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Escola Superior de Educação – Instituto Politécnico de Bragança

Relações Lusófonas e Língua Portuguesa

Privilégio branco

Marta Rodrigues

Bragança, 2022

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Escola Superior de Educação – Instituto Politécnico de Bragança

Relações Lusófonas e Língua Portuguesa

Privilégio branco

Marta Rodrigues – A41635

Cultura e Discurso na Lusofonia

Professora Susana Pimenta

Bragança, 2022

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“White privilege is like an invisible weightless knapsack of special provisions, maps,
passports, codebooks, visas, clothes, tools, and blank checks.”

(Peggy McIntosh)

“White privilege doesn’t mean your life hasn’t been hard; it means your skin tone isn’t
one of the things making it harder.”

(Unknow)

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Contextualização

O presente trabalho insere-se na unidade curricular de Cultura e Discurso na


Lusofonia, pertencente à licenciatura em Relações Lusófonas e Língua Portuguesa.

O que significa ter um privilégio? Um privilégio caracteriza-se por um direito ou


vantagem concedido a alguém, com exclusão a outros. 1 Trata-se da ausência de certos
obstáculos e barreiras. Abordarei, essencialmente, dois privilégios – o masculino e o
branco – sendo o meu foco o privilégio branco. Elaborei questões informais a amigos
brancos, mulheres e homens, para perceber se reconheciam os seus privilégios, e a amigos
negros, igualmente mulheres e homens, para me elucidarem com momentos em que o
tenham sentido. A partir desses momentos, construi uma reflexão de como seria se fosse
eu a passar por aquelas situações.

Eu falo de privilégio, porque é aquilo que eu conheço, apesar de me ser visível


há pouco tempo. Não me sinto culpada por isso. Nasci com ele. Nele. Aconteceu-me e
eu beneficiei dele a vida toda antes de me aperceber disso, e continuarei a beneficiar
dele pela vida fora, hoje consciente de que ele ali está: colado à minha pele, à forma
como eu falo, escrevo, no meu sotaque, na forma como me comporto em público e em
privado (Marecos, 2020). E sendo este privilégio uma herança do racismo, reconhecê-lo
é um dos fatores mais importantes nesta luta.

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Privilégio branco

O privilégio branco é uma herança do racismo – é o atributo de benefícios que


favorece brancos sobre não-brancos, especialmente se estiverem nas mesmas
circunstâncias políticas, sociais e económicas. Partindo da ideia de Peggy McIntosh
(1989), as pessoas brancas são cuidadosamente ensinadas a não reconhecer o seu
privilégio branco, assim como os homens são ensinados a não reconhecer o privilégio
masculino. Ensinam-nos que racismo é algo que coloca os outros em desvantagem, mas
ninguém nos ensina a ver o privilégio branco, que nos coloca em vantagem.

De forma bastante informal, noticiei cinco amigas mulheres e cinco amigos


homens, todos caucasianos, de que estou a escrever sobre privilégio branco e que gostava
de lhes propor algumas questões. Às mulheres, questionei-as se reconhecem o seu
privilégio branco e se sim, pedi uma situação que o ilustre. Aos homens, as mesmas
perguntas, acrescentando ainda se constatam o seu privilégio masculino.

Das cinco mulheres todas responderam afirmativamente e as situações em que o


reconhecem são diversificadas – a representatividade na televisão para “pessoas como
ela”; a não existência de dúvidas quanto à sua formação académica, relatando que via a
sua professora e orientadora de estágio, mulher e negra, a passar por isso constantemente;
ver amigos a serem tratados de forma diferente da sua, com preconceito; em Nova Iorque,
pedir a um polícia para tirar uma fotografia sem ser mal tratada, ao contrário do seu
namorado negro; nunca passou por uma situação onde se sentisse especificamente
privilegiada porque todos à sua volta têm a mesma cor de pele – reconhecendo isso como
privilégio.

De um lado completamente oposto, temos cinco homens que não reconhecem


qualquer um dos seus privilégios e as explicações são curiosas – o primeiro admite não
conviver com outras etnias porque não existem no seu meio e que considera a mulher
socialmente privilegiada; o segundo não reconhece porque alega que nunca o sentiu e
possui o mesmo argumento de que a mulher é privilegiada; o terceiro assume que esses
privilégios podem existir, mas nunca os sentiu, justificando isso pela falta de outras etnias
no seu meio; o quarto diz nunca ter ouvido falar sequer de tais privilégios; o quinto
considera os ciganos os únicos privilegiados, pela ideia comum de que vivem com
dinheiro do Estado e de que roubam as pessoas “honestas e trabalhadoras”. A seu ver, a
cor não influencia no meio social em que está inserido.

