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Conto de Clarice Lispector:

projeções para além do narrado


Vera Lúcia Cardoso Medeiros*

Resumo
Este artigo pretende comentar os livros de contos escritos por Clarice Lispector, fornecendo uma visão
ampla da produção literária da autora a partir da teoria do conto esboçada por Júlio Cortazar.

Palavras-chave: Clarice Lispector, conto, literatura brasileira contemporânea.

C
larice Lispector não foi escritora de um único gênero literário. Ela
cultivou a prosa em suas várias modalidades – romance, conto, crôni-
ca – e aproveitou os recursos de cada uma dessas formas para repre-
sentar seu modo de sentir, ver, pensar, dizer. No que se refere ao conto,
Clarice serviu-se de toda a versatilidade do gênero para fazer da construção
da subjetividade e da reflexão sobre a linguagem – eixos da obra clariceana –
temas a serem explorados nas mais variadas situações.
A versatilidade do conto é constatada quando se observa sua histó-
ria. A origem desse gênero poderia ser localizada em torno do ano 4000 a.C.,
quando se verifica o nascimento das narrativas curtas. Nessa etapa inicial,
ressalta-se a oralidade do conto; em uma fase seguinte, as histórias contadas
passam a ser registradas por escrito. Posteriormente dá-se a criação do rela-
to, quando se consolida o caráter literário do conto. Assim, sob a denomina-
ção de conto, são encontradas desde “narrativas domésticas” ou “formas
simples” – as expressões são de Fábio Lucas e André Jolles, respectivamente
– como a anedota, o causo e o provérbio, até textos elaborados que acompa-
nham os rumos da ficção moderna e ocupam-se com o processo da escrita
do relato.
Entre os contos escritos por Clarice Lispector, alguns retomam as
formas simples, centradas no relato, outros são textos sofisticados, em que
esse relato praticamente se dilui diante da percepção dos procedimentos
narrativos e seus impasses. Todos, contudo, funcionam como janela ou aber-
tura que projeta o leitor para além do narrado. Essa é a noção do gênero que
se encontra em Cortazar, para quem o contista, tal qual o fotógrafo, sente
“... necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que
sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam
capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura,

*
Professora de Literatura Brasileira da FAPA. Doutora em Literatura Brasileira pela UFRGS.

