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OS MISERÁVEIS
Victor Hugo
Cosette, ilustração de
Émile Bayard (século
XIX)
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O autor
VICTOR HUGO (1802-1885)
Em Les Soleils du romantisme (“Os sóis do romantismo”), Claude Roy pergunta: “Alguma
pessoa sensata acreditaria que um homem comum poderia ter sido tudo o que foi Victor
Hugo, a dizer, o maior dos poetas de seu século e uma de suas figuras mais influentes, um
animal político e um Don Juan, um filósofo e um homem de negócios, o autor dramático
mais importante e o romancista mais popular [...], o criador de uma religião e o guru de sua
época?”. Ora, é claro!
E ainda faltou dizer que Hugo encarnou a defesa do essencial e do universal para
Retrato de Victor
Hugo, pintura de seus semelhantes ao abraçar a causa dos humildes e dos desvalidos – algo não muito
Léon Bonnat comum na época – e ao ser um dos primeiros a propor a criação dos Estados Unidos da
Europa e a fundação de uma república universal,
generosa e respeitosa em relação à dignidade
humana. Sua figura de patriarca, suas ideias
humanitárias e seu prestígio de escritor engajado
se espalharam para além de todas as fronteiras
e permanecem tão presentes hoje como quando
ele ainda era vivo.
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O autor
VICTOR HUGO (1802-1885)
A BATALHA DE HERNANI
Quando a peça Hernani (1830) foi montada no Théâtre-Français, Hugo temia a reação dos
partidários do classicismo e também a de seus inimigos políticos. Por isso, fez um apelo a seus
defensores, entre eles os estudantes Gérard de Nerval, Théophile Gautier e Hector Berlioz. Seus
trajes extravagantes e seus cabelos desalinhados formavam um claro contraste com as vestes
burguesas do público habitual... Nas três primeiras apresentações, a “armada romântica”
compareceu em peso: a direção do teatro lhes forneceu ingressos gratuitos. Durante a
encenação, o público entrou em conflito, provocando a intervenção das forças policiais. A
batalha de Hernani entrou para os anais da história.
OS ANOS DE EXÍLIO
Victor Hugo aproveitou o tempo de exílio para
escrever suas principais obras poéticas e romanescas,
dentre as quais quatro ou cinco se destacam como
uma espécie de linha-mestra. É nesse período que
surgem Os castigos (1853), coletânea de poemas
satíricos contra o usurpador Napoleão III; A lenda
dos séculos (1859 a 1877), longa epopeia sobre a
história da humanidade; Os trabalhadores do mar
(1866), um romance-reflexão sobre a luta do homem
contra si mesmo e contra o oceano; e O homem que
ri (1869), um romance barroco que aborda mais
uma vez o tema da mutilação como castigo imposto
ao povo pelos poderosos. No auge do exílio, Hugo
escreveu: “Estou em um isolamento quase absoluto. Retrato de Victor Hugo com
Eu trabalho, essa é minha força”. ilustrações de suas principais
obras, gravura publicada em
Le Petit Parisien (1902)
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O autor
VICTOR HUGO (1802-1885)
UM AUTOR ENGAJADO
Para Victor Hugo, as turbulências da História pontuaram e motivaram um longo combate pessoal. Sua
luta contra as origens conservadoras, monarquistas e católicas a princípio ficou marcada por hesitações
e escolhas consideradas bastante moderadas. Em 1829, porém, com a publicação de O último dia de
um condenado, ele corajosamente tomou partido contra todos os preconceitos da época e a favor da
abolição da pena de morte, que considerava desumana e inútil. Tal abolição, no entanto, só se deu um
século depois de sua morte. Hugo militou pela emancipação de homens e mulheres através da educação,
apesar de ter recusado duas vezes o cargo de
Retrato de Léopoldine ministro. Durante os dias de provações, ele tomou
Hugo, pintura de Louis consciência da pobreza e da infelicidade e, a
Boulanger, museu Victor partir de uma moral cristã que pregava a piedade,
Hugo, Paris (1835) assumiu o dever de promover a solidariedade entre
os homens. Muitos de seus poemas assinalam o
caráter imperioso do perdão, da exigência de um
tratamento humano aos aleijados, aos deformados,
a todos os Quasímodos, a todos os condenados da
Terra – os excluídos, os ladrões, os infelizes de
todos os tipos. Para Hugo, a redenção é sempre
possível, tanto diante de Deus como da justiça dos
homens, sempre tão injusta contra os oprimidos
– um dos temas mais recorrentes em seus livros.
