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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE LITERATURA
CURSO DE LETRAS VERNÁCULAS

OSSEAN DE OLIVEIRA BARROS JÚNIOR

O EXISTENCIAL E O INTIMISTA EM
A HORA DA ESTRELA (1977), DE CLARICE LISPECTOR

FORTALEZA
2022
RESUMO

Este trabalho analisa a novela A Hora da Estrela (1977), último livro em vida publicado por
Clarice Lispector, a partir de suas características mais significativas. Por um lado, aborda
como a vida da protagonista Macabéa é construída de maneira a ser influenciada pelos
preceitos da filosofia existencialista. Por outro, compreende a dimensão psicológica tanto de
Rodrigo S.M., autor/narrador criado por Lispector, quanto de seus personagens.
Palavras-chave: Existencialismo, autoficção, romance psicológico.
Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era
infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois
a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer
também, de tanta compreensão sagrada de tudo. Te falo nela porque
Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO,
literariamente falando. (Caio Fernando Abreu)

Grandes escritores nem sempre despertam o interesse da crítica já em seu primeiro


trabalho, algo que não ocorreu com Clarice Lispector. Seu romance de estreia, Perto do
Coração Selvagem (1944) “provocou atenção desusada. Tratava-se, realmente, de algo
insólito, entre nós, levando ao extremo uma linhagem subjetiva” (SODRÉ, p. 1965, p. 600). O
debute também mereceu precisos elogios de Antonio Candido, que destinou um ensaio à
jovem Clarice.1 Assim, ela continuou escrevendo, escrevia porque precisava, mesmo a
despeito das críticas de, por exemplo, Álvaro Lins à sua literatura feminina2, segundo ele;
críticas essas que a escritora tratou com certa ironia, embora com mágoa também: “Tudo o
que ele diz é verdade. Não se pode fazer arte só porque tem um temperamento infeliz e
doidinho. Um desânimo profundo. Pensei que só não deixava de escrever porque trabalhar é a
minha verdadeira moralidade”. (LISPECTOR; SABINO, 2001, p. 21). Para Guidin (1998, p.
26-27, grifo do autor), a partir dessas recepções da obra clariceana e durante toda a sua
carreira, Lispector “enfrentará a busca de sua identidade como escritora mulher''. O padrão de
suas histórias seguirá mulheres de classe média atravessadas por crises e epifanias.
De 1944 salta-se até 1977, ano de lançamento de A Hora da Estrela, novela que se
destaca por um deslocamento socioeconômico na narrativa clariceana a fim de apresentar uma
protagonista sem lugar definido no mundo, literal e metaforicamente. O livro, segundo a
autora, “É a história de uma moça que era tão pobre que só comia cachorro-quente. Mas não é
só isso. A história é sobre uma inocência pisada, uma miséria anônima” (PANORAMA,
2012). Dentre outros aspectos, o livro é marcado por forte um teor existencialista. Certamente
influenciada por essa corrente, Clarice escreve à irmã Elisa no ano de 1946:

Diz Sartre que o existencialismo é uma filosofia de ação, os outros veem como de
negação, e que ele não tirou nenhuma moral propriamente da teoria dele. Para mim,
à primeira vista do livro, deu certa esperança, mas coisa que eu preciso analisar
melhor e estudar melhor para ver se a “culpa” não era minha e se não era eu que
estava com vontade de ter esperança (LISPECTOR, 2022, n.p.).

Enquanto principal responsável pela difusão do Existencialismo no século XX a partir


da França, Jean Paul Sartre fazia parte dos existencialistas ateus. Essa filosofia caracteriza-se

