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Instituto de Educação – Universidade do Minho

Mestrado em Ensino de Português no 3. º Ciclo do Ensino Básico e Ensino Secundário

“Os Compadres Corcundas”

Marta Rodrigues – PG51143

Linguística do Texto

Professora Maria Emília Pacheco

Braga, 12 de junho de 2023


1. CONTEXTUALIZAÇÃO

O presente trabalho insere-se na unidade curricular de Linguística de Texto,


pertencente ao Mestrado em Ensino de Português no 3. º Ciclo do Ensino Básico e Ensino
Secundário e tem como objeto fundamental a análise do conto “Os Compadres
Corcundas”. Este é um conto tradicional do Brasil, fruto de uma recolha feita no âmbito
da divulgação do património da tradição oral da Comunidade de Língua Portuguesa
(CPLP). Por consequente, o conto encontra-se escrito em Português do Brasil e conta com
diversos regionalismos - uma variedade linguística, caracterizando-se por serem um
conjunto de locuções próprias de uma região. São decorrentes da cultura e expressam
costumes e tradições regionais. Podem-se manifestar nos diversos planos da língua: a
nível fonético e fonológico, através da diferente forma de pronunciação; a nível sintático,
dependendo da posição que a palavra ocupa em determinada frase e a nível lexical, de
acordo com o vocabulário próprio de cada região. Os regionalismos que se consideraram
pertinentes serão assinalados em notas de rodapé.

2. CONTO “OS COMPADRES CORCUNDAS”

Era uma vez dois corcundas, compadres, um rico e outro pobre. O povo do lugar vivia
mangando1 do corcunda pobre e não reparava no rico. O pobre andava triste e, de mais a mais, o
tempo estava cruel e ele era caçador.

Numa feita, esperando uns veados, já tardinha, adormeceu no jírau2 e acordou noite alta.
Ficou sem querer voltar para casa. Ia-se acomodando para pegar no sono de novo, quando ouviu
uma cantiga ao longe, como se muita gente cantasse ao mesmo tempo.

– Deve ser alguma desmancha de farinha aqui por perto. Vou ajudar!

1
Troçando; brincando
2
Estrado de madeira; cama de varas
Desceu da árvore e botou-se no caminho, andando, andando, no rumo da cantiga que não
descontinuava. Andou, andou, até que chegando perto de um serrote, onde havia uma laje limpa,
muito grande e branca, viu uma roda de gente esquisita, vestida de diamantes que espelhavam
ao luar. Velhos, rapazes e meninos, todos cantavam e dançavam de mãos dadas, o mesmo verso,
sem mudar:

Segunda, terça-feira, vai, vem! Segunda, terça-feira, vai, vem!

O caçador ficou tremendo de medo. As pernas nem deixavam ele andar. Escondeu-se
numa moita de mofundos3 e assistiu, sem querer, àquela cantoria que era sempre a mesma,
durante horas e horas.

Com o tempo, foi-se animando, ficando mais calmo e, sendo metido a improvisador e
batedor de viola4, cantou, na toada que o povo esquisito estava rodando:

Segunda, terça-feira, Vai, vem! E quarta e quinta-feira, Meu bem!

Boca para que disseste!5 Calou-se tudo imediatamente e aquele povo todo espalhou-se
como ribaçã6, procurando, procurando. Acharam o corcunda e o levaram para o meio da laje,
como formiga carrega barata morta. Largaram ele e um velhão, brilhando como um sacrário,
perguntou, com uma voz delicada:

– Foi você quem cantou o verso novo da cantiga?

O caçador cobrou coragem e respondeu:

– Fui eu sim, senhor!

O velhão disse:

3
Espécie de arbusto
4
Pessoa que toca viola
5
Expressão típica para quem diz algo que não deve
6
Ave de arribação
– Quer vender o verso?

– Quero sim, senhor. Bem, na verdade, não vendo, mas dou o verso de presente, porque
gostei do baile animado.

O velho achou graça e todo aquele povo esquisito riu também.

– Pois bem, disse o velhão: uma mão lava a outra. Em troca do verso eu lhe tiro essa
corcunda e esse povo lhe dá um bisaco7 novo!

