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GUIA DE LEITURA

OS
TRABALHADORES
DO MAR
Índice

Biografia de Victor Hugo______________________ 3


Os Trabalhadores do Mar______________________ 18
Apresentação_________________________ 19
Resumo_____________________________ 23
Gilliatt e a Natureza ___________________ 31
Referências_________________________________ 35
Biografia de Victor Hugo

“Garoto, só há uma Majestade aqui, e esta é Victor


Hugo!” (Dom Pedro II, na ocasião em que Victor Hugo
o apresentou ao neto)

INFÂNCIA E JUVENTUDE

Mais que autor de inúmeras frases que circulam pelas redes sociais,
Victor Hugo é um dos maiores poetas de língua francesa. Foi também
dramaturgo, novelista, romancista e até designer de interiores, além de
ativista dos direitos humanos e político com grande influência social.
É mundialmente conhecido pelas obras Les Misérables e Notre-Dame
de Paris, mas sua vida e obra tem tantos marcos interessantes que, certa
vez, Jean-Marc Hovasse, um dos maiores biógrafos de Victor Hugo,
calculou que, se investisse quatorze horas diárias de estudo, necessita-
ria de vinte anos apenas para ler as obras dedicadas a Victor Hugo dis-
poníveis na Biblioteca Nacional de Paris, além de dez anos de leitura
apenas das obras do próprio Victor Hugo.

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Essa profícua vida literária se insere num dos momentos mais agita-
dos da história da França. A Revolução Francesa ocorreu em 1789,
enquanto o escritor nasceu em 1802 – mais especificamente, no dia
26 de fevereiro de 1802 na commune de Besançon, no Doubs, leste da
Primeira República Francesa, a qual seria logo mais dissolvida. Nesse
ínterim, aconteceu a morte de Luís XVI e a ascensão de Napoleão
Bonaparte. Seu pai, Joseph Léopold Sigisbert Hugo (1774-1828), foi
general das tropas napoleônicas. Foi criado conde, segundo a tradi-
ção de sua família, por Joseph Bonaparte, rei da Espanha, e ocupava
um posto na guarnição em Doubs na época do nascimento de Victor
Hugo. Já sua mãe, Sophie Trébuchet (1772-1821), tinha origem na
burguesia de Nantes e legou uma educação fundamentalmente cató-
lica e monarquista aos filhos. O pai de Hugo lhe relata, certo dia, que
ele havia sido concebido durante uma viagem de Lunéville a Besançon,
num dos picos mais altos dos Vosges. O simbolismo das montanhas,
bem como das coisas sublimes, ficaria impresso então no imaginário
de Hugo, como podemos ver ao longo de sua poesia, por exemplo, em
“As Duas Ilhas”:

Assim, passando ao pé duma montanha,


Levamos muito tempo a contemplá-la,
Enlevados de ver seus altos píncaros,
O bosque, o verde manto que lhe pende
Do branco dorso e as nuvens que a coroam,
Amontoadas sobre a fronte erguida.

Subi... ide lá mesmo contemplá-la

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Nessas zonas aéreas. Parecia-vos
Tocar o céu, lá indo: e entre nuvens
Vos achareis perdido; tudo muda-se:
É um medonho abismo onde negrejam
Seculares pinheiros, e se cruzam
As torrentes e o fogo dos coriscos!

(As Duas Ilhas, VI. Trad. atribuída a Castro Alves)

Em 1812, seu avô é executado por conspiração contra Napoleão. Em


seguida, a monarquia é restaurada com Luís XVIII no trono, mas o
rei é deposto e exilado e Napoleão retoma o poder. Com a batalha
de Waterloo, porém, a situação novamente se inverte. Toda a agitada
conjuntura política inevitavelmente se manifestaria nos escritos e na
vida de Hugo, que não foi de modo algum um homem de vida paca-
ta, ao contrário, foi um político de grande atuação. A França estava
dividida ideologicamente, e a casa de Victor Hugo não era um local
de hegemonia, mas refletia a polaridade da própria Nação. O pai era
um deísta republicano, contrário à monarquia e aos valores religiosos
tradicionais, enquanto que a mãe era o oposto, e se acredita mesmo
que ela foi amante do general Victor Lahorie, acusado de conspiração
contra Napoleão e executado em 1812.

Impressiona muito a extensão da produção literária de Victor Hugo,


que começou a escrever quando criança e, aos treze anos, já era au-
tor de uma tragédia de 1.500 versos. Ainda adolescente, escreveu um
poema chamado Como Estudar Leva à Felicidade em Todas as Situações

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da Vida, causa de uma menção honrosa em um concurso nacional de
poesia. Logo mais, ganhou o primeiro lugar no concurso Jeux Floraux
de Toulouse e fundou, com seus irmãos mais velhos Eugène e Abel,
um jornal literário chamado Le Conservateur Littéraire, no qual publi-
cou suas odes e sua primeira novela, Bug-Jargal, escrita aos dezesseis
anos. Seu talento foi desde cedo reconhecido e, aos vinte e dois anos,
recebeu a nomeação de Chevalier de la Légion d’Honneur por Carlos
X, cuja coroação, em 1825, homenageou com uma ode. À época, o
grande gênio literário era Chateaubriand. Pré-romântico, foi o herói
da infância de Victor Hugo. O menino chegou a afirmar: “ou Cha-
teaubriand, ou nada”, tamanha era a força inspiratória que um gênio
exercia sobre o outro.

Em 1822, publica seu primeiro volume de versos, as Odes et Poésies Di-


verses, contendo todas as odes que renderam prêmios a Hugo, além de
defesas dos princípios religiosos e monárquicos, ataques ao “satânico
Bonaparte”, uma visão mística de todo o século XVIII e, numa segun-
da edição, até alguns “tributos apaixonadamente servis a Luís XVII”.
Até então, conhecia-se um Victor Hugo candidato a um movimento
de renascimento católico, incitado por padres como o Abbé de La-
mennais, que afirmou numa carta: “M. Victor Hugo tem a alma mais
pura e serenidade que já encontrei no esgoto de Paris. Ele é confiante e
não afetado. Ele dará asas ao pensamento católico, que nossos escrito-
res devotos muitas vezes arrastam pelas ruas e até mesmo pela sarjeta”.1

1 Letter to an unknown correspondent, August (?) 1821: Lamennais, II, 190.

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Também as cartas enamoradas de Hugo à sua amiga de infância, Adèle
Foucher, transmitiam o mesmo estilo.

