 255

Capítulo 28

Poulos emitiu uma série de ordens, levando seus homens a bordo da nave, junto com
equipamentos de comunicação e algumas coisas que Gareth não reconheceu. A tripulação
respondeu com uma velocidade e eficiência que surpreendeu Gareth, alguns correndo para
o quartel de alojamentos, outros para o edifício sede.
Eles já fizeram isso antes, Gareth pensou enquanto observava o frenesi intenso e
quase silencioso. Eles já tiveram que deixar tudo para trás em curto prazo. Não admirava
que a tripulação tivesse tão pouco apego a este lugar ou seus habitantes.
- Você. - Poulos gesticulou para Gareth. - Traga os nativos aqui e rápido.
Impulsionado pela onda de urgência no tom do capitão, Gareth correu para fora da
base. Ele não teve dificuldade em encontrar o acampamento dos drytowners seguindo a
pequena fogueira. Onde eles encontraram alguma coisa para queimar ele não sabia dizer.
Talvez tivessem trazido com eles quando voltaram de sua primeira incursão.
Hayat ficou de pé, parecendo que nada lhe daria maior prazer do que estripar Gareth
ali mesmo. Atrás dele, os outros homens ficaram alertas. Gareth notou Rahelle na borda do
acampamento, perto das linhas de piquete de cavalos. Seus olhos brilhavam na semi
escuridão.
- O capitão dos fora-do-mundo solicita sua presença imediata. – Gareth disse,
curvando-se e tentando parecer o mais deferente possível.
- Então agora ele está pronto para resgatar sua honra? - Hayat zombou. - Diga a ele
que você me encontrou indisposto. Ele pode esperar até a manhã.
Gareth permitiu que sua própria ansiedade fosse demonstrada em sua voz. - Grande
Lorde, ele disse para ir agora. Há novas notícias. Depois que você saiu, uma mensagem veio
da nave nos céus. Acho que os fora-do-mundo vão evacuar a base assim que puderem.
- Tanto quanto melhor, eles podem ir logo encontrar o destino de todos os covardes.
Mas isso pode ser um truque. Por que eu deveria acreditar no que você diz? Por que eu não
deveria o chicotear e arrancar a verdade de você?
Gareth não tinha necessidade de dissimular seu terror reflexivo. - Porque não te
custaria nada vir e descobrir por si mesmo.
Merach falou. - Lorde Hayat, se esse fora-do-mundo pretendesse enganá-lo
novamente ele não teria simplesmente partido sem avisar? Acho que deve haver alguma
má notícia real para fazê-lo abandonar o... - Ele usou um termo em cahuenga para indicar
uma fortaleza temporária. - Os homens desesperados são muitas vezes distraídos e,
portanto, menos cuidadosos com sua própria vantagem em outros assuntos.
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- Muito bem, Merach, você fez o seu ponto. Você e você. - Hayat gesticulou para seus
dois homens mais aptos. - Vocês vêm comigo. E você, garoto, - ele sinalizou para Gareth -
ore a Nebran para que seu capitão também não o tenha enganado.
Quando Gareth se virou para seguir Hayat de volta para a base, ele procurou no lugar
onde Rahelle estava de pé, mas ela se fora. Pela primeira vez, seu único desejo era seguir
com eventos como eles se desenrolavam, sem intervir. Os contrabandistas logo iriam
embora. Mesmo que Poulos desse a Hayat outro conjunto de blasters mal utilizáveis, as
cargas não durariam muito tempo. Os drytowners voltariam para Shainsa. Cyrillon
provavelmente ainda estava lá e poderia fornecer alguma cobertura para sua volta a
Carthon...
Uma sensação de alívio dominou Gareth enquanto passavam pelo perímetro externo
da base. Mesmo que as coisas não tivessem sido do jeito que ele esperava, iam terminar
bem. Ele só tinha que ficar calmo, seguir ordens e manter a cabeça baixa.
De volta à base, Taz e Viss grunhiam sob o peso de uma longa caixa retangular,
enquanto Offenbach gritava do veículo-robótico para eles se apressarem. Jory estava em
uma maca ainda inconsciente.
Poulos e Deeseter esperavam em frente ao edifício da sede, algumas caixas a seus pés.
Eles estavam terminando de liberar os lacres. Gareth os observou remover o material da
embalagem superior e abrir as caixas internas. No brilho das fortes luzes amarelas, Gareth
viu as formas de blasters. Deviam haver dezenas, até centenas deles. Poulos mentira sobre
a quantidade deles.
Sem preâmbulos, Poulos apontou para as caixas abertas. - Lá estão eles, os blasters
que acertamos. Tudo totalmente funcional.
Isso era verdade ou Poulos também mentira sobre isso?
Tantos blasters funcionais nas mãos dos drytowners!
Antes que Gareth pudesse traduzir, Hayat se aproximou de uma caixa, seu olhar
cintilando entre o rosto do fora-do-mundo e as armas firmemente embaladas.
Poulos gesticulou impacientemente. - Pegue o que quiser. Tudo o que puder carregar.
- Ele bateu no braço de Deeseter. - Dê uma mão taz com a maca. Eu preciso de Offen na
nave. Bem, - ele olhou para Gareth - o que você está esperando? Diga à ele!
- Capitão, é demais, muito mais do que Lorde Hayat esperava. - Gareth disse
atordoado. - Ele suspeitará de um truque.
- Então diga a ele que não tenho uso para eles para onde estou indo. A nave já está em
contagem regressiva. Não posso levar o peso extra e posso facilmente obter mais deles. Ele
é bem-vindo para carregar quantos quiser.
- Devo dizer a ele que está indo embora? - Gareth lutou para aceitar o que tinha
acabado de ouvir.
O s f i l h o s d o s r e i s | 257

- Goblins do inferno, garoto! Diga a ele qualquer coisa que você quiser! Apenas
certifique-se de que ele saiba que deve ficar tão longe daqui quanto puder. Em pouco
menos de uma hora, no tempo de Terran, todo esse lugar vai ser destruído. Você
entendeu?
Gareth olhou para o chefe dos contrabandistas. Não havia decepção no rosto do fora-
do-mundo, nem nas emanações de sua mente. Ele queria destruir a base para não deixar
qualquer traço de sua presença.
Quão poderosas são as armas da nave?
- Entendeu? - Poulos repetiu.
Gareth assentiu.
- Ok, garoto. Você provavelmente entendeu a próxima parte. Tenho que tirar meu
pessoal daqui. A nave não lidará com o seu peso adicional e não consigo voltar para você.
Além disso, não acho que você quer ir para onde estamos indo.
Gareth olhou para ele, incapaz de dar uma resposta.
- Olha, - Poulos continuou - nós nem sempre nos encaramos bem, mas você é um bom
garoto, então vou te dar um conselho: saia desta base, mas fique longe de qualquer lugar
que tenha um espaçoporto e de seu povo. Sei que há um neste mundo. Quando os
tubarões se recuperarem do confronto com as naves do Setor de Castor, e provavelmente
eles vão vencer, irão decidir que devem evitar que os rebeldes criem uma base lá. Da
maneira como as coisas estão indo, elas vão bombardear primeiro e fazer perguntas depois.
Gareth balançou sobre seus calcanhares, atordoado. - Mas a classificação de Darkover
é Classe D, um mundo Fechado...
Poulos o cortou com uma careta e olhos duros. - Tudo o que você diz não significa
mais nada. Ninguém está protegendo ninguém, exceto a si mesmo. Além disso, metade das
naves com o antigo ID da Federação são de tubarões.
- Tubarões?
- Corsários, piratas contratados. Contrabandistas de armas também, como nós, mas
com muito mais poder de fogo, capaz até de destruir um planeta, e não há razão para eles
não o usarem se isso for realizar o trabalho para o qual foram contratados pela Federação.
A maioria deles são apenas piratas orgulhosos em busca de fortuna. Eles sabem, assim
como nós, que não há nada que valha a pena lutar além disso. Mas há um bônus bem alto
oferecido por eliminar uma fortaleza rebelde.
Poulos colocou a mão no ombro de Gareth. - Então, aqui está claramente a situação
para nós dois, garoto. Vou destruir eu mesmo. Do céu. É o melhor para todos. Agora conte
para esse chefe tolo o que eu disse e suma daqui.
O s f i l h o s d o s r e i s | 258

Com o coração acelerado, Gareth tropeçou na tradução. Poulos demorou apenas por
tempo suficiente para Hayat chegar a uma das caixas. Então ele se foi, quase correndo, em
direção a nave.
O som dos motores junto com o rugido agora era familiar, mas os drytowners não
prestavam atenção. Hayat prendeu quatro ou cinco blasters sob sua faixa e gritou: - Traga
os animais de carga! Sela os cavalos!
Gareth correu de volta para o acampamento para entregar as ordens de Hayat. Ele
precisou gritar para se fazer ouvir acima do barulho da decolagem da nave. - Lorde Hayat
disse para se apressar! Levantar acampamento! Seguir para Shainsa!
Os dytowners se moveram lentamente. Claramente, eles não viam razão para pressa.
Rahelle estava lutando para manter o controle dos cavalos que não tinham se acostumado
o barulho e os ventos carregados de poeira negra e detridos do solo de Black Ridge.
Gareth olhou de volta para a base, ainda banhada na luz amarela alienígena. O som da
nave já estava ficando mais fraco, mais distante. Ele não sabia quanto tempo permaneceria
ou quão larga era a área que Poulos pretendia destruir.
E os agentes da Federação, ou quem quer que fossem, piratas como Poulos definira ou
militares, eles se incomodariam em averiguar se o Espaçoporto de Thendara não tinha sido
usado em anos? Eles se importariam?
Se houvesse uma maneira de enviar uma mensagem para Mikhail ou Domenic... Se
Jeram pudesse entrar em contato com os agentes no equipamento de rádio no QG Terran,
explicar-se para eles...
Em segundos Gareth entendeu que não podia simplesmente fugir. Ele nunca
alcançaria Thendara a tempo, mas ele poderia avisar a esses homens.
Merach, aparentemente recuperado do atordoamento dos nervos, estava
supervisionando o armazenamento da tenda de Hayat.
- Não há tempo para demora! - Gareth disse. - Os fora-do-mundo vão explodir seu
acampamento do espaço. Lorde Hayat, você sabe como ele deseja essas armas. Ele vai
demorar, levando o máximo que puder deles. Ele não dará atenção ao perigo.
- Por que os fora-do-mundo fariam uma coisa dessas?
- Eles também têm inimigos. Por que mais eles teriam escondido sua base aqui até
agora, longe de qualquer assentamento decente para eles?
Merach grunhiu em acordo, o suficiente para ser ouvido sobre o som da nave.
- Por favor, temos pouco tempo.
- Por seu kihar, jura que isso é verdade?
Pela minha palavra como um Hastur ou qualquer outra coisa que você quiser, eu juro!
- Lorde Merach, posso não ter honra aos olhos de alguns, mas pela sua, juro que é.
O s f i l h o s d o s r e i s | 259

- Então vamos embora de uma vez. - Merach pulou na parte de trás de seu próprio
cavalo, pegou as rédeas de Hayat, e gritou para os homens o seguirem como se estivessem
em batalha. Então ele incitou o cavalo em um galope em direção ao QG.
Gareth correu para Rahelle. - Saia daqui, você me ouviu? Mesmo se tiver que fugir!
Ela não respondeu.
Na frente do edifício sede, os homens de Hayat estavam remexendo o conteúdo das
caixas. Eles empilhavam nos braços vários blasters e haviam muitos mais escondidos sob
seus cinturões. Não havia sinal de Hayat ou Merach, embora os sons de uma discussão
acalorada viesse de dentro do prédio.
- Pegue o que já conseguimos, grande lorde. - Merach insistiu. - E viva para lutar outra
vez!
Os sons de algo batendo em vidro e um xingamento foi a resposta. Gareth correu para
a porta do edifício sede. As luzes tinham sido deixadas, banhando o interior em uma luz fria
e estranha. O lugar parecia ter sido saqueado. Hayat estava usando uma barra de metal,
provavelmente parte do armário que estava caídp nas proximidades, para bater na tampa
de outra caixa desconhecida.
- Não seja comprado com brinquedos que quebram quando colocados em uso! - Hayat
murmurou.
Merach notou a chegada de Gareth. - O resto de seus homens está aqui, Lorde. Você
não tem mais motivos para continuar. Vamos pegar o que temos. Se usarmos essas armas
com moderação, elas ainda podem ser muito úteis. E se o charrat não falou a verdade, você
pode retornar depois e pegar o que deseja em segurança.
- Melhor um pequeno tesouro do que nenhum, é o que quer dizer? Eu sei que meu pai
lhe enviou para me manter na linha, então agora suponho que devo agir como um covarde.
- Seu pai, grande lorde, me ordenou a ter certeza de que você voltasse em glória.
Com um bufo de desgosto, Hayat jogou o metal comprido de lado. Em seu caminho
para fora do prédio, ele parou na frente de Gareth.
- Vejo que seus mestres fora-do-mundo o deixaram de lado. Eu também não tenho
utilidade para você. O que há para você traduzir agora? Quem mais você vai enganar?
- Eu não... - Gareth engoliu seu protesto. Nenhum simples aldeão ousaria responder a
um poderoso lorde. Mas era tarde demais para engolir de volta essas palavras, tarde
demais para se encolher ou abaixar a cabeça.
Com os olhos se estreitando, Hayat olhou para o rosto de Gareth. - Quem é você?
Você fala como um nobre, não como um escravo ou simplório. Onde você aprendeu a
língua desses foras-do-mundo?
Hayat pegou o cabelo no topo da cabeça de Gareth e virou, forçando sua cabeça em
um ângulo doloroso. - O que você tem a dizer por si mesmo?
O s f i l h o s d o s r e i s | 260

Gareth fechou os olhos, preparando-se contra o que viria em seguida. Hayat não seria
rápido nem misericordioso. Nem mesmo a verdade o apaziguaria.
- Meu senhor, não devemos perder tempo. – Veio a voz calma de Merach. - Nós já
temos armas de fogo suficientes.
- Meu pai ficará satisfeito! - A voz de Hayat assumiu tons harmônicos triunfantes
sombriamente. - Quanto a este, quem quer que ele seja, espião, perjuro ou louco... - Ele
soltou o cabelo de Gareth e viu o amuleto de Nebran. - ...Ele não tem o direito de usar um
sinal de fé como esse.
A corrente foi puxada na parte de trás do pescoço de Gareth por um instante, depois
soltou. Mesmo através das camadas de isolamento, Gareth sentiu um choque de
desorientação quando a pedra da estrela deixou seu corpo. Ele mal ouviu as próximas
palavras do Lorde de Shainsa ou a resposta de Merach. Seu corpo parecia gelado e pesado,
como se ele estivesse se curvando nu através de uma tempestade nas Hellers. Seus joelhos
se dobraram e, um instante depois, ele bateu na terra dura.
Como se em uma vasta distância, ele ouviu Hayat gritando para o menino dos cavalos
trazer sua montaria. Algo duro cutucou suas costelas, mas ele não podia dizer se era seu
próprio coração, arremessando-se contra a gaiola de seu peito, ou algo de fora.
Alguém estava gritando... A voz, ele deveria conhecer essa voz.
- Ele está ferido! Você não consegue ver isso?
- Deixe os dois! - Alguém mais rosnou, uma voz como uma tempestade distante.
- Garrin... - Disse a voz de mulher, ecoando em um túnel tão longo e frio quanto o Rio
Kadarin.
Ele se afastou do mundo em um furacão de cinza, branco, prata e azul.

~o ⭐ o~
- Garrin? Garrin, você está bem?
A voz estava o estimulando pelo que parecia uma eternidade, aumentando e
diminuindo, passando pelo denso nevoeiro de sua mente.
- Você pode me ouvir? Garrin! Qual é o problema?
Alguém estava segurando sua cabeça, olhando para seu rosto, tentando firmar seu
olhar. Ele se debatia, procurando escapar.
Seus pensamentos sopravam como cristais brilhantes.
É a doença do limiar... Ele tentou dizer.
As instruções de Linnea pairavam na borda de seus pensamentos. Ele precisava... O
que ele precisava? Fechar os olhos e ficar à deriva... Permitir que as correntes o
carregassem para onde quisessem...
O s f i l h o s d o s r e i s | 261

...Se levantar e andar...usar o movimento para ancorar sua mente ao seu


corpo...estabilizar seus centros de equilíbrio...
Vagamente ele sentiu seu corpo lutando, seus movimentos fracos e descoordenados.
O chão desapareceu debaixo dele, ele sentiu que estava caindo, caindo...girando
descontroladamente no vazio...
Estrelas giravam ao seu redor, dissolvendo, espalhando-se em pontos brilhantes, um
oceano deles... Ele estava à deriva nessa galáxia sem fim...
- Garrin. - A voz estava quase baixa demais para ouvir, apenas uma respiração contra o
cabelo dele. Ele sentiu a suavidade de uma bochecha contra a dele. Braços o
segurando...uma carícia...
Rahelle.
- Garrin, aguente. Eu estou com você.
Algo se encaixou, como um trinco clicando es e fechando, e então ele estava de volta a
seu corpo, ainda nauseado, mas estável. Quando ele engoliu, a garganta parecia como se
tivesse sido esfregada com areia. Ele abriu os olhos para descobrir que agora se
concentrava normalmente. Ele sabia quem era e onde estava.
Ele estava deitado em uma das camas no quartel de alojamentos, enrolado de lado.
Rahelle estava sentada de pernas dobradas, a seus pés, observando-o. Ela devia ter o
arrastado até ali.
Rahelle.
Ele se lembrava de seus braços ao redor dele, sua voz em seu ouvido, sua presença
como uma estrela fixa no meio de um turbilhão.
Ele se ergueu em um cotovelo. Para seu alívio, nenhuma onda de tontura se seguiu.
- O que aconteceu? - Sua garganta estava tão seca que ele mal conseguiu fazer a
pergunta.
- O que você quer dizer com 'o que aconteceu'? Você desmaiou!
Gareth balançou a cabeça, depois pensou melhor. - Hayat... Ele pegou o amuleto...
Minha pedra da estrela... Quanto tempo...
Seus olhos ficaram duros e sombrios.
Ela ficara. Ou voltou, ele não tinha certeza.
Ele se forçou a levantar. O interior do quartel girou em sua visão, um momento de
desorientação, nada mais. Ele balançou em pé, então Rahelle o pegou, seu corpo sólido
contra o dele enquanto ela colocava o braço ao redor de seus ombros. Do lado de fora, a
base parecia deserta. Todos os cavalos também tinham ido embora.
- Black Ridge vai cair! - Gareth engasgou. - Depressa!
O s f i l h o s d o s r e i s | 262

Rahelle correu para fora do quartel e emergiu um momento depois com uma das
lâmpadas de mão dos fora-do-mundo. Gareth olhou para ela. Ele não tinha ideia de como
ela aprendera a usá-las.
- Vamos! - Ela pegou sua mão e puxou-o em direção ao cume.
Os primeiros passos foram os mais difíceis. No momento em que chegaram ao
perímetro da base, ele não precisava mais de seu apoio e foi capaz de correr.
Eles se correram pela noite.
Formas minúsculas, como gotas de vapor, pendiam no ar, sumindo quando eles se
aproximavam. Rahelle não pareceu notá-las, então Gareth pensou que aquilo só existia em
sua mente. Era preciso toda a sua concentração para continuar se movendo, colocando um
pé na frente do outro.
O terreno tornou-se mais ruidoso e irregular. Gareth tropeçou, caindo sobre suas
mãos e joelhos. Rahelle, que estava um pouco à frente, girou e correu de volta.
- N...não! C...c...continue indo!
Ela pegou a mão dele e puxou-o para cima.
Depois disso, Gareth tentou manter seu ritmo sozinho. Ele não se atreveu a cair, não
ousou diminuir sua corrida desesperada. Se o fizesse, Rahelle não o deixaria.
À frente deles, a crista bloqueou o horizonte inferior. A visão à frente infundiu Gareth
com uma onda renovada de energia. Ele estava respirando com força, os músculos de suas
pernas estavam começando a doer, mas sua mente estava clara e forte.
Rahelle jogou o feixe de luz sobre o chão à frente deles e gritou: - Lá! – Iluminando o
fundo da trilha.
Lado a lado, eles subiram naquela inclinação. A trilha subiu gradualmente a princípio,
depois mais acentuada. A respiração de Gareth ficou difícil. Suas orelhas pareciam captar os
batimentos fortes de seu coração. Ele não tinha ideia de quanto tempo eles tinham, até
onde eles precisavam correr para estarem seguros ou quão larga era a área que Poulos
pretendia destruir. Ele ficou um pouco surpreso que chegaram isso tão longe... Ele não
podia dizer quanto tempo vagaram em seu choque psíquico... A menos que Poulos tivesse
mentido e aquilo fosse apenas uma ameaça vazia. Não. Havia verdade nos pensamentos do
capitão de contrabandistas.
Esta seção da trilha parecia vagamente familiar, ziguezagueando em uma série de
curvas fechadas, seguindo o contorno da encosta. Em alguns lugares, ele escorregou entre
o cume e os pedregulhos, mal se segurando, às vezes batendo o ombro na parede rochosa
que obscurecia a vista abaixo. Se sua memória estivesse certa, eles tinham feito até agora
pelo menos um terço do caminho para a crista.
O feixe de luz oscilou quando Rahelle vacilou. Ela não ia conseguir acompanhar esse
ritmo por muito mais tempo. Gareth encurtou seu passo para ela se aproximar. A lâmpada
O s f i l h o s d o s r e i s | 263

de mão limitou a visão dos contornos de suas feições, mas ele não conseguia ler sua
expressão. Ela devia estar pensando a mesma coisa, que eles precisavam de cada segundo
dentro da maior velocidade que pudessem forçar de seus corpos. Mesmo alguns momentos
de descanso poderiam custar suas vidas.
A luz piscou atrás deles, seguida um instante mais tarde por um rugido como mil
palmas simultâneas ecoando como um enorme e duradouro trovão. Gareth se jogou entre
Rahelle e a explosão. Seu peso levou os dois para o chão, por muito pouco não caindo sobre
uma pedra meio enterrada, grande o suficiente para ocultá-los um pouco.
O calor emanou fervendo da cratera. Atrás do pedregulho, Gareth suas costas e rosto
estavam meio protegidos e Rahelle um pouco mais por seu corpo acima dela. A rocha os
protegeu do pior do ataque, mas, mesmo assim, era como se ele estivesse dentro da porta
aberta de um forno. Abaixo dele, Rahelle choramingou.
A luz desapareceu.
Gareth percebeu que estava segurando sua respiração. Seus pulmões doíam, seu
coração martelava em seu peito, sua pele estava quente e escorregadia, assim como a de
Rahelle. Ele rolou para o lado, tendo o cuidado de manter seu corpo entre o dela e a queda
da trilha.
Ela deitou de costas, engolindo respiração após a outra, se acalmando. A lâmpada de
mão havia caído a uma pequena distância ao pé de uma rocha menor. Por algum golpe de
sorte, não caíra.
Gareth conseguiu ficar se levantar, meio de joelhos. Ele se arrastou até a lâmpada e a
desligou. Ele não sabia quanto tempo podia durar ou quando precisariam de novo. Então
ele voltou ao seu pequeno abrigo.
Rahelle recuperara sua respiração o suficiente para falar: - Temos de continuar.
- O pior... – Ele se forçou a dizer entre as respirações. – Passou.
Não, alguma parte de sua mente se arrepiou. O pior está por vir. Hayat está a caminho
de Shainsa, armado com blasters. Os piratas em breve apontarão suas armas para o
Espaçoporto de Thendara. E ele não podia fazer nada sobre isso, nem mesmo dar um aviso!
Ou isso era uma desculpa para nem mesmo tentar?
Ele sabia que não estava pensando claramente. A separação de sua pedra da estrela o
deixou desorientado e ele ainda estava cheio de adrenalina pela corrida para longe do QG
de contrabandistas.
No entanto, ele ouvira histórias que, na época, pensara serem apenas imaginação, mas
talvez a ficção tivesse em seu núcleo o germe da realidade... Afinal, Mikhail e Marguerida
conseguiam alcançar as mentes um do outro através de longas distâncias. Dizia-se que seu
avô Regis possuía o dom de Hastur, a matriz viva. Isso significava que ele não precisara de
uma pedra da estrela para usar seu laran. A história era que ele tinha encarnado o próprio
O s f i l h o s d o s r e i s | 264