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de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que
vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no con-
to” (CORTÁZAR, 1993, p. 151-152).
Outras duas características do conto, para Cortázar, são a intensidade
e a tensão. A primeira “consiste na eliminação de todas as idéias ou situações
intermédias, de todos os recheios ou fases de transição” (CORTÁZAR, 1993,
p. 157), já a segunda característica diz respeito ao modo como o autor cons-
trói a aproximação do leitor com o relato: “Ainda estamos muito longe de
saber o que vai ocorrer no conto e, entretanto, não nos podemos subtrair à
sua atmosfera.” (CORTÁZAR, 1993, p. 158).
Clarice Lispector estréia, no conto, em 1952, com Alguns contos, con-
junto de textos escritos na década de 40. Em 1960, surge a obra Laços de
família; em 1964, Clarice lança A legião estrangeira. Em 1971, é publicado o
volume A felicidade clandestina; em 1974, são lançados os livros Onde estivestes
de noite e A via crucis do corpo. Postumamente, no ano de 1979, sai A bela e a
fera, apresentando, ao lado dos primeiros contos escritos por Clarice e publi-
cados em 1952, seus dois últimos textos. Ao examinar a composição de cada
um dos volumes, percebe-se a variedade de temas, situações e formas do
conto clariceano, que enriquece e qualifica o conto brasileiro contemporâ-
neo.
Os contos escritos por Clarice nos anos de 1940 e publicados em
1952 já deixam entrever os principais traços de sua obra. Seus personagens
são angustiados, melancólicos; sentem-se desajustados em relação à vida
pacata e sem sobressaltos; desejam a liberdade; refletem sobre a capacida-
de expressiva das palavras. Os seis textos que formam esse primeiro volu-
me de contos apresentam o confronto entre sujeitos que constroem suas
identidades a partir de um “outro” com quem estabelecem relações áspe-
ras e difíceis. Como acontecerá em contos de livros posteriores, não se
pode dizer que o desfecho de cada história aponta para a resolução dos
conflitos. Esses, predominantemente interiores, são revelados e enuncia-
dos nas narrativas, sem que se possa retomar o precário equilíbrio vivido
antes de deflagrada a revelação ou epifania. A presença de personagens
femininas – que fará de Clarice uma das autoras mais analisadas pela crítica
ocupada com questões de gênero – é significativa em quatro contos; ou-
tros dois, “O delírio” e “Mais dois bêbedos”, têm como protagonistas
personagens masculinos.
Quanto ao narrador, há contos narrados em primeira pessoa e em
terceira, caso em que a técnica do discurso indireto livre diminui a distância
entre narrador e personagem, destacando a vocação intimista e introspectiva
da ficção de Clarice Lispector. Nessa obra de 1952, a construção das narra-
tivas ainda não está marcada pelas rupturas que poderão ser notadas em
contos escritos mais tarde; mesmo assim, percebe-se a preocupação do
narrador em buscar certa ordenação lógica que dificilmente se sustenta di-
ante da natureza fugidia da matéria narrada.
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Um dos contos do volume é “Obsessão”, em que a narradora, Cristina,
conta seu caso com Daniel. A narrativa inicia com uma breve apresentação
da protagonista, suas origens, seus sonhos, seu casamento com Jaime, sua
vida fácil e pacata. O balanço da vida de Cristina pode ser observado na
seguinte frase: “Vivia facilmente. Nunca dedicava um pensamento mais for-
te a qualquer assunto. E, como a poupar-me ainda mais, não acreditava intei-
ramente nos livros que lia. Eram feitos apenas para distrair, pensava eu.”
(LISPECTOR, 1979, p. 45).
É interessante verificar que a personalidade de Crisitina é caracteri-
zada a partir de sua relação com os livros e a leitura, conferindo à narrativa
um traço metaficcional que marca a produção literária contemporânea. Logo
após a apresentação inicial antes referida, a narradora tece reflexões sobre
sua vida e sobre Daniel. Em meio a um desses comentários, espécie de des-
vio narrativo, ela tenta retomar a ordem do discurso, como se assim pudes-
se reordenar a vida: “Mas é necessário começar pelo princípio, pôr um pou-
co de ordem nesta minha narrativa...”. (LISPECTOR, 1979, p. 49). No final
do conto, para introduzir o desfecho da relação com Daniel, a narradora diz
que “... uma vez deu-se a conclusão” (LISPECTOR, p. 79), em outra de-
monstração de como o relato do vivido importa e até determina aquilo que
foi efetivamente vivido. Percebe-se, com esses exemplos, que a consciência
do fazer literário, marca do conto contemporâneo, está presente na ficção
de Clarice Lispector desde seus primeiros escritos. Uma outra demonstra-
ção da sintonia entre o conto de Clarice e os rumos da literatura contempo-
rânea está neste trecho: “Para que narrar pequenos fatos que demonstrem
minha progressiva caminhada para a intolerância e para o ódio?”
(LISPECTOR, 1979, p. 77). Aqui percebe-se a dúvida sobre o sentido da
narrativa, indagação que atravessa toda a literatura do século XX.
Na narração do caso entre Cristina e Daniel, faltam fatos e sobram
impressões. É uma relação baseada no fascínio da mulher pelo homem que
domina as palavras, que afirma que “As realizações matam o desejo” e que
aceita o ócio. Daniel coloca Cristina em contato com um universo de idéias
e impressões vagas até então desconhecido para ela, presa à realidade das
coisas: “... pela primeira vez eu, até então profundamente adormecida, vis-
lumbrava as idéias.” (LISPECTOR, 1979, p. 51).
Mas o homem que desperta Cristina de seu profundo sono está lon-
ge de ser um príncipe encantado. Ele é frio, perverso e tirano. Cristina, por
razões que não se esclarecem objetivamente no decorrer da narrativa, aceita
a tirania, embora perceba a impossibilidade da relação:
Não refletia sobre a situação, mas quando a analisava alguma vez era sempre do
mesmo modo: vivo com ele e é tudo. Permanecia junto do poderoso, do que sabia,
isso me bastava.
Por que não durou sempre aquela morte ideal? Um pouco de clarividência, em
certos momentos, advertia-me de que a paz só poderia ser passageira. Adivinhava
que nem sempre me bastaria viver Daniel. E mais afundava na inexistência, con-
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cedendo-me tréguas, adiando o momento em que eu própria buscaria a vida, para
descobrir sozinha, através de meu próprio sofrimento. (LISPECTOR, 1979, p.
75).