Essas esperanças estão encarnadas em personagens
míticos e universalmente conhecidos como Jean
Valjean, Javert, Claude Gueux, Quasímodo. Ele
acreditava no homem e em sua força para sair
vencedor na luta muitas vezes desanimadora do
bem contra o mal.
Da mesma forma, ele lutou pelo respeito à
liberdade de expressão, inalienável e sagrado para o
escritor e crítico feroz que por fim ele se mostraria
sob todo e qualquer regime. Ao longo de toda a
vida, sua obra plantou sementes cujos frutos, mais
tarde, outros depois dele colheriam...
AS CONTEMPLAÇÕES
A dor pelo falecimento da filha Léopoldine ficaria para sempre em seu coração. À filha querida, Hugo
dedicou em parte As contemplações (1856), escrito em sua ilha na costa da França dezesseis anos depois
da tragédia. Foi com as palavras mais simples, mais verdadeiras, mais humanas – que fazem parte do
repertório de todos os homens e de todas as memórias – que Victor Hugo revolucionou a poesia. Seus
versos e sua prosa, sustentados por uma linguagem ritmada com vigor e clareza, não só lhe garantiram
uma popularidade que nunca parou de crescer como abriram as portas da liberdade de criação para os
poetas e escritores que vieram depois dele. Sua vida e sua obra monumentais foram compatíveis com o
gênio profundamente humano.
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O autor
VICTOR HUGO (1802-1885)
HOMEM DE LETRAS E ANIMAL POLÍTICO
Nada foi simples ou fácil de conquistar durante a longa marcha de Victor Hugo por um mundo melhor
para a humanidade. Admirador de Napoleão Bonaparte, como quase todos os autores do século XIX,
foi homenageado pelo rei ainda bem jovem, aos quinze anos, em
um concurso de poesia premiado pela Academia Francesa; seus A dor causada pelo falecimento
detratores o consideraram erroneamente durante muito tempo um da filha Léopoldine ficaria para
monarquista convicto. Mais tarde ele foi eleito para a Academia e sempre em seu coração.
condecorado pelo rei Luís Filipe, mas, sem identificação com essa
monarquia burguesa, foi como liberal que tomou a palavra nos anos 1840 para defender a causa dos
oprimidos, denunciar o estado de miséria do povo e se opor incansavelmente à pena de morte. Por fim, foi
saudado como herói pela República, que o elegeu deputado depois de seu retorno do exílio e, na ocasião
de sua morte, carregou seu corpo em aclamação do Arco do Triunfo ao Panthéon. Nesse dia, Paris inteira
saiu às ruas, um milhão e meio de pessoas cantando hinos em homenagem ao “pai” Victor Hugo.
Adaptação e roteiro
DANIEL BARDET *
Nasceu em 1943, na França. Bardet é, atualmente, um dos mais reconhecidos artistas de Histórias em
Quadrinhos. Desde 1982, atua como roteirista e tem um apreço especial por História e pelas adaptações
de obras clássicas. Além de Os miseráveis, adaptou, entre outros, Madame Bovary e As mil e uma noites.
Ao lado de Patrick Jusseaume, Bardet lançou o Chronique de la maison Le Quéant, em 1985. Depois,
com Erik Arnoux ilustrando, ele escreveu o roteiro de Timon des blés. Entre os anos 1987-1989, confiando
a ilustração a vários autores, Bardet continuou escrevendo pequenos contos. Essas obras foram compiladas
em uma coleção intitulada La Révolution enfin!, de 1989, ano do bicentenário da Revolução Francesa.