Adèle Foucher nasceu em Paris, filha de Pierre Foucher, amigo dos pais
de Victor Hugo. Durante o namoro, Hugo escreveu cerca de 200 car-
tas de amor para Adèle, a maioria das quais foram publicadas. Eles se
casaram em outubro de 1822, mas um dos irmãos de Victor, Eugène
Hugo, também amava Adèle. Teve um colapso mental na ocasião do
matrimônio deles e foi internado numa casa de repouso.

Apesar dessa primeira fase mais conservadora, tanto em relação à for-


ma quanto à matéria de seus escritos, Victor Hugo sentia premente
em si um arrebatamento, em suas palavras endereçadas a Adèle, “uma
necessidade de dar vazão a certos pensamentos que me oprimiam e
que os versos franceses não podem conter”. Eis que escreve, então, seu
primeiro romance, com traços impetuosos o bastante para se inserir
no nascente romantismo francês. Han d’Islande é um roman à clef ca-
racterístico, narra a paixão entre Ethel Schumacher (pseudônimo para
Adèle) e Ordener Guldenlew, Barão de Thorvick (anagrama de ‘Vic-
tor’). O pai de Ethel é acusado de trair o vice-rei da Noruega e é preso.
O filho do vice-rei, Ordener, apaixona-se por Ethel e se propõe provar
a inocência do pai da amada. A mensagem secreta de Han d’Islande
permaneceu indecifrável, muito embora o romance seja um desenvol-
vimento de notas de diário que já mostravam um Hugo diferente, que
começava a perambular em cemitérios pelas noites parisienses.

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Victor Hugo publica um necrológio de Lord Byron no La Muse Fran-
çaise, o primeiro veículo de divulgação do romantismo francês. La
Muse Française era também um periódico porta-voz de um seleto gru-
po de poetas que, apesar de politicamente reacionários, eram a van-
guarda literária, a Société des Bonnes Lettres. Havia no movimento uma
tensão entre a forma literária inovadora e o conteúdo, por se dizer,
tradicionalista, que tanto incomodou Victor Hugo que, no prefácio
de suas Nouvelles Odes (1824), viu necessidade de se explicar perante
uma crítica cada vez mais crescente: “A literatura moderna pode ser o
resultado da Revolução, sem ser sua expressão”. Hugo ainda não ha-
via aderido aos ideais revolucionários, mas o romantismo passou a ser
considerado o grande inimigo da Academia Francesa de Letras e todas
essas distensões políticas, ideológicas e literárias punham Victor Hugo
constantemente diante do espelho de sua consciência, descobrindo seu
caráter cada vez mais polêmico e controverso: “E assim”, escreveu ele
no prefácio de sua primeira peça publicada, Cromwell (1827), “o autor
se entrega mais uma vez à ira dos jornalistas e se expõe aos olhos do
público, como o aleijado do Evangelho – sozinho, pobre e nu: solus,
pauper, nudus”.

A versatilidade de Victor Hugo é um dado inquestionável, tanto que


num mesmo mês de 1829 publicou o livro de versos Les Orientales e a
novela Le Dernier Jour d’un Condamné. A novela, com traços narrativos
românticos, é traçada a partir do ponto de vista de um homem conde-
nado à morte. O homem relembra sua infância e contempla o que lhe
cerca com uma assombrosa nitidez (é um monólogo interior tão mar-

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cante que, enquanto esperava o pelotão de fuzilamento, Dostoiévski
se lembrou dele). Com outros poemas e novelas publicados, aos vinte
e nove anos Victor Hugo publica um de seus mais importantes escri-
tos, a novela Notre-Dame de Paris (1831). Em 5 de junho de 1832,
aconteceu a Revolta de Paris, que num só ato poderia estabelecer uma
República, caso não fosse brutalmente repreendida. Hugo ouviu tiros
à noite, andou em direção de Les Halles e se viu preso entre as tropas
do governo e os rebeldes. Ao todo, cerca de 800 manifestantes – tan-
to legitimistas quanto socialistas, trabalhadores e burgueses – foram
mortos ou feridos. Em seu diário, Hugo escreve: “Follies se afogou
em sangue. Um dia teremos uma República e, quando vier por sua
própria vontade, será bom. Não devemos permitir que bárbaros man-
chem nossa bandeira de vermelho”. Essas reflexões, ainda incipientes e
esparsas em seu diário, terão espaço anos depois nos Miseráveis.

Em 1832, acontece a primeira e única apresentação de sua peça Le Roi


s’amuse. O herói trágico da peça, Triboulet, é um bobo da corte, por
meio de quem Victor Hugo expressa suas críticas à sociedade. Ele serve
ao rei François I, um libertino e mulherengo. Conhecendo a corrupção
da nobreza e do rei, o bobo mantém sua filha Blanche escondida em
casa, permitindo-a apenas ir à missa. A moça, porém, é seduzida na
Igreja pelo rei disfarçado de religioso. Blanche é raptada por cortesãos e
levada ao rei. Triboulet contrata um assassino para se vingar. O assassi-
no, porém, tem uma irmã que também é amante do rei, a qual pede que
seja poupada a vida de François I e entregue qualquer cadáver ao bobo

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no lugar. Blanche é morta e entregue no lugar do rei e a peça acaba com
os clamores de desespero de Triboulet: “Eu matei minha filha!”.