Cristina liberta-se de Daniel no momento em que percebe que ele


começa a precisar dela. Esse paradoxo é notado e examinado pela narradora
na seguinte passagem:
Como entender-me? Por que de início aquela cega integração? E depois, a quase
alegria da libertação? De que matéria sou feita onde se entrelaçam mas não se fun-
dem os elementos e a base de mil outras vidas? Sigo todos os caminhos e nenhum
deles é ainda o meu. Fui moldada em tantas estátuas e me imobilizei...
Daí em diante, sem que o deliberasse, descuidei imperceptivelmente de Daniel. E já
agora não aceitava seu domínio. Resignava-me apenas. (LISPECTOR, 1979, p. 77).

As indagações da passagem colocam em questão o espanto da narra-


dora diante de suas estranhas atitudes e sua angústia por não ter um destino
definido. Trechos como esse ilustram as teses de Cortázar a respeito do con-
to. Ao longo de “Obsessão”, o leitor depara-se com uma mesma atmosfera
de inquietação vaga e imprecisa, aquilo que ele denominou de “tensão”. Essa
impressão leva o leitor para muito além do narrado. Quase não importa sa-
ber por que Cristina interessou-se por Daniel ou desinteressou-se dele. O
que fica é a sensação de angústia, provocada pelo desconhecido que Daniel
representa; o desejo de conhecimento e de liberdade; os estranhos e
imprevisíveis rumos que podem tomar as relações humanas. A “abertura”
proporcionada pelo conto dá-se também através do cuidadoso trabalho com
as palavras, que resulta em imagens e associações inusitadas e originais, res-
ponsáveis pela criação de novos universos significativos.
No desfecho de “Obsessão”, Cristina volta para o marido e sua vida
pacata, o que não a impede de sentir-se sozinha, “para sempre sozinha.”
Como se disse antes, não se pode falar em retomada de um equilíbrio inicial.
Retornar para o marido significa o aparente ajustamento de Cristina a um
modo de vida conhecido. Contudo, depois de vislumbrar sua vida interior,
tanto a personagem quanto o leitor passam a conhecer a fragilidade do viver
fácil, pacato e sem sobressaltos.
As potencialidades anunciadas no primeiro livro de contos de Clarice
Lispector serão aprimoradas e adensadas em Laços de família. Publicada em
1960, a obra apresenta contos célebres, como o que dá título à coletânea; e
ainda “Amor”, texto em que Ana toma consciência de sua vida após a
perturbadora visão de cego mascando chicletes; ou “Feliz aniversário”, em
que a comemoração dos oitenta e nove anos da matriarca serve para desnu-
dar deteriorados vínculos familiares. Predominam, nessa coletânea, o tema
do esfacelamento das relações familiares e a sensação de aprisionamento
provocado pelo ambiente doméstico. Outros tematizam a solidão e a difi-
culdade humana em lidar com sentimentos mais verdadeiros e vigorosos.
Isso é o que se observa em “O jantar”, conto que narra a ceia de um velho
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solitário; em “O crime do professor de matemática”, um homem tenta li-
vrar-se da culpa de ter abandonado seu cão ao enterrar um outro cão, desco-
nhecido; em “O búfalo”, encontra-se a história da mulher que vai até o zoo-
lógico para aprender a odiar e, assim, curar-se de um amor não-correspondido.
Texto muito curioso é “A menor mulher do mundo”, que conta a
história de Marcel Pretre, explorador francês que, no Congo Central, desco-
briu os menores pigmeus do mundo e, entre eles, uma mulher de quarenta e
cinco centímetros a quem deu o nome de Pequena Flor. O conto mescla
traços de textos informativos – como certa preocupação em descrever e
fornecer detalhes – e de narrativas tradicionais, como se pode perceber em