A partir de 1990, como roteirista, escreveu a série Le Boche com os irmãos Stalner ilustrando. Em 1998,
primeiro com Eric Chabbert e depois Michel Janvier, Bardet iniciou o Docteur Monge.
Desenhos
BERNARD CAPO
Nasceu em Burges, na França, em 1950. Estudou filosofia, prestou serviço militar e, ainda jovem, se lançou
a conhecer o mundo. Na década de 1980 se aproximou do universo das HQs. Começou a desenhar a tira
“Le roi de coeur” para o periódico La Nouvelle République e logo passou a publicar também no célebre
jornal Tintin.
É também caricaturista e chargista, e tem cerca de 40 títulos de quadrinhos publicados. Os desenhos feitos
para a HQ Os miseráveis, em parceria com Daniel Bardet, foram expostos em 2012 no Museu Victor Hugo.
Tradutor
ALEXANDRE BOIDE
Nasceu em São Paulo, capital, em 1979. É graduado em Letras, com habilitação para Tradutor e Intérprete,
pela Faculdade Ibero-Americana, em São Paulo. Alexandre começou a se interessar por tradução desde a
adolescência. Traduziu, entre vários, os livros Logicomix, Frida Kahlo: uma biografia e Eu sou uma noz, que
receberam o selo de Altamente Recomendável pela FNLIJ.
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Contexto histórico
A FRANÇA DO SÉCULO XIX
Para conhecer melhor o século XIX, nunca é demais recomendar a leitura de Os miseráveis.
Victor Hugo escreveu este romance entre 1845 (início do processo de escrita) e 1862 (últimas
revisões), com a intenção de, através do destino de seus personagens, relatar boa parte da
história daquele século. Todos os temas de interesse do autor estão presentes nesta obra
magistral, todos ligados à história de sua época – tanto a história das ideias como a da
sociedade, então em constante mutação.
UM SÉCULO CONTURBADO
A política francesa do século XIX ficou marcada pela instabilidade. Os regimes, muitas vezes autoritários,
se sucediam de maneira turbulenta: o consulado de Napoleão Bonaparte (1799-1804), a Restauração
monárquica de Luís XVIII (1814-1824) e depois Carlos V (1824-1830), a monarquia de julho de Luís
Filipe (1830-1848), a segunda República (1848-1852), herdeira dos valores da Revolução Francesa, o
segundo Império de Napoleão III (1852-1870) e por fim a terceira República (1870-1940). E tudo isso
não se passou sem sobressaltos: a fúria popular durante os “Três Dias Gloriosos” – 27, 28 e 29 de julho
de 1830 – obrigou Luís Filipe a abdicar. A capital francesa ainda viveu outros momentos de revolta – por
exemplo, em 1832, anos de seca e de epidemia de cólera. As ruas de Paris se ergueram em barricadas em
junho de 1848 (do dia 23 ao 26): o fechamento das oficinas nacionais criadas pela segunda República
para reduzir o desemprego, que asseguravam a subsistência de mais de 100 mil pessoas, provocou uma
insurreição violentamente reprimida. Em 1851, outras rebeliões
O 28 de julho de 1830: a Liberdade
guiando o povo, pintura de Eugène terminaram com grande número de vítimas. Foi com um golpe de
Delacroix, museu do Louvre (1831) Estado que Napoleão III tomou o poder; no fim de seu governo, ele
deixaria a França ocupada em parte pela
Alemanha. Em 1871, a Comuna de Paris
terminou em um banho de sangue...
