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1. A montanha da marvel
2. Por onde começar, ou como gostar de estar confuso
3. A maldição do estranho (perguntas frequentes)
4. O cruzamento para todos os lugares
5. Interlúdio: monstros
6. Girando em círculos
7. Interlúdio: lee, kirby, ditko
8. Ascensão e avanço
9. Interlúdio: os anos do vietnã
10. A metáfora mutante
11. Interlúdio: diamantes feitos de som
12. Trovão e mentiras
13. Interlúdio: antes do universo marvel cinematográfico
14. O que fazem os reis
15. Interlúdio: presidentes
16. Atos do patriota de ferro
17. Interlúdio: março de 1965
18. O grande destruidor
19. Interlúdio: linda carter
20. O bem é uma coisa que você faz
21. Passando o bastão
Agradecimentos
Apêndice – marvel comics: um resumo da trama
1.
A MONTANHA DA MARVEL
A
s cerca de 27 mil revistas em quadrinhos de super-heróis que a
Marvel Comics publicou desde 1961 são a mais longa obra de
ficção contínua e em volumes avulsos já criada: mais de meio
milhão de páginas até hoje, que seguem crescendo e se
acumulando. Milhares de roteiristas e desenhistas contribuíram
para que isso acontecesse. Toda semana, mais ou menos vinte
panfletos finos, de vinte ou trinta páginas cada, são adicionados ao
corpo dessa história enorme e singular. Intencionalmente, qualquer
episódio desses pode se basear nos eventos de outro anterior a ele, e
todos são (mais ou menos) coerentes entre si.
Toda criança em idade escolar reconhece os protagonistas da
história da Marvel: o Homem-Aranha, o Incrível Hulk, os X-Men.
Dezoito dos cem filmes de maior bilheteria de todos os tempos,
Vingadores: Ultimato e Pantera Negra até Capitão América: O Soldado
Invernal e Guardiões da Galáxia, são baseados em partes dessa
história, que teve uma influência enorme em boa parte do restante
da lista: Star Wars, Avatar e Matrix seriam inimagináveis sem essa
enorme narrativa da Marvel.
Seus personagens e as imagens associadas a eles estão em
camisetas, travesseiros de viagem, coleiras de cachorro, cortadores
de pizza, frascos de xampu, equipamentos de pesca, quebra-cabeças
e embalagens de saladas prontas. (Algumas pessoas que adoram
essa história também adoram ser lembradas da existência dela ou
ser associadas a personagens específicos dela.) Seus bordões caíram
na boca do povo: “sentido aranha”, “você não vai gostar de me ver
irritado”, “digo-te não”, “fator de cura”, “não… saiam vocês”,
“mordido por uma aranha radioativa”, “homenzinhos”, “perigo ou
ameaça?”, “true believers”, “’nuff said”1. Partes dessa história foram
adaptadas para seriados de TV, desenhos animados, romances,
livros ilustrados, videogames, atrações de parques temáticos e um
musical da Broadway. Para quem vive na nossa sociedade, ter
alguma familiaridade com a história da Marvel é útil da mesma
forma que, digamos, conhecer a Bíblia é útil para quem vive em uma
sociedade judaico-cristã: sua iconografia e influência estão por todos
os lados.
A história da Marvel é uma montanha cravada bem no meio da
cultura contemporânea. A montanha nem sempre esteve lá. No
início, havia um pequeno prodígio subterrâneo naquele local, uma
caverna que diziam guardar monstros em seu interior; aventureiros
fascinantes já haviam posto suas habilidades à prova lá dentro, e
casais enamorados marcaram encontros na boca da caverna. Então,
na década de 1960, a montanha começou a ganhar corpo acima da
superfície da Terra e nunca mais parou de crescer.
Não é o tipo de montanha cuja face seja possível escalar. Não
parece perigosa (e não é), mas quem tenta seguir o que parecem ser
trilhas diretas até o cume, descobre que ele está mais alto a cada vez
que se olha para cima. A maneira de vivenciar o que a montanha
tem a oferecer é entrar nela e explorar suas inúmeras cavernas
bioluminescentes e passagens sinuosas; algumas delas levam a
pontos deslumbrantes com vista para a paisagem em volta da
montanha.
Do lado de fora, não há um caminho claro para adentrar a
montanha. Partes dela estão abandonadas e tomadas por teias de
aranha. Outras partes são tediosas, horríveis, ridículas, irritantes. E,
no entanto, as pessoas saem do interior da montanha o tempo todo,
arfando e aplaudindo, contando umas às outras das maravilhas da
Marvel que viram, depois entram correndo de volta para ter mais
experiências.
/////
A Marvel Comics, como projeto artístico e comercial, começou no
início dos anos 1960, inicialmente como a obra de um punhado de
profissionais experientes dos quadrinhos — os desenhistas Jack
Kirby e Steve Ditko, o editor/roteirista Stan Lee2 e alguns outros.
Àquela altura, as histórias de super-heróis que tinham dominado os
quadrinhos americanos no final da década de 1930 e início da de
1940 saíram de moda, mas em vez de retornar ao gênero moribundo
como ele era, Kirby, Ditko e Lee combinaram os quadrinhos de
super-heróis com aspectos dos gêneros de narrativas que os
suplantaram: o estranho horror das histórias de monstros e de
ficção científica que Ditko e Kirby vinham produzindo mais
recentemente; o foco na emoção das antologias românticas que
Kirby ajudou a inventar em 1947; a sagacidade mordaz dos títulos de
humor que Lee escrevia há muitos anos. Essa fórmula híbrida —
absorver quadrinhos de monstros, romance e humor para dentro dos
quadrinhos de super-heróis — se mostrou irresistível e duradoura.
As primeiras histórias da Marvel responderam à atmosfera de seu
momento histórico, às vezes explicitamente, em termos de
conteúdo, e sempre implicitamente nos temas.
Então Kirby, Lee, Ditko e seus colaboradores descobriram como
fazer com que as melodias das narrativas individuais de todos esses
quadrinhos entrassem em harmonia, transformando cada episódio
no componente de um épico gigantesco. Isso levou a uma
colaboração artística muito mais ampla: desde então, roteiristas e
desenhistas vêm expandindo a visão uns dos outros, às vezes no
mesmo tempo e espaço, mas frequentemente separados por
gerações e continentes.
A grande história da Marvel é o reflexo na casa de espelhos de um
parque de diversões dos últimos sessenta anos da vida americana,
desde os pesadelos atômicos da Guerra Fria até a tecnocracia e o
pluralismo dos dias atuais — uma história turbulenta, tragicômica e
repleta de filigranas a respeito de poder e ética, ambientada em um
mundo transformado por prodígios. Em algumas de suas cavernas
mais profundas, é a obra de arte mais assustadora, desconcertante e
esmagadora que existe. Na periferia, é tão fácil de compreender e
curtir que é possível ler uma edição de The Unbeatable Squirrel Girl
[Garota Esquilo] para uma criança de cinco anos e ela a entenderá
imediatamente. E nem mesmo quem conta a história leu a obra
inteira.
Tudo bem. Ninguém deve ler tudo. Não é assim que a obra deve
ser vivenciada.
Então, obviamente, foi o que eu fiz. Li todas as mais de 540 mil
páginas da história publicadas até hoje, de Alpha Flight [Tropa Alfa] a
Omega the Unknown. Eu recomendo que alguém faça o mesmo? Por
Deus, não. Estou feliz por ter feito? Com certeza.
Passei alguns dos meus dias mais felizes explorando a montanha
da Marvel; eu quis ter uma noção melhor do que havia lá dentro
para ajudar os viajantes curiosos a descobrir como poderiam entrar
nela e como encontrar as partes que iriam gostar mais. (Eu fiz de
tudo para que você não precisasse fazer o mesmo que eu; se você
gostou de um filme dos Vingadores e está interessado em dar uma
olhadinha nas revistas dos personagens da equipe, ou se você leu X-
Men quando era adolescente e está curioso para saber como o título
anda desde então, estou aqui para lhe ajudar a se divertir com isso.)
Eu também queria ver o que a narrativa da Marvel dizia como uma
única obra: um épico entre os épicos, Marcel Proust vezes Doris
Lessing vezes Robert Altman elevada à potência do Mahabharata3.
Como um aglomerado de seriados sobrepostos, com dezenas
deles sendo exibidos em paralelo a qualquer momento, a história da
Marvel tem uma relação diferente com o tempo e a sequência do
que a maioria dos tipos de arte narrativa. Ela não tem realmente um
início — bem, tem, mas desde meados de 1961, quando a história
começou, não é bem o ponto em que qualquer espectador deveria
entrar. Em vez disso, a história da Marvel oferece ao leitor as
ferramentas para descobrir o contexto a partir de qualquer entrada,
lendo para trás e para os lados, bem como para a frente. Cada parte
dela, por si só, é divertida — envolvente, empolgante, agradável aos
olhos — ou, pelo menos, tem a intenção de ser. Mas há outro tipo de
diversão que surge da montagem da grande história.
A narrativa da Marvel também tem uma relação singular com a
autoria. Em termos legais, seu “criador” é uma corporação, que
cresceu ao longo do tempo à medida que o conjunto de
propriedades intelectuais trocou de proprietários. Na prática, a
narrativa da Marvel foi criada por um grupo específico de pessoas
cujos nomes nós conhecemos (em sua maioria) e cujas mãos em
especial são (geralmente) inconfundíveis em qualquer página. Mas
também quase sempre foi uma narrativa colaborativa: se você acha
que qualquer pessoa é o único criador de uma determinada imagem
ou detalhe da trama, provavelmente está enganado, e é por isso que
é um erro considerar qualquer pessoa que trabalhou em uma revista
em quadrinhos da Marvel como sua “autora”4. Além disso, a
natureza da “continuidade” — palavra importante neste contexto — é
que cada episódio tem que se encaixar em (ou pelo menos não
contradizer) tudo que foi feito por outros roteiristas e desenhistas
que vieram antes ou que estão a seu lado.
Do ponto de vista do leitor, porém, essa foi uma das grandes
inovações da Marvel. É possível acompanhar qualquer série por
conta própria, sem ter que dar bola para as outras; se a pessoa só
quer ver o que o Cavaleiro da Lua está aprontando este mês, tudo
bem. Mas personagens e enredos saltam livremente de uma série
para outra, e eventos em qualquer edição individual podem ter
ramificações em outra publicação, na mesma semana ou anos
depois. Cada pequena história é parte da narrativa maior — e,
potencialmente, parte crucial dela.
Essa sensação de experiência compartilhada, de ver dezenas de
fios narrativos e dezenas de contribuições separadas dos criadores
sendo amarradas, dá uma alegria especial ao acompanharmos o
Universo Marvel (com U maiúsculo), como tanto a empresa quanto
os leitores de quadrinhos o chamam5. A história da Marvel não é a
primeira nem a única que funciona dessa forma, mas é a maior do
gênero — a DC Comics, a grande concorrente da Marvel, e outras
editoras de quadrinhos também adotaram o modelo de “universo”6.
A coisa nem era para funcionar assim, a princípio; a história da
Marvel não foi concebida organicamente de forma alguma. Ela foi
conduzida, a cada passo, pelos ditames do mercado singular que
sustenta os quadrinhos e, nas últimas décadas, pelo negócio muito
mais lucrativo envolvendo mídia e produtos derivados de histórias
originadas nos quadrinhos. Cresceu acidentalmente e ganhou
significado acidentalmente, passando por lapsos de memória de
seus criadores, interpretações equivocadas e tentativas frenéticas de
cumprir prazos. Mesmo assim, ela acumulou muito significado.
A história da Marvel se trata de exploração — ver mundos secretos
dentro do mundo que conhecemos e entender as possibilidades do
que ainda não vivenciamos —, e suas séries paralelas e perspectivas
criativas extremamente divergentes, mesmo dentro de uma única
série, tornam possível essa compreensão mais ampla. É aventura,
comédia pastelão, novela, horror sanguinolento, estudo sensível de
personagens e alegoria política, geralmente tudo na mesma semana.
Abrange obras magníficas e obras horríveis, e engolir um trabalho
ruim às vezes é treino útil para dar valor ao trabalho bom. Cresceu
junto de seu público e depois cresceu além das sucessivas gerações
de seus narradores. Em forma e substância, a história da Marvel é
uma homenagem aos poderes surpreendentes da imaginação
humana e à maneira como as imaginações humanas em conjunto
podem fazer muito mais do que poderiam individualmente. É um
conto que nunca termina para nenhum de seus personagens,
mesmo na morte.
Esses personagens — e há milhares deles — incluem alguns seres
extraordinários, em cujos excessos fantásticos você, como leitor,
pode enxergar partes de si ou ver o que você espera ou teme se
tornar. Em uma página qualquer, é provável que você encontre
alguém como uma estudante de ciência da computação que pode
falar com esquilos e é amiga de um deus imortal que devora
planetas7; ou um androide que salvou o mundo 37 vezes e depois se
mudou para o subúrbios de Washington e formou uma família, em
uma tentativa totalmente fracassada de ser mais humano8; ou um
chefão do crime vingativo e fisicamente imenso que se tornou o
prefeito de Nova York, e cujo arqui-inimigo é o alter ego do
advogado cego que ocupa o cargo de vice-prefeito9; ou uma mulher
que descobriu na adolescência que podia atravessar paredes, foi
brevemente possuída por uma versão de si mesma de um futuro
distópico, treinou e virou ninja, depois passou meses presa em uma
bala gigantesca voando pelo cosmos, e agora é uma capitã pirata10;
ou uma criatura árvore de outro planeta que faz um uso
notavelmente expressivo de seu vocabulário de apenas três
palavras11.
O esquema de universo compartilhado da Marvel oferece uma
maneira extremamente divertida de pensar o comportamento ético
que seja mais complicado do que “mocinhos e bandidos”. Os heróis
aliterativos da história, de Peter Parker a Miles Morales, de Jessica
Jones a Kamala Khan, raramente recebem poderes de bom grado;
suas habilidades são mais um fardo imprevisto do que um objetivo
alcançado. Os vilões da Marvel raramente estão além da redenção e
provavelmente se tornarão heróis ou, inclusive, salvadores. Até
mesmo o pior entre eles tem suas razões.
No decorrer de seis décadas, a história desenvolveu sua própria
cosmologia bizarra e mais ou menos coerente. A Terra da Marvel é o
centro de seu universo, o lugar mais importante de toda a criação. É
também a “Terra-616”, apenas uma das muitas versões possíveis do
mundo que aparece na história. Um ex-cirurgião, que vive em uma
mansão no bairro de Greenwich Village com o fantasma de seu
cachorro, defende perpetuamente o planeta contra ataques de
forças ocultas e já o viu ser destruído e reconstruído, novinho em
folha, mais de uma vez. O nexo de todas as suas realidades se
encontra nas profundezas de um pântano na reserva de Everglades,
na Flórida, guardado por um monstro que não tolera o medo. Um
ser antigo que vivia em uma zona repleta de oxigênio na Lua e
testemunhou todas as possibilidades alternativas de como os
eventos importantes da Marvel poderiam ter acontecido, até ser
assassinado e ter seus olhos roubados. O trono do Inferno do
Universo Marvel está vazio; o lar de seu panteão nórdico uma vez
caiu em Oklahoma.
Algumas das perguntas que a história da Marvel faz e as respostas
(em versões curtas) que ela oferece:
N
o período em que trabalhei neste livro, me vi diante de certa
pergunta mais do que qualquer outra — ao vivo, em fóruns ou
transmitida por amigos de amigos: também quero ler essas
revistas. Mas por onde eu começo?
Essa é uma pergunta muito fácil de responder de bate-pronto
(“por onde você quiser!”) e difícil de responder de forma mais
específica. O volume de gibis da Marvel parece, visto à distância,
uma teia impenetrável de séries e histórias. De perto, é ainda mais
denso e confuso: é um grande emaranhado de teias interconectadas,
um fractal de histórias e personagens em constante expansão e
provas contraditórias e retrocessos impossíveis. Há sempre um
“anteriormente” e sempre um “continua”. Existem relançamentos e
ressurreições, universos paralelos e linhas de tempo alternativas.
Não importa o ponto de entrada, é mais tarde do que deveria ser.
Tudo em uma série de quadrinhos de super-heróis se equilibra,
total ou parcialmente, no conhecimento de alguma história anterior.
Tudo é um spoiler de alguma história anterior. Há sempre uma
emoção, uma surpresa, uns truques narrativos que você vai se privar
ao chegar tarde demais. Mas é assim mesmo.
A única esperança, pensam muitas vezes os leitores em potencial,
é começar do início. Eu imploro: não faça isso. Mesmo que você
“goste de fazer as coisas na ordem certa” e “queira ter uma noção da
história”, não faça isso. Por favor. Eu prometo, é melhor não
começar do início26. Você não vai longe e não vai gostar, e gostar é a
questão principal.
Mas (te ouço perguntando) por que não começar do início, com
The Fantastic Four no 1 (ou a primeira aparição de seu personagem
favorito), e deixar a história se desenrolar como aconteceu para os
suficientemente sortudos que estavam atentos na época? Por um
lado, os gibis da Marvel, mesmo no início, não foram feitos para
serem lidos em uma ordem específica e unificada: a diretriz do
mercado de quadrinhos era que “cada edição é a primeira de
alguém”, e quando um determinado exemplar saía das bancas, era o
fim27. Mesmo quando novas edições se baseavam em eventos de
outras mais antigas, seus criadores tinham que considerar que os
leitores provavelmente não teriam acesso a essas revistas anteriores.
Mais importante: muitos desses gibis do início da década de 1960
são desagradáveis e nada gratificantes, especialmente se lidos no
século XXI, sem preparação prévia. Eles geralmente eram originais
ao extremo para a época; geralmente também eram estúpidos ao
extremo, produzidos a toque de caixa para uma massa de crianças
que deveriam jogá-los no lixo quando terminassem de ler. Se você
está acostumado com os ritmos e o tom do entretenimento
contemporâneo e decide olhar, digamos, as revistas que levaram à
série de TV do Demolidor, talvez não consiga encarar o Daredevil no 1
inteiro. Só é possível lembrar que as primeiras histórias do Homem-
Formiga ou do Tocha Humana são “historicamente importantes” até
o momento em que seus olhos percam o foco e o interesse.
Isso não quer dizer que não haja circunstâncias nas quais você
gostaria de ler os quadrinhos criados de uma maneira que hoje se
considera arcaica. Muitos deles têm bastante a oferecer, e alguns são
extraordinários. Apenas é melhor não ler esses quadrinhos primeiro,
na maioria das vezes.
Então, se “do início, é claro” não é a resposta certa para a pergunta
a respeito de por onde começar, qual é ela? Outra abordagem é ir
aos favoritos de consenso — as edições e fases de destaque e mais
importantes. Essa é uma ideia melhor, mas ainda é complicada e
enganosa porque “de destaque” e “mais importante” geralmente são
coisas totalmente diferentes. “Importante”, em especial, é um termo
escorregadio: importante para partes subsequentes da história? Para
a estética dos quadrinhos em geral? Para aquilo que os leitores de
longa data se lembram com carinho?
Há uma espécie de suposição inútil que surge com frequência
surpreendente sem ser dita: que a medida mais significativa de
qualidade para uma determinada revista em quadrinhos é a
frequência com que os gibis posteriores fazem alusão a ela28. Isso
tende a significar que a “importância” é concedida a um episódio
que abala os alicerces de uma longa série, ou à apresentação ou
morte de um personagem importante. Esses momentos de
mudança, no entanto, podem não significar muito para o leitor que
ainda não está familiarizado com o que está sendo alterado.
Ninguém que tenha lido e curtido uma dúzia de gibis do Wolverine
acha que a revista mais cobiçada pelos especuladores — sua
primeira aparição, em The Incredible Hulk no 18129 — foi a melhor;
esse é apenas o momento em que um objeto de catexia chegou.
A listagem dos “clássicos” também tende a se reforçar: são
considerados os mais importantes porque todos sabem que são os
mais importantes. Isso significa que, como em qualquer outra
mídia, os clássicos tendem a ser cada vez mais os títulos antigos no
decorrer do tempo. Em 2014, a Marvel deixou os fãs escolherem por
votação suas setenta e cinco maiores histórias de todos os tempos.
Os resultados foram uma mistura de edições individuais, séries
longas e tramas que abrangeram dezenas de séries. Das vinte
primeiras, no entanto, dezesseis histórias foram publicadas pelo
menos duas décadas antes, e dezessete apresentaram personagens
que mais tarde apareceriam de maneira regular ou mataram
personagens que já existiam há algum tempo, ou ambos.
Bons quadrinhos, no entanto, geralmente representam o seu
momento. São seriados; os únicos que sobrevivem são aqueles cujos
leitores estão dispostos a esperar para descobrir o que acontece a
seguir. Da minha perspectiva atual, os quadrinhos do início dos anos
2020 têm muito a oferecer, mas espero que daqui a vinte anos eu
tenha a mesma opinião a respeito dos quadrinhos do início dos anos
2040, e aposto que alguns dos gibis recentes que eu adoro agora
parecerão, na melhor das hipóteses, um pouco estranhos e
antiquados. Por mais que o passado tenha importância no presente
da história da Marvel, estar familiarizado com os quadrinhos antigos
raramente é um pré-requisito para curtir os novos, e quando é, se
trata de um fracasso de quem conta a história.
Uma terceira e ainda melhor opção de ponto de partida é começar
por alguma coisa que um de seus amigos goste. Quadrinhos de
super-heróis são uma mídia social. Uma pilha de exemplares
surrados de Ms. Marvel ou uma encadernação de X-Statix com
rachaduras na lombada são lembranças de uma experiência
compartilhada — um conjunto de imagens que inspiram conversas
empolgadas ou discussões, uma coleção de pontos de referência que
os leitores têm em comum. Apesar de todas as suas falhas, a cultura
em torno dos quadrinhos é muito boa em transmitir entusiasmo.
Adoramos falar das histórias que nos encantaram e ajudar outras
pessoas a descobrir histórias que elas também vão adorar.
Esse também é o objetivo deste livro, na verdade. Não vou recitar
uma lista de volumes que qualquer pessoa vai gostar (isso não
existe) ou proclamar uma listagem de “as trezentas edições que você
deve ler”. O que eu posso fazer, como alguém que percorreu o
território inteiro, é bancar o guia turístico.
Nosso passeio seguirá uma rota estranha e circular. Ela não
mostrará todos os gêiseres e florestas de sequoias e palácios de
cristal subterrâneos que estão escondidos na montanha da Marvel;
há muito mais para ser visto do que um livro poderia fazer jus. Em
vez disso, a rota fará você passar por muitas entradas de trilhas — o
início de caminhos através da história que você talvez ache
recompensadores ou divertidos. (O apêndice no final do livro é uma
espécie de mapa de tudo.)
Ainda não estamos prontos para iniciar, no entanto. Antes que o
passeio em si comece, vou explicar os hábitos estranhos dos
quadrinhos americanos convencionais e dos quadrinhos da Marvel
em especial, e as maneiras como os leitores falam deles (isso está no
capítulo 3). E antes disso, preciso esclarecer algumas coisas que este
livro pode ser, mas não é; dar dois avisos, um muito curto e outro
muito longo; e explicar os três significados diferentes de tempo e
cronologia que se aplicam à história da Marvel.
O QUE ESTE LIVRO NÃO É
• Este não é um livro sobre a forma das histórias em
quadrinhos em geral, ou mesmo a respeito de suas
personificações americanas em especial. Isso não quer dizer
que o segmento comercial do gênero de super-heróis
americanos seja a mesma coisa que a mídia dos quadrinhos,
ou a parte “mais importante” ou “melhor” parte dela.
• Não é um argumento que todos os gibis que eu li são bons ou
que a maioria deles é boa30.
• Não é uma defesa das práticas comerciais da Marvel, sejam
atuais ou históricas, ou das práticas comerciais de qualquer
uma de suas empresas controladoras, nem é uma defesa de
qualquer um desses criadores de quadrinhos como pessoas.
• Também não é uma defesa do histórico da representação
retrógrada e míope desses gibis, tanto em termos dos
personagens que apareceram em suas páginas quanto das
pessoas que os criaram.
• Este livro não apenas não defende, mas renega ativamente, os
elementos dos leitores de quadrinhos convencionais que
tentam mantê-los como uma seara de homens brancos
heterossexuais, com caixas cheias de números anteriores,
que querem que tudo permaneça exatamente igual a quando
eram crianças. (O único tipo de “gatekeepers”31 que deve
atuar nos quadrinhos é aquele que garante que os portões
permaneçam abertos para quem quiser se divertir.)
• Não é, de maneira alguma, um argumento dizendo que ler
todos os gibis da Marvel seja a maneira ideal ou mesmo o
modo aconselhável de abordá-los. Curtir as coisas não é uma
competição, e não existe “fã de verdade” ou “fã de mentira”.
Você gosta do que gosta do jeito que gosta. Este livro se trata
de uma história que vivi de forma exagerada, cansativa e
deliciosa; espero que possa ajudá-lo a encontrar o seu
caminho próprio.
N
osso passeio pela história da Marvel tem que começar em
algum lugar, e há uma determinada revista — uma página, na
verdade — que se anuncia como um tipo especial de ponto de
vista.
The Fantastic Four nº 51 (junho de 1966)
STAN LEE, JACK KIRBY, JOE SINNOTT
A fase de Stan Lee e Jack Kirby — de 1961 a 1970 — em The Fantastic
Four foi a primeira série de super-heróis da Marvel publicada
naquela época e, efetivamente, o gibi carro-chefe da linha68: as
aventuras de Ben Grimm (o Coisa); seu amigo cientista, o gênio Reed
Richards (Senhor Fantástico); a namorada de Reed, Sue Storm (a
Garota Invisível); e o irmão de Sue, Johnny Storm (o Tocha Humana,
uma nova versão de um nome e design que remonta à Marvel Comics
no 1, de 1939). Uma caixa amarela e em negrito na capa de The
Fantastic Four no 3 declarava que aquela era a MAIOR REVISTA EM
QUADRINHOS DO MUNDO!! Na edição seguinte, aquilo se tornou o
lema, e a frase “A Maior Revista em Quadrinhos do Mundo!”
permaneceu acima do título pelos próximos quarenta anos.
The Fantastic Four de Kirby e Lee é um feito incrível de construção
de universo e hibridização de gêneros, que mistura a maioria das
raças de gibis em que ambos os criadores trabalharam por vinte
anos: uma revista serial de aventura que também é um gibi de super-
heróis e também um gibi de monstros e também um gibi de romance
e também um gibi de humor adolescente e também um gibi de ficção
científica, tudo de uma vez. (Curiosamente, não é um gibi policial,
embora tanto Lee quanto Kirby tenham feito trabalhos nesse gênero
quando ele era popular uma década antes. O Quarteto Fantástico é
chamado de “combatentes do crime” nas primeiras edições, mas a
lei e sua execução são irrelevantes para o que eles fazem.) Com
algumas variações, essa combinação básica — super-heróis +
monstros + romance — se tornou a base da maioria dos primeiros
sucessos da Marvel, e de alguns dos posteriores também.
As primeiras cem edições de The Fantastic Four são a bíblia e o
manual da Marvel, os glóbulos rochosos e alaranjados do sangue que
corre nas estranhas veias verdes de sua história. Kirby e Lee
soltaram conceitos extraordinários no mundo que estavam criando,
em uma edição atrás da outra, em uma página atrás da outra. Alguns
deram raízes e folhas, outros se tornaram pedras fundamentais.
Quando você fala das glórias de The Fantastic Four da Era Kirby,
fala especialmente de alguns anos no meio dela, do período de 1965
a 1967, quando a série estava na fase mais ambiciosa e emocionante,
avançando em espaços inexplorados todos os meses. E no meio
dessa era — e quase exatamente na metade da fase de The Fantastic
Four de Lee e Kirby (102 edições, seis anuais, uma raspa do tacho ou
duas depois) — há o número 51: “Este Homem… Este Monstro!”
The Fantastic Four no 51 continua sendo uma edição sentimental
favorita para muitos leitores de quadrinhos de longa data, sobretudo
considerando que é uma revista em que nenhum personagem
famoso estreia ou morre. Ela toca em alguns dos maiores temas da
história mais abrangente da Marvel: monstros, duplos e sombras,
redenção. Criadas em velocidade frenética69 e feitas para manter
entretidas crianças impacientes, as colaborações de Lee e Kirby
produziram um efeito poderoso, e “Este Homem… Este Monstro!” é
um cabo de guerra de opostos apoiados uns contra os outros:
jornadas para o interior e o exterior, espetáculo e introspecção,
cosmologia e estilo, arte e comércio, imperfeição e perfeição.
No meio da revista, há uma página muito famosa. É uma imagem
de irrealidade, uma paisagem psicodélica impossível, construída em
grande parte como colagem fotográfica de formas circulares e
montanhas invertidas, mas com dois elementos convencionais de
quadrinhos colados. Perto do centro, há uma pequena imagem de
Reed Richards, desenhada por Kirby com arte-final de Joe Sinnott70
e um balão com o texto de Lee na caligrafia do letrista Artie Simek.
Kirby, naqueles dias, escrevia anotações nas margens de cada
página que desenhava, explicando a ação para Lee e sugerindo o que
os personagens poderiam dizer. Seu comentário na arte original da
página de colagem é “Reed flutua no espaço dimensional — é ao
mesmo tempo estranho e bonito”. O diálogo de Lee para Reed
aproveita duas das palavras-chave da anotação de Kirby e embrulha
em uma maçaroca de linguagem requintada e hiperbólica em torno
delas: “Consegui!! Estou à deriva em um mundo de dimensões
ilimitadas!! É a encruzilhada do infinito — o cruzamento para todos os
lugares!”.
É exatamente isso que The Fantastic Four de Lee e Kirby é como
um todo. É a capital do universo da Marvel, a fonte central de seus
elementos extraordinários. É uma história a respeito de intimidade
emocional que também fala de exploração geográfica e metafísica; é
uma história a respeito de família que também fala de monstros.
(Família significa as pessoas que são parte inalienável de quem você
é. Um monstro é um conceito que você teme em forma física, e você
precisa proteger sua família dele.) The Fantastic Four é uma história
de um conjunto de personagens, mas inclui dois que são tão
extraordinários que dominam completamente o primeiro plano da
revista: o Coisa e o Doutor Destino, que têm papéis paralelos,
embora desiguais, em sua estrutura dramática.
Apenas o primeiro desses dois aparece em “Este Homem… Este
Monstro!” Ben Grimm, o Coisa, é um forasteiro cujo sensação de
exílio vem principalmente das próprias percepções de si. Ele
cresceu em circunstâncias difíceis (na rua Yancy, um lugar
inexistente cujo nome tem a cara da Velha Nova York), ao lado de
uma molecada que ainda adora pregar peças nele. Ele é mais
inteligente do que costuma deixar transparecer, mas saiu da pobreza
se tornando fisicamente poderoso, ganhando uma bolsa de estudos
para jogar futebol americano na faculdade, lugar onde conheceu
Reed.
E eis que o tiro saiu pela culatra: a história da origem do Quarteto
Fantástico é a história de como o corpo de Ben Grimm se tornou o
de um monstro, uma pilha incrivelmente forte de pedras laranja em
uma paródia da forma humana. Ele tenta aparar suas arestas literais
fazendo piadas, mas elas têm um sabor amargo e autodepreciativo.
“Tá na hora do pau!” é o bordão dele, e é um bordão engraçado —
“pau” é o tipo de palavra que um cara que cresceu na rua Yancy
falaria, e ninguém mais em The Fantastic Four pensaria em usar —,
mas também triste: o subtexto é “a força bruta, a única coisa em que
sou bom, finalmente é útil!”.
Não há diálogos na primeira página de The Fantastic Four no 51,
apenas o título, os créditos e um pouco da preleção de Lee para
agitar a galera, e principalmente uma imagem do Coisa parado em
uma rua da cidade, na chuva à noite. Como sempre, ele está nu,
exceto pelo “traje” — um calção azul; o aguaceiro está caindo nas
rochas que ele tem no lugar da pele e se acumula em torno dos pés
enormes. O Coisa não está molhado ou com frio — ele não consegue
sentir nada. Nós o vimos em ação muitas vezes, mas não há ação
aqui. O Coisa está imóvel e com os ombros um pouco caídos, ainda
mais assimétrico do que o habitual.
O que Kirby desenhou é obviamente uma imagem de depressão, e
na página seguinte, quando Ben começa a andar novamente, Lee
confirma. As primeiras palavras que Ben pensa são um mantra de
desespero: “Eu nunca mais serei humano!”71. O Coisa está
convencido de que arruinou suas chances para sempre, que ele nem
é uma pessoa, que tudo o que pode fazer é tentar agir como uma. Ele
não se percebe como um herói: compare o Coisa com o supergênio
Reed, que ganhou poderes e imediatamente começou a se chamar
de “Senhor Fantástico”. Se a mente é a essência do centro heroico da
família, como fica alguém cuja essência é o corpo? A compreensão
de Ben de si mesmo é que ele é um monstro — algo contra o qual
seus entes queridos devem ser defendidos.
Depois que Ben anda deprimido por alguns quadros, um
cientista72 o convida a sair da chuva e lhe serve uma xícara de café
drogado, e a seguir rouba os poderes, a aparência e a identidade do
Coisa. O cientista sente uma inveja intensa do sucesso de Reed
Richards. Agora na forma do Coisa e imitando seu jeito de falar, ele
concorda em ajudar Reed em uma exploração experimental do
“subespaço” (o “mundo de dimensões ilimitadas”, mais tarde
chamado de Zona Negativa), enquanto planeja traí-lo. Quando a
experiência é um desastre completo, o cientista muda de ideia e se
sacrifica para salvar Reed. O verdadeiro Ben, agora em forma
humana, foi visitar a namorada, a escultora cega Alicia Masters, mas
ao chegar à porta dela (no momento em que o impostor morre), ele
se transforma no Coisa novamente e foge.
Essa é a trama73, que não faz o menor sentido se você pensar em
qualquer aspecto dela por meio segundo, embora qualquer um que
se oponha à história por esse motivo realmente é feito de pedra. Ela
tem a força emocional e a clareza de uma fábula e aborda as maiores
questões de The Fantastic Four de Lee e Kirby: o mundo cotidiano é
tudo o que existe? (Nem de longe, mas precisamos ser corajosos
para descobrir o que está além dele.) Qual é a nossa base e o que dá
significado às nossas ações? (Os laços de amizade e de família;
nossas compreensões pessoais de nós mesmos e do mundo, por
mais falhos que sejam.)
A história também é extraordinária como expressão artística.
Kirby aproveita o espaço para mostrar suas visões espetaculares a
cada passo. Uma página inteira, de tirar o fôlego, é dedicada a uma
máquina enorme — Reed a chama de “cubo radical”, porém parece
mais um desenho de M. C. Escher de um motor de carro. A
abordagem de Kirby para a encenação e a iluminação tem um estilo
tão poderoso que mal se parece com seu próprio trabalho de cinco
anos atrás, muito menos com o de qualquer outra pessoa. E Kirby
tem todo um dialeto visual próprio: os pontos salpicados de
tamanho variável que cercam os personagens aqui quando eles
entram no subespaço ainda são chamados de “pontos Kirby” quando
outros artistas os usam em qualquer contexto.
O roteiro de Lee não ostenta tanto seus dons — ele está mais
preocupado em esclarecer as imagens de Kirby e manter a história
em movimento —, mas quase todas as linhas de diálogo nos dizem
algo a respeito de quem fala apenas pela voz. (O Coisa, sentindo a
droga que tomou entrar em ação: “Eu não entendo! Mal consigo
manter os olhos abertos! Estou exausto…!) Há muita explicação aqui,
como era o hábito da época: os personagens tendem a narrar tudo o
que estão fazendo. No entanto, Lee mantém essas descrições
animadas também. “Foram longos meses de planejamento paciente
para atrair o Coisa para esta sala, usando meu influenciador
subliminar de curto alcance!”, explica o cientista para si mesmo,
abrindo a porta de um armário tomado por outra máquina
alucinante desenhada por Kirby.
The Fantastic Four Annual nº 3 (outubro de 1965)
STAN LEE, JACK KIRBY, VINCE COLLETTA
No polo oposto da introversão melancólica de “Este Homem… Este
Monstro!” está a história do casamento de Reed e Sue Storm,
publicada oito meses antes. The Fantastic Four Annual no 3 é quase
inteiramente dedicado a uma cena de ação gigantesca e divertida
envolvendo praticamente todos os personagens superpoderosos dos
primeiros quatro anos da Marvel. (Lee e Kirby aparecem como
pretensos penetras de casamento.)
O primeiro personagem que vemos no Annual no 3, no entanto, é a
outra criação mais durável da revista do Quarteto Fantástico, e o
equivalente do Coisa: o Doutor Destino, o vilão perfeito. Victor Von
Doom é (na maioria das vezes) o governante despótico da Latvéria,
uma pequena nação da Europa Oriental. Destino está convencido de
que possui a maior mente de sua época e tem um feito para
comprovar essa crença: ele construiu uma máquina do tempo que
funciona74. A ambição que o move, embora ele nunca diga em voz
alta na Era Kirby e Lee, é se tornar Deus; Destino tem certeza de que
a vaga é dele por direito, de qualquer maneira.
Destino é genuinamente monstruoso. Ele nunca remove a
armadura com a qual cobriu o corpo, ou a máscara de metal que
construiu para que ninguém pudesse ver seu rosto cheio de
cicatrizes75. Ele fala de si na terceira pessoa, é orgulhoso, arrogante,
desprovido de compaixão e dado a explosões de raiva desdenhosa.
Destino mantém seu poder por meio da violência, e, para ele, é de
suma importância que pareça estar no controle absoluto o tempo
todo. (Compare-o com Ben Grimm, que anseia por se livrar da pele
rochosa invulnerável.) Tudo o que vemos de Destino na imagem de
abertura desta edição são os olhos, cercados por todos os lados pela
armadura e capa, chamadas em tom épico e uma manchete de
jornal a respeito do casamento que ocupa a maior parte da página.
Mas isso é tudo o que Destino normalmente deixa qualquer um ver
dele, mesmo.
Posteriormente fica claro que Destino quer governar o mundo
porque acredita que o mundo seria melhor assim. (Ele pode, de fato,
estar correto a respeito disso, ou pelo menos parcialmente
correto.)76 Nas histórias que Kirby desenhou, na maioria das vezes
vemos Destino envolvido na consolidação do próprio poder ou no
planejamento de sua vingança contra Reed Richards, como ele faz
aqui, em vez de alguma coisa mais amplamente nefasta. Devemos
entender que ele é um vilão porque luta contra o Quarteto
Fantástico, e que o Quarteto Fantástico é um grupo de heróis porque
luta contra ele; o entendimento de Destino é exatamente o inverso.
O centro narrativo da Era Lee e Kirby em The Fantastic Four
envolve Reed, Sue, Johnny e Ben se tornando íntimos como família,
se transformando no núcleo de um círculo de amigos, amantes e
aliados. Esse círculo se expande muito mais rapidamente quando
Reed e Sue se casam, à medida que novos personagens e conceitos
começam a surgir das páginas de The Fantastic Four a cada passo. Os
Inumanos, Galactus, o Surfista Prateado e o Pantera Negra estreiam
no ano seguinte e se tornam integrantes recorrentes do elenco.
Tanto o escopo da série quanto o estilo visual continuam crescendo
e mudando; na época, ainda não havia uma forma “clássica” à qual
se esperava que a revista revertesse.
The Fantastic Four Annual nº 6 (novembro de 1968)
STAN LEE, JACK KIRBY, JOE SINNOTT
A última grande mudança na família durante a primeira década do
Quarteto Fantástico acontece três anos depois: o nascimento do
filho de Sue e Reed, Franklin Richards, em uma edição que também
marca a estreia do último dos notáveis monstros/antagonistas da era
Lee e Kirby em The Fantastic Four, o Aniquilador. Ele é um
conquistador alienígena que parece um cruzamento entre um
besouro, um morcego e um radiador, nas tradicionais cores
vilanescas de verde e roxo, e ele é assustador de qualquer maneira.
(Kirby era capaz de ser bem-sucedido com praticamente qualquer
design.)
A trama é, mais uma vez, pouco substancial, e a ambientação
volta ao território subespacial de “Este Homem… Este monstro!”.
Como Sue está prestes a dar à luz, e a radiação cósmica em sua
corrente sanguínea está causando complicações médicas com risco
de morte, seus companheiros de equipe vão para a Zona Negativa a
fim de recuperar uma geringonça que pode dar jeito na situação; e a
seguir o Aniquilador causa o caos.
Mas “trama”, nesse ponto da série, é tanto o diferencial de venda
de The Fantastic Four quanto “modéstia”. O cerne da revista é
composto de estilo e espetáculo: paisagens bizarras, explosões de
“pontos Kirby”, colagens de fotos surreais, máquinas impossíveis,
ação avassaladora. Kirby muitas vezes desenha apenas três ou
quatro grandes quadros em cada página e apresenta tudo de forma
tão dinâmica que o leitor é capaz de se esquivar por instinto. Lee fica
tentando dar sentido ao caos emocionante (“Johnny… cuidado! É
uma esponja sônica que consome tudo!”) e manter o ritmo das piadas
e dos enunciados melodramáticos.
O McGuffin77 é adquirido, a pátria é salva e Franklin nasce78, e
com isso o ímpeto avassalador de The Fantastic Four se torna devagar
quase parando79. Stan Lee tem sido frequentemente citado, sem que
apontem uma fonte específica, alegando que aquilo que os leitores
de gibis queriam não era mudança, mas sim “a ilusão da mudança”.
O nascimento de Franklin, sete anos desde o início da publicação de
The Fantastic Four, foi uma mudança genuína — dois do grupo agora
eram pais, os outros dois, tios — e a última que a série veria por um
bom tempo.
The Fantastic Four nº 116 (novembro de 1971)
ARCHIE GOODWIN, JOHN BUSCEMA, JOE SINNOTT
A diminuição da energia cinética de The Fantastic Four pode ter
ocorrido porque a relação de trabalho entre Kirby e Lee estava
começando a desmoronar80. Em algum momento, o desenhista
aparentemente decidiu que não iria criar mais novos personagens
para a Marvel, e suas (mais ou menos) últimas dez edições de The
Fantastic Four antes da saída na edição no 102 de 1970 foram feitos
nitidamente de má vontade81. Com Kirby fora, The Fantastic Four
empacou. Isso não aconteceu com Spider-Man, onde um novo artista
poderia provocar uma nova reviravolta e apontar um caminho a
seguir82: a única maneira de fazer The Fantastic Four, ao que parecia,
era seguindo o modo de Kirby, e Lee partiu pouco depois.
The Fantastic Four no 116 é a primeira edição a ser escrita e
desenhada sem nenhum dos criadores da série. (O nome de Lee
ainda aparece primeiro nos créditos da revista, como editor.) Archie
Goodwin e John Buscema fazem imitações bem ensaiadas dos
estilos de Lee e Kirby, e a arte-final de Joe Sinnott é tão vigorosa e
dinâmica como sempre. Ler a edição é uma experiência
incrivelmente incômoda, como jantar na casa onde você cresceu,
com os estranhos que moram lá agora fingindo ser seus familiares.
Na capa, o Doutor Destino lidera o Quarteto Fantástico a uma
batalha, sem sinal de Reed Richards — uma confirmação indireta de
que as pessoas que deveriam estar no comando se foram.
Ela apareceu em um momento estranho de transição para a
Marvel. A Bullpen Bulletins — a página do gibi usada para divulgar e
badalar os gibis da Marvel — daquele mês contou parte da história:
“É isso aí! No mês dos dez anos da primeira edição imortal de The
Fantastic Four que inaugurou a Era Marvel de Loucuras Excêntricas,
temos uma surpresa de aniversário para você! Porque este é o mês
em que todas as nossas revistas premiadas ganham edições gigantes
de cinquenta e duas páginas (isso contando as capas coloridas,
claro) por meros 25 centavos…” O novo formato falhou
instantaneamente; no mês seguinte, a linha voltou a publicar
edições de trinta e seis páginas por vinte centavos, em vez dos
quinze centavos que haviam custado dois meses antes.
Tudo o que os roteiristas e desenhistas das próximas cem edições
de The Fantastic Four poderiam fazer era agir como se Lee e Kirby
pudessem voltar no próximo mês e continuar de onde pararam. O
espírito exploratório da série passou para outros gibis. Quase não
houve novos personagens ou cenários duráveis apresentados em The
Fantastic Four no resto dos anos 1970, ou nos anos 1980 ou nos anos
1990. Algumas tramas se repetiam com regularidade tediosa: um
integrante fica incapacitado ou sai, e é substituído brevemente,
depois retorna. O Coisa se transforma em Ben Grimm sem poderes,
e a seguir volta como o Coisa novamente. Destino retorna e é
derrotado. Galactus volta e mais uma vez não devora a Terra. O
grupo se separa e depois se reúne.
The Fantastic Four nº 271 (outubro de 1984)
JOHN BYRNE, GLYNIS WEIN
Mesmo assim, The Fantastic Four dessas décadas tem pontos
positivos. John Byrne, que escreveu e desenhou a série de 1981 a
1986, é um fervoroso revivalista de Kirby e novamente reciclou
algumas daquelas tramas básicas. (O Coisa é brevemente substituído
pela Mulher-Hulk, depois retorna. Galactus volta e mais uma vez
não devora a Terra. Sue Richards engravida novamente, mas a filha é
natimorta.) Mas ele também é um narrador elegante e envolvente, e
encontrou oportunidades para aprofundar os personagens
conhecidos da série — especialmente o Doutor Destino e Sue, que
recebeu de Byrne uma revisão em sua identidade de super-heroína,
passando de Garota Invisível para Mulher Invisível.
Essa edição, que é a homenagem mais inteligente de Byrne a
Kirby, envolve Reed Richards descrevendo sua lembrança nítida
mais antiga: um encontro, anos antes, com um monstro alienígena
chamado Gormuu. Tanto a premissa do flashback quanto a arte de
Byrne para a sequência evocam não o Kirby de The Fantastic Four de
meados dos anos 1960, mas o Kirby dos gibis de monstros da Marvel
do início dos anos 196083 — as criaturas gigantes com letras duplas
nos nomes, os quadros “trípticos” mostrando ação progressiva, as
perspectivas distantes nos tipos de cenas que Kirby mais tarde
desenharia em close-up hiperdinâmico. O incidente envolvendo
Gormuu, explica Reed, deu a ele uma sensação de urgência
desesperada em acelerar o lançamento do foguete que abre The
Fantastic Four no 1.
A apresentação visual da história de Reed ressalta a conexão
direta entre aqueles gibis de monstros e o início de The Fantastic
Four. Reed conta essa história, no entanto, porque ele está sentindo
partes de seu passado escaparem do alcance da memória (enquanto
os leitores dos gibis chegaram ao ponto em que muitos deles não
seriam capazes de fazer essa conexão estilística). E a razão pela qual
Reed está tentando recuperá-los aponta diretamente para o núcleo
familiar e emocional da série: “Não consigo me lembrar dos olhos
da minha mãe”, diz ele.
Power Pack nº 16 (novembro de 1985)
LOUISE SIMONSON, JUNE BRIGMAN, BOB WIACEK, GLYNIS OLIVER
Uma das séries de sucesso mais estranhas da Marvel dos anos 1980,
a revista do Quarteto Futuro envolvia, assim como a do Quarteto
Fantástico, uma família: quatro pré-adolescentes — Katie, Jack, Julie
e Alex Power — cujos pais não sabem que os filhos são super-heróis.
Foi o primeiro gibi do gênero a ser escrito e desenhado por
mulheres (a roteirista Louise Simonson e a desenhista June
Brigman) por mais de algumas edições. Apesar do elenco jovem,
Power Pack às vezes era uma revista em quadrinhos sombria e
assustadora — as crianças vivem na perigosa Nova York da Marvel e
muitas vezes são sobrecarregadas pelas próprias habilidades —, mas
a origem do grupo (o Quarteto Futuro recebe superpoderes e uma
nave espacial falante de uma espécie de pônei alienígena mágico) é
o tipo de coisa que uma criança de quatro anos seria capaz de
inventar.
Acontece que essa é exatamente a idade de Franklin Richards
neste momento. Ele costuma usar uma camisa que diz “4 1/2” no
estilo do logotipo circular “4” do Quarteto Fantástico e realmente
precisa de alguns colegas. Aqui, Franklin Richards encontra o
Quarteto Futuro pela primeira vez. Naturalmente, eles de saída se
tornam amigos e o convidam para se juntar à equipe: é como se o
Quarteto Futuro tivesse sido inventado pelo próprio Franklin
Richards. Ele se torna membro em tempo integral do elenco de
Power Pack pelo próximo ano, e de forma intermitente a partir de
então.
The Fantastic Four nº 1 (novembro de 1961)
STAN LEE, JACK KIRBY, GEORGE KLEIN (?)84
É compreensível que seja forte o impulso de alguns novos leitores
para começar a explorar os quadrinhos da Marvel com a história de
origem do Quarteto Fantástico, o primeiro gibi de super-heróis de
Kirby e Lee. Eu os encorajo a fazer isso se — e apenas se — de
alguma forma estiver no fim de 1961, com dez anos de idade, parado
em uma banca de jornal com uma moeda de dez centavos na mão.
Caso contrário, a leitura de The Fantastic Four no 1 é muito mais
agradável para um leitor contemporâneo depois que ele tem a noção
de aonde seus criadores estavam indo e onde eles tinham estado.
As primeiras edições de The Fantastic Four são toscas e limitadas,
mas têm uma energia maravilhosa, com tramas que correm como
brincadeiras improvisadas de crianças. Aqui, Reed Richards e seu
grupo tentam lançar um foguete até as estrelas, não conseguem
chegar aonde querem e são transformados (por radiação) de
humanos em super-humanos. Em um quadro indelével, eles
concordam em permanecer unidos e estendem o braço para tocar as
mãos uns dos outros e a enorme pata laranja de Ben Grimm.
Nas edições seguintes, o Quarteto Fantástico tem sua forma
copiada por alienígenas transmorfos (os Skrulls, uma ideia casual
que se tornou um dos pilares da cosmologia da Marvel), depois
descobre que o governante superforte da Atlântida havia perdido a
memória e estava vivendo em um albergue em Nova York por anos,
a seguir viaja de volta no tempo e acidentalmente cria a lenda do
Barba Negra. O Quarteto Fantástico também parece passar muito
tempo sendo capturado: o título do número 5 é “Prisioneiros do
Doutor Destino”, a sexta edição é “Prisioneiros da Dupla Diabólica”,
a sétima “Prisioneiros de Kurrgo, o Senhor do Planeta X”, a de
número 8 é “Prisioneiros do Mestre dos Bonecos”, e edição 19 é
“Prisioneiros do Faraó!”.
The Fantastic Four nº 19 (outubro de 1963)
STAN LEE, JACK KIRBY, DICK AYERS
Essa última revista foi uma carona cultural: o aguardado filme
Cleópatra, estrelado por Elizabeth Taylor e Richard Burton, havia
estreado mais ou menos um mês antes de The Fantastic Four no 19
ser posta à venda, e o Nilo estava em grande estilo. “Prisioneiros do
Faraó!” é puro suco de adrenalina — o que falta em termos de
sentido, a história compensa em entusiasmo e velocidade dignos do
Kermit, dos Muppets. Como Reed Richards examina alguns
hieróglifos no Museu de História Natural e conclui que “uma erva
radioativa” conhecida pelos antigos egípcios era o antídoto para a
cegueira (e poderia, portanto, curar a namorada do Coisa, Alicia
Masters), então o Quarteto Fantástico voa para o castelo do Doutor
Destino e aciona sua máquina do tempo a fim de ir para os tempos
faraônicos, mas Rama-Tut (um antigo faraó egípcio que, por sinal,
veio do ano 3000 e cujo quartel-general/máquina do tempo é a
Grande Esfinge de Gizé) tem uma arma de raios que controlam a
mente, e aí o Coisa volta brevemente à forma humana sem nenhum
motivo, e… você entendeu. A arte de Kirby ainda está se
aproximando do que se tornaria alguns anos depois — é assertiva em
vez de explosiva, uniforme em vez de visionária.
Doctor Strange nº 53 (junho de 1982)
ROGER STERN, MARSHALL ROGERS, TERRY AUSTIN, BOB SHAREN
Para a geração de criadores de quadrinhos convencionais que
cresceram lendo The Fantastic Four de Lee e Kirby, porém, cada
edição era a encruzilhada do infinito. Essa edição é a conclusão de
uma série em que o Doutor Estranho viaja no tempo em busca das
encarnações anteriores de uma mulher; aqui, ele acaba dentro da
Esfinge exatamente no momento em que o Quarteto Fantástico era
prisioneiro de Rama-Tut. A história de Stern e Rogers reprocessa (e
circula) imagens e diálogos de “Prisioneiros do Faraó!”, e até mesmo
tapa, de passagem, alguns dos buracos na trama de The Fantastic
Four no 19.
Vale a pena notar que Stern escreveu esta edição para um público
que ele sabia que certamente não teria lido — ou mesmo não teria
acesso — ao gibi de Lee e Kirby, que havia sido reimpresso pela
última vez há oito anos. Não há sequer uma nota de rodapé se
referindo a The Fantastic Four no 19; no que diz respeito aos
personagens e à maioria dos leitores, o Quarteto Fantástico de início
de carreira estava no antigo Egito por algum motivo, nada de mais.
Mesmo assim, Stern sabia que os leitores de Doctor Strange que leram
a revista The Fantastic Four no 19 provavelmente se lembrariam de
cada detalhe.
West Coast Avengers nº 22 (julho de 1987)
STEVE ENGLEHART, AL MILGROM, KIM DEMULDER, CHRISTIE SCHEELE
Cinco anos depois disso, uma longa história de viagem no tempo em
West Coast Avengers também levou seu elenco para o interior da
Esfinge no mesmo momento, milhares de anos atrás, e lá estavam o
Doutor Estranho e o Quarteto Fantástico — embora, a essa altura, a
coreografia envolvida em garantir que os participantes anteriores da
história não notassem os posteriores estava ficando complicada85.
Foi uma referência do roteirista Steve Englehart à história de The
Fantastic Four, publicada no mesmo mês em que ele começou a
escrever a série. Os componentes da história da Marvel podem ser
amarrados de inúmeras maneiras, sugere Englehart, mas o trabalho
de Lee e Kirby é a laçada do nó, a fonte primordial que tornam
possíveis as futuras criações.
The Fantastic Four nº 329 (agosto de 1989)
JOHN HARKNESS [STEVE ENGLEHART], RICH BUCKLER, ROMEO TANGHAL,
GEORGE ROUSSOS
Reconhecer a história, porém, não significa repeti-la. Englehart
escreveu The Fantastic Four durante alguns anos e tentou fazer o gibi
evoluir para além da família Richards — ele tirou Reed e Sue da
revista por um ano e meio —, mas acabou cedendo à pressão
editorial para tornar ilusórias as suas mudanças. Englehart mudou a
assinatura primeiro para S.F.X. Englehart86, depois para John
Harkness, com o intuito de rejeitar completamente seus roteiros; a
última história escrita por ele inclui essa edição estranhamente
engraçada e raivosa na qual os substitutos do Quarteto Fantástico
metem os pés pelas mãos em um simulacro do confronto com o
Toupeira em The Fantastic Four no 1, falando apenas com diálogos
um pouco fora de contexto tirados das primeiras edições. Se você
quer apenas a obra regurgitada de Lee e Kirby, sugere Englehart,
você terá o que merece.
The Fantastic Four nº 347 (dezembro de 1990)
WALT SIMONSON, ARTHUR ADAMS, ART THIBERT, STEVE BUCCELLATO
O roteirista/desenhista Walt Simonson substituiu Englehart e, assim
como seu Thor87, ele honrou Kirby enfatizando as próprias
idiossincrasias estilísticas em vez das de Kirby. A fase de Simonson
como roteirista também incluiu uma deliciosa história em três
edições a respeito do “Novo Quarteto Fantástico”, desenhada
lindamente por Arthur Adams. Em vez de alterar a estrutura
familiar do grupo, essa sequência pretende substitui-la
completamente, juntando o Homem-Aranha, o Motoqueiro
Fantasma, o Hulk e o Wolverine (todos personagens muito
populares na época que não tinham quase nada em comum) e
jogando os quatro em uma trama arquetípica do Quarteto Fantástico
— uma mistura da história do Homem-Toupeira-e-sua-ilha-de-
monstros da primeira edição com a aventura envolvendo os Skrulls
da segunda88.
The Fantastic Four nº 54 (junho de 2002)
CARLOS PACHECO, RAFAEL MARIN, KARL KESEL, MARK BAGLEY E OUTROS
Ainda assim, nenhuma tentativa de avançar The Fantastic Four
vingou até 2002, quando uma trama emaranhada com quatro ou
cinco roteiristas diferentes culminou no nascimento do segundo
filho de Sue e Reed Richards89. O Doutor Destino consegue, através
de seu domínio da magia e da ciência, realizar o parto da filha viva e
saudável do casal, e em troca disso exige o direito de batizá-la (como
Valeria, em homenagem ao seu primeiro amor) e se tornar seu
padrinho — o que faz dele o monstro que tem que ser aceito no seio
da família.
Fantastic Four: The World’s Greatest Comics Magazine! nº
1 (fevereiro de 2001)
ERIK LARSEN, ERIC STEPHENSON, BRUCE TIMM, KEITH GIFFEN E OUTROS
A essa altura, o tom dos novos quadrinhos da Marvel passava tão
longe do estilo de Lee e Kirby que fazer um pastiche da obra da
dupla era especificamente um gesto retrô. A minissérie de doze
edições Fantastic Four: The World’s Greatest Comics Magazine!, criada
como se fosse uma jam por uma horda de roteiristas e desenhistas
liderados por Erik Larsen e Eric Stephenson, foi uma tentativa de
imaginar como The Fantastic Four no 100 poderia ter sido se tivesse o
ponto alto da comemoração de Lee e Kirby pelo feito da dupla, e não
o produto de uma détente hesitante.
The Fantastic Four nº 570 (outubro de 2009)
JONATHAN HICKMAN, DALE EAGLESHAM, PAUL MOUNTS E OUTROS
As edições do século XXI de The Fantastic Four em si não se parecem
com as edições de sua primeira década, mas muitas vezes elas se
preocupam em mapear ainda mais o território das primeiras cem
revistas, em vez de superá-las. A exceção é uma sequência de 2009 a
2012 escrita por Jonathan Hickman e desenhada por Dale
Eaglesham, Steve Epting e outros. Ela ainda toca usando
basicamente os instrumentos da era Kirby e Lee — os ambientes, os
personagens e as dinâmicas de poder de 1961 a 1970 —, mas
Hickman descobre uma nova entonação: Reed Richards lidando
com a própria herança familiar, e encontrando uma maneira de unir
e ensinar tanto os filhos quanto as estranhas crianças cósmicas que
conheceu nas explorações do Quarteto Fantástico90.
O cerne emocional de The Fantastic Four de Hickman (e FF91, que
substituiu o gibi brevemente e depois continuou sendo publicado de
forma simultânea) muda gradualmente em direção aos filhos do
casal Richards e às diferenças entre as maneiras de eles serem
fantásticos em relação ao jeito dos pais. Franklin Richards é meio
onipotente, mas ainda não consegue entender ou controlar o
próprio poder92. E a irmãzinha supergenial, Valeria, tem uma
afinidade real com seu tio Destino.
Em 2015, depois de mais dois breves relançamentos, The Fantastic
Four entrou em hiato por três anos e (como consequência de outra
longa sequência escrita por Hickman) a família Richards
desapareceu completamente do Universo Marvel93 e das páginas dos
novos gibis. O boato era que a ordem para parar de publicar a série
tinha vindo do alto comando executivo, ressentido porque a Marvel
não controlava os direitos da equipe para o cinema. Os fãs
reclamaram, mas, na prática, eles queriam sentir falta da revista
mais do que realmente sentiam — o gibi parecia totalmente
desgastado e as vendas caíram muito. A encruzilhada do infinito foi
ofuscada por um trevo infinito; os novos territórios que ganharam
uma porta de entrada graças a The Fantastic Four não precisavam
mais de exploradores. Seus monstros foram todos vencidos ou
domados, ou foram recebidos com cautela no seio da família, ou
fizeram as pazes consigo mesmos.
Marvel Legacy nº 1 (novembro de 2017)
JASON AARON, ESAD RIBIC, STEVE MCNIVEN, MATTHEW WILSON
Mesmo assim, o momento em que o retorno do Quarteto Fantástico
é finalmente anunciado é primoroso. Ele vem no final de Marvel
Legacy, um teaser único de cinquenta páginas para histórias
vindouras: um monte de cenas curtas, unidas apenas pelos
recordatórios desconexos de uma narradora que fala sobre a ideia
de “legado”. No momento em que a reflexão está chegando a um
ápice (“Algo real e ao mesmo tempo extremamente irreal. Algo
louco. Algo mágico. Algo fantás…”), ela é cortada.
A narradora é Valeria Richards, e seu irmão mais velho, Franklin,
a interrompe: “O papai diz que há outro novo universo pela frente
para explorarmos”. A menina brilhante e o menino todo-poderoso
estão um pouco mais velhos agora. Suas próprias aventuras estão
apenas começando, e o futuro pertence a eles.
68 Vale a pena notar que em 1966, o primeiro ano cujos relatórios de vendas estão
disponíveis, Amazing Spider-Man vendia mais do que The Fantastic Four — e, na época,
Archie, Superman, Batman e Tarzan vendiam mais do que qualquer coisa publicada pela
Marvel. Além de alguns números muito badalados, The Fantastic Four nunca foi o título que
mais vendeu da Marvel, mas é o marco da editora, o lugar onde Kirby e Lee plantaram o
padrão de sua estética. (N. A.)
69 Kirby desenhou The Fantastic Four nº 51 em um momento em que estava reduzindo sua
carga de trabalho de desumano (as 120 páginas por mês que ele desenhava um pouco antes)
para cansativo (apenas 78 ou 79 páginas mensais); Lee, além de editar a linha inteira, fez o
roteiro de sete gibis e meio naquele mês. (N. A.)
70 Sinnott era o integrante discreto da equipe criativa de The Fantastic Four: depois de arte-
finalizar a quinta edição, ele voltou no número 44 e continuou a arte-finalizar a série quase
continuamente pelos próximos quinze anos. (N. A.)
71 Em seus primeiros anos, The Fantastic Four sempre brincou com a possibilidade do
retorno de Ben à forma humana, e isso permaneceu no estoque de elementos da trama
reciclados de vez em quando — em meados da década de 1970, Ben se tornou humano por
um breve período e usou um traje do Coisa para imitar seus poderes, por exemplo. Mas um
Coisa que tem escolha em relação à forma que assume é muito menos interessante do que
um Coisa que é um monstro relutante. (N. A.)
72 O nome do cientista nunca é revelado no decorrer da história de Lee e Kirby, embora ele
tenha sido batizado como Ricardo Jones em uma edição de Web of Spider-Man, 25 anos
depois. (N. A.)
73 Ou a maior parte da trama, de qualquer maneira. O Tocha Humana, que havia ido para a
faculdade na edição anterior, só aparece em um interlúdio que apresenta uma subtrama
nunca mais mencionada sobre jogadores de futebol americano. (N. A.)
74 Na grande narrativa da Marvel, quando alguém precisa viajar no tempo, a pessoa
geralmente busca ter acesso à plataforma do tempo de Destino. (N. A.)
75 A situação do rosto de Destino provocou debate por um tempo. The Fantastic Four
indicou bem cedo que ele havia ferido a face em uma explosão na faculdade. Kirby sugeriu
que Destino tinha apenas uma pequena cicatriz e adotou a máscara por vaidade; na década
de 1980, The Fantastic Four, de John Byrne, propôs que Destino havia causado a maior parte
dos danos ao rosto com a própria máscara recém-forjada e em brasa, o que parece
apropriado. (N. A.)
