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COMUNICACOES '
Ano 15}1 RT ES
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" i Ó ANTI-MUSEU
BRECHT E O JOGO TEATRAL INFANTIL
I HISTÓRIA E IMPRENSA
RESISTÊNCIA CULTURAL. PÓS-54
ARTE E LOUCURA
.QUADRINHOS E IDENTIDADE NACIONAL

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. REC~T E O JOGO TEATRAL INFANTIL

ngrid Dormien Koudela


. ofessora Doutora do Departamento de Artes Cênicas da ECA/USP

A abordagem piagetiana do jogo teatral procura delinear proposições para uma metodologia de aborda- RESUMO
gem dos textos das peças didáticas de Bertolt Brecht, fundamentada na teoria da gênese do jogo e da imi-
ração na criança . O desenvolvimento da função simb61icalegitima a experiência estética como uma catego-
-; na do conhecimento e como importante instrumento de aprendizagem no processo educacional, princi-
palmente através dos meios pedagógicos do teatro e das artes. Essa é talvez uma das últimas possibilidades
. para a recuperação de fortes distúrbios de aprendizagem. causados pela miséria e abandono social.

, Teatro, educação, peça didática, Brecht, teoria do jogo, arte -educação, educação artística . UNlTERMOS

The Piagetian view of lhe thcatre game sceks 10 delineatc propositionsfor a methodology 10 approacblhe lear- ABSTRACT
:ingplays of Bertolt Brecht, bascd 011 lhe theory of lhe genesis ofpia)'and imitation in childhood. The deve-
/pment of lhe symbolic function lcgitimates the aesthetic experience as a category ofknowledgc and as ali im-
rtant leaming procedurein lhe educationalprocess, panicularty throughthepedagogic meallsofthcatre ando
. This is probablyolle of lhe lastpossibilities 10 recolw strollg leaming disturbances, caused by socialaban-
donment:

Theatre, education,didacticplay,Brecht, theoryofplay, an education, anistieeducation. KEYWORDS

A questão que me proponho debater foi formulada por Reiner Steinweg, pro- Brecht e a peça didática
fessor-vís ítante alemão, que veio colaborar no "Curso de Especialização em Artes
Cênicas" realizado em 1988 no Departamento de Artes Cênicas da ECA/USP, sobre
a peça didática de Bertolt Brecht. Na noite de sua despedida, escreveu a seguinte
."frase final":

Não existe "frase fina!" . Apenas uma pergunta dirigida a mim (e isso é o mais importante
de tudo) . Como o aspecto estético pode ser mais desenvolvido do que no trabalho até
aqui por mim realizado.'sem perder em nada a sua relação com a realidade'? Ou o inver-
so (e isso é uma pergunta a você). A exigência transformou -se em desafio, ser desafiado.
Isso é um agradecimento! .

Meu ponto de partida para o estudo da peça didática não surgiu inicialmente a
partir da obra de Bertolt Brecht, más sim da ocupação, durante anos seguidos
(1974), com o campo de pesquisa do teatro/educação na ECNOSP. Minha tese de
doutoramento! sobre a peça didática, apresentada ECNOSP, é um exame teórico
ã 1. Ingrid Dormien Koudela, A peça didática
que parte de interesses práticos. Pretexto e motivação foram logo de início questões de Benolt Brecht: um jogo de aprendiza -
gem. São Paulo: ECA/USP . 1987. Tese de
relativas à aprendizagem através do teatro, sobretudo a discussão sobre a peça didá - Doutorado..
tica e sua atual implicação na pedagogia do teatro.
Quando Brecht traduziu o termo "peça didática" para oinglês, ele utilizou o
. equivalente learning play. O princípio, enquanto tal.pode ser buscado desde Platão
: e Aristóteles, que atribuem grande importância ao lúdico enquanto fator deequilí-
, brio físico-emocional para o crescimento da criança. Napratica didático-pedagógica,
encontramos, paradoxalmente, um profundo abismo entre jogo e aprendizagem. Di-
'versão e ensino são tidos como fatores incompauveís. Essa dicotomia mostra que es-
-l amos diante de uma charada que espera por ser decifrada. O jogo constitui uma das
peças mais importantes para a solução de problemas de ordem pedagógica.