seu primeiro parágrafo: “Nas profundezas da África Equatorial o explora-
dor francês Marcel Pretre, caçador e homem do mundo, topou com uma
tribo de pigmeus de uma pequenez surpreendente. Mais surpreso, pois, fi-
cou ao ser informado de que o menor povo ainda existia além de florestas e
distâncias. Então mais fundo ele foi.” (LISPECTOR, 1983, p. 77).
A descoberta é noticiada nos jornais e repercute nos mais diferentes
lugares. A pequena criatura provoca sentimentos de ternura, perversão, sus-
to, pena. Quanto ao explorador, ele deixa de sentir curiosidade científica e
experimenta mal-estar ao ver a minúscula mulher rindo. A simplicidade de
Pequena Flor constrange e atrapalha o homem. E o narrador tenta entender
a causa disso: “É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se
pode chamar de Amor. Ela amava aquele explorador amarelo.” (LISPECTOR,
1983, p. 85). Ao interpretar o sentimento da personagem, o narrador recor-
re a uma linguagem figurada, poética, elaborada, que revela o caráter literário
desse conto. Antes assinalou-se, em “A menor mulher do mundo”, a presen-
ça de elementos próprios de textos informativos e de narrativas tradicionais;
agora ressalta-se sua literariedade. Assim, confirma-se afirmação feita no
início deste texto sobre o fato de que a escritora Clarice Lispector explorou
muito bem a versatilidade do gênero conto, transitando entre as formas
simples e complexas.
Retomando a citação anterior de “A menor mulher do mundo”, ao
constatar que Pequena Flor amava o explorador que a descobriu, o narrador
começa a refletir sobre o sentido do amor, identificando uma importante
diferença entre o que o sentimento representa para a criatura primitiva e
para o homem civilizado, como fica evidente no seguinte trecho: “Mas na
umidade da floresta não há desses refinamentos cruéis, e amor é não ser
comido, amor é achar bonita uma bota, amor é gostar da cor rara de um
homem que não é negro, amor é rir de amor a um anel que brilha.”
(LISPECTOR, 1983, p. 85). Assim, o caráter informativo inicial transfor-
ma-se em reflexão sobre sentimentos e culturas, e o insólito enredo da
descoberta de uma mulher de quarenta e cinco centímetros é usado para
desestabilizar certezas não apenas do explorador, mas também do leitor,
que acompanha os diferentes efeitos que o confronto com o “outro” pode
trazer.
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Esse confronto com o diferente está presente no singelo “Uma gali-
nha”, conto que, ao ter como personagem um animal, pode ser lido como
paródia das fábulas – uma das formas das narrativas tradicionais e de estru-
tura simples -, como se percebe na primeira e na última frase: “Era uma
galinha de domingo”; “Até que um dia mataram-na, comeram-na e passa-
ram-se anos.” Entre essas duas frases, encontra-se uma narrativa organizada
linearmente e que mostra a surpresa de uma família diante de uma galinha e
seu ovo. A maternidade livra o animal da morte; com o passar do tempo,
contudo, a galinha deixa de ser uma atração e é esquecida, até cumprir sua
sina e ser comida. O que semelhante enredo traz para o leitor? Mais uma vez
recorrendo a Cortázar, pode-se ver, em “Uma galinha”, uma abertura para
que se pense a respeito da condição feminina.
Nos treze contos de Laços de família, portanto, convivem formas nar-
rativas mais complexas, em que o narrador adensa a narração com comentá-
rios e intervenções, e formas mais simples. A presença de contos estruturados
de várias maneiras em nada perturba a unidade do livro. Pelo contrário, a
diversidade das formas narrativas acentua a amplitude dos temas abordados
pela autora. Pequena Flor; Ana, do conto “Amor”; Laura, do belíssimo “A