76 Na graphic novel de 1987, Emperor Doom, ele realmente governa o mundo por um tempo,
mas descobre que a papelada envolvida com a função é muito tediosa para suportar. (N. A.)
77 Termo cunhado pelo cineasta Alfred Hitchcock para se referir a um objeto que move
uma trama, seja o Um Anel de O Senhor dos Anéis, a pasta de Pulp Fiction ou as Joias do
Infinito de Thanos. (N. T.)
78 Ele só foi batizado em um quadro mais de um ano depois. (N. A.)
79 Esse também é o ponto em que a ilusão de que a história da Marvel estava progredindo
em um ritmo parecido com o tempo real chegou ao fim. Franklin envelheceu mais ou
menos nove anos no decorrer dos próximos quarenta e sete anos de gibis. O superfã de The
Fantastic Four conhecido como “Tuk” propôs que, dentro da história, Franklin é o motivo
pelo qual isso aconteceu: ele é posteriormente estabelecido como um mutante
incrivelmente poderoso, e como Franklin sabe que será um grande problema quando
crescer, então ele está dobrando o tempo em torno de si mesmo e de todos no círculo de
seus pais. (N. A.)
80 Veja o capítulo 7. (N. A.)
81 Algumas migalhas de The Fantastic Four de Kirby apareceram posteriormente aqui e ali,
mas ele voltou ao Quarteto Fantástico para valer apenas uma vez: em 1978, ele escreveu e
desenhou What If? nº 11, “E se a Redação Marvel original tivesse se tornado o Quarteto
Fantástico?” Em sua história sinuosa, Stan Lee se torna o Senhor Fantástico, e o próprio
Kirby se torna o Coisa. (N. A.)
82 Veja o capítulo 6. (N. A.)
83 Veja o capítulo 5. (N. A.)
84 O nome de Klein recebe um ponto de interrogação porque ninguém tem certeza de
quem arte-finalizou os lápis de Kirby em The Fantastic Four nº 1. (N. A.)
85 A minissérie de 1996 The Rise of Apocalypse [A Ascensão de Apocalipse], a respeito do
início de carreira de um vilão dos X-Men, também se passa parcialmente durante os
eventos de The Fantastic Four nº 19. (N. A.)
86 “A abreviação padrão para efeitos sonoros simples”, escreve Englehart em seu site. (N.
A.) [Nota do tradutor: SFX, ou sound effects.]
87 Veja o capítulo 12. (N. A.)
88 O “Novo Quarteto Fantástico” foi apresentado como uma obra de cinismo comercial
consciente — o Justiceiro até aparece naquilo que a capa da edição 349 chama de
PARTICIPAÇÃO ESPECIAL MAIS APROVEITADORA DO MUNDO —, mas foi cativante o
suficiente para que outros criadores a homenageassem. “Círculo dos Quatro”, uma trama
de 2012 em Venom, substitui o Homem-Aranha pelo Venom e usa a versão Alejandra Jones
do Motoqueiro Fantasma, a versão vermelha do Hulk e a X-23, a clone do Wolverine. A
minissérie Ghost Rider, de 2017, tem como foco uma nova versão do Motoqueiro Fantasma
da época, mas é coestrelada pela Teia de Seda — uma heroína com poderes aracnídeos — e
os protagonistas de All-New Wolverine e The Totally Awesome Hulk. (N. A.)
89 Emaranhada em que proporção? Tecnicamente, essa não é a terceira gravidez de Sue,
mas uma repetição cósmica da segunda. (N. A.)
90 Um deles é Alex Power do Quarteto Futuro, que é a coisa mais próxima que Franklin já
teve de um colega social fora de sua família. (N. A.)
91 Future Foundation, publicado aqui pela Panini na revista Universo Marvel como Fundação
Futuro. (N. T.)
92 Entre 2005 e 2009, ele também estrelou uma série de especiais de Marc Sumerak e Chris
Eliopoulos: Franklin Richards, Son of a Genius [Franklin Richards: Filho de um Gênio], uma
imitação excêntrica de Calvin & Haroldo. (N. A.)
93 Veja o capítulo 18. (N. A.)
5.
INTERLÚDIO: MONSTROS
H
á um caminho diferente que cruza com The Fantastic Four no 1:
não por meio das revistas em quadrinhos de super-heróis que
surgiram no rastro daquela edição, mas pelo início de sua
editora, vinte e dois anos antes, se movendo em direção e
através dos gibis de monstros que foram seus precursores. Aqui está
uma breve linha do tempo da Marvel vista por esse prisma94.
Outubro de 1971: Stan Lee tira alguns meses de folga das revistas
em quadrinhos para trabalhar em um roteiro para o cineasta francês
Alain Resnais. The Monster Maker envolve um produtor de filmes de
terror que tenta ir além do entretenimento barato do gênero; o
roteiro nunca é filmado.
T
rês nomes são fundamentais nas discussões a respeito dos
primeiros anos da Marvel Comics: o roteirista/editor Stan Lee
e os desenhistas Jack Kirby e Steve Ditko. Eu já citei muitas
vezes o trio em nosso passeio, e como eles continuarão a
aparecer, vale a pena então passar um pouco mais de tempo
observando quem eram, o que faziam e como trabalhavam juntos.
No início dos anos 1960, todos os três tinham um conjunto de obra
importante no ramo dos quadrinhos. Kirby e seu ex-parceiro Joe
Simon cocriaram alguns personagens de sucesso — especialmente o
Capitão América, bem como o Comando Juvenil da National
Comics140 —, e Young Romance, título desenvolvido pelos dois em
1947, que deu origem ao gênero de gibis de romance. Se Kirby
tivesse deixado as revistas em quadrinhos em 1960, ele
provavelmente seria lembrado apenas entre os aficionados como
uma figura interessante que foi bastante importante para o início da
história da mídia, como um Gardner Fox ou um Sheldon Mayer141.
Lee tinha sido o editor-chefe de vários selos de quadrinhos de
Martin Goodman desde que retornou do serviço militar em 1945; ele
havia escrito um número enorme de histórias para esses selos
naquela época, principalmente gibis de humor e faroeste. Se tivesse
deixado o ramo em 1960, Lee seria lembrado apenas entre os
estudiosos de quadrinhos como um operário profissional com
alguns contatos interessantes, um Joe Gill ou um Bob Montana142.
Ditko tinha um perfil mais discreto do que Lee ou Kirby na época de
Amazing Adult Fantasy nº 7, sua primeira colaboração com Lee em
uma edição inteira e publicada um mês depois de Fantastic Four nº 1;
sua carreira nos quadrinhos começou em 1953, mas foi
interrompida por uma longa batalha contra a tuberculose.
Kirby era incrivelmente produtivo e versátil. Antes de os super-
heróis dominarem a maior parte da linha Marvel, ele desenhou
ficção científica, horror, romance, guerra, faroeste, o que você
pensar. De 1961 a 1969, não houve um mês sem pelo menos
quarenta páginas de novas ilustrações de Kirby nas revistas da
Marvel e, às vezes, um número três vezes maior. Ditko também foi
prolífico, embora não fosse fiel à empresa como Kirby: durante os
anos de pico na Marvel, ele também meteu a mão na cumbuca da
concorrente de segunda linha Charlton Comics, desenhando
histórias curtas de ficção científica, as séries de monstros Konga e
Gorgo, e Captain Atom, uma revista de super-herói esquecível. Os
personagens que Ditko desenhava eram sempre feios e um pouco
grotescos: ele não fazia muita coisa nos gêneros faroeste ou guerra,
e era péssimo nos gibis de romance. Ainda assim, era um contador
de histórias naturalmente elegante e um mestre em transmitir uma
aura de fantástico. Olhar para uma de suas páginas é entender
exatamente o que está acontecendo nela, por meio do
enquadramento, do ritmo e da linguagem corporal dos personagens.
Lee, que morreu em 2018, foi o último sobrevivente dos três e o
único que realmente era uma figura pública. Mais de uma reputação
o precede: às vezes ele é (falsamente) tido como o cérebro criativo
da Marvel ou (tão falsamente quanto) considerado um charlatão que
não fez nada além de roubar o crédito dos outros. Mas a pergunta
envolvendo suas verdadeiras realizações está ligada a um
questionamento que muitas vezes surge quando os gibis da Marvel,
em especial os títulos dos anos 1960, estão sendo discutidos: quem
realmente fez isso?
É uma pergunta enganosa, e depende em parte das suposições
incorretas de que os quadrinhos são feitos pela “escrita”, de que o
processo nos quadrinhos funciona da mesma maneira que na prosa,
e de que apenas uma pessoa pode ser o verdadeiro “autor”. Para
muitas pessoas que passam mais tempo com prosa do que com
quadrinhos, uma história é criada quando é escrita, o que significa
linguagem, o que significa o que Stan Lee fez. As pessoas que fazem
quadrinhos raramente usam “ilustrador” para se referir aos
desenhistas, ou “escritor” para se referir a roteiristas: ambos
implicam que as imagens estão subordinadas às palavras, e não é
assim que a mídia funciona143.
Antes que o fluxo de trabalho digital se tornasse comum no final
da década de 1990, a ordem das operações para revistas em
quadrinhos convencionais geralmente começava com um roteirista,
que escrevia um roteiro completo descrevendo a ação em cada
quadro, juntamente de diálogos e recordatórios. Um desenhista
então desenhava a lápis; um letrista escrevia o texto; um arte-
finalista finalizava os desenhos com traços de nanquim144; um
colorista indicava quais tons entravam em que lugar; e então a
revista seria impressa em uma rotativa de quatro cores.
A Marvel fez as coisas de maneira um pouco diferente. No início
da década de 1960, Lee desenvolveu o que mais tarde chamou de
“método Marvel”: em vez de escrever um roteiro no início, ele
escrevia uma trama solta para qualquer desenhista que fosse ilustrar
uma determinada história (ou representava as cenas para eles, ou
conversava com os desenhistas sobre algumas ideias que gostaria de
ver concretizadas, ou muitas vezes apenas deixava tudo na mão
deles), depois adicionava diálogos e recordatórios à arte na fase do
desenho a lápis. Isso economizou muito tempo para Lee e deu aos
desenhistas muito mais liberdade criativa para contar uma história
visualmente — ou muito mais trabalho não remunerado para ser
feito, dependendo da sua perspectiva145. O “método Marvel”
significava que Lee dava contribuições para as tramas na qualidade
de editor, e às vezes não precisava.
Lee não era a potência criativa visionária que Kirby e Ditko eram,
mas era o comunicador convincente e confiante que conseguia
amplificar e esclarecer as visões singulares dos dois e as de outros
artistas como ninguém. Ao longo da década de 1960, Lee foi editor,
caça-talentos, diretor de arte e relações públicas da Marvel, e
escreveu um número surpreendente de roteiros — até uma dezena
por mês, com linguagem que saltava, cantava, estalava e falava de
maneira incontrolável. Sua persona também vivia eternamente
entusiasmada com os leitores da Marvel: ele os chamava de
“efêndis”, “frenéticos”, “fãs de verdade”146. Os leitores que
percebessem um erro aparente e apresentassem uma explicação
para o motivo de não ser realmente um erro ganhariam um “prêmio
inexistente”147 — um envelope elegantemente decorado sem nada
dentro.
A falsa intimidade no tom de voz de Lee não era apenas um
engodo, no entanto: se a “redação” onde todos os criadores da
Marvel se concentravam não existia na verdade, a promessa
obviamente falsa de atrair leitores ansiosos para aquela comunidade
se mostrou legítima. Uma série de nomes conhecidos saltam das
seções de cartas dos gibis da Marvel dos anos 1960 e início dos anos
1970 — nomes que apareceriam nos créditos de revistas posteriores
ou em outros lugares da cultura popular148. E Lee constantemente
vendia o peixe de seus cocriadores, fazendo com que seus nomes
fossem atrativos assim como ele fazia com o seu próprio nome.
Ditko, que não tinha amor pelos holofotes para onde Lee tentou
atraí-lo, foi o primeiro do triunvirato a se demitir, em 1966. Ele se
tornou um devoto do objetivismo ao estilo de Ayn Rand149 e ficou
famoso por não fazer aparições públicas e não falar com a imprensa
nas últimas décadas de vida. Isso lhe deu a reputação de ser um
recluso, o que Ditko absolutamente não era: ele continuou a
escrever, desenhar e publicar novos quadrinhos regularmente por
mais de cinquenta anos depois, o número de seu estúdio estava na
lista telefônica e ele parece ter respondido a praticamente todas as
cartas que lhe enviavam. Ditko simplesmente não estava disposto a
ser entrevistado ou fotografado, ou (depois de 1966) a desenhar mais
o Homem-Aranha ou o Doutor Estranho150.
Kirby saiu abruptamente em 1970151. Lee nunca saiu, exatamente.
Depois de 1972, porém, ele desistiu em grande parte de escrever e
editar gibis mensais e passou o resto da vida como a face pública
sorridente e amigável da Marvel. A página de rosto de todos os gibis
da Marvel dizia “Stan Lee Apresenta” por décadas, embora ele nem
tenha lido a maioria deles. Mais tarde, Lee apareceu nas letras
miúdas das revistas como “Presidente Emérito” e obteve um crédito
de produtor executivo em todos os filmes da Marvel, bem como
participações especiais bregas na maioria deles. Fora do ramo dos
quadrinhos, ele era popularmente considerado a força central por
trás dos personagens e do estilo da Marvel; dentro do ramo dos
quadrinhos, é um truísmo que o único personagem que Stan Lee
criou sozinho foi “Stan Lee”. Lee, que achava hilário fingir ser um
egomaníaco (e meio que era), nem sempre corrigia as pessoas que
lhe davam mais crédito do que ele merecia.
A impressão de que Lee era o principal criador da Marvel
desagradou Kirby, que mais tarde insistiu que tudo o que era
importante nos gibis creditados a “Lee e Kirby” havia sido feito por
ele. Em uma entrevista de 1989 com Gary Groth para The Comics
Journal, Kirby declarou: “O Stan Lee e eu nunca colaboramos em
nada! Eu nunca vi o Stan Lee escrever nada… O Stan não sabia de
droga nenhuma do que se tratavam as histórias”. Até hoje, existem
partidários de Lee e partidários de Kirby, e o fato de que os dois
tinham concepções muito diferentes do que “escrever”152 significa
não ajuda. A fim de simplificar um pouco, para Lee, “escrever”
significava a linguagem específica que aparecia na página, que era a
praia dele; para Kirby, significava a construção da narrativa, que era
muito mais a de Jack153.
Mesmo assim, é difícil contestar que Kirby e Ditko, como a
maioria dos desenhistas da Marvel entre 1961 e 1971, tiveram seus
maiores avanços criativos enquanto trabalhavam com Lee. Pela
maneira como os colaboradores de Lee falaram a respeito dele mais
tarde, é de pensar que Stan era meia dúzia de pessoas diferentes: o
homem que os tirou do anonimato e colocou seus nomes sob
holofotes; que roubou a glória que era deles por direito; que
interpretou mal e abafou suas vozes; que lustrou suas obras até que
brilhassem e retumbassem. Gene Colan, um veterano desenhista de
quadrinhos cujo estilo se tornou muito mais fluido e característico
enquanto trabalhava com Lee em Daredevil, Sub-Mariner e Capitain
America, elogiou Lee e o “método Marvel” em uma entrevista de
1998 com Kevin Hall, dizendo que desenhar sem roteiro “me dá
muita liberdade para fazer o que eu quiser… Sabe, o Stan não sabia
traçar uma linha, mas ele sabia muito a respeito de arte. Ele me
influenciou muito… Ele era maravilhoso.”
E John Romita, que colaborou com Lee em The Amazing Spider-
Man de 1966 a 1972, descreveu a relação de trabalho entre os dois na
revista Comic Book Artist em 1999: “Ah, ele é um golpista, mas
cumpria o que prometia. Quem disser que não, não está
interpretando os fatos. Acredite, ele mereceu tudo o que recebeu. É
por isso que nunca invejei que ficasse com todos os créditos e, no
que me diz respeito, ele pode colocar o seu nome acima de qualquer
coisa minha, quando quiser”. Um golpista que cumpre o que
promete: essa é uma excelente maneira de descrever Stan Lee.
140 Essa é a tradução mais recente no Brasil, da Panini, mas o grupo já foi chamado de
“Boy-Comandos” e “Patrulha Juvenil”. E a National Comics se tornaria a DC. (N. T.)
141 Entre os muitos feitos da dupla, que seriam extensos demais para uma simples nota,
Gardner Fox criou o Flash, e Sheldon Mayer, além de desenhista, foi o editor que tirou o
Super-Homem da pilha de projetos rejeitados. (N. T.)
142 Também de forma resumida, Joe Gill criou o Pacificador para a Charlton Comics
(posteriormente comprada pela DC), e Bob Montana é o autor das tiras Archie. (N. T.)
143 Sendo justo, Lee era conhecido por usar os dois termos na década de 1960! (N. A.)
144 Outra divisão de trabalho artístico que é vista com frequência em gibis mais antigos é
composta por “esboços” e “acabamento” — respectivamente, desenhos de esboços simples
da ação e aprimoramento das imagens de forma mais completa no estágio de arte-
finalização. (N. A.)
145 A técnica “enredo > arte a lápis > roteiro” foi a preferida por alguns roteiristas e
desenhistas de quadrinhos durante décadas, e nunca desapareceu completamente, embora
seja menos comum agora. (N. A.)
146 As chamadas de Stan Lee nem sempre saíam traduzidas nas versões brasileiras, e
nunca houve uma tradução oficial de seus bordões. Um dos mais famosos, “true believer”,
indicava um leitor que realmente acreditava no universo Marvel, ou seja, em tradução livre,
era um “fã de verdade”. E efêndi é um termo para um homem sábio, educado, religioso e
importante na Turquia. (N. T.)
147 Esse “prêmio inexistente”, no-prize em inglês, tinha um equivalente nas edições Marvel
da Editora Abril: era o Troféu Cata-piolho, dado na seção de cartas para o leitor espertinho,
mas jamais foram enviados envelopes vazios por aqui. (N. T.)
148 O primeiro trabalho publicado pelo jovem George R. Martin — que ainda não tinha
acrescentado o segundo “R” às iniciais — foi uma carta de fã em The Fantastic Four nº 20
(“Não consigo entender como vocês conseguem colocar tanta ação em tão poucas
páginas”). (N. A.)
149 A edição única Startling Stories: The Megalomaniacal Spider-Man, de Peter Bagge, de
2002, é divertida ao imaginar o que poderia ter acontecido se o adolescente Peter Parker
tivesse se tornado obcecado por Rand. (N. A.)
150 Muitas pessoas propuseram teorias a respeito do motivo da demissão de Ditko; ele
próprio escreveu em 2001: “Sei por que saí da Marvel, mas ninguém mais neste universo
sabia ou sabe o motivo”, e vou acreditar nas palavras de Ditko. (Lee, por exemplo, alegava
que não sabia. Um ensaio de 2015 escrito por Ditko com o título especialmente estranho
“Por que eu saí do H-A e da Marvel” sugere que foi por causa de uma falha nas
comunicações com Lee.) Ditko voltou para a Marvel em 1979 e trabalhou para a editora com
bastante regularidade por mais doze anos, e depois de forma intermitente. Seu último
trabalho com Lee foram algumas páginas do especial Heroes and Legends de 1996. (N. A.)
151 Veja o capítulo 4. Kirby passou o início dos anos 1970 sob contrato exclusivo com a DC
Comics, onde escreveu e desenhou séries, incluindo Kamandi e Mister Miracle. Ele retornou
à Marvel de 1975 a 1978, novamente escrevendo quase tudo que desenhou, exceto um gibi
do Surfista Prateado escrito por Lee (veja os capítulos 13 e 14). Então ele saiu de novo, para
sempre. Em meados dos anos 1980, ele travou uma luta encarniçada com a Marvel por
causa da exigência da empresa de que Kirby assinasse um formulário de liberação
extremamente longo para recuperar uma pequena fração das milhares de páginas que ele
desenhou nos anos 1960. (Kirby finalmente conseguiu cerca de 1.900 páginas — mais ou
menos um quarto de sua arte, visto que grande parte do restante havia desaparecido.) (N.
A.)
152 O inestimável livro de John Morrow, Kirby & Lee: Stuf’ Said!, faz um levantamento da
história da relação de trabalho dos dois e cita dezenas de casos de um ou outro discutindo o
assunto. Morrow destaca as palavras “escrever” e “escrita” sempre que aparecem em
transcrições ou citações, apenas porque os dois as usavam de maneira tão diferente. (N. A.)
153 Os partidários de Kirby de vez em quando se irritam com o fato de Lee receber crédito
igual a ele. Em termos da relação de trabalho entre os dois em suas colaborações diretas,
gosto de pensar em Lee como um John Oates para o Daryl Hall de Kirby: ele não era o
principal gênio criativo ou o astro, mas era aquele sem o qual a magia não funcionava. (N.
A.) (Nota do tradutor: Hall & Oates era uma dupla pop americana em que Hall era o
vocalista, e Oates, o guitarrista e vocal de apoio. Os dois fizeram sucesso do meio dos anos
1970 até o fim da década de 1980; o grande hit no Brasil foi “Maneater”, de 1982).
8.
ASCENSÃO E AVANÇO
Q
uando as pessoas me perguntam a respeito de “pérolas
escondidas” ou uma série “favorita secreta” que encontrei
lendo todos aqueles gibis da Marvel, eu imediatamente indico
Master of Kung Fu [Mestre do Kung Fu], que durou de 1973 a
1983. A revista tinha uma estética como nenhum outro gibi
americano já teve, e uma premissa fantástica — mais ou menos
“Príncipe Hamlet como Bruce Lee como James Bond”, um herói de
ação que vive na cabeça dele (com algum trauma muito reprimido) e
é horrorizado com a cultura de violência na qual ele e seus
conhecidos prosperam. Master of Kung Fu foi abençoado por ter
Doug Moench, roteirista que construiu uma história com
complexidade e elegância crescentes por quase cem edições, e três
artistas soberbos que desenharam fases importantes: Paul Gulacy,
Mike Zeck e Gene Day. Os fãs de carteirinha de Master of Kung Fu
discutiram os temas da série em cartas longas e argumentativas. A
revista sobreviveu à moda que a gerou por quase uma década.
E eis que, depois que terminou, Master of Kung Fu desapareceu —
tanto quanto uma série de dez anos consegue desaparecer.
Nos trinta e oito anos seguintes, seu protagonista nunca mais
estrelou a própria série regular. Nos primeiros cinco anos, ele não
apareceu em nenhuma história. Quando a Marvel começou a trazer
os gibis antigos de volta como encadernações, reimprimir Master of
Kung Fu era inadmissível; nada desse material foi reimpresso, de
fato, até 2016.
Isso é uma injustiça? Não completamente. Master of Kung Fu saiu
de circulação por vários motivos. Um foi criativo: Moench e Day
deram um fim satisfatório para a série quando saíram, e ela tinha se
tornado tanto o produto da voz da dupla que rapidamente expirou
sem eles. Outro motivo foi, supostamente, jurídico: a Marvel nunca
se pronunciou oficialmente a respeito do assunto, mas há boatos de
que, em algum momento, eles perderam o direito de usar a maioria
dos personagens coadjuvantes de Master of Kung Fu, que haviam
sido licenciados em vez de criados internamente. O maior motivo,
porém, foi uma questão de bom gosto: por mais brilhante que a
série geralmente fosse, suas raízes estavam enterradas em solo
envenenado. A definição de Randall Jarrell de romance como “uma
narrativa em prosa de algum tamanho em que há algo errado”
também se aplica aos gibis: há algo realmente errado em Master of
Kung Fu.
Special Marvel Edition nº 15 (dezembro de 1973)
STEVE ENGLEHART, JIM STARLIN, AL MILGROM
Em fevereiro de 1972, o canal ABC transmitiu um telefilme chamado
Kung Fu, o piloto de uma série que começou em outubro, a respeito
de um monge shaolin meio branco e meio chinês chamado Kwai
Chang Caine (interpretado pelo ator branco David Carradine) no
Velho Oeste americano. Kung Fu se tornou popular, e o público
americano quis ver mais ação de artes marciais. Em março de 1973,
King Boxer, um filme produzido em Hong Kong, foi lançado nos
Estados Unidos como Five Fingers of Death154 e se tornou um grande
sucesso.
Os filmes asiáticos de kung fu foram presença constante nas
bilheterias dos Estados Unidos pelo resto daquele ano, chegando ao
auge com Operação Dragão, cujo astro, Bruce Lee, morreu pouco
antes do lançamento da película. Os quadrinhos também entraram
na moda. A Charlton foi a primeira com Yang, uma imitação de Kung
Fu cuja primeira edição é datada de novembro de 1973. Um mês
depois, o roteirista Steve Englehart e o desenhista Jim Starlin155
apresentaram Shang-Chi, o Mestre do Kung Fu, em Special Marvel
Edition, série que já havia sido de reimpressões de edições antigas
de Sgt. Fury and His Howling Commandos.
Englehart criou o nome de seu novo personagem especialista em
artes marciais consultando o I Ching com o amigo Alan Weiss.
(Hippies americanos inventando um personagem consultando o I
Ching talvez seja o ápice da descontextualização orientalista dos
quadrinhos, se já não houvesse um personagem coadjuvante da
revista da Mulher-Maravilha chamado I Ching.) Shang-Chi não foi o
primeiro herói asiático da Marvel156, mas foi o primeiro a estrelar a
própria série. Ou melhor, ele era meio asiático: Englehart reclamou
que a pressão editorial fez o protagonista ser meio branco157, como
o Caine de Kung Fu. E a identidade do pai e arqui-inimigo de Shang-
Chi foi, aparentemente, fruto de outra sugestão editorial: Fu
Manchu.
É
É aqui que o problema realmente começa. Criado em 1912 pelo
romancista inglês Arthur Ward (sob o pseudônimo de Sax Rohmer),
o “doutor diabólico” Fu Manchu era um gênio do crime chinês que
se escondia no bairro de Limehouse, em Londres. O nome, assim
como a maioria de outras coisas a seu respeito, era falso chinês.
Rohmer escreveu treze romances de Fu Manchu, que inspiraram
uma série de filmes dos anos 1920 aos 1960. O personagem é o
arquétipo do vilão que representava o Perigo Amarelo — a
personificação em países anglófonos dos medos racistas projetados
em imigrantes asiáticos.
Os gibis mainstream americanos têm um histórico longo e
desagradável de caricaturas racistas. A capa da edição de estreia de
1937 da Detective Comics — a série que deu nome à DC Comics — é
uma imagem em close do rosto de um homem chinês de aparência
sinistra com bigode “estilo Fu Manchu”158 e sem globos oculares
visíveis. (Uma adaptação de The Insidious Doctor Fu Manchu, de
Rohmer, foi posteriormente publicada em Detective Comics nº 17 a nº
28, em 1938 e 1939; as duas últimas dessas edições também
incluíram as duas primeiras histórias do Batman.) A Marvel já tinha
alguns vilões próprios que representavam o Perigo Amarelo em
1973, particularmente o Mandarim e o Garra Amarela. Em algum
momento, porém, a editora comprou a licença dos direitos para
gibis do elenco dos livros de Fu Manchu escritos por Rohmer,
incluindo a filha do personagem, Fah Lo Suee, e seu arqui-inimigo
inglês, Sir Denis Nayland Smith. Supostamente, a intenção de
anexar esses nomes conhecidos a Master of Kung Fu era dar um
gancho mais comercial ao título.
De qualquer forma, alguma coisa em relação à criação de
Englehart e Starlin funcionou, especialmente no Reino Unido, onde
a filial britânica da Marvel tirou os Vingadores da capa da série
semanal de reimpressões de mesmo nome e substituiu o grupo por
Shang-Chi, a partir da edição de 30 de março de 1974. Toda semana,
a revista britânica reimprimia cerca de oito páginas do gibi
americano, o que significava que estavam cobrindo duas edições por
mês de uma série bimestral que mal havia começado. De volta aos
EUA, a Special Marvel Edition foi rebatizada como Master of Kung Fu
na terceira aparição de Shang-Chi, na edição de número 17; a Marvel
promoveu o título para publicação mensal duas edições depois e
lançou a revista em preto e branco The Deadly Hands of Kung Fu, bem
como a trimestral Giant-Size Master of Kung Fu.
Nesta primeira história, Shang-Chi é enviado para assassinar o
Doutor Petrie (o narrador dos primeiros romances de Fu Manchu),
descobre a maldade do pai e começa sua rebelião. (Ele também luta
contra um espadachim samurai, um lutador de sumô e um gorila:
artes marciais mistas, ou MMA!) “‘Shang-Chi’ quer dizer”, explica
Englehart em um último recordatório em cima de um símbolo de
yin e yang, “a ascensão e o avanço de um espírito”.
Independentemente de como essa derivação possa ser duvidosa, “a
ascensão e o avanço de um espírito” é uma bela ideia. Do começo ao
fim, Master of Kung Fu é uma história a respeito de alguém que
percebe que a visão de mundo com a qual cresceu é realmente
inconcebível e que vem — não imediatamente, mas aos poucos — a
melhorar.
Captain America nº 172 (abril de 1974)
STEVE ENGLEHART, MIKE FRIEDRICH, SAL BUSCEMA, VINCE COLLETTA,
MICHELLE BRAND
Atrelar essa premissa aos personagens familiares da cultura pop
criados por Rohmer facilitou o encontro de Master of Kung Fu com o
público, mas também vinculou a revista a tropos racistas que
ressaltavam outros erros conceituais da série e sua duvidosa
simplicidade visual. Por um lado, Shang-Chi é um praticante de
kung fu cuja roupa é basicamente um quimono de caratê. Por outro
lado, alguns dos personagens asiáticos de Master of Kung Fu
receberam tons de pele esquisitos, e o próprio Shang-Chi foi
colorido com um tom bizarro meio laranja, meio abóbora até a
década de 1990.
Isso parece ter sido obra de Englehart, embora ele tenha tentado
transferir a culpa para a tecnologia. Nesta edição de 1974 de Captain
America, uma carta do leitor Harvey Phillips reclama que os
personagens asiáticos são coloridos de amarelo. A resposta,
aparentemente escrita por Englehart, observa que o processo de
impressão offset de quatro cores usado para quadrinhos na época
“permite apenas 32 combinações de cores possíveis — não o
suficiente para fazer todas as distinções que gostaríamos… A
coloração oriental simplesmente não está disponível. A mais
próxima a que podemos chegar é a caucasiana”.
Ele continua argumentando que usar amarelo para o tom de pele
asiático é uma convenção dos quadrinhos, mas que “a mudança está
no ar. Quando o próprio Steve coloriu a edição de estreia de Master
of Kung Fu, ele usou a colorização caucasiana para os oponentes
orientais de Shang-Chi (embora Fu Manchu, a personificação do
mito do Perigo Amarelo e um homem que sempre se vestia de
amarelo, tenha recebido uma pele amarela pálida como padrão — e
Shang-Chi, de sangue mestiço, era laranja). Naturalmente, a Marvel
não está tentando insultar ninguém; estamos apenas fazendo o que
podemos dentro dos limites da mídia”. A questão maior que a
resposta de Englehart não aborda é por que quaisquer personagens
asiáticos não eram simplesmente coloridos com o tom de pele
disponível mais próximo da realidade — por que era importante
desafiar a verossimilhança para diferenciá-los dos personagens
brancos no estágio de colorização159?
Giant-Size Master of Kung Fu nº 2 (dezembro de 1974)
DOUG MOENCH, PAUL GULACY, JACK ABEL, PETRA GOLDBERG
Incapaz de acompanhar a demanda por sua criação, Englehart e
Starlin rapidamente caíram fora de Master of Kung Fu. Uma nova
equipe criativa se instalou em pouco tempo: o roteirista Doug
Moench, que era rápido o suficiente para lidar com todos os títulos
de Master of Kung Fu, e o desenhista Paul Gulacy, um talentoso
recém-chegado cuja noção de iluminação e composição devia mais à
fotografia de cinema do que a maioria de seus contemporâneos nos
quadrinhos. Gulacy usava muitas referências fotográficas — um de
seus personagens foi claramente inspirado em Marlene Dietrich,
outros em Marlon Brando e David Niven —, mas ele foi
especialmente cuidadoso na demonstração de ação nas páginas.
O visual que dominava as cenas de luta nos gibis na época eram
poses legais, golpes vistos em perspectiva, piruetas no ar e impactos
devastadores, sem pensar em como eles teriam a ver com combate
de verdade. Esse também era o visual das capas de Master of Kung
Fu, desenhadas por outros artistas, o que geralmente implicava que
havia diálogos cafonas de filmes B no miolo. (“Coma aço frio,
moleque de pijama!” grita um assassino empunhando uma faca na
capa da edição nº 21.) Na maioria dos combates em quadrinhos, o
objetivo é mostrar a intensidade da luta entre os personagens; para
uma história de artes marciais, é mais importante mostrar como,
exatamente, estão lutando. As cenas de ação de Gulacy são
coreografadas, com o trajeto de cada corpo de cada imagem para a
próxima sendo deduzido. Seu Shang-Chi se move com precisão e
força calculadas, um pensador cujos movimentos são totalmente
intencionais.
Esta aventura, uma das primeiras colaborações de Moench e
Gulacy, é o início de uma trama fantasma na história de Master of
Kung Fu, que de novo nunca é abordada diretamente, mas continua
quase sendo abordada. Shang-Chi conhece a dona de um estúdio de
artes marciais, Sandy Chen, e começa um romance — o primeiro
dele — com ela comendo pizza (que Shang-Chi nunca comeu antes).
Segue-se uma complicada trama de espionagem, na qual Sandy
acaba se revelando como uma agente secreta de Sir Denis Nayland
Smith. No fim das contas, Fu Manchu sequestra Sandy, droga Shang-
Chi com alucinógeno e faz o herói lutar para sair de um labirinto,
em uma sequência visualmente inspirada nas histórias de Nick Fury
de Jim Steranko no final dos anos 1960. Quando Shang-Chi
finalmente chega até Fu Manchu, ele exige saber onde Sandy está.
“Ela morreu no labirinto, seu tolo!”, responde o pai, “Você mesmo a
matou!”. No próximo quadro, começa uma cena de luta; “Eu me
obrigo a esquecer as palavras do meu pai”, observa o recordatório de
Shang-Chi. E ele as esquece — ou melhor, ele as reprime.
Master of Kung Fu nº 33 (outubro de 1975)
DOUG MOENCH, PAUL GULACY, DAN ADKINS, JANICE COHEN
Entre outras virtudes, Master of Kung Fu tinha uma excelente seção
de cartas, que muitas vezes incluía reações extremamente críticas
dos leitores. Uma carta de Bill Wu nesta edição aborda a cor da pele
novamente, em resposta ao vilão lutador de kung fu de uma edição
anterior que apresentava pele amarela luzidia e manguais presos ao
coque: “Qual dos nomes ilustres na página de rosto de vocês
determinou que o Espreitador das Sombras fosse do mesmo tom de
uma banana madura?”. Doug Moench responde que agora se tornou
política da Marvel que, dadas as limitações das cores disponíveis
para os quadrinhos, “com exceção de personagens já estabelecidos
(Shang-Chi e Fu Manchu sendo exemplos óbvios), todos os futuros
personagens asiáticos seriam coloridos nos mesmos tons de pele
dos personagens caucasianos. E eis que aconteceu aquilo com o
Espreitador das Sombras, como e por que não sabemos. Mas temos
certeza de que a situação já foi corrigida. Se não foi, e às vezes
demora um pouco para aprendermos essas coisas, cuidaremos para
que seja”.
Wu era o correspondente cujas cartas eram impressas com maior
frequência em Master of Kung Fu160. Ele não hesitou em chamar a
atenção para caricaturas, colorização e tramas racistas. Ele também
estava nitidamente entusiasmado com a série e era um leitor
dedicado e cuidadoso cujas reações eram muito importantes para os
criadores. E com o tempo, eles de fato responderam a algumas de
suas objeções (e de outros leitores).
Master of Kung Fu já estava mudando. Os primeiros números
tinham sido divertidos, ainda que previsíveis161: Shang-Chi entraria
em conflito com algum plano do pai ou tropeçaria aleatoriamente
em problemas e sairia disso usando kung fu. Mas como essa
abordagem ficou sem graça rapidamente, Moench e Gulacy então
inventaram uma mais inteligente, na qual Shang-Chi resolve
compensar seu passado trabalhando contra seu pai para Sir Denis
Nayland Smith, no serviço de espionagem britânico MI6. A nova
configuração também deu a Shang-Chi um elenco durável de colegas
agentes secretos: sua parceira romântica e de trabalho, Leiko Wu
(apresentada aqui); o velho e durão Black Jack Tarr; e o amargo ex-
namorado de Leiko, Clive Reston, que está sempre insinuando, mas
nunca diz abertamente, que seu pai era James Bond e seu tio-avô,
Sherlock Holmes.
Master of Kung Fu nº 38 (março de 1976)
DOUG MOENCH, PAUL GULACY, DAN ADKINS, PETRA GOLDBERG
Se tornar um espião na esperança de limpar a própria ficha, no
entanto, é uma proposta complicada; a frase que Shang-Chi usa
repetidas vezes para descrever a espionagem é “jogos de morte e
engodo”. A história de dois capítulos em Master of Kung Fu nº 38 e na
edição seguinte é um destaque da era Moench e Gulacy, um thriller
de espionagem com um clima envolvente que desafia as aparências.
Sir Denis enviou Shang-Chi para os becos de Hong Kong a fim de
roubar alguns documentos de um artista marcial chamado Shen
Kuei, ou o Gato, e resgatar uma contra-agente britânica ameaçada
por seus segredos — Juliette, a já mencionada sósia de Marlene
Dietrich. Mas Juliette é amante do Gato, e os documentos não são o
que Shang-Chi pensa que são, e as alianças de todos mudam rápida e
violentamente.
Master of Kung Fu nº 39 (abril de 1976)
DOUG MOENCH, PAUL GULACY, DAN ADKINS, GEORGE ROUSSOS
A segunda metade da história do “Gato”, como muitas das edições de
Master of Kung Fu de Gulacy, começa com uma página simbólica
desenhada como um pôster de cinema. Ela evolui para um duelo de
artes marciais mano a mano que tem uma introdução
absolutamente fodona, um trecho de ritmo visual que está vinte e
cinco anos à frente de seu tempo: uma página de cinco quadros
horizontais mostrando Shang-Chi puxando dois pares de nunchakus,
girando, parando e se preparando para entrar na batalha, com o
rosto e torso concentrados e imóveis, mesmo enquanto as armas
giram.
Mas Master of Kung Fu nunca deixou seus momentos fodões
passarem despercebidos. À medida que a luta continua, Gulacy vai
afastando o ponto de vista dos combatentes, e a narração de Shang-
Chi se torna uma meditação a respeito da ausência de sentido da
violência na qual ele se encontra preso. A culpa é do herói; aqui,
como em todos os lugares, ele é um forasteiro, como Shen Kuei
ressalta ao chamá-lo sem parar e em tom irônico de “britânico”.
Essa é uma contrapartida de outra linguagem familiar da série: o
aliado britânico de Shang-Chi, Black Jack Tarr, só se refere a ele
como “China”. Na seção de cartas da mesma edição, Bill Wu
secamente critica Moench por isso: “Embora seu uso do termo
‘China’ possa ser mais por zoação do que por hostilidade, acho
improvável que Shang-Chi lhe desse tolerância tácita
indefinidamente”.
Master of Kung Fu nº 59 (dezembro de 1977)
DOUG MOENCH, MIKE ZECK, JOHN TARTAGLIONE, JANICE COHEN
Na fase inicial de dez anos, Master of Kung Fu mal cruzou com o
resto do mundo da Marvel, mas esta edição e a próxima foram
exceções importantes. Shang-Chi, drogado e alucinado (de novo),
imagina que está lutando contra seu inimigo morto Punho de
Lâmina, e que Londres, a África e as pirâmides egípcias estão
cobertas de gelo. Quando Sir Denis tenta acalmá-lo, ele explode de
raiva: “Você me tirou do meu pai — da minha casa — tentou se tornar
meu novo pai — e fazer desta Londres minha nova casa!”. Ele imagina
que está sendo atacado por outro de seus inimigos, Pavane, e
quando Shang-Chi a chuta, a cabeça sai e ela revela ser um robô —
assim como Clive Reston, que o drogou, mas eis que se descobre que
Reston está dentro da carcaça de um robô e que, por sua vez, ele foi
drogado e manipulado para drogar Shang-Chi pelo Doutor Destino.
No quadro final, vemos Destino e seu robô, o Máquina Motriz,
jogando xadrez com os outros personagens da história como peças,
exatamente como Jim Steranko os desenhou em Strange Tales nº 167,
de 1968.
Master of Kung Fu nº 60 (janeiro de 1978)
DOUG MOENCH, MIKE ZECK, JOHN TARTAGLIONE, SAM KATO
Shang-Chi continua a alucinar. Reston se revela um robô disfarçado
de pessoa disfarçado de robô disfarçado de pessoa. O Espreitador
das Sombras, ainda colorido como uma banana madura demais,
ataca e é morto por Shang-Chi, e na sequência o Doutor Destino
aparece e se gaba: “Depois de tudo que você vivenciou, todos os
caminhos tortuosos do engodo… eu lhe enganei, obriguei a tirar uma
vida humana… O Espreitador das Sombras não era um robô! Ele
estava vivo… e você, Shang-Chi, acabou de cometer um assassinato!”.
Mas, parafraseando Lewis Carroll, ele era realmente um robô, afinal
de contas. Em uma cena que lembra o episódio final de O Prisioneiro
(outro seriado a respeito de espionagem britânica e destinos
rejeitados), o castelo de Destino se transforma em um foguete e voa
para longe; um epílogo estabelece que ninguém tem certeza de
quantos fatos das últimas duas edições realmente aconteceram, mas
que pelo menos alguns deles definitivamente foram reais.
No entanto, considere os detalhes desta história em relação aos
temas apresentados: drogas alucinógenas como ferramentas de
controle; “caminhos tortuosos”; a ideia de que manipular Shang-Chi
a cometer um assassinato involuntário (de alguém que não é o que
parece ser) seria a vitória mais esmagadora possível contra ele; as
referências aos gibis de Steranko. A sequência inteira repercute as
circunstâncias da morte de Sandy Chen sem mencioná-la
diretamente. É um trauma reprimido que está quase vindo à tona na
psique de Shang-Chi e está deformando tudo ao redor na
consciência dele.
Master of Kung Fu nº 71 (dezembro de 1978)
DOUG MOENCH, MIKE ZECK, BRUCE D. PATTERSON, PETRA GOLDBERG
O que é mais atraente em Shang-Chi é sua forma de pensar, menos
do que a forma de lutar: ele é introvertido e questionador, sempre à
procura de padrões em sua história pessoal162 e nem sempre
encontra os que estão lá. O ponto central da série Master of Kung Fu
original é uma edição que desafiou o dogma (ainda predominante)
de que deveria haver um combate espetacular em cada edição de
uma revista em quadrinhos de aventura. O gibi mostra Shang-Chi
pensando nas experiências recentes enquanto ele e Leiko Wu
curtem uma noite tranquila juntos. Eles treinam em uma academia
(a única cena de artes marciais da edição), ouvem um disco do
Fleetwood Mac, assistem a Contatos Imediatos do Terceiro Grau no
cinema e ficam de pegação no sofá.
Leiko recebe uma pizza, o que faz Shang-Chi se lembrar
brevemente da primeira vez que comeu pizza, com Sandy Chen, e do
primeiro beijo que se seguiu. A seguir, ele se distrai pensando em
Juliette antes que possa se lembrar mais de Sandy. A narração de
Shang-Chi avança pela revista, considerando a rotina, os amores
perdidos e achados, o orgulho de sua arte e a sensação de incômodo
que vem desse orgulho — e ignorando ou reprimindo momentos da
própria culpa na violência, que voltarão a atormentá-lo mais tarde.
Master of Kung Fu nº 82 (novembro de 1979)
DOUG MOENCH, MIKE ZECK, GENE DAY, BOB SHAREN
O debate em andamento mais intenso na seção de cartas do Master
of Kung Fu dizia respeito à presença de Fu Manchu na série. Nesta
edição, uma longa carta de Bill Wu responde a outra carta de uma
edição anterior enviada por cat yronwode, que argumentava que a
intolerância de Sax Rohmer era perdoável porque “ele viveu em uma
época diferente” e que “era hora do retorno do Doutor Fu Manchu,
não importa o que Bill Wu ache!”. Wu comenta que “em Master of
Kung Fu, Fu Manchu não é ‘uma figura do passado’, mas é
incontestavelmente do presente… Fu Manchu não é ‘apenas’ um
vilão asiático; nas próprias palavras de Rohmer, ele é ‘o perigo
amarelo encarnado’, uma representação de sua raça e a encarnação
do mal ao mesmo tempo”.
A resposta de Doug Moench — na qual ele menciona que outra
trama longa envolvendo Fu Manchu está prestes a começar — segue
a carta de Wu: “Bill afirma que Fu Manchu agora aparece ‘sem as
modificações que a sensibilidade contemporânea normalmente
exigiria’. Isso não é verdade. Eliminamos as orelhas pontudas, as
membranas oculares nictantes semelhantes a répteis e — se
tivermos sorte —, os coloristas vão se lembrar de que a tez amarela
de uma pessoa doente agora é proibida… Finalmente, tentamos
enfatizar o fato de que Fu Manchu age sozinho, não como
‘representação de sua raça’”.
(O que quer dizer: a essa altura, os criadores da série corrigiram
os aspectos visualmente mais odiosos do personagem — mas ele
ainda é Fu Manchu, e sua presença ou influência ainda é um dos
axiomas desta série, e não há maneira de desviar do fato. Perigo
amarelo é o que ele está vendendo.)
Em 2018, escrevi para Wu e perguntei o que ele achava de Master
of Kung Fu visto a algumas décadas de distância. “Ter um
protagonista descendente do leste asiático era uma coisa que eu
queria ver nos quadrinhos, mas achei o Shang-Chi inicial
decepcionante de várias maneiras”, respondeu Wu. “Eu vi potencial
em Master of Kung Fu para um gibi que eu realmente gostei desde o
início, mas a presença de Fu Manchu sempre seria uma limitação”.
Ainda assim, ele continuou lendo a série e escrevendo, e suas
cartas de comentários levaram a uma correspondência particular e
amigável com Moench. Como William F. Wu, ele se tornou escritor
de ficção científica indicado aos prêmios Hugo e Nebula — um dos
muitos que contribuíram com a seção de cartas do Master of Kung Fu
e que posteriormente fizeram carreira nas artes163.
Perguntei a Wu por que ele achava que Master of Kung Fu havia
suscitado a reação de tantos futuros roteiristas e desenhistas
profissionais. “Suspeito que pode ser por duas razões”, respondeu.
“Uma é a qualidade do trabalho; Doug Moench conseguiu níveis de
caracterização e enredo que muitos outros roteiristas de quadrinhos
não alcançaram… A segunda razão… é que a revista foi realmente
diferente de outros gibis durante toda a sua duração. Talvez isso
tenha sido um apelo para pessoas que tinham vocação para o
trabalho criativo”.
Master of Kung Fu nº 103 (agosto de 1981)
DOUG MOENCH, GENE DAY, BOB SHAREN
O último desenhista definitivo de Master of Kung Fu foi Gene Day,
que assumiu o cargo depois de arte-finalizar os traços de Mike Zeck
por alguns anos. Day, que surgiu na cena dos quadrinhos
underground canadenses, tinha grande veia experimental que não
tinha conseguido empregar muitas vezes no trabalho para a Marvel
— em 1979, ele publicou por conta própria uma coleção de capa dura
de gibis curtos de ficção científica, Future Day —, mas Moench
encontrou maneiras de deixá-lo independente.
Esta aqui, a primeira edição completa de Moench e Day, começa
com uma sequência visualmente espetacular ambientada em um
porto de Hong Kong. O título da história, “A City Asea”164, cobre duas
páginas, cada letra formando o contorno de um quadro,
representando coletivamente o ecossistema de juncos do porto. (É
outra alusão às imagens de Jim Steranko nas histórias de Nick Fury
publicadas há mais de uma década, o tipo de truque que poucos
desenhistas de quadrinhos ousaram tentar.) A arte de Day passeia
por barracos de madeira frágeis e gaivotas circulando, conduzindo o
ponto focal do leitor por caminhos acrobáticos através das listras de
luz solar e sombra formadas pelas ripas nas paredes e grades nas
janelas.
Master of Kung Fu nº 104 (setembro de 1981)
DOUG MOENCH, GENE DAY, GEORGE ROUSSOS
Como Master of Kung Fu nº 39 foi “Lutar Sem Piedade”, o nº 104 é
“Lutar Sem Razão”. Juliette e Shen Kuei tinham aparecido, aqui e ali,
desde a história anterior, mas suas posições (e as de Shang-Chi e
Leiko Wu) foram trocadas completamente, pois eles mudaram de
fidelidade e trocaram de amantes. Portanto, esta história em duas
partes não é apenas uma continuação daquela, mas também seu
reflexo mais triste. Outra vez, ela termina em confronto e, outra vez,
a luta envolve nominalmente questões urgentes de espionagem que
acabam não tendo nenhum significado outro além de, na verdade,
ser sobre traições eróticas. Se a representação dos personagens feita
por Day não tinha a precisão cinematográfica de Paul Gulacy, ele
possuía um domínio ainda maior da atmosfera: a batalha climática
entre Shang-Chi e Shen Kuei é ambientada em um templo em
ruínas, descendo por escadarias escherianas e passando um
estatuário que se agiganta. (Day realmente gostava de desenhar
estátuas, aparentemente, e Moench fez questão de agradá-lo.)
Master of Kung Fu nº 118 (novembro de 1982)
DOUG MOENCH, GENE DAY, CHRISTIE SCHEELE
A fase de Master of Kung Fu de Moench e Day incluiu algo que
nenhum outro título da Marvel que durou tanto tempo conseguiu:
ter uma conclusão satisfatória em termos dramáticos. Assim como
The Amazing Spider-Man, Master of Kung Fu é uma história de
amadurecimento, mas as condições de mercado ao redor
permitiram que o protagonista chegasse ao seu destino e a história
terminasse pouco depois. A série começou com Shang-Chi sendo
enviado pelo pai para um confronto com Sir Denis Nayland Smith.
Sua edição climática (mas não a última), a de número 118, conclui o
conflito de Shang-Chi com Fu Manchu e rompe os últimos laços
entre eles. No último quadro, invertendo o discurso irritado da
edição 59, ele diz a Smith: “Você é o pai que eu nunca tive. Eu amo
você”. A história de tamanho duplo também é uma vitrine
estrondosa para Day, cujos designs de página estranhos e delirantes
incorporam assassinos a cavalo empunhando cimitarras, um louva-
a-deus gigantesco, uma quantidade de estátuas digna de várias
pedreiras e Shang-Chi lutando contra o próprio clone, uma versão
sombra de si mesmo que começa a luta irrompendo por um espelho.
Master of Kung Fu nº 120 (janeiro de 1983)
DOUG MOENCH, GENE DAY, CHRISTIE SCHEELE
O editor-chefe da Marvel, Jim Shooter, aparentemente achou tudo
muito rebuscado e mandou Day diminuir o tom da extravagância e
apenas desenhar seis quadros por página. Ele também mandou
Moench mudar a direção da série. Doug descreveu as sugestões de
Shooter ao Comics Buyer’s Guide: “Eu poderia matar Shang-Chi, ou
substituí-lo por um ninja, ou transformá-lo em um vilão como Fu
Manchu e talvez fazer um herói ninja tentar levá-lo à justiça. Tentei
explicar a ele que um ninja não é um ‘mestre de kung fu’. Ninjas são
japoneses e usam espadas. Kung Fu é basicamente uma forma
chinesa de artes marciais. O Jim também sugeriu que eu matasse
todo o elenco de apoio”.
Em vez disso, Moench escreveu mais uma edição para Day, o
elegíaco Master of Kung Fu nº 120, “O Habitante do Córrego Negro”. A
revista estava novamente repleta de imagens nas quais o desenhista
poderia fazer a festa: ainda mais estátuas, árvores retorcidas, um
gaiteiro fantasmagórico e um Rolls-Royce antigo cuja placa dizia
ADEUS. E eis que ambos saíram da série e prontamente receberam
uma oferta para assumir o título do Batman na DC. Moench acabou
escrevendo mais de 150 histórias do Homem-Morcego. Day
desenhou apenas uma linda capa do Batman para a Detective Comics
antes de morrer de ataque cardíaco aos 31 anos; seu melhor
trabalho desapareceu dos olhos do público por trinta e cinco anos.
Master of Kung Fu continuou aos trancos e barrancos por mais
cinco edições, as últimas delas escritas por Alan Zelenetz e
desenhadas por William Johnson e Mike Mignola165. Elas terminam
com Shang-Chi abandonando a antiga vida e os amigos e indo
embora para se tornar pescador.
Shang-Chi apareceu cinco anos depois, ainda laranja, em uma
série breve escrita por Moench e desenhada por Tom Grindberg e
Dave Cockrum na série de antologias Marvel Comics Presents. Ele
manteve uma agenda discreta de edições únicas e aparições
especiais na década seguinte. Quando ele apareceu em Marvel
Knights em 2000, os gibis tinham uma paleta de cores por
computador muito mais ampla, e ele assumiu o tom de pele mais
realista que teve desde então166.
Domino nº 5 (outubro de 2018)
GAIL SIMONE, DAVID BALDEON, MICHAEL SHELFER, JESUS ABURTOV
A clássica série Master of Kung Fu acabou se tornando pouco mais
que um boato. Ninguém exigia novas aparições de Shang-Chi,
embora elas fossem curtidas por um pequeno culto formado por
nerds velhos. O conflito central de sua história, a luta com o pai, foi
resolvido décadas atrás167. Usando um macacão elegante em vez de
quimono, ele trabalhou com os Vingadores por um tempo e
continua fazendo parte da textura do universo compartilhado da
Marvel. Quando Shang-Chi apareceu nos últimos anos, muitas vezes
foi como artista marcial aposentado que agora ensina os outros a
atingir o próprio potencial. Os criadores de quadrinhos ainda
parecem gostar muito dele: na série Domino de 2018, ele atua
brevemente como o instrutor da personagem-título, e a piada
corrente é que Shang-Chi é tão atraente que Domino nem consegue
pensar direito perto dele.
/////
Quando tentei escrever pela primeira vez a respeito de Master of
Kung Fu, comecei com uma afirmação dramática de que nunca
haveria filme, seriado de TV ou videogame de Shang-Chi. Eu estava
redondamente enganado. Até o momento em que escrevo este livro,
a Marvel Studios está fazendo um filme chamado Shang-Chi e a
Lenda dos Dez Anéis, com lançamento previsto para 2021, com
diretor, roteirista e astros de ascendência asiática. Quase todas as
histórias da primeira década de Shang-Chi estão finalmente
disponíveis outra vez, em encadernações e em formato digital.
Então, o que fazemos com elas? Para um leitor do século XXI, não
há como evitar o que há de errado com Master of Kung Fu, desde o
arquétipo do Perigo Amarelo embutido na premissa da série até o
eterno problema dos “brancos inventando coisas a respeito de
culturas do mundo real que não são suas”. É completamente
compreensível observar a legenda da capa inicial que diz “O Biscoito
da Sorte diz: MORTE!” e decidir que existem maneiras melhores de
passar o tempo limitado de uma pessoa do que se envolver com essa
bagunça.
Descartar a série, porém, é descartar uma obra de arte
genuinamente especial e obstinadamente idiossincrática. Master of
Kung Fu é uma série de ação e aventura com um protagonista que
questiona as próprias ações e motivações a cada passo e tem uma
crise prolongada por depender de violência; uma série de
espionagem que trata o ramo da espionagem como monstruoso; um
romance entre personagens com função sexual e sentimentos
complicados e inconstantes um pelo outro. A maior parte da série é
lindamente desenhada de forma inventiva. É uma história sinuosa,
porém completa, contada ao longo de dez anos, a respeito de um
personagem que percebe desde o início que errou e se dedica a
ascender e avançar por um caminho que envolve as próprias
concessões morais. E é a obra de criadores que perceberam — ainda
que lentamente e com alguns empurrões do público — que eles
também precisavam melhorar.
154 E no Brasil como Cinco Dedos de Violência. (N. T.)
155 Ambos os criadores do personagem estão entre os melhores jogadores em campo da
Marvel cujas glórias não são exaltadas. Englehart tinha o dom de encontrar novas
abordagens para personagens obsoletos — seus três anos em Captain America e quatro anos
em The Avengers levaram essas séries a muito além da forma que ganharam de Stan Lee e
Roy Thomas na década anterior. Para saber mais a respeito de Starlin, veja o capítulo 18.
(N. A.)
156 O primeiro seria Jimmy Woo, um personagem da década de 1950 que ressurgiu em Nick
Fury, Agent of S.H.I.E.L.D., em 1968, junto com seu arqui-inimigo, o Garra Amarela. (N. A.)
157 A mãe americana loura de Shang-Chi nunca recebeu um nome, embora tenha
aparecido algumas vezes. (N. A.)
158 O Fu Manchu de Master of Kung Fu tem o bigode comprido e caído associado ao nome
do personagem por causa da interpretação de Fu Manchu feita por Boris Karloff no filme de
1932, A Máscara de Fu Manchu; ele não tinha bigode nos livros de Rohmer. (N. A.)
159 A Marvel, naquela época, ainda sinalizava diferenças com mão pesada no geral: na
história da mesma edição, o personagem irlandês Banshee fala com um sotaque
escandalosamente exagerado (“Ye’ll be stoppin’ no one, me criminal friend!”). (N. A.) (Nota
do tradutor: a tradução literária costuma matar os diversos sotaques que a língua inglesa
consegue simular na escrita. A Vampira, outra integrante dos X-Men, por exemplo, perde o
jeito de falar do Sul dos EUA na versão brasileira, com fonemas anasalados representados
por “ah” no fim de algumas palavras, enquanto o irlandês do Banshee basicamente usa a
vogal “e” como substituto de outras ao “falar” nos diálogos. A frase anterior do mutante
seria escrita, na forma padrão do inglês you will be stopping no one, my criminal friend [você
não vai deter ninguém, meu amigo criminoso]. Note a diferença para ye’ll be stoppin’ no one,
me criminal friend.)
160 As correspondências apareciam com tal frequência, que os comentários de Moench nas
seções de cartas de em vez quando mencionavam Wu, mesmo quando ele não tinha uma
carta naquela edição. (N. A.)
161 Os títulos de quatro das cinco primeiras edições escritas por Moench: “Temporada da
Vingança, Momento da Morte!”, “Uma Fortuna da Morte!”, “Rio da Morte!”, “Ritos de
Coragem, Punhos da Morte!”. (N. A.)
162 Nas raras ocasiões em que outros roteiristas tiveram que escrever o personagem,
muitas vezes eles se divertiram com seu jeito de falar característico e dramático. Aqui está
Shang-Chi em Marvel Two-in-One nº 29, de 1977, escrito por Marv Wolfman: “Mais uma vez
minha alma está agitada. Novamente eu sangro. E, ao que parece, a ferida nunca
conseguirá cicatrizar”. A resposta do Coisa: “Ótimo! Você pede ajuda à telefonista e quem
atende é o Robert Frost!”. (N. A.) (Nota do tradutor: Robert Frost é um dos maiores poetas
americanos do século xx.)
163 Outros incluem cat yronwode e Dean Mullaney, cuja editora Eclipse Comics publicou a
série subsequente de Moench, Aztec Ace, bem como os editores e criadores de quadrinhos
Kim Thompson, Ralph Macchio, Robert Rodi, Peter B. Gillis, Peter Sanderson, Mike Baron,
J.M. DeMatteis, Kurt Busiek e Hilary Barta. (N. A.) (Nota do tradutor: a cat yronwode, citada
assim na seção de cartas, é a autora Catherine Yronwode).
164 “Uma cidade à beira-mar”, um título bem maior em português (N. T.)
165 Mignola posteriormente se tornou um desenhista muito popular e o criador do
Hellboy; sua arte melancólica e cheia de estátuas é muito influenciada por Gene Day. (N.
A.)
166 Em uma minissérie Master of Kung Fu, de 2002, para a qual Moench e Gulacy se
reuniram, ele frequentemente aparece em cenas iluminadas pelo fogo — de maneira que
ele está laranja novamente, mas também todo o resto. (N. A.)
167 Fu Manchu não é mais identificado por esse nome nos quadros, de qualquer forma.
O “doutor diabólico” apareceu em 2006 em Black Panther com nome de Han (em
homenagem ao vilão de Operação Dragão), e uma trama de 2010 em Secret Avengers o
rebatizou de Zheng Zu e insinuou que ele havia usado vários pseudônimos no decorrer dos
anos. (N. A.)
9.
INTERLÚDIO: OS ANOS DO VIETNÃ
Julho de 1972: Sgt. Fury and His Howling Commandos nº 100 rompe
com as habituais aventuras da Segunda Guerra Mundial da série e
abre espaço para uma história ambientada nos “dias atuais”. Ela
envolve um evento em homenagem ao grupo, apresentado por Stan
Lee (na fase de barba e gola rolê); até o publisher da Marvel, Martin
Goodman, aparece. Alguém tenta assassinar um dos comandos,
“Reb” Ralston, que agora é congressista e ativista dos direitos civis,
mas por algum motivo ainda se chama “Reb”. Stan Lee derrama uma
única lágrima, mas Ralston sobrevive, e todos ouvem o então
recente sucesso do New Seekers/jingle da Coca-Cola, “I’d Like to
Teach the World to Sing”. É esquisito.
P
or dez anos seguidos, The Uncanny X-Men foi o gigante
incontrolável das revistas em quadrinhos tradicionais
americanas, tanto como empreendimento comercial quanto
como arte: uma história rica e inventiva em termos fantásticos
a respeito do significado e do valor da identidade de grupo. Uma vez
que a equipe criativa do roteirista Chris Claremont, o
desenhista/corroteirista John Byrne e o arte-finalista Terry Austin
colocaram a série em movimento, a forma, o elenco e a
ambientação da revista entraram em constante mutação, às vezes
radicalmente, em torno da voz segura e trovadora de Claremont.
Ele e Byrne descobriram como usar a metáfora multiforme para
opressão e marginalização que estava embutida na premissa dos X-
Men e a transformaram em combustível de foguete para suas
histórias. Eles deram aos personagens um nível de profundidade
emocional e complexidade sem precedentes nos gibis mainstream e
recompensaram os leitores de longo prazo com enredos que se
desenvolveram no decorrer de meses ou anos175.
E vendia, vendia e vendia sem parar. Outras revistas de vez em
quando circulavam com maior tiragem e muitas vezes tinham
maiores triunfos artísticos, mas de 1978 a 1987, The Uncanny X-Men
foi a série de quadrinhos americana mais vendida, e o número de
leitores aumentava a cada ano. Ao longo daquela década, as vendas
mensais médias cresceram de cerca de 116 mil exemplares por
edição para mais de 430 mil, agora um número inimaginavelmente
grande. As pessoas que trabalhavam em lojas de gibis em meados
dos anos 1980, como eu, sabiam que o maior dia de vendas de cada
mês era a terceira quinta-feira, quando saía a nova edição de The
Uncanny X-Men.
