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Texto e Reflexão 3:

BRANQUITUDE, RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO: UMA INTRODUÇÃO


AO DEBATE
Luciana Alves1

Nos debates atuais sobre racismo, é comum ouvirmos o termo


branquitude relacionado à posição de pessoas brancas nas relações raciais que
se estabelecem cotidianamente. Você sabe o que esse termo significa? Ele é a
tradução da palavra inglesa whiteness, cuja utilização se popularizou nos
Estados Unidos, em meados de 1990, quando um grupo de pesquisadores se
propôs a interrogar o papel dos brancos na construção e manutenção das
hierarquias raciais vigentes.
Até então, raça e racismo eram encarados como ‘problema de negro’,
sendo este contraposto ao grupo representante do humano universal, ‘o branco’
(BENTO, 2002). Os então chamados estudos críticos da branquitude
apresentavam o objetivo comum de deslocar o debate sobre raça dos grupos
subalternos - especialmente negros e indígenas - e focalizar o grupo que se
beneficia direta ou indiretamente com o racismo (STEYN, 2004, p.121).
Os estudos da branquitude foram desenvolvidos em diferentes áreas do
conhecimento, notadamente a Psicologia e as Ciências Sociais, mas seja qual
for a perspectiva teórica, há ao menos um consenso quanto à origem dessa
identidade: a branquitude é uma identidade sócio-histórica, surgida
conjuntamente ao projeto de dominação colonial europeia, quando da marcação
de povos africanos e nativos americanos como negros e índios
(FRANKENBERG, 1993, BENTO, 2002, STEYN, 2004).
Como discutimos recentemente em outro texto (ALVES, 2020), antes dos
contatos mais sistemáticos entre europeus e povos de outros continentes, a
autopercepção de grupos africanos e nativos americanos se dava em termos
étnicos e não raciais. Tais povos consideravam-se diferentes entre si, eram
malês e nagôs, bantus e geges; tupis e bororos, maputis e guaranis, dentre
tantos outros, mas tiveram sua autopercepção negada pelo conquistador