imitação da rosa”; o professor de matemática; todas essas criações bastante
distintas de Clarice projetam o leitor para o difícil terreno das relações sub-
jetivas.
Essa mesma diversidade de formas narrativas marca um outro livro
de contos publicados na década de 1960, A legião estrangeira. Datado de 1964,
mesmo ano em que surge o romance A paixão segundo G.H., a obra apresenta
contos sofisticados, como “A legião estrangeira”, “Os desastres de Sofia”,
“A mensagem”, ao lado de relatos curtos e simples, como “Macacos”, histó-
ria de Lisette, mico comprado na rua, e “Tentação”, sobre o encontro entre
uma menina ruiva e um cão basset igualmente ruivo. Outro conto muito inte-
ressante é “A repartição dos pães”, paródia de passagem bíblica e que traz
como tema o egoísmo e a avareza do ser humano. Em todos esses contos,
alguns de forma mais simples, outros de estruturas e temáticas complexas,
encontram-se os elementos básicos de uma narrativa. Mas há dois contos,
nessa coletânea, que colocam em questão mesmo os constituintes mínimos
da narrativa, como enredo e personagem, e radicalizam-se como experiênci-
as em que se dá atenção extrema aos processos de escrita e de composição
do texto literário. Trata-se de “O ovo e a galinha” e de “A quinta história”.
“O ovo e a galinha” começa com uma frase em que se identifica o
tempo, o espaço e o narrador da história: “De manhã na cozinha sobre a
mesa vejo um ovo” (LISPECTOR, 1982, p. 49). Em seguida todos esses
referenciais começam a ser desmantelados: “Imediatamente percebo que
não se pode estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente:
mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios”
(LISPECTOR, 1982, p. 49). O assunto inicial, o ovo, vai desdobrando-se e
multiplicando-se com o desenrolar do texto. Definido como “tratado poéti-
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co sobre o olhar”, pelo crítico José Miguel Wisnik (NOVAES, 1989, p. 285),
ou como “meditação”, por Benedito Nunes, “O ovo e a galinha” é um texto
que alarga os limites da obra literária e, embora apresente os elementos bá-
sicos de uma narrativa, faz pensar sobre o que é preciso exatamente para
contar uma história, coisa que de fato não ocorre em seu caso.
Já “A quinta história” relata uma história, a de como matar baratas,
em cinco versões, o que leva ao questionamento sobre as muitas formas de
narrar um fato, o que incluir, o que excluir, e como um mesmo fato pode
originar histórias muito diferentes. Nesse conto, encontra-se a reflexão so-
bre o fazer literário que acompanha os contos de Clarice Lispector desde o
livro de 1952, conforme destacado anteriormente.
No ano de 1971, a escritora lança Felicidade clandestina. Nessa obra, há
contos que já haviam sido publicados, muitos deles do livro de 1964, A legião
estrangeira, e outros inéditos. Entre os inéditos, está o que dá título à obra, em
que a narradora conta as humilhações por que passou para receber empres-
tado um livro muito desejado; os outros contos inéditos são marcados por
uma simplicidade que os aproxima da crônica. É preciso destacar que, entre
1967 e 1973, a escritora trabalha no Jornal do Brasil, escrevendo crônicas
semanais. A possível influência da atividade jornalística sobre a literária no
livro de 1971 é registrada por Nádia Gotlib, para quem “... o eu narrador,
mais solto, aproxima-se da pessoa Clarice Lispector” (LISPECTOR, 1988,
p. 183).
Onde estivestes de noite e A via crucis do corpo saem no mesmo ano, 1974,
e trazem algumas novidades em relação à produção anterior. “Onde estivestes
de noite” é conto que traz marcas do insólito e do fantástico. Narra o per-