Isso é um feito e tanto para qualquer tipo de entretenimento
popular, o equivalente a uma banda pop lançar uma música entre as
dez melhores da parada de sucessos por mês durante dez anos. O
maior salto de circulação de um ano a outro de The Uncanny X-Men
ocorreu entre 1980 e 1981, a conclusão da era com Byrne e Austin
desenhando. E as premissas de duas das histórias publicadas
naquele ano — uma a respeito de apocalipse pessoal (Saga da Fênix
Negra), a outra envolvendo salvar o futuro (Dias de um Futuro
Esquecido) — permaneceram com The Uncanny X-Men e seus
descendentes desde então, em quadrinhos, animações de TV e
filmes.
The X-Men nº 1 (setembro de 1963)
STAN LEE, JACK KIRBY, PAUL REINMAN
Para entender como essas histórias específicas se tornaram tão
importantes, é útil ver como The X-Men chegou àquele ponto. O
sucesso foi um pouco surpreendente no início, visto que a revista
passou a maior parte dos primeiros quinze anos perto do fundo do
poço da linha de super-heróis da Marvel. Criada em 1963 por Stan
Lee e Jack Kirby, a primeira encarnação do gibi tratava de uma
escola particular para adolescentes com superpoderes. Os X-Men
são mutantes, um avanço inesperado na genética de seus pais. Em
algum momento, eles descobrem que são diferentes das outras
pessoas: seus corpos ou mentes mudam, e novas habilidades
aparecem. As pessoas “normais” os desprezam.
Na primeira edição de Lee e Kirby, Charles “Professor X” Xavier,
um psíquico cadeirante careca, matriculou cinco mutantes
adolescentes em sua academia para “adolescentes superdotados”. (A
diferença é sempre um dom nos gibis dos X-Men.) Ele explica aos
novos pupilos que “há muitos mutantes andando pela face da
Terra… E nascem mais a cada ano! Nem todos querem ajudar a
humanidade...! Alguns odeiam a raça humana e desejam destruí-la!
Alguns acreditam que os mutantes devem ser os verdadeiros
governantes da Terra! É nosso trabalho proteger a humanidade
desses mutantes… dos mutantes malignos!”.
As palavras de Stan Lee nos primeiros gibis da Marvel se tornam
brinquedos para os roteiristas que o seguiram, e a premissa de The
X-Men se levava a sério demais a ponto de poder ser completamente
alterada. A interpretação racional do que está acontecendo em The
X-Men nº 1 é a leitura superficial: Xavier está ensinando seus alunos
a serem super-heróis. Mas a retórica absolutista contida ali é muito
parecida com o discurso oferecido aos jovens por tiranos explicando
por que suas ordens devem ser seguidas sem questionamento. Ao
lermos as entrelinhas à luz do que acontece em partes posteriores
da história, surge uma interpretação mais sombria: Charles Xavier
recrutou esses adolescentes desesperados e os transformou em um
exército infantil.
Ainda assim, The X-Men dos anos 1960 é uma série de grupo bem
básica envolvendo mocinhos-contra-bandidos176. Seu arquivilão,
daquele primeiro número em diante, é Magneto, a figura de
capacete que é capaz de controlar forças magnéticas. Ele também
tem um pequeno exército próprio; eles são chamados de
“Irmandade de Mutantes”, com um sarcasmo que é muito mais
evidente agora do que nos anos 1960177.
X-Men nº 57 (junho de 1969)
ROY THOMAS, NEAL ADAMS, TOM PALMER, LINDA FITE, WERNER ROTH,
SAM GRAINGER
Em sua fase inicial, a coisa mais próxima que X-Men tem a um
protagonista entre os alunos de Xavier é Scott Summers, também
conhecido como Ciclope, um jovem quieto e reprimido cujos olhos
disparam feixes magenta que destroem tudo o que ele vê a menos
que esteja usando um visor especial ou óculos. (Nunca conseguimos
ver os olhos de Scott mesmo como leitores, mas talvez possamos nos
imaginar por trás deles.) Os outros quatro integrantes da equipe de
Xavier são tipos pré-fabricados. Hank McCoy, o Fera, tem físico de
macaco e uma propensão a usar palavras difíceis; Bobby Drake, o
Homem de Gelo, é um jovem impetuoso e bobalhão, um Tocha
Humana com a temperatura invertida; Warren Worthington III, o
Anjo, é um garoto rico alado; e Jean Grey, a Garota Marvel com
poderes telecinéticos, é a garota. (Ela e Ciclope começaram a
namorar com o passar dos anos da série. X-Men também é um gibi
de romance: a questão de quem está namorando quem muitas vezes
é importante.)
De 1967 a 1969, histórias de apoio publicadas na revista
explicaram as origens de cada um dos integrantes. A Garota Marvel
foi a última, e se deu nesta edição: “A Fêmea da Espécie!” foi
destinada a Jean demonstrar seus poderes em vez de oferecer
qualquer vislumbre de seu passado ou sua personalidade. A
primeira história de super-heróis da Marvel a ser escrita por uma
mulher (Linda Fite) termina com dois homens em segundo plano
cobiçando Jean enquanto ela olha para o leitor e comenta que “parte
de ser normal é mexer com a cabeça dos homens sem realmente
tentar!”.
X-Men nº 94 (agosto de 1975)
CHRIS CLAREMONT, LEN WEIN, DAVE COCKRUM, BOB MCLEOD, PHIL
RACHELSON
No início da década de 1970, X-Men passou a reimprimir histórias —
assim como algumas séries de guerra e faroeste de longa data da
Marvel, a revista deixou de apresentar uma narrativa nova a cada
edição e passou a republicar material mais antigo —, antes de
expirar completamente no início de 1975.
Como todas as mortes nos títulos dos X-Men, essa foi seguida por
uma ressurreição. No final de 1975, o roteirista Len Wein e o
desenhista Dave Cockrum reviveram a série e trocaram a maior
parte do elenco por um grande grupo internacional. Eles incluíram
um monte de personagens novos saídos dos cadernos de desenho de
Cockrum, bem como Wolverine, um canadense compacto e brigão
com garras de metal que havia aparecido pela primeira vez no ano
anterior em uma história de The Incredible Hulk escrita por Wein.
Mas Wein estava ocupadíssimo na época: além da revista do gigante
esmeralda, ele escrevia The Amazing Spider-Man, The Fantastic Four e
Thor, e foi o editor-chefe da Marvel por um curto período. Então,
depois de uma única edição em que apresentou a nova equipe,
Giant-Size X-Men nº 1, ele passou o projeto para o roteirista novato
Chris Claremont em X-Men nº 94.
Naquela época, os títulos de segunda categoria da Marvel estavam
sujeitos a um constante troca-troca criativo: Super-Villain Team-Up,
por exemplo, estreou em agosto de 1975, no mesmo mês que X-Men
retornou, e passou por cinco roteiristas e cinco desenhistas nos
primeiros seis números. Claremont havia trabalhado como faz-tudo
na redação da Marvel seis anos antes e tinha escrito alguns roteiros
para histórias tapa-buraco, mas sua obra mais substancial àquela
altura era uma fase curta na série de horror War Is Hell. Ele escreveu
as duas primeiras edições do título renovado dos X-Men baseado nas
tramas de Wein. Então, contra todas as expectativas, Claremont
durou por dezesseis anos e 186 edições consecutivas (bem como
uma pilha enorme de outros projetos relacionados aos mutantes),
recorde que permaneceu imbatível por décadas nas histórias em
quadrinhos americanas.
X-Men nº 101 (outubro de 1976)
CHRIS CLAREMONT, DAVE COCKRUM, FRANK CHIARAMONTE, BONNIE
WILFORD
Os primeiros anos da revista “X-Men totalmente nova e diferente”,
como as capas anunciavam, foram desajeitados, mas promissores.
Claremont já levava jeito para expressar a dinâmica interpessoal do
enorme elenco que recebeu. Em especial, Claremont começou a
tornar a evolução pessoal de Jean Grey, há muito tempo
negligenciada, um dos pilares emocionais da série. Essa evolução se
destacou em uma trama de 1976 em que os X-Men estão em um
ônibus espacial que vai cair a menos que alguém consiga levá-lo até
um ponto seguro através de uma radiação que certamente matará o
piloto; Jean decide se sacrificar para salvar o amado Ciclope e os
companheiros de equipe.
No início desta edição, o ônibus espacial mergulha na Baía da
Jamaica, e Jean voa para fora da água, viva e bem de saúde, e usando
um novo uniforme. “Ouça-me, X-Men!”, declara ela, “Não sou mais a
mulher que vocês conheciam! Eu sou o fogo! E a vida encarnada!
Agora e para sempre, sou Fênix!”. (Floreios retóricos e
apresentações pessoais eram como erva-dos-gatos para Claremont,
que repetiu esse ritmo galopante até que se tornou um
encantamento.) As edições seguintes insinuaram que muito mais
havia mudado em Jean além da alcunha de super-herói, mas a
extensão da transformação não ficou clara até a saída de Dave
Cockrum de X-Men um ano depois178.
X-Men nº 108 (dezembro de 1977)
CHRIS CLAREMONT, JOHN BYRNE, TERRY AUSTIN, ANDY YANCHUS
A década de ouro de X-Men começou bem aqui, no meio de uma
história. O substituto de Cockrum, a partir dessa edição, foi o jovem
artista canadense John Byrne, com quem Claremont trabalhava
desde 1975; com ele vieram dois outros integrantes da equipe
criativa que transformou X-Men em um sucesso, o arte-finalista
Terry Austin e o letrista Tom Orzechowski179. A última edição da
fase inicial de Cockrum, X-Men nº 107, tinha terminado com um
gancho em que o universo inteiro desaparece da existência num
piscar de olhos e depois volta. O efeito da mudança de desenhistas
não foi diferente180. Em um flash, X-Men passou de um título
“inteligente e intrigante” para “avassalador e imersivo”.
Pergunte a qualquer um que estivesse lendo a série no final dos
anos 1970 e nos anos 1980 quem foi o desenhista definitivo de X-Men,
e vão dizer Byrne. Ou talvez elogiem Paul Smith e John Romita Jr. e
mencionem as várias histórias belíssimas desenhadas por Barry
Windsor-Smith e o punhado de edições anuais de tirar o fôlego no
lápis de Arthur Adams, antes de voltar ao time de Byrne e Austin
como a escolha óbvia. De todos os desenhistas da década de 1970
que obviamente se inspiraram em Jack Kirby, Byrne tinha a
abordagem mais revigorada e estilizada. Suas imagens tinham o
empuxo e fluidez indubitável do Quarteto Fantástico de Kirby, mas
também eram atraentes e bonitas, suaves em vez de pujantes.
Terry Austin havia trabalhado na Continuity Associates, o estúdio
de ilustração fundado por Neal Adams, ex-desenhista de X-Men, e
por Dick Giordano, veterano editor e arte-finalista, e levou ainda
mais longe o peso extremamente variado das pinceladas desses
artistas, adicionando contornos brutos e sombras hachuradas às
linhas curvas dos traços a lápis de Byrne. As letras firmes e quase
quadradas de Tom Orzechowski tinham a mesma solidez das figuras
de Byrne e remetiam às linhas de Austin nos quadros em volta.
Naquela época, os arte-finalistas e letristas eram ainda mais
propensos do que roteiristas e desenhistas a serem trocados
conforme ditavam os prazos, mas era óbvio como os estilos
particulares de Austin e Orzechowski se harmonizavam tão bem
com os de Byrne na página. Austin acabou arte-finalizando todas as
edições de X-Men de Byrne, exceto uma, e Orzechowski permaneceu
no título (com algumas pausas) ainda mais tempo do que Claremont.
Da primeira página de X-Men nº 108 — uma paisagem alienígena,
com um cristal gigantesco no centro emitindo raios que invertem a
escuridão e a luz em metade do céu — até a última página de
Uncanny X-Men nº 143181 de 1981, Claremont, Byrne e companhia
estabeleceram o modelo para milhares de quadrinhos subsequentes
dos mutantes182. Suas histórias combinavam complexidade
psicológica e imagens espetaculares, tramas intrincadas e ação
explosiva, desespero e prazer, com uma graciosidade
aparentemente sem esforço.
De acordo com todos os relatos, na verdade foi necessário um
grande esforço. Byrne e Claremont brigavam constantemente: o
ponto de interseção era onde eles conseguiam entrar em acordo.
“Sempre disse que tínhamos uma relação tipo ‘Gilbert e Sullivan’”,
disse Byrne ao entrevistador Brian Lamken em 2000183. “Nós
abordávamos todo o problema narrativo partindo de direções muito
diferentes, e as faíscas, digamos assim, surgiam em grande parte
quando nos esbarrávamos.” Os dois roteirizaram X-Men juntos, e é
difícil dizer onde a ideia de um começava e a de outro terminava.
Mas eles passaram a escrever centenas de gibis individualmente,
então é possível adivinhar que os impulsos brigavam durante a
colaboração dos dois.
Byrne é um contador de histórias feijão com arroz, um artesão
com técnica de showman. Ele agrada aos olhos antes de qualquer
outra coisa. Os personagens são desenhados em poses que
demonstram sua presença; há peso e formas diferentes de se mover
pelo espaço. Nos anos que passou em X-Men, sua falha mais
proeminente como desenhista era que quase todas as mulheres
tinham um rosto bonito bem parecido; mas reconheço que ele mais
tarde corrigiu isso. Byrne sabe quando se conter e deixar o vazio ou
o silêncio fazer o trabalho por ele — Proteus, seu vilão dos X-Men, é
representado de forma inesquecível como um espaço negativo, uma
ausência em forma de pessoa no meio de uma imagem. Ele mantém
o ritmo no caminho certo, mostrando aos leitores exatamente o que
precisam ver.
A escrita de Claremont, por outro lado, é repleta de cacoetes
fantásticos. Ele se concentra nos impulsos particulares dos
personagens, nas peculiaridades linguísticas de cada um, em suas
dimensões ocultas, nos impulsos inconscientes. Ele ambienta
histórias em lugares interessantes ao redor do mundo, reais e
inventados. Ele deixa os personagens mergulharem nas piscinas das
próprias emoções e explora os sentimentos por longo tempo em
diálogos ou balões de pensamento. Em seguida, Claremont explica
em recordatórios falastrões o que não cabe nas bocas ou nas mentes
dos personagens. Ele espalha possíveis tramas por toda parte e pega
mais tarde (ou não), se for conveniente. Se Byrne desenhar uma
pistola pendurada na parede, ela será disparada ao final da edição;
se Claremont fizer um personagem mencionar uma pistola
pendurada na parede, a arma pode nunca mais ser citada, ou pode
acabar, sessenta edições depois, tendo sido amaldiçoada por um
feiticeiro do século XVIII.
Tanto Claremont quanto Byrne são devotos de Stan-e-Jack-e-Steve;
os primeiros dez anos da Marvel são a base do trabalho individual de
ambos. Para Byrne, isso geralmente significa reformar histórias e
personagens específicos de Lee e Kirby ou Lee e Ditko, ou direcionar
o tom de uma série de volta para algo parecido como era naquela
época184. As homenagens de Claremont ao início da Marvel, por
outro lado, são uma tentativa de fazer a série evoluir tão
rapidamente quanto The Fantastic Four ou The Amazing Spider-Man
evoluíram na década de 1960.
X-Men nº 124 (agosto de 1979)
CHRIS CLAREMONT, JOHN BYRNE, TERRY AUSTIN, GLYNIS WEIN
A revista X-Men de Claremont — com Byrne e depois, por muito mais
tempo, sem Byrne — pode ser assustadora ou desconcertante para
leitores que tiverem contato com ela quarenta anos depois.
Superficialmente, ela se parece mais com gibis contemporâneos do
que qualquer outra de sua época, mas é nitidamente diferente. É
prolixa e cheia de tramas. O tom é maduro demais, como uma
manga pingando suco com um toque de podridão. Metade dos
personagens falam algum tipo de dialeto. A revista tem o ectoplasma
de uma antiga era de gibis de super-heróis grudado nela — todo
mundo está sempre explicando seus poderes e motivações, soltando
bordões, explodindo em exclamações.
Para estender a analogia feita à dupla Gilbert e Sullivan, o
equivalente de Claremont ao “losango mágico”185 de Gilbert, a trama
a que ele sempre apela primeiro, é o controle da mente. Charles
Xavier é capaz de alterar psiquicamente as percepções e memórias
das pessoas; já era assim desde os dias de Lee e Kirby. Mestre
Mental, Mesmero e Sauron — todos vilões controladores da mente —
apareceram nas histórias da revista dos X-Men dos anos 1960, de
maneira que estavam disponíveis para uso também. Mas eis que
surgem a Rainha Branca, que controla mentes; a Ninhada, que
possui psiques; o Empata, que manipula emoções; Selene, que
comanda o pensamento; Maligna, que domina a consciência; o
Genegenheiro, que escraviza a vontade; Lindinho, que reprograma o
“software” mental; e o Rei das Sombras, o encantador de cérebros,
entre muitos outros. Quando Drácula aparece em X-Men, Claremont
se concentra na capacidade do vampiro de fazer as vítimas se
submeterem à sua vontade. Em X-Men nº 124, Arcade, o vilão mais
ridículo da década de 1970 — ele sequestra pessoas para um parque
de diversões supostamente letal chamado Mundo Assassino —, de
alguma forma faz uma lavagem cerebral em Colossus, o integrante
russo dos X-Men, que se torna “o Proletário, herói dos trabalhadores
da União Soviética!”.
Uncanny X-Men nº 221 (setembro de 1987)
CHRIS CLAREMONT, MARC SILVESTRI, DAN GREEN, GLYNIS OLIVER
Os fãs de Uncanny X-Men também se acostumaram com os
“claremontismos”, as fórmulas homéricas com as quais o roteirista
tempera os diálogos e os recordatórios. Clemência não é pedida nem
dada. Tudo acontece inexoravelmente. A adaga psíquica de Psylocke
é “o foco total” de seus poderes. As pessoas vivenciam as coisas “de
coração aberto” ou se entregam a elas “de corpo e alma”. Qualquer
situação pode ser descrita como uma “aventura”. Uma resposta é
“tão rápida quanto dolorosa”, um destino é “tão glorioso quanto
trágico”, um transe é “tão revigorante quanto inofensivo”, um
vínculo psíquico é “tão inquebrável quanto permanente”. (Há muitos
vínculos psíquicos nas histórias de Claremont, mas eles estão mais
para um acesso ao GPS de outra pessoa do que controle mental.) Os
personagens ajustam e intensificam o que estão expressando no
meio da própria frase: “Não devemos… não ousaremos… machucá-
lo.”, “Eu não posso… eu não vou… abandoná-los.”186, “Eu devo… eu
vou… destruí-lo.”, “Quem… o quê… é você?”187.
Claremont tem uma voz narrativa inconfundível, que não é jocosa
como a de Stan Lee, poética como a de Alan Moore ou folclórica
como a de Neil Gaiman. É a de um contador de histórias que já
acumulou bastante energia: “Mas aqueles dias, aquela função,
aquele sonho se foram há muito tempo — possivelmente perdidos
para sempre, infelizmente. Ela é uma X-Man agora, com o destino
ligado a essa equipe de heróis proscritos, muitas vezes foras da lei —
sozinhos como os espartanos nas Termópilas contra o equivalente
moderno da horda persa de Xerxes, os Carrascos do Senhor Sinistro.
E agora, como naquela ocasião, o futuro do mundo se equilibra na
balança”. (Essa é apenas um dos cinco recordatórios de um único
quadro de Uncanny X-Men nº 221.)
Absorver uma página do Claremont clássico leva tanto tempo
quanto ler quatro ou cinco páginas de uma nova revista em
quadrinhos padrão. E nenhuma inversão ou ênfase melodramática
exagerada é exagero demais para ele. Três falas consecutivas de
diálogo da edição nº 135:
“Seu estratagema foi admirável, Tempestade. Mas escapar de mim
não será tão fácil.”
“Por que você está nos atacando? Tenha piedade, Jean… por quê?!”
“Não peça piedade da Fênix Negra, minha querida. Não há
nenhuma nela.”
Os leitores podem cair nesse papo ou revirar os olhos, mas é mais
divertido fazer as duas coisas. É muito fácil debochar de Claremont
citando-o fora de contexto; todos os maiores fãs dele fazem isso. É
claro que a obra dele é emocionalmente desproporcional — essa é a
ideia. (O mesmo pode ser dito de Freddie Mercury, Maria Callas ou
Otis Redding.) E, meu Deus, as histórias dele andam. Uncanny X-Men
de Claremont dispara a uma velocidade incrível, com drama que
cresce sem parar. Cada balão lotado revela alguma coisa a respeito
de quem fala e permite que os leitores levem tempo absorvendo o
que está acontecendo antes da próxima reviravolta na trama; cada
edição tem grandes espetáculos e momentos intensamente
emocionais para olhar.
A década de ouro de Uncanny X-Men voa alto e fala grosso. Os gibis
de super-heróis ainda estão lutando com seus momentos e imagens
mais potentes188. Apesar de todas as peculiaridades e tropos,
Claremont dominou o maior truque de um contador de histórias, o
imperativo de Scheherazade de fazer o público precisar descobrir o
que acontece a seguir.
Uncanny X-Men nº 149 (setembro de 1981)
CHRIS CLAREMONT, DAVE COCKRUM, JOSEF RUBINSTEIN, DON WARFIELD
Ainda assim, os outros gibis que Claremont estava escrevendo antes
de os mutantes se tornarem seu trabalho em tempo integral (Spider-
Woman, Man-Thing, Ms. Marvel e alguns outros) são divertidos aqui e
ali, enquanto Uncanny X-Men é empolgante — e não era apenas a
presença de Byrne que fez a diferença. A inovação mais inteligente
da equipe Claremont-Byrne em Uncanny X-Men foi que eles
começaram a tirar a devida vantagem da metáfora que estava
embutida na série o tempo todo: mutantes como o Outro desprezado
e oprimido. Os X-Men são “temidos e odiados pelo mundo que
juraram proteger”, o mundo do Homo sapiens. Esse ódio e medo é
direcionado a eles como grupo e os une como grupo. O que os X-
Men ou seus inimigos fazem é inseparável aos olhos do público do
que os mutantes fazem.
A genialidade específica dessa metáfora é que ela se aplica a um
monte de pessoas de uma maneira muito geral — o suficiente para
permitir a identificação dos leitores com os X-Men como um grupo
— sem se aplicar completa e diretamente a ninguém. E seu corolário
sagaz é que os opressores dos mutantes são humanos, um grupo a
que todo leitor (e criador) de gibis dos X-Men de fato pertence; a
violência contra mutantes é cometida por nós, ou pelo menos em
nosso nome.
A mutação é, na verdade, qualquer maneira pela qual alguém
possa ser diferente das pessoas no poder, ou qualquer motivo pelo
qual alguém possa ser injustamente oprimido. Os personagens que
recebem menos compaixão nas histórias de Claremont são os que
mais exploram as estruturas de poder do mundo real: os demagogos
xenófobos e os ricos corruptos. Às vezes, a metáfora mutante é mais
óbvia. Magneto é um sobrevivente cigano do Holocausto (embora
houvesse a insinuação anterior de que ele era um sobrevivente
judeu do Holocausto); o Professor X (geralmente) usa cadeira de
rodas. Mesmo assim, Uncanny X-Men resiste às tentativas de fazer
uma analogia direta do mundo real à metáfora mutante. Quem
começa a achar que Magneto e Xavier são equivalentes a Malcolm X
e Martin Luther King Jr., ou a Lee Kuan Yew e Lim Chin Siong, ou a
Betty Friedan e Valerie Solanas, não vai muito longe até perceber
que essa é uma péssima ideia… as ideologias dos mutantes fictícios
são próprias a eles e podem mudar ao longo do tempo sem
prejudicar as histórias de pessoas reais e ideologias em evolução. E
as histórias mais estúpidas dos X-Men são muitas vezes aquelas que
tentam estabelecer conexões diretas com problemas do mundo real,
como uma trama dos anos 1990 envolvendo um dublê do vírus da
AIDS que matava mutantes, o chamado Vírus Legado.
Os mutantes são mais ou menos todos os grupos marginalizados,
mas também não são nenhum deles, ou pelo menos não um grupo
que existe no mundo real. Uncanny X-Men é uma história a respeito
de raça ou talvez de classe? Metaforicamente, com certeza, mas
literalmente, não. Mutantes são Outros para seus pais e
comunidades de origem: a mutação é um tipo de diferença que uma
família biológica muitas vezes não consegue entender ou mesmo
aceitar.
A metáfora mutante se aplica de uma forma um pouco mais direta
à sexualidade — se você é um mutante, você nasceu assim, embora
sua diferença/dom possa não se revelar até a puberdade ou por essa
época —, mesmo que essa analogia ainda não esteja totalmente
correta. Os leitores LGBTQIA+ adotaram Uncanny X-Men como
poucos outros gibis, embora as tramas muitas vezes se concentrem
em romances heterossexuais. Em definitivo, a série tem mais
personagens que canonicamente não são cis-héteros do que a
maioria dos gibis de super-heróis, ainda que sejam relativamente
poucos. O Homem de Gelo se assumiu gay em 2015, depois de
décadas de insinuações intencionais e acidentais a respeito de ele
viver no armário189; a Mística, que geralmente se apresenta como
mulher, mas é uma transmorfa gênero-e-tudo-mais-fluido, se refere
à mulher cis Destino como “minha esposa”; a Karma, dos Novos
Mutantes, se identifica como lésbica na minissérie Mekanix de 2002;
já em 1995 havia a insinuação de que Shatterstar e Rictor, da série
derivada X-Force, eram um casal, embora isso não tenha sido
confirmado no papel até 2009190. Tirando isso, é tudo basicamente
insinuação e sugestão — mas essas insinuações e sugestões estão por
toda parte.
Nas décadas de 1970, 1980 e 1990, quando os heróis da cultura pop
compunham um cenário monótono de tipos ainda mais cis-
masculinos, brancos e heterossexuais de americanos saudáveis,
Uncanny X-Men declarou que havia outras possibilidades. Existem
muitos personagens mutantes que podem ser legitimamente
interpretados como queer de alguma forma, ou como
neurodivergentes, ou deficientes, ou uma série de outras coisas que
um leitor possa imaginar ou desejar que eles sejam. Claremont e
muitos dos roteiristas que o seguiram nem sempre confirmam
explicitamente essas interpretações, mas também se esforçam para
não as contradizer.
Uma carta comprida e eloquente da leitora Carolyn Amos em
Uncanny X-Men nº 149, de 1981, por exemplo, destaca Kurt Wagner, o
integrante da equipe também conhecido como Noturno, para tecer
elogios: “Posso não ter orelhas pontudas e ser azul ou ter a
capacidade de fazer ‘bamf’, mas como minhas mãos e pés são
deformados e uso um membro artificial, eu não posso passar por
‘normal’ tal como Kurt. Assim, nossas experiências de vida e
perspectivas se interligam; ele se torna tanto um espelho quanto
uma espécie de autorretrato, bem como um modelo. Como Kurt, e
às vezes com ou por meio dele, descubro que realmente é melhor
ser plenamente ‘eu’ do que ‘normal’.”
Vale a pena parar e pensar a respeito da palavra “autorretrato” de
Amos: ela não é a pessoa que está escrevendo ou desenhando
Uncanny X-Men, ela é a pessoa cuja leitura da história a transforma
no retrato de si mesma. Alguma vez Claremont, Byrne e Cockrum
apresentaram Noturno como deficiente? Não com essa palavra
exatamente, mas a maneira como retrataram o personagem é
absolutamente aberta a ser compreendida dessa maneira, visto que
o gibi dos X-Men em geral pode ser interpretado como uma história
a respeito de deficiência. (Não é uma interpretação sem problemas,
mas qual é?)
Corpos mutantes podem fazer coisas que corpos humanos não
conseguem; muitos corpos mutantes também não podem fazer
coisas que a maioria dos corpos humanos consegue. A Vampira não
pode tocar em ninguém sem machucar a pessoa e absorver suas
memórias. O Ciclope não se atreve a tirar seus óculos especiais. O
Wolverine está com dor o tempo todo por causa de seus poderes. E a
academia de Charles Xavier é nominalmente para “jovens
superdotados”, mas na prática é uma escola para jovens que
precisam de treinamento especial para controlar seus corpos ou
mentes singulares.
Uncanny X-Men é a história de uma comunidade (fictícia) com
uma identidade compartilhada, vista através de um pequeno corte
transversal do grupo que é heterogêneo sob todos os outros
aspectos. Claremont e seus colaboradores estavam à frente de seu
tempo ao fazer os mutantes de Uncanny X-Men parecerem muito
mais com o mundo real do que os gibis de super-heróis costumavam
ser, em termos de raça, gênero e nacionalidade. Reza a lenda que
sempre que um novo personagem da Marvel era proposto,
Claremont perguntava: “existe alguma razão para esse personagem
não ser uma mulher?”.
Em Uncanny X-Men e nos derivados New Mutants e Excalibur,
Claremont aos poucos foi montando um enorme elenco de
personagens nos quais os leitores poderiam, talvez, se enxergar, ou
ver possibilidades para si mesmos. A diferença de Claremont para
seus contemporâneos — e seu dom — foi que ele escreveu cada um
desses personagens como um indivíduo com uma história, objetivos
e visão de mundo distintos. Isso se tornou uma das características
definidoras dos títulos X-Men desde então. Cada um das centenas de
mutantes da Marvel que já foram identificados no papel, dos
integrantes do primeiro escalão que estrelaram suas próprias séries
(Gambit, Noturno, Tempestade) até personagens bizarros que só
apareceram uma vez (LongedosOlhos, Fiapo, Abalo), é mais do que
um uniforme e um codinome — e tem alguém que o ama além do
bom senso191. Os fãs de Uncanny X-Men, mais do que quaisquer
outros leitores de gibis de super-heróis, se envolvem com paixão no
destino e no relacionamento de seus personagens favoritos. Eles
sentem que são donos dos personagens; os leitores exigem que as
revistas, séries de TV e filmes dos X-Men respeitem os mutantes.
X-Men nº 109 (fevereiro de 1978)
CHRIS CLAREMONT, JOHN BYRNE, TERRY AUSTIN, ANDY YANCHUS
Voltando à chegada de Byrne em 1977: o trabalho que tornou
possível esse envolvimento teve início para valer nessa ocasião,
quando ele e Claremont começaram a dar atenção especial a alguns
integrantes de seu elenco. Um caso foi o de Jean Grey, a Fênix, que
agora podia fazer todo tipo de coisa acontecer mais ou menos por
meio da força de vontade. O outro foi Wolverine. Claremont
notoriamente de início não gostou do novato violento com garras de
metal e ia se livrar dele até que Byrne, em suas próprias palavras,
“bati meu pezinho e disse que não havia qualquer possibilidade de
ele descartar o único personagem canadense”. O primeiro sinal de
profundidade real para o personagem surge aqui, na segunda edição
de X-Men desenhada por Byrne: uma engenhosa cena em que
Wolverine anuncia que vai caçar, depois esclarece qual é sua ideia
de “caçar”: “Não é preciso nenhuma habilidade para matar”,
desdenha ele, “O que revela habilidade é se aproximar o suficiente de
uma corça arisca para tocá-la”.
No decorrer dos anos seguintes, Claremont e Byrne continuaram
a repartir (ou melhor, inventar) pedaços da história de Wolverine
lenta e cautelosamente, sugerindo que ele tinha um poder de cura,
que era muito mais velho do que parecia, que falava fluentemente
japonês, e assim por diante. (Seu nome civil, Logan, foi mencionado
apenas uma única vez nas primeiras quarenta edições de X-Men de
Claremont — por um duende! —, e a questão se esse era seu nome ou
sobrenome permaneceu sem resposta até 2001192.) Eles também
encontraram uma maneira de tornar sofrido seu lado violento, em
vez de simplesmente vil. Wolverine se irrita com facilidade, mas seu
relacionamento com a violência está mais para resignação do que
disposição para usá-la, insinuaram Claremont e Byrne; ele entende
que, como já está condenado, então é melhor que faça coisas
terríveis quando precisam ser feitas193.
X-Men nº 137 (setembro de 1980)
CHRIS CLAREMONT, JOHN BYRNE, TERRY AUSTIN, GLYNIS WEIN
A primeira das duas histórias mais duradouras de X-Men de
Claremont e Byrne, a tragédia acidental conhecida como A Saga da
Fênix Negra, focada diretamente em Jean Grey. Essa sequência foi
um marco quando apareceu em X-Men nº 129-137, de 1980, e através
da maneira estranha e, de vez em quando, retroativa como as
histórias de super-heróis em série são construídas, seu poder
dramático tanto aumentou quanto diminuiu na década seguinte.
A saga se desenvolve a partir de outro exemplo de controle mental
claremontiano: um mau-caráter chamado Mestre Mental manipula
Jean psiquicamente e faz com que ela acredite que está em um
cenário que mistura romance do início do século XIX com A História
de O194 e, consequentemente, ataque os X-Men. Quando Jean se
liberta da ilusão, sua fúria e confusão explodem em crueldade voraz.
Agora se chamando de Fênix Negra, ela vai embora em fúria
interestelar, devora um sol e condena os habitantes de um planeta
que o orbita. Quando os X-Men conseguem ajudá-la a recuperar a
estabilidade, já é tarde demais: há um império espacial que está
convencido de que Jean é uma ameaça para toda a existência e
pretende executá-la. Em uma batalha na Lua, os companheiros de
equipe lutam por ela (como sempre; se você se identifica como parte
de um grupo em X-Men de Claremont, o grupo vai apoiá-lo mesmo
quando você estiver errado), mas como seu lado sombrio está
emergindo novamente, Jean se mata.
Claremont e Byrne não planejaram a morte de Jean. A versão
inicial de A Saga da Fênix Negra terminava com Jean simplesmente
perdendo o poder, e Byrne já havia desenhado a maior parte da
edição seguinte até que Jim Shooter comentou que a resolução dos
dois para a história faria a personagem escapar sem punição pelo
genocídio. Nos poucos dias antes de X-Men nº 137 ser impressa,
Claremont e Byrne prepararam o novo — e muito mais convincente
— final.
Foi uma virada chocante para 1980. Alguns super-heróis
secundários e integrantes do elenco de apoio morreram em gibis
anteriores, mas nunca um personagem tão conhecido e amado
quanto a Fênix. O significado do destino de Jean Grey, na época,
pode ter sido que ela foi uma pessoa que havia sido dominada e
corrompida pelo poder e escolheu a morte para proteger seus entes
queridos; também pode ser que o fortalecimento e o crescimento
das mulheres sejam tão perigosos para a cultura patriarcal que
destruirão sistematicamente uma mulher que reivindica poder para
si mesma.
Os leitores de X-Men entraram em um luto atordoado por Jean195
— que, por mais que Claremont e Byrne tenham desenvolvido seu
caráter em torno do anseio frustrado por autodeterminação, ainda
permanecia misteriosa em alguns aspectos. A origem de Jean nunca
foi vista, por exemplo; ela simplesmente apareceu na primeira
edição como a garota.
A nova garota que se matriculou na Escola Xavier logo após o final
de A Saga da Fênix Negra (tendo aparecido pela primeira vez nessa
história) se encaixa nesse papel de maneira muito mais intencional.
Kitty Pryde tinha uma personalidade de verdade, ainda não
totalmente formada: uma menina corajosa, apaixonada por justiça e
ainda insegura a respeito da melhor forma de curar o mundo, que
era capaz de se tornar imaterial e atravessar paredes.
The Uncanny X-Men nº 141 (janeiro de 1981)
CHRIS CLAREMONT, JOHN BYRNE, TERRY AUSTIN, GLYNIS WEIN
Kitty envelheceu lentamente no decorrer de quatro décadas de
quadrinhos, mas a versão dela que vive na memória tem
eternamente treze ou quatorze anos, esperançosa e de olhos
arregalados (Byrne desenhou os olhos de Kitty bem grandes). Ela
teve algumas alcunhas oficiais de super-herói — Ninfa, depois Ariel
e então Lince Negra —, mas usa principalmente o nome de batismo.
“Bem-vinda aos X-Men, Kitty Pryde”, dizia a capa de The Uncanny X-
Men nº 139, de 1981. “Espero que sobreviva à experiência!” Ela deu
uma coisa que The Uncanny X-Men precisava há um tempo: alguém
que acabara de entender que pertencia à cultura dos mutantes (ou
seja lá o que eles pudessem representar) e um novo ponto de
identificação para os leitores.
As últimas edições de The Uncanny X-Men de Claremont e Byrne
apresentam Kitty com destaque, e Dias de um Futuro Esquecido, nas
edições nº 141 e nº 142, justapõe a nova garota com a mulher que ela
pode se tornar: “Kate Pryde”, uma adulta de aparência frágil e rosto
encovado, que anda pela paisagem em ruínas de Manhattan no
terrível futuro de 2013. A capa de Byrne e Austin para a nº 141 tem
sido objeto de inúmeras homenagens: Kate e Logan do futuro se
preparando para uma briga com alguém que está apontando um
holofote para os dois, em frente a uma parede na qual um pôster
rasgado com os rostos de seus companheiros está coberto de
adesivos com os dizeres MORTO ou CAPTURADO196.
Claremont e Byrne apresentam a premissa em apenas seis
páginas: Sentinelas robóticos gigantes vigiam as ruínas do mundo, e
os poucos mutantes que eles ainda não mataram estão em campos
de concentração. Um pequeno grupo de sobreviventes — incluindo
Magneto (que assumiu o papel de seu velho inimigo Charles Xavier,
a ponto de estar em uma cadeira de rodas) e Franklin Richards (filho
de Reed e Sue Richards do Quarteto Fantástico, fazendo a ligação
dessa visão à história mais ampla da Marvel) — elaborou um plano
para enviar a consciência de Kate de volta no tempo para o corpo de
sua versão adolescente, a fim de evitar um assassinato político que
deu início a tudo de errado. É controle da mente mais uma vez, mas,
agora, um controle da mente benigno.
O resto da história muito comprimida vai e volta entre aquele
futuro distópico, quando Sentinelas massacram os últimos X-Men
rebeldes, e os dias atuais, onde Kate-no-corpo-de-Kitty lidera os X-
Men para lutar contra uma nova versão da Irmandade de Mutantes,
que está tentando eliminar um senador americano antimutante. Ela
consegue salvar o senador, pouco antes de sua consciência retornar
ao próprio tempo. Mas o plano pelo qual todos os amigos de Kate
morreram é um fracasso: as maquinações políticas que levaram
àquele futuro ainda estão acontecendo. “Nesta edição… TODO
MUNDO MORRE!” diz a legenda na capa da nº 142, sobreposta a uma
imagem de Wolverine sendo eviscerado no ar. É uma farsa, claro,
mas também é real, não apenas um pesadelo, mas uma premonição.
Dias de um Futuro Esquecido foi um ponto de virada conceitual
para The Uncanny X-Men como uma série. Mesmo um ato individual
de heroísmo, sugerem Claremont e Byrne, não é capaz de evitar a
maré da história, e The Uncanny X-Men pós-1981 quase sempre foi,
em parte, uma história sobre a defesa contra possibilidades
distópicas. Não é mais suficiente para os X-Men lidar com ameaças
imediatas (com a frequência que elas se apresentam), ou defender
os direitos dos mutantes por si só. Eles têm uma catástrofe sistêmica
para evitar, o ponto de pesadelo ao longe a que todas as estradas
adiante podem convergir. O mundo em que os mutantes vivem está
sempre ameaçando de se tornar inabitável para eles; o que está em
jogo na luta é a sobrevivência como espécie.
Com Dias de um Futuro Esquecido encerrado, Byrne estava quase
saindo. A edição seguinte, a frenética história de terror “Demônio”,
de The Uncanny X-Men nº 143, foi sua última197. Dave Cockrum voltou
como desenhista regular por um tempo, seguido por Paul Smith,
depois John Romita Jr., e a seguir outros. Claremont continuou
avançando com todos eles, priorizando seus pontos fortes
particulares como artistas, se recusando a deixar a série cair em
uma fórmula. Ele também (temporariamente) se livrou da premissa
nominal de The Uncanny X-Men, a parte de “escola para super-
heróis” que a série havia superado: um ano após a partida de Byrne,
Claremont escreveu uma história em que a mansão/escola de
Charles Xavier é demolida por um ataque alienígena.
Bizarre Adventures nº 27 (julho de 1981)
CHRIS CLAREMONT, JOHN BUSCEMA, KLAUS JANSON
No decorrer daquele ano, a sombra de Jean Grey havia caído sobre
quase tudo em The Uncanny X-Men. Seu amante tomado pela dor,
Scott “Ciclope” Summers, havia encontrado a reificação do próprio
desespero (um demônio chamado Despero; sutileza não era
realmente a questão). Uma história em que Tempestade, sua
companheira de equipe, parecia perder o controle tinha a legenda
da capa: “Ameaça: o Lado Sombrio de Ororo!”; e Claremont
finalmente expandiu a história pessoal de Jean.
Em uma história da Fênix que apareceu na revista em preto e
branco Bizarre Adventures nº 27, Claremont explicou que as
habilidades psíquicas de Jean surgiram pela primeira vez quando ela
tinha onze anos, no momento em que sua melhor amiga, Annie, foi
atropelada. Jean vivenciou a morte de Annie através de uma ligação
mental e depois ficou sobrecarregada pelos pensamentos de todo
mundo ao redor, até que Charles Xavier a ajudou a controlar a
própria mente.
Esse episódio singular mudou o significado do destino de Jean.
Agora os leitores entendiam que ela havia sido marcada pela morte
desde o momento em que se desenvolveu plenamente, e que sua
grande batalha contínua era manter o resto do mundo fora da
cabeça. O controle do Mestre Mental sobre ela, então, representou
um fracasso fatal nessa luta. O relacionamento de Jean com o
sempre reprimido Scott Summers também pareceu diferente:
Claremont insinuou que a capacidade dele de conter as partes
obscuras da própria mente talvez fosse uma coisa que ela valorizava
no Ciclope.
The Uncanny X-Men nº 168 (abril de 1983)
CHRIS CLAREMONT, PAUL SMITH, BOB WIACEK, GLYNIS WEIN
Os personagens de Claremont lutavam com as dificuldades da vida
adulta — trauma, desejo e perda — dentro do contexto de
entretenimento espalhafatoso e violento de super-heróis, o que é um
feito impressionante. Ele também era ótimo em abordar a angústia
adolescente nesse mesmo contexto: a página de abertura
inesquecível desta edição é Kitty Pryde se virando com o dedo
apontado para o leitor e declarando: “o Professor Xavier é um
idiota!”198. Os jovens dos X-Men aprendem a encarar sua diferença
como um dom, mas também a encaram como diferença.
Ainda assim, se você é um jovem crescendo em um lugar onde as
pessoas lhe odeiam e temem por quem você é — não importa o que
seja — então The Uncanny X-Men é a história que diz que você pode ser
você mesmo, vai ser difícil, mas há esperança. Uma vez que Claremont e
Byrne começaram a brincar com a metáfora mutante, The Uncanny
X-Men se tornou para os gibis mais ou menos o que David Bowie foi
para a música: o sinal para todos os desajustados de que não
estavam sozinhos e que a situação poderia melhorar, afinal. Se
identificar (ou ser identificado) como um mutante significa que você
será odiado, mas também significa que você será amado — que terá
uma comunidade que o apoiará e o levará a sério.
The Uncanny X-Men nº 170 (junho de 1983)
CHRIS CLAREMONT, PAUL SMITH, BOB WIACEK, PAUL BECTON, JANINE
CASEY
A metáfora não funcionaria tão bem se as histórias dos X-Men
funcionassem como as histórias dos Vingadores, do Homem de
Ferro ou do Quarteto Fantástico, com antagonistas e conflitos
extraídos do fundo comum da Marvel. Porém, ainda mais do que a
maioria dos super-heróis contemporâneos, os X-Men não costumam
lutar contra “criminosos”. Eles não representam a polícia ou um
governo (na verdade, eles precisam tomar cuidado com ambos).
Tampouco fazem patrulhas em busca de ladrões, nem trocam socos
com a Gangue da Demolição ou com o Electro.
The Uncanny X-Men, tanto na época de Claremont quanto depois
dela, envolve monstros que devem ser mortos sem remorso (a
Ninhada, os N’garai); também envolve demônios literais (Mefisto,
Belasco) e a necessidade ocasional de fazer acordos com eles. Na
maioria das vezes, porém, The Uncanny X-Men envolve apenas
mutantes. Na prática, as histórias dos X-Men geralmente têm a ver
com ataques políticos à população mutante, ou alguém tentando
criar genes mutantes para propósitos sinistros, ou, como aqui,
conflitos de facções dentro da comunidade mutante.
Esta edição é um ponto de inflexão para um desses conflitos, a
longa inimizade latente entre os X-Men e os Morlocks, um grupo
mutante amargurado e literalmente subterrâneo (batizado em
homenagem à sociedade subterrânea em A Máquina do Tempo, de H.
G. Wells). É também um grande exemplo do dom de Claremont para
desenvolver personagens por meio da ação. Até este ponto,
Claremont escreveu Ororo Munroe, a integrante dos X-Men que
controla o clima conhecida como Tempestade, com profunda
aversão à violência e uma grande reverência pela vida, bem como
um amor intenso e quase maternal por Kitty Pryde. Com a vida de
Kitty em jogo, o conflito entre os X-Men e os Morlocks se resume a
uma luta de facas entre Ororo e a líder dos Morlocks, Callisto; Ororo
acerta Callisto no coração e vai embora sem dizer uma palavra. (A
seguir, ela passa as próximas edições mudando drasticamente a vida
de uma maneira que parece, ao longe, uma crise de saúde mental.)
De um modo mais amplo, porém, as divisões entre mutantes em
The Uncanny X-Men geralmente são mostradas como menos
importantes do que a solidariedade entre eles. Quase nenhum vilão
(mutante) é totalmente irredimível, não importa que suas ações no
passado tenham sido horríveis (em 1986, Magneto administra a
Escola Xavier, por exemplo). Quase nenhum herói é totalmente
incorruptível ou não tem sangue nas mãos. A tradição da Marvel de
guinadas de 180 graus começou muito antes — Mercúrio e a
Feiticeira Escarlate fizeram parte da Irmandade de Mutantes de
Magneto antes de se juntarem aos Vingadores em 1965199. Mas
virtualmente todos os adversários dos X-Men se tornaram seus
aliados, ainda que às vezes relutantes. Até Ororo e Callisto
gradualmente passaram a confiar e acreditar uma na outra200.
Wolverine nº 1 (setembro de 1982)
CHRIS CLAREMONT, FRANK MILLER, JOSEF RUBINSTEIN
Em 1982, The Uncanny X-Men começou a se multiplicar como uma
célula em mitose. O primeiro derivado foi a minissérie Wolverine
daquele mesmo ano, uma obra vigorosa, deslumbrante e violenta
que satisfez o entusiasmo de Frank Miller, o desenhista de Daredevil,
por desenhar paisagens japonesas (e ataques de ninjas). “Sou o
melhor no que faço. Mas o que eu faço não é nada agradável”,
anuncia Logan no início, como fez inúmeras vezes nas décadas
seguintes.
A chave para a maneira como Wolverine funciona nessa história,
no entanto — e para a maneira como ele torna as aventuras em que
aparece mais interessantes de forma geral — não é a destruição que
ele pode causar, mas o tormento que consegue suportar. O “fator de
cura” torna Wolverine capaz de aguentar quantidades quase
ilimitadas de maus tratos. O verdadeiro mau trato, e que o tornou um
personagem mais interessante, é o abuso psicológico que ele
também teve que absorver ao ser usado como instrumento de
violência201.
Wolverine foi um sucesso, e mais quadrinhos relacionados a The
Uncanny X-Men vieram a seguir. The New Mutants, uma série
contínua lançada por Claremont e pelo desenhista Bob McLeod no
final de 1982, se concentrava no lado emocional e nas dificuldades
de construção de identidade de um elenco adolescente. (A escola foi
reconstruída para isso.) Claremont também escreveu mais
minisséries: Storm and Illyana: Magik, em 1983; e X-Men and the
Micronauts e Kitty Pryde & Wolverine, em 1984202.
The New Mutants nº 18 (agosto de 1984)
CHRIS CLAREMONT, BILL SIENKIEWICZ, GLYNIS WEIN
Será que os mutantes de Claremont dariam conta de todos esses
gibis? Eles deram, como se viu; eles conseguiriam emplacar
qualquer coisa naquele momento. A editora da linha X-Men, Ann
Nocenti, trouxe Bill Sienkiewicz para desenhar uma fase de The New
Mutants, de 1984 a 1985, que era tão radical em termos visuais
quanto qualquer coisa que já havia aparecido em quadrinhos pulp. A
revista muitas vezes adentrava na abstração impressionista e se
mantinha ligada ao visual conhecido de The Uncanny X-Men apenas
pelas letras quadradas de Tom Orzechowski.
A primeira imagem de The New Mutants de Sienkiewicz é de uma
das jovens integrantes da equipe, Dani Moonstar, se escondendo
aterrorizada embaixo de uma colcha quadriculada, cujo desenho vai
formando aos poucos a silhueta do que ela descreve como “o Urso
Místico que assassinou meus pais”. No resto da história, Sienkiewicz
desenha o urso não como um animal realista, mas como uma massa
amorfa e aterrorizante — com garras enormes, olhos vermelhos
minúsculos, dentes afiados e quase nada além de um espaço
negativo gigantesco. Sienkiewicz de vez em quando usa uma
reprodução fotorrealista de um rosto ou uma construção
arquitetônica como base para uma página, porém mostra a ação
com mais frequência na forma de manchas, respingos ou arranhões.
Ele desenha as cenas com uma abordagem sensorial, em vez de se
valer do jeito que elas aparecem aos olhos.
Esta edição também apresenta o design de personagem mais
característico de Sienkiewicz, o alienígena mecânico Warlock, que
se parece com uma placa de circuito amassada na página em uma
forma vagamente humanoide. Sienkiewicz o descreveu como “um
personagem que não dá para desenhar de forma incorreta, um
personagem que você… não se preocupa com a anatomia ou em
reproduzir corretamente um determinado traje. Apenas emoção.
Jazz”.
The New Mutants de Claremont e Sienkiewicz foi o tipo de coisa
que a Marvel poderia ter direcionado a um público menor e
amigável à experimentação, como o trabalho anterior de
Sienkiewicz em Moon Knight [Cavaleiro da Lua] e o trabalho
subsequente em Elektra: Assassin [Elektra: Assassina], mas qualquer
gibi mutante naqueles anos era automaticamente um grande
negócio. Até imitações e paródias de The Uncanny X-Men
estouraram: o maior sucesso da DC Comics naquela época foi The
New Teen Titans [Os Novos Titãs], uma novela de superequipe muito
semelhante; e Teenage Mutant Ninja Turtles [Tartarugas Ninja], o gibi
de Kevin Eastman e Peter Laird autopublicado em 1984, era uma
paródia caseira de The Uncanny X-Men (e do Daredevil e Ronin, de
Frank Miller) que inesperadamente se transformou em um império
de mídia próprio.
The Fantastic Four nº 286 (janeiro de 1986)
JOHN BYRNE, CHRIS CLAREMONT, JACKSON GUICE, TERRY AUSTIN
O auge da fase de conquista mundial de The Uncanny X-Men foi o fim
do ano de 1985. Em um único mês, a Marvel publicou The Uncanny
X-Men no 200 com o dobro de páginas; outra história escrita por
Claremont em quatro episódios tamanho família (X-Men and Alpha
Flight em duas partes203, um X-Men Annual e uma The New Mutants
Special Edition); e, de acordo com o clima de Live Aid e “We Are the
World” daquele ano, Heroes for Hope, uma revista dos X-Men visando
arrecadar fundos para o alívio da fome na África, feita por
Claremont e um grupo de roteiristas e desenhistas famosos204. Não
pareceu muita coisa afinal de contas, assim como o quíntuplo álbum
ao vivo de Bruce Springsteen no ano seguinte pareceu razoável.
Havia outra série X a caminho, porém, que trouxe consigo mais
uma mudança retroativa na história de Jean Grey — mudança que
ocorreu apesar das objeções de Claremont, embora tenha contado
com a participação dele. A série X-Factor de 1986, inicialmente do
roteirista Bob Layton e dos desenhistas Jackson Guice e Josef
Rubinstein, foi concebida como uma jogada de marketing205
reunindo os cinco X-Men originais. Isso significava, porém, que Jean
de alguma forma tinha que estar viva e disponível para a revista. A
solução editorial da Marvel para esse problema foi declarar que a
“Jean” que morreu nunca tinha sido a verdadeira Jean para começo
de conversa; que a Fênix era uma força cósmica que substituiu e
imitou Jean — e acreditou que era Jean; e que durante todo esse
tempo a verdadeira Jean estava se curando em um casulo que a
Fênix havia criado para ela no fundo da Baía da Jamaica206.
Essa explicação não apareceu em The Uncanny X-Men, mas, sim,
em uma edição de 1986 de The Fantastic Four. O gibi foi creditado
enigmaticamente a “Você-Sabe-Quem”, e na maior parte escrito e
desenhado por John Byrne, que era o roteirista/desenhista regular
de The Fantastic Four na época, embora o flashback crucial de Jean
negociando com a Fênix na cabine do ônibus espacial sob radiação
tenha sido escrito por Claremont e desenhado por Guice — uma
emenda editorial que substituiu a versão de Byrne dessa cena.
O retorno de Jean fez o sentido da história dela mudar novamente.
A entidade que morreu na Lua em The Uncanny X-Men não era ela,
mas algum tipo de criatura espacial propensa à reencarnação. O
sacrifício de Jean veio mais cedo e é um tipo diferente de tragédia.
Tendo passado a vida adulta inteira lutando para definir a própria
identidade e destino, ela finalmente alcançou o objetivo escolhendo
morrer em nome dos companheiros de equipe — e eis que a Fênix
apareceu e disse para Jean que o que ela realmente precisava fazer
para salvá-los era entregar o controle de seu corpo e abrir mão de
sua identidade. E, com isso, o único momento breve de
autodeterminação de Jean terminou.
Ou melhor, teria terminado, se ela tivesse permanecido morta. A
negação da morte de Jean abriu um novo tipo de história para a
personagem, na qual ela consegue ter capacidade de decisão e viver.
A história revisada minou a força dramática da morte de Jean, mas o
que os leitores dos gibis mutantes desejam não é uma tragédia
duradoura, e sim uma esperança improvável207.
X-Men nº 3 (dezembro de 1991)
CHRIS CLAREMONT, JIM LEE, SCOTT WILLIAMS
O fim de um reinado da cultura pop como o de The Uncanny X-Men
não é necessariamente um mergulho do alto da glória. Ele pode ser
indicado por uma pequena queda na prosperidade comercial ou por
um astro avisando que o jogo da parada de sucessos não lhe
interessa mais. Em 1987, Claremont passou a autoria de The New
Mutants para sua ex-editora Louise Simonson. Alguns meses depois,
ele praticamente anunciou que The Uncanny X-Men estava mudando
de rumo com uma fase chamada “A Queda dos Mutantes”, na qual a
equipe finge a própria morte e se muda para a Austrália. No final de
1989, não havia mais nenhum grupo chamado X-Men. Em vez disso,
por mais de um ano, o foco de The Uncanny X-Men ficou pulando
entre personagens que já estavam na órbita da equipe.
Foi uma ideia original, bem executada, mas não agradou muito ao
público, e embora The Uncanny X-Men continuasse sendo a revista
em quadrinhos americana mais vendida do mercado, os números
estavam caindo pela primeira vez208. Em meados de 1991, Claremont
saiu da série na metade da edição no 279 por causa de uma rixa com
o editor Bob Harras, justamente quando uma segunda série X-Men
(sem adjetivo no título) estava prestes a estrear como vitrine para o
desenhista Jim Lee. Claremont escreveu os três primeiros números
da nova série como uma espécie de cláusula para receber
indenização e aproveitou a oportunidade para amarrar alguns dos
temas de sua fase de dezesseis anos, mas não muitos dos enredos
abertos.
Claremont se referiu à sua série The Uncanny X-Men de 1975 a 1991
como “um romance”, o que não parece muito certo. É uma obra
distinta, mas é mais improvisação do que uma composição. Uma das
coisas mais gratificantes a respeito de The Uncanny X-Men é que a
série não é especialmente consistente além da metáfora central e da
voz inconfundível de Claremont. Em qualquer momento, é muito
diferente do que era há dois anos.
X-Men: Grand Design nº 1 (fevereiro de 2018)
ED PISKOR
Mesmo assim, o instinto do leitor de gibis de super-heróis de fazer
tudo fluir pode ganhar forma. A minissérie X-Men: Grand Design do
quadrinista Ed Piskor é uma tentativa de condensar tudo desde o
início de X-Men até a partida de Claremont em 1991 em uma única
história, mexendo na trama e amarrando as pontas soltas. Mas a
premissa de Grand Design é totalmente contrária ao funcionamento
de The Uncanny X-Men na prática. Tudo o que Claremont e seus
colaboradores fizeram foi extemporâneo, em estilo livre, sujeito a
revisão por capricho criativo ou decreto editorial, muito mais fruto
de planos que saíram dos trilhos e foram recuperados do que de
planejamento executado como foi concebido.
Ler os títulos dos X-Men publicados nos primeiros anos após a
saída de Claremont é como ouvir vários saxofonistas tentando tocar
“Chasin’ the Trane”: se eles conseguem imitar de maneira
convincente o estilo improvisado e singular de John Coltrane ou
não, são músicos prestando homenagem, repetindo uma invenção
espontânea sem a espontaneidade que lhe deu vida. Levou uma
década inteira para os roteiristas dos títulos X-Men pós-Claremont
descobrirem como parar de recapitular o trabalho dele e começar a
reagir à obra. (Nunca foi uma opção realista desenvolver uma
abordagem para X-Men que não deva muito a Claremont, de uma
forma ou de outra.)
Durante a maior parte da década de 1990, todo mundo tentou
resolver a fórmula que fez de The Uncanny X-Men um sucesso,
resultando em muitas das piores tendências dos gibis americanos
daquela década. O caminho artístico de John Byrne a Jim Lee se
estendeu sobre o abismo de anatomias hipertrofiadas impossíveis e
cobertas por um exagero de hachuras nervosas; a predileção de
Claremont por imagens com roupas de couro e renda e temas de
controle da mente abriu as portas para uma onda de gibis hediondos
de fetiches pornográficos; a complexidade das tramas de longo
prazo de The Uncanny X-Men deu forma a incoerentes crossovers de
gibis de super-heróis publicadas em bilhões de capítulos.
Enquanto os X-Men seguiram à deriva sem Claremont, ele fez o
mesmo sem os mutantes. Por um tempo, ele escreveu Sovereign
Seven para a DC Comics — uma série mais bem descrita como uma
“fanfic romântica dos X-Men”209. E ainda assim o império continuou
em frente. O desenho animado de TV dos X-Men, que foi exibido de
1992 a 1997, criou uma nova geração de fãs e adaptou um conjunto
de histórias de Claremont, incluindo A Saga da Fênix Negra e Dias de
um Futuro Esquecido. Os gibis de mutantes também continuaram
vendendo, ainda que não tão bem quanto nos anos 1980, e em algum
momento eles se tornaram efetivamente uma linha dentro da linha
da Marvel, com uma narrativa interna que ficava cada vez mais
barroca. No início de 1995, havia oito títulos mutantes mensais.
X-Men: Alpha nº 1 (fevereiro de 1995)
SCOTT LOBDELL, MARK WAID, ROGER CRUZ, STEVE EPTING, TIM
TOWNSEND, DAN PANOSIAN
Essa expansão gerou a obra central dos gibis mutantes daquela
década, A Era do Apocalipse, uma história gigantesca a respeito de
uma mudança catastrófica na realidade criada pela tentativa bem-
intencionada de consertar a História. A mudança foi sinalizada por
um gesto metaficcional: por quatro meses, após a edição única e
introdutória X-Men: Alpha, todas as séries relacionadas aos X-Men
foram trocadas por substitutos rebatizados — Excalibur se tornou X-
Calibre, Generation X virou Generation Next, e assim por diante —
ambientados em uma linha de tempo alternativa saída de um
pesadelo.
A Era do Apocalipse é um exercício muito inteligente de construção
de mundo (e de destruição dele). A ambientação — uma versão
mutilada e manchada de sangue da paisagem conhecida da Marvel
— é fértil o suficiente para que uma série de sequências e prólogos
retornem a ela; algumas das variantes de personagens já existentes
em A Era do Apocalipse foram intrigantes o suficiente a ponto de
permanecerem por aí quando a série terminou210. A única falha
significativa é que a saga ignora quase inteiramente a metáfora
mutante. (Poderia muito bem ter sido uma história dos Vingadores,
se houvesse tantas séries dos Vingadores em 1995 quanto haveria
algumas décadas depois.) No fundo, porém, é uma versão turbinada
de uma velha história favorita: é Dias de um Futuro Esquecido
novamente, de cabeça para baixo e contada em mais de trinta e
quatro edições em vez de duas.
New X-Men nº 150 (fevereiro de 2004)
GRANT MORRISON, PHIL JIMENEZ, ANDY LANNING, SIMON COLEBY,
CHRIS CHUCKRY
Depois de todo o esforço investido para trazê-la de volta à vida em
1986, Jean não conseguiu fazer nada de especialmente interessante
até morrer de novo nesta edição de New X-Men. A morte a devolveu
à sua posição de destaque: “O fim dos Grey”, a fase brutal de The
Uncanny X-Men, de 2006; Vingadores vs. X-Men, o crossover gigantesco
de 2012; e “O Julgamento de Jean Grey”, de 2014, foram todos
motivados pelo fato de que Jean, ou pelo menos essa versão dela,
não estava mais presente. O papel de Jean na história geral dos X-
Men, bem como na história mais geral da Marvel, ao que parece, é
ser aquela que morreu. Ela influencia a narrativa muito mais pela
ausência do que pela presença.
New X-Men nº 154 (maio de 2004)
GRANT MORRISON, MARC SILVESTRI, JOE WEEMS, STEVE FIRCHOW E
OUTROS
Ecos do Amanhã, a trama que veio imediatamente a seguir à segunda
morte de Jean Grey e concluiu a fase soberba de 2001 a 2004 do
roteirista Grant Morrison em New X-Men, é uma espécie de mistura
de Dias de um Futuro Esquecido com A Saga da Fênix Negra por baixo
de uma superfície complicada e brilhante. É um sonho febril
catastrófico e supercomprimido, ambientado 150 anos no futuro,
quando humanos, mutantes e Sentinelas se unem para uma última
resistência contra um inimigo da mutação, ou do progresso, em si.
Todo mundo morre, é claro. Jean, revivida em uma explosão de
chamas incandescentes, sacrifica o que era mais significativo para
ela — a devoção de Scott Summers — a fim de garantir que essa linha
do tempo nunca aconteça. (X-Men é um gibi de romance, e às vezes
um romance trágico.) Está implícito que toda a sequência do futuro
é a visão de Jean no momento de sua morte.
Muitas das maiores e mais notáveis histórias dos títulos dos X-Men
depois de 1991 — não todas, mas muitas — assumem uma de duas
formas básicas: ou são primas de A Saga da Fênix Negra ou são
primas de Dias de um Futuro Esquecido. Dinastia M, o evento crossover
de 2005 da Marvel, é uma A Era do Apocalipse virada do avesso e se
torna Dias de um Futuro Esquecido em duas etapas: desta vez, a falsa
realidade que deve ser extirpada não é distópica, mas sim utópica
para mutantes. A sequência Complexo de Messias/Guerra Messiânica
que veio a seguir nos títulos dos X-Men é outro prato de viagem-no-
tempo-para-evitar-o-futuro-terrível. A Era de X-Man, de 2019, é A Era
do Apocalipse do avesso, de cabeça para baixo e de trás para frente:
um aglomerado de minisséries ambientadas em outra realidade
falsa, na qual todo mundo é mutante, mas amor e sexo são proibidos.