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Notei especialmente da parte dos homens aquilo a que chamamos de fragilidade
branca; o mais pequeno stresse racial é intolerável – a mera sugestão de que ser-se branco
tem um significado é muitas vezes o suficiente para desencadear uma panóplia de reações
defensivas. Estas incluem emoções como a raiva, o medo e a culpa, e comportamentos
como a altercação, o silêncio e o voltar costas à situação causadora do stresse. Estas ações
destinam-se a restituir o equilíbrio branco, afastando o questionamento, repondo o
conforto e mantendo a nossa dominação dentro da hierarquia racial (Diangelo, 2020,
p.142). Partilho ainda a mesma opinião de Robin Diangelo (2020), quando falo com
pessoas brancas sobre racismo, as suas reações são tão previsíveis que, por vezes, me
parece que estamos todos a recitar falas de um guião partilhado. Quando fiz esta pergunta
a amigos, já previa algumas das respostas. Falar com pessoas brancas sobre racismo e
privilégio é ouvir coisas como “mas eles também são racistas connosco”, “queria ver se
fossemos nós no país deles”, “eu não sou privilegiado em nada, ninguém me deu nada”.
Desenhámos fronteiras entre o «nós» e «eles». Outro dos aspetos mais referidos foi a falta
de contacto com pessoas de outras etnias, quer no meio social em que se está inserido,
quer nos media. Uma das formas mais poderosas de disseminar a supremacia branca é
através das representações nos media, que têm um enorme impacto no modo como vemos
o mundo. Os que escrevem e realizam os filmes são os nossos narrados culturais; as
histórias que contam moldam as nossas mundividências. Uma vez que a maioria das
pessoas brancas vive em isolamento racial das pessoas não-brancas (e das pessoas negras
em particular) e tem muito poucas relações inter-raciais genuínas, ela é extremamente
influenciada pelas mensagens raciais presentes nos filmes (Diangelo, 2020, p. 59). A
segregação social é ainda fator de destaque; os bairros degradados são maioritariamente
habitados por afrodescendentes, negros e ciganos, e basta olhar para os indicadores
socioeconómicos para perceber porquê: a população de origem PALOP negra ocupa as
camadas mais baixas da sociedade. Mas vai além disso: o facto de a pobreza ter cor resulta
de uma desigualdade histórica e estrutural que tem na base a discriminação racial que é
passada de geração em geração (Marques, 2018, p. 69).

Serão as mulheres mais conscientes quanto a estes assuntos por se sentirem


inferiores durante toda a vida? A exclusão social é acumulativa – se ser mulher é, diversas
vezes, fator de exclusão, imagine-se ser mulher e negra.

Eu sou mulher. Cresci a ouvir frequentemente que tenho determinado pensamento


porque sou mulher; que não posso andar sozinha na rua; que parece mal ser a única mulher

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no meio de homens; que não devo consumir qualquer bebida alcoólica porque é feio. Sou
branca e este privilégio reconheci recentemente. Não tinha grande noção até chegar à
faculdade de que possuía qualquer privilégio. Acreditava até que o meu percurso foi feito
sem qualquer tipo de ajuda ou vantagem, porque não tive grandes benefícios e cheguei cá
com muita luta minha e da minha mãe, o meu maior apoio. Vivi a maior parte da minha
vida encantada com a noção do mérito: a maravilhosa ideia de que este meu deslizar pela
vida rumo ao conforto, ao sucesso e à segurança era produto do meu esforço, do meu
trabalho, da minha inteligência. Entendia a meritocracia como o grande eldorado da
civilização: uma sociedade onde cada um tem aquilo pelo qual trabalha (Marecos, 2020).
Nunca tinha feito sequer uma reflexão sobre esse assunto porque nunca me tinha
confrontado com essa necessidade – nem na escola, nem no trabalho, nem na rua, nem na
televisão. Nenhum dos fatores à minha volta suscita pensamento, raciocínio, observação.
Mas deviam. Ensinam-nos que os negros são praticamente como algo exótico, que não
existem cá no país dos brancos costumes (Marques, 2018). Estão lá, muito longe da nossa
realidade. O momento em que cheguei à faculdade foi crucial para a minha perceção deste
privilégio. Os alunos do Instituto Politécnico de Bragança são completamente
heterogéneos. A minha turma é um perfeito exemplo disso – somos portugueses, cabo-
verdianos, são-tomenses, angolanos, guineenses, brasileiros, moçambicanos, chineses.
Todos eles contribuíram para o meu crescimento, essencialmente a este nível. Enquanto
aluna portuguesa, não posso negar que senti esse privilégio. Não tive qualquer dificuldade
em arranjar casa, mas tive dificuldade em ouvir o senhorio dizer que uma menina negra
queria alugar um quarto e que ele até a achou boa pessoa, mas não queria misturas.
Recentemente, cheguei a senti-lo por parte de professores, quase como se a minha ajuda
ou participação fosse mais válida; poderia até por ser representante de turma, mas não
creio, uma vez que os meus colegas africanos sentem exatamente o mesmo.