curso feito por uma multidão para encontrar-se com Ele-ela, mistura
andrógina colocada no alto de uma montanha. A atmosfera do conto é onírica
e surreal; noite e dia, bem e mal são categorias que se opõem e, ao mesmo
tempo, misturam-se. Ao final da estranha e irreal aventura, o narrador afir-
ma a veracidade de tudo o que contou, forçando a reflexão sobre os limites
entre verdade e mentira, realidade e sonho: “Tudo o que escrevi é verdade e
existe. Existe uma mente universal que me guiou. Onde estivestes de noite?
Ninguém sabe. Não tentes responder – pelo amor de Deus. Não quero sa-
ber da resposta. Adeus. A-Deus.” (LISPECTOR, 1980, p. 73).
Semelhante atmosfera onírica encontra-se em “A procura de uma
dignidade”, conto que inicia nos subterrâneos do Estádio do Maracanã e no
qual as ruas da cidade do Rio de Janeiro são percorridas pela respeitável
senhora Jorge B. Xavier, que não tem plena consciência dos espaços por
onde circula. Corredores sombrios, pessoas que aparecem e desaparecem
repentinamente, caminhos que não são encontrados dão a impressão de que
a mulher encontra-se perdida em um labirinto, que é a sua própria cidade,
seu corpo e seu desejo porque, aliado à reflexão sobre os frágeis contornos
entre o real e o irreal, está o estranho desejo da mulher de setenta anos por
seu ídolo de televisão, Roberto Carlos.
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Os dois contos antes comentados funcionam como a “abertura” que
Cortázar identifica no gênero; a atmosfera insólita e estranha que os acom-
panha indica significados velados e ocultos que devem ser desdobrados pelo
leitor.
Ainda em relação ao livro Onde estivestes de noite, podem ser destaca-
dos textos como “Seco estudo de cavalos”, “O relatório da coisa”, “O mani-
festo da cidade”, que colocam em questão a definição de conto. Esses tex-
tos não narram exatamente um acontecimento, antes, eles constituem-se
como comentários a respeito de temas – o tempo, a cidade – e de animais –
o cavalo –, predominando aí o aspecto literário e artístico, como ocorre com
outros dois contos comentados, “O ovo e a galinha” e “A quinta história”,
de A legião estrangeira.
A outra coletânea publicada no ano de 1974, A via crucis do corpo,
inova ao adotar um único tema em seus treze contos: o sexo. O livro foi
feito por encomenda e traz uma explicação assinada pela autora, que se diz
chocada com a realidade das histórias por ela imaginadas. Segundo Clarice,
“Uma pessoa leu meus contos e disse que aquilo não era literatura, era lixo.
Concordo. Mas há hora para tudo. Há também a hora do lixo.” (LISPECTOR,
1991, p. 20).
Nesta “hora do lixo”, contudo, a escritora não deixa de tratar da
construção da subjetividade e do confronto entre o sujeito e o “outro”.
Assim, em “Miss Algarve”, uma moça solitária e virgem redescobre-se ao
fazer sexo com um ser vindo de outro planeta. “O corpo” apresenta a
relação entre Xavier e duas mulheres. O início do conto situa não apenas os
personagens, mas o modo como o sexo é tratado no livro:
Xavier era um homem truculento e sangüíneo. Muito forte esse homem. Adorava
tangos. Foi ver O último tango em Paris e excitou-se terrivelmente. Não compreen-
deu o filme: achava que se tratava de filme de sexo. Não descobriu que aquela era
a história de um homem desesperado.
Na noite em que viu O último tango em Paris foram os três para a cama: Xavier,
Carmem e Beatriz. Todo o mundo sabia que Xavier era bígamo: vivia com duas
mulheres.
Cada noite era uma. Às vezes duas vezes por noite. A que sobrava ficava assistin-
do. Uma não tinha ciúme da outra. (LISPECTOR, 1991, p. 35)