(Todo desejo, então, é queer, e é claro que isso salva a pátria.)
Várias séries dos X-Men continuam a lançar novas edições todos
os meses, algumas delas muito boas. Quem entrasse em uma
gibiteria no início de 2018 procurando por uma nova revista em
quadrinhos dos X-Men poderia escolher X-Men Blue, X-Men Gold, X-
Men Red, Astonishing X-Men, Weapon X, Rogue & Gambit, Generation X
e séries solo estrelando Homem de Gelo, Legião e (duas versões
alternativas do) Wolverine. Quase toda a velha guarda dos X-Men já
morreu por um tempo; Jean Grey concluiu sua passagem mais
recente no túmulo com A Ressurreição da Fênix: O Retorno de Jean
Grey, de 2018. Os gibis mutantes de 2018 terminaram com
Extermínio, no qual os X-Men atuais são atacados por um inimigo
que viaja no tempo vindo do futuro distópico de Kate Pryde211.
House of X nº 1 (setembro de 2019)
JONATHAN HICKMAN, PEPE LARRAZ, MARTE GRACIA
A reformulação mais recente da linha mutante começou com House
of X e Powers of X, um par de minisséries interconectadas de 2019
escritas por Jonathan Hickman e desenhadas, respectivamente, por
Pepe Larraz e R. B. Silva. Ambos integram de maneira elegante
alusões, tanto conceituais quanto visuais, à história dos X-gibis. A
imagem da capa de Larraz para House of X no 1, por exemplo, faz um
híbrido sutil das composições de capa de duas edições anteriores de
relançamento — a arte de Gil Kane para Giant-Size X-Men no 1, de
1975, e a de Frank Quitely para New X-Men no 114, de 2001 — e
mostra a equipe caminhando calmamente para a frente, parecendo
emergir por um buraco no plano da imagem.
A trama de Hickman reformula a história e o futuro dos mutantes,
mas A Saga da Fênix Negra e Dias de um Futuro Esquecido ainda são
fundamentais para a visão dele. (Assim como o híbrido anterior
dessas histórias, Ecos do Amanhã, cujas imagens são reprisadas em
Powers of X.) Há uma nova pátria mutante, uma ideia que os
personagens dos títulos dos X-Men tentaram concretizar duas vezes
antes com resultados desastrosos; desta vez, porém, essa pátria é
baseada na ideia (significativa, questionável) de que a união entre os
mutantes é mais importante do que qualquer conflito entre eles. Há
visões de um futuro horrível governado por máquinas genocidas e
um esquema desesperado para impedir que isso aconteça212. Todo
mundo morre, e todo mundo é ressuscitado. E o renascimento após
o sacrifício próprio assume um novo papel nos gibis dos X-Men: não
mais um deus ex machina usado em demasia, ele se torna a peça
central fabulosa da história dos mutantes.
Ambas as tramas principais dos títulos dos X-Men resistiram
porque são sempre-vivas, são ambientações adaptáveis para a
metáfora mutante. A Saga da Fênix Negra diz: este mundo é terrível
para o meu povo; o que aconteceria se um de nós fosse levado por
ele além dos limites? Dias de um Futuro Esquecido diz: este mundo é
terrível para o meu povo; o que teríamos que fazer, ou sacrificar,
para dar jeito nisso? Essas são perguntas que não desapareceram
nos últimos quarenta anos, e não é uma falha nos gibis dos X-Men
que eles continuem encontrando novas maneiras de fazer essas
indagações. É isso que os diferencia, e essa diferença é o seu dom.
175 O podcast Jay and Miles X-Plain the X-Men — um comentário semanal a respeito dos
gibis mutantes — se refere às revistas dos X-Men como “a maior novela de super-heróis dos
quadrinhos”, o que é uma boa maneira de descrever a série, embora a maioria das novelas
não se deem ao luxo de tratar clones, viagens interdimensionais e ressurreição como coisas
comuns. (N. A.)
176 Tanto Lee quanto Kirby caíram fora de The X-Men antes do vigésimo número. A série
vagou sem rumo pela maior parte dos anos 1960, pontuada por fases muito breves
desenhadas pelos excelentes Jim Steranko e Neal Adams. (N. A.)
177 O sarcasmo se deve à versão original em inglês, visto que Magneto batizou o grupo de
The Brotherhood of Evil Mutants, ou seja, a Irmandade de Mutantes Malignos. (N. T.)
178 Há um monte de análises muito inteligentes da história da Fênix, e da fase de
Claremont nos títulos dos X-Men em geral, no livro de Ramzi Fawaz, New Mutants:
Superheroes and the Radical Imagination of American Comics [Novos Mutantes: Super-heróis e
a Imaginação Radical dos Quadrinhos Americanos]. (N. A.)
179 Claremont e Byrne colaboraram primeiro na série de kung fu Iron Fist [Punho de
Ferro], que eles subsequentemente fundiram com a série de blaxploitation Luke Cage, Power
Man no gibi da dupla de amigos Power Man and Iron Fist. De 1977 a 1978, até que X-Men se
tornasse mensal, os dois também trabalharam na série Marvel Team-Up, que juntava o
Homem-Aranha com algum outro personagem todo mês; em meados de 1977, Austin e
Orzechowski se juntaram a eles para uma longa história do Senhor das Estrelas na revista
em preto e branco Marvel Preview. (N. A.) (Nota do tradutor: blaxploitation é uma contração
das palavras black [negro] e exploitation [exploração] e se refere a um subgênero cultural
voltado para o emergente público negro urbano, apresentando protagonistas negros desde
Luke Cage nos quadrinhos ao Shaft nos cinemas).
180 A edição termina com duas notas. “Esta revista é dedicada, com respeito e admiração, a
Dave Cockrum — que ajudou a tornar o sonho uma realidade”, diz a primeira. A segunda,
logo abaixo: “Eu não estou morto — Dave Cockrum”. (N. A.)
181 “Uncanny” se tornou oficialmente parte do título na edição 142. The Uncanny X-Men é
frequentemente usado de maneira retroativa como o título da série inteira que começou
em 1963. (N. A.) (Nota do tradutor: no Brasil, uncanny virou “fabulosos”, e assim sendo, eles
eram Os Fabulosos X-Men).
182 Desde o fim da colaboração de Claremont e Byrne, houve cerca de 500 edições de
Uncanny X-Men, outras 350 de X-Men, 150 ou mais de New Mutants e Excalibur, 270 de X-
Factor, 250 de X-Force, cerca de 100 de Astonishing X-Men e 700 ou mais outros quadrinhos
de outras equipes mutantes. E eis que há as séries solo: bem mais de 400 quadrinhos de
Wolverine, mais de 150 de Cable e uma pilha de outros. (N. A.)
183 O libretista W. S. Gilbert e o compositor Sir Arthur Sullivan, colaboradores em uma
série de óperas cômicas de enorme sucesso do século XIX, brigavam sem parar a respeito
dos enredos e do tom das obras. (N. A.)
184 O projeto mais recente de Byrne envolvendo os X-Men e publicado oficialmente até
hoje é a série X-Men: The Hidden Years, de 1999-2001, que ele escreveu e desenhou. O título é
estrelado pela equipe X-Men dos anos 1960 em uma história que se passa imediatamente
após a última de suas aparições originais e se sobrepõe à trama das últimas edições de The
Fantastic Four de Lee e Kirby. Desde 2019, Byrne escreve e desenha a série mensal X-Men:
Elsewhen, ambientada perto do final de sua participação original em Uncanny X-Men e
apresentada como fanfic “apenas por diversão” em seu site pessoal — a Marvel não está
envolvida com esse projeto. (N. A.)
185 Era um dispositivo narrativo do texto de Gilbert que alterava os personagens. (N. T.)
186 Mais um caso em que a tradução para o português mata o estilo do autor. Pelos fonemas
do original, é claramente um diálogo da Vampira, com seu ah anasalado do Sul dos EUA em
vez de I para “eu”. (N. T.)
187 Alguns claremontismos vivem mais na memória do que na página. Míssil, o mutante do
Kentucky com poder de um foguete de New Mutants [Novos Mutantes], um título derivado
de X-Men, é lembrado por afirmar constantemente que é “quase invulnerável quando estou
disparando” — uma fala que Claremont não parece ter escrito para o personagem.
Claremont de fato escreveu as seguintes falas para Míssil: “ainda bem que sou invulnerável
quando estou disparando”, “quase chego a ser invulnerável quando estou disparando”,
“meu próprio poder me torna invulnerável quando estou disparando”, “praticamente
invulnerável quando estou disparando”, e assim por diante, mas essa maneira específica de
falar não apareceu no cânone da Marvel até 2016, em uma edição escrita por Al Ewing de
New Avengers. (N. A.)
188 Variações do último quadro de X-Men nº 133, de 1980, por exemplo — Wolverine na água
do esgoto até a cintura, se levantando para se vingar — aparecem em uma série ou outra a
cada dois anos, porque ele ainda é estimulante mesmo como uma citação irônica. (N. A.)
189 Ler as aparições do Homem de Gelo nas edições de meados dos anos 1980 de The New
Defenders — nas quais ele fica chocado por ter desenvolvido uma paixão por Nuvem, uma
personagem de gênero fluido; finge ser o namorado de Warren Worthington por um breve
período; e esfrega as costas de Gárgula, seu companheiro de equipe, na banheira — é difícil
imaginá-lo tendo levado mais trinta anos de gibis para fazer as pazes com a própria
sexualidade; não que fosse possível para uma série de super-heróis tradicional ter um
protagonista abertamente gay em 1983. (N. A.)
190 O primeiro super-herói da Marvel a ser identificado diretamente como gay foi Estrela
Polar, um mutante apresentado em X-Men em 1979, mas visto principalmente na série
canadense Alpha Flight. Depois de uma década de insinuações muito óbvias, ele finalmente
declarou “eu sou gay” em Alpha Flight nº 106, de 1992; ele se casou com o namorado em
Astonishing X-Men nº 51, de 2012, outra estreia na história da Marvel. (N. A.)
191 A mutante extremamente secundária que eu amo demais da conta é a Não Garota,
também conhecida como Martha Johansson, um cérebro flutuante dentro de uma jarra de
vidro que só consegue se comunicar por telepatia. Ela apareceu em várias edições de New
X-Men e Spider-Man and the X-Men e até teve sua própria história solo uma vez, em Nation X
nº 2, de 2010. (N. A.)
192 Uma pergunta capciosa, como se revelou mais tarde: “Logan” é seu apelido. (N. A.)
193 A série Wolverine and the X-Men, de 2011 a 2014, reviveu mais uma vez o conceito de
“escola de super-heróis” e deu um ponto final elegante, ainda que não permanente, para a
narrativa de quarenta anos de Logan: depois de ter aparecido pela primeira vez como o
assassino desesperado e isolado que apela para uma escola como a última e improvável
esperança de redenção, ele acaba administrando uma escola própria. (Essa série foi
concluída ao lado da minissérie A Morte de Wolverine, de 2014, que foi inevitavelmente
seguida pela minissérie O Retorno de Wolverine alguns anos depois.) (N. A.)
194 Imagens inspiradas em devassidão e fetiche sempre aparecem nos gibis de Claremont,
geralmente no contexto de um calvário pelo qual um personagem tem que passar para ser
fortalecido. Se alguém tem uma coleira de escravo em X-Men, como acontece com
frequência surpreendente, sua mente, seu corpo ou ambos estão sendo controlados por
outra pessoa — ou já foram, e agora o personagem a mantêm como símbolo de sua
autonomia. Roupas íntimas de couro tendem a acompanhar a coleira, talvez por uma
questão de ornamentação. (N. A.)
195 Uma carta do leitor Kurt Busiek em Uncanny X-Men nº 143, de 1981, reclama: “Eu vi a
revista degenerar, vi os X-Men se tornarem uma perversão do que eram antes, vi vocês
distorcerem e desfigurarem personagens que virtualmente criaram… Não posso mais
justificar a compra de X-Men, nem mesmo para manter minha coleção completa. Cada
edição é dolorosa demais”. Dois anos depois, Busiek estava escrevendo Power Man and Iron
Fist para a Marvel; ele acabou roteirizando algumas histórias muito boas dos X-Men, a
maioria ambientada no passado ou em universos alternativos. (N. A.)
196 Essa imagem também estabelece a relação entre a dupla que se desenvolveria ao longo
dos próximos anos de The Uncanny X-Men: Logan, o velho solitário, raivoso e violento, se vê
forçado a se tornar o mentor de uma adolescente que não tem nada em comum com ele, a
não ser o desejo de tornar o mundo menos terrível, e ele acaba revelando ter dom para isso.
(N. A.)
197 Quando saiu a notícia em 2018 de que havia um filme baseado em Kitty Pryde sendo
desenvolvido, os entusiastas dos X-Men entenderam o codinome “143” da produção como
um sinal de que as pessoas por trás dela sabiam do que estavam falando. (N. A.)
198 Já foi traduzido mais corretamente como “babaca” (em uma chamada dentro da edição
anterior de Superaventuras Marvel, onde era publicado The Uncanny X-Men pela Editora
Abril) e como “idiota” (na edição em si de Superaventuras Marvel nº 72), para suavizar o
xingamento. (N. T.)
199 Veja o capítulo 17. (N. A.)
200 Ou algo mais: em X-Treme X-Men nº 39, escrito em 2004 por Claremont, elas estão juntas
em uma banheira de hidromassagem. (Sim, claro que Callisto sobreviveu a ser esfaqueada
no coração.) (N. A.)
201 Assim como acontece com todos os outros grandes personagens da Marvel, Wolverine
tem sido submetido a inúmeros duplos, equivalentes sombrios de si mesmo e versões e-se-
mudássemos-uma-coisa. A série mais interessante relacionada aos X-Men de meados dos
anos 2010 foi All-New Wolverine, escrita por Tom Taylor, publicada entre 2015 e 2018,
enquanto Logan foi dado como morto. Na revista, seu papel e traje são assumidos por
Laura Kinney, o clone adolescente dele de outro gênero (que havia aparecido inicialmente
em 2003, como X-23, não nos quadrinhos, mas no desenho animado X-Men: Evolution).
Laura foi treinada desde o nascimento para ser uma máquina de matar subserviente, mas
se rebelou contra o controle de seus criadores; All-New Wolverine aborda a luta dela para
manter a autonomia e criar sua própria família. As maneiras pelas quais as mulheres
jovens lutam pelo autocontrole e precisam passar por abusos sem fim são muito diferentes
da maneira como essa luta é travada por homens como Logan, e a história de Taylor se
concentra nessa diferença. (N. A.)
202 Das três, apenas Kitty Pryde & Wolverine foi lançada no Brasil. (N. T.)
203 Veja o capítulo 12. (N. A.)
204 Eles incluíam Stan Lee, Stephen King, Alan Moore, George R. R. Martin e muitos outros
nomes de destaque. Como Christopher Priest (então editor da Marvel) comentou, eles não
incluíam, no entanto, nenhum colaborador afro-americano. (N. A.)
205 Não que haja algo intrinsecamente errado com gibis concebidos como jogada de
marketing. Na verdade, todos eles meio que são. (N. A.)
206 O cenário “Fênix não era realmente Jean” foi concebido por ninguém menos que Kurt
Busiek — veja a nota 195 — alguns anos antes. (N. A.)
207 Além disso, ora, vamos: se existe um personagem que consegue voltar dos mortos
várias vezes é aquele cuja identidade é literalmente “Fênix”. (N. A.)
208 Foi aí que eu inicialmente desci do ônibus também, depois de ser um daqueles leitores
da terceira quinta-feira do mês por quase dez anos. (N. A.)
209 Claremont retornou a X-Men e séries relacionadas de vez em quando, a partir de 1998,
com resultados bons e ruins. Na primeira década dos anos 2000, ele geralmente escrevia
pelo menos uma série para seus fãs radicais — a maioria delas mais ou menos isolada do
resto da continuidade mutante. X-Treme X-Men (de 2001 a 2004) se concentrava em um
pequeno grupo de personagens; X-Men: O Fim (de 2004 a 2006) e GeNext (de 2008 a 2009)
ocorreram em um futuro alternativo; as duas “temporadas” de X-Men Forever (de 2009 a
2011) foram supostamente a visão de Claremont para onde ele poderia ter levado a série
original após a saída de 1991, se tivesse realizado seus desejos. Em 2020, Claremont
permanece sob contrato exclusivo com a Marvel para escrever gibis nos Estados Unidos,
mas tirando uma passagem de 2014 em Nightcrawler, ele só tem sido chamado para
escrever histórias mutantes isoladas, uma ou duas vezes por ano, desde a conclusão de X-
Men Forever 2, em 2011 — o que o coloca na estranha situação de ser pago para não escrever
revistas em quadrinhos. (N. A.)
210 Um deles, batizado de forma confusa como X-Man, ganhou uma série própria que
durou setenta e cinco edições. (N. A.)
211 O slogan do anúncio fazia referência à chamada da capa da primeira aparição de Kitty
como uma X-Man: “Ninguém sobrevive à experiência”. (N. A.)
212 No início da série Marauders, de 2019, que veio depois de House of X e Powers of X, a ex-
Kitty Pryde começa a se chamar Kate, o nome usado por ela mesma em Dias de um Futuro
Esquecido. (N. A.)
11.
INTERLÚDIO: DIAMANTES FEITOS
DE SOM
A
série atual da Marvel que vem sendo publicada há mais tempo,
com um título ou outro, é The Mighty Thor. Essa é uma versão
mentirosa dos fatos — The Mighty Thor começou a existir como
antologia de terror chamada Journey into Mystery em 1952, e o
próprio Thor não apareceu nela por dez anos —, mas as mentiras são
uma parte importante do que a série se tornou.
O mistério também é uma parte importante — não no sentido de
um quebra-cabeça com solução, mas no sentido teológico mais
antigo de ritual secreto e revelação religiosa. A publicação que deu
nome à Marvel Comics rapidamente mudou o próprio nome para
Marvel Mystery Comics221, e não é completamente errado dizer que
todos os gibis da Marvel são gibis de mistério — que há um
conhecimento oculto a ser encontrado neles, para aqueles que
dedicam tempo para examinar.
Esse é exatamente o caso de Journey into Mystery e seus
descendentes. São títulos diferentes de seus pares e se escondem à
vista de todos. Os gibis envolvendo Thor e Loki parecem e se
comportam como quadrinhos de super-heróis, mas não são
exatamente isso. São uma expansão de um conjunto de histórias que
foram contadas por mais de um milênio, a obra da mitologia
nórdica. Os títulos se referem a pessoas apenas pela tangente; de
modo geral, se referem a deuses e como eles caem, por meio de
sacrifício e apocalipse. Eles nos dão trovões e nos dão mentiras.
Journey into Mystery nº 83 (agosto de 1962)
STAN LEE, LARRY LIEBER, JACK KIRBY, JOE SINNOTT
A história de Thor, o Deus do Trovão com seu martelo, chega até nós
através das Eddas: a Edda em Prosa de Snorri Sturluson, uma visão
geral dos mitos nórdicos do século XIII, e a Edda Poética, uma
coleção de poemas da tradição oral islandesa, escrita por volta de
1300, mas provavelmente muitíssimo mais velha. (Testemunhos de
Thor remontam a um tempo muito anterior.) Em 1962, quando a
Marvel começou a converter seus gibis de antologia de ficção
científica e fantasia em histórias de super-heróis, Thor — ou melhor,
Jack Kirby, Stan Lee e a versão modificada dele por Larry Lieber222
— assumiu a primeira parte de Journey into Mystery.
No lugar do deus barbudo e mortífero descrito nas Eddas, o Thor
da Marvel foi adaptado do jeito que deu ao modelo contemporâneo
de super-heróis. Ele tinha cabelos louros e uma identidade secreta
humana como um médico americano, Donald Blake, capaz de bater
a bengala no chão para se transformar em Thor, e a bengala em si
virava seu martelo, Mjolnir.
Sua primeira aparição, nesta edição, é ainda mais diluída do que
essa descrição sugere. É uma história de super-herói enxertada em
uma história de invasão alienígena: um bando de “Homens de Pedra
de Saturno” invade a Terra e manda um robô contra Thor, até que a
habilidade dele com o martelo os convence a ir embora. A única
parte que permaneceu importante para The Mighty Thor como série
é a inscrição no Mjolnir: “Quem quer que empunhe este martelo, se
for digne, possuirá o poder de Thor”223.
Parte da repercussão do personagem é a formalidade arcaica da
linguagem, que está ausente nesta primeira história, mas se tornaria
um dos elementos característicos da série. O outro aspecto da
inscrição que repercutiu nas histórias de Thor desde então é a ideia
de “ser digno”. Outros personagens da Marvel têm poderes impostos
a eles ou criam os próprios poderes; nos gibis de Thor, a questão de
quem merece o poder é quase sempre discutível. Se a pessoa não
merece segurar o Mjolnir, nem consegue levantá-lo.
Journey into Mystery nº 85 (outubro de 1962)
STAN LEE, LARRY LIEBER, JACK KIRBY, DICK AYERS
A maior parte do primeiro ano e meio das histórias de Thor é um
pigarro: aventuras de super-heróis que não empolgam, escritas por
Larry Lieber ou Robert Bernstein e, apenas de vez em quando,
desenhadas por Kirby. O terceiro episódio, porém, apresenta outro
personagem do mito nórdico que se tornou um dos maiores pilares
da história da Marvel: o meio-irmão de Thor, Loki.
Desse ponto em diante, Journey into Mystery, em suas várias
encarnações, é realmente composto pelas histórias entrelaçadas de
dois personagens: Thor e Loki, o batedor violento e o falador
esperto, o criador do trovão e o contador de mentiras, o restaurador
da ordem e o instigador do caos. Esses dois fios narrativos não são
igualmente equilibrados. Thor é mais barulhento, é claro, e muito
mais confiável, e ele domina sobremaneira a história na maior parte
do tempo. Mas Loki é persistente e inteligente, e pode aparecer de
várias formas. Ele é um golpista e gosta de golpes elaborados.
Desde o início, o Loki dos quadrinhos é razoavelmente parecido
com a versão retratada nas Eddas: um semivilão, cruel e vingativo às
vezes, porém mais interessado em ver do que ele consegue se safar
do que em causar danos reais. Identificado como “o deus da trapaça”
nesta primeira aparição, Loki sabe fazer magia, o que leva a uma
oscilação contínua em relação aos limites de suas capacidades.
(Aqui, os poderes de Loki não funcionam quando ele está molhado.)
O design de Jack Kirby para o personagem é parte guerreiro, parte
bobo da corte: um macacão verde com acessórios amarelos,
incluindo uma gola dentada, uma espécie de capacete em forma de
dragão com chifres longos e uma armadura que sugere escamas de
serpente.
The Avengers nº 1 (setembro de 1963)
STAN LEE, JACK KIRBY, DICK AYERS
Nas primeiras décadas da Marvel, Loki apareceu quase que
exclusivamente nas histórias de Thor, mas uma das únicas exceções
foi bem importante. “Os Vingadores… Bah! Destruirei a todos!” Loki
declara na capa de The Avengers no 1224. Sabemos que é ele, embora
só possamos ver a lateral da cabeça e um pouco de ombro e braço,
por trás: Kirby era um designer tão talentoso que seus personagens
são identificáveis a partir de pequenos detalhes. No final da história,
Loki não consegue escapar de um tanque revestido de chumbo,
porque… Não há nenhuma razão real, na verdade, mas tudo bem.
Journey into Mystery nº 97 (outubro de 1963)
STAN LEE, JACK KIRBY, DON HECK, G. BELL [GEORGE ROUSSOS]
Um mês após a estreia de The Avengers, Kirby e Lee apresentaram
uma nova história nas últimas páginas de Journey into Mystery.
“Contos de Asgard” (“Lar dos Poderosos Deuses Nórdicos”) foi
adaptado muito mais diretamente do que “Thor” da mitologia
nórdica, pelo menos no início. Livre dos limites do realismo
(relativo), Kirby se soltou, com designs fantásticos e apenas três ou
quatro quadros enormes na maioria das páginas. Nos quatro anos
seguintes, “Contos de Asgard” ocupou as últimas cinco páginas de
cada edição. Surtur225, o demônio atarracado e fumegante, faz sua
primeira aparição aqui, em um único quadro que tem sido a base de
sua aparência nos quadrinhos desde então.
A história do Thor em si ainda era bem fraquinha àquela altura:
“Eu reivindico toda a superfície seca da Terra para o povo da lava!”,
declara o vilão desta edição, enquanto o alter ego de Thor, Donald
Blake, passa páginas intermináveis sentindo saudade de sua
enfermeira, Jane Foster.
Journey into Mystery nº 104 (maio de 1964)
STAN LEE, JACK KIRBY, CHIC STONE, DON HECK
Alguns meses depois que Kirby se tornou o artista em tempo
integral nas histórias do Thor, ele e Lee parecem ter descoberto que
“Contos de Asgard” era muito mais empolgante que as demais
histórias, que eles poderiam estender o tom presente nele para o
resto da revista Journey into Mystery. Com esta edição, o título da
série encolheu para letras pequenas na parte superior da capa, e
THOR apareceu em letras enormes e com bordas irregulares
embaixo dele. Thor começou a passar mais tempo no reino dos
deuses nórdicos de Asgard do que em Nova York. Balder, o deus
guerreiro fadado à ruína, que já havia sido visto brevemente em
Journey into Mystery, se tornou integrante recorrente do elenco. E,
em geral, Lee e Kirby reduziram a coisa de ter heróis e vilões em
roupas íntimas longas e colantes (e a presença tediosa de Donald
Blake) em favor do espetáculo mitológico e quase mitológico.
Isso deu a ambos licença para elevar o tom quase o tempo todo.
Das duas séries que Kirby mais desenhou na década de 1960, The
Fantastic Four é mais rica — os personagens têm mais motivações e
sentimentos de uma forma que Thor, Odin e Loki não têm —, mas
Journey into Mystery/Thor é maior e mais operístico. Lee aproveitou a
oportunidade para cantar as próprias árias: “Nada que você já viu
antes pode se igualar ao espetáculo de tirar o fôlego de ‘GIGANTES
ANDAM NA TERRA!’”, declara a capa desta edição. A chamada para a
primeira página da história aumenta ligeiramente as apostas:
“Possivelmente um dos dez maiores épicos de todos os tempos que
você nunca esquecerá!!”.
The Mighty Thor nº 126 (março de 1966)
STAN LEE, JACK KIRBY, VINCE COLLETTA
E como não havia mais como fingir que Journey into Mystery era
outra coisa senão a revista em quadrinhos de Thor, a publicação
então mudou o título nesta edição. Na capa, Thor está lutando com
um herói de outra mitologia: o semideus grego Hércules226, que
tinha peso cultural muito maior do que Thor naquela época. (Houve
uma série de filmes B italianos baseados em Hércules entre 1957 e
1965, e outros filmes de espada e sandália227 foram exibidos na TV
americana como The Sons of Hercules228.)
Lee, a essa altura, havia desenvolvido padrões de diálogos
“arcaicos”, com um falso ar shakespeariano, para os deuses — para
ser exato, não historicamente ou geograficamente precisos, mas eles
passam o recado. Aqui está um pouco das provocações no meio da
luta entre Hércules e Thor: “Pelas patas de bode de Pan!! O que é
preciso para derrotar o filho de Odin?!”, “Um braço mais forte! Um
coração mais vigoroso! Uma alma mais nobre! E nada disso
Hércules possui, seu bufão tagarela, fanfarrão e bravateador!”.
Enquanto isso, “Contos de Asgard” havia entrado um pouco no
território das Eddas. A essa altura, era uma aventura em série com
destaque para Fandral, Hogun e Volstagg, também conhecidos como
os Três Guerreiros, todos recentemente inventados para os
quadrinhos. Não está claro de quem foi a ideia de reformular Sir
John Falstaff, de Shakespeare, com uma pitada de Porthos, dos Três
Mosqueteiros, como um deus nórdico — tanto Lee quanto Kirby
reivindicaram essa honra229 —, mas Volstagg, o Volumoso, é, de
qualquer forma, um magnífico personagem coadjuvante, um
guerreiro enorme com discurso ousado, apesar da covardia
descarada, e que consegue sair vitorioso por puro acidente.
No final deste episódio, Odin, o rei dos deuses, convoca o elenco
de volta para Asgard a fim de explicar o que a chamada da próxima
edição indica como “o significado de Ragnarok!” O significado dessa
palavra na história da Marvel é praticamente o mesmo que o
significado de “Ragnarök” em “Völuspá”, o primeiro poema da Edda
Poética230 — um cataclismo em que os deuses morrem, seguido por
um renascimento —, e a história que Odin relata no episódio a seguir
é claramente derivada desse texto.
O que Ragnarok significa para a história da Marvel, porém, é que a
história de Thor (ao contrário da do Homem-Aranha, do Homem de
Ferro ou do Quarteto Fantástico) tem um final específico: ele um dia
lutará contra Jormungand, a Serpente de Midgard, dará nove passos
para trás e cairá. A versão inicial de Odin dessa profecia em “Contos
de Asgard” não entra nos detalhes da morte de Thor, mas indica que
o pai de Jormungand, Loki, será responsável pelo Ragnarok. A
morte está vindo.
The Mighty Thor nº 190 (julho de 1971)
STAN LEE, JOHN BUSCEMA, JOE SINNOTT
A morte, aliás, se tornou personagem recorrente em The Mighty
Thor, na pessoa da deusa Hela. (Na mitologia nórdica, ela é Hel;
tanto nas fontes tradicionais quanto nos gibis da Marvel, “Hel”
também é o nome de seu reino.) Hela fez apenas algumas breves
aparições em The Mighty Thor da era Kirby, cujos altos riscos foram
geralmente apresentados de uma forma que sugeria que, mesmo
quando o universo estava ameaçado, nenhum personagem com o
qual nos importávamos corria perigo. Mas depois que Kirby deixou a
série em meados de 1970, ela apareceu com frequência cada vez
maior e, nos últimos anos, raramente ficou mais do que alguns
meses sem dar as caras.
Essa sequência — uma das últimas histórias de The Mighty Thor de
Stan Lee — trata da morte como uma necessidade e o sacrifício
como virtude, e ambos seriam temas da série e de seus derivados
para sempre. Thor se oferece para se sacrificar a fim de poupar um
grupo de mortais de um encontro fatal com Hela. Quando Odin
mata a deusa para resgatar seu filho, o Deus do Trovão prevê as
consequências desastrosas do fim de todas as mortes e convence
Odin a ressuscitá-la. À medida que Thor envelhece e vira uma figura
horrível e encarquilhada, sua amante, Sif, surge e oferece a vida em
seu lugar; Hela, comovida, restaura Thor ao normal. (Enquanto isso,
como de costume, Loki está sorrateiramente tentando assumir
Asgard.)
O texto de Lee estava passando por uma fase estranha neste
momento: por algum motivo, ele omitiu a pontuação do final da
maioria dos balões de diálogos por três meses em meados de 1971.
Ele também estava claramente se divertindo com o diálogo dos
deuses e, de vez em quando, vestia a carapuça de um pentâmetro
iâmbico231. Um breve diálogo:
“Karnilla! Deves lançar outro feitiço
Quiçá se Odin vir o que vimos…”
“Tarde demais, infelizmente! O deus do trovão está condenado”
“Digo-te não! O poderoso Thor viverá!”
The Mighty Thor nº 337 (novembro de 1983)
WALTER SIMONSON, GEORGE ROUSSOS
Assim como aconteceu com The Fantastic Four, The Mighty Thor
passou mais ou menos uma década após as saídas de Kirby e Lee
seguindo cautelosamente o modelo da obra da dupla. A maior
mudança que a Marvel ousou fazer foi o sacrifício de um dos olhos
de Odin em troca de conhecimento (para ficar mais adequado ao
mito).
Então, com esta edição, Walter Simonson assumiu a série como
roteirista e desenhista — e ele não foi sutil em romper com o que era
consagrado. Na capa, em vez do próprio Thor, Simonson desenhou
uma criação sua, Bill Raio Beta, um alienígena com cabeça que
lembra o crânio de um cavalo, vestindo uma versão modificada do
traje de Thor e destruindo o logotipo da revista, que havia
permanecido inalterado por quase vinte anos.
A fase de quatro anos de Simonson em The Mighty Thor ainda é a
era da série lembrada com mais carinho. Ele vinha preparando o
projeto há algum tempo, tendo concebido a trama básica de seu
primeiro ano na revista como estudante universitário em 1967.
Naquele ano, Simonson também teve uma carta publicada em Tales
of Suspense no 93, reclamando da arte de Gene Colan na história do
Homem de Ferro por ser “um pouco estilizada demais”.
Ele evidentemente superou a objeção a desenhos estilizados em
algum momento. Quando The Mighty Thor no 337 apareceu,
Simonson já desenhava quadrinhos profissionalmente há dez
anos232 e foi desenvolvendo, aos poucos, um estilo visual insistente e
original baseado em ângulos definidos, precisão geométrica e o peso
do espaço negativo. Qualquer curva em seus desenhos que não fosse
um círculo feito por compasso parecia ter sido dobrada por força
bruta. Isso se estendia até sua assinatura, uma espécie de silhueta
de brontossauro com o primeiro “O” em “Simonson” — outro círculo
perfeito — como a corcova dele233.
As revistas em quadrinhos tradicionais americanas nunca tiveram
muitos roteiristas que também eram desenhistas — a exigência de
produzir cerca de vinte páginas por mês geralmente leva à divisão
do trabalho — mas na época desta edição, Simonson dividia um
estúdio de arte com dois outros criadores que também roteirizavam
e desenhavam: Frank Miller, que recentemente havia concluído uma
fase de enorme sucesso em Daredevil, e Howard Chaykin, cujo
American Flagg! (publicado pela independente First Comics) havia
estreado no mês anterior. Todos os três se esforçaram para
estabelecer uma aparência e sensação distintas para suas obras, e a
The Mighty Thor de Simonson destaca o estilo e as imagens mais do
que qualquer outra coisa que a Marvel estava publicando na época.
A edição começa com o tipo de floreio que sugere que há um
único criador no controle tanto da linguagem quanto das imagens:
um crepitar de luz e um estrondo de trovão, ambos desconhecidos.
No lugar do martelo de Thor, vemos os alicates de um ferreiro
cósmico nas sombras, “para além dos campos que conhecemos”234.
Durante um prólogo de três páginas, a figura pega “um lingote
derretido de material estelar” e bate nele na bigorna, com um efeito
sonoro — “DOOM!” — que se estende por toda a largura da página,
em uma tipologia que lembra letras celtas mais do que qualquer
coisa que normalmente aparecia nos gibis americanos.
Como quase todas as edições de The Mighty Thor de Simonson,
esse efeito sonoro foi feito por John Workman, responsável também
por gestos visuais propositais fora do comum: a maioria dos balões
eram extensões das bordas dos quadros em vez de se cruzarem com
elas, por exemplo. Por muito tempo, The Mighty Thor parecia apenas
mais um gibi típico de Jack Kirby. Agora, a revista tinha uma estética
própria.
The Mighty Thor nº 338 (dezembro de 1983)
WALTER SIMONSON, GEORGE ROUSSOS
Simonson repudiou a tradição de The Mighty Thor de seguir os
passos de Kirby, mas não foi uma rejeição ao trabalho de Jack. Sua
fase incluiu duas saudações amorosas e diretas ao mestre, esta aqui,
quando Simonson começou na série, e a outra pouco antes de
terminar. A capa desta edição mostra Thor e Bill Raio Beta
disputando o Mjolnir e trocando golpes; a pose deles é quase a
mesma em que Kirby desenhou Thor e Hércules na capa de The
Mighty Thor no 126.
Há um novo logotipo The Mighty Thor acima da cabeça dos
personagens — desenhado por Alex Jay, com mais influência de
manuscritos celtas — substituindo o que Bill havia destruído no mês
anterior. Estamos fazendo as coisas de maneira muito diferente agora,
indica a capa, mas isso não significa que não nos importamos com a
nossa origem.
The Mighty Thor nº 352 (fevereiro de 1985)
WALTER SIMONSON, CHRISTIE SCHEELE
A mudança mais bem-vinda em The Mighty Thor foi que
absolutamente tudo que Simonson estava fazendo parecia
proposital. Nos primeiros vinte anos da revista, The Mighty Thor
tinha sido principalmente improvisado de edição a edição. Kirby e
Lee, em especial, trabalhavam sem preparação, a ponto de a Marvel
passar a enviar fotocópias de cada edição a Kirby para que ele
tivesse alguma referência do que havia desenhado no mês anterior.
Simonson, por outro lado, planejou com muita antecedência. A
batida de “DOOM!” de seu primeiro episódio se repete em todas as
edições por um ano e acaba sendo revelada como Surtur, o demônio
do fogo, forjando a espada chamada Crepúsculo. Aquele ano é um
crescendo gradual e constante em direção a essa sequência
frenética, na qual Surtur tenta realizar o Ragnarok (literalmente o
“crepúsculo dos deuses”).
Outra parte desse crescendo envolve a abertura de uma caixa
mágica chamada Caixa dos Invernos Antigos, que causa uma
nevasca mundial no meio do verão do hemisfério norte. Simonson
avisou outros criadores com antecedência suficiente para que
também nevasse inesperadamente em edições simultâneas de
Avengers, Amazing Spider-Man, ROM, West Coast Avengers, Peter
Parker, Uncanny X-Men e na minissérie Kitty Pryde & Wolverine. A
neve não afetou muito nenhuma dessas histórias, mas com certeza
deu a impressão de que o que estava acontecendo em The Mighty
Thor era muito importante.
E Simonson também descobriu como usar os elementos
cotidianos de The Mighty Thor para tornar, pela comparação, os
mitológicos ainda mais dramáticos, sem deixar que tornassem a
história arrastada. (Ele havia tirado o tedioso Donald Blake da série
quase que imediatamente.)235 A trama central desta edição joga dois
exércitos sobrenaturais um contra o outro, mas estabelece o
confronto em meio à arquitetura específica de Lower Manhattan236,
um truque que vários filmes da Marvel repetiriam mais tarde.
Os personagens de The Mighty Thor de Simonson passam muito
tempo explicando pacientemente o enredo — um estilo de escrita
em quadrinhos que já estava começando a parecer um pouco datado
em meados dos anos 1980. Ainda assim, a linguagem de Simonson é
muitas vezes adorável, especialmente quando ele acelera em direção
aos arcaísmos bombásticos e exagerados dos melhores momentos
de Stan Lee. No clímax desta edição, Surtur tem um momento Rei-
Lear-na-tempestade: “Venham, ó invernos antigos, frios como a
morte! Venha, gelo! Venha, granizo! Venha, saraiva! Venham, suas
geadas frias e geladas de branco! Antes que os nove mundos
existissem! Antes que Odin existisse! Havia somente as terras do fogo
e do gelo! Desde os primórdios do mundo, eu chamo o antigo sopro
do inverno, irmão do fogo! Atenda ao meu chamado e venha!”.
The Mighty Thor nº 356 (junho de 1985)
BOB HARRAS, JACKSON GUICE, BOB LAYTON, CHRISTIE SCHEELE
A Marvel ainda não tinha o hábito de colocar os nomes dos
criadores na capa das revistas — isso só aconteceria por volta de
1997 —, mas não era segredo que Simonson era o principal motivo
de venda de The Mighty Thor. Ainda assim, ele não conseguia
produzir uma edição completa todo mês, e enquanto a distribuição
de banca ainda fosse parte significativa do modelo de negócios da
Marvel, pular um mês de publicação era inadmissível. Foram apenas
duas edições tapa-buraco feitas por outros criadores durante a fase
de quatro anos de Simonson em The Mighty Thor; na capa desta aqui,
Hércules empurra Thor para o lado e diz: “Afasta-te, deus do
trovão… Walt Simonson está de férias e tu também estás!”.
The Mighty Thor nº 362 (dezembro de 1985)
WALTER SIMONSON, MAX SCHEELE
A segunda metade da fase de The Mighty Thor de Simonson diz
respeito à reação do herói à morte e à deterioração. Perto do
começo, Thor lidera uma invasão a Hel para resgatar algumas almas
mortais237, e seu confronto com Hela o deixa com o rosto todo
ferido, que não cicatriza. No decorrer das próximas vinte edições, os
ferimentos se acumulam e ele passa por dores cada vez mais
intensas — embora Simonson compense esse drama com algumas
ideias bizarras e astutas, como uma sequência em que Thor foi
transformado em sapo.
Esta edição, porém, é puro trovão heavy metal. Para a batalha em
Hel, Simonson enfia sua técnica visual na abstração (pelos padrões
da narrativa representacional) e desenha tudo como montagens de
fragmentos e grandes trechos de espaço aniquilado. Uma cena, em
especial, sempre aparece quando os fãs mais velhos relembram, em
papos regados a álcool, como The Mighty Thor era demais em
meados dos anos 1980: o sacrifício de Skurge, o Executor (um dos
primeiros antagonistas de Thor em Journey into Mystery), que fica
para trás em Hel para conter os exércitos dos mortos enquanto Thor
e seus companheiros fogem. A assinatura de Simonson aparece na
página final dessa sequência, como de vez em quando acontecia nas
páginas que ele considerava especialmente fantásticas. (Uma versão
da mesma cena aparece no filme Thor: Ragnarok.)
O herói criativo que não recebe a devida glória desta edição — e da
maior parte de The Mighty Thor de Simonson — é a colorista Christie
“Max” Scheele238. Ela reproduz a última resistência de Skurge em
apenas cinco tons: um amarelo pálido, dois laranjas e dois
vermelhos intensos. Essas cores aparecem em todo o resto da
edição, junto de alguns verdes marinhos bem claros que são o tema
de Scheele para Hel, ainda mais pálidos do que os tons verdes do
traje de Hela. A parte vermelha e laranja da paleta desaparece nas
últimas páginas, à medida que as forças de Thor emergem em
Asgard, mas os viajantes ainda são marcados pelas cores mais fracas
de Hel.
X-Men/Alpha Flight nº 1 (dezembro de 1985)
CHRIS CLAREMONT, PAUL SMITH, BOB WIACEK, GLYNIS OLIVER
No mesmo momento do auge de The Mighty Thor de Simonson, a
parte de Loki da história dos dois começa a sair da sombra do irmão.
Neste encontro em duas edições entre os X-Men e a Tropa Alfa, a
equipe canadense de super-heróis, Loki afirma que está tentando se
redimir; desde X-Men/Alpha Flight, esse tem sido ostensivamente o
objetivo do personagem na maioria das vezes. (O que ele realmente
quer, no entanto, não é a redenção em si, mas os frutos da redenção
— ser perdoado por seus atos anteriores.)
Mas quem poderia perdoar Loki por ser Loki? As entidades a
quem ele pleiteia perdão são vistas pela primeira vez aqui e,
posteriormente, apareceram em alguns momentos cruciais de sua
história (e da de Thor). Elas são identificadas apenas como Aqueles
Que Se Sentam Acima Nas Sombras — os próprios deuses dos deuses
— e representadas como contornos brancos em um fundo preto,
uma inversão da “realidade” dos quadrinhos.
Loki não consegue impressionar as entidades, é claro, mas ao
falhar, ele se liberta um pouco. Até esse ponto, sua presença na
história da Marvel se resumia, quase que inteiramente, às páginas
das revistas do Thor, e seu destino estava ligado ao do Deus do
Trovão. A partir de agora, ele podia ir a qualquer lugar e fazer o que
quisesse.
The Mighty Thor nº 380 (junho de 1987)
WALTER SIMONSON, SAL BUSCEMA, MAX SCHEELE
A maior parte das quinze edições finais de The Mighty Thor escritas
por Simonson, bem como Balder the Brave, a minissérie derivada de
1985, foram desenhadas por Sal Buscema, mas Simonson voltou
para o lápis de mais uma edição — não a última, The Mighty Thor nº
382, mas este número singular. É o episódio mais barulhento de
todos, uma luta de longa duração entre Thor (agora amaldiçoado por
Hela com ossos frágeis e feridas que não cicatrizam, mas incapaz de
morrer) e a Serpente de Midgard, Jormungand. Há um pouco mais
de mistério revelado a respeito dessa versão da Serpente: ela
também é o dragão Fin Fang Foom, uma cocriação de Jack Kirby que
apareceu em Strange Tales no 89, de 1961, pouco antes da estreia do
Quarteto Fantástico.
The Mighty Thor no 380 é quase inteiramente composta por
imagens de página inteira239. Os recordatórios de Simonson são
compostos como os versos aliterativos240 de “Völuspá”, e ecoam o
refrão de “Vituð ér enn eða hvat?” (cuja tradução aproximada seria:
“Você quer saber mais ou não?”) Os efeitos sonoros da história,
desenhados por John Workman, são tão estrondosos que muitas
vezes se estendem para uma segunda linha:
BRACAKKTH
WOOOMMM!
Na segunda capa de The Mighty Thor, Simonson nos deu a
primeira das homenagens visuais diretas de sua história a Kirby, e
agora ele nos dá a outra, como um sinal de que está quase
terminando. Uma página é um close do rosto de Thor que é puro
Kirby, desde o “ponto de vista” até uma faixa irregular que
representa um reflexo de luz no metal. Imediatamente depois, como
em “Völuspá”, Thor se sacrifica: mata a serpente, dá nove passos
para trás e cai. O clímax de The Mighty Thor de Simonson é o fim
profetizado do próprio Thor: “silencie seu martelo; a canção de
Mjolnir terminou/esta história está contada. Você quer saber mais?”.
Claro que há mais para saber — ser incapaz de morrer faz parte da
maldição de Thor. A fase de Simonson tem mais duas edições de
desfechos. Assim como ela fez, mais ou menos, na conclusão da fase
de Stan Lee, Hela restaura tanto o corpo de Thor quanto sua
mortalidade: “O toque da morte será o sopro da vida para ti… assim
como ‘Hela’ se tornará ‘cura’ e todas as tuas feridas serão curadas!”
(Essa não é a última vez que um anagrama do nome dela foi
significativo.)241 E Thor lida com as mentiras mais recentes de Loki
de uma maneira caracteristicamente direta, quebrando o braço do
irmão com o Mjolnir.
The Mighty Thor nº 85/587242 (dezembro de 2004)
MICHAEL AVON OEMING, DANIEL BERMAN, ANDREA DIVITO, LAURA
VILLARI
Depois que a história de Simonson terminou, The Mighty Thor errou
o alvo por um longo tempo. Retornar ao modelo de Lee e Kirby teria
sido uma solução retrógrada irremediável (não que alguns dos
roteiristas e desenhistas da série não tivessem tentado), mas imitar o
domínio de Simonson em relação à forma e ao mito era impossível.
Nenhuma outra abordagem nova era evidente. Loki saltou
brevemente para o centro das atenções com Atos de Vingança, o
crossover de 1989, no qual ele apareceu em uma dezena de séries
diferentes, manipulando vilões para lutar contra os oponentes uns
dos outros. Um pouco depois, Thor o matou, mas a morte não
durou.
Após a edição de número 502, de 1996, a série parou por quase
dois anos. O relançamento de The Mighty Thor durou de 1998 a 2004
e terminou com uma história bizarra e audaciosa em seis edições na
qual Thor provoca, de propósito, (o que ele acredita ser) um
Ragnarok definitivo, cega a si mesmo, decapita Loki e põe fim a
Asgard. A maior parte das duas últimas edições, no 84 e no 85, são
referências à era Simonson que havia terminado há dezessete anos
— com aparições de Surtur, Hela e Bill Raio Beta. Mas há outra trama
que é atraída e, aparentemente, encerrada: Aqueles Que Se Sentam
Acima Nas Sombras, os deuses dos deuses, que não eram vistos
desde 1987. Thor os repudia e a seguir retira o poder deles ao
destruir toda a cosmologia nórdica, o que ele chama de seu “último
ato de sacrifício”.
Boa tentativa. Após outra pausa de dois anos, um novo The Mighty
Thor no 1 apareceu em 2007, e todo o elenco conhecido também foi
prontamente ressuscitado. Àquela atura, o filme Thor, de 2011,
estava em desenvolvimento; não existe Valhalla para uma
propriedade intelectual cinematográfica ativa.
Journey into Mystery nº 622 (junho de 2011)
KIERON GILLEN, DOUG BRAITHWAITE, ULISES ARREOLA
Loki retornou logo depois de Thor, em uma forma mais variada —
primeiro como mulher, depois no corpo mais conhecido, e a seguir
(depois de outra “morte”) como um menino jovem e travesso. O
novo Kid Loki foi a estrela da renovação de Journey into Mystery,
lançado como um derivado subsidiário de A Essência do Medo, o
crossover focado em Thor que coincidiu com o lançamento do filme
do personagem, no qual Tom Hiddleston interpretou um Loki
(adulto) memorável.
A Essência do Medo foi uma saga confusa e barulhenta, envolvendo
uma “Serpente” que era outra variação de Jormungand. Esta
encarnação de Journey into Mystery, por outro lado, é uma delícia. É
a história dos bastidores durante todo o melodrama de A Essência do
Medo e as consequências dessas maquinações. O jovem Loki insiste
veementemente que ele não é nada parecido com o velho e perverso
Loki; sua primeira fala é: “por que as pessoas sempre pensam que
estou mentindo?”. Essa é, obviamente, a exata natureza do
personagem. Seu papel em Journey into Mystery é ser um trapaceiro
e deus das mentiras, o que também significa que ele é um deus das
ficções243. E seu conselheiro e espírito familiar244 é a pega-rabilonga
Ikol, cuja voz reconhecidamente indigna de confiança pertence à
antiga identidade de Loki245.
Esta não foi exatamente a primeira vez que Loki encabeçou uma
revista em quadrinhos própria — houve uma minissérie Loki em
2004 e outra em 2010. Ainda assim, algumas décadas atrás seria
impensável apresentá-lo como qualquer tipo de protagonista digno
de compreensão. As versões de “bem” e “mal” dos gibis de super-
heróis, a essa altura, pareciam muito mais complicadas do que
antes.
Journey into Mystery nº 629 (outubro de 2011)
KIERON GILLEN, WHILCE PORTACIO, DOUG BRAITHWAITE, ALLEN
MARTINEZ E OUTROS
No episódio final de A Essência do Medo, publicado no mesmo dia
desta edição, Thor (mais uma vez) mata a Serpente e (mais uma vez)
dá nove passos para trás e cai. (Ninguém sequer fingiu que ele não
seria revivido quase imediatamente.) Enquanto isso, aqui, Loki
garante a vitória de Thor literalmente reescrevendo o passado da
Serpente em um livro, com uma caneta mágica criada a partir da
sombra da espada de Surtur, Crepúsculo — que é,
metonimicamente, a sombra dos gibis de The Mighty Thor em que
Walter Simonson passou um ano forjando aquela espada. “Não
podemos mudar a história”, observa a narração de Loki. “Mas os
deuses não têm história. Eles têm histórias. E elas são algo que um
escritor sempre tem a prerrogativa de distorcer.”
Journey into Mystery nº 645 (dezembro de 2012)
KIERON GILLEN, STEPHANIE HANS
Gillen se vale dessa prerrogativa aqui, no final de sua Journey into
Mystery. O mistério deste período de Journey é se Loki é capaz de
mudar: se ele pode ou não legitimamente transformar suas mentiras
e travessuras em uma força para o bem e se redimir pelo que fez no
passado. A resposta — e o sacrifício exigido de Loki — não é simples,
mas esmagador. Foi cuidadosamente armado desde o início da
história de Gillen e, como último sal na ferida metaficcional, implica
os leitores de Journey into Mystery. O Velho Loki insiste que vai
mudar. “Claro que não vai,” diz o jovem Loki. “Eles não vão permitir
que você mude.” Sua única opção para evitar que o inferno trague
tudo é “engolir a mentira”: devorar Ikol, a pega, e deixar o velho Loki
consumi-lo por dentro e assumir a forma dele. A imagem final aqui é
a de Loki olhando diretamente para nós, murmurando “malditos
sejam todos vocês”.
Loki: Agent of Asgard nº 1 (abril de 2014)
AL EWING, LEE GARBETT, NOLAN WOODARD
Kid Loki — ou melhor, o velho Loki na forma dele — saltou direto
para outro projeto escrito por Gillen, Young Avengers, uma série
inocente e divertida que durou um ano sobre uma equipe de super-
heróis adolescentes. Então, magicamente remodelado como um
jovem elegante, Loki reapareceu em uma série própria. O título foi
inspirado na série Nick Fury, Agent of S.H.I.E.L.D. dos anos 1960, e
sua pretensa premissa também era ser um gibi de espionagem —
que Loki estaria ganhando o perdão que desejava realizando missões
secretas para as Mães Supremas que haviam substituído Odin como
governantes de Asgard.
Isso, claro, era mentira. Loki não é agente de ninguém, exceto de
Loki; as “missões” rapidamente deixam de ser o cerne da questão; e
o perdão, nesta história, não é tão simples quanto limpar uma ficha
criminal. Todos os aspectos de Loki: Agent of Asgard tratam de
mentiras, golpes e ficções — especialmente ficções. É óbvio que não
é o que pretende ser.
Thor nº 1 (outubro de 2014)
JASON AARON, RUSSELL DAUTERMAN, MATTHEW WILSON
De 2012 a 2019, Jason Aaron escreveu o que era efetivamente uma
única e gigantesca série de Thor, espalhada por nove revistas e
minisséries: Thor: O Deus do Trovão, Pecado Original, Thor (2014),
Thors, The Mighty Thor, The Unworthy Thor, Thor (2018), Guerra dos
Reinos e King Thor. O divisor de águas da história de Aaron ocorre
imediatamente antes desta edição aqui, em Pecado Original, quando
Nick Fury — o comando que virou agente secreto e ronda a Marvel
desde os anos 1960, e que agora é onisciente e vive na Lua —
sussurra um segredo para Thor que faz com que ele se torne
“indigno” e, portanto, incapaz de segurar o Mjolnir. No final desta
edição, o martelo é apanhado por uma mulher inicialmente não
identificada, que aparece imediatamente em uma versão da
armadura conhecida e é chamada de Thor pelos próximos anos de
quadrinhos. (“Thor”, ao que parece, é tanto uma função quanto um
nome; na minissérie subsequente Thors, “Thor” é um título de
trabalho coletivo.)
O novo Thor é revelado como Jane Foster, a enfermeira do doutor
Blake desde os primeiros quadrinhos do personagem246, agora
também médica. O Thor anterior começa a se chamar Odinson. O
segredo que o tornou indigno (que surge muito mais tarde) é a
revelação de que Gorr, um “carniceiro dos deuses” que apareceu no
início da fase de Aaron, estava correto ao afirmar que os mortais
estariam melhor sem os deuses, que são “todos indignos”. A solução
do mistério é um antimistério, uma afirmação de que a jornada não
tem sentido.
É um truísmo da ficção que os personagens são mais interessantes
quando há algo que eles querem, e Odinson prontamente fica muito
mais interessante neste ponto da história: ele foi exilado de sua
identidade, de seu valor e de seu nome, e quer recuperá-los
desesperadamente. Ao mesmo tempo, Loki está lutando para
alcançar exatamente o oposto — não ser mais a entidade que sempre
foi.
Loki: Agent of Asgard nº 6 (novembro de 2014)
AL EWING, JORGE COELHO, LEE LOUGHRIDGE
Existe uma concepção popular entre leitores irritáveis de gibis
convencionais de que os crossovers destroem o fluxo das séries
regulares, forçando as revistas a interromperem sua progressão
natural e se adequar a qualquer grande evento daquele mês. Loki:
Agent of Asgard apresenta um contra-argumento incontestável. Após
as primeiras edições, o título fica quase inteiramente amarrado a
crossovers — Pecado Original, depois Vingadores & X-Men: Eixo, a
seguir Últimos Dias e Guerras Secretas — que, em vez de atrapalhar a
história de Loki, a levam exatamente para onde deveria ir.
Um de seus momentos-chave, de fato, está nesta edição derivada
de Vingadores & X-Men: Eixo, na qual o Doutor Destino dá uma lição
a Loki a respeito de seu papel (durante um combate corpo a corpo,
visto que ainda existem convenções de gênero a serem cumpridas
aqui): “A verdadeira magia é a imposição de uma narrativa à
realidade. É contar uma história para o mundo… e fazer o mundo
acreditar […] Ser uma criatura de magia… ser um deus… é ser uma
criatura da história”.
Loki: Agent of Asgard nº 17 (outubro de 2015)
AL EWING, LEE GARBETT, ANTONIO FABELA
A última fase de Loki: Agent of Asgard ocorre quando o universo está
terminando e depois do fim247. Ela acelera as transformações dos
anos anteriores — Loki muda de forma e gênero algumas vezes,
enquanto a questão se esse trapaceiro pode mudar por dentro
permanece sem resposta. A fase também traz a maioria dos sinais
de sempre dos Ragnaroks da Marvel: o toque da Gjallarhorn248, o
retorno de Jormungand, a narração nos ritmos de “Völuspá” e assim
por diante. (Sem Thor, no entanto. Ela está ocupada em outro lugar,
assim como Odinson.)
Depois, há essa edição final, uma obra de metaficção que ocorre
depois que tudo termina, no espaço em branco fora da existência. A
capa da revista mostra Loki olhando fixamente para o leitor, sentado
de pernas cruzadas em cima de exemplares das dezesseis edições
anteriores.
O que o Deus da Mentira salvou do vazio são as histórias dos
deuses, e os últimos inimigos que chegaram para devorar essas
histórias são Aqueles Que Se Sentam Acima Nas Sombras. Loki narra
para eles a história de um contador de histórias, milhares de anos
atrás, inventando uma mentira magnífica a respeito da origem do
trovão. Ele sugere que “algumas histórias são… tão boas que são
mágicas. Tão boas que ganham vida”. Loki dá a entender aos
próprios deuses que eles mesmos são apenas histórias. “Vocês não
querem saber como a história termina?”, pergunta Loki enquanto
eles se enfurecem, e eis que ecoa o refrão de “Völuspá” mais uma
vez: “Você quer saber mais?”.
Aqueles Que Se Sentam Acima Nas Sombras vão embora, e Loki
faz as pazes com as possibilidades dolorosas da própria narrativa.
Ele enfia a mão no elegante paletó verde — a última atualização do
traje que ele usa desde que o recebeu de Jack Kirby — e desenha
uma porta no nada, à la Harold and the Purple Crayon249. Parece que
as letras que Loki está escrevendo acima formam SAÍDA, mas não: é
A SEGUIR250, e ele abre a porta para o futuro de sua história,
segurando o cetro que carrega em Vingadores, o filme.
221 Veja o Capítulo 5. (N. A.)
222 A primeira vez que um gibi desenhado por Kirby mencionou Thor havia sido há mais
de vinte anos: em Captain America Comics nº 1, de 1941, a história “Furacão”, de Kirby e Joe
Simon, começa com o recordatório “Furacão, filho de Thor, Deus do Trovão, e o último
descendente dos antigos imortais gregos, retorna à Terra para lutar contra seu inimigo
ancestral, Plutão, o diabo”. Como disse Linus Van Pelt, da Turma do Charlie Brown, “as
implicações teológicas por si só são impressionantes”. (N. A.)
223 Aparições recentes do martelo tornam a inscrição um pouco mais igualitária: “se for
digne”. (N. A.) (Nota do tradutor: o inglês contemporâneo usa a terceira pessoa do plural,
they, como forma de contemplar todos os sexos. Em português, usamos o pronome neutro
“elu” e a desinência “e” para o gênero neutro — digno, digna, digne.)
224 Muito mais tarde, em Avengers nº 300, ele se culpa por reunir os Vingadores
inicialmente, o que é uma maneira indireta de se dar crédito pelo feito; ele efetivamente
cumpre o mesmo objetivo no filme Os Vingadores, de 2012. (N. A.)
225 Ele é Surtr nos Eddas, mas a versão de personagens mitológicos da Marvel geralmente
tinha uma ortografia inglesa mais padronizada; veja também Balder e Baldr. (N. A.)
226 Os comentários de Tácito, historiador romano do século I, a respeito da adoração de
Hércules pelos povos germânicos às vezes são considerados referências a Thor. (N. A.)
227 Termo para um subgênero do cinema de aventura que, ao contrário do “capa e espada”
(filmes como Os Três Mosqueteiros, Scaramouche, O Gavião e a Flecha), se passavam na
antiguidade (Sansão e Dalila, Ben-Hur, Spartacus, Gladiador). (N. T.)
228 Hércules tem sido um personagem recorrente da Marvel desde então: um fortão jovial
que gosta de se vangloriar e às vezes bebe para esquecer memórias dolorosas. A ortografia
de seu nome está alinhada com a presença em outros lugares da cultura pop, e é por isso
que ele não é Héracles. (N. A.)
229 Lee, conversando com Roy Thomas a respeito dos Três Guerreiros em 1998: “Eu
inventei esses personagens. Lembro-me especificamente que criei porque queria um cara
do tipo Falstaff, um sujeito como o Errol Flynn, e depois queria um cara como o Charles
Bronson, que era terrível e sombrio, cheio de angústia. Aqueles três foram meus”. Kirby,
entrevistado por Gary Groth em 1989: “Eu até coloquei os Três Mosqueteiros. Eu os
desenhei inspirado em figuras shakespearianas. Combinei figuras de Shakespeare com os
Três Mosqueteiros e criei esses três amigos que complementavam Thor e seus
companheiros”. (N. A.)
230 O exemplar mais antigo existente de “Völuspá” data do século XIII, mas provavelmente
foi composta a algumas centenas de anos antes. (N. A.)
231 Forma poética bastante usada na língua inglesa, é formada por cinco pés métricos e
cada pé tem uma dupla de sílabas, nesta ordem: forte (tônica) e fraca (átona). A tradução
traz o sentido do original e não sua forma. O texto original:
“Karnilla! Thou must cast another spell
Mayhap if Odin sees what we have seen— ”
“Too late, alas! The thunder god is doomed”
“I say thee nay! The mighty Thor shall live!”. (N. E.)
232 Simonson também desenhou, mas não escreveu, um ano de Thor de 1977 a 1978; essa
fase tem uma aparência muito mais tímida, é uma imitação de segunda linha da
abordagem de John Buscema para os personagens desenhados por Kirby. (N. A.)
233 Um dos quadros mais amados da fase de Simonson — Odin, Thor e Loki se preparando
para atacar em The Mighty Thor nº 353, respectivamente gritando “por Asgard!”, “por
Midgard!” e “por mim!” — inclui uma pilha de escombros com uma silhueta mais ou menos
parecida com sua assinatura. (N. A.)
234 Essa frase é um refrão contido em The King of Elfland’s Daughter, romance de fantasia
de Lord Dunsany, publicado em 1924. (N. A.)
235 A trama restante a respeito da carreira médica de Blake foi despachada em uma
história curta incluída em The Mighty Thor nº 354: “Contos de Midgard, Lar da Fabulosa
Raça Humana!”. (N. A.)
236 O que seria a zona sul da ilha de Manhattan. (N. T.)
237 A semelhança desta premissa com a Descida de Cristo ao Inferno não é comentada por
ninguém na história. Sistema teológico totalmente diferente. (N. A.)
238 Republicações recentes de The Mighty Thor de Simonson — e muitas das versões digitais
de suas edições — foram recoloridas por outro artista com técnicas modernas, exageradas e
cheias de efeitos. Se você puder ler as versões coloridas de Scheele, leia. (N. A.)
239 O roteirista/desenhista Dan Jurgens pegou emprestado esse truque para a morte do
Super-Homem em Superman nº 75, cinco anos depois. (N. A.)
240 Na prosódia o verso aliterativo é uma forma de verso que usa a aliteração como o
principal recurso ornamental para ajudar a indicar a estrutura métrica subjacente, em
oposição a outros recursos, como a rima. O épico do inglês antigo Beowulf bem como a
maioria das outras poesias do inglês antigo, a Edda e muitos poemas do Inglês Médio, como
Sir Gawain e o Cavaleiro Verde, todos usam versos aliterativos. (N. T.)
