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Grande Sertão: Veredas - Guimarães Rosa

Começar uma jornada cega de destino pode ser assustador, especialmente se for através
das palavras deste clássico da literatura universal. Com uma linguagem e prosa única, cheia
de neologismos eruditos e regionais, o livro pode assustar em suas primeiras páginas. É o
mundo árduo do sertão e isso se reflete no processo de leitura. Todos precisam começá-la
com paciência e humildade, mas a travessia recompensa. A travessia transforma. Como
Riobaldo, narrador e personagem principal, disse: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é
assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer
da gente é coragem”.
Guimarães Rosa foi um dos mais importantes escritores brasileiros do modernismo, mas
desde o início de sua trajetória esbanjava paixão e facilidade com línguas. Nascido em
Cordisburgo, uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, em 1908, estudou diversas
línguas durante sua infância, se tornando poliglota. Aos 22 anos, se forma em medicina e aos
26, guiado pelo seu domínio de línguas, presta concurso para o Itamaraty e torna-se
diplomata. A escrita sempre esteve em sua vida, mas em segundo plano. É somente em 1946
que publica seu primeiro livro, Sagarana. A temática do sertão e a quebra com as tradições de
escrita literária estão presentes na obra e consolidam o estilo ficcional que levaria em todos
seus livros posteriores. Em maio de 1952, faz uma viagem que marcaria sua vida. Em busca
de vivenciar experiências e histórias, acompanha oito vaqueiros, levando centenas de cabeças
de gado, em suas andanças pelo sertão mineiro. Ouve histórias destas pessoas, a maneira
como falam e como vivem seu dia-a-dia, anotando tudo para suas futuras obras. Dessa
vivência, colhe os frutos para várias obras, incluindo sua obra prima: Grande Sertão: Veredas.
O narrador da história é Riobaldo, um ex-jagunço que resolve contar histórias de sua vida
para um visitante de sua casa. Nunca sabemos quem é esse "personagem invisível", mas ele
está sempre presente através do tom de diálogo, de contação de história, que a prosa do
narrador tem. Não há divisões de capítulos e nem uma linha temporal definida, numa hora
Riobaldo fala do presente e em outras horas alterna entre diversos momentos de sua vida. É
somente após umas 150 páginas que a narrativa assume uma linearidade maior e fica mais
prazerosa de se ler.
Riobaldo tem no seu passado a vida de jagunço e carrega nas mãos o sangue e a pólvora
típicos desta profissão, mas ele não é exatamente o que você espera desse tipo de homem. Ele
não tem nada de comum. Ele tem uma educação privilegiada para suas origens, mas encontra
pedras no caminho que o levam para a vida de jagunço. A mistura de intelectualidade e
brutalidade no seu modo de ser e de contar, traz uma visão única para os dois principais
temas do livro: o pacto faustico e a impossibilidade da homossexualidade.
Se entregar a este amor proibido e suas consequências ou não? É uma pergunta sofrida que
Riobaldo se faz o tempo todo e sentimos com ele a aflição desse romance não vivido durante
boa parte do livro.

Logo na primeira página do livro, vemos se delinear uma das grandes temáticas de Grande
Sertão: o mito do pacto faustico.
— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus
esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu
acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram
me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem
ser — se viu —; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis
avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse
figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram — era
o demo.

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