Assim como o filme não se referia apenas a sexo, mas encobria o


desespero do personagem, os contos escritos por Lispector tratam o sexo
como uma das manifestações da subjetividade. E fazem isso através de uma
linguagem que não é grosseira nem vulgar, embora seja franca e direta, sem
falsos pudores, como pode ser detectado no trecho acima. Essas histórias
desnudam atitudes hipócritas e moralistas, estabelecendo códigos de ética e
de comportamento particulares. Isso acontece no triângulo amoroso for-
mado por Xavier, Carmem e Beatriz, para quem a vida era boa, até que as
mulheres descobrem que Xavier, durante o dia, procurava uma prostituta.
Isso provoca nelas o desejo de vingança. E, ao som de “uma lancinante
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música de Schubert”, em noite “cheia de estrelas que as olhavam faiscantes
e tranqüilas”, as duas mulheres apunhalam Xavier durante seu sono. A bru-
talidade do gesto é assim narrada:
O rico sangue de Xavier escorria pela cama, pelo chão, um desperdício.
Carmem e Beatriz sentaram-se junto à mesa da sala de jantar, sob a luz amarela da
lâmpada nua, estavam exaustas. Matar requer força. Força humana. Força divina.
As duas estavam suadas, mudas, abatidas. Se tivessem podido, não teriam matado
o seu grande amor. (LISPECTOR, 1991, p. 41)

Esse amor que as mulheres sentiam pelo homem que dividiam – o


que não as impediu de matá-lo – provoca um último e delicado gesto. Por
sugestão de Beatriz, mais romântica, são plantadas rosas sobre a terra fértil
que cobria o corpo do homem, enterrado no jardim da casa em que mora-
vam.
O que escandaliza no conto: o fato de um homem viver com duas
mulheres? A relação homossexual que se estabelece aos poucos entre Carmem
e Beatriz? A traição de Xavier, que procurava uma prostituta para saciar seu
desejo? O assassinato? Ou as rosas plantadas pelas assassinas sobre a sepul-
tura?
“Via crucis” é o título do conto em que é narrada a história do nasci-
mento de uma criança. Paródia do nascimento de Cristo, na versão de Clarice,
Maria das Dores que, mesmo casada, mantinha-se virgem fica grávida. Ao
saber do fato, o marido pergunta-lhe: “Então eu sou São José?”. Para cum-
prirem o destino que lhes é traçado, o casal ruma para a fazenda de uma tia,
em Minas Gerais, para que a criança nasça em um estábulo, como o filho de
Deus. Maria das Dores quer evitar que seu filho siga a via crucis, por isso não
lhe dá o nome de Jesus, chama-o de Emmanuel. O conto termina logo após
o nascimento do menino, com o seguinte comentário do narrador: “Não se
sabe se essa criança teve que passar pela via crucis. Todos passam”
(LISPECTOR, 1991, p. 50). Mais uma vez, o inusitado projeta o leitor para
muito além da fábula narrada.
Prostitutas, homossexuais, velhas e freiras ardentes ganham espaço
nas páginas de A via crucis do corpo, colocando o leitor em contato com um
mundo marginal que, pela linguagem e perspectiva próprias de Clarice
Lispector, são representados de modo peculiar em relação ao sistema literá-
rio brasileiro.
Os dois últimos contos escritos pela autora foram publicados em
1979, dois anos após sua morte, no livro A bela e a fera. “Um dia a menos”
flagra a solidão extrema de um moça em seu apartamento, sem apresentar
inovações temáticas ou formais.
Já “A bela e a fera ou a ferida grande demais” trata da questão social,
pouco evidente – ou raramente percebida pela crítica especializada – no con-
junto da obra de Clarice Lispector. O enredo mostra o encontro entre a socialite
Carla de Sousa e Santos e um mendigo na calçada em frente ao hotel
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Copacabana Palace. Diante do pedido de dinheiro, a mulher atrapalha-se, pois
não sabe quanto dar de esmolas. O mendigo e a ferida em sua perna levam
Carla a refletir sobre sua condição pessoal e social. Casada com um banqueiro,
ela “Vivia nas manadas de mulheres e homens que, sim, que simplesmente
‘podiam’” (LISPECTOR, 1979, p. 134), o que a afastou do mundo do mendi-
go e das ruas de sua grande cidade. O processo de conscientização da jovem
mulher faz com que ela identifique-se com o homem: “ ‘Há coisas que nos
igualam’, pensou procurando desesperadamente outro ponto de igualdade.
Veio de repente a resposta: eram iguais porque haviam nascido e ambos mor-