241 Só funciona em inglês, naturalmente, pois “cura” é heal, anagrama de Hela. (N. T.)
242 A Marvel passou a zerar a numeração das revistas com certa frequência visando
facilitar a entrada de novos leitores, mas também adotou o costume de colocar a
numeração antiga para honrar o “legado” do título e facilitar a vida de antigos leitores e
colecionadores. (N. T.)
243 O enfoque da série nos poderes narrativos específicos — sem falar nas lutas de poder no
submundo — significa que Journey into Mystery opera no mesmo território de Sandman,
série muito popular de 1989 a 1996 que Neil Gaiman escreveu na DC Comics. Especialmente
nas primeiras edições do roteirista Kieron Gillen, esse período de Journey into Mystery é
muitas vezes uma homenagem direta — ou uma resposta — à Sandman de Gaiman. (N. A.)
244 Segundo a superstição medieval, espíritos familiares são espíritos na forma de animais
que servem como companheiros para bruxas e feiticeiros. (N. T.)
245 Ikol não é o único alter ego cuja identidade é um anagrama em Journey into Mystery; um
pouco mais tarde, a serva de Hela e meio que outra identidade sua, Leah, se junta ao
elenco. (N. A.)
246 Para Jane Foster, ser uma heroína significa sacrificar o corpo aos poucos, como
aconteceu com o Thor anterior no último ano da história de Walter Simonson: ela está
passando por um tratamento contra o câncer, e a transformação em Thor faz com que a
quimioterapia falhe. (N. A.)
247 Veja o capítulo 18 para as circunstâncias que envolvem isso. (N. A.)
248 Na mitologia nórdica, Gjallarhorn é a trompa tocada por Heimdall para sinalizar a
chegada dos inimigos e da Serpente de Midgard, Jormungand. (N. T.)
249 Livro infantil escrito em 1955 por Crockett Johnson, a respeito de um menino curioso
de quatro anos que possuiu um giz de cera mágico capaz de dar vida ao que ele desenha.
(N. T.)
250 A confusão inicial funciona em inglês, visto que exit (saída) e next (a seguir)
compartilham as letras e e x. (N. T.)
13.
INTERLÚDIO: ANTES DO UNIVERSO MARVEL
CINEMATOGRÁFICO
D
ezembro de 1962: Em The Fantastic Four no 9, a equipe está
com problemas financeiros e recebe a oferta de um milhão de
dólares para aparecer em um filme. É uma armadilha,
obviamente — os “Estúdios SM” são dirigidos por Namor, o
Príncipe Submarino —, mas eles acabam fazendo o filme, e “o país
inteiro aclama um novo sucesso do cinema”.
Julho de 1985: Marvel Age Annual no 1252 relata o status dos filmes da
Marvel em desenvolvimento: “DOUTOR ESTRANHO está atualmente
sendo produzido pelas mesmas pessoas que fizeram o sucesso Um
Espírito Baixou em Mim, estrelado por Lily Tomlin e Steve Martin.
Também está em andamento um filme do CAPITÃO AMÉRICA, um
filme do HOMEM-ARANHA, um filme dos X-MEN e até mesmo um
estrelado por HOWARD, O PATO. (Você consegue imaginar Howard,
o Pato, em live-action?) E por último, mas certamente não menos
importante, um longa-metragem live-action do QUARTETO
FANTÁSTICO está sendo feito pelos mesmos produtores do
aclamado filme A História Sem Fim”.
A
lguns dos principais personagens da história da Marvel —
Homem-Aranha, Hulk, Quarteto Fantástico — surgiram, mais
ou menos, completamente formados nas primeiras aparições,
com os temas e peculiaridades que os tornam especiais já
estabelecidos. O Pantera Negra, não. A premissa do personagem,
como agora o conhecemos (especialmente à luz do filme de sucesso
de 2018), parece direta: ele é T’Challa, o rei de Wakanda, a
indomável tecno-utopia africana, estrategista brilhante com
habilidades sobre-humanas e conexão com um deus pantera. Muito
dessa premissa já estava lá quando Jack Kirby e Stan Lee criaram o
personagem em 1966, e ele foi apresentado como alguém
importante desde o início. Mas quase todo o aparato em torno do
Pantera Negra — o elenco de apoio e a história de sua nação, que
agora estão profundamente integrados a esse conceito central —
surgiu por meio de um acréscimo lento, à medida que dezenas de
criadores refinaram o trabalho uns dos outros no decorrer de mais
de cinquenta anos.
Em especial, um roteirista é responsável por muito do que hoje
chamamos de “Pantera Negra”: a fase de 1998 a 2003 escrita por
Christopher Priest cristalizou tudo o que o personagem havia sido
até aquele momento e definiu o que ele se tornou desde então. O
tom da fase de Priest foi muito diferente de qualquer outra história
do Pantera Negra que veio antes ou depois — é basicamente uma
comédia política —, mas a visão central de Priest foi de que T’Challa
não é realmente um super-herói no sentido comum258. Mais do que
qualquer outra coisa, ele é um monarca. (Mesmo o traje de alta
tecnologia é, com efeito, um símbolo de Estado.) T’Challa obtém
sucesso quando age no interesse de Wakanda e falha quando age por
qualquer outro motivo, mesmo quando agir de acordo com a moral
vai contra os interesses de sua nação. Quando as pessoas esperam
que o Pantera Negra seja algo que ele não é, como um super-herói,
tudo bem para ele, porque essa percepção se torna outra arma que
T’Challa pode usar como monarca.
Mas — como costuma observar o narrador de Black Panther de
Priest — estou me adiantando.
The Fantastic Four nº 52 (julho de 1966)
STAN LEE, JACK KIRBY, JOE SINNOTT
A imagem do Pantera Negra domina a capa e a primeira página da
edição em que ele estreou, criada por Stan Lee e Jack Kirby no auge
dos poderes da dupla259. Eles estavam apresentando o primeiro
super-herói negro dos quadrinhos mainstream americanos e
queriam que todos soubessem disso.
Kirby e Lee passaram um tempo calculando quem seria o
personagem. Há um antigo desenho conceitual de Kirby de uma
versão dele chamada Coal Tiger260, que tem um traje com esplendor
solar, um grande “T” no cinto e nenhuma máscara. Assim que foi
rebatizado como Pantera Negra, Kirby o desenhou em uniforme
preto e cinza com capuz de meio rosto — é assim que ele aparece em
um rascunho inicial da capa desta edição. Quando The Fantastic Four
no 52 surgiu, o traje era inteiramente preto e a máscara cobria todo o
corpo do personagem. Será que alguém percebeu que ficaria mais
legal assim? Será que alguém achou que ter um personagem
visivelmente de pele marrom em uma capa seria um problema no
Sul do país e decidiu não arriscar261? Existem muitas teorias e
nenhuma prova.
Também vale a pena notar que, embora o Pantera Negra tenha
sido o primeiro super-herói negro da Marvel, ele não foi o primeiro
super-herói afro-americano (foi o Falcão, que apareceu três anos
depois). O Pantera Negra é apresentado como sendo da realeza
africana: não como o rei de Wakanda, mas “chefe herdeiro dos
wakandas… e talvez o homem mais rico do mundo!”. (A insinuação é
que “os wakandas” são um povo ou uma tribo em vez de uma nação
física.)
E há a questão do nome. Do ponto de vista do século XXI, “Pantera
Negra” parece uma referência óbvia à política revolucionária negra
americana de meados dos anos 1960. Mas o sincronismo desta
edição complica mais a situação. Huey Newton e Bobby Seale
fundaram o Partido dos Panteras Negras para Autodefesa em
outubro de 1966, cerca de seis meses depois que The Fantastic Four
no 52 foi às bancas; eles tiraram o nome do grupo da pantera no
logotipo da Lowndes County Freedom Organization, o projeto de
registro eleitoral do ativista Stokely Carmichael, no Alabama. Há
alguma chance de que os nomes do grupo político e do personagem
não sejam uma coincidência, mas provavelmente foram262.
Em 1966, havia uma demanda mais ruidosa por representação
negra na cultura pop americana do que nunca e, ao mesmo tempo,
uma resistência ainda mais ruidosa a ela. Apenas uma das vinte
maiores músicas na lista de cem sucessos da Billboard na semana
em que o Pantera Negra surgiu era de um artista afro-americano (os
Isley Brothers, cujo “This Old Heart of Mine” era o número 15); Os
Destemidos, a primeira série de TV com um astro negro263, terminou
sua temporada inicial no final daquele mês. E o imposto
comunitário264 do Mississippi, o último a ser cobrado nos Estados
Unidos, foi derrubado por uma decisão do tribunal de apelação em 8
de abril de 1966, quatro dias antes de The Fantastic Four no 52 ser
colocado à venda.
A história em si é problemática de maneiras fascinantes, uma
mistura de tropos racistas e inversões engenhosas deles. Ela começa
com o Quarteto Fantástico voando em uma aeronave de alta
tecnologia, um presente de “um chefe africano, chamado… o
Pantera Negra!”. Reed Richards se pergunta em voz alta de onde o
chefe poderia ter obtido o veículo; a resposta é que seu “pequeno
reino” é um prodígio de alta tecnologia. A primeira imagem que os
leitores têm dos “wakandas” é, de certa forma, uma aglomeração de
clichês do “interior mais denso e escuro da África” e “a África é um
país”, com lanceiros, danças cerimoniais e ocidentalismos
embaraçosos. A terra que o Pantera Negra governa também é, desde
o início, apresentada como a sociedade tecnologicamente mais
avançada do mundo: rica ao extremo, luxuosamente equipada, e
orgulhosa, com boa razão, dos aspectos tradicionais de sua cultura,
incluindo a monarquia.
The Fantastic Four nº 53 (agosto de 1966)
STAN LEE, JACK KIRBY, JOE SINNOTT
Com a ambientação devidamente apresentada, o Pantera Negra
explica sua origem, que é muito simples: ele é rei porque o pai era
rei, e seus poderes vêm de “um segredo… passado de chefe para
chefe”. (Direito divino, basicamente.) Ele também fala um pouco da
história de Wakanda, que é tão cheia de clichês que o Coisa não para
de apontá-los: “Olha, garoto… por que você não poupa seu tempo?
Eu sei o resto de cor! Tudo estava ótimo até a chegada de caçadores
de marfim gananciosos!”.
No lugar dos caçadores de marfim, o intruso na história do
Pantera é o Garra Sônica (visto nos filmes da Marvel como Ulysses
Klaue265), cujo capacete de safári e equipe totalmente branca o
marcam imediatamente como colonialista. O objetivo do vilão é o
“monte sagrado” de vibranium de Wakanda — a única fonte no
mundo de um substituto fictício para o urânio (um recurso natural
africano de verdade) que enriqueceu o Pantera e seu povo.
Isso é muita história pregressa para uma revista em quadrinhos
que também envolve uma batalha com um gigantesco gorila
vermelho (e outra com o próprio Garra Sônica), mas há algumas
partes muito importantes do aparato em torno do Pantera Negra que
ainda estão faltando aqui — como o nome dele. Seu falecido pai é
identificado como “T’Chaka, o rei guerreiro” nesta edição, mas o
próprio Pantera Negra não recebeu o nome de T’Challa no papel até
Captain America no 100, de Lee e Kirby, um ano e meio depois.
The Avengers nº 52 (maio de 1968)
ROY THOMAS, JOHN BUSCEMA, VINCE COLLETTA
Tendo feito mais algumas aparições ao lado do Quarteto Fantástico e
do Capitão América, T’Challa vai a Nova York para se juntar aos
Vingadores nesta revista aqui. (Por que um monarca africano se
juntaria a uma equipe americana de super-heróis? Essa questão só
seria abordada décadas depois, mas ele permaneceu no elenco de
Avengers até 1971 e de maneira intermitente depois disso.) T’Challa
chega à sede do grupo e encontra três Vingadores no chão,
aparentemente mortos. Momentos depois, um agente branco da
S.H.I.E.L.D. e policiais aparecem e apontam as armas para o Pantera
Negra, presumindo que ele foi o responsável. Como John Buscema o
desenha com o capuz de meia face dos primeiros designs de Kirby,
ele é visivelmente negro sempre que aparece, incluindo a capa,
embora esta edição se refira ao personagem apenas como “Pantera”
em vez de “Pantera Negra” — na verdade, a raça de ninguém é
mencionada abertamente no texto da história. Em The Avengers no
56, ele é o “Pantera Negra” novamente e mais uma vez usa uma
máscara que cobre completamente o rosto.
The Avengers nº 73 (fevereiro de 1970)
ROY THOMAS, FRANK GIACOIA, SAM GRAINGER
Dois anos depois, The Avengers foi menos hesitante em reconhecer
raça e racismo, embora ainda o fizesse de maneira incrivelmente
embaraçosa. Depois que uma organização supremacista branca, os
Filhos da Serpente, ataca Montague Hale, um apresentador negro de
programa de entrevistas, T’Challa vai atrás deles e impede o ataque
de seus agentes a Monica Lynne, uma cantora negra anteriormente
apolítica. A experiência torna Lynne radical: “o que eu quero saber é
onde estava a polícia até o perigo passar? Você não queria sujar as
mãos… resgatando uma jovem negra?”, pergunta ela a um policial.
Mais tarde, o Pantera Negra revela a Lynne que é um “soul
brother”266, o que a deixa surpresa. (“Por que você não deixou
ninguém saber disso antes?”, “Achei que bastava ser apenas um
homem! Mas agora, sei que é hora de me revelar e não me
envergonhar disso!”) Na edição seguinte, há a revelação de que os
Filhos da Serpente são liderados por Hale e por um apresentador
branco de programa de entrevistas, que fingiam ser racistas a fim de
ganhar poder267.
The Fantastic Four nº 119 (fevereiro de 1972)
ROY THOMAS, JOHN BUSCEMA, JOE SINNOTT
T’Challa comenta nesta edição que agora ele é chamado de
“Leopardo Negro”, explicando que “Pantera Negra” tem “conotações
políticas. Eu não condeno nem coaduno com aqueles que adotaram o
nome — mas T’Challa age por conta própria". (Roy Thomas, que
escreveu esta edição, afirmou que a mudança partiu de uma ordem
de Stan Lee; de qualquer maneira, a alteração foi revertida em
poucos meses.)
A história envolve T’Challa preso em “Rudyarda”, uma versão
fictícia (e nada discreta) da África do Sul da era do apartheid. No
final, o Coisa extravasa um pouco quebrando um portão com portas
segregacionistas.
Jungle Action nº 6 (setembro de 1973)
DON MCGREGOR, RICH BUCKLER, KLAUS JANSON, GLYNIS WEIN
Apesar dos confrontos ocasionais com todo mundo, do Doutor
Destino ao Adversário, o Pantera Negra realmente possui apenas
dois inimigos duráveis: o Garra Sônica, o espectro inextinguível do
colonialismo, e Erik Killmonger268, o líder justificável-ou-talvez-não
de uma rebelião política, que deseja o poder de T’Challa para si. O
segundo deles se junta à história do herói aqui, no primeiro episódio
da série bimestral do Pantera Negra que Don McGregor escreveu de
1973 a 1976269.
As histórias do Pantera Negra de McGregor foram extremamente
ambiciosas e cuidadosas, embora sejam às vezes difíceis de ler pela
verborragia poética do roteirista. Durante a primeira trama, “A Fúria
do Pantera”, a série foi ambientada em Wakanda, e o elenco era
quase inteiramente negro270. A história trouxe de volta Monica
Lynne, agora namorada de T’Challa; aprofundou a geografia e a
cultura de Wakanda271, embora tenha minimizado a visão de alta
tecnologia de Kirby e Lee.
Esta edição termina com Killmonger tendo um confronto com
T’Challa no topo de uma cachoeira, cena reprisada no filme Pantera
Negra, de 2018. Killmonger está irreconhecível no longa-metragem:
tudo o que descobrimos a seu respeito é que se trata de um sujeito
muito grande, cruel e sádico, tem um leopardo de estimação
chamado Predador e lidera uma milícia que quer derrubar o
governo de T’Challa. Posteriormente, é revelado que ele também é
vítima do colonialismo: em sua juventude, Killmonger foi capturado
pelas forças do Garra Sônica, escravizado e forçado a minerar
vibranium.
Jungle Action nº 10 (julho de 1974)
DON MCGREGOR, BILLY GRAHAM, KLAUS JANSON, GLYNIS WEIN
Este é um daqueles momentos em que vale a pena pensar em quem
está contando as histórias nesses gibis e o quanto “contar essas
histórias” significa (ou não) a mesma coisa que “escrever”. Há uma
versão da história do Pantera Negra em que o personagem passa
seus primeiros trinta e três anos nas mãos de escritores brancos,
sendo totalmente produto das ideias de americanos brancos a
respeito da África e, muitas vezes, veículo para histórias a respeito
da negritude americana272. (Essas ideias, na prática, eram
geralmente solidárias, e às vezes bastante precisas para os padrões
da época, mas também duvidosas por definição.) Dentro dessa
narrativa, Priest ter escrito a série Black Panther em 1998 é o divisor
de águas273.
No entanto, há outra maneira de encarar a história do
personagem: esta edição de 1974 é um momento crítico para o
Pantera Negra, pois é a primeira vez que uma de suas aventuras teve
um cocriador negro. Billy Graham se tornou o desenhista regular da
história principal dessa edição; ele já havia desenhado e/ou arte-
finalizado as primeiras dezessete edições da outra série da Marvel no
início dos anos 1970 com um protagonista negro, Luke Cage, Hero for
Hire, e coescreveu a maioria delas.
Graham abre a história com um floreio visual: é uma cena do
Pantera Negra lutando com um crocodilo na beira do rio, e tanto a
batalha quanto o título da história estão refletidos na água. Como
sempre, ele abre espaço para os recordatórios prolixos de McGregor.
A primeira começa assim: “O sol poente derrama sangue no Rio da
Graça e Sabedoria, e cada gota respinga em um reflexo brilhante da
superfície espelhada da água, escoltando a maré noturna sobre a
vegetação da selva que floresce nas margens do rio”274.
Essa simetria visual — reflexos são um tema recorrente aqui — se
insere em um tema mais amplo de “A Fúria do Pantera”. No decorrer
de treze edições, a história do Pantera Negra joga luz no contraste
entre o domínio de T’Challa, a superfície de Wakanda, e o que,
muito mais tarde, se tornaria seu domínio: seus espaços
subterrâneos literais e metafóricos, ocupados tanto pelos mortos
quanto pelos insurgentes dos “regimentos da morte” de Killmonger.
O momento principal desta edição é um confronto entre T’Challa e
um monstruoso comandante dos mortos, o Rei Cadáver, em uma
sala de espelhos; Graham começa essa cena com uma página dupla
magnificamente perturbadora, na qual as bordas dos espelhos
também servem como bordas dos quadros.
Jungle Action nº 24 (novembro de 1976)
DON MCGREGOR, RICH BUCKLER, KEITH POLLARD, AL WENZEL
A segunda série do Pantera Negra em Jungle Action levou T’Challa
aos Estados Unidos para um confronto com a Ku Klux Klan. A série
foi cancelada nesta edição, e a trama ficou completamente sem
resolução275; Billy Graham havia ido embora vários meses antes
para seguir a carreira de dramaturgo e ator. Uma nota na seção de
cartas pede desculpas: “Gostaríamos de ter tido tempo para dar um
final mais satisfatório à saga do Pantera contra a Klan… No entanto,
não pense que a história de um T’Challa (sic) está no fim! Em apenas
sessenta dias BLACK PANTHER no 1 fará sua aparição, pelas mãos
do cocriador do Rei dos Wakandas — Jack Kirby!”
Black Panther nº 1 (janeiro de 1977)
JACK KIRBY, MIKE ROYER, DAVE HUNT
Quando Jack Kirby voltou para a Marvel em meados da década de
1970, ele poderia efetivamente fazer o que bem quisesse. Kirby
assumiu o comando de Captain America, lançou The Eternals e 2001:
A Space Odissey276 e começou uma quarta série regular — a primeira
vez que sua cocriação Pantera Negra teve um título com o próprio
nome. Foi um desvio bem grande do clima cerebral e de tramas
intrincadas de Jungle Action, e nenhum personagem da série, a não
ser T’Challa, apareceu nas histórias de Kirby.
Jack era seu próprio editor (Archie Goodwin é creditado como
“editor consultor”), e é notável a ausência de qualquer coisa que
possa ter concentrado ou dirigido sua criatividade de livre
associação. Esta primeira edição tem um começo estranho e
frenético — T’Challa e o Senhor Little, um colecionador que usa
monóculo, invadem uma casa e descobrem “Alfred Queely —
recluso, colecionador e ladrão” assassinado, segurando um sapo de
latão na mão; a seguir, há uma luta com um estranho espadachim de
armadura, e quando Little nota que o sapo é uma máquina do tempo
que pertenceu ao avô de T’Challa, ele pega um jetcóptero com
T’Challa e explode a aeronave que os perseguia; e eis que
descobrimos que o sapo também era de propriedade do rei Salomão
e que é responsável pelo gênio do Ali Babá e pelo monstro do Lago
Ness; então os dois são atacados e Little é aparentemente morto por
asseclas de uma tal de Princesa Zanda (princesa de onde? Silêncio!),
que tem uma arma que dispara “ondas nervosas”; e eis que o sapo
convoca uma criatura alienígena do futuro que tem o trocadilho
ridículo “HATCH 22”277 escrito na testa; e…
Ah, sim: Wakanda! Isso. Wakanda é mencionada apenas no
recordatório tipográfico no topo da primeira página de Black Panther
no 1. A história também não se passa em Wakanda — não está claro
onde ela ocorre, mas dado que o elenco voa para a África na terceira
edição, provavelmente não se passa lá. T’Challa ganha algumas
cenas de luta ao estilo Kirby, irrelevantes para a trama, que não tem
nada a ver com monarquia ou poder político ou qualquer outra coisa
que seja da seara de T’Challa como personagem. Não há nenhum
motivo real para esta ser uma história do Pantera Negra: poderia
muito bem ser uma história do Capitão América, ou do Senhor
Milagre, ou do Batman. (Na verdade, ele só retorna a Wakanda na
décima edição, quando já conhecemos um grupo chamado Black
Musketeers278.)
Kirby permaneceu por doze edições bimestrais, quando se afastou
de Black Panther depois de criar um gancho para a série; outros
roteiristas e desenhistas passaram as últimas três edições279
tentando amarrar as tramas restantes tanto da história de Kirby
quanto, tardiamente, do “Pantera contra a Klan”.
Marvel Team-Up nº 100 (dezembro de 1980)
CHRIS CLAREMONT, JOHN BYRNE, BOB MCLEOD, ROBBIE CAROSELLA E
OUTROS
Chris Claremont e John Byrne, na época a equipe criativa de The
Uncanny X-Men, colaboraram em uma pequena história secundária
nesta edição de aniversário. É uma parceria entre o Pantera Negra e
a Tempestade dos X-Men, e inclui um breve flashback da juventude
dos dois se encontrando na Etiópia. Uma frase desimportante
daquela cena — “eles viajaram juntos por um tempo” — ganhou
muita importância vinte e cinco anos depois, como veremos.
Black Panther nº 1 (novembro de 1998)
CHRISTOPHER PRIEST, MARK TEXEIRA, BRIAN HABERLIN
O Pantera Negra passou a maior parte dos anos 1980 e 1990 como
um convidado ocasional nas revistas em quadrinhos de outros
personagens e encabeçou apenas um par de minisséries e algumas
histórias em antologias. A série de 1998 foi a primeira vez em que ele
foi tratado como um astro em vez de personagem cult. Black Panther
no 1, de Christopher Priest e Mark Texeira, é uma das primeiras
edições mais espetacularmente esquisitas que a Marvel já publicou,
e uma apresentação precisa à narrativa bizarra, mas segura, do resto
da fase de cinco anos de Priest como roteirista. Ele faz tudo de trás
para a frente, da mesma forma que Ginger Rogers fez tudo que Fred
Astaire fazia de trás para a frente280.
A história começa em uma imagem de página inteira, que é tão
pouco característica do Pantera Negra quanto possível: um homem
branco aterrorizado, de aparência frágil, de cueca, agachado em
cima de um vaso sanitário em um banheiro caindo aos pedaços de
um conjunto habitacional, apontando uma arma para um rato fora
do quadro. Este é o nosso narrador, que atualmente se identifica
como “Everett K. Ross, Imperador dos Garotos Brancos Inúteis”. “A
história até agora”, começa ele, numa maneira incrível de dar início
a uma primeira edição281. Poucas páginas depois, descobrimos que
Ross trabalha para o Departamento de Estado dos EUA282 (que o
designou para acompanhar T’Challa no país) e está contando a
história para seu chefe em Washington, embora tenhamos que
esperar cinco flashbacks e meia edição para realmente vermos o
Pantera Negra fantasiado e em ação283.
Praticamente a edição inteira, na verdade, é composta por
flashbacks, explicações e bobagens. Há uma página dupla dedicada a
uma cena de guerra civil em Wakanda, e outra imagem de página
dupla de T’Challa de terno e óculos escuros, parecendo um magnata
do hip-hop de 1998 e acompanhado por um par de amazonas em
minivestidos284. Um flashback em um único quadro de Ross ouvindo
“Jungle Boogie”, do Kool & the Gang, em seu conversível aparece
várias vezes, como vai continuar a acontecer nas próximas edições;
Mefisto, o eterno substituto da Marvel para o diabo, surge duas
páginas antes do final. Black Panther no 1 não faz absolutamente
nenhum sentido em uma primeira leitura, mas não é para ser lido
apenas uma vez. O sentido deve ser desbloqueado ao reler algumas
vezes e voltar à edição depois de ler as posteriores.
O roteirista de Black Panther é uma espécie de curinga no baralho
da Marvel. Com um nome anterior, Jim Owsley, Priest começou a
trabalhar para a empresa ainda adolescente, em 1980. Aos 22 anos,
ele se tornou o primeiro editor negro da Marvel e supervisionou a
linha de títulos do Homem-Aranha um ano depois285. Priest também
se tornou o primeiro roteirista negro dos gibis de super-heróis da
editora com The Falcon no 1, de 1983, e escreveu um punhado de
revistas do Homem-Aranha (A edição única de Spider-Man vs.
Wolverine de 1987 é o destaque dessa leva), vários anos de Conan, e as
quinze edições finais de Power Man and Iron Fist antes de sair da
Marvel por quase uma década. Ele retornou pouco antes do início
desta série, após ter mudado o nome para Christopher Priest alguns
anos antes286.
No primeiro ou segundo ano, Black Panther de Priest é uma massa
frenética e cronologicamente embaralhada de fragmentos
narrativos que aos poucos se encaixam uns nos outros, uma história
séria contada como comédia pastelão, um quebra-cabeça em
formato de caixa que abre um lado de cada vez ao mesmo tempo em
que fecha o próximo. Narrativamente, não havia mais nada nos
quadrinhos tradicionais como Black Panther em 1998 — ainda não
há, na verdade287. O conceito de Priest para T’Challa, por outro lado,
foi secretamente uma volta ao básico, um retorno ao personagem
como foi apresentado inicialmente por Stan Lee e Jack Kirby em The
Fantastic Four. Ele é um governante que coloca sua nação à frente de
absolutamente tudo; um gênio tecnológico e psicológico que pode
mudar de código linguístico com rapidez, mas que vem de um lugar
culturalmente muito diferente dos Estados Unidos; um estrategista
que está tão à frente do combate que ter permissão para entrar em
conflito com ele é já ter perdido a luta. O T’Challa de Priest sempre
tem um grande plano que ninguém é capaz de compreender até que
ele se concretize, assim como Priest ao contar suas histórias.
Black Panther nº 8 (junho de 1999)
CHRISTOPHER PRIEST, JOE JUSKO, AMANDA CONNOR, JIMMY PALMIOTTI,
VINCE EVANS, BRIAN HABERLIN
Black Panther foi lançado como parte de um novo selo meio
experimental, Marvel Knights, dirigido pelos desenhistas Joe
Quesada e Jimmy Palmiotti288. A primeira onda de revistas da
Marvel Knights tinha uma estética visual diferente e valores de
produção de alto nível para a época; nas primeiras edições de Black
Panther Mark Texeira adiciona tons de cinza aos desenhos para dar
um efeito de pintura. A série é inconfundivelmente um espetáculo
de Priest, principalmente porque seis desenhistas diferentes
contribuíram para o primeiro ano do título.
Parte do projeto de Priest como roteirista de Black Panther era
abordar quase todas as histórias anteriores em que T’Challa havia
aparecido e explicar como todas essas versões dele, com suas
personalidades e motivações díspares, poderiam ser o mesmo
personagem. Partindo desse ponto de vista, o período em que ele
estava em Nova York era especialmente estranho, como Everett Ross
comenta aqui: por que T’Challa teria deixado o reino que governava
para se juntar aos Vingadores (“que eu sempre achei que fosse o
termo em grego para ‘Sujeitos Praticamente Fascistas Vestidos de
Forma Exagerada’”, diz Ross em tom de gracejo)? O resto da edição
faz uma referência afetuosa ao histórico do Pantera com o grupo e
depois responde à pergunta: espionar os Vingadores por dentro,
visto que eles eram potencialmente poderosos o suficiente para
representar uma ameaça para Wakanda. Mesmo quando T’Challa
atua de maneira indistinguível à de um super-herói, ele está agindo
como o rei de sua nação.
Black Panther nº 20 (julho de 2000)
PRIEST, SAL VELLUTO, BOB ALMOND, STEVE OLIFF
“O que quer que você ache que ele está fazendo, ele está fazendo
uma coisa diferente”, diz Everett Ross a respeito de T’Challa aqui, e
isso parece servir como a carta de intenções de Priest para seu Black
Panther, bem como a fonte de grande parte de seu humor. Esta
edição faz parte de outra história envolvendo Killmonger, que mais
uma vez enfrenta o Pantera Negra em combate mortal na mesma
cachoeira de Wakanda onde lutaram pela primeira vez. Mas a
batalha física entre os dois é principalmente simbólica: a verdadeira
guerra está acontecendo no mercado. Desta vez, Killmonger tentou
tomar o poder destruindo a economia de Wakanda, T’Challa
respondeu desestabilizando a economia global, e a luta na cachoeira
não é um corpo a corpo, mas um desafio formal, com intervalos
regulares e programados para os dois descansarem, discutirem e
tomarem bebidas isotônicas.
O elenco, a essa altura, inclui uma jovem que se autodenomina
Rainha da Justiça Divina, uma moradora de Chicago que descobriu
que na verdade faz parte da realeza de Wakanda. Sua primeira visão
de Wakanda é no meio de uma metrópole, onde ela está cercada por
painéis com cotações de ações, um outdoor do partido político de
Killmonger e um anúncio gigantesco de Cats. “Então esta é a África”,
diz a Rainha da Justiça Divina, com um olhar de admiração. “Tão
primitiva… tão pastoral… bem como eu imaginei”. A seguir, ela
assobia para chamar um táxi.
Black Panther nº 41 (abril de 2002)
PRIEST, SAL VELLUTO, BOB ALMOND, JENNIFER SCHELLINGER
Priest continuou a trabalhar nas tramas díspares da história de
T’Challa em seu Black Panther. A Tempestade reapareceu em uma
história que sugeria que havia uma fagulha romântica entre eles que
não se apagava. O Garra Sônica, saído da fase de Lee e Kirby em The
Fantastic Four, também retornou; assim como Ramonda, da série
Marvel Comics Presents de Don McGregor e Gene Colan; W’Kabi, de
Jungle Action; Monica Lynne, de The Avengers; e até mesmo Vibraxas,
um jovem wakandano que estreou em uma trama de 1994 em The
Fantastic Four coestrelada pelo Pantera Negra.
“Inimigo do Estado II”, a história que começa aqui, pega muito
dos conceitos e astros convidados da trama complexa de Black
Panther de Jack Kirby, publicado em 1977, que Priest não pôde deixar
de zombar. Ela envolve um segundo Pantera Negra, desenhado por
Sal Velluto e Bob Almond em uma versão bem parecida do estilo de
Kirby de meados dos anos 1970: um aventureiro risonho e ousado
que afirma ter percepção extrassensorial e geralmente não faz
muito sentido. Ele — e, por conclusão, o Pantera Negra visto na série
escrita por Kirby — se revela como uma versão futura de T’Challa,
sofrendo de um aneurisma cerebral e deslocado no tempo pelos
sapos de latão do Rei Salomão. Na próxima edição, reaparece a
Princesa Zanda, uma personagem de Kirby que ainda trama a
conquista do mundo mesmo enquanto trabalha na cabine de drive-
thru de uma lanchonete de fast-food. (“Seus estúpidos vaidosos!
Falem na galinha! Vocês devem falar diretamente no bico!”)
A piada da trama irrelevante, no entanto, retorna à seriedade fria
da versão de Priest a respeito das principais motivações do Pantera
Negra. Ele resolve uma longa batalha com o Homem de Ferro (tanto
física quanto corporativa) assumindo o controle da armadura de
Tony Stark e parando brevemente o coração dele. Quando o Homem
de Ferro expressa suas objeções a essas táticas implacáveis, T’Challa
coloca Tony Stark em seu devido lugar: “Nós nunca seremos amigos
de verdade até que você pare de pensar que é melhor do que eu —
explicando o conceito de ‘bem’ e ‘mal’ para um rei".
Black Panther nº 50 (dezembro de 2002)
PRIEST, DAN FRAGA, LARRY STUCKER, JENNIFER SCHELLINGER
Para a edição de aniversário de Black Panther, Priest deu uma
guinada na série. A edição de número 50 começa com o Pantera
prendendo uma série de criminosos de meia-tigela e os colocando a
seu serviço, dizendo: “Temos um combinado entre nós. Não falem
disso para ninguém” — as mesmas ações e as mesmas frases que
apareceram na primeira edição. Mas, na verdade, T’Challa não está
presente nesta revista, nem na próxima: este Pantera Negra usa uma
arma em cada mão, e o homem sob a máscara logo se revela ser
Kasper Cole, um policial judeu birracial de Nova York.
Wakanda e sua política logo retornaram às páginas de Black
Panther, mas pelo ano restante de sua fase289, Cole foi o protagonista
desta série. Logo depois que terminou, Cole reapareceu como o
Tigre Branco, uma das estrelas da série de curta duração do Priest e
do desenhista Joe Bennett, The Crew.
Black Panther nº 18 (setembro de 2006)
REGINALD HUDLIN, SCOT EATON, KAARE ANDREWS, KLAUS JANSON,
DEAN WHITE
A série Black Panther, de 2005 a 2008, e o relançamento, de 2009 a
2010, que a seguiu foram escritos em grande parte pelo
produtor/diretor/roteirista de cinema Reginald Hudlin. O momento
de maior destaque da sua fase foi esta edição: o casamento do
Pantera Negra e da Tempestade, dando seguimento ao
relacionamento de infância estabelecido na história de Chris
Claremont e John Byrne há vinte e seis anos e então abordado na
série de Priest.
Ainda assim, a admiração mútua de Ororo e T’Challa que levou ao
casamento pareceu surgir do nada, embora a Marvel tenha badalado
o evento com bastante antecedência. (Nos meses que precederam o
casamento, houve até Storm, uma minissérie a respeito do romance
juvenil de Ororo e T’Challa, escrita por Eric Jerome Dickey, escritor
negro de best-sellers.) O problema não era simplesmente que
Tempestade e o Pantera Negra nunca pareceram ter muito em
comum além de serem super-heróis com um jeito de falar um tanto
formal e conexões com a África e a divindade. É que nenhum deles é
um super-herói de verdade, e por razões diferentes — uma é
defensora de um grupo pequeno, o outro monarca de uma nação
física.
Como o casamento em si coincidiu com o meio do crossover Guerra
Civil, que estava acontecendo nos títulos da Marvel, colocando a
maioria dos principais protagonistas em conflito uns com os outros,
então o evento foi apresentado como um “cessar-fogo”: algo
importante o suficiente para que a maioria dos combatentes
aparecessem para comemorar, junto de figuras do mundo real,
incluindo Fidel Castro, Nelson Mandela, George W. Bush e a dupla
Touré e Ananda, repórteres da Black Entertainment Television290.
Há apenas uma brevíssima aparição da contribuição mais duradoura
de Hudlin à história do Pantera Negra, a irmã de T’Challa, Shuri —
na versão dos quadrinhos, uma adulta que mal se parece com a
inventora adolescente, empolgada e metida a esperta, interpretada
por Letitia Wright nos filmes da Marvel.
Black Panther Annual nº 1 (abril de 2008)
REGINALD HUDLIN, LARRY STROMAN, KEN LASHLEY, ROLAND PARIS,
CARLOS CUEVAS E OUTROS
Situado “várias décadas” no futuro (os sapos do Rei Salomão estão
envolvidos mais uma vez), essa história isolada é em grande parte
um fan service291 vertiginoso. Nesta visão do que está por vir,
Wakanda governa tudo, e o filho de T’Challa e Ororo está
consolidando ainda mais a paz mundial ao se casar com Danielle
Cage, filha de Luke Cage (agora presidente dos Estados Unidos) e
Jessica Jones292. Além disso, Atlântida foi destruída, Tony Stark
morreu em uma tentativa fracassada de atacar Wakanda — esse
truque nunca funciona —, e T’Challa se aposentou e foi substituído
por Shuri, a atual Pantera Negra e “a mais poderosa da história”.
Hudlin aproveita a pegada digna de O Que Aconteceria Se…? de sua
história para abordar uma questão levantada pelo afro-utopismo de
Black Panther: se Wakanda esteve tecnologicamente à frente do resto
do planeta durante séculos, nunca foi colonizada e massacrou
qualquer força que tentasse conquistá-la, o que fez a respeito do
tráfico de escravos que afligia o resto da África? (A rainha Ororo,
majestosa e agora mais velha, explica que Wakanda manteve uma
postura isolacionista porque lutar contra o resto do mundo contra a
escravidão “exigiria uma crueldade que ameaçaria a fibra moral da
nação”.)
The Fantastic Four nº 608 (setembro de 2012)
JONATHAN HICKMAN, GIUSEPPE CAMUNCOLI, KARL KESEL, PAUL MOUNTS
Shuri assumiu como Pantera Negra mais cedo do que o esperado —
ela tomou para si o título e o traje (e o trono de Wakanda) quando
Reginald Hudlin e o desenhista Ken Lashley relançaram Black
Panther em 2009. Entre 2010 e 2016, não houve nenhuma série
simplesmente chamada Black Panther. As minisséries Doomwar e
Klaws of the Panther apresentaram Shuri; T’Challa, mais uma vez em
Nova York, se tornou o protagonista da antiga série do Demolidor,
que mudou seu título primeiro para Black Panther: The Man Without
Fear e na sequência para Black Panther: The Most Dangerous Man
Alive, e deixou de circular depois de pouco mais de um ano.
Um T’Challa que não é rei, porém, é um T’Challa sem aquilo que
faz dele ser o que é. Aqui, em um encontro com o deus pantera Bast,
ele se torna o “Rei dos Mortos” — o monarca da “necrópole” abaixo
de Wakanda, capaz de comungar com todos os Panteras Negras
anteriores — em um momento em que os mortos de Wakanda estão
prestes a se tornarem muito mais numerosos293.
Avengers vs. X-Men nº 9 (outubro de 2012)
JASON AARON, ADAM KUBERT, JOHN DELL, LAURA MARTIN, LARRY
MOLINAR E OUTROS
O crossover Avengers vs. X-Men, que durou a maior parte de 2012,
separou o casal Pantera-Tempestade (eles lutaram respectivamente
pelo lado dos Vingadores e dos X-Men) com rapidez assustadora. Em
uma breve cena que abre a edição anterior a esta aqui, Namor, o
Príncipe Submarino — também do lado dos X-Men — inunda a
capital de Wakanda e desencadeia uma guerra ruinosa entre
Wakanda e Atlântida que se desenrolaria, principalmente em
segundo plano, pelos próximos três anos de gibis. Aqui, após o
dilúvio, T’Challa diz a Ororo que o casamento deles foi anulado pelo
“sumo sacerdote do Clã Pantera” (ou seja, ele mesmo). Uma página,
bum, e segue o jogo. De qualquer forma, ele e Ororo acabaram
sendo mais interessantes como amantes separados pela ideologia e
pelas exigências do Estado do que como um casal feliz.
New Avengers nº 21 (setembro de 2014)
JONATHAN HICKMAN, VALERIO SCHITI, SALVADOR LARROCA, FRANK
MARTIN JR., PAUL MOUNTS
Um dos temas principais da enorme série de Avengers/New Avengers,
escrita por Jonathan Hickman de 2012 a 2015294, é o conflito entre
monarquia e moralidade. O papel do Pantera Negra pega pesado
nesse contexto. Sem entrar em detalhes aqui, há um momento nesta
edição em que, para proteger Wakanda, T’Challa teria que cometer
uma atrocidade genocida. Quando ele se recusa a levar a ação
adiante, o espírito de seu pai, T’Chaka, aparece para T’Challa e diz:
“você está morto para mim… Você não tem povo. Você não é um
Pantera Negra. Você não é mais meu filho”.
The Ultimates nº 2 (fevereiro de 2016)
AL EWING, KENNETH ROCAFORT, DAN BROWN
A série Ultimates [Os Supremos], de 2016, envolvia uma superequipe
com problemas tão grandes que eram essencialmente metafísicos.
(Três dos cinco integrantes do grupo eram negros e uma quarta,
latina.) Ao se teletransportar para os confins do espaço nesta edição,
o Pantera Negra tem uma alucinação de T’Chaka repetindo: “você
não é um Pantera Negra! Você não é mais meu filho!”.
Black Panther nº 1 (junho de 2016)
TA-NEHISI COATES, BRIAN STELFREEZE, LAURA MARTIN
O ensaísta político Ta-Nehisi Coates — filho de um Pantera Negra (do
mundo real) — parecia, por um lado, uma escolha estranha para
escrever um título do Pantera Negra. Seu artigo de 2014, “The Case
for Reparations”, provocou impacto e, em 2015, ele ganhou o
National Book Award por Entre o Mundo e Eu, bem como uma Bolsa
MacArthur295. Mas ao contrário de outros escritores famosos fora do
ramo dos quadrinhos que escreveram gibis de destaque no século
XXI (como Eric Jerome Dickey com Storm, ou Joss Whedon com
Astonishing X-Men), Ta-Nehisi Coates não era especialmente
conhecido por sua ficção na época296.
Coates também é, no entanto, um nerd de quadrinhos de longa
data, que passou a maior parte da vida pensando em poder político,
e seus cinco anos como roteirista de Black Panther foram um sucesso
imediato. A imagem de abertura é, mais uma vez, um flashback de
T’Challa de joelhos enquanto o pai lhe diz: “você não é mais meu
filho”. T’Challa havia retornado ao trono de Wakanda a essa altura,
mas a questão principal da história de Coates aborda um problema
que foi convenientemente ignorado por cinquenta anos de histórias
do Pantera Negra: por que Wakanda, a nação mais avançada do
mundo, tem uma monarquia hereditária como forma de governo
para início de conversa?
“Uma Nação Sob Nossos Pés”, a primeira história de Black Panther
com duração de um ano escrita por Coates, leva o nome do livro de
Steven Hahn, de 2003, a respeito da política negra no Sul rural após a
escravidão297. No contexto da história de Coates, a trama também é
uma referência aos governantes que mantêm suas nações sob os
próprios pés. Há muitas forças convergindo contra T’Challa aqui,
mas a mais desafiadora é uma revolta populista e antimonárquica
dentro de Wakanda, cujo slogan é “Nenhum Homem”298.
Black Panther nº 6 (novembro de 2016)
TA-NEHISI COATES, CHRIS SPROUSE, KARL STORY, LAURA MARTIN
Coates não esconde a afeição que sente pela fase de Priest em Black
Panther, embora o tom da sua versão da série seja diametralmente
oposto: majestoso, filosófico, contido. Ele também tem uma
concepção muito diferente do relacionamento do Pantera com
outras figuras superpoderosas e, aqui, Coates se opõe à visão
travessa de Priest do motivo de T’Challa ter se mudado para Nova
York a fim de lutar contra Ultron e os Mestres do Mal299. O Pantera
Negra chama um grupo de aliados para ajudá-lo300 e comenta, na
narração interna, que o que originalmente o levou aos Estados
Unidos foi o desejo de expandir seus horizontes: “Agora posso
admitir que eu entendi errado. Eu não me juntei aos meus amigos,
os Vingadores, para espionar em nome do meu país. Espionei em
nome do meu país para me juntar aos Vingadores”.
Black Panther Annual nº 1 (abril de 2018)
PRIEST, DON MCGREGOR, REGGIE HUDLIN, MIKE PERKINS, DANIEL ACUÑA,
KEN LASHLEY E OUTROS
Logo após o lançamento do filme Pantera Negra, três dos roteiristas
anteriores do personagem retornaram para dar esta volta olímpica
em uma única edição. A história curta escrita por Priest301 traz
Everett Ross de volta para a conversa que ele e T’Challa nunca
tiveram durante a fase do roteirista (e lança mão de uma cronologia
confusa, em nome dos velhos tempos); a história de Don McGregor
homenageia Monica Lynne (assim como seus próprios
colaboradores artísticos Billy Graham e Rich Buckler, cujas imagens
são homenageadas pelo desenhista Daniel Acuña); Reggie Hudlin
retorna ao futuro utópico de Wakanda que ele imaginou em Black
Panther Annual há uma década302, reconhecendo que a história do
Pantera Negra já havia divergido do caminho que poderia ter levado
até lá.
Black Panther nº 1 (julho de 2018)
TA-NEHISI COATES, DANIEL ACUÑA
A ideia de Hudlin de que Wakanda pode um dia governar tudo tem
seu apelo, mas o governo universal é apenas uma utopia para os
governantes. A série mais recente do Pantera Negra é novamente
escrita por Coates e interpreta esse conceito pelo prisma da
narrativa mais conhecida da cultura pop a respeito do colonialismo:
a configuração rebeldes-contra-império, de Star Wars. Com o
subtítulo “O Império Intergalático de Wakanda”, o título
aparentemente se passa milhares de anos no futuro. Seu poder
imperial opressor que se espalha pelas estrelas é liderado por um
imperador chamado N’Jadaka (o nome wakandano de Killmonger), e
o guerrilheiro desrespeitador de regras que é o herói guerreiro de
uma rebelião de escravos se chama T’Challa.
A relação entre esses personagens e os mais conhecidos com os
mesmos nomes está apenas começando a ser revelada há mais de
um ano na história de Coates, mas ele está avançando em direção a
uma resolução forte e subversiva. Os poderes do Pantera Negra são
os poderes do Estado; inverter as posições de T’Challa e do
insurgente que luta contra ele há décadas no papel e na tela deixa
claro que os poderes do Estado não são os de nenhum tipo de herói.
258 Se esse argumento está começando a parecer familiar, não é por acaso: também é
verdade para Thor, Quarteto Fantástico, X-Men e alguns outros personagens de destaque.
(N. A.)
259 Este é o número publicado imediatamente após aquele com o qual iniciamos nosso
passeio; veja o capítulo 4. (N. A.)
260 De vez em quando, alguém sugere que “tigre de carvão” era então uma expressão
comum para descrever nações africanas pós-coloniais ou seus líderes, especialmente
Patrice Lumumba, da República Democrática do Congo. Não consegui encontrar nenhuma
referência à expressão nesse contexto que também não mencione o Pantera Negra, então
tenho minhas dúvidas. (Além disso, não há tigres nativos da África.) De qualquer forma, a
Marvel muito mais tarde apresentou alguns personagens menores chamados de Coal Tiger.
(N. A.) (Nota do tradutor: se esses “personagens menores” foram lançados no Brasil, não
encontramos referência).
261 Se serve de consolo, o personagem negro Gabriel Jones apareceu com destaque nas
capas desenhadas por Kirby de várias edições de Sgt. Fury and His Howling Commandos
àquela altura. (N. A.)
262 Lee, entrevistado pela revista Changes, em 1970: “Eu inventei o nome Pantera Negra
antes de ter consciência de que existia um grupo militante chamado Panteras Negras”. (N.
A.)
263 Era um jovem Bill Cosby, antes do sucesso estrondoso com The Cosby Show (no Brasil,
Bill Cosby) e a queda em desgraça por acusações de agressão sexual. Depois de passar dois
anos preso, a sentença foi anulada e ele está em liberdade. (N. T.)
264 Imposto fixo para indivíduos adultos sem levar em conta seus rendimentos. (N. T.)
265 Nos quadrinhos, ele é Ulysses Klaw, e daí vem seu nome original, apenas Klaw (ou claw,
que significa “garra”). (N. T.)
266 Forma como negros se dirigiam a outros negros na gíria dos anos 1960/1970. (N. T.)
267 Quando os Filhos da Serpente apareceram pela primeira vez em The Avengers nº 32 e nº
33, de 1966, o líder foi revelado como um tal de General Chen, ditador de uma “nação
oriental hostil” que queria dividir os Estados Unidos. “A organização supremacista branca
ser secretamente dirigida por uma pessoa de cor” é uma reviravolta irônica e questionável
mesmo na primeira vez; na segunda, realmente não pega bem. (N. A.)
268 Inicialmente traduzido como Erik, o Terror Negro, pela Editora Abril. (N. T.)
269 Jungle Action, com seu título constrangedor, era anteriormente uma revista de
republicações da Marvel que ninguém pediu: reprises de gibis do gênero “rainha branca
das selvas” da década de 1950, como Jann of the Jungle. (N. A.)
270 Alex Simmons, citado no The New York Times: “Houve um ponto em que alguns dos
editores disseram: ‘onde estão os brancos?’, e Don, aquele pequeno escocês branco de
Rhode Island, disse: ‘estamos na África, estamos no reino dele!’”. (N. A.)
271 O primeiro mapa de Wakanda como nação física apareceu nesta edição — embora
outro mapa, duas edições depois, tenha apresentado uma revisão. (O primeiro indicava que
Wakanda ficava na costa atlântica da África, enquanto o segundo sugeria que o Oceano
Índico estava meio que a oeste. Atualmente, Wakanda geralmente é desenhada em algum
lugar perto da Etiópia e do Quênia, no leste da África.) (N. A.)
272 Eu também sou branco e americano; meus pronunciamentos a respeito desse assunto
devem ser encarados com reservas. (N. A.)
273 Ou possivelmente Deathlok nº 22-25, de 1993, a primeira vez que um escritor negro
(Dwayne McDuffie) conseguiu, finalmente, escrever sobre Wakanda. (N. A.)
274 The Avengers nº 137, de 1975, escrito por Steve Englehart, inclui uma pequena paródia
da prosa floreada de McGregor. “Thor”, declara o Pantera Negra, “o delicado ouro dos tolos
do veludo matinal intenso parece iluminar a tapeçaria manchada de desejo e desastre que
encerra a lenda da vida para meu povo e para mim neste estado-nação escondido e
semiadormecido que nós orgulhosamente proclamamos como Wakanda — mas os olhos
âmbar da razão se arregalam, enquanto sombras lilases de arrependimento cobrem toda a
paisagem do mundo exterior e gritam a necessidade dolorosa da presença do Pantera neste
momento.” Thor traduz mentalmente: “Não”. (N. A.)
275 Don McGregor não retornou ao Pantera Negra até 1989, quando ele e o artista Gene
Colan colaboraram em uma série solta e desconexa na antologia Marvel Comics Presents.
“Panther’s Quest” envolveu a busca de T’Challa por sua madrasta, Ramonda, que havia sido
sequestrada por supremacistas brancos sul-africanos. McGregor também escreveu uma
paródia de “Panther’s Quest” no título satírico da Marvel What The…?! nº 9: quando a cabeça
azul e negra do Pantera é quase esmagada por um recordatório enorme descrevendo
quanta dor ele está sentindo, T’Challa reclama: “eles pagam este roteirista por palavra?”. (N.
A.)
276 Tanto o romance de Arthur C. Clarke quanto o filme de Stanley Kubrick haviam surgido
em 1968, então lançar um derivado de 2001: Uma Odisseia no Espaço em 1976 tinha um
pouco de atraso, mas isso não impediu Kirby. Sua série de 2001: A Space Odissey é agora
mais lembrada por ter apresentado o personagem Homem-Máquina, que dura até hoje, na
oitava edição. (N. A.)
277 Hatch seria escotilha, mas Catch 22 é uma expressão idiomática que significa um dilema
sem solução, uma pegadinha frustrante em que regras contraditórias amarram um
problema. (N. T.)
278 Os Mosqueteiros Negros. (N. T.)
279 E, depois que Black Panther foi cancelado no número 15, Marvel Premiere nº 51-53. (N. A.)
280 E de salto alto, como dizia uma tirinha de Frank & Ernest, de 1982, de Bob Thaves. (N. A.)
281 Veja também o capítulo 18. (N. A.)
282 É o equivalente americano do nosso Ministério das Relações Exteriores. (N. T.)
283 Ross narra a maior parte de Black Panther de Priest. No que diz respeito ao estilo de
narração, ele está mais para “incapaz de contar uma história de maneira direta” do que um
narrador “indigno de confiança”. (N. A.)
284 São as integrantes da Dora Milaje, a guarda pessoal do rei, outro conceito que
reapareceu no filme de 2018. (Assim como Ross, por nenhum motivo aparente além de
fazer referência ao trabalho de Priest.) (N. A.)
285 Ele entrou em conflito com o roteirista de The Amazing Spider-Man, Tom DeFalco, que
mais tarde fez uma paródia dele em The Mighty Thor como “Aloysius R. Jamesly”: um chefe
de obras que insiste que seu próprio conceito para um edifício é mais importante que o do
engenheiro. Priest descreveu Jamesly como “uma imitação cruel de mim e muito
merecida”. (N. A.)
286 Nos créditos, na maioria das vezes ele é simplesmente “Priest”. Ele nunca falou
publicamente a respeito da mudança de nome, mas também é um ministro sacramentado.
(N. A.) (Nota do tradutor: priest é sacerdote em inglês.)
287 A série Mockingbird, de 2016, de Chelsea Cain e Kate Niemczyk, é o mais próximo que
alguém chegou de captar o tom de Black Panther. (N. A.)
288 As outras séries iniciais da Marvel Knights foram novas abordagens a Daredevil e The
Punisher [Justiceiro], ambos títulos inicialmente campeões de venda que depois caíram
muito, bem como o perpétuo fracasso Inhumans [Inumanos]. O selo funcionou bem o
suficiente a ponto de Quesada se tornar editor-chefe da Marvel em 2000. (N. A.)
289 Exceto por duas edições tapa-buraco com um roteirista diferente, ambientadas no
período de T’Challa. (N. A.)
290 Canal americano de TV por assinatura com programação voltada para o público negro.
(N. T.)
291 Jargão da cultura pop para algum material inserido em um produto de entretenimento
(cenas, diálogos, situações e referências) voltado meramente para o deleite do fã, não
necessariamente visando o avanço da história ou dos personagens. (N. T.)
292 Danielle nasceu em The Pulse nº 13, de 2006; graças à linha do tempo deslizante da
Marvel, ela ainda está em idade pré-escolar em novos gibis publicados em 2020. Outra
possível versão futura dela, como “a Capitã América de 20XX”, apareceu em várias histórias
dos Vingadores. (N. A.)
293 Essa reviravolta faz referência às aparições do Pantera Negra em Jungle Action: T’Challa
agora assumiu efetivamente o papel do Rei Cadáver, que ele viu na sala de espelhos na
primeira edição de Billy Graham como desenhista. (N. A.)
294 Veja o capítulo 18. (N. A.)
295 Também conhecida como “bolsa dos gênios”, é um prêmio anual de 625 mil dólares
dado pela Fundação John D. e Catherine T. MacArthur para indivíduos talentosos de vários
ramos do conhecimento. (N. T.)
296 Seu primeiro romance em prosa, A Dança da Água, foi publicado em 2019. (N. A.)
297 A história que se seguiu, “Vingadores do Novo Mundo”, não era especialmente a
respeito dos Vingadores; em vez disso, ela levou o nome do livro de Laurent Dubois, de
2004, a respeito da Revolução Haitiana. (N. A.)
298 Isso também é uma alusão ao refrão de “Power”, de Kanye West: “Nenhum homem
deveria ter todo esse poder”. (N. A.)
299 O grupo originalmente composto por Barão Zemo, Cavaleiro Negro, Derretedor e
Homem-Radioativo também já foi chamado no Brasil de Mestres do Terror. A formação
variou muito no decorrer dos anos. (N. T.)
300 Eles são a Gangue — em homenagem ao projeto pós-Black Panther de Priest — que
posteriormente apareceu em uma minissérie própria, Black Panther and the Crew. (N. A.)
301 Depois de anos longe dos quadrinhos, Priest vinha escrevendo Deathstroke
[Exterminador] da DC Comics desde 2016; um de seus antagonistas recorrentes era o Leão
Vermelho, presidente vitalício de um pequeno país africano. (Barulho de tosse contida.) (N.
A.)
302 A história é desenhada por Ken Lashley, que também desenhou parte de Black Panther
Annual de 2008. (N. A.)
15.
INTERLÚDIO: PRESIDENTES
E
sta etapa do nosso passeio é um pouco diferente dos trechos
longos anteriores, que se concentraram em personagens ou
equipes específicas. Mas a força dominante dentro da ampla
narrativa da Marvel nos últimos quinze anos são os eventos: as
histórias explicitamente compartilhadas entre várias séries e que
alteram o ambiente em que todas essas séries acontecem.
Gibis de eventos incomodam muitos leitores de longa data,
especialmente os mais obsessivo-compulsivos entre nós, que temem
ter que comprar dezenas de outros títulos para entender o que está
acontecendo na série específica de que gostam (o que é em grande
parte falso, felizmente). Eles também vendem mais do que quase
todos os outros novos gibis periódicos, especialmente no formato
encadernado, e geralmente aumentam as vendas de séries regulares
que se relacionam com eles. Agora existem leitores que apenas (ou
na maior parte) se preocupam com a cadeia de gibis de eventos
mais-contínua-do-que-o-contrário que começou com Dinastia M, de
2005, e passa por Guerra Civil (2006), Hulk Contra o Mundo (2007) e
adiante.
Nenhum outro tipo de arte narrativa faz exatamente o que os gibis
de eventos conseguem fazer: examinar momentos cruciais dentro
de uma história enorme e contínua a partir de várias perspectivas ao
mesmo tempo e permitir que o público escolha qual dessas
perspectivas deseja vivenciar. Os eventos da Marvel geralmente
envolvem crises políticas de um tipo ou de outro, nenhuma de
maneira mais explícita do que o tema deste capítulo.
A melhor obra de ficção que já vi a respeito da vida durante o
governo Donald Trump — a que capta com mais precisão o lento
avanço do desespero e da tensão daquele período na cultura
americana — é Reinado Sombrio, que abrange cerca de trezentas
edições que a Marvel Comics publicou durante o primeiro ano do
governo de Barack Obama. Seu episódio fundamental, Dark Avengers
nº 1, foi lançado em 21 de janeiro de 2009, um dia após a posse de
Obama.
Reinado Sombrio é a história do que acontece depois que um
indivíduo genuinamente maligno ascende ao poder político e
capacita seus comparsas a fazer o que quiserem. O personagem em
questão é Norman Osborn, o empresário sociopata que surgiu como
o Duende Verde, inimigo do Homem-Aranha, em meados dos anos
1960. Durante todo o ano de 2009, ele e seus aliados estavam por
toda parte, e quase todas as séries da Marvel ambientadas nos dias
atuais na Terra abordaram, de uma forma ou de outra, a
sobrevivência na época de Osborn.
De maneira geral, Reinado Sombrio trata da forma como os
regimes totalitários ganham e mantêm o poder. Eles concentram a
atenção em uma crise, real ou inventada; apresentam as soluções
severas de um líder carismático como a única resposta eficaz. Assim
que alcançam o poder, eles consolidam as forças do Estado sob seu
controle, minam a confiança nas instituições que normalmente
agiriam como fiscais desses regimes e formam alianças secretas
para enfraquecer ou destruir a resistência — tudo o que Osborn faz.
A Marvel não publicou nenhuma revista em quadrinhos chamada,
simplesmente, Reinado Sombrio, embora houvesse um monte de
gibis que tinham “Reinado Sombrio” nos títulos319. A história não
tem uma narrativa central, e sim apenas uma atmosfera política
avassaladora e variável que permeia as revistas em quadrinhos
publicadas entre dezembro de 2008 e dezembro de 2009, com dois
gibis de eventos de estruturas mais tradicionais publicados
delimitando o início e o fim: Invasão Secreta, que durou a maior parte
de 2008, e O Cerco, que se desenrolou ao longo do terço inicial de
2010. E o formato de Reinado Sombrio — dezenas de tramas que se
cruzam, todas saindo de um ponto de partida compartilhado e indo
até um destino compartilhado — é o tipo de coisa que somente pode
ser realizada no contexto de gibis mainstream de propriedade de
uma corporação.
Por mais sombrios que sejam os cenários que retrata, Reinado
Sombrio foi extremamente divertido no momento de sua publicação,
e permaneceu assim à medida que o cenário político americano se
tornou mais desanimador. A saga parece uma sátira afiada do que a
nação se tornaria uma década depois; seus roteiristas não eram
exatamente clarividentes, mas sabiam muito bem como a política de
extrema-direita já estava usando a mídia.
São roteiristas, no plural: não havia um autor em especial
responsável por tudo ou um artista isolado controlando o visual da
série. Ainda assim, três dos roteiristas de quadrinhos mais
interessantes daquele momento no mainstream tiveram um impacto
especialmente forte em Reinado Sombrio, embora um deles não
tenha escrito uma palavra sequer da história.
Thunderbolts nº 110 (março de 2007)
WARREN ELLIS, MIKE DEODATO JR., RAIN BEREDO
A presença espectral era Warren Ellis, roteirista britânico cáustico e
intelectualmente onívoro, com dom especial para dar um gás a
personagens antigos. (Ele geralmente tende a escrever uma trama
ou duas, apresenta um novo conceito e demonstra como executá-lo,
e depois segue em frente.) A voz e os conceitos de Ellis ecoam por
Reinado Sombrio inteiro, mesmo em sua ausência.
Em 2004, ele e o desenhista Adi Granov relançaram Iron Man com
uma história de seis edições chamada Extremis, que efetivamente
transformou Tony Stark, o alter ego do Homem de Ferro. O
personagem, que naquela época ainda representava uma velha
geração de tecnologia militar, se tornou uma massa viva de dados
digitais ocupando carne humana. A seguir, Ellis passou para
Thunderbolts.
Essa série vinha apresentando variações de seu conceito
inteligente — um grupo de vilões veteranos que se passa por super-
heróis e faz as coisas certas pelas razões erradas — desde que
começou em 1997. Uma década depois, Ellis e o desenhista Mike
Deodato Jr. assumiram o título e produziram um par de tramas
sangrentas e cruelmente satíricas. Seus Thunderbolts são um grupo
instável de bandidos, manipuladores e oportunistas amorais que
trabalham para o governo americano, sob a supervisão de Norman
Osborn, enquanto se apunhalam pelas costas e tramam uns contra
os outros.
Osborn, como Ellis escreve o personagem, é uma figura
aterrorizante, um sociopata raivoso e assassino que aprendeu a
ocultar a própria loucura. Ele apresenta sua crueldade como
seriedade e as vinganças como alianças estratégicas, e conseguiu
convencer a todos de que é um líder nato, mesmo estando a poucos
centímetros de perder o controle.