1
Cf . "No raiar de Clarice Lispector”. In: CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. ed. 2. São Paulo: Duas Cidades
LTDA., 1977.
2
Cf. “A experiência incompleta: Clarisse Lispector”. In: LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca: ensaios e
estudos (1940-1960). ed. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.
pela afirmação de que o humano não vem ao mundo com uma essência definida, não traz
consigo uma identidade e, por isso, precisa usufruir do livre-arbítrio para criar seu destino e
dar um sentido à existência. Condenado a estar livre, o ser então sofre de uma angústia trazida
por essa liberdade, o que levantou críticas ao pensamento sartreano, rotulado de pessimista.
Indo além, o intelectual francês contesta comentários de que ele estimularia as pessoas, que se
viam angustiadas, a se estagnarem e assumirem uma posição covarde frente aos problemas do
mundo. Acontece que essa doutrina “é justamente o contrário do quietismo, visto que ela
afirma: a realidade não existe a não ser na ação; aliás, vai mais longe ainda, acrescentando: o
homem nada mais é do que o seu projeto; só existe na medida em que se realiza”.3
Na contramão da afirmação sartreana, a alagoana Macabéa vive de vazios e de uma
eterna não-realização, pois não consegue encontrar aquilo que a sustenta no mundo. A busca
pela sua essência não se pode realizar, porque nem dessa busca ela se dá conta. Se ela "tivesse
a tolice de se perguntar 'quem sou eu?' cairia estatelada e em cheio no chão. É que 'quem sou
eu?' provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se indaga é incompleto"
(LISPECTOR, 2017, n.p.).4 A narrativa é assim costurada com trivialidades do cotidiano
junto a profundas reflexões sobre a (falta de) identidade da protagonista. É que na prosa
clariceana o projeto de base “é trazer as coisas à consciência, a consciência a si mesma. O que
resulta em um andamento penoso, ingrato, onde o vagamente banal alterna com revelações
súbitas, mas decisivas” (BOSI, 1977, p. 20). Esse cotidiano é atravessado pela alteridade,
característica também presente no Existencialismo e que revela no humano um caráter de
coletividade (TEIXEIRA, 2011). As escolhas individuais não estão isoladas e, havendo
escolha, há igualmente sofrimento e conflito. “Aí, cada personagem de Clarice defronta-se
com o seu outro. Senão, como admitir o ser, sem este seu contrário, o não-ser?” (GOTLIB,
1988, p. 179).
É justamente na não essência de Macabéa que se encontra o caráter existencial, afinal
é a partir daqui onde ela deveria buscar um sentido para sua vida. No entanto, essa
inquietação está mais presente no narrador, Rodrigo S.M., por este apresentar uma maior
autoconsciência. A inocência e a inconsciência de Macabéa parecem revelar uma ironia
presente no fato de que o leitor a conhece mais do que ela própria se conhece; quanto mais
confusa parece a vida dessa nordestina, mais clara ela nos parece. É importante destacar que
essa é uma vida fragmentada, visto que Rodrigo não a tem por completo, mesmo que ele
esteja no controle da narrativa ao passo que assume a escrita como uma tarefa necessária, este

3
https://www.marxists.org/portugues/sartre/1945/10/29.htm.
4
As próximas citações do livro serão marcadas apenas como “(HE)”.
é o seu destino. Contudo, ele também sente a dificuldade de assumir uma personalidade bem
definida, pois, segundo ele, não chega nem a pertencer a uma classe social. “Sobrei e não há
lugar para mim na terra dos homens” (HE). Isso se dá pelo fato de que na narrativa moderna,
através do desmascaramento, o ser humano “também se fragmenta e decompõe no romance”
(ROSENFELD, 1996, p. 95). Então o que resta a fazer é assumir a dependência que ele tem
de sua personagem, o que, de maneira aparentemente contraditória, vai dar a ele o impulso de
ir atrás de sua identidade.
O caminho corajoso para que o ser humano não caia no conformismo, ou seja,
voltado para o passado, é o da autenticidade [...]. Assim atua o narrador, recorrendo
ao estímulo da personagem e ao espelhar-se nela, recupera a conexão consigo
mesmo e desse momento em diante, percorre um novo caminho (BROSE, 1999, p.
80-81).