Tanto a agitação social como as rea
ções autoritárias eram frutos das profun-
das mutações que ocorriam no país. O
espectro político da época compreendia
os realistas, divididos entre ultras e mode-
rados, os republicanos e uma esquerda
às vezes radical. Burgueses e proletários
começaram a querer se entender e foram
inclusive capazes de se aliar, pelo menos
por algum tempo. A industrialização
estava transformando o país. A concen-
tração das fábricas nas cidades, sobretu-
do em Paris, provocava um êxodo rural
em massa. O desemprego estava fora
de controle. Na capital, uma cidade de
características medievais, despreparada
para receber tamanho fluxo migratório,
uma população miserável sofria com a
insalubridade das epidemias, com a falta
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Contexto histórico
A FRANÇA DO SÉCULO XIX
de água potável, com o problema do acúmulo de lixo, com a insegurança – o barão Haussmann trans
formaria esse panorama apenas a partir de 1853. Paris ilustrava bem o abismo entre os mais ricos e os mais
pobres, entre aqueles que sofrem de fome, são expostos a
doenças ou se aleijam no trabalho e aqueles que nascem em Burgueses e proletários começaram
meio à opulência, se divertem, “jogam na bolsa” e gastam a querer se entender e foram inclusive
à vontade. No plano do judiciário, a desigualdade era capazes de se aliar.
também gritante: um delito cometido por um pobre, por
mais irrelevante que fosse, como o roubo de um pão, podia levar à prisão, como aconteceu a Jean Valjean.
Foi nessa época de escândalos financeiros, marcada pela corrupção e pelas guerras de altíssimo custo em
vidas humanas, que os ideais republicanos foram ganhando espaço. Mas, apesar de ter construído pouco
a pouco a democracia, a sociedade do século XIX foi também perpetradora de todas as injustiças, de todas
as distorções.
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Contexto histórico
A FRANÇA DO SÉCULO XIX
com mais de vinte funcionários – mas nem todos a respeitavam, longe disso. Em 1874, foi elevada para
doze anos. Nesse meio-tempo (em 1851), uma outra lei limitou a jornada de trabalho diário a oito horas
para menores de catorze anos, e a doze horas para adolescentes de catorze a dezesseis anos. Os direitos das
crianças, assim como das mulheres, foram pouco a pouco sendo conquistados. O próprio Victor Hugo
fez um discurso contra o trabalho infantil na Câmara dos Pares em 1847. Ele foi também um ardoroso
defensor dos direitos das mulheres.
Se as crianças têm tamanho lugar de destaque na obra do escritor, é porque ele estava convencido de
que o futuro da democracia estava na educação dos mais jovens, uma ideia compartilhada com muitos
humanistas de sua época. As crianças tinham coisas melhores a fazer do que trabalhar: aproveitar a
infância e ir à escola. É por meio da educação que os pequenos se tornarão cidadãos da República, e é
através dela que aprenderão o caminho certo. Muitas crianças, abandonadas ou órfãs, vivem na rua.
“A cada criança que se educa, ganha-se um cidadão. / Noventa de cada cem ladrões na prisão / Nunca foram
à escola, / E não sabem ler nem ver as horas. / É sob essa
sombra que cometem seus crimes.” (Os quatro ventos do
espírito, 1881.)
O trabalho é considerado um obstáculo óbvio à
escolarização. Um passo nesse sentido foi dado em 1833
com a lei Guizot, que obrigava as cidades com mais de
quinhentos habitantes a manter uma escola. Porém, as
expectativas de Hugo se concretizaram de fato apenas nos
anos 1880: o ministro da Educação Jules Ferry tornou o
ensino gratuito, obrigatório e laico.
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Contexto histórico
A FRANÇA DO SÉCULO XIX
PELA LIBERDADE
Duas visões de sociedade foram confrontadas durante o século XIX: os defensores da ordem se opunham
às reformas propostas pelos republicanos, partidários dos ideais do Iluminismo e da Revolução Francesa.
O próprio Victor Hugo é um exemplo da divisão entre esses dois mundos: foi monarquista (como sua
mãe) antes de se tornar republicano. O Antigo Regime deixou sua marca no modo de fazer política:
ninguém hesitava em mandar a polícia, e até o exército, reprimir as barricadas, chegando às vezes a abrir
fogo contra a multidão, como no caso da morte do personagem Gavroche e no de muitas outras pessoas
reais. A censura, interrompida apenas durante breves intervalos, era implacável contra a imprensa e os
livros. Hugo viu suas peças de teatro serem proibidas durante quase toda a vida – a Restauração proibiu
Marion de Lorme, a Monarquia de Julho baniu O rei se diverte, o segundo Império censurou toda sua
obra durante um bom tempo etc. Suas posições o levaram ao exílio, em especial sua oposição ao golpe de
Estado de Napoleão III, chamado por ele, em um panfleto de 1852, Napoleão o Pequeno.