Aldones, Senhor da Luz, com sua mente sem ajuda de mais nada... Mas as lendas sobre
Regis Hastur eram muitas.
Se houvesse um fragmento de verdade nessas histórias... Mas Gareth não era seu avô,
nem mesmo seu pai. Ele nem era um dos novatos na Torre Comyn. Mas era com ele. Se ele
não pudesse enviar um aviso, não seria enviado por ninguém.
- Rahelle... – Quando o nome deixou seus lábios, ele percebeu o quão precioso e raro
era poder chamá-la por seu nome real. Não “menino dos cavalos” e nem “aprendiz”, mas
sim o nome de uma mulher corajosa. - Estamos seguros o suficiente onde estamos. Eu irei...
Eu posso parecer estar dormindo ou como se tivesse desmaiado novamente. Não tente me
acordar. Se eu não sair disso, você deve continuar sozinha. Por favor.
Pelo farfalhar de pano e os sons nas pedras, Rahelle estava se sentando. - O que você
está dizendo? O que você quer fazer?
O primeiro impulso de Gareth foi descartar suas perguntas, dizer que seria complicado
demais para explicar. Mas ele soaria como um louco completo e era provável que ela não
acreditasse nele, de qualquer maneira. A intimidade de ter falado seu nome em voz alta
ainda permanecia em sua mente e em seu coração. Ele podia não sobreviver,
principalmente ainda estando prejudicado pela perda de sua pedra da estrela e estar
fisicamente esgotado. Se esta fosse a última vez que falaria com ela, ele queria mesmo que
fosse uma mentira?
- Vou tentar alcançar meus amigos em Thendara. Com a minha mente. Para avisá-los
sobre Hayat e sobre as naves da Federação.
Por um longo momento, um momento em que as batidas de seu coração mudaram
para um ritmo estranhamente sincronizado, não houve resposta. Então Rahelle disse: - Com
sua mente, você disse? Como isso é possível? Você não é... Você é um... Você é, não é?
- Comyn. Sim.
- Isso explica como você é tão bom com uma espada. Seu sotaque. O jeito que você
age como se possuísse o mundo. - Ela fez uma pausa. - Garrin não é seu nome verdadeiro,
é?
- Gareth. - Ele poderia parar por aí e seria a verdade. Mas ainda seria uma mentira. -
Gareth Marius-Danvan Elhalyn y Hastur.
- Aquele Gareth?
- Aquele Gareth. Você me despreza agora?
Depois de outra pausa, ela disse: - Isso não comanda quem você é, sabia. Mas conta a
seu favor. Você não é um incompetente congênito, apenas o resultado do fato de todos os
outros estarem sempre fazendo coisas para você. Então, o que você precisa que eu faça
enquanto você faz sua feitiçaria Comyn?
Ele sorriu para a escuridão. O que ele iria tentar não era feitiçaria, mas sim loucura.
O s f i l h o s d o s r e i s | 265

- Apenas o que eu disse. Não quebre minha concentração. Não se coloque em risco se
eu não voltar. Se Adahab tiver palavra, ele estará esperando em Nuriya. Então ele guiará
você através das Areias do Sol...
- Eu não vou sem você.
- Rahelle. - Ele disse e depois percebeu que não funcionaria. Ela ficou no QG por ele.
Ela voltou na trilha. Pelo sétimo inferno congelado de Zandru, ela até se recusou a deixar
Nuriya. Nada que ele dissesse a faria mudar de ideia.
Se rendendo, ele se posicionou da forma mais confortável que pôde encontrar e
fechou os olhos. Como foi ensinado, ele diminuiu sua respiração, movendo-a em sua
barriga. Sua mente, já fragilmente presa a seu corpo, começou a derivar.
- Eu vou cuidar de você. - Rahelle murmurou. - Onde quer que você vá e por onde
vagueie, vou mantê-lo seguro.
Gareth não podia imaginar como responder. Se ele abrisse a boca, não seria capaz de
falar, apenas chorar.
Ele lançou seus pensamentos para o vazio.
O rendilhado de pedras de luz interrompeu em sua visão interna, apenas para se
dissolver em padrões de cores e movimentos, formas que se alongavam de forma instável
enquanto ele assistia. Em um momento eram pequenos e estranhos como minúsculos
glóbulos de gelatinosos, logo em seguida eram tão sólidos quanto uma parede de pedra,
depois se dissolvia em torrentes como granizo, cristais cintilantes derivando a seus olhos.
Ele piscou, lutando para focar seus pensamentos.
Vó Linnea...
De todos os leroni que ele conhecia, de todas as mentes treinadas e talentosas, a que
ele tinha maior chance de alcançar era sua Guardiã. Ele focou em seu nome, na memória do
rosto dela e o som de sua voz.
Vovó! Ajude-me!
De novo e de novo, ele enviou seu pedido. Em cada vez, ele falhou... No entanto, com
cada tentativa, ele sentia a certeza de que alguém estava lá, além de seu alcance.
Ajude-me!
Se ele pudesse firmar e se esticar um pouco mais longe... Mas ele não tinha onde ficar
de pé. Sua mente era tão sem forma e instável quanto o vórtice lá fora, confuso e mudando
para a iridescência que agitava sey estômago.
Aguente firme...
Gareth não podia dizer se o pensamento era o seu ou o eco distorcido de outra
pessoa...
Segure firme. As palavras eram como uma pequena semente, um seixo, um fragmento
de cristal.
O s f i l h o s d o s r e i s | 266

Segure.
O firmamento psíquico estremeceu sob um chicote renovado de correntes giratórias,
de cores que colidiam e se misturavam, formas surgindo, alongando e se tornando pó de
um cristal brilhante...
Cristal... Ele se agarrou à imagem, claro e duro, as facetas refletindo a luz azul pálida,
brilhante, em um momento se estendia até os fins do cosmos e no próximo era
infinitesimalmente pequeno.
Eu sou aquele cristal... Seguro e firme... Rápido. Segure. O mundo balançou, tremeu e,
em seguida, todo o caos sumiu.
Quem é?
A pergunta quase quebrou seu foco, tão inesperada foi. O momento se esticou no que
pareceu uma eternidade. Ele flutuou no vazio em que apenas duas coisas existiam: o cristal
que abrigava um cintilar azul claro e a memória daquela pergunta.
Quem chama?
Ele não tinha ideia de como responder. Quem era ele? O que era ele? O que ele
precisava mais do que ajuda para si mesmo?
Nas cavernas obscuras de sua mente, homens montavam em cavalos sobre as areias,
homens que usavam dispositivos estranhos. Onde quer que eles passavam, o fogo explodia
de suas mãos erguidas. Eles explodiram pedras, árvores, homens, animais, montanhas e
estrelas. A terra tremia sob os cascos galopantes de seus cavalos, cavalos com caveiras nuas
no lugar de suas cabeças e caudas pontudas de formigas-escorpião. Eles deixaram para trás
uma trilha de sangue que explodiram em chamas carmesins. O fogo morreu, deixando
manchas enegrecidas como vidro carbonizado.
Quem? Onde?
Ao redor dele, as paredes de cristal azul se solidificaram. Ele a sentiu segurá-lo,
embalá-lo. A voz que falou em sua mente assumiu uma clareza feroz.
Onde?
Ele reconheceu o padrão mental disciplinado de um Guardião, mas não sua avó
Linnea. Ele não conhecia essa mulher. Era uma mulher, disso ele tinha certeza. Ele não
tinha dúvidas do poder que ela tinha para que o ouvisse a tantas milhas.
As manchas enegrecidas se encolheram, ou melhor, sua própria perspectiva se
ampliou, não mais em algum ponto de um oceano seco, mas sim no centro de uma cidade.
Ele lutou para visualizar o QG Terran, as antigas muralhas da Torre Comyn, o Espaçoporto
como ele tinha visto na última vez.
As chamas voltaram, mais violentas do que antes. Elas se espalharam pelos limites dos
campos de pouso e através da Zona Terran circundante... Pela Cidade Comercial e as
encostas nas áreas residenciais mais ricas... Agredindo o Castelo Comyn... Pedras
O s f i l h o s d o s r e i s | 267

desgastando sob o calor... Paredes caindo... Homens queimando como tochas, seus ossos
soprados pelo ar como poeira e fuligem...
E, acima de tudo isso, enormes naves alongadas de metal reluzente... Navios que
enviavam o fogo...
Uma pausa se seguiu enquanto ele sentia a Guardiã absorvendo o que ele tinha
acabado de lhe comunicar.
Ele sentiu uma pressão em sua mente, uma luz cintilante naquele tom azul claro. Por
um instante, ele teve a sensação de olhar para um espelho, não vendo uma imagem literal
de sua mente, mas uma que compartilhava com alguém da mesma essência. Ele não
poderia ter nomeado ou mesmo reconhecido até aquele momento. Na mente dessa outra
mulher, ele viu a sua própria, seus medos refletidos.
Então ela se foi, ou talvez ele a deixara partir, se afastando lentamente, mas de forma
decidida através de um remoinho de estrelas, até que abriu os olhos e viu Rahelle sorrindo
para ele.
O s f i l h o s d o s r e i s | 268

Capítulo 29

Em sua sala de estar na Torre Nevarsin, Silvana despertou de seu transe, ofegando. As
imagens de fogo e destruição ainda permaneciam em sua mente. Nenhum simples sonho
poderia ter afetado ou invocado tais medos. Havia muito tempo desde a última vez que ela
acordara de pesadelos com figuras sem rosto e ameaçadoras. E ela nunca sonhou com fogo
consumidor ou cavaleiros que deixavam rios de sangue e cinzas em seu rastro.
Sua pedra da estrela estava na palma da mão, aquecida por sua pele. Ela a protegeu na
seda isolante e colocou em seu seio, puxou o xale com mais força em torno de seus ombros
e se forçou a analisar a situação.
Ela estava trabalhando com a pedra como se tornara seu hábito diário desde que
retornara da Floresta Amarela, usando a matriz para amplificar seu dom natural para
desenvolver ainda mais sua sensibilidade e controle. Como Guardiã, ela havia dominado as
habilidades de reunir e integrar as energias mentais das pessoas em seu círculo. Agora
forçava sua própria mente a uma maior flexibilidade, força e disciplina para resistir à
atração da matriz Coração.
Se os Chieri puderam sentir que as naves espaciais terem desembarcado nas Cidades
Secas, então talvez eu também possa.
No começo, seus esforços a deixaram exausta e confusa. Mesmo melhorada pela
pedra da estrela, sua mente não parecia capaz de alcançar essas vastas distâncias. Mas ela
havia persistido, em parte por teimosia, em parte pela lembrança da preocupação na voz
de Lian.
Ela se sentia fraca como ela não se sentia desde seus dias de novata. Ela precisava
reabastecer a energia que seu corpo tinha gasto. Só mais um pouco, ela prometia a si
mesma.
Ela tinha criado uma forte barreira em sua mente contra todas as pedras da estrela
enquanto se mantinha em transe, exceto as suas. Ainda assim...
Alguém havia tocado em sua mente. Não só a tocado, mas transmitido imagens de tal
desespero que ela ainda reagia visceralmente à sua vivacidade.
Náusea cutucou-a, um sinal do esgotamento de seu corpo. Ela não podia pensar com
clareza ou agir racionalmente em tal estado. Como de costume, ela havia colocado um
prato de bolos de mel e frutas secas a um alcance fácil. Ela pegou um punhado de cerejas
secas e um pedaço de bolo de mel com nozes.
Ela pensou por um momento na possível identidade de seu informante que era um
mistério, um segredo talvez. Era um homem jovem, ela acreditava, mas não era qualquer
trabalhador de Torre que ela conhecia.
O s f i l h o s d o s r e i s | 269

O que ele enviara à sua mente, por outro lado, não podia ficar em segredo. Os
cavaleiros loiros poderiam ser Ridenows, mas ela não acreditava nisso. Esse Domínio era
pacífico e bem governado por seu Lorde atual.
Eles montavam sobre areias... Areia sugeria as Cidades Secas.
Drytowners usando armas de tal poder?
Como isso era possível? Os drytowners nunca tiveram essas coisas, nem mesmo
durante as Eras do Caos, quando os Sete Domínios haviam sido dilacerados pelas guerras de
laran. Tanto quanto ela sabia, os Terranan nunca tiveram contato com eles. Mas as naves
que Lian tinha dito: Lá em cima, passando e se estabelecendo longe, nas areias distantes.
Pare. Respire. Pense.
As armas de fogo pareciam fantásticas, assim como os cavalos com caudas de formiga-
escorpião e cabeças de crânio nu. Portanto, a imagem podia não ser uma memória real, a
menos que o informante fosse insano. Mas a mensagem não um traço de alucinação. Ela
havia visto muitos homens com as mentes quebradas e saberia reconhecer isso. Não, essa
pessoa estava perturbada, mas não louca.
Então as imagens não eram literais, mas metafóricas. Metáforas para o quê?
Silvana segurou uma segunda taça de vinho temperado. O tremor em seus membros
diminuiu e sua visão se estabilizou, mas ela não conseguia pensar no que os animais e seus
cavaleiros poderiam representar. Eles pareciam frutos de pesadelos infantis.
Ela não podia pensar o que e se haveria algo a ser feito sobre a ameaça dos
drytowners, se de fato houvesse uma. Ela deixou de lado aquela linha de pensamento e se
voltou para as imagens das estrelas.
...Naves no alto, chovendo fogo sobre uma cidade... Uma cidade com torres, um
castelo no antigo estilo do Comyn... Thendara, só pode ser Thendara... Uma ampla extensão
pavimentada onde se erguiam edifícios retangulares de vidro e metal... O Espaçoporto?
Ela tinha visto o Espaçoporto da Federação quando criança. Regis a levara lá, durante
esse breve momento em que tinha sido seguro, quando eles tinham sido uma família unida.
Ela tinha visto naves como as da visão, esperando para se lançar no espaço. Ela se lembrava
de sentir o anseio de seu pai para pegar uma passagem e partir nelas. Essa memória ela
guardara como uma lembrança de que todos anseiam por coisas que não podem ter. Todos
nós, à nossa própria maneira, devemos responder às demandas de dever e honra.
Quem tinha enviado essas imagens acreditava que o Espaçoporto de Thendara estava
em risco. Dirav e os outros, eles também teriam sentido isso?
Quanto a quem tinha enviado o aviso...
Era alguém que recebera informações de que os drytowners tinham ou poderiam ter
obtido armas proibidas pelo Pacto.
O s f i l h o s d o s r e i s | 270

Alguém que acreditava fervorosamente que o Espaçoporto corria perigo de um ataque


devastador.
Alguém que foi capaz de alcançar sua mente, sem ajuda.
Alguém com o dom de Hastur.
Silvana fechou os olhos, focando sua pulsação a desacelerar. Seu corpo, disciplinado
por anos de rigoroso controle fisiológico, respondeu. Ela envolveu o xale ao redor de seu
corpo e empurrou os pés em seus chinelos feltrados. O alojamento das telas de
retransmissão estaria frio, particularmente o piso de pedra.
Era hora de chamar a mãe dela.

~o ⭐ o~
Silvana se acomodou diante das telas de retransmissão, certificando-se de que sua
espinha estava corretamente alinhada e seu xale firme ao redor dela para manter o calor
do corpo. Exceto pela mensagem naquele dia que tinha sido chamada para receber
pessoalmente, ela não havia trabalhado nas restransmissões a muitos anos.
Provisoriamente, as telas estavam sintonizadas com outras mentes. Ela poupou um pouco
de tempo para recalibrar as ligações em suas próprias preferências. O que ela pretendia ia
ser difícil o suficiente sem a irritação adicional de uma pequena quantidade de distorção.
Ela precisava ser capaz de se comunicar o mais claramente possível.
Quando ela ajustou a matriz à sua satisfação, entrou na treliça de cristal psicoativo.
Embora a Torre Comyn não estivesse operacional quando ela treinou nas retransmissões
quando era novata, não teve dificuldades em localizá-la.
Torre Comyn...
Ela entrou em contato com a presença na outra extremidade da retransmissão.
Torre Nevarsin.... Silvana, é você? Aqui é Illona! A alegria da mulher mais nova brilhava
na conexão psíquica.
Silvana sentiu como se uma barreira tivesse sido quebrada em torno de seu coração.
Illona Rider, que servira como sua Sub-Guardiã, a quem ela amava como filha e tinha ido
para Thendara como Sub-Guardiã.
Chiya, quão maravilhoso é falar com você. Você está bem?
Mais do que bem! Eu estou... llona quebrou o pensamento coerente e projetou uma
imagem mental de si mesma, radiante com saúde e felicidade ...grávida!
A alegria de Silvana vacilou. Isso seria seguro, trabalhar como leronis enquanto
carregava uma criança?
Illona respondeu com um tom de riso silencioso. Linnea me garante que é, contanto
que eu permita que ela me monitore regularmente. Preciso ter algo útil para fazer ou eu
O s f i l h o s d o s r e i s | 271

fugiria para me juntar aos Viajantes novamente! É muito melhor fazer o trabalho para o
qual fui treinada.
Por um longo momento, Silvana lutou para controlar seus próprios pensamentos. Ela
era imune ao dilema enfrentado por tantas das mulheres de sua casta, pois nunca havia
tido um amante na Torre. Agora ela entendia como sua mãe havia lutado com a escolha
entre seu trabalho como Guardiã e sua família.
Quão apavorada ela deve ter ficado quando as crianças estavam sendo sequestradas,
depois de tudo que ela havia sacrificado por mim.
Illona teria escolhas mais fáceis? Conhecendo a autoconfiança e o espírito feroz da
jovem, Silvana duvidava que ela sairia ilesa às dores pelos papéis tradicionais.
Perdoe minha explosão, Illona disse. Eu não esperava encontrá-la nas retransmissões.
Aconteceu alguma coisa para você estar abrindo mão de sua reclusão agora?
É uma questão entre Guardiãs. Silvana enviou um pulso de afeição para temperar a
formalidade de sua declaração. Preciso falar com a Guardiã da Torre Comyn.
Claro. O cintilar de curiosidade da mente de Illona desapareceu, substituído por sua
praticidade. Ela não está trabalhando no círculo esta noite. A trarei o mais rápido que
puder.
Não muito rápido, pois eu não quero ser a causa de um acidente com você descendo as
escadas!
Eu irei com cuidado... mas rápido!
Apenas um curto período depois, a retransmissão brilhou com o contato de Linnea.
Silvana sentiu uma tremenda onda de presença, de quietude, de ouvir. A excitação de seu
contato anterior fora embora, dominada como apenas uma Guardiã poderia dominar tais
sentimentos. Nem mesmo uma sugestão de ansiedade vazou através do contato.
Torre Comyn, Nevarsin envia saudações. A saudação de Silvana era excessivamente
formal, então ela ficou um pouco surpresa com a cordialidade da resposta. As palavras
eram formuladas, o fraseado tradicional, mas permeado com uma sensação de boas-vindas
graciosas.
Como Guardiã da Torre Comyn e como representante do Conselho dos Guardiões,
saúdo você em resposta. Novamente veio um momento de silêncio contido.
Recebi um relato, talvez apenas um rumor, de um perigo ameaçando os Domínios. Não
posso garantir sua credibilidade, apenas a seriedade de sua fonte.
Que perigo?
Silvana relacionou sua análise das imagens dos cavaleiros das Cidades Secas com suas
armas brilhantes de estrelas, e o ataque ainda mais devastador do espaço.
Obrigada pelo aviso. E por quebrar seu longo silêncio, Linnea disse. Esses relatos são
preocupantes.
O s f i l h o s d o s r e i s | 272

Silvana concordou. Não parecem prováveis, mas se forem verdadeiros, os resultados


podem ser terríveis.
Eu garantirei que ambas as possibilidades sejam investigadas. Se os drytowners
tiverem, de alguma forma, conseguido armamento ilegal, todo o equilíbrio de poder com os
Domínios está em risco. O Regente tem agentes que lhe enviam informações pelo menos de
Carthon. Talvez eles possam olhar para o assunto e verificar ou refutar isso.
Isso levará tempo, Silvana apontou.
Tempo em que poderemos nos preparar, caso esse boato seja preciso. Quanto às
estrelas... Nós nunca esperamos que Darkover permanecesse isolado para sempre. Uma vez
que o conflito da Federação acabe, eles retornarão pelas mesmas razões que nos
procuraram em primeiro lugar. Enquanto isso, o equipamento de digitalização e
comunicação na base antiga ainda é operável. Jeram, de quem você se lembra, tem
treinamento de jovens em seu uso.
Jeram? Silvana recordou o Terran desertor como ele havia chegado à Torre Nevarsin,
um homem ferido em espírito e corpo. Sua amizade com Lew Alton começou o processo de
cura, mas quando ele deixou Nevarsin, ela tinha perdido o contato com ele e soube dele
apenas através de relatos. Ela não tinha ideia do que uma pessoa poderia fazer contra
dispositivos de tal poder terrível, mas Jeram era um homem de recursos consideráveis. Ele
tinha sido soldado, treinado na tecnologia militar fora-do-mundo.
Você acredita em seu informante? Linnea perguntou. Com qual base? Como ele ou ela
chegou a esse conhecimento?
Silvana hesitou. Sua primeira intenção tinha sido apenas passar o alerta, confiando que
Linnea, tanto como Guardiã quanto como a viúva Lady Hastur, daria os passos necessários.
Ela ainda não tinha entrado em acordo consigo mesma sobre quanto contato pessoal ela
queria com sua mãe. Seu encontro com os chieri e o novo conhecimento de que seu pai
tinha de fato tentado encontrá-la tinha dado a ela uma nova compreensão.
Silvana lembrou de sentar-se com a mãe em Alto Barlavento e depois na casa em
Thendara, tocando e cantando juntas, suas vozes e mentes em relacionamento sem
esforço. Ela sempre esteve em seus corações, como sempre estiveram no dela. Sim, isso era
verdade, assim como Lian, David, Keral e Dirav estariam sempre com ela.
Dentro da pequena bolsa pendurada de seu cordão em volta do pescoço, o Coração
irradiava um pulso de calor suave. Ela sentiu isso mesmo através das camadas de seda
isolante. Mas não era a hora. Ainda não.
Deixe-me te mostrar... Silvana abriu a memória daquele contato mental desesperado.
Através das retransmissões, ela sentiu como se sua mãe tivesse apertado as mãos dela. Suas
mentes uniram-se tão perfeitamente que tudo o que Silvana tinha visto e sentido apareceu
O s f i l h o s d o s r e i s | 273

em perfeitas réplicas na mente de Linnea. Silvana focou seus pensamentos naquele que
enviara o aviso, o homem com o dom de Hastur.
Só pode ser Gareth. Linnea soou angustiada.
Gareth?
O filho de seu irmão, Dani. Eu não entendo como ele foi capaz de fazer isso, chegar até
você sem ajuda de uma retransmissão ou mesmo de sua própria pedra da estrela... Mas não
há mais ninguém que possa ter feito isso. Quando Regis morreu, todos pensamos que o dom
de Hastur morrera com ele.
Gareth não foi testado para o dom?
Você não conhece sua história. Mesmo que seus pais concordassem, o Conselho nunca
teria aprovado. Eu o ensinei em particular, tanto a disciplina quanto o desenvolvimento do
laran que ele nunca seria permitido usar.
Gareth deve ter se encontrado em circunstâncias desesperadas para trazer à tona um
dom profundamente enterrado na vida.
Ele está fora por mais de uma tenday agora, Linnea disse e Silvana sentiu um lampejo
de conflito interior, como se Linnea estivesse lutando com uma decisão difícil, talvez se ou
não revelar algo contado a ela em confiança.
Quando menino, Linnea continuou, ele se entregou a muitos devaneios românticos
sobre aventuras. Dada a chance, ele seguiu o caminho para Carthon. Eu esperava que ele
tivesse o sentido de não se aventurar ainda mais distante, mas Gareth é... impulsivo. Todos
nós pensamos que ele havia superado isso, mas talvez ele tenha aprendido apenas a
disfarçar melhor. Sua voz mental soava desapontada, como se tivesse acabado de descobrir
o pior sobre alguém que amava e em quem acreditara.
Silvana sentiu uma simpatia inesperada por Gareth. Ela não sabia nada dele além do
que Linnea tinha acabado de dizer, e o enorme esforço e talento natural que ele devia ter
para se comunicar sem uma pedra de estrela em toda essa distância. Não era fácil acreditar
que uma leronis com a habilidade de Linnea não teria detectado as intenções de Gareth
para buscar aventura nas Cidades Secas, não com ele sendo seu aprendiz. Não sendo ela
quem o ensinara a usar sua pedra da estrela. Sua pedra da estrela.
Se ele tem uma pedra da estrela, Silvana disse, por que ele teria sido levado a medidas
tão desesperadas para ativar o dom de Hastur? Ela não pode ter sido tirada dele ou ele não
teria sobrevivido.
Somente se outra pessoa, além de Guardião, lidou com isso.
Mas então deve ter sido isolada
Muito bem isolada. Em um medalhão em forma de um amuleto de Nebran, o Deus
Sapo das Cidades Secas.
O s f i l h o s d o s r e i s | 274

Foi toda a admissão que Silvana provavelmente receberia. Linnea sabia que Gareth iria
para as Cidades Secas. Ela não tinha sido capaz de dissuadi-lo, então lhe dera a melhor
proteção que pôde. Algo havia acontecido, provavelmente não em Carthon, mas em uma
das outras cidades. Shainsa, talvez, ou Daillon, ou nas terras estéreis além. A imagem dos
cavaleiros armados com armas de fora-do-mundo agora parecia ainda mais provável.
E as naves chovendo seu ataque digno de pesadelo dos céus? Como Gareth tinha
descoberto isso?
O que está acontecendo nas Cidades Secas?
Eu não sei. Somente quando Linnea respondeu, suas emoções mais uma vez sob
controle impecável, Silvana percebeu que ela mencionara mentalmente a pergunta que
ecoava nos pensamentos de ambas.
Outros. Lian dissera. ... se estabelecendo longe, nas areias distantes.
Dirav falara sobre a defesa de Darkover. Só porque nos retiramos para nosso planeta
de origem não significa que nos esquecemos do que uma vez aprendemos durante aqueles
momentos em que estávamos igualmente em casa nos vastos alcances do espaço.
E então Dirav lhe dera o Coração.
O s f i l h o s d o s r e i s | 275

Capítulo 30

Abaixo, nas ruínas enegrecidas de Nuriya, uma foqueira estava queimando.