1Luciana Alves é gestora de projetos no Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades
(CEERT); diretora de educação básica na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e doutoranda
em educação na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
europeu. Este, por sua vez, passou a designar a si também em termos raciais e
não mais geográficos ou nacionais, autodenominando-se branco e superior.
Portanto, durante a expansão colonial europeia, brancos criaram um
sistema de significação e dominação que explicava as diferenças físicas
observadas recorrendo à ideia de raça. Nesse sistema, a posição social dos
sujeitos e grupos estava associada à sua aparência física, sendo a cor da pele,
a textura dos cabelos e a apreciação de alguns traços faciais suficientes para
designar a pertença racial dos sujeitos e para explicar as posições sociais
desiguais ocupadas por eles.
Vê-se que a branquitude é a primeira de todas as identidades raciais, uma
identidade não apenas poderosa o suficiente para dizer aos outros grupos quem
eram ou deveriam ser (negros, amarelos, vermelhos), mas também para fazer
valer a violenta imposição de identidades raciais inferiorizadas, apagando e
silenciando (ou tentando) histórias e memórias que lembravam aos sujeitos
quem eles eram antes da dominação colonial.
Todas as identidades raciais que conhecemos estão, portanto,
assimetricamente em relação umas com as outras, com privilégios em favor dos
brancos. Isso porque, com a criação da raça, brancos passaram a se descrever
como civilizados, inteligentes, bonitos, honestos... sempre em contraposição a
outros grupos raciais, vistos como atrasados, feios, intelectualmente limitados e
moralmente impróprios.
A característica relacional das identidades raciais implica que ao falar em
branquitude estejamos sempre a falar sobre a subjetividade branca e sua
imbricação com as relações de poder que sustentam hierarquias raciais ou, dito
de outro modo, que sustentam o racismo.
Harris (1993) salienta que um dos resultados da relação entre branquitude
e racismo foi a associação entre brancura e propriedade. Ao longo da história
moderna e contemporânea, brancos praticamente monopolizaram a posse de
terras e de expectativas sociais. Haja vista as estatísticas de acesso a direitos
sociais como educação, saúde e moradia, ou mesmo aquelas relacionadas à
remuneração e acesso à carteira de trabalho assinada, todas elas evidenciam
que reconhecer-se branco, seja em nosso país ou em outros contextos
nacionais, equivale a gozar de melhores condições de vida em comparação com
sujeitos de outros grupos raciais.
Segundo o IBGE2, em 2018, por exemplo, um trabalhador branco recebia
em média 68% a mais que um trabalhador negro (soma de pretos e pardos);
34% dos trabalhadores brancos atuavam sem carteira de trabalho assinada,
enquanto 47,3% dos negros estavam na mesma condição; 27% dos brancos
moravam em casas sem rede de esgoto, enquanto 44,5% dos negros não tinham
esgoto tratado; Na educação o quadro não é diferente: enquanto 73% dos jovens
brancos com até 19 anos concluíram o ensino médio em 2018, apenas 53,4%
dos jovens pretos e 57,8% dos pardos o fizeram.
Comumente, seguindo a tradição inaugurada por Florestan Fernandes
(1965), essas desigualdades são explicadas como reminiscências do passado
escravista e da desigualdade de oportunidades para a ocupação de postos de
trabalho entre negros e brancos no contexto pós-abolição. Contudo, se é fato
que a escravização impôs sérias restrições não apenas à liberdade, mas também
às oportunidades de escolarização e especialização profissional aos
escravizados, também é fato que ela reservou aos brancos e a seus herdeiros
uma série de privilégios convertidos em vantagem competitiva na nova ordem de
trabalho livre que sucedeu a abolição. Assim, ao reconhecer o peso da
escravidão sobre as oportunidades sociais da população negra, é preciso
considerar também o privilégio conferido aos descendentes brancos,
decorrentes da exploração de mão-de-obra escravizada.
Mas não apenas de reminiscências vive o presente. Desde os estudos
estatísticos de Carlos Hasenbalg (1979), há evidências da criação de novas
clivagens sociais baseadas na raça, ilustradas especialmente pela piora nas
condições de vida da população negra em certos indicadores, ou ainda, pelo
deslocamento das desigualdades a novos patamares, caso do acesso ao ensino
superior que sequer configurava um sistema à época de Florestan,
anteriormente citado.
Assim, o racismo e as desigualdades raciais não são apenas expressões
de um passado que tende a ficar cada vez mais distante, mas são
constantemente atualizados, visando a manutenção de privilégios materiais e
simbólicos daqueles que se beneficiam dessas hierarquias.

2Informações retiradas da reportagem publicada no Portal G1, acessado em 27/01/2020