Osborn também é especialista em usar a mídia de direita para
reforçar o próprio poder: esta primeira edição de Ellis e Deodato
apresenta a “Fix News” (“Dando a você a sua opinião”), que retrata a
ascensão de Osborn como “um conto de redenção verdadeira”. No
meio da história, vemos um anúncio transmitido no canal Fix de
bonecos articulados dos Thunderbolts feitos pela “Mittelwerk”: uma
fusão nada sutil da fabricante de brinquedos Mattel com uma
fábrica de armas alemã da Segunda Guerra Mundial que se valia de
mão de obra escravizada.
The New Avengers nº 47 (janeiro de 2009)
BRIAN MICHAEL BENDIS, BILLY TAN, MATT BANNING, MICHAEL GAYDOS,
JUSTIN PONSOR
Este é o único gibi da Marvel em que Donald Trump, até o momento,
foi exibido em um quadro. (Ele aparece muito brevemente,
ameaçando processar Luke Cage depois que o herói levantou sua
limusine sem a menor cerimônia para deixar uma ambulância
passar.) A invisibilidade subsequente (e fora do comum para
presidentes) de Trump nas revistas em quadrinhos da Marvel pode
ou não ter algo a ver com o fato de que um de seus principais
doadores de campanha e conhecidos do mundo real, Ike Perlmutter,
ter sido o CEO da Marvel Comics, e depois da Marvel Entertainment,
desde 2005.
De qualquer forma, The New Avengers nº 47 foi escrito pela segunda
das três musas de Reinado Sombrio, o superprolífico Brian Michael
Bendis. Entre 2000 e 2018, Bendis escreveu mais gibis para a Marvel
do que qualquer outra pessoa, às vezes fazendo malabarismos com
cinco ou mais séries regulares simultâneas; de 2004 a 2012, esses
títulos sempre incluíam The New Avengers e, muitas vezes, pelo
menos uma ou duas outras séries ou minisséries dos Vingadores
derivadas daquela revista.
Bendis era um tipo incomum de roteirista para a Marvel, um
sujeito que investia muito mais nas personalidades e interações dos
personagens, e como eles se expressam na linguagem e na ação, do
que nas particularidades da trama além dos incidentes que alteram
o ambiente. A premissa arquetípica de Bendis é: “o equilíbrio de
poder mudou radicalmente; então, como todos reagem?”.
The New Avengers da era Bendis aparentemente envolvia uma
equipe, mas durante eventos que afetavam toda a linha de gibis, o
título muitas vezes destacava um único personagem por vez. The
New Avengers nº 47 ao nº 49 se concentrou em como Luke Cage é
afetado por uma mudança de poder que ocorreu na conclusão de
Invasão Secreta, publicada no mesmo dia desta edição: a ascensão
abrupta de Norman Osborn ao poder.
Secret Invasion nº 8 (janeiro de 2009)
BRIAN MICHAEL BENDIS, LEINIL FRANCIS YU, MARK MORALES, LAURA
MARTIN
A minissérie de oito edições Invasão Secreta foi o cerne de um evento
que havia sido prenunciado por quase um ano e durou até o segundo
semestre de 2008, acompanhado por um batalhão de edições
derivadas. A premissa era que os Skrulls, os alienígenas transmorfos
que apareceram pela primeira vez na segunda edição de The
Fantastic Four de Stan Lee e Jack Kirby, se infiltraram secretamente
na Terra (se preparando para conquistá-la, motivados por devoção
religiosa) e substituíram os super-heróis e seus aliados por agentes
duplos. A ideia sugeria que a história seria resolvida quando os
heróis derrotassem os Skrulls, e então todos voltariam a levar a vida
normalmente.
A reviravolta no final de Invasão Secreta, porém, é que a
“resolução” vira tudo de cabeça para baixo. Norman Osborn,
apoiado pelos Thunderbolts, entra na batalha final contra os Skrulls
e mata pessoalmente a líder dos invasores — que é quando ele
começa a seguir o manual totalitário a sério. Osborn imediatamente
aproveita a vitória para primeiro demonizar Tony Stark, que na
época não era apenas o Homem de Ferro, mas sim o diretor da
S.H.I.E.L.D., e depois para assumir o papel de Stark como o
responsável tanto pelos super-heróis americanos quanto pela
manutenção da paz nacional320. Ele também desmonta a
S.H.I.E.L.D., assume os recursos tecnológicos da organização e
constrói uma nova chamada H.A.M.M.E.R.321.
A imagem final de Invasão Secreta não é apenas um desfecho, é um
gancho. Osborn, tendo se mudado para a sede dos Vingadores, está
no porão com um grupo que ele convocou: Namor, Emma Frost,
Doutor Destino, Loki e o Capuz; todos são, de uma forma ou de
outra, muito perigosos. O discurso inicial para eles desaparece no
meio da fala…
Secret Invasion: Dark Reign nº 1 (fevereiro de 2009)
BRIAN MICHAEL BENDIS, ALEX MALEEV, DEAN WHITE
… e é retomado nesta edição única, publicada uma semana depois.
É um dos “bottle episodes”322 que estão entre as especialidades de
Bendis — uma história ambientada nas salinhas onde ocorrem as
negociatas de politicagem, cujo drama é gerado quase
completamente pelo diálogo323. O grupo que Osborn organizou é
composto por personagens que têm alguma coisa a ganhar em uma
aliança. Todos, exceto Loki, supervisionam comunidades ou nações
(e Loki aspira a isso); todos, exceto o Capuz, que detém uma forte
mentalidade criminosa, já foram considerados vilões e heróis. O
próprio Osborn, como vemos no encerramento da edição, ainda é
violentamente insano. E agora eles mandam em tudo, mesmo tendo
desconfiança e hostilidade uns com os outros, em grande parte.
The Uncanny X-Men Annual nº 2 (março de 2009)
MATT FRACTION, MITCH BREITWEISER, DANIEL ACUÑA, ELIZABETH
DISMANG BREITWEISER
Assim que Osborn e seus comparsas ocuparam seus postos, uma
parte substancial de Reinado Sombrio lidou com vários tipos de
resistência política. Esta história, que ocorre em parte durante a
mesma reunião de Secret Invasion: Dark Reign, cria um tema nos
títulos dos X-Men de 2009 sobre a resistência feita por dentro da
panelinha de uma estrutura de poder tóxica. O título se concentra
no histórico da relação pessoal e política entre Emma Frost, dos X-
Men, e Namor, o Príncipe Submarino, e foi escrito pela terceira das
principais vozes por trás de Reinado Sombrio, Matt Fraction.
Fraction é uma espécie de discípulo de Warren Ellis — ele foi um
integrante de destaque do fórum on-line de Ellis na virada do século.
Assim como Bendis, a especialidade de Fraction reside na
construção de vitrines para os dons de desenhistas específicos, e em
mergulhos profundos em personagens individuais. A fim de definir
os papéis que ambos os protagonistas desempenharão no próximo
ano, a narrativa aqui alterna entre trechos atuais (com traços de
textura irregular de Mitch Breitweiser, coloridos por Elizabeth
Breitweiser com uma paleta propositalmente limitada — cada cena é
iluminada incluindo apenas gradações de um ou dois tons
principais) e flashbacks (com arte digital pictórica de Daniel Acuña,
pintada no espectro completo de cores). Tanto Frost quanto Namor,
ao que parece, têm certeza de que uma parceria secreta dentro da
aliança frágil de Osborn poderia ser algo benéfica para eles; os dois
também estão dispostos a abrir mão de quaisquer princípios que
ainda mantenham para proteger as pessoas sob sua
responsabilidade.
Thunderbolts nº 128 (março de 2009)
ANDY DIGGLE, ROBERTO DE LA TORRE, FRANK MARTIN JR.
Uma falha na premissa de Reinado Sombrio foram os sentimentos
calorosos que os criadores e leitores da Marvel geralmente tiveram
pela mudança real que acabara de acontecer no governo americano.
Osborn comandar uma equipe de operações secretas fazia algum
sentido; Osborn como um herói nacional tolerado pelo governo
Obama era difícil de acreditar.
A história de duas partes que começa nesta edição da Thunderbolts
tenta resolver a situação. Osborn, como informa a primeira página,
recebeu seu novo cargo “do presidente cessante”. O novo presidente
é desenhado como Obama, mas também não tem nome na história.
Ele leva Osborn a bordo de um voo no Força Aérea Um, juntamente
do psiquiatra Doc Samson, associado ao Hulk, que confronta Osborn
com provas de seus crimes recentes. A defesa de Osborn é que,
como o filme Homem-Aranha no Aranhaverso disse depois, qualquer
um pode usar a máscara. Para enfatizar o argumento, o avião é
prontamente atacado por um “Duende Verde”. Osborn o joga para
fora da escotilha, depois faz com que a mídia propague a ideia de
que seu raciocínio rápido e heroísmo resgataram Obama de uma
tentativa de assassinato por parte de Samson e de quem quer que
estivesse vestindo aquele traje do Duende. (O ataque, obviamente, é
plano do próprio Osborn, executado pelos Thunderbolts
disfarçados.)
Dark Avengers nº 1 (março de 2009)
BRIAN MICHAEL BENDIS, MIKE DEODATO JR., RAIN BEREDO
Nos quatro anos que antecederam Reinado Sombrio, a revista The
New Avengers, escrita por Bendis, foi o título mais vendido da Marvel
e um ponto focal para histórias cujo efeito se espalhou para o resto
da linha. Mas a derrubada das ordens estabelecidas dentro da
história se estendia à apresentação da própria história; Dark
Avengers tirou The New Avengers do primeiro lugar durante o ano de
Reinado Sombrio.
O insulto inicial de Dark Avengers é Osborn se vestindo com uma
armadura do Homem de Ferro, que ele se apropriou e repintou de
vermelho, branco e azul, se declarando “o Patriota de Ferro” — uma
mistura de Homem de Ferro e Capitão América. Caso alguém não
tenha notado que esta é uma história a respeito de propaganda
política, a primeira edição termina com ele aparecendo na TV para
apresentar a equipe: “Meu nome é Norman Osborn e eu aprovo
esses Vingadores!”324. A maioria deles são na verdade ingênuos
(Marvel Boy, o Sentinela) ou psicopatas assassinos que conseguem
se passar pelos personagens que estão representando: o “Gavião
Arqueiro” é na verdade o Mercenário; o “Homem-Aranha” é Venom;
o “Wolverine” é Daken, o filho horrível do Wolverine; e assim por
diante.
Dark Avengers é uma extensão de Thunderbolts de Warren Ellis e
Mike Deodato Jr. em seus tons visual e narrativo. “Enquanto eu
estava criando [Invasão Secreta]”, observou Bendis mais tarde em
uma entrevista ao site de notícias de quadrinhos Newsarama, “a fase
do Warren em Thunderbolts deixou muito claro que, se alguém
escolhesse fazer tal coisa, Norman estava no caminho certo e na
direção desse tipo de trama, de maneira muito orgânica, muito fiel
ao personagem, e muito inserido no que estava acontecendo.
Quando o Warren saiu de Thunderbolts, eu meio que levantei a mão e
disse: ‘ei, você sabe aquela coisa com aquela coisa ali? É isso.’ E todo
mundo disse sim, incluindo o Warren, graças a Deus do céu, e eu
consegui escrever minha fanfic do Warren Ellis”. A semelhança entre
as duas séries também tem muito a ver com a presença de Deodato,
que tem o dom de evocar climas sombrios e sisudos: arquitetura
industrial brutal, salas de reunião geladas e ângulos inclinados
dramáticos.
The New Avengers nº 50 (abril de 2009)
BRIAN MICHAEL BENDIS, BILLY TAN, MATT BANNING, JUSTIN PONSOR
E OUTROS
A série paralela de Bendis, The New Avengers, passa o ano do Reinado
Sombrio na defensiva — a facção de oposição a um regime que se
recusa a seguir as regras. Os personagens são constantemente
emboscados ou correm perigo ou estão escondidos, e seus recursos
(e as páginas da série) são gastos em lidar com o comparsa de
Osborn, o Capuz, e seu exército de supervilões convencionais,
enquanto Osborn e companhia continuam a causar estragos em
outros lugares.
Esta edição começa com o elenco de The New Avengers assistindo e
reagindo ao anúncio televisionado de Osborn em Dark Avengers. A
cena repete quadros idênticos várias vezes, tanto como uma
maneira brincalhona de sugerir que todo mundo está parado quanto
como um jeito de enfiar dezenas de balões dos diálogos ferinos e
influenciados por David Mamet de Bendis.
Outro gesto característico do roteirista é incorporar páginas
ilustradas por desenhistas convidados em edições de aniversário.
Aqui, elas compõem uma cena de luta longa e caótica, cada página
narrada do ponto de vista de um personagem diferente. A luta física
não resolve nada, no entanto. O verdadeiro desafio para Osborn
surge ao final, quando Ronin325 vai à televisão anunciar que “o
Capuz está trabalhando com ou para Norman Osborn” — ele nem
sabe se é uma coisa ou outra, ou tem alguma prova — e exige que os
dois sejam detidos.
Dark Avengers nº 5 (agosto de 2009)
BRIAN MICHAEL BENDIS, MIKE DEODATO JR., RAIN BEREDO
Considerada como uma história de super-herói, esta edição de Dark
Avengers é muito boa; considerada como um retrato satírico de um
governo doente, é uma joia rara. O ponto principal é a entrevista de
Osborn na TV para responder às acusações de Ronin e falar de seu
histórico como o homicida Duende Verde. O diálogo de Bendis para
o personagem tem o timbre sério de um mentiroso profissional em
um programa de entrevistas de domingo de manhã, enquanto
Osborn explica a carreira de supervilão como um trauma que ele
superou (“Eu sofria de um grave desequilíbrio químico. Um com o
qual nasci. Como milhões de americanos”). Deodato passa o tom
daqueles discursos com uma linguagem corporal desenhada de
modo esplêndido: vemos Osborn deixando os olhos caírem nas
sombras ao sentir tristeza, parando para um momento de oração, se
recostando nas palmas das mãos e dando um meio sorriso.
O resto da edição é em grande parte dedicado ao que está
acontecendo em casa com os “Vingadores” de Osborn: eles estão
brigando uns com os outros, disputando o domínio com insultos,
ameaças e com um caso sexual completamente idiota. Ares, o deus
da guerra, tem uma vida doméstica que está desmoronando. O
Sentinela, provavelmente o integrante mais formidável do grupo,
está tão aterrorizado com o próprio lado negro que começou a se
desvincular da realidade. Tudo o que mantém o grupo de Osborn
unido é a inércia de suas mentiras.
The Invincible Iron Man nº 8 (fevereiro de 2009)
MATT FRACTION, SALVADOR LARROCA, FRANK D’ARMATA
De 2008 a 2012, The Invincible Iron Man foi escrito por Matt Fraction e
desenhado por Salvador Larroca — uma das mais longas fases
contínuas de uma dupla de roteirista e desenhista da história da
Marvel. O título parecia mais com o então novo Universo Marvel
Cinematográfico do que qualquer outro gibi da época: Larroca
desenhava a maioria dos personagens baseados em modelos
fotográficos, tinha a tendência de enquadrar as cenas com o tipo de
planos horizontais amplos vistos na tela de cinema (às vezes com
um toque de “reflexo de lente” ou desfoque adicionados pela
coloração de Frank D’Armata), e até pegou emprestado um elemento
visual do primeiro filme Homem de Ferro, mostrando o rosto de Tony
Stark no interior escuro da máscara da armadura, com as projeções
holográficas que ele “vê” sobrepostas à face. Os efeitos digitais e
texturas da arte de Larroca e D’Armata neste gibi aqui já marcam o
título como um produto do software de consumo de 2009. Nesse
caso, porém, isso é bom: edições antigas deste título, em especial,
são mais interessantes quanto mais refletem a tecnologia de sua
época.
The Invincible Iron Man, de Fraction e Larroca, foi construído com
base na história Extremis de Warren Ellis e Adi Granov lançada
alguns anos antes. Ellis havia sugerido ali que o complexo industrial-
militar — a teia de instituições que o Homem de Ferro sempre
representou — tinha se tornado mais voltada a informações e
vigilância do que a armamentos convencionais. Fraction segue essa
ideia para “O Mais Procurado do Mundo”, a trama do título que
abrange o ano de Reinado Sombrio.
Câmeras e monitores de vídeo estão por toda parte nesta série, e
tecnologia e informação são ferramentas de controle em todos os
níveis326 — e o Homem de Ferro é feito de tecnologia e informação.
Ele passa o ano de “O Mais Procurado do Mundo” se arruinando de
maneira paulatina e proposital, enquanto Osborn se fortalece; ele
apaga as próprias memórias e sua identidade para evitar que se
tornem úteis para Osborn. Reinado Sombrio inverteu a ordem social
e política normal da história da Marvel, e The Invincible Iron Man
seguiu esse comando. Tony Stark, que foi um exemplo de gênio e
riqueza por décadas de histórias, se torna um fugitivo isolado e
desesperado, cometendo erros cada vez mais estúpidos enquanto
destrói de forma heroica a própria mente. Mesmo assim, ele
permanece tão arrogante e manipulador quanto Osborn, embora
menos cruel; não importa o que mais seja a versão de Stark de
Fraction, ele é sempre um alcoólatra em recuperação cuja
sobriedade se tornou outra arma de sua necessidade obsessiva de
controle327.
All-New Savage She-Hulk nº 1 (junho de 2009)
FRED VAN LENTE, PETER VALE, ROBERT ATKINS, NELSON PEREIRA, TERRY
PALLOT, MARTE GRACIA
Nem todas as histórias que tiveram aparições de Norman Osborn em
2009 foram melhoradas por sua presença, mas esta, sim. Em
princípio, esta minissérie é um produto totalmente desnecessário,
desenhado em um estilo genérico de gibis-tradicionais-americanos-
de-2009, e não tem nada a ver com Reinado Sombrio: a revista trata da
filha clonada do Hulk oriunda de um mundo paralelo onde
mulheres e homens fazem parte de tribos em guerra, em uma
missão para recuperar um McGuffin da Terra-616. Na prática, essa
aventura de peixe fora d’água é muito divertida, em parte por causa
do humor astuto — na verdade, quanto mais calma essa Mulher-
Hulk fica, mais forte ela se torna328— e em parte porque a trama se
complica por causa das guerras patriarcais de Reinado Sombrio. E
outro tipo de resistência política ao totalitarismo — a resistência às
estruturas burocráticas — é o fator decisivo no conflito de All-New
Savage She-Hulk: os funcionários públicos cujo trabalho é lidar com
visitantes de realidades alternativas não têm paciência para as
mentiras de Osborn.
The Amazing Spider-Man nº 595 (julho de 2009)
JOE KELLY, PHIL JIMENEZ, ANDY LANNING, CHRIS CHUCKRY
Antes de Thunderbolts de Ellis e Deodato, Osborn sempre foi
fundamentalmente um personagem do Homem-Aranha, mas The
Amazing Spider-Man foi uma das poucas séries de super-heróis
regulares da Marvel onde ele não esteve onipresente em 2009. Ele
até aparece, especialmente em “Filho Americano”, uma sequência
de cinco edições que começa aqui e usa alguns dos principais temas
da história mais ampla do Homem-Aranha: pais e filhos, poder e
responsabilidade, jornalismo e segredos revelados. Por baixo da
violência extremamente repugnante da narrativa superficial, “Filho
Americano” trata de Norman tentando forçar seu filho afastado,
Harry, a seguir os mesmos passos que ele (com outra armadura
decorada em tons patrióticos), e Harry traindo seus princípios para
proteger o próprio filho ainda não nascido. E a trama aborda o papel
da imprensa na época de um governo maligno: Peter Parker e seus
colegas de trabalho do site de notícias Frente de Batalha sabem como
Osborn é horrível, mas não podem fazer nada contra ele sem provas
incontestáveis, e alguns colocam a vida em risco na esperança de
que tal prova possa existir.
Captain America: Reborn nº 1 (setembro de 2009)
ED BRUBAKER, BRYAN HITCH, BUTCH GUICE, PAUL MOUNTS
A jogada óbvia para uma história da Marvel cujo subtexto envolve
corrupção política envenenando a atmosfera cultural dos Estados
Unidos seria apresentar o Capitão América, que geralmente foi
escrito como a versão do que a identidade nacional almeja ser — o
representante do melhor que o país deve ser. No entanto, Steve
Rogers estava sumido quando Reinado Sombrio começou e passou a
maior parte da saga ausente.
Ed Brubaker escrevia Captain America desde o início de 2005,
trabalhando com um grupo rotativo de desenhistas, incluindo Butch
Guice e Steve Epting329. Brubaker e seus colaboradores tornaram o
título mais um thriller de espionagem com um grande elenco do que
uma série convencional de super-heróis, e a política nunca esteve
longe do gibi. No início de 2007, imediatamente após o crossover
Guerra Civil, Rogers aparentemente foi morto — o tipo de coisa que
geralmente é revertida em alguns meses. Em vez disso, Captain
America de Brubaker ficou sem o personagem-título por anos, que
finalmente foi substituído pelo velho ajudante Bucky Barnes
(também conhecido como Soldado Invernal).
A minissérie Captain America: Reborn que substituiu o título
regular do Capitão América no segundo semestre de 2009 abordou o
inevitável retorno de Rogers. Duas coisas bloqueiam a volta (a
personificação) do que a nação deveria ser. Uma é a podridão da
liderança dos Estados Unidos: a H.A.M.M.E.R. de Osborn detinha a
engenhoca necessária para trazer o Capitão de volta, e os aliados de
Rogers precisam lutar para recuperá-la. A outra é a parte principal
da história: Steve Rogers é forçado a reviver o próprio passado, ao
estilo do livro Matadouro-Cinco, antes que possa retornar para salvar
o presente.
Dark Avengers/Uncanny X-Men: Utopia nº 1 (agosto de
2009)
MATT FRACTION, MARC SILVESTRI, JOE WEEMS, FRANK D’ARMATA E
OUTROS
A desordem civil pode se tornar uma arma no arsenal de um
governo tóxico, e Norman Osborn se aproveita disso aqui — o
desenlace da trama da aliança de Namor e Emma Frost que
começou em The Uncanny X-Men Annual no início do ano. (Eles não
vão muito longe com a resistência de dentro do grupo secreto de
Osborn.)
Na época desta sequência, a comunidade mutante dos títulos dos
X-Men, liderada por Scott “Ciclope” Summers, havia se estabelecido
em grande parte perto de São Francisco. Utopia, um crossover entre
várias dessas séries e Dark Avengers, começa com uma marcha pela
ponte Golden Gate realizada por uma organização antimutante
chamada Humanity Now! Eles são mais ou menos o equivalente do
Universo Marvel aos Proud Boys330, até na surpreendente
semelhança entre o visual de camisa e gravata e as roupas usadas
pelos líderes das manifestações pró-supremacia branca anos após a
publicação desta edição.
A marcha leva a tumultos na cidade inteira, que são uma brecha
para Osborn chegar voando com seus Vingadores a fim de lutar
contra os mutantes e seus aliados, e depois para obter mais poder.
Quando acaba o conflito, ele estreia a própria equipe “X-Men”
escolhida a dedo331 e chama os verdadeiros X-Men em um discurso
televisionado de “ameaça mutante, liderada pelo disseminador de
ódio Scott Summers”.
Dark Wolverine nº 81 (fevereiro de 2010)
DANIEL WAY, MARJORIE LIU, GIUSEPPE CAMUNCOLI, ONOFRIO CATACCHIO,
MARTE GRACIA
Reinado Sombrio estendeu o truque dos vilões-como-protagonistas de
Thunderbolts por toda a linha da Marvel. Vários dos Vingadores
Sombrios de Norman Osborn e comparsas secretos foram
apresentados em minisséries individuais, e alguns deles assumiram
séries já existentes: Rocha-Lunar-como-Miss-Marvel desalojou a
versão normal (Carol Danvers) da personagem do próprio título, e
Wolverine foi renomeado como Dark Wolverine [Wolverine Sombrio],
com o filho conhecido de Wolverine, Daken, como protagonista.
Rocha Lunar e Daken usam a sexualidade e a sedução como
armas, e esta edição se concentra na relação entre os dois. Ela
começa com uma boa piada — Rocha Lunar voando para encontrar
Daken, vestida com o traje de super-herói roubado, mas passando
displicentemente por incidentes criminais e pedidos de ajuda. Em
seguida, o desenhista Giuseppe Camuncoli nos mostra como Daken
é diferente do pai, pegando emprestado e invertendo os recursos
visuais da minissérie Wolverine de 1982, desenhada por Frank Miller,
que usava amplos quadros horizontais para as cenas violentas. Aqui,
os quadros inspirados em Miller retratam a mentira pacata e
meditativa de uma anedota que Daken conta a respeito de sua
juventude no Japão; quando a verdade terrível é revelada, aquele
formato dá lugar a um design de página tão irregular quanto
respingos de sangue. E o detalhe de que este gibi se chama Dark
Wolverine nº 81 em vez de, digamos, Daken nº 7, é uma piada mordaz
em si: ver enganadores homicidas entrarem na série dos
personagens que estão substituindo é uma espécie de versão mais
divertida de ver um lobista da indústria do tabaco ser nomeado
ministro da saúde.
The Invincible Iron Man nº 16 (outubro de 2009)
MATT FRACTION, SALVADOR LARROCA, FRANK D’ARMATA
Se você está tentando sobreviver a uma crise política, os aliados que
você tem não são necessariamente os exemplos de ética que você
deseja e, conforme a sequência “O Mais Procurado do Mundo”
continua, esse título assume um segundo significado. Ele não
aborda Tony Stark apenas como fugitivo, mas sim como objeto de
desejo erótico e como isso se tornou uma de suas ferramentas de
controle quase tanto quanto é um artifício para Rocha Lunar ou
Daken. Tony tem um longo histórico de uso e descarte de mulheres
— no decorrer de “O Mais Procurado do Mundo”, ele transa com
duas conhecidas diferentes, sabendo que elas terão que lidar com as
consequências emocionais enquanto ele, literalmente, terá se
esquecido daquilo.
As mulheres na vida de Tony Stark sustentam a maior parte da
ação da série durante o ano de Reinado Sombrio, lutando em nome
dele enquanto passam pelos próprios traumas horríveis. O inimigo
mais perigoso de Stark nesta fase da história não é nem mesmo
Osborn, mas sim sua ex-amante meio louca, a Madame Máscara,
cuja raiva e desejo são inseparáveis332. E como a mente de Stark está
desaparecendo, sua assistente de longa data, Pepper Potts — agora
com a própria armadura333 e a identidade Resgate —, se torna a
verdadeira heroína enquanto ele foge.
Dark Reign: The List — Punisher nº 1 (dezembro de 2009)
RICK REMENDER, JOHN ROMITA JR., KLAUS JANSON, DEAN WHITE
Nos estágios finais de Reinado Sombrio, Norman Osborn ganha tanta
coragem por causa de seus sucessos que chega a elaborar uma lista
de oito objetivos específicos; todos, exceto um, são pequenos atos de
vingança pessoal334. Essa premissa funcionou como uma série de
edições isoladas chamada Dark Reign: The List; a manchete dos
anúncios internos da Marvel para ela era “Os Atos do Patriota de
Ferro”335.
Um dos itens da lista de Osborn é “Matar Frank Castle”, ou seja, o
Justiceiro, o mais ofensivo dos sucessos de longo prazo da Marvel:
um matador louco por armas que sai por aí massacrando mafiosos,
traficantes, milhares de seguranças e basicamente qualquer pessoa
que o desagrade, enquanto raramente leva mais do que alguns
cortes. Castle é a realização dos desejos de sujeitos esquisitos e
sanguinários; ele teve o logotipo estilizado de caveira cooptado por
policiais americanos336; ele de alguma forma inspirou vários filmes
e uma série de TV. No início dos anos 1990, Castle estrelou tantas
séries que havia um novo gibi do Justiceiro praticamente toda
semana, todos o tratando como um personagem admirável e
descomplicado337.
A série Punisher, de 2009 a 2010, escrita por Rick Remender, é
interessante por apresentar Castle como uma catástrofe ambulante
que leva tortura e morte para todos que ousam confiar ou gostar
dele, e como alguém que é completamente incapaz de lidar com
tipos superpoderosos. A história começa com Castle tentando
assassinar Norman Osborn, o que lhe rende nada além de um ano
de crescente horror digno do Grand Guignol338. O clímax da
primeira metade da fase de Remender em The Punisher (a metade
que cruza com Reinado Sombrio) é esta edição isolada, em que
Osborn despacha Daken atrás de Castle. O confronto foi sendo
desenvolvido para ser a luta da vida do Justiceiro, mas quando os
dois finalmente se enfrentam, não há disputa. Daken mata Castle e
joga os restos desmembrados em um esgoto. Item da lista:
concluído339.
Dark Reign: The List — The Amazing Spider-Man nº 1
(janeiro de 2010)
DAN SLOTT, ADAM KUBERT, MARK MORALES, DEAN WHITE
À medida que Reinado Sombrio se aproxima do fim, a saga defende
quais tipos de resistência funcionam de fato contra um governo cruel
e opressor — ou melhor, as histórias separadas que compõem a série
argumentam a favor de soluções, seja acidental ou
intencionalmente. A ação violenta individual, como a do Justiceiro,
se mostra inútil e suicida. A sabotagem, a tática dos heróis da série
Agents of Atlas, de 2009, não vai muito longe. O isolacionismo
praticado pela comunidade mutante em vários títulos dos X-Men
após o crossover Utopia também não ajuda.
O jornalismo, porém, funciona: ele realmente faz algum bem, em
outros lugares e especialmente aqui. O último item na lista de
Osborn é “Matar o Homem-Aranha”. Como um super-herói
fantasiado, Peter Parker mal consegue sobreviver à luta contra o
Patriota de Ferro nesta história, mas como jornalista, ele consegue
desferir um golpe eficaz contra o império: ele invade o escritório de
Osborn, copia algumas imagens condenatórias e as divulga na
imprensa. Não é isso que derruba Osborn e seu grupo secreto, mas
mina as defesas até o ponto em que mais alguns golpes resolvem340.
Siege: Embedded nº 1 (março de 2010)
BRIAN REED, CHRIS SAMNEE, MATTHEW WILSON
Por não possuir um núcleo narrativo, Reinado Sombrio não teve uma
conclusão em si. Em janeiro de 2010, a saga foi suplantada341 por
O Cerco, crossover relativamente curto projetado para amarrar tramas
soltas que duraram vários anos, incluindo a de Osborn. O Cerco foi
um evento muito mais convencional do que Reinado Sombrio, com
um escopo temporal e geográfico limitado, um título central e uma
pilha de derivados. Cada edição de O Cerco apareceu ao lado de uma
edição da minissérie subsidiária O Cerco Integrado, na qual uma
dupla de repórteres342 partiu para “dar uma surra em Norman
Osborn. Com jornalismo”. Eles não dão essa surra, exatamente — e
eles gastam muitas páginas se defendendo de um especialista de
direita —, mas conseguem reforçar a queda de Osborn ao
documentá-la.
Siege nº 2 (abril de 2010)
BRIAN MICHAEL BENDIS, OLIVIER COIPEL, MARK MORALES, LAURA
MARTIN
As quatro edições de O Cerco em si são quase inteiramente dedicadas
a uma gigantesca cena de luta envolvendo a maioria dos
protagonistas dos títulos de Bendis do ano anterior, além do Capitão
América, Homem de Ferro e Thor originais, todos restaurados ao
poder e de volta ao jogo.
Todo o conflito, em miniatura, é a última página desta edição. É
outra variação do truque de repetir uma imagem que Bendis
costuma usar: quatro quadros quase idênticos de Osborn dentro da
armadura de Patriota de Ferro vermelho-branco-e-azul, vistos de
cima enquanto ele olha para o céu. No primeiro quadro, o escudo do
Capitão América aparece apenas como um pequeno reflexo no
capacete de Osborn. No quarto, o reflexo preenche a maior parte da
máscara, e a parte de trás do escudo surgiu em um canto do quadro
— o que estamos vendo é a fração de segundo antes de o escudo
atingir o rosto do Patriota de Ferro. O recordatório diz
“CONTINUA…” — mas naquele momento, o resto da história é óbvio.
Uma vez que a consciência da nação está de volta, sugere O Cerco,
tudo ficará bem.
As duas edições restantes de O Cerco apenas ligam os pontos.
Coipel e Morales desenham todos como se estivessem pairando no
ar, sem chão nem gravidade. Osborn não é mais uma ameaça,
apenas um esquisito balbuciante com tinta verde no rosto; um tapa
o deixa cambaleando, o próximo o nocauteia. Há explosões e mortes
dramáticas, nenhuma das quais dura muito tempo. Barack Obama —
agora mostrado apenas na sombra, e não citado pelo nome —
ordena o fim da H.A.M.M.E.R. e, a seguir, atribui os poderes
políticos e burocráticos de Osborn ao americano bom e confiável
Steve Rogers, que, durante a quebra de página antes da celebração
final, conserta a maioria das coisas ruins que aconteceram nos
quatro anos desde o início da Guerra Civil343. Se vos causamos
enfado por sermos sombras, azado plano sugiro: é pensar que
estivestes a sonhar; foi tudo mera visão no correr desta sessão344, e
assim por diante.
O Cerco foi imediatamente seguido por um não evento: A Era
Heroica, uma faixa reluzente que apareceu nas capas de um
punhado de séries. Mas não havia nada em especial ligando esses
gibis uns aos outros, e tirando Amazing Spider-Man Presents:
American Son, minissérie a respeito da ruína em que Osborn deixou
a própria família, a linha Marvel teve muito menos a dizer em
relação à vida após uma crise política do que a respeito da vida
durante ela.
Osborn nº 1 (janeiro de 2011)
KELLY SUE DECONNICK, EMMA RIOS, WARREN ELLIS, JAMIE MCKELVIE E
OUTROS
Seis meses após a conclusão de O Cerco, finalmente houve um
encerramento tardio para Reinado Sombrio: uma minissérie em que
Osborn, agora caído em desgraça, é transferido para um calabouço
secreto para supervilões, uma espécie de Prisão de Guantánamo
subaquática345. Osborn continua insistindo que é um prisioneiro
político, “mas tudo bem… grandes homens que vieram antes de
mim ascenderam a presidências saindo de celas de prisão”.
319 Algumas séries regulares ganharam temporariamente um logotipo pequeno e sinistro
de “Reinado Sombrio” acima dos títulos, em letra estilizada com o contorno irregular de
madeira podre. (N. A.)
320 Tudo isso pega a maioria dos personagens da história de surpresa, mas também foi
armado com bastante antecedência — em parte em Thunderbolts, o que era esperado, e em
parte em Deadpool, o que não era. (N. A.)
321 Ninguém nunca descobre qual o significado do acrônimo H.A.M.M.E.R. (N. A.)
322 Jargão televisivo para um episódio que se passa em um único cenário, sem que os
personagens consigam sair. Daí o conceito de “episódio engarrafado”, em tradução livre.
Geralmente é incluído dentro de uma temporada para baixar o custo geral de produção.
Nos gibis de Brian Michael Bendis, uma edição de Daredevil ficou famosa por se passar em
uma única sessão de terapia de grupo, com apenas um salão com cadeiras desenhados por
Alex Maleev. (N. T.)
323 O desenhista Alex Maleev havia ilustrado a maior parte da longa fase de Bendis em
Daredevil há alguns anos. Ele aparentemente usa modelos fotográficos para a maioria dos
personagens, e é por isso que Namor, cujos traços faciais geralmente são desenhados não
exatamente como humanos, parece realmente errado na maior parte dessa edição. (N. A.)
324 Jargão comum em encerramento de mensagens de campanha política americana, que
usa o padrão “eu sou Fulano e aprovo essa mensagem”. (N. T.)
325 Ronin é uma identidade secreta que foi usada por um punhado de personagens
diferentes; aqui, como em Vingadores: Ultimato, ele é Clint Barton, também conhecido
como o Gavião Arqueiro. (N. A.)
326 “O Mais Procurado do Mundo” também traz de volta o velho inimigo do Homem de
Ferro, o Controlador, que faz pequenos aparelhos que literalmente escravizam as pessoas a
quem estão ligados. (N. A.)
327 Em uma sequência memorável, Stark vai visitar seu antigo padrinho nos Alcóolicos
Anônimos, Henry Hellrung, um super-herói de menor importância (Hino), ciente de que
vai submeter o amigo a um ataque e interrogatório do governo. Ele deixa um cheque
administrativo gordo com Hellrung, presumindo que isso vai melhorar a situação. (N. A.)
328 O clímax da história envolve a Mulher-Hulk matando os Vingadores Sombrios enquanto
medita: “Eu sigo o fluxo do universo. Eu me curvo como o junco flexível. Eu cerco meus
inimigos”. (N. A.)
329 Brubaker escreveu vários títulos relacionados ao Capitão América, incluindo Winter
Soldier, Steve Rogers: Super-Soldier e Secret Avengers, até o início de 2013 — mais de cem
edições ao todo. (N. A.)
330 Grupo americano de militantes de extrema-direita. (N. T.)
331 Dark X-Men, estrelando esse grupo, continuou como uma série própria nos poucos
meses restantes de Reinado Sombrio. (N. A.)
332 “Espero que você morra. Espero que nós dois morramos”, diz a vilã a Stark, citando a
música “No Children”, dos Mountain Goats. (N. A.)
333 O grande momento dela no filme Vingadores: Ultimato envolve um traje semelhante. (N.
A.)
334 A exceção da lista de objetivos de Osborn é “Controlar o Mundo”, que significa não a
Terra, mas sim um centro de pesquisa visto pela primeira vez em New X-Men. (N. A.)
335 A referência ao Ato Patriota de 2001 não pode ter sido involuntária. (Nota do tradutor: o
Ato Patriota foi um conjunto de medidas de contraterrorismo estabelecido pelo presidente
George W. Bush logo após os atentados de 11 de setembro do mesmo ano.) (N. A.)
336 Em Punisher nº 14, de 2019, ele se dirige especificamente a policiais que usam seu
símbolo: “Se eu descobrir que estão tentando fazer o que eu faço, eu vou atrás de vocês”. (N.
A.)
337 Os especiais Punisher Armory publicados entre 1990 e 1994 consistiam literalmente em
Frank Castle descrevendo suas armas por dez edições. (N. A.)
338 Teatro francês que ficou conhecido por se especializar em peças de horror macabro
entre 1897 e 1962. (N. T.)
339 Eu disse “primeira metade”, sim. Esse não é o fim da história de Castle, porque é claro
que não é: ele é costurado e reanimado graças a uma bugiganga mística, depois passa um
tempo protegendo uma sociedade de monstros que vive no subterrâneo. Nas últimas
edições da segunda metade, esse título foi rebatizado como Franken-Castle. (N. A.)
340 Da mesma forma, “O Mais Procurado do Mundo”, a trama que durou um ano em The
Invincible Iron Man, se encerra com a vigilância que Osborn tem usado como arma durante
esse tempo todo repercutindo contra ele quando empregada como ferramenta do
jornalismo: ele sabe que não pode matar o indefeso Homem de Ferro quando todo mundo
está assistindo à luta no noticiário da TV. (N. A.)
341 Um punhado de revistas com a marca Reinado Sombrio continuou a sair aos poucos
depois que O Cerco começou. (N. A.)
342 O autor não informa, mas um deles é Ben Urich, famoso coadjuvante das histórias do
Homem-Aranha e, principalmente, do Demolidor. (N. T.)
343 O Homem de Ferro, o Capitão América e Thor, agora vivos, bem de saúde e devolvidos
às antigas identidades, chegam a embarcar em uma pequena aventura juntos onde
aprendem o Valor da Amizade ou algo do gênero: a minissérie Avengers Prime, que acontece
durante a mesma quebra de página. (N. A.)
344 O autor cita a abertura do último monólogo de Puck, em Sonho de uma Noite de Verão
(Ato V, Cena II) de Shakespeare. (N. T.)
345 Warren Ellis, o padrinho ausente de Reinado Sombrio, voltou para escrever uma história
secundária a respeito de um dos personagens coadjuvantes da minissérie em sua primeira
edição. (N. A.)
17.
INTERLÚDIO: MARÇO DE 1965
O
s gibis que a Marvel publicou em março de 1965 solidificaram
a mecânica de seu universo ficcional: uma ambientação onde
uma história poderia afetar o que acontecia em qualquer
outra. Cinquenta anos depois, o roteirista Jonathan Hickman
fez dessa prática o ponto principal de uma sequência extraordinária,
unindo os picos históricos e os temas dominantes da grande história
da Marvel, e explodiu esse universo ao longo do caminho.
A história gigantesca que Hickman contou em capítulos entre o
final de 2012 e o início de 2016, em noventa e três edições de quatro
séries diferentes, é efetivamente o clímax de tudo o que a Marvel
publicou até aquele momento e uma porta de entrada para tudo
depois. O épico de Hickman não pareceu, a princípio, uma única e
enorme narrativa, mas na verdade ele planejou a estrutura sinfônica
desde o início e plantou as sementes anos antes. É bizarramente
ambicioso e até mesmo impressionante. A saga não apenas remete
aos gibis de outros criadores de meio século antes, mas faz com que
alguns deles pareçam prenunciá-la, em termos conceituais ou até
mesmo visuais.
Muitas das melhores histórias da Marvel refletem claramente o
momento na cultura que as produziu. Na maioria das vezes, esse
épico de Hickman não faz isso, a não ser pela maneira como as
histórias de super-heróis permeiam a consciência popular, e talvez
pela sensação geral de que os destinos de todos são controlados por
algumas pessoas poderosas, mas falíveis, mesmo quando não são
realmente cruéis. A maioria dos subtextos e metáforas da saga
dizem respeito à própria grande história da Marvel: os processos
criativos que a formaram; seu tamanho e complexidade
avassaladores; a relação com o público; as possibilidades de
mudança e finalidade que sua forma exige e aquelas que rejeita.
A história de Hickman retorna a muitas das questões duradouras,
feitas nos gibis da Marvel do período Kirby, Ditko e Lee em diante: o
papel dos deuses e o papel dos reis; onde o poder realmente reside;
o que pode existir além do mundo que conhecemos. Ela fornece
resoluções, ou pelo menos pontos de parada, para narrativas de
personagens que se estenderam por anos ou décadas: a ascensão de
Miles Morales; a vilania questionável e as aspirações à divindade do
Doutor Destino; o choque entre as visões de mundo do Homem de
Ferro e do Capitão América; o papel de Franklin Richards como um
ungido que nunca envelhece (e como um substituto para os leitores
que se tornam criadores). A história de Hickman ainda aborda
alguns dos problemas extradiegéticos duradouros da grande
narrativa — a nostalgia pelos momentos de pico e as convicções de
parte dos leitores em relação aos “gibis de eventos”; os impulsos
conflitantes para que as histórias ao mesmo tempo cheguem ao fim
e também nunca se encerrem; a impressão de ter perdido algo
importante que aconteceu em alguma história em quadrinhos que
você não leu. E abriu a narrativa da Marvel para permitir algumas
das mudanças que vieram depois, especialmente papéis maiores
para personagens além dos homens brancos cada vez mais velhos
que a dominaram durante seu primeiro meio século.
Como Brian Michael Bendis e Ed Brubaker anteriormente e Becky
Cloonan mais tarde, Hickman escreveu e desenhou revistas em
quadrinhos publicadas de forma independente antes de começar a
escrever gibis mainstream. Na Marvel, ele corroteirizou as primeiras
edições de Secret Warriors, de 2009, com Bendis antes de assumir o
título sozinho. Sua minissérie Dark Reign: Fantastic Four, no mesmo
ano, levou a uma bela fase de três anos escrevendo The Fantastic
Four, que acabou acompanhada pela série associada FF356. Em 2010
e 2011 Hickman também escreveu uma versão inteligente da
S.H.I.E.L.D., que se estendeu pela história da Marvel, desenhada
com precisão delicada por Dustin Weaver, bem como uma fase de
Ultimate Comics Ultimates e Ultimate Comics Hawkeye, na qual ele
experimentou pela primeira vez o truque de Bendis de contar uma
história a partir de duas perspectivas diferentes em séries
separadas.
Avengers nº 1 (fevereiro de 2013)
JONATHAN HICKMAN, JEROME OPEÑA, DEAN WHITE
No final de 2012 a Marvel lançou ou relançou um conjunto de gibis,
promovidos de forma coletiva como Marvel Now! [Nova Marvel].
Hickman assumiu tanto Avengers quanto New Avengers, que Bendis
escrevia há mais de oito anos àquela altura; as séries relançadas
foram desenhadas, respectivamente, por Jerome Opeña e Steve
Epting.
No início, Avengers de Hickman se apresenta como um grande e
divertido gibi de aventura, e New Avengers como uma coisa
totalmente diferente, algo sombrio e inquietante. Ambas as séries
começam cada edição com uma página dedicada a “Anteriormente
nos Vingadores” — geralmente um conjunto de quadros de edições
anteriores, explicando o que está acontecendo. Em Avengers nº 1, no
entanto, a página “Anteriormente” tem quatro quadros de
abstrações visuais, com recordatórios que sugerem o escopo do que
Hickman está armando:
Não havia nada.
Seguido de tudo.
Turbilhões de partículas ardentes da criação que circulavam sóis
vivificantes.
E então… corremos para a luz.
É um gesto ousado começar uma série — especialmente uma
promovida como o novo carro-chefe da Marvel — com um lembrete
de que seus leitores já perderam alguma coisa, a menos que estejam
por aí desde o Big Bang. É também um floreio orquestral, e a
estrutura da história de Hickman de 2012 a 2016 deve um pouco à
composição musical: temas, progressões visuais e motivos verbais
se repetem constantemente, muitas vezes transpostos, invertidos ou
em novas harmonias.
A ausência de recapitulação no início é seguida por um breve
prelúdio: uma série de cenas futuras enigmáticas que seriam vistas
em Avengers nos próximos anos. À medida que o ponto de vista da
história sai da metafísica grandiosa e vai para os personagens reais,
o Homem de Ferro desperta o Capitão América de um sonho
inquietante — vemos apenas uma imagem: quatro rostos hostis
olhando para baixo — e diz que teve a visão de uma grande máquina,
um grupo de Vingadores de poder e complexidade incomparáveis.
(Hickman, cujos gibis geralmente incluem diagramas de vários
tipos, construiu um para representar a estrutura da equipe, com
pequenos ícones de personagens adicionados aos poucos aos
espaços vazios conforme novos integrantes fossem entrando.)
Vale a pena notar que Avengers nunca teve um conjunto fixo de
protagonistas. Na verdade, a mudança de formação da equipe em
março de 1965 foi o ponto em que o elenco da série não incluiu mais
nenhum dos personagens que apareceram na primeira edição. Se
The Fantastic Four se trata de uma família ampliada e The X-Men
envolve um grupo com uma identidade compartilhada, Avengers
sempre se tratou de uma organização profissional e volátil357.
/////
Pela própria natureza, Avengers é geralmente o lar de histórias que
têm um escopo maior do que a maioria das narrativas individuais
dedicadas aos integrantes do grupo — uma estrutura que os filmes
da Marvel copiaram dos gibis. As histórias do Homem de Ferro
versam a respeito de lutas pela supremacia tecnológica e industrial;
as histórias do Capitão América envolvem lutas pela identidade
nacional dos EUA; as histórias dos Vingadores abordam lutas por
tudo.
Em outras palavras, geralmente não importa muito quem está nos
Vingadores em determinado momento, apenas com quem estão
lutando e por quê. O trabalho do grupo é fazer uma demonstração
de força, muitas vezes sob os auspícios do governo americano; é
onde o poder reside nominalmente dentro da história da Marvel. O
grupo central reunido pelo Homem de Ferro e pelo Capitão América
na primeira edição de Hickman é a formação que seria familiar para
os leitores que conheciam os Vingadores principalmente pelo filme
que saiu no início daquele ano: esses dois personagens, mais Thor,
Hulk, Gavião Arqueiro e a Viúva Negra358.
A ameaça de alto nível que eles enfrentam primeiro é uma
alegoria enviesada do funcionamento de gibis de propriedade
corporativa. Os Construtores, uma raça alienígena que está tentando
controlar e remodelar toda a existência, criaram três espécies que
fazem e transformam mundos. Os Jardineiros criam vida e aceleram
a evolução (“Sou um artista”, declara um deles, Ex Nihilo). Os
Abismos, que sempre acompanham os Jardineiros, julgam e dão
forma ao trabalho deles (são efetivamente escritores; note que
Hickman, roteirista e desenhista que está escrevendo, mas não
desenhando esta história, indica que os artistas levam a maior parte
do peso). Os Alephs carregam os ovos dos Jardineiros e dos Abismos
e apagam suas criações fracassadas (são editores, em outras
palavras359).
Há um pouco de space opera em torno de tudo isso, no decorrer da
qual Avengers apresenta algumas novas versões de personagens
antigos. Um deles é o Capitão Universo, “o herói que poderia ser
você”, uma força cósmica que possui brevemente uma pessoa de
cada vez e vem aparecendo de forma intermitente desde 1979360.
Esta versão do Capitão Universo é uma mulher desolada,
personificando um cosmos desolado que é, por extensão, uma obra
desolada de ficção. Ela repete o discurso “não havia nada, seguido
de tudo” algumas vezes, mas insiste que alguma coisa está errada na
escala mais ampla imaginável.
Ainda assim, o tom geral da história é jubiloso. Outra frase
recorrente na longa história de Hickman, inicialmente usada para
descrever o que está sendo criado nesta edição, é “um mundo de
Vingadores, o primeiro de muitos”. O mundo que os Construtores e
Jardineiros estão moldando é a Marvel Comics, a história contada e
recontada em termos globais, a máquina da marca em constante
expansão.
New Avengers nº 1 (março de 2013)
JONATHAN HICKMAN, STEVE EPTING, RICK MAGYAR, FRANK D’ARMATA
A cena de abertura da primeira edição de New Avengers de Hickman
é a primeira declaração do tema central desta série. No lugar das
abstrações grandiosas de Avengers, vemos Reed Richards do
Quarteto Fantástico começando um discurso sombrio que
reaparecerá, com variações, no decorrer dos próximos anos:
“Tudo morre.
“Você. Eu. Todos neste planeta. Nosso sol. Nossa galáxia.
“E, no fim das contas, o próprio universo. É simplesmente assim
que as coisas são.
“É inevitável... e eu aceito.”361
Essa é uma maneira totalmente diferente, mas igualmente
perversa, de dar início a uma série de super-heróis de grande escala,
e o resto da edição também se encontra diametralmente oposto a
Avengers nº 1. New Avengers nº 1 nem realmente aborda uma equipe: é
efetivamente uma história solo do Pantera Negra. No lugar do
grande escopo colorido de Avengers, New Avengers é amargo,
sombrio, e concentrado na perda e no custo humano, com a paleta
do colorista Frank D’Armata restrita em grande parte a tons pálidos
de verde e sépia.
O grupo que está ouvindo esse discurso inicial são os Illuminati,
uma coalizão de gênios e reis que dominaram os primeiros anos da
história da Marvel: Reed Richards, Tony Stark, Stephen Strange e
outros do tipo. Eles apareceram pela primeira vez com esse nome
em uma fase de New Avengers em 2006, que propôs que o grupo
vinha se encontrando em segredo durante décadas de gibis,
direcionando o rumo dos eventos para o que eles enxergavam como
o bem comum. No ponto em que a história de Hickman começa, os
Illuminati são dois cientistas (Richards e Stark), um feiticeiro
(Strange) e três monarcas de nações em perigo (Pantera Negra e
Namor, o Príncipe Submarino, bem como Raio Negro, dos
Inumanos). Todos têm obrigações de proteger seus respectivos
domínios a qualquer custo e agora se encontraram andando em
areia movediça ética.
Tanto Avengers quanto New Avengers, nos primeiros meses da
história de Hickman, são dedicados em grande parte a homens
fazendo planos e discutindo. Qualquer um que estivesse fora dos
corredores do poder, real ou fictício, na primeira década da Marvel
está fora do esquema, e é exatamente isso que leva ao desastre
que está por vir. “Proteja-me de homens virtuosos”, reza o Pantera
Negra para a deusa Bast na última narração desta edição. Sua
própria virtude também se torna parte do problema.
New Avengers nº 3 (abril de 2013)
JONATHAN HICKMAN, STEVE EPTING, RICK MAGYAR, FRANK D’ARMATA
À medida que a primeira trama de seis edições de Avengers escrita
por Hickman estava terminando, os leitores de New Avengers
puderam ver um momento que reformulou o significado da outra
série. New Avengers nº 3 é o gibi mais denso que a Marvel publicou
em décadas (muita coisa acontece em vinte e uma páginas). A tensão
surge das maneiras particulares e conflitantes com que os
personagens agem de acordo com seus ideais.
O que Reed Richards estava explicando no discurso “tudo morre”
— o mote da trama que impulsiona os primeiros quatro atos da
história de Hickman — é revelado como “incursões”, um quebra-
cabeça injusto que envolve raciocínio moral ao estilo do “dilema do
bonde” de Philippa Foot362, com um conjunto de regras simples,
ainda que insatisfatórias. De vez em quando, dois universos
paralelos colidem, com suas respectivas Terras como ponto de
colisão. Há, convenientemente, um período de aviso de oito horas.
Ao final dessas oito horas, se pelo menos uma das Terras for
destruída, os universos de alguma forma se fundem e tudo fica bem.
Se ambas as Terras ainda estiverem ali, ambos os universos deixarão
de existir — e essas outras Terras também tendem a ter seus
próprios protetores superpoderosos.
E é claro que Reed acha que pode encontrar uma solução através
de ciência estranha e de conexão humana, e é claro que o Namor
reage perdendo a calma com os aliados com um sucesso desastroso,
e é claro que o Homem de Ferro, um industrialista militar, abraça a
ideia de construir um dispositivo do juízo final, e é claro que o
Pantera Negra coloca a própria nação acima de sua moralidade
pessoal. Isso é o que todos eles fazem. Hickman constrói a história
em torno do prazer incômodo (mas não menos prazeroso por isso)
de ver heróis fazendo coisas terríveis que, no entanto, são
totalmente consistentes com quem sempre foram.
E é claro, é claro, é claro que o Capitão América, o idealista machão,
faz um discurso emocionante a respeito de sua resistência à própria
ideia de realpolitik genocida — e eis que os Illuminati magicamente
apagam a memória dele referente à questão. À medida que a
consciência do Capitão América desaparece, ele vê os rostos dos
aliados olhando para ele, a imagem que vimos em seu sonho no
início de Avengers de Hickman e Opeña, quando Tony Stark o
acordou para contar a respeito de sua grande ideia para uma equipe
maior.
Com a mesma facilidade, Hickman empurra os super-heróis de
New Avengers ladeira abaixo para o inferno, que está cheio de boas
intenções. A bela máquina dos Vingadores, percebemos, é uma
mentira: uma distração que o Homem de Ferro projetou a fim de
manter o Capitão América ocupado para que ele não perceba o que
está acontecendo363. Um “mundo de Vingadores” significa um
mundo arruinado e destruído; “tudo morre” — em vez de “não havia
nada, seguido de tudo” — é o verdadeiro começo da história364.
Avengers Annual nº 7 (agosto de 1977)
JIM STARLIN, JOSEF RUBINSTEIN, PETRA GOLDBERG
O primeiro indício de que uma história da Marvel poderia ser tão
niilista foi uma fase de anos do roteirista/desenhista Jim Starlin que,
como a de Hickman, saltou entre as séries e chegou ao clímax nesta
edição. Starlin vinha dando vida a sua cosmologia pessoal pela
carreira inteira, tanto no contexto dos gibis que fez para a Marvel
quanto em outros lugares. De certa forma, ela está perto dos tipos de
delírios e alucinações que apenas algumas pessoas são capazes de
conduzir para a arte. (As histórias de Starlin, de vez em quando,
abordam os laços entre criação e loucura.) É quase milagroso que
ele tenha conseguido pintar essa visão idiossincrática na tela
compartilhada da editora e vendê-la como entretenimento pop. É
genuinamente milagroso que ela tenha se tornado um mote dos
filmes da Marvel, o equivalente ao Urizen de William Blake ou aos
glandelinianos de Henry Darger365 reaparecendo em caixas de
cereais e fantasias de Halloween.
Avengers Annual nº 7 envolve um punhado de criações de Starlin
que se tornam muito mais conhecidas graças aos filmes: Gamora (“a
mulher mais mortal da galáxia”); as seis pedras poderosas
conhecidas nos gibis como Joias do Infinito; e, acima de tudo,
Thanos, o déspota-filósofo obcecado pela morte sobre quem Starlin
vem escrevendo e desenhando quadrinhos desde que o inventou no
início dos anos 1970. Thanos (assim como Drax, o Destruidor, mais
uma criação de Starlin) apareceu pela primeira vez quatro anos
antes, em Iron Man nº 55. Starlin posteriormente o apresentou com
destaque em Captain Marvel em 1973 e 1974, depois em uma
sequência de Strange Tales e Warlock, de 1975 a 1976, na qual o
protagonista da série, Adam Warlock, comete “suicídio cósmico”,
matando sua versão do futuro antes que ele possa se tornar o vilão
Magus. O mote desta edição é esse confronto, visto do outro lado:
Adam Warlock, com a vida em ruínas, acolhendo a morte pelas
mãos de sua versão do passado.
The Infinity Gauntlet nº 1 (julho de 1991)
JIM STARLIN, GEORGE PÉREZ, JOSEF RUBINSTEIN, TOM CHRISTOPHER,
MAX SCHEELE, IAN LAUGHLIN
Após Avengers Annual nº 7 e sua sequência imediata, Marvel Two-in-
One Annual nº 2, tanto Starlin quanto Thanos desapareceram dos
novos gibis da Marvel por mais de uma década366. Eles voltaram, de
maneira explosiva, em 1990; uma fase de um ano de Silver Surfer
escrita por Starlin trouxe Thanos de volta ao jogo e levou a esta
minissérie de seis edições. A premissa — que Thanos reuniu as seis
pedras de poder em uma luva que concede onipotência — foi
emprestada diretamente para o filme Vingadores: Guerra Infinita de
2018. Assim como o clímax da primeira edição, na qual Thanos mata
metade do universo com um estalar de dedos.
The Infinity Gauntlet [Desafio Infinito] teve sucesso o suficiente
para ser seguido por duas continuações: The Infinity War [Guerra
Infinita], de 1992 (que não se parece muito com o filme homônimo)
e The Infinity Crusade [Cruzada Infinita], de 1993. Starlin continuou a
usar variações do título para algumas de suas histórias subsequentes
a respeito de Thanos, de Thanos: Infinity Abyss [Abismo Infinito]
(2002) a Infinity Ending [Desfecho Infinito] (2019).
Infinity nº 6 (janeiro de 2014)
JONATHAN HICKMAN, JIM CHEUNG, DUSTIN WEAVER E OUTROS
O título da minissérie Infinity [Infinito], de 2013, sugere que também
é uma sequência de Infinity Gauntlet — ou, pelo menos, um
movimentado evento de crossover com destaque para Thanos. Escrita
por Hickman e ilustrada por uma pequena legião de desenhistas, ela
atrai os elencos tanto de Avengers quanto New Avengers367 para uma
história de trama densa, mas não muito coerente, envolvendo
Thanos, uma guerra interestelar em muitas frentes, a apresentação
da Ordem Negra que apareceria no filme Vingadores: Guerra Infinita
alguns anos depois, e um estratagema desesperado que resulta na
criação de uma nova geração de Inumanos superpoderosos368.
Invocar o trabalho de Jim Starlin de maneira tão extensiva quanto
Hickman e seus colaboradores fazem aqui é, em parte, um chamado
à nostalgia associativa: “Ei, estamos fazendo uns lances cósmicos
em grande escala — preste atenção se você se lembra de ter gostado
daquelas velhas histórias!”. Mas também é uma maneira de enfatizar
o turbilhão de horror que está no centro da história de Hickman,
como muitas vezes na de Starlin, o espectro do assassinato
aparecendo como uma obrigação moral para os monarcas. A última
imagem de Infinity é uma homenagem visual a Starlin, uma imagem
quase idêntica àquela com a qual ele concluiu a primeira onda de
suas contribuições para a história da Marvel em 1977: Thanos
congelado em êxtase, de braços estendidos, tentando alcançar algo
sem conseguir.
New Avengers nº 13 (fevereiro de 2014)
JONATHAN HICKMAN, SIMONE BIANCHI, ADRIANO DALL’ALPI
Uma versão de Reed Richards, um pouco diferente da que
conhecemos, faz o discurso “tudo morre”, outros campeões
mundiais surgem do céu, começa a terrível batalha da incursão, e
então vemos que tudo isso está sendo observado pelo elenco regular
de New Avengers, através de um dispositivo criado pelo Reed
Richards que conhecemos.
New Avengers nº 14 (abril de 2014)
JONATHAN HICKMAN, SIMONE BIANCHI, ADRIANO DALL’ALPI
Uma versão de Reed Richards, um pouco diferente da que
conhecemos, faz o discurso “tudo morre”, outros campeões
mundiais surgem do céu, começa a terrível batalha da incursão, e
então vemos que tudo isso está sendo observado por… e assim por
diante. Os eventos da edição anterior e desta são diferentes em
muitos aspectos; a apresentação formal é a mesma, assim como o
resultado: o massacre de um mundo inteiro.
Avengers nº 28 (junho de 2014)
JONATHAN HICKMAN, SALVADOR LARROCA, FRANK MARTIN JR., ANDRES
MOSSA
Enquanto New Avengers está lidando com a questão das incursões,
Avengers traz duplicatas dos personagens que estrelaram as
primeiras histórias dos Vingadores, ou seja, gibis publicados há
cinquenta anos369. (Elas se revelam como versões sociopatas desses
personagens; você será traído tanto pela nostalgia acrítica em
relação a uma idade de prata quanto por ignorar o passado, sugere
Hickman.) Isso leva a essa edição muitíssimo inteligente. Na capa,
vários Vingadores estão envolvidos em uma batalha enorme entre o
Hulk e o Homem de Ferro, e parece que vai ser outra pancadaria ao
estilo de Hulk Contra o Mundo, de 2007: o retorno do reprimido
contra o complexo industrial-militar!
Na verdade, não é assim que a história se desenrola. Vemos os
danos à propriedade que a luta deixa, mas a única “batalha” em si
retratada na edição é uma conversa brutal em uma sala de reuniões.
Quando termina, Hickman dá a entender que a luta física não é
mostrada porque não é um conflito de verdade: a fumaça da batalha
é uma cortina de fumaça, um pretexto público para mais
negociações por parte dos homens que governam em segredo.
New Avengers nº 17 (maio de 2014)
JONATHAN HICKMAN, RAGS MORALES, FRANK MARTIN JR.
Em vez da página “Anteriormente em New Avengers” que abre todas
as outras edições, esta aqui começa com “Anteriormente em The
Great Society” e mostra uma cena que vimos antes com personagens
que não vimos: alguém chamado Deus do Sol está fazendo uma
versão invertida do discurso “tudo morre” (“tudo vive”) para sua
equipe.
Mas espere aí… a Grande Sociedade? Deus do Sol? Quem?
Perdemos alguma coisa? Não e sim: é um trecho esperto de
metaficção. A Grande Sociedade nunca havia aparecido em lugar
algum antes dessa “recapitulação”. O nome vem de um conjunto de
programas de gastos internos lançados no governo do presidente
Lyndon B. Johnson (um pouco após a estreia dos Vingadores, mas na
época certa). Eles são substitutos dos Vingadores por algumas
distâncias de parentesco, no entanto; mais obviamente, a Grande
Sociedade é uma variação do Esquadrão Supremo — que são, por sua
vez, os substitutos de longa data da Marvel para a Liga da Justiça, a
equipe de super-heróis da rival DC Comics. O Deus do Sol, então, é
Hipérion, que é efetivamente o Super-Homem (outra versão de
Hipérion já está aparecendo em Avengers de Hickman); a Doutora
Espectro divide o nome com sua equivalente do Esquadrão
Supremo, que bem poderia ser o Lanterna Verde; e assim por
diante. A insinuação é que passamos a ler a revista em quadrinhos
de outro mundo. Os campeões horríveis de outro mundo que
surgirão do céu, desesperados e com a intenção de cometer
genocídio, são os que estamos acompanhando o tempo todo em New
Avengers.