Gareth colocou um braço contra a face da rocha e analisou o que via. Sua visão ainda
era não confiável, ficando dupla ou distorcendo objetos em intervalos estranhos e
inesperados. Mesmo quando ele piscou, a chama amarela-alaranjada ainda brilhou na
escuridão. Então devia ser real, não uma memória ou sua imaginação.
Rahelle tocou seu ombro suavemente, de modo a não assutá-lo. Ela tinha sido
excepcionalmente solícita desde a tentativa de alcançar sua avó com seu laran. Mesmo
agora, ele não estava inteiramente certo de quem ele havia contatado, a mente
competente e aguçada que ele havia tocado, ou mesmo se era alguém realmente e não
alguma invenção de sua consciência desordenada. Ele não tivera forças para tentar
novamente. A fraqueza o dominava. Com a ausência de alimentos, seu corpo estava
consumindo sua própria substância para reabastecer a energia que ele tão
imprudentemente gastara. Rahelle devia ter sentido o que lhe custara, o que ainda estava
lhe custando, mas não havia nada que qualquer um deles poderia fazer, apenas continuar e
esperar que encontrassem um pouco de suprimentos na aldeia.
Quando se aproximaram do fundo da trilha, Gareth foi mais capaz de julgar o tamanho
da fogueira. Era pequena, bem contida. Ele não notara nenhuma figura em torno dela, mas
ao longo do perímetro de sua luminosidade, ele viu as formas de oudrakhis. Esse era um
sinal esperançoso e lhe deu energia para apressar seus passos.
Eles tropeçaram pelos escombros, indo para a fogueira. Antes de chegarem, o homem
que tinha estava sentado nas proximidades dela se levantou. Sua silhueta contra a chama,
se aproximou vindo em direção a eles, os braços estendidos.
- Meus amigos e bênçãos dos meus olhos! Eu choro de alegria por ver vocês de novo!
Naquele momento, uma mudança no ar trouxe o aroma de carne assada e as
especiarias picantes das Cidades Secas. Os sentidos de Gareth turvaram e seus joelhos
cederam. Rahelle o pegou sob um ombro e, um instante depois, Adahab pegou o outro.
Eles o levaram para o lado da fogueira. Gareth não conseguia entender o que eles estavam
dizendo, o que Adahab estava fazendo, apenas o prato de carnes fumegantes e uma pilha
de pequenos feijões que tinham um aroma surpreendentemente bom.
- Coma agora. – Adahab instruiu. - Histórias depois.
A princípio, tudo que Gareth conseguia fazer era levantar um pedaço depois do outro
para a boca. A comida era intensamente saborosa. Calor, da temperatura e dos temperos,
fluíram por sua garganta e enchiam sua barriga. Suas mãos pararam de tremer. Adahab
encheu seu prato novamente e depois de novo pela terceira vez. Quando Gareth abaixou
seu terceiro prato vazio, sua visão e seus nervos pareciam mais firmes. A perda de sua
O s f i l h o s d o s r e i s | 276

pedra da estrela ainda o prejudicava. Ele podia ver e ouvir bem o suficiente, mas seus
sentidos de laran estavam dormentes.
Enquanto Gareth comia, Rahelle havia esboçado a história para Adahab. O aldeão fez
um gesto de descrença pela loucura daquilo tudo e Gareth foi atingido pela decência na
essência do homem. A honra trouxera Adahab de volta à destruída Nuriya depois de ver os
aldeões sobreviventes seguros em Duruhl-ya, e ele pretendia permanecer ali até que
tivesse vasculhado toda a crista em para cumprir sua promessa. Tudo que Adahab queria
fazer era cortejar a mulher com quem pretendia se casar, cuidar de seus pais e seus
rebanhos, e viver uma boa vida de acordo com suas crenças. Ele não tinha interesse em
invadir ou conquistar ninguém.
Tais homens como ele não são meus inimigos. Seca, doenças e a arrogância de homens
como Hayat, essas coisas eram os inimigos. Se Hayat atacasse os Domínios, o povo de
Gareth sofreria, mas os homens como Adahab também sofriam ali.
Gareth se sentia tão sonolento, tão cheio e ainda assim tão drenado, que mal
conseguia manter os olhos abertos. Ele balançou onde estava sentado, mas, antes que
pudesse dizer qualquer coisa, Adahab o guiou para um cobertor desenrolado. Gareth
adormeceu apenas um momento depois de se enrolar.

~o ⭐ o~
Ele acordou com o sol alto, o resmungamento baixo do oudrakhi e um aroma
pungente e mentolado. A manhã estava bem avançada, mas Rahelle insistira para que
Gareth dormisse pelo tempo que pudesse.
Gareth comeu a comida deixada para ele e bebeu o chá estimulante. Enquanto
mastigava, olhou para cima, imaginando o que estava acontecendo com a Lamonica e a
nave do Setor de Castor, se os piratas haviam chegado ou quanto tempo demorariam. Ele
tentou, sem sucesso, se convencer de que, se os contrabandistas e os rebeldes partissem,
seus perseguidores certamente os seguiriam.
A pequena explosão de força da noite anterior havia desaparecido. Ele se sentiu meio
cego, meio surdo, preso em camadas de isolamento, sozinho como não se sentira desde
que seu talento despertou na puberdade. Sozinho, exceto por seus próprios medos.
Adahab havia encontrado um par oudrakhis da aldeia vagando nas proximidades,
então havia montarias para todos. Eles terminaram a comida e arrumaram os animais,
dando-lhes água do poço uma última vez. Rahelle sufocou uma risada pela expressão de
Gareth quando os grandes animais do deserto se moveram. O oudrakhi não era apenas
mais alto que os cavalos, mas sua marcha, um passo igual e ritmado, criava uma sensação
de balanço alarmante. Gareth sentiu uma pontada de náusea antes de Rahelle sugerir que
O s f i l h o s d o s r e i s | 277

ele mantivesse seu foco no horizonte, não no chão. Depois disso, o movimento ajudou a
soltar seus músculos.
Eles partiram através das Areias do Sol, refazendo a rota anterior. Os oudrakhis não
eram tão rápidos quanto os cavalos e Gareth não sabia se eles poderiam correr, mas
mantiveram um ritmo constante, hora após hora. Ao contrário dos cavalos, eles poderiam
seguir por vários dias sem beber. A resistência dos cavaleiros, e não das montarias, é que
limitava até onde eles poderiam viajar todos os dias.
Quando Gareth se acostumou à marcha de balanço do oudrakhi, ele teve tempo para
pensar. Da aldeia de Adahab, Kharsalla, ao caminho aberto a Shainsa, depois para Carthon.
E de lá, para casa.
Shainsa. Para onde Hayat certamente retornara, triunfante e exultante com suas
novas armas. Hayat, que tinha em sua posse o amuleto de Nebran...
Se Rahelle percebesse o que ele estava pensando, ela apontaria a loucura que era
procurar Hayat. Ele quase podia ouvi-la dizer: Você está tentando ser morto?
Ele não podia fazer nada sobre as estrelas. Ele não podia fazer nada sobre os blasters.
Ele já havia tentado enviar um aviso e ainda não tinha certeza se ele alcançado alguém ou
se fora uma alucinação nascida do choque por ter sua pedra da estrela arrancada dele.
Havia uma coisa que ele ainda podia fazer. Ele poderia desacreditar Hayat tão
completamente que Dayan rejeitaria os blasters. A única maneira que ele conseguia pensar
para realizar isso era desafiar Hayat, tornar aquilo uma questão de kihar, de honra. Ele teria
que mostrar a razão de sua posição e de estar disposto a morrer por isso, ser executado por
isso. Até porque mesmo se, por algum golpe absurdo de sorte ele sobrevivesse, não podia
arriscar que Dayan elaborasse mais planos ou procurasse por vingança. Dayan era um
homem perigoso e ardiloso, mas não era impetuoso. Se tudo corresse bem, haveria um fim
para os blasters em Shainsa. Naquele momento, não importava para Gareth se ele vivesse
para ver isso.
Ele não precisaria convencer Rahelle sobre seu plano, apenas mantê-lo em segredo.
Cyrillon ainda estava em Shainsa e Rahelle estaria a salvo com ele.
Rahelle. Segura.
Ele sentiu uma pontada, uma mistura de alívio porque ela estaria protegida e de dor
pelo tempo que nunca passariam juntos, as coisas que ele nunca diria a ela.
Ele não podia abordar Hayat na rua. Os lordes das Cidades Secas eram muito bem
guardados. No entanto, como aquele já havia sido apresentado na Grande Casa, Gareth
poderia pedir uma audiência legítima com o Lorde Dayan.
O que Adahab dissera?
Espadas e chicotes, ferramentas de kifurgh.
O s f i l h o s d o s r e i s | 278

O kifurgh era o duelo ritualíastico de honra entre os drytowners. Tal desafio,


pronunciado diante do Alto Lorde da cidade, devia ser respondido.
Gareth não era duelista, mesmo nas armas em que fora treinado. Não havia
possibilidade de que ele pudesse ganhar. Mas ele não precisava ganhar. Ele só tinha que
levar Hayat com ele.

~o ⭐ o~
Adahab não foi mais longe do que Kharsalla, onde ele fez um grande show para
presentear Gareth e Rahelle com o seu oudrakhi. A generosidade do presente aumentou
claramente seu prestígio, ainda mais do que os próprios animais teriam feito. Da pequena
aldeia, Rahelle não teve problemas em atuar como guia para Shainsa.
Empoeirados e cansados, eles chegaram aos arredores de Shainsa, suas sombras em
tons carmesins se alongando na areia.
Com uma pontada inesperada, Gareth percebeu que, depois daquele dia, Rahelle
nunca argumentaria com ele ou tentaria resgatá-lo novamente. No entanto, ele não podia
pensar em como fazer qualquer tipo de despedida sem despertar suas suspeitas.
Depois de gastar a última moeda em taxas nos portões, eles se aproximaram do amplo
quadrado não pavimentado onde Cyrillon havia montado seu acampamento entre os
outros comerciantes. Ali eles desmontados.
Embora a luz do dia diminuísse rapidamente, o mercado ainda estava repelto de
compradores e vendedores aproveitando o relativo frescor. Gareth olhou ao redor, mas ele
não pôde ver a tenda de Cyrillon. Usando o poço como um marco, eles pesquisaram a área.
Os comerciantes faziam seus preparativos para a noite e alguns os saudaram. Rahelle
respondeu-lhes com um gesto distraído. Com cada passo ela ficava mais notavelmente
frustrada.
- Eu poderia ter jurado... Não, eu estava certa. Era aqui que meu pai estava! - Ela
indicou um local agora ocupado por um grupo de comerciantes de couro que pareceu
entender seu gesto como um sinal de seu interesse nas mercadorias.
- Certamente ele não teria deixado Shainsa sem... – Ao notar seu olhar de olhos
arregalados, Gareth se interrompeu. Ele entregou as rédeas de seu oudrakhi a Rahelle e se
aproximou dos comerciantes de couro.
- Heya! - Um deles exclamou. - Mova essas feras fedorentas para outro lugar! Eles são
ruins para os negócios!
- Um cinto, bom senhor? – O sócio perguntou. - Oferecemos o melhor couro curtido de
toda Shainsa.
- Você sabe o que aconteceu com o homem que costumava ficar neste local? Um
comerciante de fora de Carthon? - Gareth perguntou, pegando o cinto oferecido.
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O comerciante de couro encolheu os ombros com indiferença exagerada. - Eu poderia


lembrar ou não.
O jogo de barganha irritou os nervos já desgastados de Gareth. - Eu não preciso de um
cinto. Eu não quero um cinto. Eu não tenho dinheiro para comprar um cinto...
- Mas o homem que estava aqui sim. - Rahelle cortou com um tom gentil.
Gareth entendeu o plano. - Ele tem nossos salários, você vê, e nós o cobraríamos aqui.
Não há nada que eu gostaria mais do que ter um novo cinturão para cada um de nós, uma
vez que tivermos nosso pagamento.
O comerciante que tinha oferecido o cinto murmurou algo sobre a ralé sem dinheiro.
Seu companheiro, aquele que fez o comentário sobre o odor do oudrakhi, disse: - O que se
diz é que ele foi levado para os alojamentos na cidade. Rua das Três Cabras, acho, ou em
algum lugar perto disso.
A tensão foi levantada dos músculos de Rahelle. Gareth disse: - Nosso agradecimento,
amigo.
O comerciante fez um ruído sugando o ar através da lacuna entre os dentes da frente
e apertou os olhos em direção aos oudrakhis. - Você não pode levá-los para esse distrito.
Novas ordens de Lorde Dayan.
- Yar. – O que tentara vender o cinto disse. - Quer se livrar deles? Não posso pagar
muito, não nessas condições, mas o preço do grão está muito alto. Vai custar mais do que
vale a pena alimentar.
Rahelle se virou para Gareth. - Meu pai deve ter colocado seus próprios animais na
periferia.
- Vá até ele, então. - Tomando as rédeas do oudrakhi, ele disse: - Eu vou cuidar deles.
Ele quase acrescentou: Eu vou me juntar a você mais tarde. Mas a mentira ficou presa
em sua garganta. Ela estava tão ansiosa para ver seu pai novamente que não percebeu.
Agora que o momento de despedida chegara, havia tanto que ele queria dizer para ela, mas
nada disso era possível. Ele apenas assentiu e a viu correr em direção à cidade.
- Bem, e sobre isso aí? - O comerciante de couro perguntou.
Gareth balançou a cabeça. Ele não era muito bom com barganhas, mas sabia que não
receberia um preço justo. Vendê-los ali resolveria o problema do que fazer com eles, mas
os animais não eram verdadeiramente dele. Eles pertenciam tanto a Rahelle quanto a ele, e
ele não ousava confiar em ninguém em Shainsa com o dinheiro.
Depois de algumas perguntas, Gareth encontrou um dono de pátio que não cobrava
nem muito e nem pouco, e cujos animais pareciam em condições decentes. Ele tinha pouco
para oferecer como pagamento. Sua faca de bota teria sido uma taxa generosa, mas ele
poderia precisar dela. No final, ele vendeu também uma das selas que o cavalariço aceitou
feliz como pagamento. Gareth deu o nome de Cyrillon Sensar como proprietário,
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hospedado na Rua das Três Cabras, e pediu que uma mensagem fosse enviada a seu
aprendiz, Rakhal, em dois dias. Se, por alguma sorte, o duelo fosse adiado até o dia
seguinte, ainda assim estaria acabado quando Rahelle recebesse a mensagem.
O dono do pátio, talvez considerando o desequilíbrio no acordo, incluiu uma refeição
de pão achatado com uma pasta espessa e picante de feijão e alho. Gareth comeu um
pouco, apenas o suficiente para sentir sua força ser renovada, mas não inflar sua barriga.
A noite quase tomara a cidade quando Gareth se retirou. A tocha cintilante suavizava
as paredes de arenito e tijolos de lama seca. Passando ao longo de uma fileira de pousadas,
ele diminuiu a velocidade para observar a luz vinda de suas janelas abertas e ouvir trechos
de música, vozes levantadas em risadas e o doce som de uma flauta. Ele pensou em
Rahelle. Mas se conteve. Ele não devia focar no que estava perdido para sempre.
Finalmente ele emergiu na praça aberta delimitada de um lado pelo grande prédio
quadrado que era a casa de Dayan. O lugar parecia ao mesmo tempo familiar e totalmente
alienígena, como se vislumbrasse em um sonho febril. A multidão esparsa se separou
diante dele. Ele não podia dizer se isso era algum movimento aleatório que sua mente
piorara em uma sensação de aproximação do destino, ou se algum aspecto de seu jeito ou
expressão fizera com que as pessoas se retirassem.
Os guardas estavam em ambos os lados das portas duplas. Eles observaram
atentamente a aproximação de Gareth. Ambos eram homens grandes, vestidos no libré
colorido de Dayan e bem armados.
Gareth assumiu sua postura mais imperiosa. Ele se lembrou de que os guardas
pudessem pensar o que quisessem sobre ele, contanto que o permitissem entrar.
- Eu sou Garrin de Carthon, com uma mensagem para Hayat, filho de Dayan desta
casa.
O mais baixo e mais largo dos dois guardas levantou um canto da boca em uma
expressão desdenhosa. - Eu não te reconheço, pó de sarjeta. E o herdeiro de Shainsa não
trata com a ralé.
- O herdeiro de Shainsa não recebe ordens de você. - Gareth respondeu no mesmo
tom. - E Lorde Dayan já me conheceu na minha visita anterior. Duvido que ele sentiria
prazer ao ter um convidado tratado de forma tão desrespeitosa por causa da minha atual
aparência infeliz.
A boca do guarda se apertou e seu olhar cintilou para seu companheiro. Gareth
imaginou que estavam pesando o risco relativo de admitir um homem que se portava como
da realeza, embora ele estivesse inegavelmente tão imundo e esfarrapado quanto qualquer
mendigo, ou enfrentar a ira de Dayan por uma violação da hospitalidade em relação a um
convidado conhecido.
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- E então? - Gareth exigiu. - Você vai me fazer esperar a noite toda? Você vai fazer
Lorde Dayan esperar a noite toda?
O guarda mais alto quebrou primeiro, recuando quando abriu uma das portas duplas. -
É com você, então, e que caia sobre sua cabeça se o Grande Lorde ficar de alguma forma
descontente. - Ele empurrou o queixo em direção ao seu companheiro, que visivelmente
reprimiu um suspiro antes de liderar o caminho para dentro.
O hall de entrada e a colunata pareceram muito mais imponentes do que Gareth se
lembrava, banhado na luz vacilante de tochas. Fumaça carregada de incenso subia em
espirais de um par de braseiros de latão e tão finamente forjado que deveriam valer o
preço de uma aldeia inteira. Havia mais homens enfrentados em libré e menos pessoas
comuns do que na visita anterior de Gareth com Cyrillon, mas aquilo havia sido durante o
dia... e Hayat ainda não tinha retornado com os blasters.
As botas de solados suaves do guarda dificilmente emitiam um único som nas pedras
da pavimentação, mas cada passo reverberou através da medula de Gareth, cada passo
levando-o para mais perto de seu destino. Ele pensou como aquilo era tolice. Ele deveria
ter pensado em tudo. Ele deveria ter descansado durante a noite em vez de correr até ali,
ainda cansado de sua jornada. Ele devia ter...
Era tarde demais. E o que isso importava, contanto que ele levasse Hayat com ele? Ele
precisava apenas de muita força, muita rapidez e muita sorte. Nada mais.
Com um sobressalto, Gareth percebeu que haviam chegado ao salão de audiência.
Quando o guarda abriu a porta, Gareth vislumbrou o interior, brilhante com bancos de
tochas. A fumaça se misturava com o incenso criando uma neblina através da qual todas as
riquezas da Corte de Lorde Dayan pareciam uma miragem.
O guarda falou algumas palavras para outro homem libré dentro da porta, depois
gesticulou para Gareth entrar. Com a boca repentinamente seca, Gareth entrou. O homem
de libré escoltou Gareth para onde Lorde Dayan estava sentado. Como se estivesse em um
sonho, Gareth fez o caminho através da assembleia de cortesãos e nobres menores em
suas vestes e cinturões de seda repletos de jóias, sentadas em suas almofadas de brocado
ou de pé ao redor, os servos e os guardas armados se movendo em suas funções. Em algum
momento, quando Gareth e sua escolta haviam prosseguido, talvez até a cadeira única no
final, a assembleia o notou. Conversas murmuradas cessaram, de modo que ele ouviu a voz
distinta de Hayat, seguida por um comentário ruidoso.
Hayat estava sentado à mão direita de seu pai, vestido com uma roupa que brilhava
com fios de ouro. A abertura do pescoço estava solta, de modo que Gareth pôde ter um
vislumbre de algo de prata na garganta de Hayat:
O amuleto de Nebran!
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Quando Hayat falou, ele gesticulou com uma mão enquanto brandia um blaster com a
outra. Uma pilha das armas de fora-do-mundo, provavelmente todo o lote, estava aos pés
de Dayan. Dayan olhava para eles com o mesmo olhar intenso que Gareth lembrava de seu
primeiro encontro. Como antes, o Lorde de Shainsa usava roupas escuras.
Merach, de pé atrás do ombro esquerdo de Dayan, foi o primeiro a reagir à
abordagem de Gareth. Ele não sacou a espada, mas moveu a mão para o cabo e se
posicionou de tal maneira que poderia facilmente sacá-la enquanto ele passava entre seu
Senhor e qualquer ameaça.
Dayan acenou para a escolta de Gareth e os dois trocaram palavras murmuradas.
- Que mensagem você tem para o meu filho? - A voz de Dayan, embora não alta, era
bem carregada. Ele colocou uma ênfase sutil na palavra que transmitia muito sua rejeição
legitimidade de Gareth, como se disesse: O que deu a um lixo como você o direito de
respirar o mesmo ar que respiro?
Mesmo o mendigo mais pobre, Gareth pensou, pode falar a verdade.
Lentamente, deliberadamente, Gareth moveu seu olhar de Dayan para Hayat. Ele não
tinha ideia de como os drytowners diziam um desafio formal, nem importava.
- Você, Hayat, filho de Dayan, é um ladrão e um mentiroso! Eu o chamo assim diante
desses grandes homens de Shainsas e diante de todos os deuses!
Choque e silêncio o responderam.
Hayat se levantou com visível esforço no controle de si mesmo, sua espada já meio
sacada, um vermelho intenso em suas bochechas.
- Espere! - O comando de Dayan soou como o golpe de um chicote. - Este homem
pronunciou acusações graves, de fato, mas também são acusações de desonra.
- Mas pai, ele é apenas um aldeão estúpido que estava trabalhando para os fora-do-
mundo. Ele não tem clã ou parentes, nem kihar! Eu deveria açoitá-lo como o encrenqueiro
que ele é e fazer disso um exemplo.
Quando Dayan avaliou seu filho, os minúsculos músculos ao redor de seus olhos se
apertaram. - O Herdeiro de Shainsa permitiria que tais acusações ficassem sem resposta?
O ar, tão denso e quente com fumaça e incenso, ficou frio. Gareth sentiu uma onda de
compaixão por Hayat, que nem sequer percebeu como acabara de desertar de um desafio.
- Ele não é ninguém, um pedaço de mentiroso, traiçoeiro! - Hayat continuou,
aparentemente não notando o escurecimento no semblante de seu pai. - Ele não merece
resposta! Pai, você não pode falar sério ao sugerir que eu deveria... - Sua voz falhou quando
alguma compreensão o atingiu. Ninguém se atreveu a sussurrar a palavra: covarde. Embora
fosse nítido.
- Sua Magnificência. - Merach falou no momento de pausa. - Estas são acusações
graves, mas qualquer um pode espalhar boatos e insultos, a fim de fazer travessuras. Não
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seria prudente investigar a base sobre a qual tais acusações são feitas antes de decidir
sobre uma resposta adequada?
Dayan se mexeu em sua cadeira, voltando sua atenção para Gareth. Uma vez que
Gareth teria se encolhido com tal olhar, mas Dayan não tinha mais o poder de intimidá-lo.
Para conseguir seu objetivo, Gareth deveria ser o mais provocante possível. Ele levantou o
queixo e olhou para ele.
- Estou ouvindo. – Dayan disse.
- Ele é um ladrão porque ele roubou de mim. – Gareth disse. - Ele tomou um item que
me pertence, sem nenhum direito legal. Ele é um mentiroso, e um traidor também, porque
lhe contou que esses blasters lhe darão o poder de conquistar seus rivais e ir para a guerra
com os Sete Domínios!
O rosto de Dayan mostrou um instante de surpresa antes de se firmar mais uma vez na
calma quase estóica. Hayat gritou: - Eu juro que nunca disse a ele!
- Cale-se tolo! - Dayan estalou.
- Até mesmo um homem sem estudos poderia adivinhar como você usaria as armas de
fogo. – Merach disse. Dayan abaixou o queixo em acordo. - Até agora, seus inimigos
tiveram recursos poderosos. É de conhecimento comum, não é, que apenas o impasse
resultante impedia a expansão de Shainsa.
- Você! - Dayan disse a Gareth. - Meu filho me trouxe os meios de alcançar a vitória e
você o acusa de traição! Eu deveria mandar você ser despido e chicoteado no mercado por
suas mentiras vis!
- Vá em frente. - Gareth colocou um pouco de presunção em seus passos enquanto se
aproximava. - Meu desconforto não alterará a verdade. Você descobrirá em breve o quão
confiável os blasters de fora-do-mundo são. Eles são bastante espetaculares, como seu filho
indubitavelmente o informou. Eles podem matar à distância e não há defesa contra o seu
poder. Mas por quanto tempo? O que acontece quando eles cessam seu trabalho no meio
de uma batalha?
Dayan franziu a testa.
- Hayat também te disse que o primeiro lote de blasters ficou sem poder em apenas
um dia? - Gareth continuou. - Um dia de uso leve, não lutando seriamente? Ele te disse que
o capitão fora-do-mundo usou um truque semelhante no chefe da vila mais próxima? E –
ele abaixou sua voz para causar um efeito dramático - ele disse se testou esses blasters
para verificar se estavam ou não quase com seu poder drenado?
Pelo tom vermelho de raiva de Hayat, Gareth sabia que ele não tinha testado os
blasters. Ele queria aumentar suas acusações.
Gareth voltou sua atenção para Dayan. - Que garantia você tem, então, que eles não
falharão no momento mais crítico, quando você estiver no calor da batalha com os
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exércitos dos Domínios? Uma vez que seus blasters se forem, o que irá parar seus
feiticeiros de derrubar os homens de Shainsa no chão? - Gareth lembrou com raiva da
ausência de seu laran e direcionou suas palavras finais para toda a assembleia ouvir. – E
tudo isso pela palavra de um ladrão?
Vermelho, Hayat respirou ruidosamente, preparou-se para responder, mas Merach o
cortou com um toque no braço.
A voz de Dayan estava tão controlada quanto a de Gareth naquele momento, e
igualmente carregada de poder. - O que você afirma que meu filho tirou de você?
- Lorde Hayat roubou um amuleto de prata com a figura de Nebran, o Deus Sapo. Se
deseja determinar a verdade de minhas palavras, procure por isso em sua posse.
Os guardas mais próximos de Hayat hesitaram, o medo em seus rostos simples.
Colocar as mãos sobre o herdeiro de Shainsa significaria a morte, mas a morte também viria
por desobedecer o comando de Dayan.
- Não há necessidade. - Merach disse no tom mais sombrio que Gareth já o ouvira
usar. - Eu mesmo testemunhei o ato. Lorde Hayat citou sua crença de que esse homem –
ele indicou Gareth sem nomeá-lo – perdera o direito ao favor de Nebran.
- Eu tinha todo o direito de pegar para evitar o sacrilégio! - Hayat disse.
- O que te deu o poder julgar a alma de outro homem? - Dayan perguntou e nem por
todo o ouro de Shainsa Gareth queria estar no lugar de Hayat.
- Ele serviu aos fora-do-mundo! Ele tentou evitar que eles me dessem as armas de
fogo como havia sido acordado!
Um longo momento de silêncio o respondeu.
- Esse assunto não deve ser julgado pelos mortais, - disse Dayan - mas pelo antigo
teste de kifurgh. A disputa acontecerá dentro da hora.
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Capítulo 31