https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/11/13/trabalhador-negro-ganha-por-hora-59percent-do-
rendimento-do-trabalhador-branco-mostra-ibge.ghtml
Dentre os privilégios simbólicos, o conjunto de significados sociais que
atrela brancura a valores socialmente positivos, talvez seja a principal expressão
(ALVES, 2012). Nas sociedades multirraciais, o branco é construído como um
ideal ético, estético, intelectual, moral e econômico cuja experiência se confunde
com A experiência humana.
A escola é um dos espaços em que se observa como esses privilégios
simbólicos configuram um ambiente favorável à construção de identidades
brancas positivas e identidades negras depreciadas. Seja através de seu
currículo, que desconsidera saberes africanos e indígenas e conta a história
europeia como única história possível; seja por meio das relações estabelecidas
entre alunos e educadores negros e brancos, perpassadas pelo racismo.
A vivência de situações de racismo e o silenciamento em relação à cultura
africana e afro-brasileira que se verificam na escola contribuem para uma
“pedagogia da branquitude” (SANTIAGO, 2014), que mantém privilégios para
crianças brancas na distribuição dos afetos das educadoras (OLIVEIRA, 2004)
e nas possibilidades de identificar-se com brinquedos, histórias e experiências
que vivenciam na escola (FEITOSA, 2012), ao mesmo tempo em que se
reproduzem preconceitos e estereótipos relacionados à negritude, que
culminam, em muitos casos, no desejo de embranquecer manifesto por meninas
negras (MARTINS, 2006).
Embora a escola seja, como apontam essas pesquisas, fonte de onde
emanam discursos sobre superioridade branca, a instituição também configura
uma das principais apostas para o combate à idealização da brancura e ao
racismo. Tal papel só poderá ser efetivamente ocupado, caso a legislação
educacional que concerne ao ensino de cultura africana, afro-brasileira e
indígena seja de fato implementada no cotidiano da instituição e que se
construam relações raciais mais igualitárias. Disso depende um esforço massivo
do poder público em uma formação docente alinhada aos princípios das
Diretrizes Curriculares Nacionais para as Relações Étnico-raciais e de uma
expressiva revisão dos modos como a branquitude se expressa no dia-a-dia da
instituição.
Estamos, pois, no campo da política pública e da esperança, aquela que
Paulo Freire associa ao esperançar, que se vai tecendo a medida em que
construímos, especialmente a partir da escola, as novas bases para a sociedade
que queremos. Esperancemos!

Referências
ALVES, Luciana. Ser branco – no corpo e para além dele. São Paulo: Hucitec, 2012.
___________. Da homologia entre sexo e raça: um esboço de aproximação conceitual. In: Marília
Carvalho e Claudia Viana (orgs.) Gênero e Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
BENTO, Maria Aparecida. Branquitude – o lado oculto do discurso sobre o negro. In Psicologia
Social do Racismo. Bento e Carone (orgs.). Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
FEITOSA, Caroline Felipe Jango. Aqui tem racismo!: um estudo das representações sociais e
das identidades das crianças negras. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas, 2012.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Cia
Editora Nacional, 1965.
FRANKENBERG, R. White women, race matters: the social construction of whiteness.
Mineapolis: University of Minnesota Press, 1993.
HARRIS, C. Whiteness as a Property. Harvard Law review. n. 106, June, 1993.
HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. 2ª Edição, Rio de
Janeiro, IUPERJ, 2005.
MARTINS. Roseli Figueiredo. A Identidade de meninas negras: o mundo do faz de contas.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista
(UNESP), 2006.
OLIVEIRA, Fabiana de. Um estudo sobre a creche: o que as práticas educativas produzem e
revelam sobre a questão racial? Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal de São Carlos, 2004.
SANTIAGO, Flavio. "O meu cabelo é assim... igualzinho o da bruxa, todo armado":
hierarquização e racialização das crianças pequeninhas negras na educação infantil.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Estadual de Campinas, 2014
STEYN, M. Novos matizes da “branquidade”: a identidade branca numa África do Sul
multicultural e democrática. In: WARE, V. (Org.). Branquidade, identidade branca e
multiculturalismo. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

Para refletir

Em 2017, a mãe de uma criança de 3 anos utilizou as redes sociais para realizar
uma denúncia de racismo presente nas ilustrações do livro didático adotado pela
instituição de educação infantil, frequentada pela criança. Na ilustração que originou a
denúncia, solicitava-se que as crianças relacionassem figuras humanas aos objetos
comumente utilizados no exercício de suas profissões, como segue:
Como a imagem acima se relaciona aos debates sobre branquitude e educação? Em
sua resposta, busque dissertar também sobre negritude e racismo.

Assista a reportagem de onde retiramos a figura acima:


https://g1.globo.com/pernambuco/noticia/mae-denuncia-racismo-em-livros-didaticos-
utilizados-em-escola-do-recife.ghtml (acessado em 27/01/2021)

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