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CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE LITERATURA
CURSO DE LETRAS VERNÁCULAS
O EXISTENCIAL E O INTIMISTA EM
A HORA DA ESTRELA (1977), DE CLARICE LISPECTOR
FORTALEZA
2022
RESUMO
Este trabalho analisa a novela A Hora da Estrela (1977), último livro em vida publicado por
Clarice Lispector, a partir de suas características mais significativas. Por um lado, aborda
como a vida da protagonista Macabéa é construída de maneira a ser influenciada pelos
preceitos da filosofia existencialista. Por outro, compreende a dimensão psicológica tanto de
Rodrigo S.M., autor/narrador criado por Lispector, quanto de seus personagens.
Palavras-chave: Existencialismo, autoficção, romance psicológico.
Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era
infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois
a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer
também, de tanta compreensão sagrada de tudo. Te falo nela porque
Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO,
literariamente falando. (Caio Fernando Abreu)
Diz Sartre que o existencialismo é uma filosofia de ação, os outros veem como de
negação, e que ele não tirou nenhuma moral propriamente da teoria dele. Para mim,
à primeira vista do livro, deu certa esperança, mas coisa que eu preciso analisar
melhor e estudar melhor para ver se a “culpa” não era minha e se não era eu que
estava com vontade de ter esperança (LISPECTOR, 2022, n.p.).
1
Cf . "No raiar de Clarice Lispector”. In: CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. ed. 2. São Paulo: Duas Cidades
LTDA., 1977.
2
Cf. “A experiência incompleta: Clarisse Lispector”. In: LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca: ensaios e
estudos (1940-1960). ed. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
pela afirmação de que o humano não vem ao mundo com uma essência definida, não traz
consigo uma identidade e, por isso, precisa usufruir do livre-arbítrio para criar seu destino e
dar um sentido à existência. Condenado a estar livre, o ser então sofre de uma angústia trazida
por essa liberdade, o que levantou críticas ao pensamento sartreano, rotulado de pessimista.
Indo além, o intelectual francês contesta comentários de que ele estimularia as pessoas, que se
viam angustiadas, a se estagnarem e assumirem uma posição covarde frente aos problemas do
mundo. Acontece que essa doutrina “é justamente o contrário do quietismo, visto que ela
afirma: a realidade não existe a não ser na ação; aliás, vai mais longe ainda, acrescentando: o
homem nada mais é do que o seu projeto; só existe na medida em que se realiza”.3
Na contramão da afirmação sartreana, a alagoana Macabéa vive de vazios e de uma
eterna não-realização, pois não consegue encontrar aquilo que a sustenta no mundo. A busca
pela sua essência não se pode realizar, porque nem dessa busca ela se dá conta. Se ela "tivesse
a tolice de se perguntar 'quem sou eu?' cairia estatelada e em cheio no chão. É que 'quem sou
eu?' provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto"
(LISPECTOR, 2017, n.p.).4 A narrativa é assim costurada com trivialidades do cotidiano
junto a profundas reflexões sobre a (falta de) identidade da protagonista. É que na prosa
clariceana o projeto de base “é trazer as coisas à consciência, a consciência a si mesma. O que
resulta em um andamento penoso, ingrato, onde o vagamente banal alterna com revelações
súbitas, mas decisivas” (BOSI, 1977, p. 20). Esse cotidiano é atravessado pela alteridade,
característica também presente no Existencialismo e que revela no humano um caráter de
coletividade (TEIXEIRA, 2011). As escolhas individuais não estão isoladas e, havendo
escolha, há igualmente sofrimento e conflito. “Aí, cada personagem de Clarice defronta-se
com o seu outro. Senão, como admitir o ser, sem este seu contrário, o não-ser?” (GOTLIB,
1988, p. 179).