A severidade excessiva em relação aos criminosos, condenados por motivos banais ou por suas condições
de vida – a pessoa podia ser presa por estar desocupada – a penas implacáveis, foi o que provocou a reação
de Hugo: “A justiça só vê o crime, a clemência enxerga o culpado. Para a justiça, o crime aparece em meio
a um isolamento inexorável; aos olhos da clemência, o
culpado aparece cercado de inocentes; ele tem um pai,
uma mãe, tem filhos, que são condenados junto com
ele e que também cumprem sua pena. Para ele, a prisão
ou o exílio; para os familiares, a miséria. Eles merecem
tal castigo? Não. Eles o sofrem? Sim. A clemência torna
injusta a justiça”. (Discurso ao Senado, 22 de maio de
1876.) Um novo pensamento havia se estabelecido no
início daquele século: os crimes e delitos têm origem
na condição social de seus autores. A prisão é um
inferno do qual poucos retornam. Foram construídas
grandes penitenciárias ao longo de todo o século, o
que fez surgir uma reflexão a respeito da reinserção
dos condenados à sociedade. Como Guizot ou
Lamartine, Hugo defendia a abolição da pena
capital: “A pena de morte é o sinal característico
e eterno da barbárie”. (Discurso à Assembleia, 15
de setembro de 1848.) Essa foi a grande luta de
sua vida; a ela se dedicaram as obras O último dia
de um condenado (1829) e Claude Gueux (1834),
sem que nada fosse mudado. Mas as ideias
republicanas seguiram seu curso. No começo
do século XX, a democracia foi conquistada na
França.
Embarque de condenados
a trabalhos forçados para a
Guiana, ilustração publicada
em Le Petit Parisien (1903)
103
O romance
OS MISERÁVEIS (1862)
A liberdade em forma de romance: “Este livro é um drama cujo personagem principal é o
infinito. O homem é o secundário”. (Os miseráveis, parte II, livro VII, capítulo I)
Em sua origem, o termo “drama” remete ao teatro. Hugo o utilizou aqui para descrever seu romance
dentro de um contexto literário em particular – o do romantismo. Os partidários desse movimento,
dentre os quais Victor Hugo ocupa um lugar central, responderam à “tragédia clássica” com o “drama
romântico”, que segundo seus autores aliava os mais variados elementos – o tempo, o espaço e a ação, a
comédia e a tragédia, o grotesco e o sublime – para dar conta da diversidade de situações com as quais se
confronta a humanidade. Assim sendo, este romance é um típico exemplo de “drama romântico”: todas
Hugo criou um mosaico de rostos que, as dimensões se fundem e as fronteiras entre os gêneros
reunidos, compõem a humanidade. são abolidas. Ele pode ser visto alternadamente como uma
epopeia, um romance social ou histórico, um conto, um
poema, um ensaio sobre literatura, sobre filosofia, sobre a própria linguagem... É a expressão da liberdade
de um escritor dotado de uma ousadia sem limites. Assim como no teatro, no romance ele deu vida a seus
cenários, marcados principalmente pela oposição entre campo e cidade.
“O infinito” aparece exatamente na tentativa de reunir tudo em um único livro. A amplitude dessa
obra-prima é condizente com seus propósitos, que se espalham por todas as direções, e com sua maneira
de lidar com a questão do tempo: ao incorporar o presente ao passado para esboçar o horizonte do futuro,
Hugo desejava retratar fielmente o seu século, apontar suas zonas de luz e de sombra, suas mazelas e
suas esperanças. O infinito é também o território espiritual de seu personagem secundário, “o homem”,
dividido em inúmeras figuras, homens e mulheres, crianças, jovens e velhos, de todos os estratos sociais
– patrões, aristocratas, bispos, policiais, ladrões, prisioneiros, órfãos, operários, estudantes, prostitutas,
meninos de rua, criaturas decadentes, alegres, sofredoras, maliciosas, generosas, apaixonadas... Hugo
criou um mosaico de rostos que, reunidos, compõem a humanidade; a esperança do escritor era a união
de suas forças.