Não faria sentido não questionar os meus amigos negros quanto ao mesmo
assunto. Perguntei-lhes o que pensam sobre privilégio branco e uma situação em que o
tenham sentido. Ao homem questionei-o também do seu privilégio masculino. Gostaria
de o ter feito igualmente a cinco mulheres e a cinco homens, mas infelizmente o meu
núcleo de amigos não o permite. Consegui então respostas de três mulheres e um homem
e pretendo fazer uma análise do que aconteceria se fosse eu no lugar deles.

Todos eles reconhecem, sem qualquer espaço para dúvidas, o privilégio branco.
Vivem de frente para ele e passam quase diariamente por situações que provam que ele

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está vivo. Começando pelas mulheres – a primeira realça o facto das pessoas brancas 90%
das vezes não reconhecerem o seu privilégio e, como já referido anteriormente, o discurso
ser sempre praticamente o mesmo e cheio de comparações sem qualquer nexo, como “mas
os portugueses também sofrem na Suíça ou na França”. Há uma diferença gigantesca
entre racismo e xenofobia; uma imigrante negra, lida não só com a xenofobia como com
o racismo, ou seja, uma imigrante portuguesa e branca acaba por ser mais “aceite” do que
uma pessoa negra. E tudo porque é branca. Refere ainda o facto de as crianças negras
serem ensinadas desde cedo que quando entram em estabelecimentos comerciais, não
podem mexer nas suas mochilas e que têm de ter sempre as mãos “à vista”. Relata como
situação especifica o momento em que estava com um grupo de amigas, todas negras, a
entrar numa loja e duas mulheres brancas a sair. O alarme tocou, quem foi revistado foi
o grupo de mulheres negras a entrar e não quem realmente estava a sair da loja; a segunda
mulher diz que este privilégio se manifesta nas coisas mínimas do dia a dia, por exemplo
numa ida ao supermercado. Acredita também que as pessoas brancas acessão facilmente
aos melhores serviços de saúde e educação. Exemplifica com o momento em que foi
seguida pelo segurança, num supermercado, desde a entrada até ao momento em que se
dirigiu à caixa ou com o dia em que foi tomar a vacina e a funcionária mandou entrar toda
a gente, deixando para último os negros que se encontravam ali, mesmo estando eles em
primeiro lugar; a terceira narra uma apresentação de um trabalho escolar garantindo que
o mesmo estava bem estruturado, o único a receber feedback positivo do professor e
mesmo assim a nota final foi inferior a catorze valores. Diz ter sido tão grande absurdo
que gerou desconforto por parte de todos os alunos.

O homem em questão referiu-se ao próprio país, a Guiné-Bissau. Diz que se


concorrerem a um posto de trabalho uma pessoa branca e uma negra, o branco estará
sempre em vantagem aos próprios guineenses. Como momento específico conta o
momento em que se dirigiu a um monumento em Lisboa e surgiram dúvidas por parte da
guia se ele estaria ali realmente para conhecer o monumento. Sentiu necessidade de
explicar que o seu interesse era realmente conhecer. Não reconhece o seu privilégio
masculino, dizendo não ser favorecido em qualquer situação.