A peça foi imediatamente banida por ser considerada subversiva. A


censura, que deveria não mais existir desde 1830, revoltou Hugo, que
proferiu um discurso contra a falta de liberdade e contra a hipocrisia
do Governo. Sua próxima ação foi declinar o patrocínio governamen-
tal que recebia como escritor, em prol de sua liberdade de expressão.
Seu discurso contra a censura de sua peça argumentava que, se então a
liberdade de poeta lhe era tirada por um censor, depois a liberdade de
cidadão lhe seria tirada por um policial; se então era banido do teatro,
em seguida seria banido da terra; se então era amordaçado, depois seria
deportado; se então havia um estado de sítio na Literatura, depois o
estado de sítio seria na própria nação. Nada mais decisivo e profético
(mesmo que talvez se tratasse de uma profecia autorrealizável) para
a sua vida, marcada por um longo exílio político. Em suas próximas
peças, a revolta política já lhe move a bílis, a ponto de prefaciar em
Lucrèce Borgia que “a obra literária e a luta política doravante serão
empreendidas simultaneamente. É possível fazer o trabalho e o dever
ao mesmo tempo. O homem tem duas mãos”.

Eleito em 1841 para a cátedra de Corneille na Académie Française,


proferiu um discurso em que elogiou Napoleão Bonaparte, “o homem
que teria feito Pascal um senador e Corneille um ministro”.2 Quatro
anos depois, é apontado para o ressurgente título nobre de Pair de

2 Le Rhin, Lettres à un Ami.

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France e, enquanto galgava prestígio na Sociedade, preparava os esbo-
ços de sua grande obra Les Misérables.

DURANTE O EXÍLIO

Em 1851, porém, Napoleão III dá o golpe de Estado e estabelece o


Segundo Império Francês. Victor Hugo, então, inicia a vida de exílio.
Isso se explica porque, durante o golpe de estado de 2 de dezembro
de 1851 por Napoleão Bonaparte, Victor Hugo tomou parte numa
tentativa de resistência. Tendo se tornado oponente do poder, preci-
sou partir para Bruxelas em 11 de dezembro, início de um exílio que
duraria dezenove anos. Um mês depois, o decreto de proscrição de 9
de janeiro de 1852 ordenou a expulsão do território francês, por razões
de segurança geral, de sessenta e seis ex-deputados à Assembleia Legis-
lativa, incluindo Victor Hugo. Algum tempo depois, é concedida uma
anistia política a eles. Victor Hugo, porém, é o único a não aceitá-la,
afirmando: “se sobrar apenas um, serei eu!”.

Seu exílio em Bruxelas se iniciou em 12 de dezembro de 1851 e durou


oito meses. Ali, inicia a escrita de Histoire d’un crime, além do panfleto
político contra Napoleão III, sob o título de Napoléon le Petit, que foi
distribuído clandestinamente por toda a França. Pelo perigo da publi-
cação, porém, Victor Hugo e sua família se mudam para Jersey, ilha
anglo-normanda sob proteção da Inglaterra.

Chega em Jersey, em agosto de 1852, onde sua esposa e sua filha já o


esperavam. À época, Victor Hugo tinha um caso extra-conjugal com

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Juliette Drouet. Esta também se muda para a vizinhança para manter
o caso com o escritor. A família passa a morar à beira-mar, e, de novo,
mais um elemento da natureza e todo o seu profundo simbolismo são
introjetados na alma sensível de Victor Hugo, como podemos teste-
munhar num poema seu, em que compara o mar ao povo:

AO POVO
(À borda do oceano)

Assemelha-se a ti; terrível e pacífico


Ele é sob o infinito o nível magnífico.
O movimento tem e tem a imensidade.
Dando-lhe um brilho a calma e um sopro a tempestade,
Ora é ele harmonia e ora é grito feio.
Os monstros estão bem no seu profundo seio;
Ah! germina a tromba; e aqueles que investiram
Ignotos pegos seus jamais deles surgiram.
O colosso desfaz-se em sua face caos,
E como tu o déspota, ele destrói as naus.
Como há razão em ti, sobre ele há o fanal;
Só Deus sabe por que faz ele o bem e o mal.
Sua vaga, onde se crê ouvir sons da armadura;
De monstruoso ruído enche a noite obscura;
Como em ti, vivo abismo, a ira nela está,
Se ela ontem rugiu, hoje devorará.
É lâmina a sua onda, assim como uma espada.
E ele canta enorme hino à Vênus levantada.

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Na vasta dimensão, azul universal,
Todos os astros têm a cúpula ideal.
A força rude tem, tem a soberba graça,
Respeita um ramo de erva e a rocha despedaça.
Como tu, ele a espuma atira à sumidade,
Povo, somente o mar não mente à lealdade,
Quando, fixo o olhar, na sacra borda, em pé,
Pensativo, se espera a hora da maré.

Também ali Victor Hugo escreve os Châtiments, uma coleção de poe-


mas satíricos que criticavam o Segundo Império e Napoleão III e vá-
rios poemas que viriam a compor suas Les Contemplations. Em Jersey
é que Victor Hugo é iniciado nas mesas espíritas, por influência de
Delphine de Girardin. As sessões espíritas foram transcritas por Vic-
tor Hugo em Le livre des Tables. Numa dessas experiências, ele afirma
ter recebido a seguinte mensagem: “A verdadeira religião proclama o
novo evangelho: é uma imensa ternura pelos ferozes, pelos infames,
pelos bandidos”, e então faz sua opção preferencial pelos oprimidos e
confirma seus valores revolucionários e sua luta social.

Um exemplo disso é que Victor Hugo intensificou sua luta contra a


pena de morte, opondo-se à execução de John Tapner, condenado à
morte em Guernsey por assassinato. No dia seguinte à execução do
criminoso, Victor Hugo escreveu uma carta a Lord Palmerston, Mi-
nistro do Interior inglês, opondo-se ferrenhamente à pena. Marcado
por este acontecimento, produz Le Pendu, gravura que representa sua
luta contra a pena de morte (durante o exílio, Victor Hugo se dedica a

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ampliar suas manifestações artísticas, experimentando as artes plásticas
também).