New Avengers nº 23 (outubro de 2014)
JONATHAN HICKMAN, KEV WALKER, FRANK MARTIN JR.
O ritmo da meia dúzia seguinte de edições é cruelmente proposital,
muito distante da hipercompressão de New Avengers nº 3. Os
desenhos (principalmente de Valerio Schiti e Kev Walker) são
abertos e arejados, concentrados na linguagem corporal dos
Vingadores quando eles param de acreditar que são virtuosos. Até
este ponto, New Avengers de Hickman colocou os personagens em
situações em que, graças a algum artifício ou outro, eles não
precisaram se tornar monstros. Agora eles precisam. Os Vingadores
gritam e batem uns nos outros, mas a histeria dos “super-heróis”
perdeu o sentido. Aqui, eles se preparam para o fim de seu próprio
mundo — que não chega como programado. Uma última reprise
horrível e alterada do discurso “tudo morre” explica por que não: o
Namor, o primeiro herói ou vilão heroico da Marvel, recrutou
Thanos e companhia para ajudá-lo a matar uma Terra após a outra.
Avengers nº 35 (novembro de 2014)
JONATHAN HICKMAN, JIM CHEUNG, PACO MEDINA, NICK BRADSHAW E
OUTROS
“OITO MESES DEPOIS” lê-se no recordatório de abertura do próximo
gibi Avengers a ser publicado. É o primeiro conceito corajoso de
Tempo Esgotado, uma série-dentro-de-uma-série que dura vinte
capítulos e oscila entre as duas revistas dos Vingadores escritas por
Hickman. Oito meses, no tempo da história da Marvel, é muita coisa
— normalmente seriam pelo menos três anos de gibis, e a trama de
Hickman entra direto no cenário radicalmente diferente de
personagens e relacionamentos alterados sem explicar a maioria
das mudanças370. Assim como no início de Avengers nº 1, de
Hickman e Opeña, você perdeu alguma coisa. Que pena; siga em
frente371.
A maioria das primeiras cenas de Tempo Esgotado se concentram
em pequenos momentos: conversas, ação leve e apresentação do
ambiente. O contexto maior vai sendo revelado aos poucos. Tudo
está desmoronando e virando um caos. O Doutor Destino está
tramando alguma coisa incompreensivelmente grande e terrível. As
esperanças são sucessiva e sistematicamente extintas. A pergunta
que um leitor faz muda de “como eles vão sair dessa?” para “eles não
vão conseguir sair dessa, né?”.
Isso é uma coisa extraordinária de se pensar quando se está lendo
um gibi de super-herói em série. Sabemos, é claro, que haverá
títulos dos Vingadores, Homem-Aranha e X-Men daqui a dois anos,
que a economia exige uma saída. Mas a trama também se revela
inescapável de maneira real e legítima; este é um tipo de história de
quarto ato, e tudo a respeito da estrutura parece estar indo em
direção a um desenlace final372. “Em 8 meses… o tempo se esgota!”,
declara uma faixa na capa desta edição373, e a contagem regressiva
continua com a história.
Avengers nº 44 (junho de 2015)
JONATHAN HICKMAN, STEFANO CASELLI, KEV WALKER, FRANK MARTIN JR.
As duas últimas Terras, agora prestes a colidir, são as do conhecido
universo 616 e do universo Ultimate/Marvel Millennium, a duplicata
tunada que foi criada para atrair leitores que não queriam ter que
lidar com o histórico da Marvel e que agora tem quinze anos de
histórico próprio. A edição final de Avengers termina com o Homem
de Ferro e o Capitão América — os irmãos de armas cujos conflitos
irreconciliáveis têm sido um tema dissonante da história da Marvel
desde Guerra Civil, de 2006 — batendo um no outro até a morte
enquanto o mundo está acabando. Então, o porta-aviões da
S.H.I.E.L.D., o grande símbolo tecnológico do ponto onde as
ideologias dos dois personagens se cruzaram, cai do céu em cima
deles. A batalha dos dois heróis termina na violência estúpida que
nunca resolveu nada no meio século que eles passaram juntos, uma
mistura de metal e sangue. O último recordatório é “tudo morre”.
Captain America and the Mighty Avengers nº 9 (agosto de
2015)
AL EWING, LUKE ROSS, RACHELLE ROSENBERG
Todas as séries de super-heróis da Marvel chegaram ao fim nessa
época, algumas delas com histórias rotuladas de “Fim do Mundo”,
focadas nas ações de seus personagens no desfecho. A mais
comovente foi publicada em Captain America and the Mighty
Avengers, um derivado discreto a respeito de um ramo da equipe que
atuava como organização comunitária. A edição final mostra a
última hora da incursão de um ponto de vista de pessoas comuns e
termina com a cena com o subtítulo “você: dois minutos para viver”.
É desenhada a partir de uma perspectiva em primeira pessoa: um
médico tratando os ferimentos que “você” sofreu ao salvar crianças
em idade escolar lhe agradece por fazer o que foi possível mesmo
diante da aniquilação. “Todos nós éramos Vingadores”, diz ele.
“Cada um de…”.
E então não há mais imagens, apenas o espaço em branco do
papel não impresso. Um pequeno artifício está presente na parte
inferior da página, como na maioria das outras últimas edições:
“Existem apenas Guerras Secretas”.
Marvel Super Heroes Secret Wars nº 1 (maio de 1984)
JIM SHOOTER, MIKE ZECK, JOHN BEATTY, CHRISTIE SCHEELE
O título de Guerras Secretas — a minissérie de 2015 que concluiu a
história que Hickman havia começado em Avengers, New Avengers e
Infinity — carregava muita bagagem. A minissérie Marvel Super
Heroes Secret Wars, de 1984, foi um sucesso comercial esmagador e,
segundo a sabedoria popular, um constrangimento: a interseção
máxima dos gibis de super-heróis entre a ganância e a negação da
arte, e o início da loucura dos crossovers que não largou o gênero
desde então. A sabedoria popular tem quase toda a razão quanto a
isso.
A minissérie original com a saga Guerras Secretas foi um produto
descarado e cínico, criado para promover uma linha de brinquedos
de plástico. De acordo com seu roteirista, Jim Shooter, “os grupos de
testes da Mattel indicaram que as crianças reagiram positivamente
às palavras ‘guerras’ e ‘segredo’. Ok”. No início de 1984, a maioria dos
principais personagens da Marvel foi mostrada desaparecendo no
interior de uma estrutura misteriosa no Central Park, em Nova York,
e depois reaparecendo transformados de alguma maneira. (O
Homem-Aranha tinha um novo traje preto, por exemplo, e a
Mulher-Hulk havia substituído o Coisa no Quarteto Fantástico.)
Todas as explicações, nos disseram, apareceriam nas doze edições
de Secret Wars.
Na história de Shooter, dezenas de heróis e vilões foram levados
para um planeta distante chamado Mundo Bélico, por uma entidade
basicamente onipotente chamada Beyonder, e passaram um ano de
gibis entre grandes lutas e diálogos explicativos intermináveis a
respeito da importância de tudo o que eles estavam fazendo374. De
qualquer forma, funcionou: todas as edições da série lideraram as
listas de vendas, superando até mesmo The Uncanny X-Men.
E alguma coisa em relação ao agravamento frenético de Guerras
Secretas de Shooter e Zeck permaneceu na mente das pessoas que
leram a minissérie quando crianças na década de 1980. Quando as
Guerras Secretas de Hickman e do desenhista Esad Ribic estava sendo
publicado em 2015, eu mencionei o fato para uma ex-fã de gibis que
tinha acabado de conhecer. “Saiu uma nova minissérie Guerras
Secretas?”, perguntou ela. “Tem o Beyonder? E existe um Mundo
Bélico? E o Doutor Destino se torna Deus?”. Meio que tem
Beyonders, respondi, mas definitivamente há um Mundo Bélico e o
Doutor Destino certamente se torna Deus. “Ok, estou dentro”, disse
ela.
Secret Wars nº 1 (julho de 2015)
JONATHAN HICKMAN, ESAD RIBIC, IVE SVORCINA
Hickman ter chamado o seu último ato de “Guerras Secretas” e
construí-lo em torno de elementos do aparato original de Guerras
Secretas foi uma jogada do tipo “Ah, é? Veja isso” — tanto uma
declaração de que ele estava mirando alto quanto uma fanfarronice
de que não havia nada na história da Marvel tão obscuro que ele não
pudesse tomar para si. Secret Wars nº 1, de 2015, é o gibi supremo de
cenas de luta, em vários sentidos. Cinquenta e sete personagens
são chamados pelo nome e retratados na página de elenco, e
nem são todos os que desempenham papéis significativos. A
incursão final de Avengers/New Avengers chegou e tudo está
explodindo. Se a edição tivesse uma trilha sonora, seria “Abertura
1812” e “A Cavalgada das Valquírias”, tocadas simultaneamente em
volume ensurdecedor e misturadas com ruído branco.
A única coisa que segura as pontas é o plano de Reed Richards:
um “bote salva-vidas”, com um punhado de gênios que podem
“relançar a humanidade”. No final da gigantesca história da Marvel,
Reed faz exatamente a mesma coisa que fez no início: constrói um
foguete e leva a família a bordo com ele. Na primeira vez, Reed
estava tentando escapar da Terra, e desta vez ele está tentando
escapar da realidade de sua narrativa em colapso.
Reed fracassou em The Fantastic Four nº 1, e agora fracassa
novamente. Os mundos colidem e terminam, os universos deixam
de existir, a nave cai em pedaços. Reed se entrega ao desespero e ao
vazio. A última exalação tênue de cor desaparece da história. As
páginas ficam cinza, depois brancas — interrompidas por uma
imagem sem palavras, clara e perfeitamente simétrica da máscara
do Doutor Destino — e, a seguir, pretas. A página final da edição tem
tipologia cinza-claro contra o vazio:
O UNIVERSO MARVEL 1961-2015
O UNIVERSO ULTIMATE 2000-2015
Strange Tales nº 146 (julho de 1966)
STEVE DITKO, DENNIS O’NEIL
Volte por um instante, porém, para a imagem de Secret Wars nº 1 dos
mundos se chocando. Em uma história tão grande quanto a da
Marvel, tudo pode ser uma referência ao passado, até o fim de todas
as coisas. A última história do Doutor Estranho feita por Steve Ditko,
nesta edição, envolve Dormammu375, a entidade mágica malévola,
lutando contra a Eternidade, a personificação de toda a existência,
que Ditko desenha como a silhueta de uma forma humana com uma
capa, preenchida com estrelas, planetas e apenas o fragmento de
um rosto. Essa cena inclui um quadro com mundos colidindo
composto exatamente da mesma maneira, até o posicionamento das
esferas.
Outra imagem quase idêntica apareceu em Marc Spector: Moon
Knight nº 41, de 1992, parte do crossover Guerra Infinita, desenhada
por Gary Kwapisz e Tom Palmer (“cenário padrão de mundos se
fundindo… todo mundo morre”, diz um trecho de diálogo naquele
quadro, escrito por Terry Kavanagh). Outra foi em Exiles nº 64, de
2005, de Tony Bedard e Mizuki Sakakibara, juntamente de uma
discussão a respeito da instabilidade do multiverso: “se você remove
apenas uma única realidade, desestabiliza toda a metaestrutura”. E
ainda outra imagem — na qual duas versões da Terra, em vez de
colidirem, estão se duplicando como uma célula em mitose —
apareceu em 1980, em What If? nº 22, com o título profético de “O
que aconteceria se o Doutor Destino tivesse se tornado um herói?”,
por Don Glut, Fred Kida e Dave Simons.
What If? nº 32 (abril de 1982)
MARK GRUENWALD, GREG LAROCQUE E OUTROS
Mais de duzentas edições de What If? em várias encarnações
apareceram de modo intermitente desde 1977: uma série a respeito
do que poderia ter acontecido se as coisas tivessem sido diferentes
em vários momentos da história da Marvel. O narrador habitual é
Uatu, o Vigia alienígena, que vive na Lua e enxerga tudo o que é e
tudo o que poderia ter sido. Muitas vezes, What If? tem sido um
pouco parecido com o que o historiador Herbert Butterfield chamou
de “história Whig”376 — um argumento de que a história ocorreu
exatamente como deveria ter acontecido, porque de outra forma
tudo teria ficado muito pior. Esta edição, “O que aconteceria se os
Vingadores tivessem se tornado peões de Korvac?”, é uma
reinterpretação de uma fase não muito especial de The Avengers que
havia sido publicada há alguns anos. Korvac, o antagonista quase
onipotente daquela história, aparece na capa como uma silhueta
preenchida por um espaço em branco. Dentro da revista, Gruenwald
aumenta a escala do conflito, trazendo todas as entidades cósmicas
que já foram vistas nos gibis da Marvel. Depois que Korvac aniquila
tudo na Terra, ele encerra a história (e seu universo), e “tudo se
torna nada”: pontos espalhados ao redor do contorno da Eternidade,
a forma da realidade como imaginada por Ditko, agora preenchida
por um vazio sem tinta em vez de estrelas de nanquim.
What If? nº 43 (fevereiro de 1984)
MARK GRUENWALD, JACK ABEL, BEN SEAN
Depois que tudo termina, há uma continuação. Na primeira página
da sequência de What If? nº 32 publicada nesta edição, o Vigia fala
“contemplem” e aponta para um papel em branco377. Três super-
heróis retornam, saindo de seu universo, ao vazio deixado pela
história anterior e discutem como eles podem se sacrificar para
restaurar tudo como era antes. O fantasma da Eternidade aparece
para os três — uma forma azul trêmula sem nada dentro — e diz a
eles que não quer voltar.
Secret Wars II nº 9 (março de 1985)
JIM SHOOTER, AL MILGROM, STEVE LEIALOHA, M. HANDS378
A minissérie original de Guerras Secretas foi rapidamente seguida por
Guerras Secretas II, uma coisa grande, cafona e feia, cuja história
continuou a cada mês em um punhado de outras séries. A última
edição é uma longa cena de luta sem sentido, cuja arte é na maior
parte desleixada e exagerada. Mesmo assim, ela contém dois
conjuntos de imagens com potência duradoura.
Um surge perto do fim da história. Há um pequeno quadro em
preto e branco com algumas dezenas de cabeças de heróis
iluminadas com uma luz tão brilhante que as reduz a meios vultos
sem cor alguma; em seguida, um quadro branco sem nada; depois o
mesmo tratamento (um quadro de alto contraste, um vazio) dado à
ponte Golden Gate, à torre Eiffel, à Terra e à Lua. É o fim, na
linguagem visual que tínhamos para o fim em 1985: a iluminação
terrível de Hiroshima, aplicada a tudo o que conhecemos.
Na página seguinte, essa sequência se repete ao contrário. Nada, e
eis que surge o mundo; nada, e eis que surge Paris; nada, e eis que
surge São Francisco; nada, e eis que surgem super-heróis
iluminados e uma máquina quebrada.
A outra cena de grande impacto visual aqui é um confronto entre
o Beyonder e o Homem-Molecular (um antigo vilão do Quarteto
Fantástico que passou a desempenhar um papel importante em
Guerras Secretas de Hickman e Ribic). Cada um deles avança contra o
outro com uma perna dobrada e a outra estendida, e as mãos
brilhando; atrás dos dois, há um trecho de paisagem do espaço
sideral ao estilo de Jack Kirby; uma ausência de espaço alucinante à
moda de Doctor Strange de Steve Ditko; uma horda de criaturas
alienígenas; a forma de um oito com a metade superior que mostra
um homem das cavernas e um centurião romano embasbacados
diante de um dinossauro, e uma metade inferior que retrata uma
procissão de cabeças humanas aterrorizadas.
Giant-Size Avengers nº 2 (novembro de 1974)
STEVE ENGLEHART, DAVE COCKRUM, BILL MANTLO
Essa imagem também tem um antecedente, uma cena desse
episódio climático de uma fase sobre viajantes do tempo e forças
cósmicas. Aqui, é Kang, deslocado no tempo, lutando com uma
versão de si mesmo também deslocada no tempo chamada Rama-
Tut379 no centro da imagem, com a realidade se rompendo em volta
dos dois. Novamente, as figuras estão sobrepostas em um campo de
quadros curvos e fragmentos; novamente, em volta dos dois, há
trechos do cosmos estilizado de Kirby; os espaços alucinatórios de
Ditko; e figuras fantásticas e históricas. O Doutor Destino também
está lá.
Secret Wars nº 2 (julho de 2015)
JONATHAN HICKMAN, ESAD RIBIC, IVE SVORCINA
Eternidade, infinito, impossibilidade: depois do fim de tudo, a
história continua. Finalmente descobrimos o propósito pelo qual
Victor Von Doom vem acumulando todo esse poder por meio século
de quadrinhos: para mais uma vez se tornar Deus — não apenas o
soberano de tudo, mas o salvador de tudo. Ele montou um novo
Mundo Bélico, composto de pedaços que o Doutor Destino
conseguiu salvar das Terras de várias realidades, e criou uma
história para esse mundo. É, quase literalmente, um mundo de
Vingadores, o material dos gibis da Marvel concentrado em uma
bola tão grande que tem gravidade. O sol é o Tocha Humana. Não há
mais nada — não há estrelas, não há espaço. Não há nada além do
material de gibis com força suficiente para permanecer na
memória.
É a própria utopia do Doutor Destino, tanto um mundo que é
perfeito pela própria luz dele quanto um não lugar que é todo lugar
(existente), e Victor Von Doom governa tudo, sem distinção entre
suas capacidades divinas e seculares. Se alguma parte do Mundo
Bélico se tornar uma ameaça à sua supremacia, ele apaga essa parte
e começa de novo. (Para repetir algumas perguntas do capítulo 1: O
que os deuses fazem? Eles criam; eles julgam; eles destroem. O que
os monarcas fazem? Eles protegem suas nações, mesmo que isso os
torne monstros. Uma entidade pode ser as duas coisas? Boa
pergunta.)
Durante a maior parte de Guerras Secretas de 2015, no lugar das
outras séries regulares da Marvel, houve um conjunto de minisséries
ambientadas no Mundo Bélico380. Apenas algumas foram substitutos
diretos: Guardians of the Galaxy, por exemplo, tornaram-se Guardians
of Knowhere381 (visto que não havia galáxia para guardar). A maior
parte do resto das séries foram novas versões de eventos passados
ou outras histórias antigas lembradas com carinho, reformuladas
como zonas do Mundo Bélico. Houve uma Guerra Civil em que a
guerra nunca terminou, um Dias de um Futuro Esquecido igualmente
eterno, um Aranhaverso e uma Ilha das Aranhas que eram ambientes
em vez de incidentes, um O Velho Logan tentando escapar de seu
reino em vez de buscar vingança. Uma piada recorrente em todos os
gibis do Mundo Bélico era que, em qualquer lugar onde a palavra
“Deus” normalmente fosse usada nos diálogos, aparecia “Destino”.
Secret Wars nº 9 (março de 2016)
JONATHAN HICKMAN, ESAD RIBIC, IVE SVORCINA
O resto de Guerras Secretas em si é efetivamente um drama
ambientado em uma sala do trono, um enorme jogo de “O que
aconteceria se?” que reorganiza o elenco de The Fantastic Four em
novos papéis. O posto de curinga que Destino sempre ocupou agora
é de Reed Richards. Na luta culminante entre os dois homens, Esad
Ribic desenha seus rostos (um infinitamente mutável, o outro
marcado por cicatrizes e paralisado atrás de metal) sobrepostos um
ao outro em pequenos quadrados alternados, uma referência ao
tabuleiro de xadrez que apareceu na primeira imagem de Jack Kirby
de Destino em The Fantastic Four nº 5, de 1962, no desenho de
Destino feito por Jim Steranko em Strange Tales nº 167, de 1968, e na
recomposição de Mike Zeck da imagem de Steranko em Master of
Kung Fu nº 59, de 1977382.
A capa de Alex Ross para esta edição final de Guerras Secretas é
ainda mais alusiva. Ela mostra o embate entre Richards e Destino
em uma composição que lembra as batalhas que foram sobrepostas
a imagens fragmentárias em Secret Wars II nº 9 e Giant-size Avengers
nº 2. As imagens rasgadas que cercam os dois são reproduções
pictóricas feitas por Ross de momentos de várias histórias cruciais
da Marvel: Bruce Banner sendo atingido pelas costas por radiação
gama; o nascimento de Franklin Richards; Tony Stark olhando
bêbado para o próprio reflexo; e assim por diante. O Homem-
Aranha aparece na pose da capa de Superman vs. The Amazing Spider-
Man de 1976, com apenas a ponta da bota do Super-Homem visível
na borda da pintura de Ross. (Não pode haver Marvel sem DC.)
Quando o conflito termina, a história avança meses no tempo
novamente para o encerramento. A conhecida “Terra primordial”
(ou seja, 616) é agora a única, pelo menos no momento. Ela foi
restaurada, ou refeita, com apenas algumas mudanças, como o
acréscimo de Miles Morales à população383. Reed e Sue Richards e
sua família ampliada permanecem fora da realidade, cercados por
terra crua e pontos de luz; eles voltarão algum dia, mas não ainda.
Franklin Richards, que agora atingiu a idade em que as crianças
descobrem os gibis, se tornou efetivamente Deus, mas não à
maneira de Destino, que queria preservar o passado e moldá-lo para
se lisonjear. Franklin acabou de virar uma divindade. Ele está
sonhando com “universos inteiros”, que então se tornam reais.
“Tudo isso tem que ser catalogado. Registrado. Explorado”, diz sua
irmã, Valeria. (É para isso que os gibis existem.) É uma entrega
simbólica da história da Marvel das mãos de revivalistas de glórias
passadas, como Destino, para as mãos de uma nova geração (de
personagens, leitores ou criadores).
As últimas palavras do épico de Hickman são “tudo vive”.
Tematicamente, isso faz sentido, mas é uma nota cafona para
encerrar, uma fanfarra em tom maior e alegre para concluir uma
fuga estrondosa em tom menor384. É o tipo de resolução redentora
que a história da Marvel sempre prometeu — um ponto culminante
em meio milhão de páginas. Mas também não é o fim, porque nada
termina para sempre. Graças aos atrasos na publicação de Guerras
Secretas, quando a última edição apareceu, quase todas as séries de
longa data da Marvel já haviam sido relançadas e tinham
ultrapassado esse epílogo. All-New, All-Different Avengers já estava em
sua terceira edição, por exemplo.
E quanto a tudo o que Hickman e seus colaboradores nos
mostraram nos três anos anteriores? Ah, aquilo aconteceu, ou
aconteceu em sua maior parte. Quando os personagens
posteriormente mencionam o fato, eles insinuam que houve algum
tipo de crise enorme, mas passaram bem por ela. Como leitores,
mais uma vez deixamos de perceber alguma coisa importante. Todo
mundo deixou. É assim que as coisas são quando se lê gibis de
super-heróis.
356 Veja o capítulo 4. (N. A.)
357 Quando Vingadores: Era de Ultron foi lançado em 2015, o jornal The Wall Street Journal
analisou quais personagens apareceram com mais frequência nos setecentos e tantos gibis
da equipe publicados até aquele momento. O Capitão América foi o integrante mais regular,
com algumas pausas prolongadas; o Homem de Ferro, Thor e o Visão foram os únicos
outros integrantes que apareceram em mais de trezentas edições. (O Hulk apareceu apenas
trinta e sete vezes — menos do que Starfox, Cristalys, Sersi e Golias, nenhum dos quais
jamais encabeçou títulos próprios.) (N. A.)
358 Esse grupo específico de personagens nunca tinha feito parte dos Vingadores nos
quadrinhos ao mesmo tempo até Avengers Assemble nº 1, publicado no início de 2012. (N. A.)
359 Eu peguei a maior parte dessa interpretação em relação aos Construtores de uma
postagem contemplativa no fórum /r/comicbooks/ do Reddit escrito por alguém com o
nome de usuário seer358. Obrigado, seja você quem for. (N. A.)
360 Em 1994, houve uma revista X-Men/Captain Universe que era possível ser encomendada
pelo correio, em que o herói na verdade seria você: o gibi estava disponível em edições com
o Capitão Universo desenhado como homem ou mulher, e seu nome seria inserido no
diálogo por computador, à maneira de livros infantis personalizados. (N. A.)
361 Hickman tem um olho clínico para trechos interessantes de gibis antigos, alguns que se
transformam em referências em seus próprios títulos, de maneira proposital ou acidental.
O discurso “tudo morre” evoca um diálogo do Wolverine que abre Uncanny X-Men nº 337, de
1996: “As coisas mudam. As pessoas mudam. Você. Eu. Todos nós… todos os dias de nossas
vidas. O dia em que você parar de mudar… é o dia em que você morrerá”. (N. A.)
362 Experimento de pensamento ético originalmente proposto pela filósofa britânica
Philippa Foot (1920-2010) nos anos 1960: diante do avanço de um bonde desgovernado, que
passaria por cinco pessoas inertes sobre os trilhos, você tem a opção de acionar uma
alavanca e desviá-lo para outra linha, onde há só uma pessoa sobre os trilhos. O que você
faria? (N. T.)
363 A equipe completa dos Vingadores que preencheria o diagrama nunca é concluída,
embora uma série derivada, Avengers World, tenha dedicado as primeiras quatorze edições
ao tipo de história convencional de aventura em equipe que Hickman estava ignorando. (N.
A.)
364 Logo depois, uma personagem chamada Cisne Negro — um arauto das incursões, cujo
papel em New Avengers é basicamente insistir que não há esperança — apresenta seu
próprio mito de criação, uma inversão daquele de Avengers nº 1: “Havia tudo. Seguido de
nada. Uma bocarra aberta e rodopiante que engoliu sóis vivificantes. E então… nós nos
encolhemos de medo na noite”. (N. A.)
365 Na obra do poeta William Blake (1757-1827), Urizen é a personificação da sabedoria e da
lei na forma de um velho barbudo; os glandelinianos são tiranos ateus escravagistas criados
pelo escritor e artista plástico Henry Darger (1892-1973). (N. T.)
366 Starlin retornou para um punhado de projetos, especialmente a primeira publicação da
Marvel rotulada como “graphic novel”, A Morte do Capitão Marvel, de 1982; ele também
escreveu e desenhou a própria série independente, que não era ambientada no universo
ficcional dos outros, “Metamorphosis Odyssey”/Dreadstar para o selo Epic da Marvel, entre
1980 e 1986. (N. A.)
367 Outro diagrama de Hickman apareceu em cada edição: um fluxograma explicando a
sequência cronológica de Infinity e as edições derivadas de Avengers e New Avengers. (N. A.)
368 Uma delas é a nova Miss Marvel; veja o capítulo 20. (N. A.)
369 Esse enredo também é uma duplicata: a premissa de uma das séries Marvel Now! mais
bem-sucedidas, All-New X-Men, era que os integrantes adolescentes originais dos X-Men,
dos gibis publicados há cinquenta anos, de repente foram transportados no tempo para os
dias atuais. (N. A.)
370 Avengers World publicou algumas edições intituladas Antes do Tempo Esgotado,
explicando desnecessariamente um pouco do que Hickman sugere que aconteceu nesse
intervalo de oito meses. (N. A.)
371 A transição de “cinco anos depois” no filme Vingadores: Ultimato, de 2009,
provavelmente deve alguma coisa a esse gesto. (N. A.)
372 Hickman amarra algumas das tramas e abandona outras; o apocalipse significa que
nem tudo será resolvido. (N. A.)
373 Apenas na edição original americana; a faixa está ausente na capa de Os Vingadores nº
27 da Panini (que chamou a saga de Mundo do Amanhã, mas depois a encadernou como
Tempo Esgotado, para confusão dos leitores). (N. T.)
374 Em Marvel Super Heroes Secret Wars nº 11, tendo usurpado o poder do Beyonder, o
Doutor Destino fala: “Agora, eu sou todo-poderoso! Não tenho nada a provar a criaturas
inferiores — e nenhuma é igual a mim! Estou completo… sereno em minha onipotência! Os
desejos obscuros e fervilhantes que antigamente guiaram e moldaram Doom não existem
mais! Nada neste universo — nada do que você possa conceber, não importa o escopo
cósmico — poderia merecer minha atenção! Pois assim como a eternidade é para você… Eu
sou para a eternidade! Eu transcendi todas as preocupações deste plano de existência”. E
assim por diante. (N. A.)
375 O design de Ditko para a cabeça de Dormammu é um rosto de olhos vazios e boca
aberta, representado por nada mais do que um punhado de linhas verticais cercadas pela
silhueta de uma chama. É aterrorizante e impossível de reproduzir em qualquer outra
mídia; o filme Doutor Estranho tentou e ficou devendo. (N. A.)
376 Em 1931, Butterfield publicou o livro The Whig Interpretation of History, que critica
historiadores que, segundo ele, pensam que em qualquer ponto da História “o que quer que
fosse, estava certo”, ou pelo menos que era melhor do que “o que era antes”. O termo Whig
é inspirado no partido inglês Whig (dissolvido em 1859), a favor do poder do parlamento,
adversário do partido Tory, pró-monarquia. (N. T.)
377 Mark Gruenwald era basicamente um roteirista e editor, e de vez em quando tentava
desenhar; ele realmente não desenhou nenhum cenário de fundo nesta história porque não
havia nenhum para desenhar. (N. A.)
378 O M em “M. Hands” significava “Many”, ou seja, “essa edição estava tão atrasada que
todos colaboraram com a colorização”. O irmão de Many, Diverse, também de vez em
quando recebe um crédito. (N. A.) (Nota do tradutor: Many Hands ou Muitas Mãos, em
inglês; assim como Diverse Hands seria Mãos Diversas, para indicar que vários nomes
trabalharam na mesma tarefa.)
379 Veja o capítulo 4. (N. A.)
380 O modelo para esse programa de publicação foi A Era do Apocalipse (veja o o capítulo
10), e a ideia inicial aparentemente foi que todas as séries parassem para Guerras Secretas.
Na prática, algumas precisaram de mais tempo para encerrar a história, e as séries
metafísicas e metaficcionais Silver Surfer e Loki: Agent of Asgard (veja o capítulo 12)
estenderam suas narrativas para o espaço em branco onde o universo havia estado, levando
seus protagonistas para além do fim de tudo. (N. A.)
381 No caso, a revista dos Guardiões da Galáxia virou “Guardiões de Lugar Nenhum”. (N. T.)
382 Veja o capítulo 8. (N. A.)
383 Veja o capítulo 6. (N. A.)
384 Hickman ainda tinha algumas pontas soltas para amarrar — uma paródia curta dos
próprios exageros na comédia Secret Wars Too, e as duas edições finais de S.H.I.E.L.D. que
vinham sendo adiadas —, mas ele se aposentou do mainstream por mais de três anos,
retornando à Marvel em 2019 para assumir X-Men; veja o capítulo 10. (N. A.)
19.
INTERLÚDIO: LINDA CARTER
W
arren Ellis comentou certa vez que a onipresença de super-
heróis nas histórias em quadrinhos era “como se todas as
livrarias do planeta tivessem noventa por cento das
prateleiras cheias de livros de ficção de enfermeiras.
Imagine só. Você quer um novo livro, mas precisa percorrer
trezentos títulos novos a respeito de romances nas enfermarias
antes de chegar a qualquer outro gênero… Gibis de super-heróis são
como fungos rastejantes malditos e sufocam todo o resto.”
Ellis, que escreveu alguns gibis excelentes de super-herói385,
apresenta um argumento que soa razoável, de cara; é um argumento
que poderia ter sido feito tanto de gibis policiais em 1948 quanto de
gibis de romance em 1950. Por outro lado, se existisse, digamos, um
romance-rio de 2.700 volumes com uma interconexão complexa e,
de vez em quando, extraordinária, a respeito da equipe de
enfermagem de um determinado hospital no decorrer de seis
décadas — ou um épico dos quadrinhos de meio milhão de páginas a
respeito do mesmo assunto — que se tornou uma pedra de toque da
cultura contemporânea, aposto que você também estaria
interessado.
Mais ou menos no início da Marvel, houve um momento em que
as coisas poderiam ter acontecido dessa maneira. No fim de 1961, a
linha de revistas em quadrinhos de Martin Goodman começou a
colocar um pequeno logotipo nas capas: “M C”, que poderia
significar Marvel Comics. A primeira série a ter esse logotipo na
edição de estreia, dois meses antes de The Fantastic Four nº 1, foi
Linda Carter, Student Nurse386, uma colaboração entre Stan Lee e o
desenhista Al Hartley.
Lee e Hartley trabalhavam juntos há anos, na maior parte das
vezes em séries de comédia adolescente como Patsy Walker, e
haviam experimentado alguns gibis de curta duração sobre moças
profissionais, como Meet Miss Bliss, Della Vision e Sherry the Showgirl.
Gibis de enfermeiras também já faziam parte da história da Marvel:
a editora já havia publicado trinta e seis edições da comédia leve
Nellie the Nurse, entre 1945 e 1952, depois mais uma em 1957, o
mesmo ano da edição única The Romances of Nurse Helena Grant, de
temática mais dramática. Houve até uma pequena onda de gibis de
enfermeira no início dos anos 1960 — durante sua existência
relativamente breve, Linda Carter, Student Nurse foi acompanhada
nas bancas por Cynthia Doyle, Nurse in Love; Nurse Betsy Crane; Nurse
Linda Lark; The Nurses; Registered Nurse; Three Nurses; e Sue and Sally
Smith, Flying Nurses.
Linda Carter, Student Nurse pertencia a uma seção da linha inicial
da Marvel que não é muito discutida: títulos a respeito de moças que
conquistam seu próprio lugar no mundo, passando pela escola e
seguindo carreiras. (A primeira edição começa com Linda saindo do
táxi diante de um “Hospital Metropolitano”, batizado com esse nome
genérico, para começar o primeiro dia de treinamento; a narração
de Lee anuncia que a vida dela será “cheia de humor, emoções e
romance glamoroso!”)
Millie the Model, Tessie the Typist, Hedy of Hollywood e similares
foram uma parte significativa do que a editora publicou nas décadas
de 1940 e 1950. Tal como aconteceu com seus irmãos mais precoces,
os gibis de monstros, a estética dos títulos de enfermeiras foi
absorvida pelas histórias de super-heróis, embora tenham
demorado mais para desaparecer: Patsy and Hedy continuou sendo
publicado até 1967; Millie the Model, até 1973.
Linda Carter, Student Nurse, por outro lado, durou apenas nove
edições, nunca se firmou como série e não é surpresa que nunca
tenha sido republicada. Ainda assim, considero o título, em vez de
The Fantastic Four, como o ponto onde a história coletiva da Marvel
realmente começa, por três razões.
A primeira é que a revista fez parte do primeiro crossover de várias
séries dentro do universo compartilhado da Marvel, que foi
publicado imediatamente após The Fantastic Four nº 1 — e não
envolveu nenhum super-herói. Patsy Walker apareceu em Kathy (“O
Tornado Adolescente”) nº 14, em uma história que girava em torno
da protagonista e de sua amiga Liz tendo seus desenhos de moda
publicados em Patsy and Hedy nº 79 e Patsy Walker nº 98 daquele mês,
respectivamente. A última edição teve a participação da modelo
Millie Collins, que por sua vez conheceu Kathy em Life with Millie nº
14. Pouco tempo depois, Linda Carter visitou a escola de Patsy em
Patsy Walker nº 99, e Millie conseguiu um trampo para posar para
Jack Kirby — que apareceu como personagem — em Millie the Model
nº 107387.
A segunda razão é que Linda Carter se tornou parte do tecido do
Universo Marvel, embora tenha demorado um pouco para chegar lá.
Depois que Linda Carter, Student Nurse terminou em janeiro de 1963,
ela desapareceu por quase uma década antes de reaparecer
brevemente em Night Nurse, de 1972. Essa série envolvia Linda e
suas colegas com quem dividia apartamento, Christine Palmer e
Georgia Jenkins, todas enfermeiras que trabalhavam no turno da
noite no rebatizado Hospital Geral Metropolitano. Nenhum super-
herói esteve envolvido nesse título, que durou quatro edições.
Trinta anos depois, ela voltou para ficar. Daredevil nº 58, de 2004
apresenta uma clínica médica secreta, administrada por uma
mulher conhecida apenas como “enfermeira noturna”, onde os
super-heróis feridos podem ir para serem tratados, sem perguntas.
A enfermeira noturna e sua clínica continuaram a aparecer aqui e
ali nos gibis da Marvel desde então (ela ajuda os aliados do Capitão
América em Guerra Civil e vive um breve romance com o Doutor
Estranho na minissérie Doutor Estranho: O Juramento, de 2006). Com
o tempo, foi revelado que ela é Linda Carter e que encontrou a
verdadeira vocação na vida após ter sido salva por super-heróis.
A terceira razão pela qual gosto de considerar Linda Carter, Student
Nurse nº 1 como o verdadeiro ponto de partida do que li para este
livro é que a grande narrativa da Marvel ganha uma beleza estranha
se for a história de Linda. É ridículo pensar em qualquer
personagem como o protagonista desse épico de meio milhão de
páginas, é claro, mas… e se isso fosse verdade? O que significaria se
a história da Marvel fosse realmente a respeito dela, por menor que
seja o tempo comparativo que ela passou no papel?
A história da Marvel é compreendida, muitas vezes, como uma
história para meninos; com Linda no centro, ela também pertence a
uma tradição específica de histórias para meninas. É uma história
em que a ciência e o conhecimento são forças definidoras; como a
história de Linda, ela trata de uma mulher que começa a parte mais
importante de sua educação na primeira página e continua
aprendendo mesmo quando se afasta de nossos olhos.
Linda Carter vive em um mundo mais perigoso e avassalador do
que qualquer coisa que ela poderia ter imaginado quando chegou ao
Hospital Metropolitano. Se o volume de gibis da Marvel é a história
dela, ela envolve como esse mundo mudou em volta de uma mulher
que tem a perspectiva dos leitores da história — alguém sem poderes
especiais ou dons sobre-humanos. A vida de Linda deu a ela
exatamente o que o velho vigarista Stan Lee prometeu quando a
personagem apareceu pela primeira vez: emoções, mas também
humor e romance glamoroso. O que Linda aprendeu com os
personagens da Marvel que a salvaram é como ser corajosa e
bondosa — e também que pode ser divertido ter outro nome e, às
vezes, usar uma capinha.
385 Veja o capítulo 16 para mais informações a respeito dele. (N. A.)
386 “Essa não é a…?” Quase. Você está pensando em Lynda Carter, que interpretou a
Mulher Maravilha na TV de 1975 a 1979. (N. A.)
387 Os novos personagens dos gibis de super-heróis só foram se encontrar mais de um ano
depois: em março de 1963, o Quarteto Fantástico apareceu em The Amazing Spider-Man nº 1,
e o Hulk surgiu em The Fantastic Four nº 12. (N. A.)
20.
O BEM É UMA COISA QUE VOCÊ FAZ
O
s super-heróis estão em toda parte — tão onipresentes na
cultura pop que é fácil considerar que todo mundo sabe o que,
exatamente, eles são e quais são as histórias a respeito deles.
As pessoas reconhecem instintivamente uma narrativa de
super-herói à primeira vista e quase sempre descrevem as
convenções do gênero de forma errada, em parte porque Stan Lee e
seus colaboradores mudaram essas convenções há mais de meio
século e a percepção do público ainda não se atualizou.
“Justiceiros combatentes do crime com identidades secretas”, por
exemplo, parece razoável — mas no que diz respeito aos
personagens da Marvel, o paradigma da “identidade secreta” está
praticamente morto. Ele se encaixa muito bem no Homem-Aranha e
acabou voltando a valer para o Demolidor, depois de muitos anos
sem se aplicar a ele388. Mas esse paradigma mal descreveria
qualquer outro personagem importante na história da Marvel por
um tempo, e nunca foi verdade para a maioria deles para início de
conversa.
“Combatentes do crime” também não é muito correto.
Novamente, de vez em quando isso até é verdade para o Homem-
Aranha e alguns outros, mas nunca se encaixou no Quarteto
Fantástico, e faz décadas desde que vimos o Pantera Negra, o Doutor
Estranho ou os X-Men fazerem qualquer coisa que as forças da lei
real não pudessem lidar de alguma forma, a não ser por uma rápida
cena ocasional de passagem. “Capas e malhas colantes”? Muitos
deles ainda usam roupas justas; capas nem tanto, e quando qualquer
um que não seja o Super-Homem, o Batman ou o Thor exibe uma
capa, geralmente é de uma maneira muito proposital ao estilo “olha,
essa pessoa está usando uma capa” (como Linda Carter). “Crianças
ajudantes”? Para os leitores nascidos depois de 1960, isso está,
basicamente, apenas em Batman.
É
É mais correto dizer que as convenções dos personagens super-
heróis — que não são inflexíveis — são que eles têm habilidades
incomuns, pseudônimos que não são seus nomes regulares389 e
trajes distintos. Eles são dignos de simpatia; o público geralmente se
identifica com as motivações principais dos super-heróis, exceto
quando são explicitamente convencidos a não se identificar. Os
antagonistas dos super-heróis são personagens cujas ideologias se
opõem às ideologias dos heróis de alguma forma — o que significa
que geralmente representam alguma coisa que o público dessas
histórias teme (às vezes, as ideologias dos vilões também são dignas
de simpatia). E o conflito em geral se desenrola como ação física ou
outra coisa qualquer que seja visualmente estimulante.
Os dois super-heróis da Marvel mais interessantes que surgiram
no século XXI390 oferecem perspectivas oportunas a respeito do que
o conceito de super-herói veio a significar. A Garota-Esquilo e a atual
Miss Marvel391 são ambas mulheres jovens, o público que a Marvel
esqueceu ou negligenciou por décadas. Ambas são estudantes; a
Miss Marvel é filha de imigrantes paquistaneses e, embora a Garota-
Esquilo seja branca, seu elenco de apoio é composto quase
inteiramente por pessoas não brancas. As ideologias e motivações
das duas personagens refletem as preocupações reais de um público
contemporâneo. Nos primeiros anos da Marvel, a juventude
americana estava preocupada com o crime e o comunismo, e com a
revelação de seus segredos. Agora os jovens se preocupam com a
injustiça social, a opressão e a corrupção sistêmicas, e em ter suas
vozes ignoradas e suas identidades, apagadas.
Tanto a Garota-Esquilo quanto a Miss Marvel são mais
interessadas na ideia de super-heróis do que seus leitores; elas
cresceram em um mundo em que eles existem de verdade, desde
que se entendem por gente. As séries Ms. Marvel e Unbeatable
Squirrel Girl, que começaram em meados de 2010, tiveram uma
única pessoa cuidando dos roteiros (e apenas alguns desenhistas de
longa data) por cinco anos em cada uma delas. Ambas as
personagens começaram essas séries como super-heroínas de um
tipo parecido com a compreensão geral do que isso significa —
combater o crime, manter com cuidado vidas duplas e identidades
secretas — e terminaram em um lugar ligeiramente diferente. As
histórias da Garota-Esquilo e da Miss Marvel, como as do Homem-
Aranha, são histórias de amadurecimento, mas abordam como as
pessoas amadurecem agora.
Ms. Marvel nº 1 (abril de 2014)
G. WILLOW WILSON, ADRIAN ALPHONA, IAN HERRING
A capa de Sara Pichelli para a primeira edição de Ms. Marvel parece,
à primeira vista, um close-up de uma super-heroína fantasiada. Olhe
com atenção: ela não está fantasiada, mas todos os elementos do
desenho de Pichelli prenunciam o que esta série será. Kamala Khan,
na primeira imagem que vemos, está vestindo uma camiseta com o
logotipo de relâmpago estilizado da antiga Miss Marvel, junto de
uma echarpe estampada — que não é a echarpe que fará parte de
seu uniforme. Não conseguimos ver os olhos da personagem, nem a
parte do rosto que a máscara vai cobrir, mas dá para saber que a
pele é marrom, contrastando com o rosa intenso do título do gibi. A
mão direita está decorada com anéis e pulseiras (Kamala é uma
adolescente cuja cultura da família é importante para ela) e de
punho fechado (Kamala também é muito fodona). À esquerda, ela
segura três livros escolares (Kamala é estudante e seus pais esperam
muito dela em termos acadêmicos; as histórias sempre abordam
como seu novo papel exige mais tempo). As lombadas dizem
“História dos Estados Unidos” (esta será uma série para a qual a
história do mundo real é muito importante), “Seguindo o Hádice”
(ela é muçulmana e tem orgulho disso) e “Ilustração & Design” (uma
das coisas que Kamala quer é fazer a própria cultura).
Khan é mais uma das criações coletivas da Marvel; sua origem no
mundo real é complicada demais para ser atribuída a um único
criador. Ela surgiu de conversas entre os editores Sana Amanat e
Stephen Wacker a respeito da experiência de Amanat crescer como
muçulmana do sul da Ásia em Nova Jersey, bem como do interesse
do roteirista G. Willow Wilson em criar uma super-heroína
muçulmana adolescente. (“A Sana e eu inicialmente tínhamos
expectativas muito modestas para esta revista”, escreveu Wilson
cinco anos depois. “Nosso objetivo era chegar a dez edições.”) O
desenhista Adrian Alphona criou as imagens de Kamala e seu elenco
de apoio, embora o traje tenha sido desenhado por Jamie McKelvie.
O estilo visual que Alphona e o colorista Ian Herring
desenvolveram para a série anuncia: isto aqui é meio parecido com
aqueles outros gibis de super-heróis, só que é diferente. As bordas dos
quadros de Alphona são desenhadas à mão livre em vez de feitas à
régua392. Elas são um pouco tremidas; sugerem que foram feitas por
uma pessoa. Os traços de Alphona são ultrafinos e um pouco
irregulares, sem variação de peso e efetivamente sem áreas de preto
sólido. (A cor sólida mais escura nas páginas de Miss Marvel é
geralmente o castanho do cabelo de Kamala.) Seus personagens são
sempre ligeiramente distorcidos, como caricaturas suaves; Kamala,
quando usa seus poderes, se torna muito mais caricatural.
As cores de Herring (ele coloriu todas as edições das duas séries
Ms. Marvel escritas por Wilson) também são características da
revista: uma paleta de pastéis e tons de sépia claros, sobrepostos
com camadas de cinza para aumentar a profundidade e dar um
efeito marmorizado de aquarela, que aparece em áreas abertas
maiores dos traços. O letreiramento, feito por Joe Caramagna,
mistura letras maiúsculas e minúsculas para o diálogo, ao contrário
da maioria dos outros gibis ambientados no Universo Marvel393. O
efeito geral é fazer Ms. Marvel parecer muito mais pessoal e
artesanal do que Avengers e Spider-Man, mas não totalmente fora do
mesmo circuito.
Como a capa sugere, este primeiro episódio da história de Kamala
Khan não diz respeito a um super-herói, mas a alguém que deseja
ser um. A única cena de ação convencional em Ms. Marvel nº 1 é um
breve vislumbre da fanfic dos Vingadores feita por Kamala. Nós a
vemos saindo com os colegas do ensino médio e lutando para se
encaixar naquela estrutura social, do jeito bobo e charmoso dela;
nós a vemos brigando com os pais rigidamente religiosos, saindo de
casa para ir a uma festa, caindo inconsciente dentro de uma névoa
misteriosa e tendo uma visão alucinatória de heróis —
especialmente de Carol Danvers, anteriormente conhecida como
Miss Marvel, a heroína que Kamala anseia, acima de tudo, ser.
Ms. Marvel nº 1 (janeiro de 1977)
GERRY CONWAY, JOHN BUSCEMA, JOE SINNOTT, MARIE SEVERIN
“Finalmente!”, declarou a capa da primeira revista Ms. Marvel nº 1,
trinta e sete anos antes. “Uma nova super-heroína ousada, seguindo
a impressionante tradição do Homem-Aranha!”394. Essa é uma
maneira estranha de dizer isso, mas, em meados dos anos 1970, a
Marvel estava realmente interessada em reconstruir a fórmula do
Homem-Aranha e em apelar para a nostalgia em termos gerais. O
traje inicial da Miss Marvel é inspirado no uniforme do antigo
Capitão Marvel, mas expõe barriga e pernas. Sua identidade secreta
é Carol Danvers, personagem coadjuvante menor das primeiras
histórias daquele Capitão Marvel395. Seu elenco de apoio, no início da
série, é a equipe do Clarim Diário, que ela compartilha com o
Homem-Aranha. Até o título da edição é uma referência: “Esta
Mulher, Esta Guerreira!” é tirado do molde de “Este Homem… Este
monstro!”, de The Fantastic Four nº 51.
A Miss Marvel não foi a primeira super-heroína com série própria
na Marvel; a pioneira foi a Gata396, cuja série de 1972 a 1973 foi
cancelada após quatro edições. Mas não houve muitas outras no
período. Mais tarde, em 1977, as primeiras edições de Miss Marvel e
The Cat foram republicadas em uma revista chamado The Superhero
Women — uma das várias antologias de gibis da Marvel lançadas pela
Fireside Books naquela época. Como não havia títulos solo
suficientes de super-heroínas para preencher a edição, The Superhero
Women também incluiu aparições de mulheres superpoderosas
tiradas das páginas de The Amazing Spider-Man e The Fantastic Four,
histórias envolvendo Sonja, a bárbara ruiva de biquíni de cota de
malha; a vilã Hela; e uma esquisitice de 1971, de Stan Lee e John
Romita, chamada “A Fúria das Femizonas” (Exemplo de diálogo: “Eu
sempre fui leal à Aliança da Irmandade Unida — e ao seu credo…
Sexualidade! Solidariedade! Superioridade!”).
Marvel Age Preview nº 2 (março de 1992)
RENÉE WITTERSTAETTER E OUTROS
Nas décadas seguintes, a Marvel às vezes se saiu um pouco melhor
em contar histórias de personagens femininas — mas não muito
melhor397. Este especial de 68 páginas detalha todos os projetos que
a Marvel planejava publicar em 1992, divididos em dezoito
categorias — “Grandes Nomes”, “Ficção Científica”, “Derivados de
Cinema e TV” e similares. No meio da revista há duas páginas
dedicadas a uma seção chamada “Leitoras Femininas”, que lista três
títulos: Barbie, Barbie Fashion e uma sequência em edição única de
Yuppies from Hell, de Barbara Slate, de 1989. (Esse último nunca
saiu.) Dos 102 títulos restantes descritos no especial, dois levavam
nomes de personagens femininas: Silver Sable e She-Hulk.
Vale a pena notar que antes dos gibis de super-heróis voltarem no
início dos anos 1960, a empresa que se tornaria a Marvel publicou
um número surpreendentemente alto de revistas em quadrinhos
estreladas por mulheres. Em abril de 1957, por exemplo, havia sete,
de um total de quarenta e oito publicações: A Date with Millie, Jann
of the Jungle, Lorna the Jungle Girl, Millie the Model, Patsy and Hedy,
Patsy and Her Pals, e Sherry the Showgirl. (Isso sem contar as
antologias de romance398, cujas protagonistas eram sempre
mulheres — apenas séries cujos títulos indicavam personagens
femininas específicas.) Na era dos super-heróis, isso mudou. Desde
meados dos anos 1970, muitas vezes houve apenas um ou dois títulos
sendo publicados em dado momento, e de vez em quando não havia
nenhum — entre o encerramento de Codename: Spitfire, em 1987, e o
início de The Sensational She-Hulk em 1988, por exemplo.
Agora esse cenário está mudando novamente. Das 85 novas
revistas da Marvel com data de março de 2020, treze eram títulos
solo estrelados por mulheres. (Trinta e oito eram títulos solo com
protagonistas masculinos; os outros 34 não receberam o nome de
um personagem específico.) Não é paridade, mas também não é
desprezível, e o divisor de águas parece ter sido o início da série
Captain Marvel, de 2012.
Captain Marvel nº 1 (setembro de 2012)
KELLY SUE DECONNICK, DEXTER SOY
A primeira série Ms. Marvel terminou em 1979, e Carol Danvers se
juntou à massa de personagens sem raízes da Marvel. Ela perdeu e
recuperou os poderes; mudou o nome de super-heroína para Binária
por um tempo, depois para Warbird e, depois, de volta para Miss
Marvel em uma série que durou de 2006 a 2010. O Capitão Marvel
original morreu em 1982, e esse nome foi passado para alguns
personagens desde então. Aqui, Carol toma a alcunha para si. A
série Captain Marvel de 2012 considerou que ela estava finalmente
cumprindo seu potencial — e que Carol Danvers se tornou muito
importante ao fazer isso. O título não foi exatamente um campeão
de vendas, mas seus fãs estavam muito entusiasmados — um grupo
organizado se autodenominava “Carol Corps”399 — e o mindshare400
importa mais do que vendas de edições individuais, de qualquer
forma: esta é a versão da personagem que levou ao filme de enorme
sucesso de 2019, Capitã Marvel. A mudança de identidade de Carol
Danvers também deixou o nome “Miss Marvel” livre novamente, e
foi aí que veio Kamala Khan.
Ms. Marvel nº 5 (agosto de 2014)
G. WILLOW WILSON, ADRIAN ALPHONA, IAN HERRING
A história de origem da nova Miss Marvel é lenta, como costuma ser,
mas zelosa. Seus poderes — ela pode mudar o tamanho e a forma do
corpo de maneiras que nem sempre consegue controlar — são uma
metáfora espirituosa para o que as adolescentes passam de modo
geral. (A palavra perfeita que Kamala usa para descrever o que é
capaz de fazer é “gigantar”401, neologismo tirado de um episódio de
Os Simpsons de 1996.) Ela idolatra Carol Danvers a ponto de se
disfarçar de loura e branca no início, mas rapidamente percebe que
não é isso o que ela realmente é.
Somente nesta edição é que ela passa a usar um uniforme e
descobre como usar suas habilidades. É também aqui que Wilson
formula a declaração de propósito de Kamala: “Ser do bem não é
uma coisa que você é. O bem é uma coisa que você faz”.
Essa fala cristalizou a Miss Marvel: ela apontou o caminho para
tudo o que a personagem se tornou. Parece um lema muito simples,
pois se aplica de forma genérica aos super-heróis, mas não é. O
objetivo de Kamala não é honrar sua responsabilidade (como o
Homem-Aranha), ou punir os culpados (como o Justiceiro), ou
proteger seu povo (como os X-Men), ou defender seu reino (como o
Pantera Negra), ou expiar os pecados do passado (como a Viúva
Negra), ou defender os ideais americanos (como o Capitão América).
Ela quer, acima de tudo, fazer o bem no mundo, e os conflitos mais
interessantes em suas histórias surgem quando Kamala luta para
entender o bem que ela pode fazer — qual seria a decisão correta e o
que ela pode perder ao tomar aquele caminho.
Ms. Marvel nº 6 (setembro de 2014)
G. WILLOW WILSON, JAKE WYATT, IAN HERRING
Depois de todas aquelas décadas tentando reconstruir a receita
indescritível que fez o Homem-Aranha funcionar, na maioria das
vezes imitando os aspectos errados da premissa do personagem, a
Marvel finalmente acertou na mosca novamente com Ms. Marvel.
Kamala Khan é, efetivamente, um Peter Parker do século XXI: uma
adolescente incompreendida, com nome aliterativo, tentando
conquistar seu espaço no mundo. Como Parker, ela está fora do
centro da ação (em Jersey City, em vez de Forest Hills); como ele,
Khan está tentando equilibrar as exigências acadêmicas e os
labirintos sociais do ensino médio com uma vocação pessoal que a
mantém acordada a noite toda, enquanto esconde o mais
importante a respeito de si mesma das pessoas de que mais gosta. E
como o Homem-Aranha, a Miss Marvel torna engraçada quase toda
cena em que está. Ela não é uma piadista como Peter, mas seu
entusiasmo sincero e exagerado em relação a absolutamente tudo é
fonte consistente de humor. (Ao conhecer o Wolverine dos X-Men
nesta edição: “Eu não consigo acreditar. Vou desmaiar. Eu coloquei
você em primeiro lugar na minha equipe de heróis de fantasia!”)
Mesmo assim, Wilson mexe um pouco no modelo do Homem-
Aranha, especialmente de maneiras que são consequências do
entusiasmo de Kamala por fazer o bem por si só. As primeiras
edições de Ms. Marvel haviam apresentado o xeique Abdullah, o imã
da mesquita da família Khan, como uma espécie de figura similar a
J. Jonah Jameson, um velho reclamão que eternamente dificultaria a
vida dela. Aqui, Kamala é forçada a conversar com ele a respeito do
motivo por estar saindo de casa às escondidas. Ela diz a Abdullah
que está ajudando as pessoas (enquanto poupa detalhes), e o imã a
surpreende — e a nós — sendo completamente solidário: ele
aconselha Kamala a “fazer o que está fazendo com o máximo de
honra e habilidade que puder”. (“Achei que o senhor ia me alertar a
respeito de Satanás e dos meninos.”, “Eu tenho feito palestras para
jovens nesta mesquita há dez anos. Se eu ainda tiver que alertar a
respeito de Satanás e dos meninos, mereço perder meu emprego.”)
Marvel 75th Anniversary Celebration nº 1 (dezembro de
2014)
JAMES ROBINSON, CHRIS SAMNEE, JORDIE BELLAIRE, BRUCE TIMM, STAN
LEE E OUTROS
A história curta que inicia esta antologia imagina o paradeiro de
vários personagens no momento em que começa The Fantastic Four
nº 1, há mais ou menos quatorze anos de tempo Marvel. O Doutor
Donald Blake planeja férias na Noruega, Peter Parker mostra ao tio
Ben algumas fotos que andou tirando, e assim por diante. A última
cena é de Kamala Khan garotinha, brincando com uma bola do
Capitão América ao ser chamada pela mãe para jantar.
Esta edição também inclui a última história que Stan Lee escreveu
para a Marvel — uma adaptação em quadrinhos da primeira história
dele, “Captain America Foils the Traitor’s Revenge”402, um pequeno
texto em prosa publicado em Captain America Comics nº 3, de 1941. E
tem um cartum de uma página a respeito da Garota-Esquilo, o
motivo de chacota preferido entre os personagens da Marvel,
imaginando como seria uma ideia boba se ela tivesse a própria
revista em quadrinhos.
The Unbeatable Squirrel Girl nº 1 (março de 2015)
RYAN NORTH, ERICA HENDERSON, RICO RENZI
A Garota-Esquilo apareceu pela primeira vez em 1991, em uma
história isolada do Homem de Ferro (publicada na antologia Marvel
Super-Heroes, que servia para desovar sobras de material) do
roteirista Will Murray e do desenhista Steve Ditko: uma adolescente
com uma cauda espessa que de alguma forma derrota o Doutor
Destino comandando esquilos. Seria possível dizer que ela foi a
última cocriação importante de Ditko na Marvel, exceto que
demorou muito até que alguém pensasse na Garota-Esquilo nesses
termos. Por quase vinte e cinco anos, foi uma personagem do tipo
acredita que publicamos isso?, aparecendo como a integrante suprema
da ralé entre os bufões de Great Lakes Avengers [Vingadores Centrais] e
como alívio cômico bizarro em The New Avengers, como a babá de
Luke Cage e Jessica Jones, que continuava vencendo batalhas
impossíveis fora das páginas.
Então o roteirista Ryan North e a desenhista Erica Henderson
criaram uma nova abordagem para a Garota-Esquilo nesta série de
2015, e de repente ela virou uma personagem com quem as pessoas
riam, em vez de rirem dela. The Unbeatable Squirrel Girl faz a
pergunta: que tipo de personagem contemporâneo prosperaria no
velho paradigma de gibis de super-heróis de lutar contra vilões e
monstros superpoderosos? E a resposta é “alguém muitíssimo
eficiente em resolução criativa de conflitos sem recorrer à
violência”.
Essa é a piada central, que a repetição só torna mais engraçada. A
Garota-Esquilo é realmente imbatível403, e não porque ela consiga
fazer um exercício de supino mais pesado do que qualquer outra
pessoa ou algo assim (embora ela seja muito forte e resistente). É
porque a Garota-Esquilo é bondosa, perspicaz e curiosa, e encontra
maneiras para que todos saiam dos conflitos com seus interesses
básicos atendidos. Ela “gosta de combater o crime”, como diz no
início da primeira edição (cantando a própria canção-tema, ao som
do tema do desenho animado do Homem-Aranha dos anos 1960),
mas sua noção de combater o crime tem mais a ver com convencer
os criminosos a dar um uso mais socialmente produtivo para suas
habilidades do que espancá-los.
Como Miss Marvel, Squirrel Girl declara que é “um gibi de super-
herói, mas não como outros gibis de super-herói” por meio de seu
estilo visual. O traço de Henderson é muito caricatural, com
pinceladas grossas e expressivas e linguagem corporal distinta para
cada personagem. (O queixo pontiagudo da Garota-Esquilo faz a
cabeça parecer um pouco com uma bolota.) O colorista Rico Renzi
praticamente só usa tons chapados, a não ser em um trecho de
cenário aqui e ali; o letrista Clayton Cowles usa um tipo de letra
maiúscula e minúscula no estilo de Ms. Marvel, e muitas páginas
incluem uma linha de comentários de North em letras douradas
minúsculas no rodapé, como piada adicional404.
Fiel ao modelo arcaico de “colocar um uniforme e combater o
crime”, a Garota-Esquilo tem um ajudante (um esquilo-fêmea
chamado Mindinha) e, quando enfia o rabo em roupas civis, uma
identidade secreta, que ela não protege muito bem: Doreen Green,
estudante de ciência da computação. Quando a série começa,
Doreen conhece sua colega de quarto, Nancy Whitehead, que
defende a presença proibida de seu gatinho de estimação no
dormitório com base no argumento de que “obedecer a uma lei
injusta é injusto”.
Isso é uma piada feita ao acaso, mas também é um preceito que
Doreen incorpora no decorrer da série. Muitas das piadas
aparentemente descartáveis desta primeira edição se tornam parte
da trama da história da Garota-Esquilo, como os cards “Guia do
Deadpool para os Supervilões” que ela carrega (que
convenientemente servem como explicação para leitores que não
estejam familiarizados com determinados personagens). A Garota-
Esquilo encontra Kraven, o Caçador, o vilão de longa data do
Homem-Aranha, e o convence de que o que ele realmente deveria
estar caçando é Gigantos (“armas biológicas apocalípticas” que
apareceram pela primeira vez em The Fantastic Four nº 4, de 1962);
Kraven continua a aparecer várias vezes mais tarde na série, como
aliado convicto da Garota-Esquilo. E no final da edição, a Mindinha
avisa que os esquilos descobriram algo enorme e aterrorizante se
aproximando da Terra: Galactus.
The Fantastic Four nº 48 (março de 1966)
STAN LEE, JACK KIRBY, JOE SINNOTT
Se este livro fosse um passeio por um lugar real, The Fantastic Four nº
48 ao 50 seria o local com vendedores ambulantes de camisetas do
outro lado da rua — essa saga é tão considerada, e com tamanha
obstinação, uma história definitiva do ponto alto da fase Stan Lee e
Jack Kirby, que é difícil enxergá-la claramente através das paredes
da própria reputação. Galactus, um alienígena enorme de armadura
roxa, chega à Terra com a intenção de devorar a energia do planeta e
destruí-lo. Ele vem acompanhado por seu arauto, o Surfista
Prateado, um homem de pele metálica em uma prancha de surf
voadora. O Quarteto Fantástico tenta impedi-los, mas o fator
decisivo acaba sendo a namorada do Coisa, Alicia, que convence o
Surfista a se rebelar contra seu mestre.