Partindo agora para a análise do que aconteceria se fosse eu nestas situações – já


perdi a conta ao número de vezes em que um alarme tocou quando entrei ou saí de uma
loja e nunca, em momento algum, fui revistada; também não tenho qualquer problema a
vaguear pelo supermercado ou por uma loja. Certamente, se for perseguida por um

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funcionário, será para impingir qualquer venda e não por desconfiar de que posso estar a
roubar; nunca considerei que existisse qualquer injustiça na atribuição das minhas notas,
referindo já anteriormente que notei algumas vezes um tratamento diferente a nível
académico; sempre fui recebida com normalidade em qualquer monumento ou evento
cultural.

O privilégio branco está intrinsecamente ligado ao racismo. O racismo é um


sistema com múltiplas camadas que está enraizado na nossa cultura (Diangelo, 2020, p.
180). É um sistema, é uma ideologia e é uma prática que se baseia em relações de poder
que se reproduzem e perpetuam até hoje – também em Portugal. São relações hierárquicas
e históricas em que o topo da pirâmide continua a ser ocupado pelos brancos, justamente
porque a desigualdade é uma prática secular, enraizada e cíclica (Marques, 2018, p. 13).
É um sistema com ideias forçadas através da sociedade, desde as escolas, aos manuais até
aos discursos políticos e ao cinema. Os brancos têm pontos cegos no que respeita ao
racismo e um envolvimento inconsciente (Diangelo, 2020, p. 180). Mesmo aqueles que
se consideram pessoas instruídas e bem-intencionadas, tendem a manifestar racismo
aversivo, um tipo de racismo subtil, que se manifesta em atitudes como pensar duas vezes
na forma como falar com uma pessoa racializada ou quando mudamos de direção quando
vemos alguém com “mau ar”.

E agora que tenho noção do meu privilégio, o que devo fazer?

O primeiro passo é efetivamente reconhecê-lo, não o posso desperceber, nem


posso, em consciência, em humanidade, fingir que o ignoro (Marecos, 2020). O segundo
é reconhecer os meus preconceitos, reconhecer que devo lutar contra eles mas que me
foram enraizados e eu não tenho culpa disso, sendo que o mais importante é querer mudá-
los. Pegando agora nos maiores ensinamentos de uma Fragilidade Branca, livro de Robin
Diangelo, referenciado ao longo de todo este trabalho - O racismo causa sofrimento
(chega a tirar a vida) às pessoas não-brancas, 24 horas por dia, sete dias por semana.
Combatê-lo é mais importante do que os meus sentimentos, o meu ego ou a minha
autoimagem – por isso, se me chamarem à atenção por qualquer comportamento racista
meu, não devo reagir com arrogância, devo minimizar a minha defensividade, devo
agradecer e interiorizar; devo criar espaço para o crescimento – sinto que os momentos
em que oiço os meus colegas e amigos de turma a falar sobre questões como o racismo,
são momentos de grande evolução para mim. Poder ouvi-los é uma grande vantagem e
acredito também construir com eles relações e confiança genuínas. Maior do que tudo
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isto, é a necessidade de pôr em prática aquilo que digo valorizar. É o que eu tenho de
fazer com o meu privilégio. Sentar-me pelos meus direitos e, de seguida, quase como se
fosse o mesmo gesto (mas não o sendo exatamente), levantar-me pelos direitos dos outros:
talvez o derradeiro exercício do privilégio (Marecos, 2020).

Referências bibliográficas

Marques, J. G. (2018). Racismo no País dos Brancos Costumes (1ª edição: abril
de 2018). [Costumes of Racism in the Land of the Whites]. Edições tinta-da-china, Lda.

Diangelo, R. (2020). Fragilidade Branca | Porque é tão difícil para os brancos


falar racismo (1ª edição: dezembro de 2020). [White Fragility: Why It’s So Hard for
White People to Talk About Racism]. International Editors’ Co.

Marecos, J. (2020, 4 de junho). Porque sou privilegiado: o meu testemunho.


Sapo 24. Consultado a 31 de janeiro de 2022. https://24.sapo.pt/opiniao/artigos/porque-
sou-um-privilegiado-o-meu-testemunho?fbclid=IwAR1l5klCNB-
2zXqlHlrffiQQTet2e0u0eeje3hLzNaf-3Zo6fP95cBtv_fo

“Privilégio”. (2008-2021). Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em


linha]. Consultado a 31 de janeiro de 2022. https://dicionario.priberam.org/privilégio

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