Aconteceu que três franceses exilados escreveram num jornal um tex-


to, opondo-se à visita da Rainha Vitória a Napoleão III, o que levou
à expulsão deles de Jersey. Victor Hugo e outros exilados publicaram,
então, uma manifestação de apoio aos três companheiros, e disso se su-
cedeu a expulsão de Victor Hugo e sua família de Jersey, donde saíram
em 1855, mudando-se para a ilha vizinha, Guernesey, onde termina a
escrita de Les Misérables (1862) e, quatro anos depois, publica Les Tra-
vailleurs de la Mer. Foi em 18 de agosto de 1859 que ele anunciou sua
recusa em retornar à França, apesar da anistia imperial, declarando:
“Fiel ao compromisso que assumi com minha consciência, comparti-
lharei o exílio da França até o fim. Liberdade!”. Em setembro de 1859,
publicou a primeira série de La Légende des siècles. Entre 1860 e 1861,
Victor Hugo trabalhou principalmente na escrita de Les Misérables,
que foi publicado em 1862 e teve um enorme sucesso.

Os Miseráveis é um romance histórico, social e filosófico, através do


qual Victor Hugo consegue exprimir com maestria os ideais do ro-
mantismo e sua concepção própria acerca da condição humana. Toda
a trama se passa no início do século XIX, entre a batalha de Waterloo e
junho de 32. Por longos cinco volumes, a narrativa acompanha a vida
de Jean Valjean, desde sua saída da prisão até a sua morte. Com ricas
descrições da miséria humana, personificada nos rostos que transitam
pela vida do protagonista, a história consegue ser um romance realista
e ao mesmo tempo épico, por retratar também as grandes batalhas do

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período. Quanto ao conteúdo, trata-se de uma narrativa em louvor
do amor, que se revela em diversas formas no contexto de cada perso-
nagem, mas, principalmente, de uma denúncia das injustiças sociais
que Victor Hugo presenciava. Sobre isso, escreve em Hauteville-Hou-
se (1862):

“Enquanto existir, em virtude das leis e costumes, uma da-


nação social criando artificialmente, em plena civilização, o
inferno, e complicando com uma fatalidade humana o des-
tino que é divino; enquanto os três problemas do século, a
degradação do homem pelo proletariado, a degradação das
mulheres pela fome, a atrofia da criança à noite, não forem
resolvidos; contanto que, em certas regiões, a asfixia social
seja possível; em outras palavras, e de um ponto de vista ain-
da mais amplo, enquanto houver ignorância e miséria na ter-
ra, os livros dessa natureza podem não ser inúteis”.

DEPOIS DO EXÍLIO

Victor Hugo permanece em exílio até 1870, quando da queda de Na-


poleão III e proclamação da Terceira República. Ele volta como um
verdadeiro herói nacional, com grande aclamação pública e com a
confiança em sua carreira política. Após seu retorno do exílio, atuou
mais intensamente que nunca na vida política. Nas suas anotações do
período, há uma confissão: “Ditadura é crime. É um crime que vou
cometer”.

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Em 1871, Victor Hugo retorna a Guernsey, onde escreveu o romance
Quatrevingt-treize. Em 1873, volta para Paris e se dedica à educação
de seus dois netos, Georges e Jeanne, que o inspiram a escrever A Arte
de ser Avô. Victor Hugo se tornou guardião dos netos, porque seu filho
Charles teve um AVC e faleceu. Seguidamente, sua nora também fa-
leceu. A Arte de ser Avô é uma coleção de poemas carregada de ternura
e sentimento de responsabilidade sobre as duas delicadas criaturas que
lhe foram confiadas pela fatalidade do destino. Velhice e infância se
encontram e suavizam as dores e necessidades uma da outra. Cenas
prosaicas, como uma ida ao zoológico ou a um parque, a companhia
inocente e alegre das crianças, tudo isso faz parte da ambientação dos
poemas e cristaliza a experiência vívida de Victor Hugo em sua velhice.

Neste período, o escritor recebe a visita e é prestigiado por muitos li-


teratos e políticos, entre eles, até o Imperador do Brasil. Na ocasião de
seu aniversário de oitenta anos, houve uma festividade verdadeiramen-
te digna de um rei. Nunca outro escritor vivo havia recebido tamanha
homenagem, com três dias de desfiles e culto à sua honra por toda a
Paris. Sentado à janela de sua casa, Victor Hugo foi prestigiado por
uma imensa aglomeração que desfilou por impressionantes seis horas.
Um dia depois, a cidade de Paris mudou o nome da Avenue d’Eylau
para Avenue Victor-Hugo.

Num curto intervalo de tempo, porém, ele sofreu um derrame leve,


sua filha Adèle foi internada num asilo de loucos e seus dois filhos
morreram. Sua esposa Adèle morre em 1868. Em 1876, foi eleito para
o Senado, onde a sua principal luta era obter a anistia para todos os

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que haviam participado da Comuna de Paris, causa pela qual precisou
batalhar até 1880. Ao final de sua carreira, quando reuniu seus escritos
esparsos, ele próprio dividiu sua produção em três partes: antes, du-
rante e depois do exílio. Foi em 1878 que Victor Hugo sofreu o der-
rame do qual não conseguiu mais recuperar o vigor literário. Porém,
sua produção inédita era tão vasta que supriu qualquer suspeita do
público. Publica obras escritas décadas antes, como La Pitié Suprème,
Religions et religion e Les Quatre Vents de l’esprit. Morre em 1885, dei-
xando ainda uma vasta coleção de obras inéditas. Adentra, assim, na
imortalidade literária.

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Os
Trabalhadores
do Mar
Apresentação
Les Travailleurs de la Mer foi publicado pela primeira vez em Bruxelas,
em 1866. Uma tradução em inglês foi publicada no mesmo ano em
Nova York. No ano seguinte, é feita uma publicação da tradução de
Sir G. Campbell, sob o título Workers of the Sea. Hugo havia escrito o
ensaio L’Archipel de la Manche (O Arquipélago do Canal da Mancha)
como uma introdução ao romance, mas somente após a sua morte se
cumpriu o desejo de ambos serem publicados juntos.