Dentro de um quarto de hora, um círculo de luta foi estabelecido na praça fora da


Grande Casa. Um pequeno exército de servos estava ocupado em preparar a área,
colocando tochas e erigindo um estrado para a cadeira de Dayan, enquanto outros de
maior status carregavam as ferramentas cerimoniais: máscaras, chicotes e enormes luvas
acolchoadas a partir das quais três conjuntos de longas e curvas garras se projetavam.
Gareth tinha ouvido histórias de tais armas e como dizia-se que os drytowners adotaram
esse estilo de luta dos homens-gato.
Hayat subiu com três dos guardas mais elaboradamente vestidos. Merach gesticulou
para o outro portador de armas escoltá-lo. Gareth observou, intrigado, quando o Lorde das
Cidades Secas fez sinal para Gareth estender sua mão esquerda para Merach.
- Eu não entendo. - Gareth murmurou. - Você é o homem do Lorde Dayan e serviu a
Hayat. Por que você faria isso por mim?
- Você sabe pouco dos caminhos do kihar, homem de Carthon, apesar de você ter uma
grande dose de bravura. Ao indicar seu conselheiro mais confiável para garantir que tudo
esteja correto com as armas, meu Lorde garante que todo mundo saiba de sua
imparcialidade. - Merach apertou os laços ao redor dos pulsos de Gareth, depois testou a
luva para ter certeza de que não escorregaria. - Não deixe ninguém afirmar que qualquer
vantagem foi dada esta noite.
- E as espadas? - Gareth perguntou quando Merach colocou a máscara de couro sobre
sua cabeça. Gareth teve apenas um vislumbre do design pintado, os contornos exagerados
dos lábios, o largo nariz felino. A máscara tinha um cheiro fraco, desagradável, mas os olhos
eram largos o suficiente para não prejudicar seriamente sua visão.
- Nos tempos antigos, não usávamos espadas. - Merach virou seu corpo ligeiramente
para que Gareth, seguindo o movimento, visse um dos guardas colocando uma única
espada, cravada na areia no centro da arena. A primeira parte do duelo seria travada com
chicotes e garras, cada um se esforçando para atingir o outro, para enfraquecê-lo com dor e
perda de sangue. Levaria muito tempo ou uma sorte extraordinária para matar um homem
dessa maneira. A espada era o prêmio e a chave para a vitória.
Gareth flexionou os dedos da mão esquerda para testar a ação das garras. Ele se
perguntou quanta experiência Hayat tinha com elas. A luva parecia uma coisa alienígena
enxertada em sua mão, mas não era uma arma desonrosa como os blasters dos Terranan.
Quem as usava se colocava em igual risco que seu oponente.
O chicote era de couro trançado, exceto pela ponta que terminava em um punhado de
correias curtas. Era rígido como se não fosse muito usado, com um nó pesado no final da
alça que se encaixava perfeitamente na palma da mão de Gareth. Ele testou o equilíbrio,
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mantendo seu pulso solto. Ele provavelmente conseguiria apenas acertar uma ou duas
vezes e não tinha tempo para praticar, mas uma rápida olhada lhe disse que Hayat também
não era um especialista.
Quando Merach terminou de verificar o equipamento de Gareth, o barulho da
multidão aumentou. Através da máscara aquilo parecia o estrondo de trovões em picos
distantes. Parecia que metade da Shainsa ouvira falar do duelo e se reunira para assistir.
Então a voz de Dayan soou e os murmúrios morreram.
Dayan, tendo chamado a atenção da plateia, recitou um breve discurso em um dialeto
tão arcaico, tão cheio de termos desconhecidos e sotaque estranhos, que Gareth se
perguntou se não era parcialmente parte do idioma dos homens-gato.
- As regras são essas: - Merach disse, curvando-se para que Gareth pudesse entender
suas palavras, mesmo através da máscara. - Você deve ficar dentro da arena. Vocês devem
lutar até que um de vocês seja morto ou tenha cedido, caso em que esse possa ser morto
como sem kihar. Ninguém pode ajudá-lo. Voce entendeu?
Gareth suprimiu um arrepio. Não houve restrições à própria luta. Ele sentiu como se
tivesse quebrado em uma dúzia de pedaços, uma parte de seus pensamentos tentando
entender essas armas desconhecidas, outra inventando uma estratégia de como ele
poderia pôr fim a Hayat sob tais condições, e uma parte lutando com a certeza de sua
própria morte e como lutaria sob o embotamento que tinha sufocado seus sentidos
interiores desde que Hayat havia tomado o amuleto de Nebran.
- Tome seu lugar. - Merach apontou para um ponto ao longo da borda do círculo,
diretamente na frente de onde Hayat esperava. – Curve-se primeiro a Lorde Dayan e depois
a seu adversário. Lorde Dayan irá então sinalizar o início do duelo.
Como? Gareth se perguntou, mas sua boca estava seca demais para perguntar sobre o
sinal.
As tochas em torno da circunferência da arena brilhavam enchendo o centro com luz
vermelha e laranja. Diziam-se que os Terranan acreditam em um inferno de fogo e Gareth
pensou que poderia se assemelhar a isso.
Dayan levantou os braços e Gareth entrou no inferno da crença dos fora-do-mundo.
Do outro lado do círculo, Hayat fez o mesmo. Ele se agachou ligeiramente, os ombros
curvados. O amuleto de Nebran brilhou de sua camisa aberta.
Gareth manteve seus músculos soltos, seu aperto no chicote apenas firme o suficiente
para o controle.
Dayan abaixou os dois braços.
Com um grito sem palavras, Hayat saltou para frente. Por algum truque de luz, seus
olhos brilhavam como se tivessem explodido em chamas. Instantaneamente, Gareth viu
que Hayat tentava alcançar a espada imediatamente.
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Gareth correu para frente, embora não pudesse fechar a distância rápido o suficiente.
Então, como se um véu tivesse sido erguido de seus olhos, sua visão ficou clara. Ele podia
ver todos os detalhes da arena iluminada pelas tochas, cada grão de areia, todas as
estrelas.
Ele diminuiu a velocidade, focando o equilíbrio e trouxe o chicote em volta de si
mesmo e depois sobre sua cabeça. As correias foram impulsionadas em um arco longo e
preguiçoso. Sua mão passou pelo topo do círculo. Suas orelhas captaram o som fraco do
couro cortando o ar, movendo-se mais rápido e mais baixo, enquanto ele esticava o braço.
As pontas das correias dispararam com um ‘crack!’ estrondoso.
Hayat derrapou para parar e se esforçou para trás. Girando, ele enfrentou Gareth
passando pela espada cravada.
Sem tirar os olhos de Hayat, Gareth circulou para a esquerda, mantendo a mão com o
chicote em direção de seu adversário. Se ele fosse para a espada, estaria se colocando na
mesma desvantagem que Hayat tinha feito. Hayat já havia mostrado que podia ser
assustado, talvez até levado ao pânico.
Alguém na multidão começou a gritar, Gareth não conseguia distinguir as palavras,
apenas o sentido geral delas, incitando os lutadores a continuarem. Gareth lutou para
bloquear o som. Isso não era como praticar com um mestre, onde o objetivo era
aperfeiçoar a habilidade, a união perfeita da vontade, músculos e o aço. Não era como a
emboscada na trilha de Carthon. Então ele foi tomado pela surpresa como tinha acontecido
com seus companheiros, a adrenalina despertando pelo susto, lutando para salvar a vida de
seus companheiros. Essa violência ritualizada era outra questão completamente exultante
em sua crueldade.
Hayat levara aquilo ao coração, gritando selvagemente. Ele se endireitou de seu
agachamento. Um traço arrogante marcava seu passo enquanto ele espiralava em direção
ao centro, seu olhar não fixo na espada, mas sim em Gareth.
- Quanto tempo você acha que pode ficar contra mim, calçador de sandálias fraco?
Olhe para você, meio morto, esgotado pelo deserto, sua força quase acabando... -
Enquanto ele falava, a voz de Hayat se estabeleceu em um ritmo, meia de zombaria, meio
monótono. Ele sacudiu o chicote uma, duas vezes, seguindo sempre o ritmo de suas
palavras.
Gareth permitiu que seus ombros caíssem, como se soubesse que não tinha chances e
não havia saída. Ele encolheu os ombros, arrastando a longa linha de seu próprio chicote
para o lado, onde um rápido movimento de seu antebraço seria suficiente para tirar dessa
posição.
Hayat continuava balançando o chicote, rápido e ritmado. A cada quatro ou cinco
passos, ele soltava um rugido e fazia um movimento com sua luva de garras. As garras
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passavam tão longe que não representavam nenhuma ameaça séria. Hayat estava se
entregando a um espetáculo vazio, focado na aprovação dos espectadores.
Não, Gareth se corrigiu quando um dos ataques do chicote de Hayat ficou
perigosamente próxima. Hayat estava causando uma distração enquanto se aproximava.
Gareth pulou para trás, evitando por pouco a ponta do chicote de Hayat. Ele notou o
padrão agora, mas seu corpo estava reagindo muito devagar. A energia da refeição
consumida antes com o cavalariço não duraria. Seus músculos pareciam pesados com a
fadiga. Ele teria que se forçar muito naquela luta em breve.
Ele reuniu sua força irregular, escapando do ataque de Hayat enquanto puxava seu
próprio chicote. Embora não estivesse seguro de seu controle, Gareth guiou seu chicote em
arco na direção do rosto de Hayat. Hayat desviou. Um grito se elevou da multidão, uma
mistura de indignação e aplauso disperso. Gareth não podia dizer se realmente atingira o
outro homem.
Hayat balançou para trás, mas não soltou o chicote. Ele chegou até a beira da arena,
seu peito arfando, enxugou o rosto na parte traseira de sua mão enluvada. Na luz vacilante
das tochas, Gareth viu o fio de sangue em um pequeno corte na testa de Hayat, logo acima
do topo da máscara.
Por um instante, Hayat olhou para o tecido como se não pudesse acreditar que tinha
sido cortado. Gritando, balançando o chicote com movimentos frenéticos, ele se moveu
para Gareth.
Chicotadas foram dadas no ar, uma após a outra. Redemoinhos de poeira, finos grãos
de areia se elevavam à medida que as pontas do chicote atingiam o chão.
Gareth afundou em uma posição de luta, joelhos dobrados, peso equilibrado em
ambos os pés. Hayat estava balançando tão rápido e fechando a distância tão rapidamente,
que seu tempo de ação seria curto. Se Gareth se movesse cedo demais, Hayat poderia
desviar, recuar ou redobrar o ataque, mas não havia como saber qual dessas seria sua
reação.
O instinto mandava Gareth recuar. Foi preciso todo o seu foco para segurar sua
posição, esperar... Esperar até que o chicote de Hayat estivesse ao alcance.
Agora!
Gareth girou, usando seu corpo para guiar seu próprio chicote em um caminho
horizontal. O chicote se desdobrou assim que o chicote de Hayat desceu. Os dois chicotes
ficaram emaranhados, mais rápido que os olhos podiam seguir, enrolando-se um ao outro
como cobras. O impacto quase arrancou o chicote de sua mão, mas Gareth estava pronto
para isso, seus dedos firmes ao redor do nó do punho.
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Firme em seus pés, Gareth sacudiu o mais forte que pôde. Hayat, ainda segurando seu
chicote, foi puxado para frente, mas não perto o suficiente para chegar ao alcance das
garras de Gareth.
Hayat tropeçou ao perder o controle. A multidão respondeu com uma explosão de
gritos. Adrenalina e poeira saturavam o ar.
A súbita falta de resistência quase quebrou o equilíbrio de Gareth. Ele se recuperou
mais rapidamente do que Hayat, jogando de lado os chicotes enrolados. Sua mão direita
agora estava livre para pegar a espada.
Um instante depois, Hayat recuperou seu equilíbrio e bloqueou o caminho.
Gareth pulou em Hayat, mas suas garras cortaram o ar vazio. Hayat se revirou para
trás, mas agora ele estava ao alcance de Gareth. Ele continou, esforçando-se para fechar a
distância antes que Hayat se recuperasse.
O ângulo oblíquo do salto de Hayat levou-o além do arco das garras de Gareth. Com
uma velocidade surpreendente, ele apontou suas garras para Gareth, visando o lado
desprotegido de seu inimigo. Gareth girou, bloqueando com sua luva. Os dois conjuntos de
garras ecoaram num som metálico irritante enquanto colidiam e deslizavam mais um no
outro.
Hayat agarrou a máscara de Gareth, forçando-a com seu peso. A máscara se mexeu,
bloqueando parcialmente a visão de Gareth.
Gareth tropeçou, tentando escapar da carga súbita e esmagadora em seu pescoço. Ele
não podia ver e, se não se recuperasse logo, Hayat o jogaria no chão. Um rugido abafado
encheu seu crânio. A batida de seu coração e sua respiração difícil se misturou com os
gritos dos espectadores.
Desesperado, Gareth moveu sua mão livre ao redor. Algo frio atingiu seu antebraço.
Seus dedos escorregaram sobre uma superfície arredondada. A máscara de Hayat? E então
encontrou uma abertura, um buraco.
De repente, Gareth perdeu seu equilíbrio. Quando caía, ele firmou seus dedos na
abertura da máscara. Hayat caiu em cima dele em uma desordem de pernas e com as
garras surgindo. Gareth firmou os calcanhares na areia, lutando por tração, e tentou sair de
baixo de seu oponente. As pontas dos dedos encontraram algo macio e úmido. Com a
pouca tração que tinha, ele empurrou o mais forte que pôde.
Gritando, Hayat arqueou para trás.
Gareth sentiu o levantamento do peso de Hayat. Rolando na direção oposta, Gareth se
esforçou para ficar de pé. Ele podia ver um pouco através de uma abertura no olho, o
suficiente para ver a posição de Hayat. Gareth arriscou tentar mover sua máscara e a sorte
o fez conseguir colocá-la mais ou menos no lugar.
O s f i l h o s d o s r e i s | 290

Hayat conseguiu ficar de pé, sua mão livre sobre os olhos. Gareth julgou a distância até
a espada. Ele tinha apenas uma fração de segundos, um piscar de olhos, nada mais, antes
de Hayat reagir.
Acima, o céu noturno explodiu em luz.
O s f i l h o s d o s r e i s | 291

Capítulo 32

Gareth cambaleou sob o brilho repentino, como se os céus tivessem explodido. Sua
visão, adaptada ao escuro apenas iluminado pelas tochas, ficou nebulosa, cinzenta.
Atordoado, seus sentidos de laran captaram o fluxo das mentes encolhidas em terror e dor.
Ao redor dele, como se estivesse em contraponto, vozes ecoavam aos gritos e uivos.
- Aiie! – Alguns espectadores gritaram. - Feitiçaria! Demônio! Magia!
De longe, a maior parte da multidão caiu em silêncio.
Piscando, Gareth se endireitou. O olhar sobrecarregado parecia desbotado. Ele notou
a mais brilhante das estrelas e o brilho crescente violeta de Liriel... Então uma explosão
estelar em tom de ouro branco... E outra... E uma série rápida de explosões... Duas, três,
cinco, cada uma se sobrepondo à outra.
Um silêncio caiu sobre a platéia, exceto por um homem aqui e ali gritando de medo.
Poulos estava certo em nos avisar.
- Você trouxe isso para nós! - Veio um grito por trás dele. – Morra, cria de bruxa!
Gareth girou em torno de Hayat, a espada estendida. Se eles estivessem mais
próximos, Gareth teria sido executado antes que pudesse reagir. Mas, àquela distância, a
espada rasgou apenas sua camisa, cortando a lateral. Ele sentiu uma linha de ardor, um
toqaue frio ao longo de suas costelas, mas seu corpo já estava em movimento, girando
como ele havia sido ensinado pelos melhores mentores em Thendara.
Gareth saiu do lado externo da espada de Hayat e deixou o outro homem passar por
ele. Hayat havia golpeado descontroladamente e o desvio tirou ele de seu equilíbrio. Agora
que ele estava comprometido, pois a espada tinha sido movida de tal forma que podia
facilmente reverter sua direção. Gareth se aproximou mais. Ele alcançou o ombro de Hayat,
pensando em controlar o braço que segurava a espada do outro homem.
Outra explosão clareou o céu. Os olhos de Hayat brilhavam na luz forte. Seus lábios
recuaram de seus dentes. Ele moveu suas garras para o rosto de Gareth.
Gareth se abaixou. Uma das garras atingindo o couro duro de sua máscara.
Desequilibrado, ele tropeçou para um lado, se moveu enquanto caia, tentando evitar que
Hayat caísse em cima dele.
Eles rolavam um para o outro, se soltando e lutando. Por um momento hediondo,
Gareth se sentiu preso contra a areia, sua lateral doendo quase ao ponto da agonia. Um
ardor queimou sua pele. Garras brilharam na luz forte, depois desceram saindo de seu
campo de visão limitado.
Os pulmões de Gareth doíam e sua respiração soou rouca e pesada. Um zumbido
distante encheu seus ouvidos, apagando todos os outros sons. Vagamente, ele sentiu seus
braços e pernas empurrando. Com cada segundo, seus movimentos ficavam mais fracos,
O s f i l h o s d o s r e i s | 292

seus músculos menos responsivos. Ele ouviu um estalo forte acima dos sons da luta. A dor
de sua lateral recuou, como se estivesse acontecendo com outra pessoa.
Ele ansiava, com cada fibra de seu corpo e espírito, por se deixar levar. Afundar na
escuridão. Acabar com tudo. Ninguém esperava que ele continuasse lutando, não contra
essas probabilidades, não quando ele já estava ferido, talvez fatalmente. Não quando ele
nunca pensara que sobreviveria.
Sempre, sempre, ele vivera sua vida de acordo com as expectativas dos outros. De sua
avó Javanne, seus pais, o Comyn, Mikhail, Domenic, Danilo, sua avó Linnea.
Todos, exceto dele mesmo.
Ele havia jurado que não seguiria mais esse caminho. Não em voz alta, em palavras,
mas onde importava ainda mais: em seu coração. E agora ele desistiria porque era difícil?
Aldones, Senhor da Luz, Pai dos meus pais, ajude-me a terminar esta luta!
Com um grito inarticulado, Gareth redobrou seu ataque. A força fluiu nele, uma força
que ele não sabia que possuía. O corpo de Hayat era tão denso, tão pesado quanto nunca,
mas, de alguma forma, Gareth conseguiu encontrar uma abertura aqui, uma alavancagem
ali. Ele empurrou, retorceu e atacou como se tudo e todos em Darkover que ele já teve
contato dependessem disso. Seus pulmões queimavam. Seu coração batia como se tocado
por um baterista louco. Sua visão foi de cinza claro para azul incandescente.
Ele não estava mais vendo com seus olhos físicos, mas com seus sentidos mais
profundos. Acima dele duas naves pairavam em forma de lágrimas alongadas feitas de
metal. Ele sentiu os homens e mulheres a bordo, seu medo, desespero, sentiu o rangido de
deformação, a fumaça acre, o estremecimento com impacto após o impacto explodindo...
As imagens vacilaram, entrando e saindo de foco. Não imagens visuais, mas as
impressões, brilhando como se cercadas por luzes brancas, calor, química e determinação
tensa, pensamentos em vez de palavras....
Capitão, fomos atingidos...
Temos que nos render, enviamos uma mensagem...
Sem prisioneiros.
Fogo! Fogo! Fogo!
Chamas percorrendo os corredores, oxigênio vazando para o espaço, alimentando o
incêndio... Orações murmuradas, o rosto de um homem iluminado por luzes brilhantes que
se moviam em vermelho, azul, vermelho...
Azul.
E então uma terrível explosão através de sua mente, pelos céus, ofuscando a luz da lua
e das estrelas...
Um único ponto brilhante, objetos como cometas caindo lentamente, desaparecendo
lentamente na direção de Thendara.
O s f i l h o s d o s r e i s | 293

Soluçando, Gareth voltou para si mesmo. Ele estava de pé, embora não tivesse
lembrança de ter se levantado. Pela onda de calor húmido abaixo de sua lateral, ele sabia
que estava sangrando muito. Entre um piscar de olhos e o próximo, a aura azul clara
morreu. Sua boca tinha gosto de cinzas.
Ele oscilou com uma súbita e esmagadora fraqueza. Alguém o pegou. Uma voz
sussurrou em seu ouvido, fazendo cócegas nos cabelos finos de seu pescoço. Ele não
conseguiu entender as palavras.
Acima, as estrelas brilhavam, serenas em sua beleza, como se nada tivesse acontecido.
A arena ficou turva com sobreposição de imagens quando sua visão ficou
estranhamente dupla. A uma curta distância, um homem estava curvado sobre uma forma
arredondada. Ele chorava? Ou Gareth tinha imaginado esse som?
- Lorde Hayat. – Disse o homem que levantou Gareth.
Gareth encontrou seu equilíbrio e deu um passo para o homem agachado. Era Dayan
e, a seus pés, estava seu filho, esticado sobre a espada caída. Não, Dayan ainda estava
sentado em sua cadeira, ancorado lá pelo orgulho. Era seu espírito que tinha corrido para o
lado de seu filho, enquanto as demandas da autoridade o mantiveram em seu trono.
Gentilmente, o guarda que tinha ficado como ajudante de Hayat rolou-o de costas.
Havia sangue saturado na camisa de Hayat. Seu braço esquerdo estava inclinado em um
ângulo antinatural. As pontas de sua luva estavam contra seu peito.
Mais uma vez, Gareth ouviu um lamento de perda, um lamento muito intenso para ser
posto em palavras, e, desta vez ele sabia que não ouvia com seus ouvidos, mas com os
sentidos internos. Com seu laran sem amplificação.
Ele não deveria estar ouvindo, por que havia algo esmagadoramente particular na dor
de Dayan. No entanto, antes que Gareth pudesse erguer suas barreiras e se fechar fora das
emoções do homem mais velho, ele sentiu algo mais... De Hayat.
Gareth estendeu a mão enluvada, mexendo nos laços. Merach puxou os nós e, em
seguida, Gareth se soltou.
Seu lado pulsava com dor, mas ele não tinha perdido muito sangue, ainda não. Ele
tinha apenas a força suficiente para fazer o que devia ser feito.
O guarda olhou para cima, com um olhar duro, quando Gareth se ajoelhou. Gareth
colocou sua mão direita sobre o peito de Hayat ao lado das garras embutidas. As costelas se
ergueuram em um movimento muito superficial para ser visto, sendo apenas sentido.
Gareth fechou os olhos sentidon o relevo.
Ele pegou o amuleto de Nebran, mas seus dedos estavam muito escorregadios com
sangue para abrir o fecho. O guarda passou-o sobre a cabeça de Hayat e o entregou a
Gareth. Por pura sorte, Gareth encontrou o fecho imediatamente. O medalhão abriu e sua
pedra da estrela caiu na palma da sua mão.
O s f i l h o s d o s r e i s | 294