É justamente na não essência de Macabéa que se encontra o caráter existencial, afinal
é a partir daqui onde ela deveria buscar um sentido para sua vida. No entanto, essa
inquietação está mais presente no narrador, Rodrigo S.M., por este apresentar uma maior
autoconsciência. A inocência e a inconsciência de Macabéa parecem revelar uma ironia
presente no fato de que o leitor a conhece mais do que ela própria se conhece; quanto mais
confusa parece a vida dessa nordestina, mais clara ela nos parece. É importante destacar que
essa é uma vida fragmentada, visto que Rodrigo não a tem por completo, mesmo que ele
esteja no controle da narrativa ao passo que assume a escrita como uma tarefa necessária, este
3
https://www.marxists.org/portugues/sartre/1945/10/29.htm.
4
As próximas citações do livro serão marcadas apenas como “(HE)”.
é o seu destino. Contudo, ele também sente a dificuldade de assumir uma personalidade bem
definida, pois, segundo ele, não chega nem a pertencer a uma classe social. “Sobrei e não há
lugar para mim na terra dos homens” (HE). Isso se dá pelo fato de que na narrativa moderna,
através do desmascaramento, o ser humano “também se fragmenta e decompõe no romance”
(ROSENFELD, 1996, p. 95). Então o que resta a fazer é assumir a dependência que ele tem
de sua personagem, o que, de maneira aparentemente contraditória, vai dar a ele o impulso de
ir atrás de sua identidade.
O caminho corajoso para que o ser humano não caia no conformismo, ou seja,
voltado para o passado, é o da autenticidade [...]. Assim atua o narrador, recorrendo
ao estímulo da personagem e ao espelhar-se nela, recupera a conexão consigo
mesmo e desse momento em diante, percorre um novo caminho (BROSE, 1999, p.
80-81).
Lispector teve sempre como questão a linguagem, objeto de uma crítica específica
pelos estudiosos. Se seu modo de narrar era peculiar, tal característica encontra-se igualmente
em Rodrigo, que destina o início da novela para falar quase exclusivamente de si e de sua
escrita. Esta configura-se, por exemplo, por frases formadas apenas por advérbios, enquanto
outras expressavam, nos vocábulos, uma morfologia própria, esticadas, para representar a
intenção do narrador: "Embora os seus pequenos óvulos tão murchos. Tão, tão"; "Dava-se
melhor com um irreal cotidiano, vivia em câmara leeeenta, lebre puuuuulando no aaaar sobre
os ooooouteiros" (HE). Aqui, outro reflexo da narradora. Considerando essas semelhanças,
entendemos a construção autobiográfica do livro como um “testamento literário, que estreita
as fronteiras entre criação e vida a partir de um posicionamento ético.” (DALCASTAGNÈ,
2005, p.36, apud FIGUEIREDO, 2013, p. 45). Ainda segundo Nolasco (2004), as fotografias
de Clarice já estão impressas na ficção a partir de seu primeiro romance, mas que o projeto
biográfico-literário só estará terminado em A Hora da Estrela. Não podemos, todavia,
absorver o livro como uma cópia fiel da vida da escritora, o que seria um erro grave.
Não se deve argumentar que a vida esteja refletida na obra de maneira direta ou
imediata ou que a arte imita a vida, constituindo seu espelho [...]. A crítica
biográfica não pretende reduzir a obra à experiência do autor, nem demonstrar ser a
ficção produto de sua vivência pessoal e intransferível (SOUZA, 2011, n.p.).
Um dos grandes diferenciais dessa novela para os romances anteriores é que a história
traz camadas da chamada literatura engajada, embora não militante ou panfletária. A narração
levanta elementos como a desigualdade social, e a situação precária da protagonista dá o tom
de todo o livro. “A moça, que pelo menos não mendigava, havia toda uma subclasse de gente
mais perdida e com fome” (HE). Clarice, no entanto, vai além da descrição crua que já havia
estabelecido seu lugar na literatura brasileira e que assistiu a um dos seus pontos altos com o
romance proletário de 1930. Encontramos aqui “uma ruptura com o realismo de origem
naturalista, em benefício da pesquisa mágica da realidade” (CANDIDO, 1967, p. 87). Mesmo
com as tintas de uma preocupação social, a espinha dorsal do livro ainda é clariceana como
bem conhecemos, isto é, intimista e psicológica. A todo momento, somos expostos ao interior
não só de Maca, mas de outros personagens, como Olímpico, que parece ter criado um
escudo, uma carcaça para se proteger do mundo, enquanto vítima deste. Ele, “desde menino
na verdade não passava de um coração solitário pulsando com dificuldade no espaço. O
sertanejo é antes de tudo um paciente. Eu o perdoo" (HE).