Na França, Victor Hugo é considerado, antes de tudo, um dos maio-


res poetas da nação e, dada as dificuldades intrínsecas de tradução de
poesia, o que chega ao grande público brasileiro de suas obras ainda
é, majoritariamente, a prosa, muito embora Victor Hugo tenha sido
uma grande inspiração aos poetas brasileiros. Álvares de Azevedo, a seu
respeito, canta:

Na minha sala três retratos pendem:


Alli —Victor Hugo. Na larga fronte
Erguidos luzem os cabelos louros
Como c’rôa soberba. Homem sublime,
O poeta de Deus e amores puros

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Que sonhou Triboulet, Marion Delorme,
E Esmeralda a Cigana.

Castro Alves, Pedro de Calasans, Tobias Barreto, Ramos da Costa,


Casimiro de Abreu, Guerra Junqueiro e tantos outros ilustres poetas
brasileiros têm versos a respeito do gênio literário de Victor Hugo,
tamanha foi a sua ressonância na intelectualidade brasileira. Nas Heras
e Violetas, de Guilherme Braga, encontramos esta preciosidade sobre
um livro de Victor Hugo:

Quando, à noite, o suor da minha fronte enxugo,


E aos livros vou pedir um instante de paz,
Não sei que estranho ardor, se leio Victor Hugo,
O autor das Orientais ao coração me traz.

Brilha uma nova luz n’aquelle novo estilo!


Ora, é Napoleão calcando o mundo aos pés,
Ora, manso a boiar sobre as águas do Nilo,
Como um nevado cisne, o berço de Moisés...

Às vezes mesmo eu chego a murmurar de susto


Pensando que no livro, onde leio a estudar,
Uma águia levanta o seu voo robusto
Dos antros d’um vulcão que vejo rebentar.

Porém, mesmo na leitura de suas novelas, vale a pena lembrar que Vic-
tor Hugo educou seu ouvido desde a mais tenra infância, não havendo
para ele processo criativo que não carregasse em si a musicalidade que

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os poetas ouvem em tudo o que se lhes apresenta. O leitor deve prestar
atenção em como Victor Hugo se esmera em criar um espaço textual
que minimize a importância da simples narrativa cronológica, dando
lugar à construção psicológica da narrativa. O capítulo inicial, “Pala-
vra escrita em uma página branca”, evoca tanto o começo do que será
narrado, quanto o fato de maior valor para o herói. O próprio Hugo
assinala como notável (“notável” aparece na primeira frase) e impõe
imagens determinantes: é Dia de Natal na ilha de Guernesey; três fi-
guras – uma criança, uma jovem e um homem andando na mesma
direção, mas a uma distância de trinta metros um do outro; o silêncio
reina. Entre essas figuras não há uma conexão visível. A certa altura, a
jovem nessa paisagem onírica se vira brevemente, para e com o dedo
escreve algo na neve. Quando o homem chega ao local, ele vê seu pró-
prio nome inscrito na neve como em uma página em branco que inicia
uma história. Ele também continua a andar – embora agora absorto
em pensamentos.

O leitor brasileiro, mesmo que saiba francês, tem a vantagem e o privi-


légio de se aproximar dessa obra na tradução feita pelo gênio literário
– que também era poeta – Machado de Assis. A experiência da leitu-
ra dessa tradução propicia um entendimento de várias características
machadianas que muito provavelmente são reverberações do estilo de
Hugo. A divisão capitular mais direta e seca, entremeando fatos com
pequenas divagações, é um elemento que encontramos tanto nessa
obra quanto nos romances de Machado. Outra caraterística que Ma-
chado de Assis soube preservar nos Trabalhadores do Mar é o fato dessa

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obra poder ser lida como um experimento em prosa poética de van-
guarda, pois é carregado de figuras típicas da poesia, como a aliteração,
a metáfora, a elipse e a sonoridade das frases.

A obra é dedicada à ilha de Guernesey, onde Victor Hugo encontrou


abrigo político, num exílio autoinfligido durante o governo de Na-
poleão III. Da Ilha e da experiência que o mar imprime em seus mo-
radores, ele relata no início do livro: “Nas ilhas como Guernesey, a
população é composta de homens que passaram a vida a andar à roda
do campo, e de homens que passaram a vida a viajar à roda do mundo.
São duas espécies de lavradores, uns da terra, outros do mar”.

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Resumo
A narrativa começa com um evento marcante na memória do herói
Gilliatt. Tal como uma palavra escrita numa página branca – o iní-
cio de tudo – foi a escrita de seu nome na neve, feita por uma bela
mocinha da ilha, Déruchette: “Casualmente, tinha os olhos baixos, e
assim os levou maquinalmente ao lugar em que parara a menina. Dois
pezinhos aí estavam impressos e ao lado deles a palavra escrita por ela:
Gilliatt”. Gilliatt não era estimado na Ilha, pois as pessoas acreditavam
que ele fosse uma espécie de feiticeiro. Tal crença vinha do fato de que,
quando sua mãe chegou com ele em Guernesey, vindos de não se sabe
onde, comprou uma casa que diziam ser mal-assombrada.

A mãe de Gilliatt morre, tendo o cuidado de guardar para o filho um


enxoval feminino para quando ele se casasse. O luto e a solidão, po-
rém, tornam o rapaz um pescador solitário de hábitos taciturnos: “Gil-
liatt era moço, a ferida cicatrizou. Naquela idade as carnes do coração
tornam a unir-se. A tristeza, dissipando-se-lhe a pouco e pouco, mis-
turou-se à natureza em redor dele, tornou-se uma espécie de encanto,
atraiu-o para perto das coisas e longe dos homens, e amalgamou cada
vez mais aquela alma e a solidão”. Nessa ambientação inicial, conhece-
mos quem é Gilliatt, como e onde vive. Há uma aproximação inicial

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com a personagem, que a coloca ainda envolta numa amálgama de
mistério e simplicidade. Caracterizado como um pescador de Guerne-
sey, carrega em si os traços de um verdadeiro homem do mar: “À força
de trepar aos rochedos, de escalar os declives, de navegar no arquipéla-
go, qualquer que fosse o tempo, de manobrar a primeira embarcação
que aparecesse, de arriscar-se de dia e noite nos canais difíceis, tornou-
-se, sem tirar lucro disso, e só por fantasia e satisfação, um admirável
homem do mar. Nasceu piloto. O verdadeiro piloto é o marinheiro
que navega mais no fundo do que na superfície. […] Naquela pesada
chalupa é que ele ia à pesca. [...] Ao cair da noite, atirava a rede às cos-
tas [...] e saltava na barca. Daí fazia-se ao mar”.