A Trilogia Galactus é brega e exagerada, e o ritmo é bizarro — a
trama envolvendo Galactus só começa no meio do número 48 e
termina na metade do nº 50. Deveria ser propositalmente teatral, no
sentido de Susan Sontag de “falha de seriedade”405. Mas não falha.
Kirby e Lee estão tão comprometidos com a gravidade da história
que ela realmente dá a sensação de mergulhar no vazio e ser
milagrosamente poupada.
Desde então, Galactus tem sido basicamente uma presença que
representa a catástrofe avassaladora e impossível nos quadrinhos da
Marvel, uma força exterminadora de mundos, mais antiga do que o
próprio universo, contra a qual não pode haver resistência. A
presença dele significa que uma história em que Galactus apareça
deve acontecer no nível daquilo que um personagem de The
Fantastic Four nº 49 chama de “o grande jogo cósmico de vida e
morte”. O que quer dizer: ele é muita areia para o caminhãozinho da
Garota-Esquilo.
The Unbeatable Squirrel Girl nº 4 (junho de 2015)
RYAN NORTH, ERICA HENDERSON, RICO RENZI
Que pena. Como Doreen Green é a única que sabe que Galactus está
chegando, ela vai ter que dar um jeito. No final de The Unbeatable
Squirrel Girl nº 3, ela voa para a Lua (em uma das armaduras do
Homem de Ferro) e o confronta; a primeira página da edição
seguinte mostra Doreen tirando uma selfie sentada em cima de
Galactus caído na superfície lunar e dizendo: “bem, caramba, isso
não foi tão difícil, afinal!”. O rodapé da página tem o recordatório
“Fim!”. Vire a página e há a seção de cartas. Feito.
Vire a página novamente após a seção de cartas e há o
recordatório: “ok, tudo bem, acho que não é o fim”. A Garota-
Esquilo, como se revela, salvou o dia fazendo amizade com Galactus
e encontrando para ele um planeta desabitado cheio de nozes para
devorar. (“Então voltamos à Lua para nos deitar porque todos nós
comemos demais, e cá estamos!”) Essa também parece o tipo de
piada única que nunca mais seria mencionada — mas, assim como
The Unbeatable Squirrel Girl se recusa a levar as coisas muito a sério,
o título também joga rigorosamente pelas regras da continuidade do
universo Marvel406. Tudo o que vemos acontecer se torna parte de
sua história.
Ms. Marvel nº 19 (dezembro de 2015)
G. WILLOW WILSON, ADRIAN ALPHONA, IAN HERRING
Quando toda a linha de gibis da Marvel terminou e recomeçou como
resultado de Guerras Secretas, The Unbeatable Squirrel Girl tratou isso
como uma pausa de semestre: o apocalipse era pesado demais para
seu tipo de humor. Miss Marvel, porém, aproveitou aquele momento
para mostrar como Kamala Khan reagiria ao fim iminente de tudo.
As últimas quatro edições antes do intervalo, números 16 ao 19,
acontecem durante as oito horas caóticas antes da colisão dos
universos. Kamala finalmente conhece Carol Danvers, a mentora
que ela tanto desejava, que ajuda a Miss Marvel a resgatar o irmão
sequestrado, mas lhe dá a notícia de que o mundo provavelmente
está acabando.
Não querendo morrer sem contar a verdade a respeito de si
mesma, ela revela à mãe que é a Miss Marvel. Mais uma vez, Wilson
consegue mostrar como a insistência de Kamala em fazer o bem,
acima de tudo, pode derrubar os clichês de super-heróis: a mãe a
abraça e diz que descobriu isso há um tempo, e que “se a pior coisa
que você faz é sair às escondidas para ajudar pessoas que estão
sofrendo — então agradeço a Deus por ter criado uma filha
virtuosa”.
The Unbeatable Squirrel Girl nº 8 (julho de 2016)
RYAN NORTH, ERICA HENDERSON, ANDY HIRSCH, RICO RENZI
Um supervilão, para a Garota-Esquilo, é alguém que precisa
reconsiderar as próprias atitudes e usar seus dons para objetivos
melhores; um monstro é uma criatura que ataca porque suas
necessidades não estão sendo atendidas e isso merece um pouco de
compaixão. A sequência de três edições que tem início aqui começa
com um incidente que inicialmente parece não ter relação com o
resto da história: a Garota-Esquilo está com o restante dos Novos
Vingadores407, lutando contra um inseto monstruosamente enorme
que está atacando Nova York. Ela então descobre o que realmente
está acontecendo — é uma lagosta-das-árvores, uma espécie (do
mundo real) de inseto que foi recentemente salva da extinção e
agora está sendo criada em cativeiro. “Você escapou e
acidentalmente foi exposto a raios cósmicos e se tornou gigante?”,
pergunta a Garota-Esquilo à lagosta-das-árvores. (O inseto faz que
sim com a cabeça.) “Ah, meu querido. Você provavelmente está com
fome, hein?” (O inseto concorda novamente.)
A maior parte do resto deste episódio é dedicada a Doreen lidando
com a paixão não correspondida408 por seu colega e aliado,
Chipmunk Hunk, que se juntou ao elenco de apoio junto de Koi
Boi409 (ambos têm exatamente os poderes que você esperaria)410.
Em uma tentativa desastrosa de se distrair com namoro on-line, ela
sai com um “negacionista de super-heróis”. No momento em que o
sujeito tenta convencê-la de que “animatrônicos avançados estão
sendo usados nas chamadas operações de falsa bandeira411 de
‘super-heróis’”, o Toupeira, o vilão subterrâneo que remonta a The
Fantastic Four nº 1, ataca com os monstros gigantes dele.
Novamente, compaixão e empatia são a primeira linha de defesa
da Garota-Esquilo. O Toupeira explica que a influência dela levou
Kraven a atacar os monstros em seu domínio. A reação da Garota-
Esquilo é oferecer um pedido sincero de desculpas, na linguagem
dos ativistas da justiça social, dos livros de autoaperfeiçoamento e
de um modo que nenhum outro gibi de super-heróis jamais fez:
“Cara, eu aceito a verdade de suas experiências de vida e não vou lhe
dizer que seus sentimentos estão errados”.
O Toupeira fica tão impressionado que ela simplesmente não o
atacou, que de imediato propõe casamento à Garota-Esquilo — e
então, quando ela recusa, começa a afundar os marcos do mundo da
superfície e anuncia que só vai parar se a Garota-Esquilo concordar
em sair com ele. Esse é outro tropo412 para o qual The Unbeatable
Squirrel Girl não tem paciência (a capa do número 10 mostra o
Toupeira cumprimentando com um chapéu fedora e dizendo
“madame”). A solução para o problema dela vem na forma de outro
monstro que precisa de compreensão: Tricéfalo, uma criatura de
três cabeças que cospe fogo, que também tem uma história de meio
século nos quadrinhos, e que na verdade sempre amou o Toupeira. É
a fórmula inicial da Marvel novamente: monstros + romance +
super-heróis + atualidade = entretenimento.
Ms. Marvel nº 8 (agosto de 2016)
G. WILLOW WILSON, ADRIAN ALPHONA, TAKESHI MIYAZAWA, IAN
HERRING, IRMA KNIIVILA
Guerra Civil II foi um dos momentos mais confusos dos anos 2010 da
Marvel. Um crossover em grande escala lançado ao mesmo tempo
que a estreia do filme Capitão América: Guerra Civil, de 2016, a saga
aparentemente era uma continuação de Guerra Civil, crossover de
enorme sucesso de dez anos antes. Desta vez, em vez do Capitão
América discordar do Homem de Ferro a respeito de uma questão
que refletia o assunto nacional do momento, o Homem de Ferro e a
Capitã Marvel estavam discutindo a respeito de uma questão que só
tem importância na ficção: se alguém com poderes precognitivos
tem visões de crimes futuros, há problema em prender os autores de
tais crimes antes que eles ocorram413?
No lugar do desenvolvimento gradual da primeira Guerra Civil, o
conflito de Guerra Civil II foi abruptamente jogado no colo do elenco.
A postura da Capitã Marvel (sim, prenda os autores dos crimes e dê
um soco em quem disser o contrário) é bastante inconsistente com o
personagem conforme o estabelecido, e não especialmente
defensável. E a minissérie central Guerra Civil II, escrita por Brian
Michael Bendis, tem um ritmo lento — acabou tendo uma edição a
mais do que o planejado.
No entanto, os derivados de Guerra Civil II nas outras séries da
Marvel incluíram algumas histórias ótimas. A sequência em Ms.
Marvel que se conecta ao crossover, que compreende as edições que
vão do número 8 ao 11, começa com um flashback dos bisavós de
Kamala Khan sendo deslocados de Bombaim para Karachi durante a
divisão da Índia em 1947. (Esse tipo de calamidade, sugere Wilson, é
o que acontece em uma guerra civil de verdade.) O grosso da história
envolve Carol Danvers pedindo a Kamala para supervisionar uma
equipe de “justiça previsível” em Jersey City, e as consequências
desastrosas desse projeto que levam Kamala a brigar com sua ex-
modelo e mentora. Como ela comenta, fazer previsões em relação a
quem vai cometer um crime se parece muito com a análise de perfil
de criminosos414.
All-New, All-Different Avengers Annual nº 1 (outubro de
2016)
G. WILLOW WILSON, MAHMUD ASRAR, TAMRA BONVILLAIN, MARK WAID,
CHIP ZDARSKY E OUTROS
Uma piada-corrente-que-não-é-realmente-uma-piada em Ms. Marvel
é que o passatempo de Kamala é escrever fanfics a respeito de outros
super-heróis. Isso é outra coisa que faz dela uma personagem
contemporânea: é muito comum que as jovens — que hoje são as
mais dedicadas leitoras de quadrinhos415 — inventem as próprias
histórias e as compartilhem umas com as outras.
Esta edição anual, dentro do curto período em que ela foi
integrante dos Vingadores, expande esse conceito. É uma antologia
de pequenas fanfics falsas, em que Kamala fica assustada ao ver
“fanfics totalmente imprecisas” a respeito dela e de seus
companheiros de equipe. Uma história é uma sátira aos roteiros
amadores e sonhadores que debocha dos babacas sexistas que
infestam a comunidade de fãs (“Você apontou o erro das minhas
atitudes! Chega de brigar por justiça social!”, diz a “Miss Marvel” da
história, enquanto Kamala, lendo, só falta explodir de raiva); outra
fanfic imagina a Miss Marvel e a Garota-Esquilo se encontrando pela
primeira vez, disputando uma partida de fliperama e depois saindo
para comer macarons.
The Unbeatable Squirrel Girl nº 26 (janeiro de 2018)
RYAN NORTH, MADELINE MCGRANE, ERICA HENDERSON, CHIP ZDARSKY,
TOM FOWLER E OUTROS
A participação da comunidade de fãs também é um tópico contínuo
em Squirrel Girl — Nancy Whitehead desenha as próprias histórias
de “Cat Thor”, e as seções de cartas da série apresentavam cosplays e
desenhos dos leitores. Esta edição é uma antologia de dez gibis
curtos “feitos pela” Garota-Esquilo e seus amigos super-heróis.
(Como aquele All-New, All-Different Avengers Annual, esta edição está
livre até mesmo da gramática estilística das histórias inseridas no
cânone.) Na verdade, ela foi desenhada por um grupo de cartunistas
cujo trabalho está tão longe da representação visual costumeira da
Marvel quanto o estilo de Erica Henderson. Um deles é o criador de
Garfield, Jim Davis, que desenha uma paródia da própria tira de
jornal, com o gato guloso Garfield e seu pobre dono Jon substituídos
por Galactus e o Surfista Prateado.
The Unbeatable Squirrel Girl nº 31 (junho de 2018)
RYAN NORTH, ERICA HENDERSON, RICO RENZI
Henderson saiu de Squirrel Girl em meados de 2018, embora
continuasse a desenhar as capas e uma página interna aqui e ali. Sua
última edição, antes de Derek Charm assumir o cargo de desenhista
principal da série (trabalhando de modo muito semelhante), é uma
pérola e também a última palavra a respeito de outra tradição
antiquada dos super-heróis: a ideia de heróis “em patrulha”, como
policiais de ronda, procurando problemas para corrigir.
Doreen e Nancy, por razões da trama, se encontram vivenciando o
tempo de maneira tão rápida que o resto do mundo está
efetivamente parado. Elas não conseguem se comunicar com
ninguém a não ser entre si; elas sabem que viverão o resto das vidas
no espaço de alguns dias. E, assim sendo, Doreen e Nancy se
dedicam a “patrulhar” Nova York por esse breve período, mantendo
todo mundo em segurança e resolvendo quaisquer problemas que
puderem.
Esta não é a primeira vez que North e Henderson nos mostram
uma versão da Garota-Esquilo como uma idosa, ainda feliz por fazer
o que faz416; uma vida de bondade, sugerem eles, é uma vida
sustentável.
Exiles nº 1 (junho de 2018)
SALADIN AHMED, JAVIER RODRÍGUEZ, ÁLVARO LÓPEZ, JORDIE BELLAIRE
No mesmo mês, a primeira edição de Exiles — nova encarnação de
um título antigo com versões de personagens oriundos de muitos
universos alternativos — apresentou uma possível futura Kamala
Khan. Ela tem cicatrizes, cabelos grisalhos e anda fortemente
armada, uma das últimas defensoras de Jersey City em uma linha do
tempo catastrófica. Kamala fica com raiva ao ouvir o nome “Miss
Marvel”; ela é apenas chamada de “Khan”.
All-New Wolverine nº 33 (junho de 2018)
TOM TAYLOR, RAMON ROSANAS, NOLAN WOODARD
A sequência “A Velha Laura” que concluiu a série All-New Wolverine
foi uma visão de Laura Kinney, o segundo Wolverine, em um futuro
possível (um paralelo à trama de O Velho Logan de dez anos atrás que
fez algo similar para o primeiro Wolverine). No primeiro episódio,
também publicado no mesmo mês, há uma cena breve em que
vemos o que Kamala Khan está aprontando naquele futuro: ela é a
presidente dos Estados Unidos.
Ms. Marvel nº 31 (agosto de 2018)
G. WILLOW WILSON, NICO LEON, SALADIN AHMED, GUSTAVO DUARTE,
IAN HERRING E OUTROS
A quinquagésima edição de Ms. Marvel (contando o relançamento) é
uma jam comemorativa, com Wilson e Nico Leon, que era então o
desenhista regular da série, acompanhados por outros três
roteiristas417 e outros três desenhistas. A edição também diz respeito
a uma festa: do pijama, com três das amigas mais próximas de
Kamala, e um sinal de que ela alcançou um pequeno marco social
com as colegas. (Apesar da ação envolvendo socar vilões e
“gigantar”, todos os momentos memoráveis da série envolvem os
relacionamentos dela com a família e seu círculo social.) Após várias
interrupções, incluindo uma parceria com Miles Morales (Homem-
Aranha), ela revela a dupla identidade para as amigas. Elas também
sabiam há muito tempo, é claro.
The Unbeatable Squirrel Girl nº 50 (janeiro de 2020)
RYAN NORTH, DEREK CHARM, ERICA HENDERSON, RICO RENZI
“Esta revista é um experimento”, escreveu Ryan North na primeira
edição de The Unbeatable Squirrel Girl: “será que uma revista como
esta consegue encontrar um público? Será que as pessoas DE FATO
vão ler um gibi a respeito de alguém que se veste como um animal
parecido com um roedor e luta contra o crime em uma grande área
metropolitana, mesmo que esse animal NÃO SEJA um morcego?”. De
fato, The Unbeatable Squirrel Girl encontrou seu público, embora
mais na forma de encadernações do que de revistas regulares, e
sobreviveu por um tempo bastante longo e impressionante segundo
os padrões contemporâneos: 58 edições (incluindo oito da série pré-
Guerras Secretas) e uma graphic novel independente, The Unbeatable
Squirrel Girl Beats Up the Marvel Universe.
Quando as séries terminam hoje em dia, seus criadores
geralmente sabem com antecedência o suficiente para encerrar as
tramas pendentes. Isso nem sempre foi o caso; as últimas edições
costumavam terminar com uma notinha de desculpas, avisando que
a história continuaria em outro lugar ou coisa pior. Um dos últimos
gibis que Jack Kirby desenhou antes de sair da Marvel, Silver Surfer
nº 18, de 1970, termina com um gancho dramático e uma chamada
para a próxima edição, mas a tal próxima edição nunca apareceu418.
Squirrel Girl, porém, teve um pouso muito suave, anunciado com
bastante antecedência. O enredo final, nas edições nº 47-50, é um
encerramento temático que traz de volta a maioria dos antagonistas
de Doreen Green de uma só vez — especialmente o Doutor Destino,
o antagonista de sua primeira aparição, que surgiu repetidas vezes
em The Unbeatable Squirrel Girl, em pessoa ou por um representante.
Ele é indiscutivelmente o maior inimigo da Garota-Esquilo, mas por
uma razão muito diferente do motivo pelo qual é o arquirrival do
Quarteto Fantástico. Destino encara Reed Richards como um rival
perigoso e a Garota-Esquilo como um incômodo persistente. Ela
acredita que todos podem ser ajudados a se tornarem melhores do
que são; Destino acredita que ele já é perfeito e que seria indigno da
parte dele aceitar a ajuda de qualquer pessoa.
Graças às maquinações dos inimigos, Doreen Green é exposta
como Garota-Esquilo e sua casa é destruída. Mas quando ela se
envolve em um confronto impossível de vencer no Central Park,
todo mundo que a Garota-Esquilo ajudou e com quem fez amizade
durante os cinco anos de seus gibis, de colegas superpoderosos a
Kraven, o Caçador, e o Toupeira, aparecem para ajudá-la. (Muitos
esquilos também, é claro.) Finalmente, quando tudo parece perdido,
seu “amigo íntimo” Galactus aparece para dar um jeito em tudo:
“Esse deus está aqui para fazer um deus ex machina, então vamos ao
que interessa”, diz ele.
Galactus, de fato, resolve magicamente tudo o que precisa ser
resolvido, graças ao seu Poder Cósmico419. Surpreendentemente,
isso não inclui fazer ninguém esquecer a identidade secreta da
Garota-Esquilo: “Eu quero compartilhar quem eu sou por inteiro
com o mundo”, explica ela. “Eu não quero mais ter que esconder
quem sou”. A vida dupla é uma tradição dos super-heróis que já não
serve mais. O último passo na jornada da Garota-Esquilo para atingir
a maioridade como heroína é se livrar disso também.
A Garota-Esquilo e Galactus têm mais uma conversa na Lua. Ele
diz a ela que ambos terão mudado na próxima vez que se
encontrarem e que, graças ao Poder Cósmico, ele sabe que “tudo
neste universo, tudo o que compartilhamos desde o início de nossas
histórias… sempre existirá, pronto para ser revisitado por aqueles
com o poder de vê-lo”.
A primeira vez que li The Unbeatable Squirrel Girl nº 50, eu estava
lendo em voz alta com meu filho — estávamos lendo a série juntos
desde o início — e quando cheguei a essa fala, tive que segurar as
lágrimas.
388 O Demolidor teve a identidade revelada pela imprensa em Daredevil nº 32, de 2002, e era
de conhecimento público que ele era Matt Murdock até reverterem a situação em 2015. (N.
A.)
389 Existem algumas exceções recentemente importantes a essa convenção, como Jessica
Jones e Luke Cage, mas até eles costumavam ter nomes de super-heróis: Safira e Poderoso,
respectivamente. E o Doutor Estranho é literalmente um médico cujo sobrenome é Strange.
(N. A.) (Nota do tradutor: strange é “estranho” em inglês).
390 Uma delas tecnicamente apareceu pela primeira vez no século xx, mas ela somente se
tornou a personagem que é agora em 2015. (N. A.)
391 Houve uma Miss Marvel diferente de 1977 a 2012; chegaremos a ela em breve. (N. A.)
392 A maioria dos outros artistas que desenharam a revista Ms. Marvel da era de Kamala
não fez isso, embora Nico Leon, que desenhou a maior parte da série de 2015, tenha feito. É
uma técnica muito rara em gibis de super-heróis, com a grande exceção da arte de Gabriel
Hernández Walta para The Vision (2016). (N. A.)
393 A narração de Kamala é toda em caixa alta, dando a entender que ela se entende como
integrante do mundo onde tudo está em letras maiúsculas. (N. A.)
394 A capa também chama a Miss Marvel de “a mulher guerreira mais misteriosa desde
Madame Medusa” — uma integrante do elenco de apoio do Quarteto Fantástico que estrelou
exatamente um único gibi solo, Marvel Super-Heroes nº 15, em 1968. (N. A.)
395 O nome da Miss Marvel deve algo à revista Ms., que começou a ser publicada em 1971 e
apresentou a Mulher-Maravilha em uma das primeiras capas. Na série Ms. Marvel de 1977,
Carol Danvers, que havia sido chefe de segurança em uma base da Força Aérea nas
aparições anteriores em Captain Marvel, se tornou editora de revista feminina. (N. A.)
396 Não confundir com a Felina (“Hellcat”). Essa Gata (“The Cat”) viraria posteriormente a
Tigresa (“Tigra”). (N. T.)
397 O mesmo vale para a publicação de histórias escritas ou desenhadas por mulheres, o
que é outro problema. (N. A.)
398 A empresa publicou cinco antologias naquele mês: Love Romances, True Tales of Love,
Lovers, My Love Story e Stories of Romance. (N. A.)
399 Uma referência à origem militar da personagem, pois corps significa corporação,
unidade militar (daí Marine Corps, ou Corpo dos Fuzileiros Navais). (N. T.)
400 Conceito de marketing que mede a retenção de uma marca na mente de um
consumidor, mesmo que ele não a consuma (como Coca-Cola, por exemplo, como
sinônimo de refrigerante mesmo para quem não consome esse tipo de bebida); seria algo
como um “reconhecimento de massa”, se o marketing moderno usasse termos em
português. (N. T.)
401 No original, embiggen, que saiu do lema da cidade fictícia dos Simpsons, Springfield, a
noble spirit embiggens the smallest man (“um espírito nobre giganta o menor dos homens”, na
tradução livre seguindo a usada nos quadrinhos Marvel no Brasil). A palavra entrou para o
dicionário americano Merriam-Webster em 1998 no mesmo lote que bitcoin. (N. T.)
402 “Capitão América Frustra a Vingança do Traidor”. (N. T.)
403 É o que diz, literalmente, o título original do gibi, pois unbeatable é “imbatível” em
inglês. (N. T.)
404 North usou esse mesmo truque em vários outros gibis que escreveu — é o equivalente
inteligente em papel de mouse-over (texto que é revelado com a passagem do mouse sobre a
palavra) e uma referência ao seu histórico em quadrinhos digitais. (N. A.)
405 A escritora, filósofa e crítica de arte escreveu o ensaio Notes on Camp (1954), em que
define o termo “camp” como algo propositalmente teatral, que usa o exagero para misturar
o fantástico e o ingênuo, tendo como característica a tal “falha de seriedade”. (N. T.)
406 O encontro entre a Garota-Esquilo e o Homem-Aranha no campus da faculdade dela
ocorre especificamente durante uma sequência determinada de histórias em The Amazing
Spider-Man; perto do final da fase de North como roteirista de Squirrel Girl, há um derivado
do grande crossover Guerra dos Reinos, que resolve uma trama dessa história. (N. A.)
407 Ela fez parte dessa equipe durante a série The New Avengers, de 2015 — um conjunto de
personagens totalmente diferentes dos Novos Vingadores discutidos no capítulo 18. (N. A.)
408 Uma das virtudes discretas de The Unbeatable Squirrel Girl é que a revista realmente
retrata o ambiente social da faculdade: ser agrupado com estranhos por acaso, torná-los
melhores amigos, se sentir atraído por alguns deles e aprender a conviver com essa atração
quando ela não é correspondida. (N. A.)
409 Koi Boi é um homem trans, o que não é indicado até uma cena em The Unbeatable
Squirrel Girl nº 9, onde os heróis estão trocando de roupa e ele está usando um binder. (N.
A.) (Nota do tradutor: binder é uma tira ou colete elástico usado para espremer/conter os
seios.)
410 Chipmunk Hunk tem poderes similares aos de um esquilo (superpulo, agilidade e
velocidade etc.), enquanto que Koi Boi é uma espécie de herói submarino que se comunica
com peixes. (N. T.)
411 Operações conduzidas com uma “falsa bandeira” a fim de dar a impressão de que foram
realizadas por outra pessoa ou grupo, geralmente com a finalidade de difamar, incriminar
ou justificar atos de retaliação. (N. T.)
412 Veja, por exemplo, The New Mutants nº 37, de 2012, no qual Magma sai com o diabo
Mefisto em troca de ele resgatar a equipe dela. (N. A.)
413 Essa questão já havia sido feita na ficção: no conto de 1956 de Philip K. Dick, “Minority
Report”, transformado em filme em 2002 (Minority Report — A Nova Lei) e em série de TV
em 2015. (N. A.)
414 Para enfatizar esse argumento, Kamala é levada para uma revista adicional em um
aeroporto quando Ms. Marvel nº 12 começa. (N. A.)
415 Só não necessariamente de gibis de super-heróis. (N. A.)
416 A primeira vez é a história que apareceu nas edições nº 2-5 da segunda série. (N. A.)
417 Um deles, Saladin Ahmed, escreveu a próxima série de Kamala Khan, The Magnificent
Ms. Marvel, depois que Wilson concluiu a fase de cinco anos um pouco depois. (N. A.)
418 Esse gancho só foi resolvido 29 anos depois, em Webspinners: Tales of Spider-Man nº 4-6.
(N. A.)
419 O Poder Cósmico — cujo nome é uma inversão extremamente ao estilo Stan Lee (nota do
tradutor: no original em inglês, a expressão é Power Cosmic e não o padrão para a gramática
da língua inglesa, Cosmic Power; a inversão da ordem do adjetivo é um recurso para dar
ênfase) — também é usado pelo Surfista Prateado, que o explica em uma conversa escrita
por Dan Slott em Silver Surfer nº 3, de 2014: “Como você consegue falar no espaço?!”, “Eu
possuo o Poder Cósmico”, “Como consigo respirar no espaço?”, “O Poder Cósmico”, “E eu
não estou congelando por quê… ?”, “Poder Cósmico”, “Isso é muito… conveniente”, “Esse é o
Poder Cósmico”. (N. A.)
21.
PASSANDO O BASTÃO
E
u venho enchendo caixas brancas compridas com gibis desde
os dez anos de idade. Se você já esteve na casa de um
colecionador de revistas em quadrinhos, já as viu: retângulos
uniformes de papelão, bem no limite, quando cheias, do que
um adulto sedentário consegue carregar. Nunca me considerei um
colecionador sério — acho que nunca paguei mais de dez dólares por
uma única edição atrasada, e não me importo nem um pouco com a
condição em que estejam. Eu compro gibis para ler, eu sempre disse
(dando de ombros dramaticamente), e guardo para lê-los
novamente.
Se não sou um colecionador, no entanto, eu certamente sou um
acumulador. Algumas pessoas guardam caixas cheias de fotos que
tiraram; caixas de gibis têm o mesmo efeito para mim. Antigamente
eu tinha lembranças distintas de onde e quando comprei cada
edição que eu possuía, onde li pela primeira vez, como era o ar e a
luz naquele dia naquele cômodo. Agora eu tenho gibis demais para
que isso seja verdade, mas determinados exemplares físicos das
revistas em quadrinhos que li quando era criança, ou que me
afetaram intensamente mais tarde, ainda provocam essas cadeias
associativas: olhar para as massas esmagadoras de texto em The
Avengers Annual nº 10 na cama do quarto de hóspedes da casa dos
meus avós; beber um refrigerante enorme enquanto lia Web of
Spider-Man nº 32 em uma pausa do meu emprego de verão — que era
fazer pesquisas por telefone; acalmando os nervos com uma pilha
pequena de Daredevil, de Brian Michael Bendis e Alex Maleev,
enquanto minha esposa e meu filho recém-nascido dormiam.
Minha esposa e eu calculamos que, dadas nossas predileções por
artes visuais, música e escrita, provavelmente teríamos um filho
meio artista — o baterista da nossa banda, como dizia a nossa piada
quando ela estava grávida e ele estava chutando. Mas a pessoa não
escolhe o filho que tem, e o filho extraordinário que temos realmente
adora ciências e matemática. Quase desde o momento em que
Sterling começou a falar, ele deixou claro que sistemas concretos
com uma complexidade interessante eram o que fazia seu cérebro
funcionar: a tabela periódica dos elementos, as órbitas dos planetas,
Minecraft. Quando criança, ele assistia numa boa aos filmes da
Pixar e da Disney e por aí vai, mas, tendo opção, preferia
documentários a respeito da natureza.
Sterling sempre foi um garoto muito introvertido e quieto. Por
muitos anos, lutei para descobrir como ser um bom pai para ele e
pensei muito como poderíamos nos relacionar melhor. Eu me
preocupava, de maneira neurótica, que o moleque que eu amava
apenas tolerava minha presença. Muitas vezes me perguntei se
havia algum entusiasmo que poderíamos compartilhar algum dia,
visto que nossos interesses são tão diferentes. Eu vivo para a música;
para ele tanto faz, tirando certas trilhas sonoras de videogame.
Sterling adora jogos, mas eu não tenho reflexos para a maioria dos
que ele gosta.
Gibis, acabamos descobrindo, eram uma coisa que certamente
podíamos compartilhar. Mas apenas certos tipos de revistas em
quadrinhos: Bunny vs Monkey, de Jamie Smart; Snarked!, de Roger
Langridge; Tio Patinhas, de Don Rosa; Calvin e Haroldo, de Bill
Watterson e… bem, a maioria dos outros tipos de quadrinhos
voltados para crianças, mas não as coisas da Marvel e da DC que eu
devorava desde que tinha mais ou menos a idade dele. “Gibis de
super-heróis?”, eu contava aos meus amigos, imitando o que
imaginava ser o raciocínio de Sterling, “É disso que meu pai gosta”.
Então, mais ou menos na época em que Sterling completou dez
anos, uma organização local me convidou para dar uma aula de
quatro semanas a respeito da história dos gibis americanos de
super-heróis. Eu montei algumas apresentações de slides para o
evento, e meu filho perguntou se poderia ver o que eu tinha
preparado. É claro, respondi. Expliquei a composição da
apresentação e notei as engrenagens se mexendo no cérebro de
Sterling. Ele não se interessou pelos trajes, pela ação ou pelos
personagens de maneira específica, mas notou que aquele era um
sistema complicado. E se há uma coisa que meu filho gosta, são
sistemas complicados. Alguns dias depois, ele veio até mim e disse:
“Ei, pai? Eu queria tentar ler todos os gibis de super-heróis da
Marvel, em ordem. Não na ordem de publicação, mas na ordem de
continuidade. Quero ler todos os gibis na ordem em que os eventos
aconteceram com os personagens”.
Ok, respondi, certamente podemos tentar. Mas se começarmos
uma história e não for tão interessante assim para você, me avise e
vamos pular para a próxima, ok? Passamos algumas horas pensando
na ordem em que leríamos várias séries, depois pulamos de cabeça,
lendo as primeiras juntos. Sterling gostava quando eu lia em voz alta
para ele, e como eu também gostava disso, foi assim que
trabalhamos no começo.
Tivemos um pequeno percalço quase imediatamente. Uma das
primeiras coisas em nossa ordem de leitura era “Arma X”, a história
de origem visualmente espetacular, porém violenta e dolorosa do
Wolverine, feita por Barry Windsor-Smith. Eu comecei um capítulo
ou dois e de repente me lembrei de como a série é repugnante e
triste. Uh, podemos pular este, moleque? Não, ele insistiu, eu quero
ver isso!
Fiquei aliviado ao ver que ele se identificou com as primeiras
histórias do Quarteto Fantástico e do Hulk. (Foram histórias feitas
para empolgar crianças de dez anos, e cinquenta anos após terem
sido criadas, ainda cumpriam muito bem esse objetivo.) Sterling
tinha muitas perguntas a respeito de todas elas, e eu era capaz de
respondê-las — a primeira vez que algo realmente aconteceu entre
nós. Estávamos nos divertindo juntos, mais do que nunca. Eu tinha
certeza de que aquilo não duraria mais do que algumas semanas,
mas estava determinado a curtir esse tempo.
Durante as férias em família, trouxemos o primeiro Fantastic Four
Omnibus, com o qual ele se divertiu, rindo das piadas batidas e sem
graça de Stan Lee. (Ele achava hilariante a frequência com que os
personagens diziam “Bah!”. Então começamos um blog chamado
Marvel Bah!, documentando toda vez que alguém dizia isso. Sterling
adorou descobrir que há um “Bah!” na capa de The Avengers nº 1.)
Meu filho passou por 1962, depois por 1963, e queria mais.
Mantive a ordem de leitura atualizada para ele, descobrindo como
integrar Untold Tales of Spider-Man e X-Men: First Class e todas as
outras inserções de continuidade; ele gostou especialmente dos
momentos em que podia pular para a frente e para trás entre várias
séries publicadas com décadas de diferença, todas fluindo umas nas
outras como se fosse assim que tivesse sido planejado desde o início.
E enquanto eu vasculhava minhas caixas compridas de papelão
branco em busca de exemplares amarelados de Marvel Super-Heroes
e Tales to Astonish, percebi: é por isso que guardei esses gibis. Esta é a
minha recompensa por mexer em pilhas de saldão de quadrinhos
atrás de números atrasados e transportá-los de casa em casa, por
nunca os vender ou jogá-los fora. Ler essas coisas é divertido para
mim, e voltar aos gibis antigos mantém meu passado vivo na mente,
mas o que eu mais gosto é compartilhá-los — e compartilhá-los com
meu filho é exatamente o que eu sempre quis.
Eu ainda sabia que o interesse de Sterling poderia diminuir a
qualquer momento: superar fases curtas é o que as crianças fazem
e, provavelmente, o que eu não consegui fazer. Mas ele continuou
lendo sem parar — quando chegou a 1966, e ao primeiro crossover de
verdade entre as séries (uma luta entre o Homem de Ferro e Namor,
o Príncipe Submarino, que começa em Tales of Suspense e termina
em Tales to Astonish), ele pirou. Depois de alguns meses, quando
chegou a 1968, Sterling veio até mim e disse: “sabe, pai, acho que já
li o suficiente da Marvel dos anos sessenta. Cheguei até onde o
Capitão Marvel aparece.” (Ah, bem, pensei, foi ótimo enquanto
durou. Mas ele não tinha terminado.) “Decidi que estou muito mais
interessado na era moderna dos crossovers.” (Basicamente com essas
palavras.) “Podemos pular para Guerra Civil?”.
Certamente que sim, respondi, e mergulhamos de novo na
organização da ordem de leitura, que continuou a ser uma parte
bizarramente divertida do processo por si só. Eu me perguntava
como “a era moderna dos crossovers” seria aceita por ele: o mundo
ficcional que havia sido moldado para agradar crianças de dez anos
tinha evoluído para algo diferente, ou tentado evoluir. Muitas dessas
histórias posteriores, suspeitei, poderiam ser difíceis de
compreender ou fortes demais para o meu filho.
Eu não deveria ter me preocupado. Ele se envolveu completamente
— os fios da trama bem amarrados entre duas ou dez ou trinta séries
ao mesmo tempo eram exatamente o que Sterling estava
procurando. A partir daí, os crossovers da Marvel se tornaram nosso
ritual compartilhado, o que fazíamos nas tardes e fins de semana:
sentar no sofá, ler Guerra Civil e Invasão Secreta e Vingadores vs. X-
Men juntos. (Naquela época, comecei a pensar: e se eu fosse em
frente e lesse tudo sozinho? O que poderia resultar disso?)
Ele desenvolveu gostos e antipatias; assim que nossa leitura de
Guerra Civil chegou às edições vinculadas a The New Avengers, de
Brian Michael Bendis, ele comentou que “esse roteirista é muito
bom”. (Bendis é especialmente bom lido em voz alta, o que eu
suspeito que foi parte do apelo.) Durante alguns anos, ele não gostou
especialmente de X-Men, tirando a fase All-New X-Men de Bendis de
2012 a 2015, que ele releu. Seu encanto por Deadpool, por outro lado,
me convenceu de que talvez houvesse mais alguma coisa ali do que
eu pensava.
Tirando Deadpool, Sterling não gostava de maneira alguma do
material especialmente violento ou sangrento — ele evita o
Justiceiro sempre que possível (por mim, beleza), e a encarnação
estilo Grand Guignol do Cavaleiro da Lua em meados dos anos 2000
recebeu um instantâneo “vamos pular isso”. Meu filho adora as
grandes reviravoltas na trama, então tive o cuidado de evitar spoilers.
(Toda vez que alguém era revelado como um Skrull em Invasão
Secreta, ele gritava de alegria.)
Ler comigo também deu a Sterling a chance de tirar onda de sua
memória de elefante: ele apontava referências visuais a histórias
que lemos meses atrás, lembrava os nomes e as origens de todo
mundo e geralmente verificava os fatos de tudo o que líamos. Em
dado momento, eu estava tentando me lembrar de onde o Fantasma
Vermelho apareceu pela primeira vez, e ele imediatamente disse:
“The Fantastic Four nº 13”. Como você se lembrou disso?, perguntei.
“Porque o número 1 é o Toupeira, o 2 são os Skrulls, o 3 é o
Milagroso, o 4 é o Namor, o 5 é o Doutor Destino, o 6 é o Namor e o
Doutor Destino, o 7 é o Kurrgo, 8 é o Mestre dos Bonecos…” Você leu
essas histórias uma única vez, falei. “Sim!”420.
Nós avançamos na leitura até ficarmos sem crossovers, e a essa
altura Sterling ficou um pouco menos draconiano em relação a
querer ler absolutamente tudo em ordem. Ele ainda é muito
específico, no entanto. No que diz respeito aos quadrinhos
convencionais, meu filho é do time Marvel o tempo todo. (Um
sistema complicado desse tipo é exatamente o que ele quer.) Tentei
colocá-lo para ler alguns títulos do Batman, que não o interessaram;
algumas vezes, sugeri que ele pudesse gostar de conferir o meu
amado Judge Dredd, uma ideia que Sterling rejeitou de primeira.
Qualquer coisa que desse destaque aos vilões — Loki, em especial
— é o conceito de diversão do meu filho. Ele não está nem aí para
Doctor Strange, mas quando Loki reivindicou brevemente o título de
Mago Supremo para si, ele não parou de ler o gibi. The Superior
Spider-Man é a revista em quadrinhos favorita de todos os tempos de
Sterling — ele gostou tanto que a mãe, que nunca foi grande fã de
gibis, queria fazer parte do que quer que estivesse encantando nosso
filho, e assim começamos um ritual familiar contínuo de ler uma
edição do Homem-Aranha juntos todas as noites.
Gibis das décadas de 1970, 1980 e 1990, por outro lado, não o
interessam em nada, além dos primeiros dois anos de Thunderbolts,
que eu suspeitava corretamente que ele gostaria. Certa vez, Sterling
perguntou se eu poderia escolher “algo meio antigo” para ele ler
durante uma viagem de carro — “tipo, algo talvez de 2003?”
(Entreguei o primeiro volume de Runaways, que, para meu alívio, ele
devorou com entusiasmo.) E gibis como objetos físicos são muito
menos interessantes para meu filho do que para mim (Sterling não
vê problema com eles, mas geralmente prefere ler em um tablet).
Bom para ele: meu filho nunca terá vontade de carregar aquelas
caixas brancas pesadas de um lugar para outro.
Começamos a assistir aos filmes do Universo Marvel
Cinematográfico, primeiro em casa e depois, quando ficamos sem
DVDs para pegar emprestados, no cinema nos fins de semana de
estreia — os únicos filmes além de Star Wars que Sterling está
efetivamente entusiasmado em ver. Encontramos jogos que eram
fáceis o suficiente para eu jogar com ele e cheios de fatos e
curiosidades para que nós dois pudéssemos curtir. (Um joinha para
Lego Marvel Superheroes 2, que nos deu muitas desculpas para
pesquisar alguns de seus personagens obscuros.)
E… funcionou. Nós estreitamos nossos laços falando das lutas do
Coisa contra o Hulk e do Império Secreto e de Otto Octavius. A Marvel
nos deu um volume de conhecimento compartilhado do qual
podemos falar ou usar para conversas a respeito de outras coisas.
Ler quadrinhos nos aproximou mais do que nunca. É um tempo feliz
que passamos juntos.
Certa vez, perguntei a Sterling se havia algum personagem em
especial com quem ele se identificasse. Ele pensou por um
momento e disse “Peter Parker. A versão dos anos 1960”. Ah, o gênio
da ciência amargo e frustrado que está tentando encontrar o próprio
lugar no mundo? “Hum-hum!”, respondeu Sterling com sorriso
malicioso. “E você?”, ele devolveu. Eu disse que não consegui pensar
em ninguém. “Sério?”, falou ele. “Estou surpreso que você não tenha
dito Dreno Mental” — o cérebro melancólico e existencialista, com
corpo de robô de The Unbeatable Squirrel Girl. Touché, moleque.
Ainda tenho que me lembrar regularmente de que não devo
contar que essa fase vá durar. Sterling é adolescente agora. Em
algum momento, ele provavelmente vai descartar todos esses gibis
como as coisas de criança que ele guardou, como o Peter Parker dos
anos 1960 se afastando da lata de lixo com o uniforme. Em algum
momento depois disso, Sterling pode voltar para as revistas em
quadrinhos ou não.
Suspeito que meu filho vai encontrar algum tipo de história
complicada para explorar quando ficar mais velho. Por mais
diferente que Sterling seja de mim, nossas mentes funcionam de
maneira semelhante o suficiente de modo que não deixo de
imaginar que ele vá deixar de aproveitar esse processo. Se Sterling
se vir de volta à montanha da Marvel, ou se nunca mais sair dela,
espero que encontre esse glorioso mundo imaginário mudando o
tempo todo, acompanhando o mundo real em que vive, e espero que
ele curta essa mudança. Espero, também, que Sterling se importe
com a história em si — os personagens, as imagens, os saltos
imaginativos e as improvisações de última hora que a mantêm unida
— e seus criadores, em vez de se importar com a entidade
empresarial que imprimiu um logotipo em toda parte dela. Uma
história jamais vai abandonar você; uma corporação jamais vai
retribuir seu amor.
AGRADECIMENTOS
UM RESUMO DA TRAMA
I. 1961 a 1968
A primeira fase da história abrange um período em que o
nacionalismo dos Estados Unidos (e o terror do bloco comunista) foi
combinado com inovações tecnológicas surpreendentes. Ambas as
tendências estão representadas nos primeiros anos da Marvel, nos
quais conhecemos a maioria de seus principais personagens e
descobrimos os locais onde a maior parte do que se segue
acontecerá.
A história não tem um ponto de partida preciso. Há um prólogo
que vinha acontecendo desde 1939, e acrescentaram ainda mais pré-
história mais tarde, chegando a um milhão de anos atrás, quando o
espírito da vingança montava um mamute e deuses espaciais
chegaram para julgar a Terra. Ainda assim, o conceito padrão é que
a história da Marvel — tanto a parte principal da narrativa quanto o
produto industrial da empresa que o fabricou e vendeu — começa no
fim do ano de 1961.
Os personagens que mais vemos, a princípio, são um grupo de
garotas do ensino médio que pensam no futuro (Patsy Walker; sua
amiga Hedy Wolfe; Kathy, a conhecida das duas) e moças
profissionais liberais atuando em seu círculo (a modelo Millie
Collins, a estudante de enfermagem Linda Carter). O mundo delas é
esquisito. Os “personagens Marvel” que eram abundantes no final
dos anos 1930 e 1940 em sua maioria recuaram para um passado
amarelado, mas há relatos de monstros praticamente todas as
semanas — criaturas saindo debaixo da superfície da terra com
consoantes duplas nos nomes, ou alienígenas do espaço sideral,
alguns deles capazes de mudar a forma para se parecerem com
pessoas comuns.
De repente, há uma grande mudança nas forças que moldam o
mundo — maior até do que o Sputnik ou o Muro de Berlim. Um
cientista, Reed Richards, e três companheiros fazem um voo em um
foguete experimental e passam por radiação que transforma seus
corpos. Eles chamam a si mesmos de Quarteto Fantástico, e suas
façanhas viram manchetes426.
Depois que o Quarteto Fantástico derrota alguns monstros
subterrâneos e um exército de alienígenas que mudam de forma
chamados Skrulls, mais ciência estranha começa a aparecer, criada
por cientistas mais estranhos ainda: “moléculas instáveis”, como
Richards chama uma de suas invenções. A radiação atômica
transformou a estrutura de poder do mundo, e seus segredos ainda
são o grande desestabilizador no jogo das nações. Um teste de
bomba que dá errado transforma o cientista Bruce Banner no Hulk,
um monstro de meio período, cujas transformações eram
desencadeadas inicialmente pelo anoitecer, e depois pela raiva, que
se tornou o motivo mais duradouro. A radioatividade também
desempenha um papel decisivo nas origens do Homem-Aranha, do
Demolidor e dos adolescentes mutantes que se tornam os X-Men —
“filhos do átomo”. Todos esses personagens são azarões que
recebem poderes que nunca pediram a um custo terrível. A Marvel
também se apresenta como azarão: ávida e determinada, aberta à
inovação, ainda não no topo, mas se esforçando para chegar lá.
Mais gênios científicos entram na nova onda. Hank Pym, outro
cientista brilhante que é instável, inventa uma maneira de fazer as
pessoas crescerem e encolherem e se comunicarem com formigas,
chama a si mesmo de Homem-Formiga e dá poderes semelhantes à
namorada socialite, Janet Van Dyne, que vira a Vespa. Tony Stark, o
fabricante de armas e tecnólogo, é ferido em uma zona de conflito
militar, constrói uma armadura e se chama de Homem de Ferro.
Outra onda de transformação não tem nada a ver nem mesmo
com a fantasiosa ciência empírica que vimos. Um “mestre das artes
místicas”, o doutor Stephen Strange, se instalou no Greenwich
Village de Nova York e está lidando com ameaças metafísicas, como
a personificação de pesadelos. Um médico chamado Donald Blake
descobre uma bengala mágica na Noruega que o transforma no deus
nórdico Thor; pouco depois, o irmão de Thor, Loki, o deus da
trapaça, sai da árvore em que está preso há séculos e começa a
causar problemas novamente427.
Algumas trapaças a mais de Loki levam Thor a unir forças com o
Homem de Ferro, o Homem-Formiga, a Vespa e o Hulk. Eles se
autodenominam Vingadores e prontamente obtêm uma autorização
de segurança para atuar como representantes semioficiais do
governo dos EUA. Essa encarnação do grupo muda imediatamente.
Depois que os Vingadores encontram outro alienígena que muda de
forma, o Hulk sai, e os demais membros prontamente encontram
Steve Rogers, o super-herói da Segunda Guerra Mundial conhecido
como Capitão América, congelado em um bloco de gelo e
milagrosamente ainda vivo. O Capitão obteve poder de uma coisa
chamada soro do supersoldado — uma fórmula cujo nome veremos
novamente — e é a única pessoa em quem funcionou antes de ser
perdido. (Ou assim somos levados a acreditar.) Pouco antes do fim
da guerra, houve uma batalha na qual o Capitão América foi
congelado, e seu ajudante, Bucky Barnes, foi morto. (Ou assim
somos levados a acreditar.)
O Capitão América é uma das chaves que abrem a pré-história da
história da Marvel. O outro é Namor, o Príncipe Submarino,
governante da Atlântida, que apareceu em gibis nas décadas de 1930
e 1940 e agora ressurge em The Fantastic Four como um amnésico
vivendo em uma pensão. Ambos trazem um tema conhecido da
mitologia também para a nova narrativa: o rei adormecido428.
Namor é literalmente um rei que não tem consciência de sua
realeza, e seus princípios morais são os de um rei — nem bom nem
mau, mas dedicado a proteger seu reino. O Capitão América
despertado é um bom monarca, um líder natural que é totalmente
benigno; ele é o epítome ainda jovem da Geração Grandiosa, mas
não está mais inteiro. Bucky Barnes, que supostamente era ainda
mais inocente, agora se foi.
Com quem esses heróis lutam? Como sempre, os inimigos
representam o que a cultura americana mais teme — entidades
sinistras à espreita “atrás da Cortina de Ferro” (há uma relutância
curiosa em se referir à Rússia ou à China diretamente pelo nome) ou
seus agentes (como a Viúva Negra, que é uma espiã soviética em
suas primeiras aparições, e seu braço direito, o Gavião Arqueiro). O
Homem-Aranha luta contra muitos inventores e cientistas; o Doutor
Estranho enfrenta forças místicas. O Doutor Destino, que acaba
lutando contra todos, é a maior parte dessas coisas ao mesmo tempo
e mais ainda, porque ele quer obter qualquer tipo de poder que
conseguir. Destino também é um monarca, e no primeiro quadro de
sua primeira aparição, ele move peças em forma de humanos em
um tabuleiro de xadrez, ao lado de livros rotulados como
“Demônios” e “Ciência e Feitiçaria”.
As equipes de super-heróis também enfrentam viajantes do tempo
— indivíduos que podem alterar a narrativa triunfalista da história
americana com mais eficiência do que qualquer outra pessoa.
Durante um ano ou mais, capas nitidamente semelhantes em The
Avengers e The Fantastic Four apresentam Immortus, Kang, o
Conquistador, e Rama-Tut, vilões que viajam no tempo e usam trajes
verdes e roxos similares aos do Doutor Destino429. (Sendo justo,
muitos vilões vestiam verde e roxo naquele momento.)
Uma vertente da história da Marvel que começa a surgir por volta
de 1965, porém, é que quase ninguém está completamente além da
redenção. Em meados daquele ano, a composição dos Vingadores
muda abruptamente: o Capitão América, o único remanescente da
versão anterior do grupo, é acompanhado por três ex-vilões. Com o
passar do tempo, quase todos os antagonistas desse período
retornarão em um contexto mais complacente.
Uma última peça da infraestrutura heroica também se materializa
em meados da década de 1960: a S.H.I.E.L.D., uma organização
quase militar, quase policial, baseada em espionagem, com poderes
muito amplos e um monte de equipamentos impressionantes,
retratada de várias maneiras como afiliada ao governo dos EUA ou
com as Nações Unidas430. (O que é bom para os Estados Unidos, no
que diz respeito à história neste momento, é bom para todos.) A
S.H.I.E.L.D. é dirigida por Nick Fury, um agente secreto durão que já
estrelou Sgt. Fury and His Howling Commandos, uma série a respeito
do esquadrão que ele comandou durante a Segunda Guerra Mundial.
Espionagem e contraespionagem estão muito presentes na época
nos jornais e na ficção — desde o incidente do U-2 em 1960 e James
Bond até Agente 86 — e a ascensão da S.H.I.E.L.D. é acompanhada
por uma nova classe de antagonista. Sociedades secretas
sobrepostas estão disputando o poder em todo o mundo da Marvel: a
organização anarcocientífica I.M.A. (Ideias Mecânicas Avançadas)
em trajes amarelos berrantes de “apicultores”; o grupo cripto-
nazista Hidra; o Império Secreto em robes roxos.
Após cobrir os blocos orientais e ocidentais, a parte da história
que envolve o estabelecimento da ambientação se expande além
deles. Conhecemos os Inumanos, uma ramificação evolucionária da
humanidade que se enclausurou na cidade abobadada de Attilan431.
Visitamos Wakanda, uma utopia tecnológica na África, e a Terra
Selvagem, uma região tropical na Antártida onde os dinossauros
ainda vagam. Além do mundo que conhecemos (e mais próximo das
visões dos exploradores psicodélicos de meados dos anos 1960), há a
Zona Negativa, um espaço dentro do espaço de total alteridade, e a
Dimensão Negra, um reino igualmente alienígena governado por
Dormammu, o pesadelo de cabeça flamejante.
E depois há o espaço sideral, que até agora tem sido representado
principalmente por alienígenas visitantes hostis. Em uma edição
publicada no início de 1966 (pouco antes de a nave soviética Luna 9
fazer o primeiro pouso suave na Lua), um deus chega do espaço para
acabar com o mundo: Galactus, o devorador de planetas, uma força
tão grande que é incompreensível. “Somos como formigas… apenas
formigas… formigas!!”, exclama, em pânico, o Tocha Humana do
Quarteto Fantástico, enquanto ele tenta entender a escala de que
acabou de ficar ciente.
Mesmo depois que essa ameaça de aniquilação é evitada, os
pobres terráqueos que ainda estão lutando para viajar até a própria
Lua não podem ignorar a existência de seu planeta em um contexto
muito maior. Outro império galáctico, o Kree, está competindo com
os Skrulls, e a Terra se torna uma cabeça de ponte na guerra fria
entre as raças. (Um capitão kree que é convenientemente chamado
de Mar-Vell chega à Terra e começa a se chamar Capitão Marvel.)
No entanto, pequenas coisas podem ser tão importantes quanto as
grandes nesta história: a edição em que o Quarteto Fantástico
notoriamente derrota Galactus termina com uma longa sequência
na qual o Tocha Humana, que acabou de salvar o mundo, sai para
começar seu primeiro ano de faculdade. Personagens menos ricos
não têm essa opção e, à medida que os EUA intensificam sua
campanha de bombardeio no Vietnã, os gibis da Marvel começam a
abordar os efeitos dessa guerra em seu elenco. O namorado de Patsy
Walker, Buzz Baxter, se alista no exército imediatamente após se
formar no ensino médio. Alguns meses depois, ele volta do Vietnã
ferido e traumatizado; Buzz mal consegue falar com Patsy. Flash
Thompson, o algoz de Peter Parker na escola e o maior fã do
Homem-Aranha, também se alista. Ele se sairá melhor nas forças
armadas, até perder as pernas em um tiroteio no Golfo Pérsico
muitos anos depois.
À medida que os ritmos cotidianos dos gibis pré-super-heróis da
Marvel são absorvidos pela história maior, as mulheres comuns que
foram protagonistas dessas revistas desaparecem de vista. As
questões da vida humana continuam nas histórias de super-heróis,
no entanto. O professor Charles Xavier, líder dos X-Men, morre
(temporariamente); Reed e Sue Richards do Quarteto Fantástico têm
um bebê, Franklin Richards, cujo nascimento envolve muitas
dificuldades, incluindo uma viagem à Zona Negativa. Franklin serve
como um símbolo do reconhecimento de si mesma da história e de
seu próprio poder emergente, e sua chegada sinaliza uma mudança
na narrativa abrangente.
V. 2005 a 2015
O lançamento de The New Avengers, em 2005, dá início ao quinto
movimento da história da Marvel, uma cadeia de eventos
interligados que continua por uma década. Os grandes vilões desta
era, surpreendentemente, são utópicos: pessoas que têm a visão de
um mundo perfeito, geralmente (mas nem sempre) sob sua
liderança, e que estão dispostas a fazer o que for preciso para chegar
lá. Isso significa que as lutas dos protagonistas da Marvel são
principalmente entre si e com as consequências de suas ações. A
história novamente reflete o que está acontecendo na cultura de seu
tempo: ideologias de facções conflitantes; lutas por identidade
coletiva; tecnologia avançando mais rápido do que qualquer pessoa
consegue acompanhar; e a sensação persistente de que o mundo
está sendo moldado por conspirações nos bastidores.
O Homem de Ferro integra a armadura no próprio corpo com
uma coisa chamada Extremis, descrita tanto como “vírus” quanto
“solução de supersoldado”, que essencialmente faz um upgrade em
Tony Stark e o transforma em um supercomputador vivo. Enquanto
isso, a solução original de supersoldado — o Capitão América, uma
metáfora viva da força militar americana como vetor da ideologia
dos EUA — está sentindo a reação da história; Bucky Barnes, seu
parceiro perdido há muito na Segunda Guerra Mundial, voltou como
o Soldado Invernal, agora um assassino que sofreu lavagem
cerebral.
E eis que o mundo é brevemente transformado em uma utopia
para super-heróis — para alguns super-heróis, pelo menos. Em
Dinastia M, a Feiticeira Escarlate alterou a realidade para que ela e
seus amigos consigam o que querem (ou acreditam que querem):
agora os mutantes são a casta dominante em vez de uma subclasse
odiada, e a família dela pertence à realeza. (As consequências dessa
transformação dão terrivelmente errado, assim como as
consequências da reversão.)
Os Illuminati, uma coalizão secreta dos gênios e reis que
antigamente eram os heróis simples da história, decidem que o
próximo desastre relacionado a superpoderes pode ricochetear
neles. Os Illuminati traem o velho amigo Hulk e conspiram para
prendê-lo no espaço sideral para que ele nunca mais coloque a Terra
em perigo. (Esse plano também dá terrivelmente errado.) Os
Illuminati estão certos, porém: uma grande mudança cultural está a
uma catástrofe de distância, e é assim que Guerra Civil, a história
mais abrangente que a Marvel já publicou, começa.
Os Novos Guerreiros, uma equipe de super-heróis de menor
importância, estão sendo filmados para um reality show quando se
envolvem em um incidente que mata a maioria deles e destrói um
pedaço de Stamford, Connecticut. Na revolta que se segue, os EUA
aprovam uma legislação exigindo que todas as pessoas com
superpoderes se registrem no governo ou sejam enviados para uma
prisão extradimensional. O conflito entre aqueles que acreditam que
isso é necessário, liderados por Reed Richards (que se encarregou de
“resolver tudo”) e o Homem de Ferro, o campeão do setor industrial-
militar, e aqueles para quem o registro é anátema, liderados pelo
Capitão América, um libertário com L minúsculo442, se transforma
em uma rebelião que se espalha por quase toda a linha Marvel443 —
um debate novo e mais violento a respeito de “segurança contra
privacidade”. As forças pró-registro são finalmente vitoriosas, e o
Capitão América é levado sob custódia e aparentemente
assassinado. A alegoria política em Guerra Civil não é sutil.
Também não é sutil a alegoria política em Hulk Contra o Mundo
série em que o Hulk está de volta do exílio no espaço sideral com um
exército alienígena atrás dele, em busca de vingança contra os
Illuminati. A seguir, Hulk esmaga.
Uma guerra de múltiplos lados envolvendo impérios galácticos
está acontecendo em segundo plano durante tudo isso. Os Skrulls,
que mal se agarram aos frangalhos do antigo poder que detinham,
se infiltraram na Terra, planeta que seus líderes religiosos dizem
que estão destinados a ocupar; eles prometem transformar o planeta
em uma utopia pacífica e livre de necessidades. Os humanos exigem
autodeterminação, é claro, e a Invasão Secreta trata da derrota dos
Skrulls.
A resolução dessa história leva ao desastre político que se
desenrola durante 2009 em Reinado Sombrio, quando a parte que deu
terrivelmente errada no plano de registro de super-humanos entra
em ação, e o sociopata Norman Osborn se torna temporariamente o
personagem central da história da Marvel. Após um conflito entre os
X-Men e Osborn, o Ciclope declara que a pequena comunidade
mutante remanescente está se separando dos Estados Unidos e se
mudando para uma ilha na costa da Califórnia, que ele batiza de —
você já deve ter adivinhado — Utopia.
As crises continuam chegando, e agora geralmente são várias de
uma vez. Há outra pequena onda de horror: o conflito em curso no
espaço provoca a abertura de um portal para um Cancerverso, do
qual terríveis criaturas lovecraftianas são expelidas e derrotadas
pelo campeão da Morte, Thanos. Os mutantes de Utopia lidam com
uma invasão de vampiros em São Francisco, cidade que os mortos-
vivos decidiram que poderia ser o próprio paraíso; a seguir, surge
um cisma entre facções mutantes. A Essência do Medo é… na
verdade, A Essência do Medo não faz muito sentido, mas ocupa 145
edições de 37 séries diferentes e tem muita porrada.
Vemos mais uma versão adulta de Franklin Richards em The
Fantastic Four e descobrimos que Galactus, o deus terrível e sublime
do espaço que tudo consome, é o arauto dele.
No gigantesco crossover Vingadores vs. X-Men, que vinha sendo
esperado há muito tempo, a Força Fênix retorna à Terra, e os
mutantes possuídos por ela começam a consertar o mundo de uma
maneira que tem grande semelhança com o que os Skrulls haviam
prometido em Invasão Secreta: melhorar a escassez de alimentos e de
energia, acabar com as guerras e assim por diante. Os Vingadores,
cuja desconfiança de utopias muitas vezes coloca o grupo no lado
errado dos conflitos, lutam contra os X-Men. No final, Scott
Summers, possuído pela Fênix, mata sua figura paterna, Charles
Xavier (o cérebro de Xavier é salvo, mas isso são outros quinhentos),
e a Fênix vai embora novamente.
Todos respiram aliviados por um minuto e, em seguida, os atores
da história se reconfiguram em novas equipes. Há um novo grupo
grande de Vingadores, reunido por Tony Stark e Steve Rogers, que
refizeram a aliança entre eles. A nova formação inclui Carol
Danvers, a ex-Miss Marvel, que finalmente se tornou a visão que ela
teve de sua versão ideal durante Dinastia M. Carol Danvers agora se
chama Capitã Marvel e está construindo uma reputação de
liderança. Como consequência indireta de uma guerra interestelar
na qual Danvers se envolve, uma adolescente inumana de Jersey
City, Kamala Khan, se torna uma nova Miss Marvel.
Durante o último ano deste período, de 2014 a 2015, cada fio
narrativo acelera e entra em uma série nervosa de revelações e
desastres. O Vigia, o alienígena que observa tudo e é proibido de agir
de acordo com o que sabe444, é encontrado assassinado na Lua;
agora não há mais ninguém que possa ver e entender a totalidade da
história da Marvel. Um de seus olhos é roubado; o olho explode e
revela segredos enterrados há muito tempo. Em especial, Thor
descobre um segredo que o torna “indigno”, de maneira que ele não
consegue mais erguer o martelo Mjolnir. Jane Foster, sua ex-
namorada, se torna a nova Thor, o que agrava o câncer que a está
matando. O velho Nick Fury assume o papel do Vigia, enquanto seu
filho, que convenientemente se parece muito com Samuel L.
Jackson, assume o nome de Fury e seu antigo papel nos gibis da
Marvel.
Steve Rogers, que de repente é um homem muito velho, desiste da
identidade de Capitão América mais uma vez, e agora passa o cargo
para Sam Wilson, o Falcão, seu antigo companheiro. Graças a
algumas confusões envolvendo o Caveira Vermelha e o cérebro de
Charles Xavier, um grupo de heróis e vilões é “invertido” e muda sua
polaridade moral (como se houvesse polaridades específicas, para
início de conversa). O Homem de Ferro, agora mais arrogante do
que nunca, se muda para a área em torno da Baía de São
Francisco445 e proclama a própria utopia tecnocapitalista. O
Wolverine morre, e há uma briga prolongada entre seus vários
duplos, clones e filhos em relação a quem o substituirá. Todas as
versões do Homem-Aranha se unem.
Em meio ao caos, temos uma visão linda e calma: um jardim
cuidado por um Franklin Richards maduro, mais ou menos cinco
mil anos no futuro, enquanto a humanidade se expande para além
da Terra.
As mudanças anteriores de fase na história da Marvel surgiram
acidentalmente e são evidentes apenas em retrospecto. A que
acontece em 2015 é proposital, óbvia e coordenada. Cada fio
narrativo é amarrado ou cortado, e todas as séries se encerram. O
universo acaba.
Olivia era uma garota normal e vivia feliz sua vida com 12 gatos
pretos. Até que, quando adota o décimo terceiro, recebe a visita de
Tina, um ser mágico que lhe oferece três desejos. Indecisa, Olivia
não sabe o que pedir e acaba sendo obrigada a conviver com a
recém-chegada até descobrir o que realmente deseja. Uma história
de amor e muitos gatinhos pretos, agora em versão digital pela
Conrad Editora.