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Comunicações e Artes, São Paulo , (24):27-34, d ez. 1990.

Uma explicação possível para o papel secundário a que ficou relegada a drama-
turgia da peça didática pode ser buscada talvez no equívoco de que o seu potencial
lúdico é mínimo. No meu trabalho fiz a tentativa de elaborar o conceito pedagógico
de Brecht, na procura de um método de ensino, através do jogo teatral.

o conceito jogo teatral assume um papel central na estética teatral de Brecht. Jogo teatral- Conceito
Walter Benjamin vai me auxiliar a esclarecer o ponto de partida: .
"O conceito de 'jogo teatral' representa talvez a aproximação mais singela do
teatro épico?". 2." Walter Benjamin, Versuchc iiber Brecht.
Frankfurt: Suhrkamp, 1984. p.38.
Embora o conceito tenha sido muitas vezes utilizado na relação com Brecht e .
além dela , ele não foi analisado sistematicamente com vistas a todo o seu campo de
aplicação. Parto do princípio de que na concepção desse conceito, os campos da ex-
periência estética e da relação com a realidade podem ser relacíonados. O exame do
jogo teatral em Brecht representa parte de uma problemática e abre simultaneamen-
te novas questões, que vão além de Brecht.
A tentativa de construir uma metodologia, a partir ' de Brecht, tem como
questão até que ponto o jogo teatral atinge os objetivos de aprendizagem que carac-
terizam o teatro como linguagem expressiva . '.

Para o teatro-amador atual (dos trabalhadores, estudantes e atores-crianças) a liber -


tação da obrigação de exercer hipnosese faz sentir de -forma posit iva. Torna-se possível
estabelecer limites entre o jogo com amadores e com atores profissionais, sem desist ir
das formas básicas do jogo teatral (15, 304)."3 · . ... ' 3.' As ' referências sobre Bertolt Brecht foram
citadas de acordo com Gesammelte Werke
in 20 Bãnden . Frankfurt: Suhrkamp, 1967.
O teatro, como uma forma específica de manifestação pública, tem umgestus
próprio, que pode ser velado ou abertamente confesso, através da declaração do tea-
tro como teatro. Os "campos hipnóticos" do velho teatro ilusionista sugeriam, com o
abrir-se da cortina, um universo "real" de ações e paixões. Em oposição a isso, é pre -
sente em Brecht a exigência da transparência do jogo teatral.

A capac idade de transformação é tida como característica do talento do ator: se ela fa-
lhar . entã o tudo terá falhado . Ela falha com crianças, quando jogam. e falha com amado-
res . Algo de art ificial logo se apresenta no seu jogo . A diferença entre teatro e realidade
aparece de forma dolorosa (15.387).

O princípio do jogo é sublinhado por Brecht, na poesia Libertar oteatro das


ilusões: .

No pudor natural das crianças


Que recusam o fingimento no jogo teatral
E na indignação dos operários
De portar-se de forma inculta , quando
Querem mostrar o mundo como ele é .
Para que nós possamos modificá-lo.
Se expressa esta r abaixo da dignidade do Homem Enganar. (9, 777)

Brecht procura inicialmente o modelo de seu teatro nas " fo rmas naturais ante-
riores da arte, que podem ser observadas na prática cotidiana". Encontra-se na Cena
de rua o "exemplo mais simples de teatro épico natural" (16, 546). A arte deve ser
encontrada no comportamento dos homens, a partir de onde deve desenvolver-se,
como exige BrechL, de forma produtiva e processual. Tarefa do trabalho pedag ógico
é, no discurso brechtiano, manter em vista o concreto e o abstrato, bem como o
simbólico na forma de gesto s sociais e intermediá-los dialeticamente.