À medida que a leitura avança, entendemos o porquê de as histórias clariceanas serem


uma “expressão de uma visão de mundo que se destina a nos apresentar ou sugerir o
conhecimento de um ‘eu’ (o si-próprio) por meio do apanágio da narrativa epifânica:
desvelamentos da linguagem do ser e do ser da linguagem (SÁ, 2021, p. 67). Quanto à moça,
vamos descobrindo-a pouco a pouco, e cada descoberta é a afirmação da sua essência oca,
"Pois até mesmo o fato de vir a ser uma mulher não parecia pertencer à sua vocação" (HE).
Por isso ela usa do outro para ter alguma coisa de identidade, e esse outro, muitas vezes, é o
também nordestino e seu namorado Olímpico. "Nunca esqueceria que no primeiro encontro
ele a chamara de 'senhorinha', ele fizera dela um alguém" (HE). Macabéa não o ama de fato;
necessita dele. Não se constitui aqui uma relação de mera precisão, como alguém que precisa
de uma roupa nova, mas de uma necessidade mesma, como o corpo que necessita de água
para continuar vivo. Evidente que sem o namorado Macabéa sobreviveria, mas para a sua
realidade é importante que Olímpico permaneça; assim, sua vida pode resguardar um pouco
mais de sentido.
Embora ela não seja infeliz, por vezes se vê angustiada, justamente porque lhe falta
algo. Há em seu rosto uma expressão, mais que isso, um sentimento que remete à perdição.
Não tem o direito a sonhar de verdade, visto que seus sonhos "eram vazios porque lhes faltava
o núcleo essencial de uma prévia experiência de - de êxtase, digamos" (HE). Ela se angustia
pela impossibilidade do encontro com o eu-próprio e, no fim de tarde, vê-se tomada por uma
"melancolia inquieta". Ancora-se nas lembranças de sua infância, talvez para amenizar o peso
da existência. E como não se podia apoiar em nada concreto, apoiava-se em sua neurose.
Seria necessário que ela usasse disso tudo para descobrir-se a si mesma, o que não acontece.
Todavia cabe ressaltar que é preciso haver angústia; “Não a angústia sonhada pelos
românticos, imaginária e por isso mesmo não-autêntica, mas aquela metafísica, que
conscientiza o ser humano de sua situação insolúvel: ser no vazio, no nada, no absurdo da
existência” (BROSE, 1999, p. 81).
A semelhança de Macabéa com o seu narrador Rodrigo S.M. reside na ideia de que ele
também está em conflito. Assim, apesar da distância socioeconômica entre eles, é estabelecida
uma relação de proximidade ao ponto de ele enxergar seu reflexo quando Macabéa se olha no
espelho; escrever sobre ela é como narrar a si mesmo (CUNHA, 2017). Indo além, não parece
haver somente um “defrontar-se com o seu outro”, mas igualmente um tornar-se-outro
(NASCIMENTO, 2012). No entanto Rodrigo já é alguém, isto é, a pessoa que o criou, e ela
deixa isso explícito na “Dedicatória do autor (Na verdade, Clarice Lispector)” (HE). Para
chegar à protagonista, usa-se o outro, o narrador como mediação, o que faz Clarice
personagem dela mesma (NUNES, 1973; KAHN, 2000). Essa ligação já é pré-determinada na
própria ideia do livro ao entendermos Macabéa como um reflexo de sua criadora: as duas
viveram no Nordeste e, depois, no Rio de Janeiro. Constituindo uma autoficção, há outras
similaridades entre Lispector e o narrador da história. Se este "morreria simbolicamente" caso
não pudesse escrever, aquela sente-se morta quando não escreve (PANORAMA, 2012).
Contudo, uma diferença significativa emerge entre os dois: para narrar a vida de Maca (como
às vezes é chamada), Rodrigo escolheu um léxico simples. Isso Clarice não poderia fazer:

Só o que me guia ao escrevê-lo [o romance] é sempre um senso de pesquisa e de


descoberta. Não, não de sintaxe pela sintaxe em si, mas de sintaxe o mais possível se
aproximando do que estou pensando na hora de escrever. Aliás, pensando melhor,
nunca escolhi linguagem. O que eu fiz, apenas, foi ir me obedecendo (LISPECTOR,
2015, n.p., grifos do autor).