A pedra da estrela brilhou como um sol azul claro em miniatura, mais brilhante do que
Gareth a tinha visto antes. Sua luz clareou as feições cinzentas de Hayat. O guarda não disse
nada, mas seus olhos se arregalaram. Alguém atrás dele cuspiu um palavrão antes que
Merach fizesse sinal para esvaziar a arena.
Com os dedos enrolados em torno de sua pedra matriz, Gareth concentrou sua mente
na joia psicoativa. Por um instante, ele teve a sensação de estar apertado nos limites rígidos
de um prisma. Ele tinha se tornado tão acostumado ao uso de seu laran sem ajuda que
quase tinha esquecido como sintonizar sua mente com a pedra. Um momento depois, ele
estabeleceu em seu padrão e sentiu a onda da energia psíquica natural de sua mente sendo
amplificada.
Embora seus olhos estivessem fechados, a arena saltou em detalhes vívidos, a areia, os
espectadores, os guardas, a cidade com os seus bares e jardins murados, postes de gado e
praças de mercado, mulheres chorando em suas correntes e homens presos em seu
orgulho. Mais perto, ele sentiu mente intrincada de Merach, a lealdade que ardia como
uma chama constante, e Dayan, cujo mundo parecia ter desmoronado... E Hayat, com a
mente em branco, caindo na escuridão, seu corpo uma teia colorida morrendo...
Gareth mergulho nos fios que pulsavam lentamente. Ele não tinha sido treinado como
um curandeiro e, ainda assim, conseguira trazer não apenas um, mas dois homens de volta
da beira da morte. Agora ele também devia deixar o instinto, a força e a natureza de seu
próprio dom, guiá-lo.
Ele devia permitir que ser usado, permitir o trabalho através dele, ao invés de forçá-lo
a obedecer a sua vontade.
Com esse pensamento, sua percepção mudou mais uma vez. Ele sentiu as faíscas
infinitesimais das células vivas e os aglomerados de tecidos sedentos de sangue, o mineral
do osso, os fios dos nervos... A escuridão se infiltrando na pele rasgada, os vasos
sanguíneos cortados... As ressonâncias misteriosas de metais e minerais, alguns deles muito
antigos e alguns de outro mundo...
Será verdade que os drytowners não vieram das naves coloniais perdidas, mas sim de
outro planeta, talvez Wolf, durante a Era do Caos?
Os contornos de cartilagem e tecido estavam prejudicados. Gareth guiou seu foco
neles. As garras haviam entrado nas junções das costelas ao esterno. Eles tinham perfurado
a membrana cobrindo os pulmões e um bom número de pequenos vasos sanguíneos. A
sorte de Aldones, ou talvez de Nebran, devia ter estado com Hayat, pois as garras não
atingiram seu coração e a grande artéria. No entanto, o sangue estava se reunindo entre a
parede do peito e seu pulmão. Logo em seguida, o pulmão entrou em colapso. O corpo
inteiro de Hayat estremeceu. O padrão de energia vital enfraqueceu.
O s f i l h o s d o s r e i s | 295

Lutando contra o desejo de agir rapidamente, Gareth estudou a área ao redor das
pontas das garras. Ele não sabia se seria melhor deixar as garras no lugar, pois poderiam
estar exercendo pressão para limitar o sangramento, ou removê-las. Se ele fizesse isso, ele
poderia danificar ainda mais o tecido pulmonar e precipitar uma hemorragia incontrolável.
Ele poderia tentar, mas Gareth não conseguiu ter uma avaliação clara dos riscos de
remover as garras. Ele sabia com certeza crescente, no entanto, que, embora o trauma de
tirá-las poderia acabar com a vida de Hayat, mas deixá-las certamente significariam sua
morte. Dayan acreditava que seu filho já tinha morrido. Então o que ele teria a perder?
Apenas a própria integridade de Gareth, porque ele desejara o mal de Hayat, porque
ele pretendera matá-lo, e agora ele devia agir com tal clareza de propósito que nunca
olharia para trás e se veria assassinando um homem gravemente ferido.
Gareth lembrou de quando era adolescente, como ele havia exigido o trono, insistindo
em seu direito de ser rei. Ele não podia culpar sua avó Javanne totalmente por isso. A
verdade era que ele e Hayat não eram tão diferentes, ambos com temperamentos fracos
transformados em arrogantes pelas circunstâncias e status.
Com uma mão, ele pressionou a pedra da estrela contra a parede torácica de Hayat,
perto do ponto de entrada das garras. Os dedos de sua outra mão se fecharam ao redor da
luva encharcada de sangue. Ele sentiu o pulso de Hayat, seu ritmo se tornando mais fraco
enquanto Hayat entrava em choque.
Apoiando em seu corpo, Gareth puxou. No começo, nada aconteceu. As garras
pareciam fundidas com o peito de Hayat. Gareth facilitou a tração, tentando um
movimento lento e firme. A luva resistiu, então algo deu lugar. O sangue correu para o
espaço ao redor das garras. As lâminas de metal curvas sairam.
Gareth sacudiu de volta em seus sentidos normais. Ele não esperava tanto sangue. Ele
puxou a camisa sobre a cabeça dele. Usando o tecido, ele pressionou a ferida aberta. Pelo
menos, o sangue estava fluindo uniformemente, não jorrando de uma artéria.
Mãos se fecharam sobre a dele, assumindo a pressão. Ele virou a cabeça para ver
Merach.
- Eu vi feridas muito piores do que essa. – Merach disse.
Gareth se apoiou, quase sentando, ainda segurando sua pedra da estrela. O sangue de
Hayat, pegajoso agora que estava começando a coagular, se aderia à palma de sua mão.
Quando ele fechou os dedos ao redor do cristal, ele se mergulhou novamente. Ele sentiu
como se estivesse dentro de uma joia e segurando outra. A luz azul clara refletia das
superfícies facetadas, amplificadas de tal forma que ele não podia dizer sua origem.
Gareth começou a moldar a luz, o poder que corria pelo brilho. Seus sentidos de laran
estavam afiados, como se estivesse olhando através da lente de aumento mais poderosa
imaginável. Sem esforço, ele examinou o corpo de Hayat, a ferida, o sangramento, o tecido
O s f i l h o s d o s r e i s | 296

distorcido do pulmão... Haviam velhos ferimentos também, não de ossos e tendões, mas da
mente. O dano físico era simples o bastante para reparar, agora que ele podia ver. Mas a
deformação de Hayat criança, Hayat da juventude, as mil vezes que havia sido dito para ele
ser isso e fazer aquilo quando tudo o que ele queria era o amor de seu pai, as indulgências,
os privilégios que ganhara, a desconsideração por algum sentimento seu... Isso poderia ser
consertado também, alterado.
Mudar...
Hayat, perto da morte, era incapaz de pedir para ser curado. A suposição em tais casos
era que a pessoa queria viver.
Todo trabalhador de Torre fazia um juramento para nunca entrar na mente de outro
sem permissão, apenas para ajudar. Gareth nunca havia feito um juramento formal,
embora o preceito fosse como uma corrente de vida nos ensinamentos de Linnea.
Ele poderia mudar Hayat de qualquer maneira que quisesse, expulsar o fanfarrão e lhe
dar modéstia e uma motivação ardente em servir ao seu povo. Ele poderia moldar Hayat
em um líder comprometido com a paz com os Domínios e a prosperidade para ambos os
povos. Ele poderia implantar um horror permanente às armas proibidas pelo Pacto. De fato,
poderia implantar um horror por todo tipo de guerra. Então, não importaria quantos
blaster fossem contrabandeados nas Cidades Secas, pois o próximo Lorde da Shainsa nunca
os usaria.
Não apenas a causa da ameaça atual seria eliminada, mas também haveria paz no
futuro, paz para todos os seus filhos. Ainda assim, Gareth hesitou. Se ele usasse seu laran
para refazer a personalidade de Hayat, quem seria então o tirano e quem seria a vítima? O
bem resultante justificaria sua atitude? Não era o dever de Gareth, como herdeiro do
trono, como um Hastur, salvar seu povo por qualquer meio possível?
Se ele não fizesse isso, se Hayat se recuperasse e invadisse os Domínios com seus
blasters, em quais mãos que estaria o sangue dos mortos? Nas de Hayat, treinado para ser
implacável? Ou nas de Gareth porque ele poderia ter parado Hayat e não o fez?
Ele havia chegado às Cidades Secas para impedir que os grandes lordes conseguissem
a tecnologia militar proibida... Não era esse propósito de sua jornada, a razão de tudo que
ele havia suportado? Por que então ele hesitava?
O primeiro pensamento em sua mente foi que era ele que poderia estar errado. Ele
tinha errado sobre tantas coisas em sua vida... Como ele poderia confiar em qualquer
decisão tomada sob circunstâncias como essas? Essa noção lhe deu rapidamente a
percepção de que, uma vez que desse lugar à sedutora ideia de mexer com a mente de
outro homem, não importaba quão justificada fosse a causa, sempre haveria outra boa
razão para fazê-lo novamente, outra crise, outra causa irresistível. No final, o pensamento
que o abalou mais profundamente foi que ele preferiria morrer do que ter essa mesma
O s f i l h o s d o s r e i s | 297

coisa feita a ele. Sua vida era uma coisa patética, mas era dele. Para o bem ou para o mal,
ele havia feito escolhas, tentado ou não tentado, agido de maneira que lhe trouxe as
maiores vergonhas, mas também às vezes lhe dera orgulho.
Ele tinha escolhido, não outro.
Ele havia feito suas escolhas, mas se tirasse a mesma liberdade de Hayat, ele se
tornaria muito pior.
A luz começou a desaparecer, como se a chama azul clara em seu coração estivesse se
esgotando. Ele estava perto do limite de suas forças. Em seu espasmo de indecisão, ele
havia demorado muito tempo.
Gareth reuniu suas energias e se preparou para reparar o dano mais crítico ao peito de
Hayat. Primeiro, ele selou as veias rasgadas para que não entrasse mais sangue na cavidade
pleural. Os fios de luz que transportavam as energias vitais de Hayat se iluminaram, mas
quando Gareth derramou sua energia psíquica, tons cinzas cercaram seus sentidos.
Remover o sangue para aliviar a pressão era outro assunto. Havia muito para o corpo
de Hayat reabsorvê-lo, e Gareth não se atreveu a ampliar a ferida para permitir que ele
escorresse. Então ele se lembrou de Linnea descrevendo como os círculos das Torres eram
capazes de levantar pequenas quantidades de metais de profundidade dentro da crosta do
planeta até a superfície.
Pressionar a piscina de sangue como uma bexiga cheia de líquido era fácil. Com seu
laran, ele criou uma membrana ao redor do minúsculo lago. Ele só tinha que movê-la de um
lugar para outro.
O sangue resistiu, denso com a inércia. Ele tentou de novo, mas seu controle mental
estava errático e irregular. A bolha balançou de forma alarmante, como se estivesse prestes
a explodir.
A exaustão ameaçou vencê-lo. Ele estava ficando sem forças, sem tempo. Ele lutou
contra o desejo de apertar sua pressão mental na bolha de sangue ou apressar o processo.
Ele percebeu, com alguma parte fraca e distante de sua mente, que ele já tinha ido longe
demais. Ele não tinha mais a força para salvar seu corpo e o daquele homem.
Suavemente, gentilmente...
Gareth não podia dizer se a voz era real ou um eco de alguma memória enterrada.
Toda a hesitação desapareceu. Ele tinha o tempo todo no mundo, o suficiente para fazer o
que devia ser feito.
Ele imaginou envolver a bolha em penas felpudas, em camada após camada de seda
de aranha. Então, em vez de tentar mover à força, ele simplesmente a viu em um lugar
diferente, não mais dentro do peito de Hayat, mas descansando suavemente em sua
camisa, a membrana dissolvendo, o sangue sendo absorvido pelo pano de sua camisa...
- Garrin! Garrin, homem! Acorde!
O s f i l h o s d o s r e i s | 298

Com uma onda violenta de tontura, Gareth voltou aos seus sentidos comuns. Ele ainda
estava de joelhos ao lado de Hayat, que estava gemendo e movendo seu braço bom. Tudo
que Gareth conseguia pensar era que ele não deveria estar vivo.
Merach, que estava chacoalhando Gareth pelos ombros, soltou-o de repente. Não
muito longe, um homem estava gritando. Dayan, Gareth acreditava. Ele se atrapalhou com
o medalhão, conseguiu colocar sua pedra da estrela e fechá-lo. Alguns homens levantaram
Hayat e o levaram embora.
Com a ajuda de Merach, Gareth conseguiu ficar de pé. Agora que ele estava de volta
ao seu corpo físico, cada parte dele doía, exceto por sua lateral que parecia como se uma
faca ardente se enterrasse em sua carne. Ele queria fugir desesperadamente da arena, mas
não tinha ideia de para onde poderia ir.
- Você aí!
Gareth pulou ao som da voz de Dayan. A multidão se afastou enquanto o Lorde de
Shainsa se aproximou. A visão de Gareth vacilou tão violentamente que ele não conseguia
ver a expressão de Dayan. Em um momento, ele entraria em colapso e nenhum grito seria
capaz de despertá-lo.
O olhar de Dayan brilhou como uma chama gelada. - Meu filho estava perto da morte,
além da ajuda de homens comuns. Nem mesmo os mais instruídos de nossos médicos
poderiam tê-lo salvo como você acabou de fazer.
Gareth balançou a cabeça. Algo estava se levantando nele, lavando a dor em seus
membros e o queimor ao seu lado.
- Quem é você, verdadeiramente? A quem eu devo a vida do meu filho?
Gareth teria fugido para o silêncio, mas a coisa que se movia nele agarrou, colocou
pensamentos em sua mente e disse com sua voz.
- Eu sou Gareth Marius-Danvan Elhalyn y Hastur, Herdeiro do Comyn e dos Sete
Domínios! Vim aqui para evitar que o seu povo e o meu massacrassem um ao outro. Se o
que fiz pelo seu filho significa alguma coisa, deixe-o ficar como um sinal de boa vontade. E
se deseja retribuir essa dívida tudo o que peço é para que você deixe de lado as armas de
covardes. Enterre-as profundamente nas areias e deixe que seja o fim disso.
Correntes de ar noturno rodaram nas bordas da visão de Gareth. Ele estremeceu com
frio repentino. Dayan falou, mas Gareth não conseguiu entender as palavras.
Ele se sentiu caindo, escorregando pelo espaço, deslizando sem parar...
Mãos o pegaram, o abaixaram para uma superfície que era surpreendentemente
macia. Algo foi pressionado contra a ferida ao seu lado.
Uma figura se inclinou sobre ele, suas feições encobertas na sombra. A respiração
quente tocou sua bochecha. Veio então a voz suave e doce que ele nunca esperava ouvir
novamente.
O s f i l h o s d o s r e i s | 299

- Você não pode ficar longe de problemas por uma noite?


O s f i l h o s d o s r e i s | 300

Capítulo 33

Linnea sentiu-se instável como se uma tempestade das Hellers estivesse se formando.
Enquanto estava trabalhando, ela tinha sido capaz de focar sua mente, mas durante suas
horas de vigília privada, como agora, quando estava tentando tricotar um cobertor para o
bebê de Illona, ela tinha menos sucesso em controlar seus pensamentos. Depois de ser
informado sobre o desaparecimento de Gareth, Domenic enviou uma mensagem para
Mikhail, ainda em Armida, e então despachou Danilo Syrtis para Carthon para continuar
suas investigações lá.
Apesar de tentar exaustivamente, Linnea não podia dissipar sua ansiedade sobre o que
poderia estar acontecendo nos céus e nas Cidades Secas. Ela pensou no que Kierestelli
havia dito sobre o contato fugaz com Gareth. Pelo menos, ela presumia que era Gareth. A
possibilidade de Gareth herdando o dom de Hastur, de ser uma matriz viva, era
teoricamente possível, embora ela nunca tivesse visto nenhum sinal disso. O que em si não
era uma avaliação final. Regis não demonstrara o dom até que florescesse à força sob
condições de necessidade desesperada.
Ponto, ponto... As agulhas de tricô feitas madeira de cerejeira lixada até uma
suavidade acetinada, deslizara sobre o outro.
O que acontecera para levar Gareth a tal ponto? O que acontecera com a sua própria
pedra da estrela? Ela estremeceu com as possibilidades.
Gareth...os drytowners...os fora-do-mundo... Ela ficaria louca se ela se permitisse focar
nas coisas sobre as quais não tinha controle.
Ela largou um ponto. Em vez de terminar as últimas quatro linhas, ela colocou seu
trabalho no colo.
A única coisa boa na situação atual era que Kierestelli estava disposta a falar com ela.
Não, ela lembrou a si mesma. Ela devia chamar a filha pelo nome que ela escolhera.
Silvana. Senhora da floresta. Sim, isso era adequado, considerando onde Silvana tinha
passado a maior parte de sua vida.
Como ela se parecia? Seu cabelo tinha o mesmo tom de cobre? Ela tocava música,
como tinham feito quando ela era criança? Sua risada ainda era tão leve e fluida quanto
uma corrente de ar nas montanhas?
Uma batida na porta interrompeu as reflexões de Linnea. Ela suavizou suas barreiras
de laran o suficiente para sentir quem esperava do lado de fora.
Ah. Brunina Alazar.
- Entre, chiya.
A jovem novata entrou, suas bochechas coradas, mas seus movimentos sob controle
perfeito. - Um dos ajudantes do Regente solicita sua presença na estação de escuta na Zona
O s f i l h o s d o s r e i s | 301

Terran. - Se ela estivesse um pouco sem fôlego ao entregar a mensagem seria


compreensível pela forma como ela claramente percorrera os dois lances de escadas.
Linnea afastou seu tricô e pegou o manto encapuzado que pendia ao lado de sua
porta. Ela realmente não precisava daquele calor, não naquela temporada, mas desde que
passara a ocupar seu posto como Guardiã da Torre Comyn, ela se acostumou a proteger seu
rosto quando estava em público.
Não havia sentido perguntar por que ela tinha sido solicitada, pois Brunina teria
incluído essa informação se a tivesse recebido. A mulher mais nova estava observando-a
em busca de qualquer sugestão do que esse evento incomum indicava. Ninguém fora do
pequeno grupo formado por Domenic, Danilo, Jeram, é claro, e alguns de seus assistentes
mais confiáveis, além dela sabiam sobre a possibilidade de um ataque a partir das Cidades
Secas ou da Federação.
Sua escolta não era um cadete, como normalmente poderia ser enviado para entregar
uma mensagem, mas um oficial sênior de Mikhail. Ela não sabia o nome dele, mas ele a
cumprimentou com o respeito devido a uma Guardiã. Ele pegou um par de cavalos dos
estábulos do castelo, um forte para ele e um cinza de passo doce para Linnea que
Marguerida mantinha para seus convidados.
Em um trote rápido, eles seguiram através da Cidade Velha em direção à Zona Terran.
A praça do mercado estava repleta de comerciantes, compradores, artistas de rua e
curiosos. O ar cheirava a galinha assada, servida em espetos com cebolas temperadas, e em
todos os lugares havia vendedores gritando suas mercadorias, música e ondulações de riso
infantil. Linnea lembrou de como Regis adorava andar pelas ruas. Por muito tempo ele fora
reconhecido por seu cabelo e sua beleza, se não por suas vestes, mas depois de cada
decepção, ele parou de sair.
Começou a chover, uma das chuvas repentinas típicas da temporada. Linnea puxou
seu capuz mais confortavelmente ao redor do rosto, mas o guarda não fez nenhum
movimento de incômodo aparente com o tempo.
Eles cruzaram o asfalto rachado. Grande parte dessa área ainda era isolada e pouco
dos edifícios haviam sido tomados pelos moradores da cidade. As circunstâncias da retirada
da Federação, culminando após a emboscada na Antiga Estrada do Norte, permanecia
como um miasma. O metal e o vidro poderiam durar por cem anos antes de se tornar parte
da cidade viva.
Um par de guardas, alertas e armados, esperavam por eles na entrada do edifício da
sede. Um deles cuidou dos cavalos.
- Vai leronis, você pode me seguir por gentileza? – O segundo guarda disse.
Ela o seguiu pelo hall de entrada, pelo menos é o que o espaço pareceria em uma
construção darkovana. O interior cheirava a produtos químicos, o ar obsoleto e plano. Sua
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capa pingava, mas o lugar parecia tão frio e impessoal em sua mente que o frio da capa foi
deixado de lado.
Logo Linnea sentiu as energias psíquicas que emanavam de uma câmara a meio
caminho do corredor e reconheceu Jeram entre elas. Seu dom não havia despertado até
depois da partida da Federação, mas as leroni da Torre Nevarsin o salvaram e lhe ensinaram
as habilidades básicas.
Minha filha era sua Guardiã. Ela o conhecia. Linnea lembrou-se de ter cuidado. Nem
Jeram e nem nenhuma outra pessoa sabiam de seu relacionamento com Silvana. Silvana
não dera permissão para Linnea divulgar sua identidade.
A confiança deve ser conquistada.
Outro par de guardas protegiam a porta. Eles se afastaram quando Linnea se
aproximou, um deles abriu a porta e saiu da frente para ela entrar. Além de parecer uma
câmara cavernosa pela ausência de janelas, o lugar era repleto de grandes mecanismos.
Luzes pequenas e focadas lançavam sombras deformadas nas paredes. Enormes
instrumentos zumbiram suavemente, como gigantes adormecidos.
Quanto metal! Linnea pensou. Como qualquer verdadeira darkovana, ela ficou
surpresa com o uso casualmente extravagante do que era raro e precioso. Ela não podia
imaginar que tipo de pessoas simplesmente sairiam e deixariam tanta riqueza para trás.
Mas os Terranan não pensavam como pessoas comuns. Eles pegavam seus armamentos,
qualquer coisa que tivesse uso militar, e abandonavam o resto.
Linnea entrou. O chão era feito de algum tipo de material não reforçado e cedeu um
pouco sob seus pés. A câmara não era tão desprovida de vida humana quanto a primeira
olhada sugeria. Um grupo de homens e mulheres estavam agrupados em torno de um
suporte com máquinas. Suas roupas darkovanas pareciam fora de lugar entre as paredes
cinzentas estéreis. Além de Jeram e Domenic, Linnea reconheceu Hermes Aldaran que
representara Darkover no Senado da Federação, e o amigo de Marguerida, Ethan
MacDoevid. Ethan nunca desistiu de seu entusiasmo pela viagem espacial, mesmo quando
a Federação se retirou.
Linnea não conhecia a jovem com cabelos escuros, nariz arrebitado e boca larga,
embora quando Jeram apresentou a garota como Cassandra Haldin, Linnea reconheceu o
nome. A história era que o pai de Cassandra tinha sido um técnico de Federação que viveu
em Thendara por alguns anos. Quando ele deixou Darkover, ele abandonou a garota e sua
mãe, como tantos outros antes dele tinham feito. Linnea não sentiu nenhum traço de laran
na jovem, embora claramente Cassandra tivesse uma aptidão para os dispositivos fora-do-
mundo. Ela tinha o olhar ligeiramente distraído de alguém focado em ouvir. Um aparelho
com design de fora-do-mundo cobria suas orelhas. Suas mãos pairavam sobre um painel de
luzes coloridas enquanto ela olhava para a tela diante dela.
O s f i l h o s d o s r e i s | 303