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Comunicações e Mes, São Paulo, (24):27-34, dez. 1990.

Se perseguirmos esse procedimento até a gênese do jogo teatral na criança, a Piaget: jogO teatral e a criança
eoría de Jean Piaget poderá ser Útil com relação ao endereço mais importante e
uitas vezes referido por Brecht, através dos subtítulos das peças didáticas. Quatro,
, os seis textos e dois fragmentos que constituem as peças didáticas de Brecht, foram
':escritos especificamente para serem usados por crianças nas escolas. A Exceção e a
;Regra e Horâcios e Curiácios, por exemplo, receberam a designação de "peça sobre
dialética para crianças ". A coordenação do jogo com crianças exige um conhecimen-
to das fases de desenvolvimento do jogo. A gênese nos mostrará que o jogo teatral
está no centro da criatividade humana e como tal deveria assumir um lugar central
em toda forma de ensino/aprendizagem. Piaget aponta para o fato de que o jogo,
.através do qual a representação dramática é exercitada, está em relação direta com o
'desenvolvimento da inteligência .
No decurso do segundo ano de vida, surge um conjunto de condutas que con-
sistem em poder representar um significado por meio de um significante diferencia-
do e que só serve para essa representação. Piager' distingue cinco condutas, de apa - 4. Jean Piaget, Psicologia da criança. São
Paulo: DIFEL, 1982. p.46.
'. recimento mais ou menos simultâneo, e as enumera na ordem de complexidade cres-
.cente: imitação diferida, jogo simbólico ou jogo de ficção; desenho ou imagem gráfi-
.ca; imagem mental e evocação verbal (linguagem).
. '
.
A linguagem, ao contrário dos outros instrumentos semióticos, que são elabo-
ados pelo indivíduo à proporção que surgem suas necessidades, já está elaborada.
.la começa a aparecer na criança ao mesmo tempo que as outras formas do pensa- .
;t,nento simbólico. Os progressos do pensamento representativo são, portanto, devi-
os à "função simbólica" em conjunto. É ela que distingue o pensamento da ação e
. 'a a representação. .
Trago um exemplo do jogo simbólico na criança pequena, na forma de uma
esia de Mário Ouintana': 5. Mário Quintana, Lili inventa o mundo.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.

Mentira?
A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.
Mentiras.
Lili vive no mundo do faz-de-conta. Faz-de-conta que isto é um avião. Depois aterrissou
em pique e virou trem. Tuc tuc tuc tuc... Entrou pelo túnel chispando. Mas debaixo da
mesa havia bandidos. Pum! Pum! Pum! O 'trem descarrilhou. E o mocinho? Meu Deus! .
Onde é que está o mocinho? No auge da confusão levaram LiH para a cama. à força. E O '
trem ficou tristemente derribado no chão, fazendo de conta que era mesmo uma lata de
sardinha.

Lili é levada para a cama, à força. A teoria do jogo dePíaget nos mostra que a
. 'da afetiva da criança está orientada para dois pólos: a realidade material ou social e
as experiências do eu. De um lado, Lili encontra a realidade material e social, à qual
.~eve se adaptar e que lhe prescreve suas leis. Mas a mentira, a verdade que se esque-
.ceu de acontecer, tudo aquilo que emerge da subjetividade, os conflitos, as vontades
conscientes e inconscientes, as alegrias e esperanças são o outro -lado de Lili,aquele
,l ado que vive no mundo do faz-de-conta.
. O jogo simbólico da Lili ainda não pode ser compreendido como "arte" ou
:;:'teatro" em sentido estrito. Mas... e se deixássemos esse jogo sair de debaixo da me-
? E se ajudássemos Lili a encontrar os seus parceiros?

O jogo teatral se desenvolve imperceptivelmente a partir do jogo simbó-


Jogo teatral e jogo simbólico
ico coletivo . Quando Lili encontra o João e a Maria deve haver uma acomodação
.• s parceiros de jogo. No jogo teatral continua a existir a satisfação das necessidades .
,'róprias (subjetivas), mas a criança procura adaptar aquilo que pensa e sente à reali-
de objetiva.