104
O romance
OS MISERÁVEIS (1862)
parte da ação; muitos deles são como os transeuntes que circulam pelas ruas, aparecem e desaparecem
sem que se saiba de onde vieram. Entre eles, é possível citar alguns que, entre idas e vindas, tomam parte
das inúmeras reviravoltas de Os miseráveis: Jean Valjean, Fantine,
Cosette, os Thénardier, Gavroche, Javert, Marius. Todos eles
são, com exceção do representante da lei Javert, o equivalente da
época àquilo que hoje se convencionou chamar de “excluídos”;
Hugo os chamava de “miseráveis”.
O romance, que acompanha a existência de Jean Valjean
até sua morte, tem início em 1815, quando ele é solto da prisão
depois de vinte anos. Condenado por ter roubado um pão, teve
sua pena prorrogada em virtude de tentativas de fuga. Ele era
apenas mais um ladrão andarilho como muitos outros, vítima da
fome, da severidade dos julgamentos e de um preconceito sem
fim do qual é vítima até encontrar o bispo de Digne, monsenhor
Myriel, que lhe oferece abrigo. Valjean rouba sua prataria, é
preso pelos gendarmes, mas depois inocentado pelo próprio
bispo, que alegou serem aqueles presentes seus para ele. Trata-
se de um homem excepcionalmente dotado da compaixão que
falta a seus contemporâneos. Foi ele que fez com que a atitude
de Jean Valjean mudasse: a partir de então ele só se dedicaria a
fazer o bem.
Mais tarde ele faria parte de outro destino, o de Fantine. Essa
jovem operária se apaixona por um rapaz que a engravida e a
abandona. Ela deixa Paris e confia ingenuamente os cuidados
de sua filha Cosette a um casal de albergueiros, os Thénardier, que maltratam Gavroche zomba dos
cruelmente a menina. Os Thénardier também têm filhos, entre eles um garoto guardas depois de
rejeitado chamado Gavroche, que mais tarde foge da família para viver nas nocautear um deles com
ruas da capital. Fantine encontra trabalho em Montreuil-sur-Mer, na fábrica uma carroça
do sr. Madeleine – na verdade Jean
Valjean, que se tornou um homem
rico, querido por todos, prefeito da
cidade. O policial Javert, que acredita ter
reconhecido nele um ex-presidiário, é
o único a desconfiar do benfeitor local.
Ele só tem um pensamento em mente
– fazer com que a lei seja respeitada: “O
ponto central de Javert, seu elemento
fundamental, o ar que ele respirava, era
a veneração pela autoridade”. Fantine
logo é demitida: ela é mãe solteira, algo
considerado grave na época. Depois disso
cai na miséria e se prostitui. Quando ela
morre, o sr. Madeleine, que havia tomado
conhecimento de seu triste destino e se
105
O romance
OS MISERÁVEIS (1862)
esforçava para lhe oferecer consolo, promete cuidar de Cosette. O personagem de Marius, filho de um
general bonapartista – como o próprio Victor Hugo –, só aparece mais tarde. É um estudante que rompe
relações com a família, o que o lança à pobreza. Ele faz parte do grupo de amigos ABC, cujos membros
são “descendentes diretos da Revolução Francesa”.