Domenic e Ethan se levantaram e se curvaram quando Linnea entrou. Jeram, não


treinado desde o nascimento na reverência dos darkovanos aos Guardiões, ergueu uma
mão em saudação. Cassandra estava tão absorvida em seu trabalho que, por um longo
momento, não percebera Linnea. Quando o fez, ela se inclinou, embora não removesse o
dispositivo de audição.
- Por favor, fique confortável. – Linnea disse e ficou satisfeita quando a garota
retornou imediatamente ao seu trabalho.
- Su serva, vai domna. - Domenic disse com um sorriso fácil e envolvente.
Antes que Linnea pudesse perguntar por que fora convocada, Jeram fez sinal para ficar
quieta. Ele indicou a tela. - Lá estão eles.
Linnea olhou por cima do ombro, mas não conseguiu fazer os símbolos terem algum
sentido. Os símbolos eram brilhantes contra um fundo preto ou linhas curvas que se
moviam lentamente pela tela.
- Tenho um sinal claro. – Cassandra disse. Sua voz era tão bonita que Linnea pensou
que ela devia ter treinado como cantora.
Jeram tocou várias pequenas almofadas coloridas no console e começou a falar no
Padrão Terran. Linnea sabia um pouco dessa linguagem, o suficiente para deduzir que ele
estava chamando uma nave.
A nave da mensagem de Silvana?
Um arrepio de medo se enrolou ao redor de sua nuca antes dela manter suas emoções
sob controle. Embora ela não pudesse seguir o significado literal da conversa, ela observou
a tensão na voz de Jeram e o franzir dos músculos ao redor de seus olhos. Depois de uma
pausa, uma voz respondeu.
Durante a troca, um dos guardas trouxe um assento para Linnea, uma cadeira
dobrável de estilo temoran, sem amortecimento, mas dando conforto por sua forma. Ela
assentiu em agradecimento e sentou-se.
Com a boca em uma expressão sombria, Jeram se afastou da tela. - Aqui está a
situação. Dois dias atrás, o Grissom do Setor de Castor em órbita ao redor de Darkover, foi
atacada por piratas licenciados sob a Aliança Estelar Nagy. Eles conseguiram destruí-la, mas
estão muito danificados e têm necessidade de pouso para reparos. Eles não querem dizer o
que estavam fazendo aqui, mas estão pressumindo que, já que Darkover nunca aceitou a
plena adesão à Federação, seremos simpáticos a seu objetivo de independência.
Domenic assentiu. - Eles estão certos.
- O Setor de Castor tem todos os motivos para se ressentir da intimidação militar da
Federação, isso é verdade. – Hermes disse. - Mas não sabemos o que está acontecendo ou
quem tem maior poder. Esta é a primeira vez ouvimos sobre essa Aliança Nagy. Sandra
O s f i l h o s d o s r e i s | 304

Nagy nunca foi nossa amiga, mesmo antes dela se separar do Senado. Mas isso não significa
que qualquer um que se oponha a ela tem nossos melhores interesses no coração.
- A Federação nunca usou piratas ou caçadores de recompensas antes. - Jeram disse
com um traço de raiva.
- A Federação nunca os usou até onde sabemos. - Hermes lembrou.
Domenic não disse nada, mas parecia pensativo.
- Eles destruíram a nave pirata, então não há nenhuma razão para não permitir que
eles pousem no espaçoporto, não é? - Ethan apontou. - Sua primeira mensagem parecia
desesperada. Eles não podem deixar o Sistema Cottman e não podem se sustentar em
órbita. Não temos a obrigação moral de ajudá-los?
O olhar de Jeram se virou para Linnea, depois de volta para Domenic.
Hermes sacudiu a cabeça. - Nós temos que considerar a nossa própria posição. É
imperativo que a gente evite até mesmo parecer que tomamos partido. Não sabemos
quem mais poderia vir atrás da Grissom.
- Eles destruíram os piratas. - Ethan repetiu com um traço de teimosia.
Domenic virou-se para Hermes. - O que você quer dizer?
- Os federais não são confiáveis. - Hermes respondeu.
Jeram falou. - Hermes, como você mesmo apontou, estes não são federais. Mesmo
que fossem, Ethan trouxe um ponto válido. Independentemente da sua filiação política, as
pessoas na Grissom precisam da nossa ajuda. Sua unidade estelar está danificada e eles têm
mais para onde ir.
- Preciso lembrá-lo que eles estão armados com armas proibidas pelo Pacto. - Hermes
parou para deixar as implicações implícitas. - Se nós os deixarmos pousar, o que os
impedirá de tomar o que quiserem? Permanecer aqui por tanto tempo quanto quiserem?
Transformar o espaçoporto aqui em uma base de operações?
Uma memória atingiu Linnea, as imagens vívidas que ela tinha recebido de Silvana
pelas retransmissões...
...naves no alto, fogo chovendo sobre a cidade, sobre Thendara... Seria esta nave?
Medos, ela disse a si mesma, não presságios ou visões do futuro.
Hermes apelou para Jeram. - Você sabe do que estou falando! Diga-lhes!
Linnea pegou o movimento rápido da cabeça de Jeram, um gesto subconsciente de
repugnância.
Domenic estava ouvindo com cuidado à medida que os argumentos se desdobravam.
Ele ainda não se decidiu, Linnea pensou. Ele está pesando os riscos... E as demandas de
dever e humanidade. Mas, no final, ele decidirá. Ele foi treinado para isso e Mikhail estava
certo em deixá-lo no comando.
O s f i l h o s d o s r e i s | 305

- Se não permitirmos que eles aterrissem, - disse Cassandra em sua voz clara e musical
- eles podem fazer isso de qualquer maneira, com rancor contra nós. Não podemos impedi-
los. Não conheço essas pessoas, mas eu te conheço, Jeram. Você honra as leis da
hospitalidade, não é? Não é a nossa melhor chance de um resultado pacífico estender
nossa amizade para que eles façam isso em troca?
- Você não conhece essas facções do jeito que eu faço. – Hermes disse.
- Isso é verdade. - Domenic quebrou o silêncio incômodo que se seguiu. Ele não falou
em voz muito alta, mas Linnea captou a borda desprotegida de seu pensamento. Hermes,
meu amigo, você esteve muito tempo entre pessoas desonrosas na Federação. A mancha
deles ainda se mantém em seus pensamentos. - Até encontrarmos essas pessoas cara a
cara, não podemos julgar sua personalidade. Só conhecemos até agora nossos próprios
corações e mentes. Em nossas relações com os Terranan, procuramos seguir nosso próprio
caminho, para criar um futuro que honrava o melhor de nossas tradições.
Os olhos de Cassandra se iluminaram e Ethan assentiu. Jeram sentou-se ainda tenso,
evitando cuidadosamente até mesmo um sinal aparente de conselhos.
- Domna Linnea. – Domenic chamou. - Quais são seus pensamentos sobre o assunto?
- Ninguém pode saber o que está por vir. – Ela disse. - Até o dom de Aldaran é
imprevisível e mostra apenas o que pode acontecer. Temos apenas o presente e o que
viveremos se deixarmos de agir de acordo com nossos mais altos padrões de honra.
Domenic limpou a garganta. - Então ofereceremos a essa nave o uso de nosso
espaçoporto e qualquer outra ajuda e materiais que pudermos. Diga-lhes isso, Jeram, mas
enfatize que, ao fazer isso, não estamos nos comprometendo a quaisquer tratados militares
ou políticos. Nessa discussão com a Federação, ou com a Aliança de Nagy, Darkover deve
permanecer estritamente neutra.
Jeram falou no aparelho. Seu tom soava firmemente controlado e desprovido de
emoção. Domenic poderia também ter feito isso, pois Marguerida insistira que todos os
seus filhos aprendessem o Padrão Terran. Foi uma boa sutileza de negociação falar através
de um representante.
- O capitão diz que eles estão lutando pela liberdade de Darkover, assim como as de
seu povo. – Jeram disse. - Ele nos lembra que a Aliança Estelar de Nagy não reconhece a
autonomia local. É pouco melhor que uma ditadura militar.
Hermes sufocou uma expressão que claramente significava, eu te disse isso.
- Diga a ele que insistimos na neutralidade mesmo assim. - Domenic disse. - Nossa
oferta de assistência é condicional a certos termos. Em troca do uso de nosso espaçoporto,
exigimos que ele siga as leis locais, em particular o Pacto. Explique o que isso significa e
aponte que a Federação, assim como o Império antes dela, o honrou.
O s f i l h o s d o s r e i s | 306

No final, o capitão do Setor de Castor concordou com os termos, estipulando que, se


fossem atacados, eles usariam quaisquer meios necessários para se defender. Através de
Jeram, Domenic reiterou que, se eles obedecessem às leis de Darkover, estariam seguros.
- Eles começaram sua descida agora. – Cassandra disse.
- Pergunte a ele se a nave pirata enviou alguma mensagem antes de ser destruída. -
Linnea disse com uma urgência repentina.
Antes que Jeram pudesse transmitir sua pergunta, no entanto, a Grissom cortou as
comunicações. Jeram disse que isso às vezes acontecia durante os desembarques sob
circunstâncias adversas. Linnea estendeu a mão com seu laran, tentando sentir o que
estava acontecendo acima, mas não sentia nada. O prédio Terran parecia sufocar seus
sentidos. Um repentino desejo de ficar sob o céu aberto a atingiu.
- Devo ver essa nave com meus próprios olhos. – Ela disse, se levantando. Depois de
uma discussão, foi decidido que Domenic iria com ela para a área de pouso. Os outros
precisavam permanecer para trás para coordenar os preparativos. Linnea não entendeu os
detalhes, mas soube que vários equipamentos eram necessários para garantir que a nave
fosse recebida com suas pessoas e mercadorias adequadamente. Tudo isso já havia sido
tratado pelo pessoal da Federação e ninguém tinha certeza de quanto do equipamento
ainda era funcional. Ela ficou feliz em escapar da discussão.
No tempo que ela estivera dentro do prédio, a chuva amenizara, embora o céu ainda
estivesse nublado de forma ininterrupta sobre a cidade. O exterior do edifício brilhava com
muita luz. O QG fazia parte do complexo do espaçoporto, mas vários tipos de barreiras,
muitas mal resistindo agora, obscureciam as áreas de pouso. Um dos guardas apontou um
prédio alto que tinha um terraço fechado para melhor visualização. Uma vez, o guarda
dissera, tinha sido possível subir até lá sendo carregado por um elevador, mas, depois que
os Terrans partiram, a força daquela parte do complexo tinha sido desligada.
- Não sabemos quanto tempo a força da energia durará, então se decidiu que era
melhor guardá-la para funções essenciais. – Ele explicou.
Eles seguiram o guarda passando uma série de cercas até a borda de uma enorme área
pavimentada. Círculos sobrepostos marcavam a superfície, relíquias dos anos em que as
naves usavam regularmente esse campo. Andaimes parcialmente desmontados e coisas
que podiam ter sido plataformas de carregamento estavam aqui e ali. Folhas mortas
haviam se amontoado em torno de suas bases.
- Vai dom, vai leronis, deve ser seguro observar daqui. – O guarda disse.
- Caso se torne imprudente permanecer, vamos seguir seu julgamento e sair. - Linnea
respondeu.
A chuva se tornou uma névoa fina e o dia tinha um aroma fresco como apenas uma
chuva de verão poderia fazer. Finalmente veio um som como uma cachoeira distante.
O s f i l h o s d o s r e i s | 307

Linnea olhou para o céu, mais claro agora com a abertura das nuvens, mas não podia ver
nada. O ruído aumentou até parecer que o céu estava gritando. Ela cobriu as orelhas com
as mãos.
- Lá! - Domenic exclamou. Ela não podia ouvi-lo acima do barulho da nave, mas seguiu
a direção que ele apontava.
Seus olhos mais jovens haviam visto primeiro, um pequeno ponto de sombra e a
chama incolor contra o brilho do céu. Ela abriu seus sentidos e captou a química diferente
no ar, a fúria das correntes, enquanto foguetes oscilavam para diminuir a descida. Ventos
surgiram, levantando sua capa e bagunçando seu cabelo. Era como uma tempestade das
que varriam as Hellers, limpando toda a suavidade, atingindo violentamente a pele e
parecendo chegar até a medula. Só que essa não era uma tempestade natural, não uma
coisa nascida da neve, rochas e as faces dos picos. Essa era uma tempestade criada por
máquinas, uma tempestade do espaço.
A cidade em chamas...
Ela olhou para cima novamente. Agora os contornos da nave eram visíveis. Sua massa
apareceu acima deles. O guarda tocou o braço de Linnea com a hesitação treinada de nunca
colocar as mãos em um leronis. Ele queria que ela se retirasse e ela concordara em cumprir
seu julgamento. Se ela, uma Guardiã e comyanara, não honrasse sua palavra, que
esperança havia para qualquer um deles?
Apertando mais sua capa, Linnea assentiu com a cabeça. Eles se retiraram por trás da
segunda gama de barricadas que protegiam do vento e, até certo ponto, do ruído. No
processo, ela deu um longo olhar para a nave prestes a tocar o chão. Através da poeira
agitada e do vento, a nave causou um cilindro afunilante que marcou quase todo o seu
comprimento com linhas pretas irregulares. As superfícies circundantes estavam curvadas e
torcidas. Era como se algum gigante do espaço tivesse rasgado a nave com uma lança
fundida. Então a nave desapareceu atrás da barreira.
Domenic não estava usando luvas. Talvez ele tivesse deixado a suas na câmara de
comunicação. Linnea tirou uma das dela e deslizou a mão nua na dele. Ele encontrou seu
olhar quando a pele aumentou seu contato telepático.
Domenic, entendo porque você está aqui para testemunhar isso. Na ausência de seu
pai, você fala pelo Conselho Comyn. Alguém deve negociar e tomar decisões sobre como
responder a esses fora-do-mundo, com o que se comprometer e o que ocultar. Mas por que
você me trouxe aqui?
Não podemos voltar aos dias em que um homem tinha tanto poder que sua palavra
era lei, ele respondeu. Este é um evento importante, para o bem ou para o mal. Nenhuma
pessoa deve ser sobrecarregada com a responsabilidade de tal decisão. Não foi o que o tio
Regis tentou fazer com o Conselho Telepata? Não é para isso que existe o Conselho e,
O s f i l h o s d o s r e i s | 308

Darkover? Você representa o Conselho de Guardiões, assim como falo pelo Comyn. Preciso
de ouvidos sábio e raciocínio bom, além do conhecimento especializado de Dom Hermes e
Jeram.
O coração de Linnea se inflou por Domenic. Apesar de suas palavras fundamentadas,
ele parecia muito jovem. Ele tinha apenas alguns anos a mais do que Gareth, afinal. Nada
de sua formação como herdeiro da Regência poderia tê-lo preparado para este encontro.
Nenhum de nós foi verdadeiramente preparado. Nem Regis com todo o seu carisma,
nem qualquer um dos outros grandes estadistas da nossa era. Certamente não eu. Nós
fazemos o melhor que podemos com o que recebemos. Ela pensou, apenas para si mesma.
Desde as Eras do Caos, as Torres se mantiveram fora da política, ela lembrou a ele.
Não posso aconselhá-lo nisso.
Domenic assentiu em compreensão. Eu preciso saber se esses homens estão dizendo a
verdade. Se eles usarão nossa hospitalidade para aproveitar, controlar e explorar Darkover.
Domenic era talentoso, disso não havia dúvidas. Mas seu laran tinha uma
característica incomum. Ele podia sentir coisas que nenhuma outra pessoa na história
registrada poderia. No entanto, muitos dos aspectos comuns da telepatia e da empatia,
mesmo sentir as emoções superficiais de outra pessoa, eram difíceis para ele. Mesmo que
não fosse, ele não podia negociar e observar isso ao mesmo tempo. Mikhail e Marguerida
teriam sido mais adequados à tarefa, verdadeiros parceiros em todos os sentidos da
palavra, duas metades do mesmo todo.
O mundo segueu como deve e não como você e eu queremos, ela refletiu.
Com se fosse desligado ou alterados rapidamente, os sons mudaram, diminuindo
gradualmente a intensidade. Os harmônicos estridentes deram lugar ao zumbido.
Perdoe-me? Domenic perguntou.
Um pensamento ocioso. Muito bem, então. Eu testarei a verdade o melhor possível.
Não vou entrar em suas mentes ou ler seus pensamentos sem a licença deles, mas posso
muito bem ser capaz de detectar uma intenção de engano.
Eu não posso pedir mais.
O s f i l h o s d o s r e i s | 309

Capítulo 34

A chuva não continuou pelo resto do dia, embora o vento carregasse a promessa de
mais. Assim que o terreno de pouso esfriou o suficiente, a tripulação da Grissom enxameou
ao redor das áreas danificadas de sua nave, auxiliada por Ethan e um punhado dos
melhores aprendizes de Jeram. Do ponto de vista de onde ela observava com Domenic,
Jeram e Hermes, Linnea podia vê-los lutando para manobrar as muitas peças e
equipamentos do complexo da sede.
Dois membros da tripulação da Grissom saíram para observar com eles, uma mulher
atarracada de pele escura e um homem jovem do mesmo tipo racial, em macacões justos e
manchados de fuligem sem qualquer insígnia de status. A aura psíquica do frenesi da
batalha ainda pendia sobre eles. Nenhum dos dois estava visivelmente armado, embora
ambos usassem pequenos instrumentos que se agarravam à pele de suas têmporas,
presumivelmente dispositivos de comunicação. O que eles pensariam, estes seres espaciais,
sobre a capacidade de falar diretamente de uma mente para outra?
Que uso eles dariam a tal presente?
Linnea não tinha dúvidas sobre quem estava no comando, e nem Domenic, ela sentiu
pelo contato leve. A mulher tinha uma aura sutil de autoridade e de tristeza também, uma
escuridão no espírito. Ela hesitou, uma fração de um instante apenas, quando o homem
mais novo chamou a chamou de Capitã Harris, e Linnea captou que houvera outro Capitão
Harris e esta havia deixado sua dor de lado para assumir seu lugar.
A capitã Harris reduziu os olhos quando Jeram falou pela primeira vez, talvez
reconhecendo seu sotaque. Ela não perguntou de onde ele vinha ou o que ele estava
fazendo em Darkover, apenas voltou sua atenção depois para Domenic. Ela tinha uma boa
compreensão da diplomacia, pelo tom em sua voz, reconhecendo que, apesar de sua
juventude, Domenic era o responsável.
- Oferecemos aos nossos mais profundos agradecimentos por sua ajuda. - O olhar da
capitã cintilou para os céus repletos de nuvens. O vento estava aumentando. Linnea sentiu
em vez de ouvir seu pensamento: Estamos ficando sem tempo.
Linnea não pôde seguir as palavras exatas no Padrão Terran, mas Harris estava
emitindo imagens mentais tão fortes que Linnea não teve dificuldades em entender seu
significado geral. De tempos em tempos, Domenic sinalizava uma pausa e Jeram traduzia
para Linnea. Harris parecia um tanto confusa com essa sutil deferência. Claramente, ela não
conseguia entender o posto de Linnea na hierarquia local.
- Se seu povo deseja visitar a cidade, vou providenciar guias e tradutores. – Domenic
disse. - Não faz muito tempo que a Federação partiu. Muitos de nossos funcionários ainda
O s f i l h o s d o s r e i s | 310

falam o Padrão Terran pelos anos de troca comercial e cultural. – Sua estratégia causou um
flash de medo na mente da capitã. Tanto Linnea quanto Domenic detectaram.
- Talvez quando toda a luta com a Federação tiver terminado e tudo estiver em seu
lugar, uma Federação real com um senado representativo e não a Aliança de Nagy, então
poderemos voltar. - Harris disse com louvável calma.
- Todos esperamos por um futuro pacífico. Que isso seja apenas o primeiro de muitos
intercâmbios cooperativos entre Darkover e o Setor de Castor. – Domenic respondeu.
Nico... Pergunte se a nave dos piratas conseguiu enviar uma mensagem de perigo
antes de ser destruída, Linnea disse telepaticamente.
Quando ele fez isso, Harris pressionou os lábios. Sua pele era escura demais para
mostrar qualquer rubor de emoção. - Não vou mentir para você, não depois de você ter
sido tão hospitaleiro. Quando destruí o tubarão, um pulso eletromagnético se forçou em
nossos sensores. Isso pode ter saído de um sinal enviado pouco antes. Não posso ter
certeza de uma possibilidade ou de outra. Quanto mais cedo seguirmos nosso caminho,
melhor para todos.
O controle de Domenic sobre suas emoções vacilou. Linnea enviou-lhe um pulso de
calma mental. Não há nada que possamos fazer sobre isso.
Exceto orar para que, se as naves da Aliança Estelar vierem, que respeitem nossa
neutralidade.
Nesse breve momento, a capitã se curvou, uma breve inclinação de cabeça. – Preciso
me retirar e ver se consigo acender um fogo sob algumas bundas preguiçosas para nos tirar
de seus cangotes ainda mais cedo.
- Se... - Domenic começou, depois parou. - Não, você está certa. Não irei te deter mais.
Peça a Jeram qualquer coisa que precisar.
O que eu preciso, disse a expressão da capitã, é de tempo...e isso não tenho.

~o ⭐ o~
Antes de Harris cruzar metade da distância até a nave, Cassandra correu do edifício da
sede pela área de pouso em um ritmo que teria deixado um cadete sênior da Guarda da
Cidade orgulhoso.
- Venha, oh, depressa, venha! - A garota chamo, quase caindo sobre si mesma,
agitada, gritando enquanto corria. - Nós temos um novo contato! Eles dizem que são a
Federação!
Quase no mesmo momento, Harris fez uma pausa, uma mão sobre o dispositivo de
comunicação sobre a orelha. Ela se virou, sua expressão eloquente.
- Vá! - Domenic disse. - Nós vamos comprar o máximo de tempo que pudermos!
O s f i l h o s d o s r e i s | 311

Ela o saudou antes de se apressar para a nave, gritando ordens para seu ajudante. O
jovem trotou de volta para onde Linnea e os outros estavam. - Eu vou com você como
contato.
Ficarei para trás, se isso é o necessário para que minha nave consiga ir embora, ele
quis dizer.
- Não é o pior destino. – Jeram disse, mas não de forma indelicada.
Cassandra alcançou-os, respirando pesadamente. - Vai leronis... Vai dom... – Ela
gaguejou como se as frases honoríficas fossem provas contra o desastre. - Por favor...
Eles correram de volta para a câmara de comunicação. Linnea não sabia como poderia
estar a situação atual, mas se sentiu aliviada por ninguém ter sugerido que ela fosse
escoltada para um lugar mais seguro. Se a visão de Silvana se realizasse, não haveria refúgio
seguro em nenhum lugar de Thendara.
Domenic manteve um comportamento controlado, mas, através de seu
relacionamento, ela sentiu sua tensão. Jeram, por outro lado, parecia uma rocha, imóvel
em seu foco. Não, uma flecha fixada em seu alvo, aguardando apenas o momento certo
para agir.
Claro, ela pensou. Jeram tinha sido soldado. Ele havia lutado, por mais erradas que
fossem suas ordens, na Velha Estrada do Norte e quem sabia em quantos outros encontros
que ninguém além dele, e talvez sua Guardiã, tinham conhecimento?
Domenic ainda era inexperiente em batalha.
E isso será uma luta de palavras ou mísseis.
Jeram configurou o aparelho para que todos pudessem ouvir a transmissão recebida.
No começo, tudo que Linnea podia detectar eram ruídos. Então uma voz foi ouvida em
meio ao barulho. Com mais alguns ajustes, a recepção ficou perfeita.
- Aqui é a Dauntless, em aplicação de segurança fretada sob a Aliança Estelar,
saudando Cottman IV. Você recebe? - Após uma breve pausa, a mensagem foi repetida em
uma pronúncia uniforme e de frases idênticas que Linnea se perguntou se era produzida
mecanicamente.
Aliança Estelar... O termo ‘aplicação de segurança’ também não parecia bom.
- Onde eles estão? - Domenic perguntou. - Quão longe? E quanto tempo podemos
atrasar a resposta?
Jeram consultou os instrumentos, tocando o painel aqui e ali. Uma das telas mudou
para uma exibição de números, outra para o que devia ser um diagrama do sistema
planetário. - Dependendo de sua trajetória, eles poderiam chegar aqui em duas ou quatro
horas. – Ele sinalizou um ponto no mapa.
- O que ‘aqui’ significa?
- Campo de tiro.
O s f i l h o s d o s r e i s | 312

Domenic olhou para o jovem oficial da Grissom. - Você pode terminar seus reparos até
lá?
- Tentaremos.
Ele quer dizer que não.
A mensagem se repetiu novamente. A luz na câmara pareceu escurecer.
- Não adianta fingir que não podemos entender sua mensagem. – Hermes disse. - Eles
vão continuar chegando, independentemente.
Domenic mastigou o lábio, então disse a Jeram: - Diga algo amigável. Depois peça-lhes
para manter sua posição enquanto verificamos sua identidade em nossos registros da
Federação.
- Eles não estarão nela. – Hermes protestou.
Domenic sorriu. Assentindo, Jeram se instalou no assento e começou uma mensagem
longa e formalmente cadenciada. Depois que ele terminou, houve uma longa pausa.
A resposta foi: - Cottman IV, não reconhecemos a exigência de permissão local para
entrar órbita. - Ou algo com esse efeito.
O oficial da Grissom foi para um canto, conversando em voz baixa através de seu
dispositivo de comunicação. Domenic se levantou e começou a andar.
Jeram entrou em uma longa discussão sobre Darkover sendo um Mundo Fechado de
Classe D, e a Dauntless insistiu que os antigos regulamentos da Federação estavam
obsoletos. Eles tinham licença para ir onde quisessem e fazer o que resultasse em ganhos
de taxas, que, sem dúvida, nesse caso significava uma recompensa por capturar a nave do
Setor de Castor.
Domenic fez uma pausa quando o oficial da Grissom retornou para perto dos outros. -
Algum progresso?
O oficou balançou a cabeça. – O... - Ele usou uma palavra que Linnea não reconheceu -
...estragou tudo em cima. Será preciso outro dia, provavelmente dois, até que possamos
improvisar um remendo. Isto é, presumindo que é seja possível. - Ele piscou, lutando para
se concentrar. - Eles sabem que estamos aqui. É só uma questão de tempo.
- Darkover é uma região neutra e nós lhe demos um santuário. - Domenic disse. - Você
está sob nossa proteção.
- Você não entende! Eles não querem nos capturar e, mesmo que quisessem, eles não
precisariam de sua permissão. Essa não é uma patrulha, é uma nave de guerra modificada!
Ela tem poder de fogo para explodir toda a cidade em pedacinhos. Não, eles querem ter
certeza de que as armas que carregamos nunca deixam este planeta.
- Você tem armas. – Hermes constatou.
O s f i l h o s d o s r e i s | 313