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Comunicações e Artes, São Paulo, (24):27-34, dez. 1990.

A lata de sardinha é transformada, no mundo do faz-de-conta, em avião e em


trem. A analogia resulta do caráter lúdico do símbolo utilizado. "Há muitos objetos
em um só objeto" é a frase utilizada por Brecht na cena "As sete utilidades da lança"
na peça didática Horácios e Curiácios. Nas fases iniciais do jogo, à criança não se im-
porta se o símbolo expressivo que está utilizando guarda semelhança com o símbolo
interior. Para Lili, que faz de conta que isto é um avião, pequenos ruídos com a boca
e movimentos vigorosos com a lata de sardinha trazem analogia satisfatória. Impor-
tante é aquilo que é representado e não o realismo do símbolo expressivo. Isso não
ocorre apenas quando a criança utiliza o próprio corpo como linguagem expressiva,
mas também quando outros objetos são utilizados como elemento analógico.
O processo evolutivo do jogo infantil mostra que o símbolo na criança se de-
senvolve através de fases que conduzem a um realismo crescente.
A evolução do símbolo no jogo acompanha o processo de socialização e é por
ele determinado. Inicialmente, quando as crianças jogam juntas, não se registram
transformações internas na própria estrutura dos símbolos. Entre os 4 e 7 anos, co-
meça a haver a diferenciação e o ajustamento de papéis. A ordenação de cenas do
jogo e a seqüência de idéias no decurso do diálogo evidenciam o progresso da socia-
lização. Nesse mesmo período, o símbolo vai perdendo o seu caráter de deformação
lúdica e se aproxima mais do real, até avizinhar-se de uma simples representação
imitativa da realidade. É através do nascente sentido de cooperação e de troca entre
os pares que o simbolismo individual se transforma no sentido de imitação objetiva
do real.

Piaget define quatro fases que caracterizam o desenvoivimento genético: . Os jogos eo


1) jogos de exercícios ou jogos sensório-motores, que se iniciam nos primeiros desenvolvimento da inteligência
meses de vida, quando a função simbólica ainda não está presente, ou surge
apenas de f~rma física;
2) jogo simbólico ou jogo de ficção;
e
3) jogo de regras, que se inicia por volta dos 7 a 8 anos se desenvolve até a
vida adulta;
4) jogos de construção que não caracterizam uma fase de desenvolvimento
genético, mas ocupam uma fase intermediária entre o jogo e a elaboração
inteligente, ou entre jogo e imitação.
Essas atividades de criação assinalam uma transformação interna na noção de
símbolo. A representação dramática, que evolui insensivelmente dos jogos simbóli-
cos, sofre, no jogo de construção, uma transformação interna, através das exigências
de adaptação (requeridas pela regra e p~las relações interindividuais).
O desenvolvimento do jogo na criança comprova

(...) que o jogo simbólico nãoatinge sua forma final de imaginação criadora enquanto
não é integrada ao pensamento. Saído da assimilação. que constitui um dos aspectos da
inteligência inicial. o simbolismo desenvolve inicialmente essa assimilação em uma di-
reção egocêntrica; com o duplo progresso de uma interiorização do símbolo em direção
à construção representativa e um alargamento do pensamento conceitual. a assimilação
simbólica é reintegrada ao pensamento. na forma de imaginação criadora." 6. Jean Piaget, A formação do simbolo na
criança. Rio : Zahar, 1975.

A "assimilaçãosímbólíca" Gogo) é portanto fonte da imaginação criadora, em


oposição à acomodação à realidade e à lógica experimental. Os "jogos decons-
trução" podem ser explicados como atividades de comportamento maduro, resultado
do surgimento de um equilíbrio entre a expressão da subjetividade e a acomodação à
realidade.