Lispector teve sempre como questão a linguagem, objeto de uma crítica específica
pelos estudiosos. Se seu modo de narrar era peculiar, tal característica encontra-se igualmente
em Rodrigo, que destina o início da novela para falar quase exclusivamente de si e de sua
escrita. Esta configura-se, por exemplo, por frases formadas apenas por advérbios, enquanto
outras expressavam, nos vocábulos, uma morfologia própria, esticadas, para representar a
intenção do narrador: "Embora os seus pequenos óvulos tão murchos. Tão, tão"; "Dava-se
melhor com um irreal cotidiano, vivia em câmara leeeenta, lebre puuuuulando no aaaar sobre
os ooooouteiros" (HE). Aqui, outro reflexo da narradora. Considerando essas semelhanças,
entendemos a construção autobiográfica do livro como um “testamento literário, que estreita
as fronteiras entre criação e vida a partir de um posicionamento ético.” (DALCASTAGNÈ,
2005, p.36, apud FIGUEIREDO, 2013, p. 45). Ainda segundo Nolasco (2004), as fotografias
de Clarice já estão impressas na ficção a partir de seu primeiro romance, mas que o projeto
biográfico-literário só estará terminado em A Hora da Estrela. Não podemos, todavia,
absorver o livro como uma cópia fiel da vida da escritora, o que seria um erro grave.

Não se deve argumentar que a vida esteja refletida na obra de maneira direta ou
imediata ou que a arte imita a vida, constituindo seu espelho [...]. A crítica
biográfica não pretende reduzir a obra à experiência do autor, nem demonstrar ser a
ficção produto de sua vivência pessoal e intransferível (SOUZA, 2011, n.p.).

Um dos grandes diferenciais dessa novela para os romances anteriores é que a história
traz camadas da chamada literatura engajada, embora não militante ou panfletária. A narração
levanta elementos como a desigualdade social, e a situação precária da protagonista dá o tom
de todo o livro. “A moça, que pelo menos não mendigava, havia toda uma subclasse de gente
mais perdida e com fome” (HE). Clarice, no entanto, vai além da descrição crua que já havia
estabelecido seu lugar na literatura brasileira e que assistiu a um dos seus pontos altos com o
romance proletário de 1930. Encontramos aqui “uma ruptura com o realismo de origem
naturalista, em benefício da pesquisa mágica da realidade” (CANDIDO, 1967, p. 87). Mesmo
com as tintas de uma preocupação social, a espinha dorsal do livro ainda é clariceana como
bem conhecemos, isto é, intimista e psicológica. A todo momento, somos expostos ao interior
não só de Maca, mas de outros personagens, como Olímpico, que parece ter criado um
escudo, uma carcaça para se proteger do mundo, enquanto vítima deste. Ele, “desde menino
na verdade não passava de um coração solitário pulsando com dificuldade no espaço. O
sertanejo é antes de tudo um paciente. Eu o perdoo" (HE).
A nordestina passeia por situações e sentimentos que vão desde a completa apatia até
momentos súbitos de autoconsciência. Um dia, ao estar no açougue com o namorado, vira-se
para ele e: “– Eu vou ter tanta saudade de mim quando eu morrer” (HE). Nós, leitores,
vivemos em um pêndulo que vai desde a angústia até a pena, a piedade por Macabéa. A Hora
da Estrela segue uma linha presente na maioria dos outros livros da autora, na qual
“acentua-se [...] um horizonte reflexivo e até especulativo da sondagem existencial" (NUNES,
1973, p. 14). A pobre moça, a moça pobre é carente de dinheiro, de carinho e de vida, por
isso, sua melancolia é perfeitamente compreensível. As canções que ouve a levam às
lágrimas, porque "através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir,
havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma." (HE). Se em Perto do
Coração Selvagem Clarice apresenta uma sensibilidade para o meandro psicológico
(SCHWARZ, 1981), aqui isso permanece. E assim como Joana, Macabéa vivencia, guardadas
as diferenças, uma “experiência de solidão; em face dos outros e de si mesma” (SCHWARZ,
1981, p. 56).
Se o livro carrega a inflexível individualidade de Clarice (MOSER, 2009), ele nos
apresenta essa alagoana que vive sempre intocável até por ela mesma, em seu mundo
particular. Esse mundo é inundado de angústia pelo não-ser de Macabéa, pois, novamente
fazendo coro com seus outros romances, “a própria subjetividade entra em crise. O
espírito, perdido no labirinto da memória e da autoanálise, reclama um
novo equilíbrio” (BOSI, 2015, n.p.). Exemplo? Dou 3: "Ela era subterrânea e nunca tinha
tido floração. Minto: ela era capim."; "Talvez a nordestina já tivesse chegado à conclusão de
que vida incomoda bastante, alma que não cabe bem no corpo, mesmo alma rala como a
sua."; "Tinha o que se chama de vida interior e não sabia que tinha. Vivia de si mesma como
se comesse as próprias entranhas" (HE).
Sua completa inabilidade social, mas principalmente emocional, constitui uma
narração que nos faz questionar a própria existência, as razões pelas quais estamos aqui
(explosão). A leitura torna-se penosa não por alguma dificuldade lexical, mas pelo encontro
que somos quase obrigados a fazer conosco. Isso acontece, porque Clarice estava inserida na
lógica da prosa contemporânea, que apresenta “A descida ou, pelo menos, a alusão
às fontes pré-conscientes da conduta cotidiana [...]” (BOSI, 2015, n.p.). Um ótimo
exemplo disso está nessa passagem:

Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor.
Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade – para
que mais que isso? O seu viver é ralo [...]. Só vagamente tomava conhecimento da
espécie de ausência que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse
diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim" (HE).

A já citada fragmentação da personagem moderna é uma das características do


romance do século XX, que ademais pode vir constituído com a falta de noção temporal e de
um narrador onisciente e objetivo. Rosenfeld (1996, p. 84-85, grifo do autor) nos explica
sobre este processo, que se trata
de uma radicalização do romance psicológico e realista do século passado; mas este
excesso levou a consequências que invertem por inteiro a forma do romance
tradicional. A enfocação microscópica aplicada à vida psíquica teve efeitos
semelhantes a de um inseto debaixo da lente do microscópio. Não o reconhecemos
mais como tal, pois eliminada a distância, focalizamos apenas uma parcela dele,
imensamente ampliada. Da mesma forma se desfaz a personagem nítida, de
contornos firmes e claros, tão típica do romance convencional”.

No entanto, o narrador da novela ainda consegue capturar algumas características de


Macabéa, como a sua falta de fé. Embora ela não seja ateia, suas preces parecem mais uma
obrigação social, porque não há sinceridade nelas. A falta de religiosidade se dá pela fraqueza
de vínculo entre ela e o sobrenatural, o místico. “A quem interrogava ela? a Deus? Ela não
pensava em Deus, Deus não pensava nela. Deus é de quem conseguir pegá-lo.”; "Do contato
com a tia ficara-lhe a cabeça baixa. Mas a sua beatice não lhe pegara: morta a tia, ela nunca
mais fora a uma igreja porque não sentia nada e as divindades lhe eram estranhas." (HE). A
vida não lhe tem gosto, por isso é suicida, segundo Rodrigo S.M. Ironicamente a ideia de
ceifar a própria vida nunca ocorreu a ela. Até a morte, tão natural ao humano, parecia-lhe ser
inalcançável. E a vida sexual? Nada! Apenas sexo platônico é o que lhe restava. "Como é que
num corpo cariado como o dela cabia tanta lascívia, sem que ela soubesse que tinha?
Mistério" (HE). É sensual, mas não sendo sexual o suficiente, Olímpico a substitui por outra
moça chamada Gloria, que para ele era carne de primeira qualidade. Glória, "carioca da gema,
ovo estrelado na tela de cinema" (DA GEMA, 1984).
Macabéa é a alegoria das insuficiências (MONTEIRO, 2011), atravessada por um
estar-fora-da-linguagem (WALDMAN, 2004; LINO, 2020), condenada a lidar com a falta. Se
não conhece a origem daquilo que a angustia, não pode solucionar seu problema nem mesmo
verbalizá-lo. Glória, que é sua colega de trabalho, certa vez impacienta-se com seus
constantes pedidos por aspirina, então lhe indaga o porquê de tanto remédio: "– É para eu não
me doer. – Como é que é? Hein? Você se dói? – Eu me doo o tempo todo. – Aonde? – Dentro,
não sei explicar" (HE). O fato de ter sido substituída por outra não chega a lhe afetar, pois já
não era afetada pelo desdém que sofria de Olímpico expresso nas palavras de menosprezo que
ele lhe direciona. Se ela não pode mudar a realidade a sua volta, então não faz reclamações.
Assim, "Macabéa é toda a construção de mulher subalterna unida em uma só personagem
(CARTAXO, 2014, p. 190). E aceita as coisas como são, de que tudo “é assim porque é
assim” (HE). Ao narrar uma mulher que se resigna, Elis Regina, não propositadamente,
parece aproximar-se daquilo que é nossa protagonista: “De manhã cedo essa senhora se
conforma [...]. E chora tanto de prazer e de agonia, de algum dia, qualquer dia, entender de ser
feliz [...]. É feita de sombra e tanta luz, de tanta lama e tanta cruz que acha tudo natural”
(ESSA MULHER, 1979).
Reforço: tudo isso é intermediado por um autor homem, algo raro na escrita de
Lispector. E por que não uma narradora feminina? Para o próprio Rodrigo, “escritora mulher
pode lacrimejar piegas” (HE). Um claro sinal de ironia e, talvez, uma resposta muito tardia
(Clarice devia guardar mágoas como ninguém) à crítica de Álvaro Lins citada no começo
deste trabalho. “A hibridização da figura do autor parece querer desmistificar a questão do
gênero na escrita, no sentido de que não existe uma escrita masculina ou feminina” (KAHN,
2000, p. 95). Contudo, das respostas que vi a esse questionamento, deixo a que mais me
chama atenção, escrita pela crítica literária francesa Hélène Cixous:

Por que não poderia ser possível sendo uma mulher? Um eu responde por Clarice:
uma mulher talvez tivesse sentido piedade [...]. O autor, nas primeiras páginas, diz
ter o direito a carecer de piedade [...]. A piedade é deformante, paternalista ou
maternal, enverniza, recobre, e o que Clarice Lispector pretende, aqui, é desnudar,
em sua minúscula grandeza, esse ser (CIXOUS, p. 1995, p. 168, tradução nossa).5

O caráter impiedoso parece se dar por Rodrigo S.M. também ser alguém angustiado,
pois, assim como Macabéa, seu lugar no mundo não está preenchido. “Escrevo porque sou um
desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser” (HE). Não obstante, as
camadas desse narrador revelam mais do que podemos supor a partir dessas informações
iniciais e, a título de informação, duas passagens: "Não tinha aquela coisa delicada que se
chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela"; “Ah
pudesse eu pegar Macabéa, dar-lhe um bom banho, um prato de sopa quente, um beijo na
testa enquanto a cobria com um cobertor" (HE). O jogo narrativo é assim construído a fim de

Fazer-se de outro, um homem, para sondar o mistério de um segundo outro. Sem


deixar de escrever a mesma prosa, de pôr em ques­tão os mesmos problemas. Um
encontro com o outro existencial, contra o qual como mulher, como escritora, como
membro de uma classe social ela se coloca (BUENO, 2001, p. 259).

O fim dessa história é a verdadeira hora da estrela, em que Macabéa preenche-se de


sonho e esperança para morrer logo em seguida. Não alcançou a identidade, esteve sempre
nas sombras, no quase, no “e se”. Até o momento em que nossa protagonista “era uma
personagem falível e passível de intervenção, ela podia ser utilizada na narrativa. Após a
autopercepção de sua banalidade, não há mais motivo para a manutenção de Macabéa”.
(CARTAXO, 2014. p. 191). Pela primeira e última vez, ela chega a uma consciência mais
plena do que era sua existência miserável, porém não mais teria tempo de (vir a) ser. Então,
“[...] para que a personagem se torne sujeito da história, é preciso que o narrador a mate; não
há lugar para o pobre num mundo de ricos” (GOTLIB, 1988, p. 181).
. . .
Manhã de sexta, 2 de novembro, 10h:56. Termino, comovidíssimo, A Hora da Estrela.
Qualquer palavra a mais parecerá uma grande in-sig-ni-fi-cân-cia, pois Clarice não precisa de
minhas explicações. Eu, e percebi só agora, é que preciso dela. Como Macabéa, sinto que
verbalizar qualquer coisa soará quase como uma impossibilidade, um ato de ousadia. Clarice
5
Y cabe preguntarse: ¿por qué no hubiera sido posible siendo mujer? Un yo responde por Clarice: una mujer
quizá hubiera sentido piedad [...]. El autor, en las primeras páginas, dice tener el derecho a carecer de piedad
[…]. La piedad es deformante, es patemalista o maternal, barniza, recubre, y lo que Clarice Lispector pretende,
aquí, es desnudar, en su minúscula grandeza, a ese ser.
deixou-me completamente desconcertado.. Logo eu, que tenho o falar sobre literatura como
uma tentativa de sentir a vida de maneira mais genuína. Eis a minha essência sartreana, minha
identidade, meu destino.
À Clarice, meu muito obrigado!