- Não há nada que eu goastaria do que os explodir no céu! - O jovem oficial disparou. -
Mesmo se tivéssemos uma chance contra uma nave de guerra, não podemos disparar
nossas armas do chão.
- Eles não identificaram a classe de sua nave. - Jeram disse baixinho. - Como você
conhece as capacidades da Dauntless?
- Eu....nós...
- Você conhece essa nave, não é? - Jeram pressionou.
O menino engoliu em seco.
- Como, exatamente? - Domenic perguntou.
- Não há nenhum ponto em esconder isso, não agora. A Dauntless esteve em nossa
cauda em cinco sistemas até agora. Nós pensamos que a tínhamos despistado depois da
última batalha com bombas e fogo pesado. Não havia sinal dela quando entramos em
órbita aqui, apenas a nave dos piratas e cuidamos dela. Eu acho que...nós estávamos
errados.
- Você trouxe essa nave até aqui sobre nós? - Hermes carregou cada sílaba com
indignação.
O garoto balançou em seus pés. - Sinto muito... – Ele sussurrou. - Eu sinto muito.
- Dom Hermes. - Linnea disse gentilmente. - Essas pessoas estão lutando por suas
vidas, fazendo as melhores escolhas que podem sob terrível pressão. Você pode
responsabilizar essa criança por um resultado desordenado? Ou você realmente acredita
que a capitã Harris tinha algum propósito nefasto ao vir aqui?
O jovem oficial não conseguiu entender seu casta, mas respondeu ao seu tom e o
pulso de bondade que ela enviou em sua direção.
- Isso importa? Agora, seremos os que lutam por nossas vidas, como você diz, vai
leronis! - Hermes cedeu visivelmente. - Não é sua culpa, rapaz. – Ele disse, mudando para o
Padrão Terran.
- Se o seu povo adora algum ser sobrenatural, agora é a hora de orar a ele. - A voz do
jovem oficialmente falhou. Ele endireitou os ombros e voltou sua atenção a Domenic. -
Solicitando permissão para retornar a minha nave. Senhor.
E estar com seus companheiros, Linnea pensou. Talvez sua família.
O pensamento a atingiu que esse jovem podia ser o filho da capitã ou seu irmão mais
novo. Ela não achou que ele estava exagerando. Ele realmente acreditava que estava
prestes a morrer.
- Então vá. - Domenic disse baixinho. - E que as bênçãos de quaisquer deuses que você
deseja vá com você.
O jovem correu para fora da câmara.
- Jeram. - Domenic se virou para o homem mais velho.
O s f i l h o s d o s r e i s | 314

- Ele está certo, você sabe. - Jeram disse sombriamente. – Uma nave de guerra
totalmente armada poderia causar muitos danos. Não poderia destruir todo o planeta.
Você precisaria de um couraçado para isso. Mas poderia destruir Thendara.
- Tem que haver uma saída disso. – Domenic disse. - Mantenha-os falando... Pelos
nove infernos congelados de Zandru, deixe-me fazer isso! - Ele pegou um dos fones.
- Tem certeza de que é sábio? - Hermes perguntou. – Negociar diretamente?
- Você tem uma ideia melhor? - Domenic retrucou.
Hermes pareceu se conter. - Se o diálogo diplomático puder ser de alguma ajuda, sou
o único a fazer isso. Tenho anos de experiência negociando com os comparsas de Nagy no
Senado. Deixe-me usar alguns nomes. Talvez essas conexões ainda carreguem alguma
influência.
Ao aceno de Domenic, Hermes tomou o lugar ao lado de Jeram. Linnea observou a
mudança em sua postura e tom vocal quando ele começou a falar. Ele a fez se lembrar de
Dyan Ardais, o velho Lorde, que tinha sido equivocado, mas não menos apaixonado em sua
lealdade ao Comyn. Frase após frase lançada, tão fluente como se Hermes tivesse ensaiado
cada sílaba por uma tenday. Linnea observou o homem que ela conhecia ligeiramente se
transformar em um estranho.
Por fim, Hermes fez uma pausa para uma resposta. A voz da Dauntless repetiu que
Darkover não tinha poder na Aliança Estelar. Hermes falou de novo e de novo, sempre com
o mesmo resultado.
- Você acha que eles estão usando uma gravação? - Jeram perguntou. Por sua
expressão, ele estava perdendo rapidamente a esperança.
Uma nova voz veio pelo alto-falante: - Cottman IV, temos um mandado devidamente
autorizado para a captura ou destruição da nave renegada Grissom.
Domenic, suas feições ainda mais sombrias do que antes, gesticulou para o fone de
ouvido. Com ombros caídeos, Hermes passou para ele.
- Aqui é Dom Domenic Alton-Hastur, atuando Regente do Comyn e dos Sete Domínios.
Eu te lembro que Darkover é um planeta Fechado e declarou-se território neutro.
- Nós não reconhecemos...
- E nós não reconhecemos a autoridade da Aliança Estelar ou qualquer outra
instituição que alegue ser a sucessora da Federação devidamente constituída! Não temos
parte em sua disputa. Quaisquer reivindicações específicas que você tenha contra a
Grissom e sua tripulação devem ser levas as Cortes que irão julgar o assunto de acordo com
nossas leis. Você deseja fazer isso?
- O que eles podem fazer contra nós? - Cassandra perguntou, sua voz à beira do choro.
- O garoto da Grissom não estava brincando sobre seu poder de fogo. Veja... - Jeram
indicou uma das telas. Símbolos rolavam através de um diagrama de uma nave, um cilindro
O s f i l h o s d o s r e i s | 315

alongado. – Aqui, aqui...e aqui. Esses são mísseis de fusão de plasma. Os reatores
propulsores estão quase totalmente carregados. E ali... – ele sinalizou o agrupamento de
pontos que brilhavam em um verde venenoso - ...aqueles são...
- Nós não precisamos saber. - Domenic o cortou – Ou precisamos mesmo saber de
quantas maneiras diferentes eles podem nos matar?
Linnea se levantou e, superando a aversão natural de um telepata ao toque casual,
colocou os braços ao redor de Cassandra. A garota estava tremendo tanto que suas
próximas palavras saíram como um murmúrio trêmulo.
- Vamos morrer?
- Shhh, chiya. Ninguém sabe ao certo o futuro.
Hermes se virou para Jeram. - Quanto tempo antes do ataque? Quanto tempo temos?
- Talvez uma hora para um alcance perfeito.
- Dauntless, não podemos cumprir o seu pedido. – Domenic declarou. - Nós pedimos
que você envie um representante para discutir a situação.
- O que você está fazendo? - Hermes disse, horrorizado.
- Conseguindo mais tempo.
Um batimento cardíaco passou, e depois outro, e a nave da Aliança Estelar não
respondeu. Jeram trocou a transmissão para seu próprio fone de ouvido.
- Dauntless, você recebeu nossa última mensagem? Nós somos incapazes de cumprir
seu pedido.
Mais uma vez, apenas o silêncio respondeu a ele. Cassandra estava à beira das
lágrimas e Hermes ficou pálido.
Domenic parecia que não conseguir compreender a enormidade da ameaça. A luz em
seus olhos cinzentos estava apagada. - Repita, incapaz de cumprir. Por favor.
Na pausa que se seguiu, Linnea imaginou a nave da Aliança Estelar como um enorme
predador do mar, como aqueles que às vezes destruíam a costa de Temora, agora se
movendo com a intenção tranquila e mortal em relação à sua presa.
- É...é isso, então? - Cassandra gaguejou. - Não há nada a fazer, exceto esperar?
- E ir para casa e para nossas famílias. - Hermes disse em uma voz subitamente rouca. -
Uma hora... Não há tempo suficiente para sair da cidade. Pelo menos o Regente não
retornou ainda. - Ele engoliu de forma audível. - Algo ainda pode ser salvo.
Domenic despertou, visivelmente se contendo. - Não devemos desistir!
Jeram balançou a cabeça. - Eu posso continuar tentando...
- Qual é o sentido nisso? - Hermes parou a caminho da porta. - Eles não vão ouvir, eles
não vão falar conosco! Não podemos negociar assim. Não temos armas, não há como nos
defender. O Pacto é muito bom, mas não quando nos deixa vulneráveis aos piratas que se
deleitam na ruína daqueles menos poderosos. Eles são bem o tipo de monstros que Nagy
O s f i l h o s d o s r e i s | 316

usaria para minar qualquer resistência. Eu deveria ter pensado nisso... Eu vi o suficiente de
seu tipo antes. - Ele saiu da câmara.
- O que vai acontecer com a Grissom? - Cassandra perguntou.
- Você ouviu. - Linnea murmurou. - Eles não podem nem se ajudar.
- Eu sei que parece não haver esperança. – Domenic disse, andando no centro da sala.
- Mas deve haver algo... A razão pela qual adotamos o Pacto não era para controlar armas
físicas, mas sim salvaguardar contra os poderes da mente. O laran tem sido a nossa maior
força e o que nos diferencia de outros mundos de baixa indústria. Domna Linnea, a Torre
Comyn poderia criar um escudo de laran ou desarmar os mísseis? Ou... - Sua voz vacilou. –
Ou explodir a Dauntless antes que ela possa disparar?
Linnea lembrou-se do desastre em Caer Donn, quando um círculo ilegal tinha usado a
imensamente poderosa matriz de Sharra para destruir um espaçoporto e a espaçonave lá.
Mas essa nave estava no planeta, não no alto em órbita.
E nós não temos nenhuma matriz da magnitude de Sharra, se de fato tal coisa ainda
existir.
Até mesmo as chances disso ter o menor efeito sobre p maquinário da Dauntless eram
muito baixas. Talvez os poderes telepáticos combinados de um círculo pudessem alcançar a
mente de seu capitão ou tripulação... Mas isso levaria uma enorme quantidade de energia
psíquica, um esforço suicida. Linnea nunca ouviu falar de qualquer grupo de leroni ser capaz
de cruzar essa distância.
Para cada ação, há uma primeira vez.
- Se isso puder ser feito, nós faremos. – Ela disse em voz alta. Gentilmente, ela afastou
Cassandra e apertou sua capa. A garota caiu em um assento ao lado de Jeram.
Ele assentiu, entendendo quão poucas chances eles tinham. - Eu vou com você.
Illona...
- A escolha é dela. – Linnea disse, mesmo que, sob circunstâncias comuns, nenhum
Guardião permitiria que uma mulher grávida trabalhasse em um círculo. Mas se falharmos,
não haveremos futuro para ela ou seu filho.
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Capítulo 35

Quando a mensagem chegou de que Linnea da Torre Comyn desejava falar com ela
nas retransmissões, Silvana soube imediatamente que algo estava errado. Provavelmente
eram notícias de Gareth e como isso poderia ser bom? Qualquer coisa não urgente
esperaria até um momento mais conveniente.
Ela se acomodou no banco na frente das telas de retransmissão, ciente do aumento de
sua frequência cardíaca, a ascensão na adrenalina em seu sangue. Normalmente, ela
poderia se concentrar com apenas algumas respirações, mas agora ela alcançara a clareza
necessária com dificuldade.
As pedras ligadas nas telas de retransmissão oscilaram, como se embotadas por
lágrimas não derramadas, enquanto ela suavizava o foco de seus olhos. Tocando em sua
visão interior, ela estabeleceu a conexão com o dispositivo psicoativo. Os cristais tremeram
quando a energia percorreu.
Stelli...
Silvana estremeceu, sabendo que seu nome de infância não era deliberadamente
usado. Ela estava sentindo algo mais profundo no padrão dos pensamentos de sua mãe,
suas próprias emoções.
Mãe?
Silvana. A voz mental ficou mais firme, como se Linnea estivesse mais uma vez no
controle de suas emoções.
Mãe, o que há de errado? O que aconteceu com Gareth?
Não há tempo para explicar tudo. Uma nave estelar chegou... Rebeldes contra a
Aliança que tomou o lugar da Federação. Eles ficaram danificados em uma batalha e
necessitavam de reparos. Permitimos que eles pousassem, mas antes que eles pudessem
decolar novamente, outra nave chegou.
O sangue de Silvana pareceu gelar em suas veias. As imagens piscaram na parte de trás
de sua mente, o céu rasgado com luzes enquanto a destruição chovia em uma cidade, em
Thendara, ecoando com os gritos dos que morriam em meio às chamas e cinzas.
Eles não reconhecem os direitos soberanos de Darkover ou nossa neutralidade. Eles
vão destruir Thendara para eliminar a nave rebelde. Nada que dissemos fez diferença.
Nossa única chance é para usar o círculo aqui para alcançá-los. Não tenho muita esperança
nisso, mas temos que tentar.
Silvana balançou para trás em seu banco, seus pensamentos oscilando. Linnea
entendia o que estava dizendo? Ela sabia que até mesmo tentar tal coisa equivalia a uma
sentença de morte? Nenhuma mente humana poderia sustentar a tensão de se comunicar
O s f i l h o s d o s r e i s | 318

a uma distância tão grande. Se, pela graça de todos os deuses de Darkover e de qualquer
outro lugar, Linnea sobrevivesse, poderia ser melhor se não tivesse sobrevivido.
Sim, ela sabia. Ela tinha chamado para dizer adeus.
Silvana entendeu, sem ter que perguntar, que elas tinham apenas alguns momentos
juntas. Linnea teria que se preparar e entrar no estado de profunda concentração a partir
da qual ela reunia o laran de seu círculo, focado através de suas pedras da estrela. Talvez
ela pudesse usar uma das telas de matriz de nível superior, se tais estivessem disponíveis
na Torre Comyn, para amplificar a energia psíquica unificada.
Agora que não havia mais tempo, Silvana percebeu o quanto queria dizer.
Eu nunca deixei de te amar. Foi tudo que ela conseguiu pensar em dizer. As palavras
pareciam tão insignificantes, tão pobres, tão inadequadas para tudo o que ela sentia.
Nem eu, a você. Lembre-se de mim, caria preciosa e viva uma vida longa e feliz.
Então a presença de Linnea desapareceu. As pedras da matriz ainda vibravam com a
própria energia mental de Silvana. Mas não havia ninguém do outro lado.
Por um longo momento, Silvana ficou sentada na frente da tela de retransmissão, sua
mente muito entorpecida e seu coração muito cheio para ela conseguir pensar no que
fazer.
- Em tempo de necessidade... - Ela murmurou, ecoando as palavras de Dirav e pegando
o Coração.
Na palma da mão, a pedra brilhava com sua própria luz interior. Parecia piscar para
ela, pulsar como um coração vivo, mas seu brilho carmesim de forma alguma a fazia
lembrar do sangue. Em vez disso, sua mente trouxe imagens de pôr do sol nas neves das
Hellers, os rubis de Ardcarran, o primeiro rubor de cor em uma maçã, a glória do outono...
E então ela estava dentro do coração, ou talvez fosse dentro dela mesma. Longe de se
sentir sozinha, ela sentiu uma infinidade de entidades, muitas enormes demais ou
minúsculas demais para a compreensão humana. Ela sentiu um conforto inefável, como se
tivesse sendo embalada com a beleza natural de seu mundo e suas criaturas.
Gradualmente, ou talvez rapidamente, pois ela não podia julgar o passar do tempo
naquele lugar, ela se tornou consciente da presença dos chieri. Ela reconheceu primeiro
aqueles mais próximos à ela, Keral e Dirav. E Lian. Ah, Lian! Então veio uma sensação de
conexão com os outros chieri ela nunca havia encontrado fisicamente. A União era como
estar em um círculo e, ao mesmo tempo, era fundamentalmente diferente. Nenhum círculo
de Torre que ela já ouvira falar era tão grande ou extenso sobre esta área larga. A distância
física não parecia importar, como fazia para o laran comum.
Estamos unidos uns aos outros, como sempre estivemos. Palavras se formaram em sua
mente e ela sabia que eram pensamentos inumanos. Como estamos com você agora.
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A nave...Thendara... Silvana começou e depois percebeu que não tinha necessidade de


explicações. Certamente não explicações em palavras. Nem ela precisava conscientemente
atrair ias imagens enviadas por Gareth ou a mensagem de Linnea. Tudo o que ela tinha que
fazer era suavizar as fronteiras de sua própria mente, abrir as portas entre um conjunto de
memórias e o outro. Era, em muitos aspectos, uma reversão do que ela havia sido treinada
para fazer como leronis e como Guardiã. Ela aprendera a compartimentar seus
pensamentos, a colocar suas emoções atrás de uma barreira firme para que nenhuma
preocupação pessoal afetasse sua concentração.
Agora, o Coração exigia uma disciplina diferente, uma comunicação aberta, a busca
por uma integração. Para alcançar a unidade com a consciência compartilhada dos chieri,
ela primeiro tinha que se tornar inteira dentro de si mesma.
Por um momento terrível, ela temeu que não fosse possível, que a combinação da
tristeza precoce e os anos de prática a tivessem deixado tão fragmentada que seria
impossível superar as divisões entre o passado e o presente, entre coração e lógica.
Ao longo dos anos, ela ajudara muitos a se curarem de lesões no corpo e no espírito.
Ela realmente estaria tão quebrada e cicatrizada para estar além de qualquer esperança?
Veja... Um pensamento que tinha o tom da mente de Lian roçou o dela. Olhe de volta
para o momento em que não haviam divisões. Apenas amor.
Como se a uma distância enorme, ela ouviu o som fraco de uma harpa... A voz de uma
mulher cantando... A vitalidade de seu próprio corpo dançando... Árvores dançando ao
vento, árvores em tons de prata e verde... Braços segurando-a, braços de um homem... Os
braços de seu pai. E uma sensação de alegria crescendo de tal forma que ela não podia
conter...
A gema carmesim ressoou em resposta.
Ele nunca me esqueceu, nem ela, Silvana pensou. Eles estavam em meu coração o
tempo todo, assim como eu estava no deles.
Parecia que uma ideia enraizada agora se dissolvida, que isso se tornava parte da
unidade dos chieri, para sempre se tornando parte daquele momento e da própria
Darkover.
O Coração se iluminou, uma onda de energia psíquica. Quando aumentou os poderes
naturais de cada mente naquela unidade, também enviou elas. A sensação era tão
arrebatadora, tão inebriante, que Silvana ansiava por se encaixar totalmente, por subir
naquela maré, se fundir, mas sem restrições e controle. Seu treinamento de Guardiã recuou
de tal rendição.
Mesmo agora, ela sentia a atração do Coração, não só sua sedução, mas também seu
preço. Era muito mais do que um círculo, mais como uma enorme esfera, notável em sua
capacidade de unir tantas mentes em tamanha distância. Essa unidade tinha um enorme
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custo em energia mental. A pedra em si não era nem boa e nem má, não como a grande
matriz de Sharra que nunca poderia ser usada por muito tempo ou por outro motivo que
não uma arma. O Coração permitia que aqueles que se unissem a ele moldassem um
enorme poder psíquico. Os chieri eram mais fortes do que ela, mesmo com todo o seu
treinamento, mas eram muito menos em número do que aqueles que haviam criado o
Coração. Eles poderiam usá-lo por apenas um curto período de tempo.
Com o toque de uma Guardiã, Silvana mudou o foco da consciência do Coração
unificado em forma de esfera nos céus acima de Thendara.
Uma nave apareceu no firmamento escarlate, uma coisa de metal frio, de cerâmica e
vidro, de intrincadas máquinas e coisas que brilhavam com fogo venenoso. Abaixo, a cidade
brilhava com a vida, os pontos de mentes comuns como grãos de areia, marcados aqui e ali
como uma luz azul clara... O castelo Comyn, a Torre...
Silvana visualizou a Zona Terran, depois um espaço aberto e outra nave, menor do que
aquela em órbita, armada com o mesmo fogo venenoso, mas, ao contrário da primeira
nave, essas armas estavam em pausa, paradas, desativadas.
Armas, sim...
As mentes dos chieri reconheceram os materiais, os explosivos, o aparelho feito para
rasgar a própria matéria da pedra e solo, de água e ar. Silvana sentiu não apenas a natureza
dos dispositivos e produtos químicos, mas a intenção por trás de sua fabricação. Cada
molécula dela estremeceu em repulsa. Essa nave e seus armamentos iam além do foco da
proibição do Pacto contra armas que matavam à distância sem colocar aquele que as usava
em igual risco. Isso era muito mais horrível, apontando não para um adversário, mas para a
própria terra em que ele estava. O ataque, quando viesse, seria como incendiar uma
floresta inteira para destruir uma única lasca de madeira.
A nave estava se armando, focando seu poder de fogo. Estava quase pronta para
atacar. Dos edifícios abaixo, ela sentiu um flare de terror, um tremor ao longo das ondas de
ar, uma voz implorando, mas tão fraca que ela não podia fazer mais do que identificar seu
tom de desespero.
Silvana conseguiu segurar seu foco, sem recuar ou retirar nem mesmo no menor grau.
Muito dependia de manter a força total da esfera unida do Coração. Em um nível intuitivo e
sem palavras, ela entendeu por que os chieri estavam tão profundamente focados nos
mecanismos de destruição, os muitos pontos de ligação entre arma e seu alvo. Em sua
longa história, eles tinham passado da retaliação como resposta à agressão. Mas eles não
haviam esquecido.
Há muito tempo eles haviam desistido de sua capacidade de explodir os intrusos dos
céus de Darkover. Eles não precisavam mais disso.
O s f i l h o s d o s r e i s | 321

O Coração reuniu as mentes dentro dele, ou era o que parecia para Silvana. Sua
sensibilidade coletiva superava em muito a de qualquer indivíduo, assim como o seu poder.
Ela focou a si mesma, sua mente, seu laran, na orientação de algo maior que ela mesma.
O processo não era diferente daquele que Silvana usava para a fabricação de
compostos químicos para combater incêndios ou em mineração, transportando minerais
em quantidades extremamente pequenas de baixo da superfície. Ela sentiu a manipulação
de estruturas moleculares, quebrando uma ligação química aqui, mudando um átomo de
uma posição e movendo outro para lá. Era um aspecto novo e estava tomando a energia
liberada da quebra de certos compostos para usá-la para derreter algumas estruturas e
fundir outras.
Às vezes, parecia que todo o procedimento exigiria horas, dias, tão meticuloso era o
trabalho. Normalmente em um círculo também era muito comum perder a passagem da
passagem do tempo. Porém, em uma Torre, um monitor treinado garantia que nenhum
dano físico ou distrações afetassem a concentração. Mesmo sem essa segurança, Silvana
tinha absoluta confiança na união do Coração. Com toda a probabilidade, os chieri
conheciam o seu limite melhor do que ela mesma fez.
Nos mecanismos das armas, uma conexão após a outra foi substituída por uma lacuna,
e novas foram criadas onde elas não existiam antes. O padrão vibracional dos materiais
explosivos e produtores de radiação foram deslocados. Algumas partes escureceram
quando ficaram inertes. Outras ficaram brilhantes, brancas e amarelas em vez de seus
naturais tons de cinza e marrom mais escuro. Os pontos dançavam como pequenas
chamas, queimando antes de se apagar.
Com cuidado, os chieri evitaram os equipamentos de comunicação e propulsão da
nave, bem como o aparelho que mantinha a atmosfera respirável.
Silvana percebeu a adrenalina no ar dentro da nave e depois uma tempestade de
confusão e urgência. A tripulação da nave sabia que havia algo errado. Talvez eles tivessem
tentado sem sucesso usar suas armas. Alguém estava gritando ordens. Ela não conseguia
entender as palavras, apenas uma onda de reverberações frenéticas no miasma emocional.
A esfera do Coração vacilou, desaparecendo com a diminuição da energia psíquica que
o alimentava. Aqui e ali, uma das mentes oscilou, mas se era por exaustão ou morte,
Silvana não podia dizer. Ela mesma, com todo o poder de seu laran e seu treinamento, não
poderia sustentar o contato por muito mais tempo. Ela era humana e seu dom finito. Os
chieri tinham maior talento natural, mas muitos estavam envelhecidos, mesmo para os
padrões de sua raça. O vigor daqueles restantes na esfera queimava como uma chama,
quente e breve.
É o suficiente? Ela se perguntou quando se sentiu muito à parte de seu corpo físico.
O s f i l h o s d o s r e i s | 322