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';j!' Tradicionalmente se acredita que somente aquilo que pode ser expresso Jogo simbólico e reconhecimento
través da linguagem pode ser pensado. O pensamento e a racionalidade são reduzi-
i, ao plano da linguagem verbal. Suzanne Langer estabelece uma diferenciação en-
~:e a "forma discursiva" e a "forma apresentativa".? Sempre onde ocorre um símbolo 7. Suzanne Langer, Filosofia em nova chave.
e haver um reconhecimento, e a incorporação da forma apresentativa possibilita São Paulo: Perspectiva. 1971.
/suposição de que a racionalidade ocupa um espaço mais amplo do que se supõe
. dicionalmente. Se partirmos do princípio de que a "função simbólica" é resultado
um processo espontâneo que caracteriza a inteligência humana (e que não pode
'r nunca interrompido). então essa função representa 'o fundamento de nossa ra-
::onalidade. Enquanto a forma discursiva pressupõe vocabulário e sintaxe, a forma
presentativa não requer uma expressão coletiva, que exija um processo de aprendi-
, gemo Para a criança pequena, a forma discursiva é inicialmente estranha, enquanto
..ue o símbolo , que nasce do processo com o jogo simbólico, é construído pelo in-
, ividuo, através da sua própria experiência. '
A atitude natural do pensamento é a crença. Só as operações formais - na ado-
escência - afastam verdadeiramente o pensamento da crença espontânea. No jogo, '
.. , ' ; l i " .' "
ão há estabelecimento de hipóteses e comprovação através do pensamento. A , (

.:';
lança não acredita realmente no que joga. Quando uma criança ao brincar de bruxa
u de lobisomem acredita no personagem, o jogo cessa e ela provavelmente come- " ' ;.. ~ .
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rá a chorar. As crianças distinguem logo cedo entre fantasia e realidade nos seus
[ogos simbólicos. Em oposição à forma discursiva, o símbolo lúdico vai em direção à
cção e não à crença . Trago um exemplo, na forma de uma poesia de Brecht: "Sobre ,
m desenho japonês que representa um teatro de bonecos onde crianças se apresen-
;tamdíante de crianças" (2;543): ' '

Ai!
Brincando em cima de mesas
Crianças mostram o que viram

Como o homem se comporta perante


O Homem
Sendo lobo do Homem

Ali.
um deles se ajoelhando diante do outio

Quatro se esforçavarn.ern mostrar o que viram


Apenas dois permaneceram '
Os outros dois correram
Cheios de medo.

Logo mais
os infelizes jogadores
terão perdido também o seu direito de cidadania.

As crianças correram cheias de medo. O que viram? O que estavam represen.


tando? Brecht não nos mostra os quadros terríveis. Ele diz apenas - esse jogo teatral
foi interrompido. As cenas representadas eram tão terríveis que o medo real não
permitiu a continuidade do jogo e da representação.
Por que esse jogo teatral foi interrompido? Por que esses jogadores pararam ,
de jogar? Eles foram tomados pela emoção. O jogo teatral não é uma extensão da
realidade, mas sim urna construção intencional. A partir de uma concepção pura-
mente psicológica, a expressão espontânea dos sentimentos deve ser entendida a par-
tir de um plano meramente naturalista.

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Comun icações e Artes . São Paulo, (24):27-34 , dez . 1990. ~

Em oposição à abordagem psicológica, as linguagens expressivas (teatro, artes Jogo teatral e a