Alguns diziam que ele era filho do demônio, outros que ele tinha o po-
der de curar as pessoas, mas, acima de tudo, sua condição de solitário
lhe permitia entrar em contato com o sonho: “Gilliatt era o homem
do sonho. Vinham daí suas audácias e as suas hesitações [...]. A solidão
desprende uma certa quantidade de desvario sublime”. Assim, entra-
mos em contato com o próprio fenômeno da solidão humana, com a
condição de exílio. Sua mãe era estrangeira e ele era tido como alguém
de fora, de costumes alheios aos da Ilha onde habitava. Da mesma for-
ma, todos nós sentimos em alguma medida a própria existência como
uma condição de exílio, e a luta que Gilliatt travará contra a Natureza
para ser tido como um semelhante entre os habitantes de Guernesey
representa os esforços que o homem empreende para se integrar à pró-
pria condição humana.

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Em Guernesey também vive um ex-marinheiro, Mess Lethierry: “Mess
Lethierry, o homem notável de Saint-Sampson, era um marinheiro
terrível. Tinha navegado muito. Foi grumete, gajeiro, timoneiro, con-
tramestre, mestre de equipagem, piloto, arrais. Agora era armador.
Ninguém conhecia o mar como ele. Era intrépido para salvar gente”.
Além dessas características de grande marinheiro, ele era o proprietário
do primeiro navio a vapor da ilha, mas a invenção não era bem vista
no local: “Não era tão grande a calma a respeito de tais invenções no
primeiro quarto do nosso século, e estas máquinas fumegantes eram
particularmente suspeitas entre os insulares da Mancha”.

Mess Lethierry vivia com sua sobrinha, Deruchette, a moça do escrito


na neve. Seu navio de sucesso, Durande, e Déruchette eram os dois
amores de sua vida. Chegado o tempo em que Mess Lethierry não
mais podia navegar, escolheu como capitão de confiança de Duran-
de o Sr. Clubin, homem de boa reputação. O povoado, sempre com
suas superstições, era averso à ideia de água e fogo unidos num navio,
por isso se opunham às inovações marítimas de Mess Lethierry. Po-
rém, conforme tais inovações lhe traziam mais e mais dinheiro, Mess
Lethierry foi subindo na escala social, tornou-se mess, mas seus dois
amores o levavam a desdenhar das honrarias.

Déruchette foi muito bem criada por seu tio, que conseguia com Du-
rande um bom dinheiro para o futuro da moça. Era uma jovem de ex-
cepcional delicadeza, gostava de cuidar do jardim e de tocar ao piano
a melodia Bonny Dundee, mas também leve e de poucas responsabili-
dades na vida. Ia crescendo, mas não se casava. Tanto ela, quanto o tio

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eram exigentes, e este queria desposar não só a sobrinha, mas também
o navio com um só genro que pudesse cuidar de ambos os seus amores.
Com o tempo, Gilliatt se apaixona por Deruchette, frequenta os arre-
dores de sua casa para ouvi-la e chega mesmo a tocar na gaita de fole a
mesma canção que a moça tocava ao piano.

Sr. Clubin, o capitão de confiança da Durande, tinha uma rotina fixa


com as navegações, hospedava-se numa pousada junto ao porto cha-
mada Pousada João, em cujo bar encontrava outros marinheiros com
quem podia conversar. Sr. Clubin trama um plano para afundar o na-
vio nas ilhas de Hanói e fugir com um navio de contrabandistas espa-
nhóis, Tamaulipas. Havia muito contrabando na Iha, e um comércio
ilegal que se desenvolvia às noites em Plainmont, lugar de casas aban-
donadas e tidas como assombradas. Numa ocasião, encomenda de um
marinheiro um revólver, usado dias depois para assaltar Rantaine, um
antigo sócio que havia dado um golpe em Mess Lethierry. Tomando-
-lhe o dinheiro, volta à Pousada João, onde um velho marinheiro prevê
a vinda de uma grande tempestade e névoas.

No outro dia, a Durande zarpa com uma pequena tripulação e pou-


cos carregamentos. O timoneiro, Tangrouille, havia se embebedado
com uma garrafa de conhaque que misteriosamente havia aparecido
na despensa do navio, onde ele bebia às escondidas. E, em meio a uma
conversa entre os tripulantes, vê-se aproximar um nevoeiro. Sr. Clubin
acusa Tangrouille de beberrão e, em meio ao mau tempo, apressa o
navio, colocando a culpa do tempo perdido no timoneiro. Todos ad-
miram as qualidades de bom capitão de Sr. Clubin, mas a situação sai

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do controle, e a Durande começa a naufragar. O capitão põe toda a tri-
pulação numa chalupa, mas se recusa a ir junto, afirmando que “quan-
do o navio se perde, morre o capitão”, fazendo-se herói do ocorrido.
No denso nevoeiro, Clubin navegaria para os penhascos de Hanói, de
onde poderia nadar facilmente até a costa, encontrar os contrabandis-
tas e desaparecer, deixando a aparência de ter se afogado. Esse era seu
plano, afortunar-se e desaparecer, dado por morto e bem afamado. Em
vez disso, ele se perde e navega para os rochedos Douvres, que estão
muito mais longe da costa, lugar desértico e horrível. Tem o plano,
então, de ser avistado por algum navio que passasse para ser salvo. De-
veria nadar, porém, até o Rochedo Homem para tal. Quando se atira
ao mar, sente-se agarrado pela perna e puxado para o fundo.