Sua pergunta ficou sem resposta. Ela sentiu os outros se esforçando para manter a
união por mais tempo para completar as últimas reações químicas, cortar os circuitos
cruciais restantes. Se as armas ainda pudessem operar ou se houvesse um meio de repará-
las, todos os seus esforços teriam sido por nada.
Silvana se forçou a se concentrar. Ela lutou para permanecer na esfera, alerta e ativa.
Ao longo dos anos, ela havia se acostumado a guiar sua mente sem esforço, mas agora o
esforço parecia rasgá-la, destruí-la, como se estivesse sendo arrastada através de um
campo de cascalho pontiagudo. O instinto lhe ordenava a recuar, mas ela resistiu. A
conexão se manteve, mas por quanto tempo ela não tinha como dizer.
Apenas um pouco mais...um pouco mais... Ela dizia a si mesma que poderia realizar
qualquer coisa, suportar qualquer coisa, em um período tão curto de tempo.
Procurando dentro de si mesma, ela descobriu uma pequena reserva de energia e a
derramou na esfera, sem se preocupar com a dor. Ela era uma Guardiã e comynara,
embora nunca tivesse reivindicado o segundo status. Ela era uma Hastur, filha de reis,
embora nunca tivesse desejado tal distinção também.
Meu pai não vacilou quando enfrentou a ira de Sharra, quando invocou Aldones,
Senhor da Luz. Ele nunca fez uma pausa para considerar o custo. Como eu poderia fazer
menos?
Tremor a atingiu, sacudindo o firmamento psíquico. Todos estavam perto do final de
suas forças.
Só um pouco mais...
Vagamente ela sentiu que poderia morrer assim, sua mente demorando demais para
retornar ao seu corpo físico. Ela vagaria pelo Mundo Superior, infinitamente procurando
aqueles que ela amava? Regis estaria esperando por ela? Desesperadamente ela queria vê-
lo de novo...
No entanto, ela escolheu focar no Coração, abrir a mente para seu poder. Era preciso.
De certo modo, fora ela e não os chieri que criara a esfera.
Ela não tinha escolha a não ser continuar aquilo.
É o suficiente.
Por um momento, ela não teve certeza se o pensamento fora dela, formado por medo
e esperança, ou de outra mente.
Stelli, amiga do coração...
Lian?
Um pulso de ternura respondeu. Você deve nos deixar agora ou sofrerá ferimentos
graves.
A esfera ainda pode funcionar se eu me separar?
O s f i l h o s d o s r e i s | 323

Nós realizamos o que era necessário. Alguns...eu não sei a palavra para essas coisas...
permanecem, mas não o suficiente para realizar nada significativo. Já sentimos mudanças
no sistema de navegação da nave que indicam preparações para uma retirada.
O alívio a cobriu, quase sufocando-a. Sua mente parecia grossa e entorpecida, incapaz
de formar uma resposta.
Feito... Ela pensou. Está feito. A cidade está segura.
O relacionamento desapareceu, lentamente no início, como a luz do céu ocidental no
crepúsculo, antes de se fragmentar nas mentes individuais de cada chieri.
Ela sentiu as bordas de sua própria mente ficarem mais sólidas, uma contenção
familiar. Embora ela pudesse e, sem dúvida o faria, se fundir no relacionamento de um
círculo novamente, nunca seria igual ao que acabara de experimentar.
Sob ela, o banco era firme e macio. O quarto tinha ficado frio. Ela deveria pedir alguém
para acender o fogo e trazer uma comida quente. Em um momento, ela faria isso.
Por enquanto, ela honraria o que tinha sido dado, o que havia sido perdido, o que
tinha sido ganho e o que havia sido sacrificado.
Ela prestaria homenagens em seu coração ao que ela se tornou, ao que ela nunca mais
seria de novo. Ao que tinha sido tirado dela.
E ao que permaneceria em sua alma para sempre.
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Capítulo 36

Gareth fez uma pausa em uma entrada lateral para o Grande Salão de Baile do Castelo
Comyn. Uma aspiração trouxe-lhe os cheiros de flores, a vegetação tradicional no Festival
de Verão e do incenso pungente de bálsamo.
Quando ele tinha montado pela cidade, ele estava cercado por um povo divertido,
festivo, uma profusão de decorações e músicas. Era quase meio-dia e o sol estava claro e
brilhante em um céu sem nuvens. As pessoas já estavam bebendo e dançando nas ruas.
Ele acordara cedo o suficiente para deixar cestas de frutas e flores para suas parentes
em homenagem à Abençoada Cassilda. Não houvera muitas, além de sua mãe e irmã. Como
ele não tinha sido permitido dentro da Torre, deixou os presentes para sua avó Linnea e sua
tia Silvana na porta. Havia mais uma, no entanto. Uma que ele havia feito com as próprias
mãos, uma sobre a qual ele não havia dito nehuma palavra: uma cesta de juncos
entrelaçados com uma única rosalys branca perfeita do jardim da casa da cidade, com uma
guirlanda de fitas prateadas amarradas.
Agora aqui estava ele, vestido em suas melhores roupas, sua pele ainda bronzeada o
suficiente para fazê-lo se destacar em meio aos rostos pálidos do Comyn. Ele nunca se
sentiu mais fora de lugar ou como se pertenceasse menos ali. Todas as suas velhas
esperanças de fazer um lugar para si mesmo nessa sociedade, de se redimir, evaporaram na
verdade do que ele era e de quanta dor ele havia causado. Seus sonhos de aventura o
mostrarem como tolo, mais instável do que um bêbado. Ele não podia pensar no Agente
Especial Race Cargill sem sentir uma mistura de arrependimento e tristeza, então
abandonou essa antiga diversão. Afinal, não era mesmo uma pessoa que existira alguma
vez.
- Gareth? - Danilo Syrtis chegara em silêncio para ficar ao lado dele. Um tartan nas
cores de Ardais, seu Domínio adotivo, iluminou seu habitual traje sombrio.
Gareth enrijeceu os ombros. Era hora de entrar. Seu tio Danilo lhe deu um leve aperto
no ombro.
- Não duvide de suas boas-vindas, rapaz. Todos nós sabemos o que você passou.
Gareth suprimiu uma resposta, não, você não sabe nem metade. Mas talvez eles
soubessem. Seu tio Danilo e sua avó Linnea, até mesmo Domna Silvana. Ele ainda não
conseguira se acostumar com a ideia de que ela era a irmã de seu pai. Eles tinham algumas
maneiras de o conhecer muito bem, talvez o guiado em sua mente e seu laran quando ele
curou o Viss, ou ao receber seu aviso desesperado sobre o ataque vindo do espaço. Sua
família o amava, mesmo que não o entendesse.
Com todos os lembretes desse amor, seu coração ainda batia de forma incômoda,
como se pertencesse a outra pessoa e tivesse sido apenas um empréstimo. Ele não tinha
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visto Rahelle desde a chegada a Thendara, quando ele tinha sido levado em uma direção, e
ela e seu pai em outra. Era demais esperar que ele tivesse a chance de escapar para a casa
que Cyrillon tinha alugado. Gareth não tinha dúvidas de que, depois de sua incursão nas
Cidades Secas, ele não escaparia facilmente da constante supervisão.
Por enquanto, de qualquer forma. Mas isso está para mudar.
Gareth firmou suas barreiras de laran mais apertadas. A última coisa que ele queria
era que sentissem seus pensamentos no corredor ou os lessem.
Eles entraram, Danilo liderando o caminho. O salão de baile brilhava com uma
profulsão de cores: as fitas e guirlandas de grandes flores, os vestidos de seda e renda das
mulheres, e as elegantes vestimentas dos homens. As cores dos Domínios criaram um
motim de brilho, reforçados pelos tartans das famílias individuais. Jóias brilhavam em
gargantas e em torno dos pulsos. Pérolas brilhavam em laços ou brincos de ouro.
Para o alívio de Gareth, houve apenas uma pequena agitação quando ele entrou.
Domna Marguerida olhou para sua direção, mas voltou a se ocupar em uma conversa com
Hermes e Katherine Aldaran. Sua avó Linnea e Domna Silvana estavam no canto oposto
com um grupo de pessoas da Torre.
Silvana virou a cabeça para ouvir um dos outros Guardiões e Gareth notou que ela
prendera as flores que ele dera em seu cabelo. Embora mais velha que seu pai, ela parecia
muito mais jovem, seu cabelo tinha o mesmo tom de chama brilhando de quando era uma
menina, seu rosto sem maquiagem. Ela mantinha aquela quietude quase desumana que ele
associava à sua avó Linnea quando ela estava trabalhando como Guardiã, e, ainda assim,
um manto de alegria parecia cercá-la. Ele pensou que nunca tinha visto alguém tão
intensamente vivo, tão presente. Linnea inclinou a cabeça para Silvana e seus olhos se
encontraram por um instante. A intensidade desse olhar era quase avassaladora, mesmo do
outro lado da sala.
Gareth se afastou. O resto dos foliões reunidos pareceram desfocados em um mar de
gargalhadas, um misto de riso e de som dos músicos ajustando seus instrumentos.
Normalmente, Gareth tinha tanto prazer em dançar como qualquer darkovano, mas
agora ele só queria que esta noite acabasse. Quanto mais cedo ele fizesse seu anúncio,
mais cedo ele poderia fazer uma fuga. Primeiro, no entanto, ele devia se apresentar a Dom
Mikhail que era o anfitrião da noite.
Por uma vez, Mikhail não estava ao lado de Marguerida, mas a alguma distância. Ele
estava conversando com Domenic, seu segundo filho, Rory, e um punhado de oficiais
seniores da Guarda da Cidade. Gareth pediu licença a Danilo e se encaminhou para eles. Ele
se curvou precisamente, da maneira correta que um príncipe devia fazer ao seu Regente e
recitou as saudações apropriadas.
O s f i l h o s d o s r e i s | 326

- Estamos todos muito felizes por você está aqui para celebrar este festival conosco. -
Mikhail respondeu.
Tocado por um repentino carinho ao homem que governava os Domínios tão
habilmente e que nunca havia se aproveitado de sua posição, Gareth devolveu o sorriso de
Mikhail.
- Você terá que nos contar toda a história depois. - Domenic disse sem nenhum traço
de censura. - Ouvimos apenas alguns fragmentos de Cyrillon.
- Minha história é muito menos interessante do que a que aconteceu aqui em
Thendara. – Gareth disse. - Um caçador de recompensas licenciado pela Federação
ameaçando atacar Thendara e depois se retirando pacificamente? Sua presa...rebeldes,
você diz?...Bem, eles então têm tempo para fazer reparos e escapar? - Ele balançou a
cabeça. - Quem realizou isso é o verdadeiro heroi, não eu.
- Modéstia ruim vai o deixar doente, príncipe Elhalyn! - Rory brincou.
Gareth deu de ombros. Os verdadeiros herois eram Jeram e sua avó Linnea, que
impediram a nave da Aliança Estelar de bombardear a cidade. Ninguém parecia saber
claramente como acontecera, e realmente não importava.
- Não estamos brincando com você, rapaz. – Mikhail disse. - O que você fez pode não
fornecer material para baladas, mas não foi menos vital para o nosso futuro. Você realizou
o que nenhum outro Comyn conseguiu. Você nos trouxe um tratado de paz com um Lorde
das Cidades Secas. Desde a fundação dos Domínios nunca recebemos um representante da
Grande Casa da Shainsa.
Um murmúrio de excitação atraiu a atenção de Gareth para a entrada principal. As
pessoas se moveram para uma visão melhor, obscurecendo o ponto de visão dele. Ele não
conseguia entender o que estavam dizendo, muitos estavam falando ao mesmo tempo e os
músicos tinham começado a tocar notas em uníssono.
Alguém perto da porta bateu um prato, criando um som em cascata e metálico mais
adequado para a Grande Casa de Shainsa do que ao Castelo Comyn. Então, por acaso, o
grupo de pessoas aglomeradas entre ele e a porta abriu um pequeno espaço e ele viu
quando Merach entrou no salão, seguido por dois homens de cabelos claros vestidos com
libré nas cores de Lorde Dayan e um servo carregando um pequeno baú encrustado de
joias.
Gareth não tinha visto Merach desde que sua companhia havia chegado nos portões
de Thendara. Apesar dos cuidados de Rahelle, Gareth tinha permanecido febril na maior
parte da viagem de retorno. Ele se lembrava pouco da chegada ao complexo de Cyrillon em
Carthon onde Rahelle havia argumentado de forma rigorosa e sem sucesso para que ele
ficasse para trás.
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Merach movia-se com uma seriedade calculada, ignorando as infracções inadvertidas


que, em Shainsa, seriam motivo para um duelo de morte. Seu cabelo, solto sobre seus
ombros, brilhava como ouro polido contra a seda azul de seu manto e camisa. Merach
andava com propósito firme. Gareth viu o orgulho não só do próprio homem, mas daqueles
que ele representava: seu lorde, sua cidade. Seu povo.
Olhando ao redor, Gareth também poderia ver que, para a maior parte da assembleia,
Merach parecia um selvagem, vestido de forma brilhante, chamando atenção. Eles não
tinham nenhuma noção da honra e dignidade desse homem e o julgavam por sua falta de
laran.
Tudo isso aconteceu em um momento, um batimento cardíaco ou dois. Seguindo
respeitosamente atrás de Merach, Cyrillon veio também finamente vestido, porém mais
seguindo a moda dos Domínios. Uma mulher andava ao seu lado, sua cabeça erguida, suas
vestes fluidas em ouro e rosa.
Gareth não reconheceu Rahelle no começo. Ele viu o feroz orgulho em seus passos, a
maravilha que era seu vestido... E depois as correntes. Não, não correntes. O cinto e as
pulseiras de ouro filigranado que valiam o resgate de uma nobre. Correntes delicadas
balançaram livremente no cinto enquanto caminhava, soltas nos pulsos.
Eu sou uma mulher das Cidades Secas, ela proclamava. E sou tão livre quanto qualquer
um de vocês.
O salão de repente parecia muito brilhante. A liberdade é uma questão de como
escolhemos usar nossas correntes. Ele pensou. Quem é mais honesto, meu amor, você que
carrega a sua abertamente ou eu que uso as minhas invisíveis?
Como se seu pensamento tivesse sido sussurrado em seu ouvido, ela se virou e olhou
diretamente para ele. Ele não tinha certeza se ela sorrira ou se ele imaginara isso.
Merach parou no meio do salão. Murmúrios silenciaram quando Mikhail foi para
frente e recebeu Merach como o primeiro embaixador oficial de Shainsa no Comyn.
Merach, por sua vez, apresentou o baú como um presente, um sinal da boa vontade de
Lorde Dayan que esperava por um relacionamento amigável e mutuamente lucrativo. O
público se moveu sutilmente para dar uma olhada em seu conteúdo, mas Gareth
permaneceu onde estava. Ele não se importava com riquezas, nem mesmo com trabalho de
metal, desenhos exóticos dos drytowners e pedras preciosas.
Ele desejou que houvesse alguma maneira de falar com Rahelle. Ela estava parada ao
lado de seu pai que conversava com seu tio Danilo e Domenic. Gareth observou-os à
distância enquanto os dançarinos se alinharam no centro do salão. Mikhail e Marguerida,
como anfitriões da noite, lideraram a primeira dança.
Gareth colocou-se no lugar apropriado para que os vários dignitários pudessem
oferecer saudações educadas. Eles não se importavam com ele, exceto por ele ser o
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herdeiro de Elhalyn, o príncipe em espera eterna. Seus pais tentaram atraí-lo para
conversa, uma tentativa de jovialidade, mas ele não tinha seu coração focado naquilo.
Depois que ele falou com todos que o protocolo exigia, ele escapou de homens como
Octavien MacEwain, isso sem mencionar as mães focadas em jogar suas filhas sem graça
em seu caminho para encurralá-lo.
Ele fez o caminho através da multidão para Mikhail e disse que tinha um breve
anúncio para fazer. Mikhail deu-lhe um olhar firme, como se perguntasse se Gareth estava
planejando sua desgraça novamente, mas depois disse, com alguma bondade: - Quando os
músicos fizerem sua pausa.
Sozinho no meio das celebrações, Gareth fechou os olhos. Ele não podia decidir se um
peso tinha sido tirado de seus ombros ou jogado lá.
Leve como asas de borboleta, ele sentiu um toque na parte de trás de um pulso. Ele
abriu os olhos para ver Silvana. O contato físico dissolveu suas barreiras de laran,
colocando-os em contato. Ele se sentiu como se subisse por um campo de estrelas.
Ela esperou até o momento do espanto sumir. - Você fez bem.
Ele balançou a cabeça. Eu cometi um erro depois do outro, colocando em risco a vida
dos outros, assim como minha pobre existência. Depois desta noite, no entanto, minha
loucura não vai mais colocar ninguém em risco.
Um murmúrio como sinos prateados acompanharam seus próximos pensamentos.
Talvez você esteja certo e, enquanto permanecer aqui, se assustando com os fantasmas de
seus próprios fracassos, você nunca será capaz de ver como estamos todos unidos. Você não
deve aos contrabandistas ou a nave da Aliança Estelar mais do que eu aos Destruidores de
Mundos ou a morte de meu pai. Mas você fez sua parte para guiar Darkover através dessa
crise... E em me reunir com minha família. Com minhas famílias. Seu olhar cintilou para
onde Linnea estava dançando com Hermes Aldaran. Por isso, se nada mais, eu agradeço.
Gareth não sabia o que dizer. Ela tinha lhe dado tanto, o guiara quando ele mais
necessitava, e agora seria cruel recusar sua gratidão. Ele sentiu um doce calor em seu peito,
como se seu coração tivesse beijado o dele. Então ela se foi, passando pela multidão tão
graciosamente quanto um chieri dançando em uma floresta.
A música continuou por um tempo com uma melodia composta por Marguerida aos
passos de dança tradicionais. Quando ele se aproximou e a multidão terminou de aplaudir,
Mikhail fez um breve discurso. Ele misturou os desejos de bênçãos típicos do festival com
suas esperanças pessoais para um futuro novo e mais brilhante para todos em Darkover,
dos Domínios às Cidades Secas. Merach se manteve calmo e ereto para reconhecer sua
própria rodada de aplausos acolhedores.
- Agora Dom Gareth tem algo a anunciar para todos nós. – Mikhail concluiu.
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Gareth estava parado na primeira fileira de ouvintes, ou, em vez disso, os outros é que
tinham se posicionado para não bloquear sua visão. Agora eles se retiraram ainda mais para
que ele não precisasse avançar.
- Parentes, nobres, comynari. – Ele começou com a saudação honrada tradicional.
Consciente de que ele nunca abriria uma sessão do Conselho dessa maneira, acrescentou: -
E amigos honrados. Esta é uma temporada de regozijamento e um tempo de mudança para
todos nós. Um tempo para deixar de lado antigas rivalidades – ele olhou para Merach que
devolveu seu olhar com firmeza- e renovar novos e velhos laços. - Desta vez ele olhou para
sua avó, de pé ao lado de sua filha adulta. Ele pensou que nunca a vira tão feliz. - Quanto a
mim, também devo me adaptar ao novo. Eu não posso mais continuar como um parasita
inútil.
- O que ele disse? Um parasita?
- Abeçoada Evanda, ele perdeu o juízo novamente!
O salão se encheu com onda de murmúrios e o farfalhar de tecidos. O silêncio
expectante se seguiu.
- Eu abdico de minha posição como Herdeiro de Elhalyn e do trono dos Sete Domínios.
Gareth fez uma pausa para deixar o significado de seu anúncio afundar. Sua mãe
sufocou uma exclamação e apertou o braço de seu pai. Seu pai parecia que iria protestar,
mas depois pensou melhor. Domenic estava visivelmente surpreso, quase assustado.
Mikhail não se mexeu, mas suas sobrancelhas estavam franzidas. Marguerida, ao lado do
marido, disse alguma coisa tranquilizadora em seu ouvido. Nem todas as reações foram
negativas, no entanto. Com seus lábios curvado em um sorriso compreensivo, Silvana
inclinou a cabeça em um aceno.
Lutanto para não se aproximar de Rahelle, Gareth conseguiu se manter em pé
enquanto o furor silenciava.
Mikhail se agitou. - Você pensou bem nisso, Dom Gareth? Uma vez tomada, tal decisão
não pode ser revertida.
- Senhor, sim. Pensei. Nunca estive mais seguro de qualquer coisa em qualquer outro
momento. Elhalyn estará em boas mãos com meu irmão Derek, embora eu ore para que
isso não seja necessário ainda por muitos anos. Quanto ao Comyn, Domenic será um
Regente muito melhor do que eu teria sido Rei, e ele merece saber que sua posição nunca
será desafiada.
As palavras vieram mais facilmente do que qualquer discurso que ele fizera. Se ele
tivesse alguma dúvida sobre sua decisão, esse momento de clareza a apagaria.
- E assim, - ele se virou para falar com todo o salão - eu me despeço de vocês. Que os
deuses lhes concedam longa vida e felicidades.
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Então, com a maior velocidade ainda dentro dos limites da cortesia, ele se dirigiu para
a saída mais próxima. Não para os corredores que levavam ao interior do castelo ou em
direção ao portão principal, mas para uma varanda. Felizmente, todos tinham entrado para
ouvir os discursos, então ele não precisava enfrentar imediatamente perguntas bem-
intencionadas, mas inoportunas.
Fechando a porta atrás dele, ele pisou na varanda. A noite estava esfriando
rapidamente, mas o cheiro das flores no pátio adjacente perfumava o ar. Três das quatro
luas brilhavam serenamente através de um mar de luzes pontilhadas. Ele inalou, liberando
grande parte da tensão em torno de suas costelas.
Estava feito. Para o bem ou para o mal, como dizia o ditado. Ele nunca poderia colocar
essa ave de volta em seu ovo. Ele era tão livre quanto qualquer homem poderia ser, o que
não era muito.
A porta se abriu. Ele se virou, pronto para oferecer suas desculpas e sair antes que
ficasse preso em uma conversa. Uma figura feminina magra entrou. Um cheiro de perfume
picante o atingiu.
Rahelle parou na frente dele. Por sua postura, ela queria sacudi-lo. - Você é insano ou
apenas está delirando? Está enjoado? Em transe? Algo o está induzindo a desistir de seu
direito de nascença?
Então ela não suspeitava.
Ele encolheu os ombros. - Minha vida aqui era uma gaiola, sem propósito ou
significado. Pelo menos em Carthon posso cuidar de um negócio e ser de alguma utilidade
para alguém. Importando lentes, você sabe. - Ele deu um sorriso.
- Você é tão adequado para negociar como é para bater seus braços e voar para
Mormallor! Você tem força, um dom. Eu vi isso! Mas não na compra e venda de objetos. -
Ela fez uma pausa, respirando com força. - Você mentiu para mim antes. Não minta para
mim agora. Diga-me o que está acontecendo e por que você fez essa escolha.
Gareth moveu seu olhar para as festividades e depois de volta para Rahelle. - Se eles
soubessem dessa força, aquele dom, eles me trancariam em uma Torre e usariam para seus
propósitos. Bons propósitos, propósitos honrosos, verdade, mas eu já vi o suficiente dessa
vida para saber que eu não pertenço à Torre nenhuma. - Ele lutou contra o desejo de andar
de um lado para o outro. – A pouco tempo, Dom Mikhail me disse que consegui realizar
algo que ninguém mais conseguira. O primeiro passo em direção a uma paz duradoura,
uma ponte entre o seu povo e o meu. Ele estava certo.
Seus olhos se arregalaram, mas ela não disse nada.
- Nenhum Lorde Comyn ou das Cidades Secas poderia ter oferecido a mão em busca
da amizade. – Ele disse sem qualquer sugestão de falsa modéstia. - Apenas um homem que
nenhum dos lados levava a sério, um homem sem kihar em jogo, um homem sem nada a
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perder, só ele, no caso eu, poderia fazer esses dois lados entrincheirados ouvir. Então fiz
um começo. E pretendo continuar. Um comerciante de lentes desajeitado e inconsequente
parece um pretexto tão bom quanto qualquer para mim.
- Certamente você poderia trabalhar por esse objetivo e continuar sendo um Príncipe
do Comyn, ou seja qual for o seu título.
- Verdade. 0 Ele fez uma pausa, pensando que se não falasse agora, ele nunca mais
teria coragem para isso. - Mas então...eu nunca seria livre para me casar como eu quisesse.
Isso já aconteceu na familia. Meu pai desistiu de ser herdeiro de Hastur por esse mesmo
motivo.
- Casar... - Suas palavras pararam em sua garganta. Ele quase podia ouvir seu coração
batendo, violenta e rapidamente.
Ele foi até ela e pegou suas mãos, suas mãos livres, sem correntes, nas dele.
Levantando-as, ele roçou os dedos com seus lábios. - Se você me aceitar, é claro.
- Se eu quiser...? Seu idiota! - Rahelle entrelaçou seus dedos nos dele com tanta força
que ele não poderia soltar mesmo se ele quisesse.
Ela o puxou para perto e o beijou. Sua boca era a coisa mais macia e mais inebriante
que ele já sentira. O beijo o aqueceu até as solas de seus pés, fazendo sua barriga parecer
quente e seu coração fresco e doce como se derretesse sob o sol. Ele queria dançar, chorar,
voar. De alguma forma, ele deixou suas mãos livres e envolveu os braços ao redor dela.
- Afinal de contas. – Ela respirou contra o lado do pescoço dele. - Alguém tem que
mantê-lo fora de problemas.
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Bônus do Tradutor

Arte de capa (1008 x 733)


https://i.imgur.com/gnw6eP4.png
Capa (1148 x 1654)
https://i.imgur.com/Z1Dm01K.png
Artista: Matthew “Matt” Stawicki

www.mzbworks.com

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