reriam. Eram, pois, irmãos.” (LISPECTOR, 1979, p. 144).
Nesse conto, a grande novidade diz mesmo respeito à abordagem
direta da temática social, pois o texto deixa à mostra as feridas de uma soci-
edade como a brasileira, na qual o contato entre indivíduos de classes sociais
distintas é bastante difícil. Não se pode afirmar que Clarice Lispector não
tenha se ocupado com assuntos dessa natureza em contos anteriores. Aliás,
o enredo de “A bela e a fera ou a ferida grande demais” lembra o de “Amor”,
do livro Laços de família, em que a pacata Ana tem um sobressalto revelador
– ou uma epifania -ao enxergar um cego mascando chicletes na rua. Como
acontece com Carla diante do mendigo, Ana percebe que vivia protegida em
sua casa, esquecida dos diferentes.
Entre 1952 e 1977, Clarice Lispector publicou sete livros com con-
tos inéditos; além desses, que foram brevemente apresentados até aqui, há
outras coletâneas que reúnem textos já publicados. Ao comentar, ainda que
de modo superficial, cada um desses livros, pretendeu-se tornar evidente a
diversidade que marca os contos da autora e, em conseqüência, que marca o
conto brasileiro contemporâneo. Clarice aproveitou toda a versatilidade do
gênero: há aqueles que retomam formas narrativas tradicionais, de estrutura
simples, como fábulas e parábolas bíblicas; há os que seguem a coloquialidade
da crônica e dos textos informativos; há, ainda, aqueles marcados pela
literariedade, em que o fato narrado perde importância diante da elaboração
do relato. Os personagens desses contos também são variados: homens,
mulheres, crianças, jovens e animais protagonizam as situações inventadas
por Clarice para tratar do abrangente tema da construção da subjetividade e
seus inúmeros desdobramentos.
Traços mais específicos dos contos de Clarice e que apontam para
certas tendências da produção nacional dizem respeito ao espaço urbano,
neles predominante, sendo significativas as referências à cidade do Rio de
Janeiro. Outra marca própria dessa autora e que está associada ao espaço diz
respeito à condição social e econômica dos personagens, em geral saídos da
classe média. Outro aspecto próprio do conto de Lispector está relacionado
à questão de gênero: a mulher e o modo de percepção a ela associado predo-
minam na sua obra . A introspecção e o intimismo são técnicas narrativas e
modos de conhecimento que definem o estilo da autora e seu lugar no pa-
norama da literatura brasileira.
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Finalmente, o que se pode afirmar sobre as narrativas criadas por
Clarice é que elas jamais se esgotam nelas mesmas; são histórias que proje-
tam o leitor para muito além do narrado, fazendo do texto literário um ins-
trumento de indagação, de descoberta e de regozijo.

Recebido: setembro/2003
Aprovado: outubro/2003

Abstract
Taking our cue from the theory of the short story developed by Júlio Cortázar, this article aims to study
Clarice Lispector’s collections of short stories, while also providing a broad insight into this author’s
overall literary production.

Key-words: Clarice Lispector; short story; Brazilian literature.

Referências
1. Da autora:
LISPECTOR, Clarice. A bela e a fera. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
___. Felicidade clandestina. 6.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
___. A legião estrangeira. 3. ed. São Paulo: Ática, 1982.
___. Laços de família. 17. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
___. Onde estivestes de noite. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
___. A paixão segundo G.H.. Edição crítica. Paris: Association Archives de la littérature latino-américaine,
des Caraïbes et africaine du XXe. siècle; Brasília: CNPQ, 1988. v.3 (Coleção Arquivos)
___. A via crucis do corpo. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.

2. Teórico-críticas
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de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 1, 1996.
___. Mulheres e galinhas sem mendigos: leitura de “A imitação da rosa”, de Clarice Lispector. In:
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segundo GH. Edição crítica. Paris: Association Archives de la littérature latino-américaine, des Caraïbes
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