Todos em Guernesey ficam sabendo do naufrágio. Gilliatt, avesso às


murmurações, vai pessoalmente à casa de Mess Lethierry para saber o
que houve. Encontra-o atônito e triste. Tendo o Sr. Clubin já tido por
herói que se sacrificou pela Durande, a máquina encalhada e prestes
a se perder passa a ser a grande preocupação das conversas, e Mess
Lethierry fica desesperado para ter o motor da Durande de volta. Dé-
ruchette, confirmada pelo tio, declara que se casaria com o salvador
da máquina, ao que Gilliatt imediatamente assume a perigosa missão,
suportando fome, sede e frio na tentativa de libertar o motor dos des-
troços. Desse modo se dá o chamado à aventura do herói. Gilliatt se
depara com o conflito entre a Natureza e o Progresso humano, ma-
terializado na tempestade que afunda o navio a vapor. Tomado pelo
amor por Déruchette e vislumbrando a possibilidade de se casar com

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ela, sai de sua zona de conforto e aceita a missão confiada por Mess
Lethierry. A conquista do motor do navio significa, de modo geral, a
conquista do progresso humano sobre a Natureza e, de modo particu-
lar, a conquista do destino de sua própria vida.

Um novo pároco se apresenta à comunidade, acompanhado de um


jovem e belo companheiro de religião, o Sr. Ebenezer. Os dois padres
fazem visitas aos notáveis da Ilha e, portanto, a Mess Lethierry. Após
dar um sermão de consolo e desprendimento dos bens materiais, o
padre mais velho oferece a Mess Lethierry uma oportunidade de as-
sociar-se a um opulento investimento em armas (em prol da opressão
do czar à Polônia). O reverendo defende também a escravidão e, por
último, propõe-se introduzir Mess Lethierry em algum cargo público,
defendendo ainda a pena de morte. A imagem do padre era tudo a
que Mess Lethierry tinha repulsas, mas ele ainda aceita que leiam um
trecho das Sagradas Escrituras. O trecho escolhido foi o do encontro
amoroso entre Isaac e Rebeca, o que causa uma troca de olhares entre
Déruchette e Ebenezer.

Gilliatt chega, em sua pança, aos rochedos Douvres e passa por muitas
dificuldades para conseguir se instalar perto dos escombros. A Durande,
ou o que restou do navio, estava aos pedaços, e parecia ser necessária
uma porção de homens para fazer o trabalho que Gilliatt se propôs fazer
sozinho. Despendeu muitos dias explorando os escombros e o lugar, até
encontrar uma caverna fantástica. E, na cava, tem a experiência de se
deparar com alguma coisa quimérica e inexprimível.

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Continuando o trabalho nos escombros do navio, viu-se impedido
pela prudência de desmontar o maquinário do motor. Mas, engenhoso
que era, viu que o maquinário cabia em sua pança e, com dificuldade,
elabora uma espécie de guincho para o maquinário da Durande. O
trabalho esgotava todas as provisões de Gilliatt, mas sua teimosia em
cumprir a missão era maior, fato que o levou a conseguir transportar o
motor das rochas para a sua embarcação.

O lugar é tomado por fortes ventos que colocam Gilliatt numa situa-
ção ainda mais perigosa. Logo, vê-se em meio a mais forte tempestade
e tem de tirar forças de si mesmo para enfrentar a Natureza, uma das
três grandes lutas do homem.

Após a grande batalha, Gilliatt sentiu fome. Voltou à cava onde ou-
trora encontrara frutos do mar (e a criatura sinistra). De repente, uma
coisa pegajosa o agarra pelo braço, chicoteia-lhe com tentáculos: era
uma pieuvre, uma monstruosidade quimérica, a própria encarnação do
mistério do mal feita criatura e que, agora, envolvia e sufocava Gilliatt.
O herói, com uma faca em riste, consegue aproveitar o exato segundo
em que o monstro estica a cabeça e lhe desfere um golpe mortal.

Tendo vencido a criatura horrenda, vê como que em alucinação, um


esqueleto ridente. Identificando os pertences, descobriu que se tratava
de Sr. Clubin. A água subia em sua pança e já não tinha mais tem-
po a perder, pois precisava voltar antes que perdesse todo o trabalho
empreendido. Extenuado, desmaia até que sua embarcação aproa em
Guernesey.

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Mess Lethierry, enquanto isso, recebe uma carta de seu antigo sócio,
contando-lhe que restituíra ao Sr. Clubin o dinheiro roubado. Ele fica
abatido pela notícia, até encontrar no porto o seu maquinário voltando
intacto na pança de Gilliatt, o herói que mal desembarca e se dirige apai-
xonadamente à janela da amada para tão somente imaginá-la ali. Mais
que isso, ele a viu no jardim. Ouviu também um ruído, um suspiro de
surpresa da moça e uma voz de homem: o jovem padre declara seu amor
e pede Dèrruchette em casamento. Ela, por sua vez, corresponde a jura
de amor e Gilliatt, ferido, desaparece da cena.

Mess Lethierry, vendo se aproximar novamente o herói, fica muito


satisfeito e se põe pronto para honrar sua promessa. Gilliatt aparece
na frente do povo como o salvador, mas ele se recusa a se casar com
Deruchette porque a viu aceitando uma proposta de casamento feita
por Ebenezer, o que deixa o marinheiro indignado e tenta obrigá-los a
um casamento forçado.

Gilliatt surpreende o casal de apaixonados num encontro em que de-


cidiam se despedir. Ele organiza o casamento apressado do jovem pa-
dre anglicano e os ajuda a fugir no veleiro Cashmere. Abnegando-se
da caixa deixada por sua mãe, como quem se abnega de tudo o mais
na vida, Gilliatt presenteia a jovem com o enxoval de noiva. No final,
assim como a neve do início do livro derreteu o nome nela riscado,
o herói decide esperar a maré sentado na rocha em formato de trono
Gild-Holm’Ur e se afoga enquanto vê o Cashmere desaparecer no hori-
zonte. O romance termina como começa: com um apagamento.