Passou a mão nas costas do caçador e este tornou-se esbelto como um rapaz, sem
corcunda nem nada. Trouxeram um bisaco novo e recomendaram que só abrisse quando o sol
nascesse. O caçador meteu-se na estrada, andando, andando, e, assim que o sol nasceu, abriu o
bisaco e o encontrou cheio de pedras preciosas e moedas de ouro. Só faltou morrer de contente.

No outro dia, comprou uma casa, com todos os preparas, mobília, vestiu roupa bonita e
foi para a missa, porque era domingo. Lá na igreja, encontrou o compadre rico, também corcunda.
Este quase caiu de costas, assombrado com a mudança. Perguntou muito e, mais espantado
ficou, quando reparou no traje do compadre e soube que ele tinha casa, cavalo gordo e se
considerava rico.

O pobre contou tudo; e, como a medida do ter nunca se enche, o rico resolveu arranjar
ainda mais dinheiro e livrar-se da corcunda nas costas.

Esperou uns dias, pensando no que ia fazer; depois, se largou para o mato, no dia azado.

Tanto fez, que ouviu a cantiga e botou-se na direção da toada. Achou o povo esquisito,
dançando de roda e cantando: Segunda, terça-feira, vai, vem! Quarta e quinta-feira, Meu bem!

O rico não se conteve. Abriu o par de queixos8 e foi logo berrando:

Sexta, sábado e domingo! Também!

7
Mochila
8
Expressão típica geralmente usada quando alguém grita; falar alto
Calou-se tudo rapidamente. O povo esquisito voou para cima do atrevido e o levaram para
a laje onde estava o velhão. Esse gritou furioso:

– Quem lhe mandou meter-se onde não é chamado, seu corcunda besta? Você não sabe
que a gente encantada não quer saber de sexta-feira, dia em que morreu o Filho do Alto; sábado,
dia em que morreu o Filho do Pecado, e domingo, dia em que ressuscitou quem nunca morre?
Não sabia? Pois fique sabendo! E para que não se esqueça da lição, leve a corcunda que deixaram
aqui e suma-se da minha vista senão acabo com seu couro9!

E, enquanto falava, os outros iam dando empurrão, tapona10 e beliscão no rico. O velhão
passou a mão no peito do corcunda e deixou ali a outra, aquela de que o compadre pobre se
livrara.

Depois deram uma carreira no homem, deixando-o longe, e todo arranhado, machucado,
roxo de bofetadas e pontapés.

E, assim, viveu o resto de sua vida, rico, mas com duas corcundas: uma adiante e outra
atrás, para não ser ambicioso.

3. ANÁLISE

O conto em análise trata-se de um conto popular – na língua portuguesa, estes


contos tradicionais, indicam um conjunto de histórias relativamente curtas com
personagens humanas ou animais capazes de falar ou até mesmo ambos. Possuem
enredos fantasiosos, com magia, humor, ensinamentos práticos e morais. Geralmente, os
contos populares são transmitidos de geração em geração e sofrem consequências da
literatura oral: passando-se os anos, será que a narrativa se mantém a mesma?; fará ainda
sentido realçar a situacionalidade – de acordo com Lopes (2018), um texto deverá
respeitar um parâmetro de situacionalidade, ou seja, deverá adequar-se ao seu contexto