plásticas, dança, música) são formas simbólicas do pensamento. O conceito "ex- linguagem expressiva
pressão" significa, a partir de uma abordagem psicológica, dar vazão ao sentimento -
a reação espontânea a uma situação real e presente. Ela testemunha o estado físico e
mental em que nos encontramos. Já na linguagem expressiva (plano estético) "ex-
pressão" significa conhecimento simbólico, que vai além da experiência real. A lin-
guagem expressiva se assemelha antes a um símbolo do que a um sintoma emocional.
Sendo assim, ela não significa uma extensão de vida, mas sim uma nova apreensão e
concepção da realidade. Nesse sentido, o desenvolvimento da função simbólica pode
serequiparado ao comportamento científico, como categoria do conhecimento.
Ajudar a criança a superar a orientação egocêntrica é a tarefa mais importánte
do teatro com objetivos educacionais. Nesse sentido, o jogo teatral, como todo mo-
dus de intervenção educacional, é um procedimento que deve auxiliar a criança a li-
dar com elementos da realidade , dentro de uma situação controlada.
Brecht propõe o exercício de uma "didática não depositária" (na expressão de
Paulo Freire), pela qual o aluno aprende por si próprio e verifica até onde caminhou
com o conteúdo, em lugar de se ver confrontado, de início, com uma determinação
. do objetivo da aprendizagem. As questões que se colocam - Çomo é introduzido esse .
processo? Para onde se dirige? Como é estruturado? .devem ser buscadas, acima d~
tudo, na atitude do coordenador, que

(...) não entende por ensaio a submissão à disciplina a partir daquilo que já est á estabele-
cido em sua ca beça. Ente nde-o como uma experimentação. Ele precisa exigir que varias
possibil idades sejam mantidas. É' perigoso para ele ser forçado a encontrar rapidamente
a única solução "co rreta". A única solução correta só Pode ser uma dentre muitas so-
luções possíveis. se é que ela existe. e vale a pena experimentar também outras soluções,
mesmo porque. assim. a solução final será enriquecida. Ela tira sua força do ato da se-
leção . Além disso. a produtividade dos participantes-é irregular. eles produzem em tem-
pos diferentes e necessitam de estfmulos diversos. cada um dos participantes tem
também interesses diversificados. que devem ser plenamente desenvolvidos para o enri -
quecimento da solução de conjunto. É tarefa do coordenador desmascarar as dificulda -
des para todas as soluções esquemáticas. costumeiras e convencionais. Ele deve desven-
dar crises. Naturalmente. não deve ter medo de reconhecer que nem sempre sabe e tem
pronta "a " solução. A confiança que os participantes depositam nele deve fundamentar-
se no fato de que ele é capaz de decifrar aquilo que n ãoé solução. Ele deve contribuir
com perguntas. dúvidas. multiplicidade de pontos de vista. comparações. lembranças. ex-
periências. Norm almente. será trabalhoso evitar uma construção excessivamente rápida
das situações e dos papéis, na medida em que é justamente isso o que dá àq ueles que já
adquiriram atitudes de rotina ou são mais fortes (fa mosos) a oportunidade de paralisar a
produtividade dos outros e impor soluções convencionais (...) ele deve organizar a atitu-
de de espanto (...). Deve fazer com que perguntem: por que digo isso? e por que de disse
aquilo? Deve até mesmo fazer com que digam : Eu (ou aquele)poderia dizerissoou-aqui-
lo (15. 420) .

Brecht escreveu um texto, que não é peça didática no sentido estrito, Leben des . Brecht e o jogoteatral infantil
Konfutse ("Vida de Confúcio"), composto para um teatro que tem crianças como
atores. Nas observações sobre a peça, diz:

Poderá parecer que não se .far ã justiça ao nobre objeto. confiando a .represen-
raçã o a cria nças. É preciso objetar que, para crianças. apenas os objetos mais elevados
são suficientemente altos . Além d isso; a representação 'de uma vida como essa 'no teatro,
mesmo quando empreendida pelos melhores atores, manterá sempre uma certa imper-
feição . e o auto r prefere as imperfeições na representação de crianças às imperfeições na
representação de artistas adultos (...) crianças não são -capazes de rep resentar sutis inte-
rioridades psicológicas - uma forte .razão .para confiar a elas a representação ele um.a,
grande figura pública que formulou informações úteis . É necessário tratar objetos pro-
fundos com alegria e cumpr irne nra ras autoridades com benevol ência : que os intérpretes' ,
infanti s preparem uma recepção como essa para o grande professor (7. 2991) .
Na peça, um grupo de crianças que estava jogando bola decide ;brinçar de esco- .··
Nesse jogo dentro do jogo, o menino mais velho' quer .énsínar "boas maneiras"
seus parceiros mais jovens. Passa a representar o''' gniiii:ie e legendário rei Yen",.
t"quanto os outros garotos se transformam em seus generais; o rei oferece, co~o "' : . •>:
I de sua aprovação pela vitória no combate'do qual participavam, "umpote de
ngibre real". O general Fu, convidado' aapreseíitar-se à frente par~ re~ber o gen- : .; .' ". '. : ..
......