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Gilliatt e a Natureza
A literatura do século XIX possui o topos da luta entre o homem e a
natureza, pois havia uma ideia de progresso que incentivava a reflexão
acerca da dominação dos recursos naturais. A figura clássica de Prome-
teu começa a ressurgir, e vemos no herói Gilliatt traços característicos
dessa luta do homem que descobre segredos da natureza e aproveita as
forças naturais para a construção de si mesmo como herói. Heroísmo,
aqui, no sentido romântico (e não clássico) do termo, em que o ho-
mem consegue fazer frente a seu próprio Destino, vencendo as forças
que se apresentam como superiores, sejam elas os Elementos, seja a
própria Natureza ou o Fado.

No prólogo d’Os Trabalhadores do Mar, é possível compreender a in-


tenção de Victor Hugo de inserir a trama num conjunto mais amplo
de obras que expõe o que ele entende por “tríplice ananke” (tríplice
fado): a religião, a sociedade e a natureza. Ele entende que a religião,
a sociedade e a natureza são as três lutas do homem. Porém, mais que
lutas, essas três fatalidades são também três necessidades da alma hu-
mana, que “precisa crer, daí o templo; precisa criar, daí a cidade; pre-
cisa viver, daí a charrua e o navio”. Assim, ele indica que a mensagem
da obra é completada pelas de Notre-Dame de Paris e d’Os Miseráveis.

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Nesses seus dois romances precedentes, ele havia representado, respec-
tivamente, a ananke dos dogmas e a das leis. Em Os Trabalhadores do
Mar, explora por fim a ananke dos Elementos.

Tal concepção foi compreendida, à época, como uma concepção fata-


lista da realidade humana, porém Victor Hugo fez questão de enfatizar
que não era a sua concepção de vida a passividade humana frente ao
Fado. No prefácio de O Homem que Ri, anos após a publicação de Os
Trabalhadores do Mar, Victor Hugo rejeita a imputação de fatalismo
que a crítica lhe dá, defendendo que o conjunto de sua obra era, na
verdade, “uma série de afirmações da alma”, pois, em cada uma das
representações dessa tríplice luta, havia ainda a primazia do poder hu-
mano sobre as fatalidades.

Tais afirmações não são, no entanto, tão fáceis de extrair da leitura,


pois, sendo antes de tudo lutas, há a necessidade da construção traba-
lhosa (e muitas vezes ambígua) dessa afirmação humana, sugerindo até
um caráter dúbio ao poder do homem sobre seu próprio destino. Um
forte exemplo do peso da fatalidade aparece quando do naufrágio da
Durande, pois Victor Hugo narra o estado de alma de Mess Lethierry
dizendo que “ser impotente é uma força. Diante das nossas duas gran-
des cegueiras, o destino e a natureza, é na sua impotência que o ho-
mem acha o ponto de apoio, a oração”, salientando, porém, que Mess
Lethierry não orava. Outrora, o marinheiro era o maior entusiasta do
domínio humano sobre a natureza, a respeito do qual Hugo narra: “a
navegação a vapor é uma espécie de vitória perpétua que o gênio hu-
mano vai ganhando todas as horas do dia em todos os pontos do mar.

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A navegação a vapor é admirável porque disciplina o navio. Diminui
a obediência ao vento e aumenta a obediência ao homem”. Tornava-
-se, agora, Mess Lethierry uma vítima da fatalidade, portanto?! Victor
Hugo também afirma, em outra digressão, que “o homem é o paciente
dos acontecimentos. A vida é um perpétuo sucesso, imposto ao ho-
mem. O homem não sabe de que lado virá a brusca descida do acaso.
As catástrofes e as felicidades entram e saem como personagens ines-
peradas. Têm a sua fé, a sua órbita, a sua gravitação fora do homem”.

Por outro lado, Gilliatt é desenhado como uma figura afirmativa,


descobrindo os segredos da natureza e aproveitando suas forças para
vencer seu próprio destino. Essas descrições desafiam a visão que ele
expressa de que o progresso é um movimento inevitável em direção ao
ideal conduzido por Deus e fora das mãos dos indivíduos. Ao longo
da obra, é posto em dúvida se o progresso é provocado pelo esforço
humano ou por alguma força maior, como a Natureza.

A luta de Gilliatt é uma metáfora para a resposta que Victor Hugo


buscava desenvolver como poeta-filósofo.3 E ele de fato salva o fru-
to do progresso humano, o motor do navio, do ataque da Natureza,
representada na tempestade. Seu prêmio seria o casamento com uma
moradora da Ilha e a integração de Gilliatt na Ilha não somente como
um deles, mas, além, como um herói. O que ocorre, porém, é que
mesmo isso se lhe escapa, ao ver que Déruchette amava a outro: “às

3 Paul Bénichou, em seu artigo “Les Mages romantiques”, afirma que Hugo, como todo deísta
socialista de sua época, recusa-se a escolher entre as ideias contraditórias de que o homem está
no controle ou de que somos movidos por uma força superior.

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três fatalidades que envolvem o homem junta-se a fatalidade interior,
o ananke supremo, o coração humano”. Gilliatt vence, de fato, a luta
contra a Natureza e faz frente a ela. Quando se trata, porém, do cora-
ção humano, sua força é a impotência. Abnega-se da herança materna,
do amor de Déruchette e da própria vida, afunda no mar como a neve
que derrete. Essa dialética faz parte da caracterização de Victor Hugo
como um autor romântico: quando se trata da Natureza, o homem
está sempre pendendo entre a harmonia e a dúvida.

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Referências
HUGO, Victor. Hugonianas, Poesias de Victor Hugo Traduzidas por
Poetas Brasileiros. Imprensa Nacional, 1885.

ROBB, Graham. Victor Hugo, uma biografia. Editora Record, 2001.

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