Não podíamos reter Clarice em nosso chão/salpicado de compromissos. Os


papéis,/os cumprimentos falavam em agora,/edições, possíveis coquetéis/à beira do
abismo./Levitando acima do abismo Clarice riscava/um sulco rubro e cinza no ar e
fascinava.//Fascinava-nos, apenas./Deixamos para compreendê-la mais tarde./Mais
tarde, um dia... saberemos amar Clarice (ANDRADE, 1987, p. 16, apud CUNHA,
2017, n.p.).

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Jane Sinara Clementinos De. O existencialismo em Clarice e em Machado: um


estudo comparado. In: Congresso Nacional de Educação, 3., Campina Grande. Anais [...].
Campina Grande: Realize Editora, 2016. ISSN: 2358-8829. Disponível em:
https://www.editorarealize.com.br/index.php/artigo/visualizar/21600. Acesso em: 07 out.
2022.

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ISBN: 978-85-316-0189-7. Disponível em: https://pt.book4you.org/book/11075383/1f4181.
Acesso em: 28 out. 2022.

______. O conto brasileiro contemporâneo. ed 2. São Paulo, SP: Cultrix, 1977.


BROSE, Elizabeth Robin Zenker. O existencialismo em A Hora da Estrela. Letras de Hoje,
Porto Alegre, v. 34, n. 4, p. 77-90, 1999. e-ISSN: 1984-7726. Disponível em:
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/14958. Acesso em: 30 ago.
2022.

BUENO, Luis. Guimarães, Clarice e antes. Teresa, [S. l.], n. 2, p. 249-261, 2001. ISSN:
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20 out. 2022.

CANDIDO, Antonio. Movimento geral da literatura contemporânea. O Tempo e o Modo,


Lisboa, v. 1. Caderno O tempo e o modo do Brasil. Disponível em:
http://ric.slhi.pt/O_Tempo_e_o_Modo/visualizador/?id=09524.054&pag=84. Acesso em: 28 out.
2022.

CARTAXO, Mariana Gomes. Representação feminina em “A Hora da Estrela”: A mulher


subalterna enquanto um significante vazio. Revista Três [...] Pontos, Minas Gerais, v. 11, n. 2, p.
188-192, 2014. ISSN: 1808-169X. Disponível em:
https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistatrespontos/article/view/3327. Acesso em: 23 out.
2022.

CIXOUS, Hélène. La risa de la medusa: ensayos sobre la escritura. Tradução: Myriam


Díaz-Diocaretz. ed. 1. Barcelona: Anthropos; Madrid: Dirección General de la Mujer; San Juan:
Universidad de Puerto Rico, 1995. ISBN: 84-7658-463-6.

CUNHA, Wesclei Ribeiro da. A condição humana na poética de Clarice Lispector. 2017. Tese
(Doutorado) – Universidade Federal do Ceará, de Pós-graduação em Letras, Fortaleza, 2017.
Disponível em: https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/25076. Acesso em: 01 set. 2022.

DA GEMA. Intérprete: Maria Bethânia. Compositores: Caetano Veloso, Waly Salomão. In: A
BEIRA e o mar. [S.l]: Polygram, 1984. Disco 2, faixa 4.

ESSA mulher. Intérprete: Elis Regina. Compositoras: Ana Terra, Joyce Moreno. In: ESSA
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