9
Expressão típica que significa ‘bater’
10
Bofetada
de produção-receção, e essa adequação mobiliza saberes de natureza cognitiva e socio-
comunicativa que se refletem tipicamente na escolha de um registo mais ou menos
formal. Ou seja, a narrativa pode ser contada de diferentes formas dependendo da
situação. Este conto segue, portanto, uma estrutura narrativa tradicional, com introdução,
desenvolvimento e conclusão e com linguagem coloquial e regional, típica da cultura
popular nordestina, com expressões e gírias características da região. Desta forma, não
existe grande preocupação com a correção gramatical. O narrador é não participante e a
história é divida em duas partes – na primeira, é feita a apresentação dos personagens e
a situação em que se encontram; na segunda, é apresentado o conflito enfrentado pelos
compadres e a solução encontrada para resolvê-lo.
O tópico frasal designa macro-estruturas semânticas (tal como postulado por Van
Dijk, 1977) e está presente logo na primeira frase sendo “dois corcundas”. O tópico
discursivo deste conto, caracterizado por Brown&Yule (1983) como “aquilo acerca do que
se está a falar” envolve a representação do humor e da ironia narrativa, explorando
situações cómicas vividas pelos personagens corcundas. O conto aborda ainda temas
como a humildade, a superação de adversidades físicas e a valorização do aspeto físico.
Ao nível da coesão, a narrativa apresenta uma estrutura lógica com fluidez dos
acontecimentos – observámos um exemplo de coesão referencial logo no princípio do
conto “O pobre andava triste e, de mais a mais, o tempo estava cruel e ele era caçador”,
neste caso, esta coesão assenta na relação gramatical entre dadas formas linguísticas
que têm a capacidade para apontar para expressões que já apareceram no texto;
encontrámos a coesão temporal em momentos como “Desceu da árvore e botou-se no
caminho, andando, andando…” e, logo de seguida, “Andou, andou, até que chegando
perto de um serrote…”. Esta coesão assenta nos processos de sequencialização temporal
que contribuem para a ordenação temporal e relativa das situações descritas nos
enunciados. Os tempos verbais e os advérbios de tempo asseguram, por excelência, este
tipo de coesão; a coesão interfrásica está presente, por exemplo, “Esperou uns dias,
pensando no que ia fazer; depois, se largou para o mato, no dia azado”. Esta coesão
assenta em processos gramaticais que estabelecem relações entre segmentos frásicos.
Os conectores são as unidades que tipicamente asseguram este tipo de coesão.; a coesão
frásica é visível ao longo de todo o conto, uma vez que é desenvolvida por meio de
mecanismos linguísticos que asseguram a ligação entre elementos de uma frase, sendo
visível nos fenómenos de concordância nominal, verbal, em género e em número. Está
também patente nas relações de regência do verbo com o seu complemento e na própria
organização dos elementos da frase.
No que diz respeito aos tempos e modos verbais a narrativa é contada através do
Pretérito Perfeito do Indicativo, Gerúndio e do Pretérito Imperfeito do Indicativo, conforme
o exemplo: “Desceu da árvore e botou-se no caminho andando, andando, no rumo da
cantiga que não descontinuava (…)”. O Pretérito Perfeito do Indicativo está presente em
“Desceu”; o Gerúndio em “andando” sendo o objetivo do gerúndio na língua escrita dar
ao verbo a ideia de continuidade temporal. Neste caso, o gerúndio apresenta-se na oração
com o valor da classe gramatical de advérbio.; o Pretérito Imperfeito do Indicativo em
“descontinuava”.

Finalmente, realço o predomínio do discurso direto, caracterizado por Cunha e


Cintra (2008, p.649) como “o narrador introduzir a personagem, e deixa-a expressar-se
por si mesma, limitando-se a reproduzir-lhe as palavras como ela as teria efetivamente
selecionado, organizado e emitido.” Quanto às normas do discurso direto: é introduzido
por um verbo de elocução, seguido de dois pontos e mudança de linha para um novo
parágrafo; normalmente é iniciado por um travessão que indica a mudança da voz do
narrador para a voz da personagem, excecionalmente na fala “– Pois bem, disse o velhão:
uma mão lava a outra. Em troca do verso eu lhe tiro essa corcunda e esse povo lhe dá
um bisaco novo!”, onde o travessão aparece antes da fala do narrador; é feito na primeira
pessoa do discurso. O discurso direto pode ainda ser analisado dentro de dois planos: o
plano formal e o plano expressivo. Neste conto predomina o plano expressivo que está
relacionado à vontade da representação da fala com maior naturalidade possível. Exemplo
disso é a fala “- Pois bem, disse o velhão: uma mão lava a outra. Em troca do verso eu
lhe tiro essa corcunda e esse povo lhe dá um bisaco novo!”, utilizado uma expressão
idiomática e um regionalismo.

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