re que lhe é oferecido, coloca a mão dentro do pote e.gulosarnenté.enfía na boca :' . f' / '. . ,' , ',: : , ~ ~~ i " ~

aior quantidade possível. O mesmo se'dá com o general Tao. O rei Yen/professor
'ostra para o menorzinho "como ele deve receber o pote real se quiser demonstrar
ucação":
, , ~ .. , ' . .

(para o menor) Segura você o pote (como o menor também quer agarrar o pote com vo- .: , .... : . . :: : ...
racidade ) Não! Com as duas mãos! Agora você é o grande e legendár io rei Yen enquan- ., ... :.,
to eu represento o general Gô (o menor segura o pote) . Primeiro , faço um cumprimento. .
Assim. Com isso dei a entender que considero grande demais o presente. Mas como o rei . . ~: :.Ii..

Yen me oferece o pote pela segunda vez, eu o recebo , depois deter feito mais um cum- " : ..-: t.!
primento para mostrar que só aceito o pote para obedecer-lhe. Mas como recebo o po- ..' . . ; . '; ~ : ..
te? Com voracidade? Como Um porco que quer devorar uma bolota? Não . Calmamente
e com dignidade (ele o faz). Quase com indiferença,'"ainda que com grande estima. Eu .',
ponho a mão com negligência. Como ponho a mão? (7, 2989).

O procedimento é repetido. Cada general experimenta'novamente ogengíbre e , ..:' "

Come gulosamente. Somente o menor aprendeu a lição de boas maneiras, Enquanto .


'os dois meninos maiores saem correndo para' jogar bolá, o menor, que ganharia co-
~o recompensa o resto do gengibre, abana tristemente a cabeça ~ o pote real está vá-
,zio. O rei Kung conclui com a máxima:

Temo que duas coisas são necessárias para que a nobre discrição seja mantida ao comer
um pote de gengibre; primeiro, o mais sutil sentimento de cortesia , e segundo, um pote.
cheio . .
". :"- ,'
A lição instaura O processo dialético. Os meninos cantam, ao final:

Pouco gengibre
Pouca cortesia
Pois a cortesia é uma coisa bela
E o gengibre é uma coisa doce. (7. 2991)

Sobre o que versa a lição? Ensinar boas maneiras à mesa? Quando se pode ser
. . bem educado? Quem pode ser bem educado? Emdetermiriada situação, valores ma-
niqueístas passam a ser relativizados.
A peça propõe um Thearerspiel (jogo teatraI)- expresso no texto pelo recurso
do jogo dentro do jogo: meninos brincando de bola q úedecidem brincar de escola.
Através da relação professor/alunos (o mais velho dos meninos, o professor, faz de
conta que é o rei Yen, enquanto seus parceiros passam"a desempenhar o papel de
generais) é proposto um novo jogo: rei/generais. Essa sucessiva proposição do jogo
dentro do jogo conduz consciência da representação do papel, o que ainda é acres- .
ã

cido da estratégia da troca de papéis, explicitamente apresentada pelo autor: "Por-


que agora você é o grande e legendário rei Yen, enquanto eu represento o general
GÔ".
"Vida de Confúcio" fornece um modelo de ação (texto) para o jogo teatral
com crianças. Essa pequena cena se aproxima dos modelos associais das peças didá-
ticas que, de acordo com Brecht, são "modelos altamente qualificados de ações, ati-
tudes e falas", cuja imitação no jogo deve provocar a.reflexão crítica - sobre socieda-
de ek»: sociabilidade, comunicação interrompida, possibilidades atrofiadas de asso-
ciar-se.