A nordestina passeia por situações e sentimentos que vão desde a completa apatia até
momentos súbitos de autoconsciência. Um dia, ao estar no açougue com o namorado, vira-se
para ele e: “– Eu vou ter tanta saudade de mim quando eu morrer” (HE). Nós, leitores,
vivemos em um pêndulo que vai desde a angústia até a pena, a piedade por Macabéa. A Hora
da Estrela segue uma linha presente na maioria dos outros livros da autora, na qual
“acentua-se [...] um horizonte reflexivo e até especulativo da sondagem existencial" (NUNES,
1973, p. 14). A pobre moça, a moça pobre é carente de dinheiro, de carinho e de vida, por
isso, sua melancolia é perfeitamente compreensível. As canções que ouve a levam às
lágrimas, porque "através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir,
havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma." (HE). Se em Perto do
Coração Selvagem Clarice apresenta uma sensibilidade para o meandro psicológico
(SCHWARZ, 1981), aqui isso permanece. E assim como Joana, Macabéa vivencia, guardadas
as diferenças, uma “experiência de solidão; em face dos outros e de si mesma” (SCHWARZ,
1981, p. 56).
Se o livro carrega a inflexível individualidade de Clarice (MOSER, 2009), ele nos
apresenta essa alagoana que vive sempre intocável até por ela mesma, em seu mundo
particular. Esse mundo é inundado de angústia pelo não-ser de Macabéa, pois, novamente
fazendo coro com seus outros romances, “a própria subjetividade entra em crise. O
espírito, perdido no labirinto da memória e da autoanálise, reclama um
novo equilíbrio” (BOSI, 2015, n.p.). Exemplo? Dou 3: "Ela era subterrânea e nunca tinha
tido floração. Minto: ela era capim."; "Talvez a nordestina já tivesse chegado à conclusão de
que vida incomoda bastante, alma que não cabe bem no corpo, mesmo alma rala como a
sua."; "Tinha o que se chama de vida interior e não sabia que tinha. Vivia de si mesma como
se comesse as próprias entranhas" (HE).
Sua completa inabilidade social, mas principalmente emocional, constitui uma
narração que nos faz questionar a própria existência, as razões pelas quais estamos aqui
(explosão). A leitura torna-se penosa não por alguma dificuldade lexical, mas pelo encontro
que somos quase obrigados a fazer conosco. Isso acontece, porque Clarice estava inserida na
lógica da prosa contemporânea, que apresenta “A descida ou, pelo menos, a alusão
às fontes pré-conscientes da conduta cotidiana [...]” (BOSI, 2015, n.p.). Um ótimo
exemplo disso está nessa passagem:
Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor.
Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade – para
que mais que isso? O seu viver é ralo [...]. Só vagamente tomava conhecimento da
espécie de ausência que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse
diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim" (HE).
Por que não poderia ser possível sendo uma mulher? Um eu responde por Clarice:
uma mulher talvez tivesse sentido piedade [...]. O autor, nas primeiras páginas, diz
ter o direito a carecer de piedade [...]. A piedade é deformante, paternalista ou
maternal, enverniza, recobre, e o que Clarice Lispector pretende, aqui, é desnudar,
em sua minúscula grandeza, esse ser (CIXOUS, p. 1995, p. 168, tradução nossa).5
O caráter impiedoso parece se dar por Rodrigo S.M. também ser alguém angustiado,
pois, assim como Macabéa, seu lugar no mundo não está preenchido. “Escrevo porque sou um
desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser” (HE). Não obstante, as
camadas desse narrador revelam mais do que podemos supor a partir dessas informações
iniciais e, a título de informação, duas passagens: "Não tinha aquela coisa delicada que se
chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela"; “Ah
pudesse eu pegar Macabéa, dar-lhe um bom banho, um prato de sopa quente, um beijo na
testa enquanto a cobria com um cobertor" (HE). O jogo narrativo é assim construído a fim de
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