Valjean toma Cosette a seus cuidados, mas não sem antes passar por poucas e boas. Em uma crise de
consciência, revela sua verdadeira identidade em benefício de um infeliz que estava sendo julgado em
seu lugar. Mandado para a prisão, ele consegue escapar,
Eles são o equivalente da época àquilo que é tido como morto e volta para cumprir sua promessa:
hoje se convencionou chamar de excluídos; resgata Cosette e a leva a Paris. Para sua infelicidade, o
Hugo os chamava de miseráveis. obstinado Javert segue em seu encalço. Valjean muda de
identidade e, quando o casarão Gorbeau, que lhes servia
como abrigo, deixa de ser seguro, ele se refugia com a menina em um convento. Os Thénardier, agora
também moradores de Paris, tornam-se bandidos, Cosette e Marius se apaixonam, e Gavroche, menino
de rua com um grande coração, é morto nas barricadas em junho de 1832... Não faltam reviravoltas
ao longo da história: prisões, fugas, passagens pelo campo de Toulon, emboscadas, raptos, traições e
ambientes degradados – principalmente em Paris, onde se vai do jardim de Luxemburgo aos subúrbios,
passando pelos esgotos, sem nunca esquecer de sua população. Mas isso tudo não basta para descrever o
romance: sua abrangência vai muito além do destino desses miseráveis.
O ROMANCE DA HISTÓRIA
Os eventos históricos, ainda que o autor sempre os ligue ao destino de seus heróis, constituem um
universo à parte dentro do livro, fazendo o tempo parar. É o que acontece na visita do narrador ao campo
de batalha de Waterloo, que ocupa um livro inteiro, com dezenove capítulos, no início da parte II. Ele
descreveu o local, narrou os combates e externou sua admiração por Napoleão I. Hugo faz assim um
retorno no tempo – a cena anterior se interrompe em 1823, e a batalha foi travada em 1815 – ao mesmo
tempo em que projeta o futuro para o leitor – o narrador descobre o local em 1861, apesar de a narrativa
chegar ao fim com a morte de Valjean, em 1833. Da mesma forma, na parte IV, ao descrever os eventos de
junho de 1832 no livro I, intitulado “Algumas páginas de história”, são evocadas as circunstâncias que os
O campo de batalha
de Waterloo depois da
derrota francesa
106
O romance
OS MISERÁVEIS (1862)
precedem: a Restauração, a queda dos Bourbon, a Revolução de 1830, Luís Filipe... Hugo, observador
atento de seu século, reconstitui o contexto histórico sem se privar de oferecer seu ponto de vista:
“Tentou-se, erroneamente, fazer da burguesia uma classe. A burguesia é simplesmente a parcela satisfeita
da sociedade. O burguês é um homem que tem tempo de se sentar. Uma cadeira não é uma casta”. Esse
vai e vem temporal e a expressão dessas convicções conferem um sabor especial ao romance.
No começo da parte V, na qual Valjean se enfia no subsolo de Paris, há o livro intitulado “Os
intestinos do Leviatã”, que narra em detalhes a história do esgoto da cidade desde a Idade Média.
A que se comparam os esgotos? A “algum alfabeto bizarro” da Idade Média, ao “clássico alexandrino
retilíneo que, desprovido de
poesia, parece se refugiar na
arquitetura” no tempo do Profunda paz,
absoluto silêncio,
narrador. Aquela “escuridão noite. Os intestinos
do Leviatã...
Os insurgentes
O ROMANCE DA LINGUAGEM defendem as
barricadas contra a
Em sua tentativa de abordar todos os aspectos de seu século em um único
ofensiva do exército
romance, Victor Hugo não se furtou de utilizar também a linguagem das ruas:
a gíria. Longe de se contentar em reproduzi-la nos diálogos, o escritor dedicou
a ela páginas inteiras, assim como aos dialetos. Hugo apreciava o “falar popular
em circulação”, e tratou de nos ensinar muitas de suas expressões. “Do ponto de
vista literário”, assinala ele, “poucos estudos serão mais curiosos e mais fecundos
que o da gíria.” Essa introdução de palavras “vulgares” no romance por um autor
acadêmico é uma formidável declaração de amor ao povo que ele defende. Isso
vai ao encontro das últimas palavras de Valjean, dirigidas a Cosette e Marius,
mas que valem para todos os seus leitores: “Amem-se muito e sempre. Não existe
outra coisa neste mundo além do amor”.