33
.: . _. . -:' ':: : ~ .: . ~.. , ' Comunleaç6es e A1lBS. SãO Paulo, (24):35-42, dez. 1990. '.
_.- '

A escola (ou formação acadêmica) privilegia apenas a. forma di~c:~rs~v~, . ~~- . " ;" ;

quanto não se atribui às linguagens expressivas o seu devido vàlor comQ.·fàtor~ de' , . ~:, ~ . .. ~ " '.
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educação. A forma discursiva representa, enquanto tal, u'in .instr~méntô· ·de pb~~r ~ . , • I ~ •

principalmente se partirmos de uma perspectiva do Terceiro MUIÍ~o,. ~~de '~ .~.~ , .:.; . :.. ;-......
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cação formal se apresenta gravemente abandonada e onde ováç\lo'eIftre â:soc~~d.~,~~. . , .". ':,.:~ :. : . . ,',";.'.
industrial moderna e o analfabetismo (ou semi-analfabetlsmojse aprofuIid~t.a~aY~z, · · . ·1

mais. Vários experimentos e também projetos subvencionados peloEStaâosãóh'~j~ ', 5 . ,'


realizados em São Paulo, onde se trabalha com crianças socialmente abandôria~as '~
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que podem ser contadas aos milhões. . . . . .
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Diferentes abordagens contribuem através da pedagogia, da dança, do jogo, das Jogo teatral e o
artes para esse trabalho, e este representa talvez uma das últimas possibilidades para processo de aprendizagem
a recuperação de fortes distúrbios de aprendizagem, causados pela miséria e aban-
dono social. O principio do jogo, que possibilita uma representação sensório-concre-
ta e simbólica da realidade, está presente nas diferentes abordagens e caracteriza
uma direção pedagógica importante, denominada, entre nós, de uma forma ampla . ·.l. · .

como Arte-Educação.
A educação da sensorialidade, aliada aos procedimentos com o jogo, promove
o campo dentro do qual o texto poderá ser introduzido. A peça didática de Brecht vi-
sa completar o procedimento do "estranhamente". De acordo Com Brecht, "estra-
nhar significa historicizar, representar processos e pessoas como históricos", portan-
to transitórios. O procedimento da "hístoricízação", também ' referido contempo- .
ã

raneidade, inicia-se a partir da relação que o atuante (jogador) estabelece entre o


texto e o seu universo de vida (cotidiano). .
Ao mesmo tempo em que o "modelo de ação" (texto) é imitado, ele também é
objeto da crítica - a poesia/literatura é apreendida .de .forma processual .(ela hão
contém verdades em si mesma). As peçasdfdãtícás'de BteChtsãodê fér'miIiadâs ~ ou
seja, nitidamente delineadas, isoláveis em suas partes para que possam ser julgadas
ou imitadas. Característica do modelo é sua reprodutíbilídadeponqualquer 'pessoa. .
Por outro lado, o jogo teatral com base no texto de Brecht.não é apenas um "desem-
penho de papéis" (role-playing), que parte unicamente das experiências pessoais dos
jogadores ou do contexto grupal. O texto é o móvel de ação, o pretexto ou ponto de
partida da imitação e crítica que são introduzidas na improvisação e discussão. O
"modelo de ação" propõe aos jogadores um caso social que não se relaciona neces-
sariamente com a experiência pessoal de cada participarite (as peças didáticas de
Brecht passam-se na China, em Roma etc.) O texto tem a função de desencadear o
processo de discussão através da parábola. Portanto, o texto não transmite o conhe-
cimento por si mesmo, mas visa provocar um processo, por .cujo intermédio o conhe-
cimento poderá ser atingido . .
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Outubro, 1989

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