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Gênero
OS MISERÁVEIS EM QUADRINHOS
A obra Os miseráveis, de Daniel Bardet, é uma adaptação, para História em Quadrinhos (HQ), de um dos
mais célebres e clássicos romances da história universal. Adaptar uma obra da dimensão (física e cultural)
de Os miseráveis é uma tarefa muito arriscada, por isso algumas considerações são fundamentais para uma
leitura da versão dos quadrinhos: afinal, dois discursos estão simultaneamente construindo a história – o
verbal e o visual.
Primeiramente, ao ler uma adaptação de uma obra clássica, não podemos nos prender exclusivamente
ao enredo, encarando a adaptação apenas como mero facilitador do conteúdo. Isso porque, na realidade,
uma adaptação ganha uma nova dimensão estética, com novas camadas interpretativas, fundamentais
quando temos em mente que o que está diante de nós é uma nova obra.
No caso da obra Os miseráveis, de Daniel Bardet, uma adaptação para HQ, é essencial olhar para
dois elementos fundamentais: a linguagem multissemiótica, verbal e verbo-visual, e a relação com o
romance clássico.
Não é raro encontrar quem negue a dimensão literária e artística das Histórias em Quadrinhos. Muito
provavelmente, quem reproduz essa ideia ainda tem em mente um trabalho muito voltado a um público
pouco leitor, que encontrava nos quadrinhos algo mais da ordem do puro entretenimento do que do
universo artístico. Porém, o crescimento da união da linguagem verbal e visual é irrefreável e não só
pela sua vasta abrangência de público leitor, mas também porque é um espaço de produção artística
constantemente atual.
O roteiro de Daniel Bardet, conforme dito anteriormente, extrai de maneira concisa o cerne da
problemática dos miseráveis: os dilemas éticos. É inegável o desafio enfrentado pelo adaptador que
Jean Valjean ajuda Cosette precisou reduzir em volume de texto um trabalho imenso, em tamanho e
a carregar um balde d’água alcance, como o de Victor Hugo. Diferentemente, por exemplo, de escolhas
feitas em filmes e musicais, a versão em História em
Quadrinhos tem uma vantagem: a possibilidade do
recorte temporal, sem grandes perdas narrativas,
todas compensadas pela representação visual da
passagem do tempo.
Algumas personagens foram criteriosamente
selecionadas por Bardet na adaptação do romance de
Victor Hugo para o gênero História em Quadrinhos:
Fantine, abandonada pelo rapaz que a engravidou,
representa a mãe solo que encontra como única
saída deixar a filha Cosette nas mãos de um casal de
albergueiros que julgava cuidadoso; Javert, o cruel
representante da lei e quem, tendo sido o supervisor
dos campos de trabalho forçado em Toulon, não
aceita a fuga de Valjean e passa a persegui-lo; Marius,
o símbolo da revolução e dos novos ideais; e, por fim,
Gavroche, filho dos taverneiros, que representa toda
a ingenuidade da criança e a submissão à situação de
exploração das autoridades.
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Em termos de desenho, a obra foi adaptada em um estilo bem clássico de Histórias em Quadrinhos.
De origem franco-belga, conhecido como ligne claire (“linha clara”, isto é, com linhas claramente bem
definidas), é uma técnica criada por dois grandes nomes da área: Alain Saint-Ogan (criador de M. Poche) e
Hergé (criador de Tintim). Há, então,
aquilo que Will Eisner identifica como
sendo o equilíbrio ideal de uma novela
gráfica, isto é, uma noção de equilíbrio No cemitério de Père-Lachaise, nos arredo-
res da vala comum, longe da porção mais
elegante dessa cidade de sepulturas...
entre a quantidade de texto verbal e de
texto visual.
A respeito do uso de cores, é
possível notar que a história começa
em tons de sépia, ganhando cor apenas
quando Valjean ganha um propósito
para continuar a viver e, conforme a
morte se aproxima do protagonista, os
tons amarelos retornam, culminando
em uma cena, digamos, outonal.
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