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OS
TRABALHADORES
DO MAR
Índice
INFÂNCIA E JUVENTUDE
Mais que autor de inúmeras frases que circulam pelas redes sociais,
Victor Hugo é um dos maiores poetas de língua francesa. Foi também
dramaturgo, novelista, romancista e até designer de interiores, além de
ativista dos direitos humanos e político com grande influência social.
É mundialmente conhecido pelas obras Les Misérables e Notre-Dame
de Paris, mas sua vida e obra tem tantos marcos interessantes que, certa
vez, Jean-Marc Hovasse, um dos maiores biógrafos de Victor Hugo,
calculou que, se investisse quatorze horas diárias de estudo, necessita-
ria de vinte anos apenas para ler as obras dedicadas a Victor Hugo dis-
poníveis na Biblioteca Nacional de Paris, além de dez anos de leitura
apenas das obras do próprio Victor Hugo.
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Essa profícua vida literária se insere num dos momentos mais agita-
dos da história da França. A Revolução Francesa ocorreu em 1789,
enquanto o escritor nasceu em 1802 – mais especificamente, no dia
26 de fevereiro de 1802 na commune de Besançon, no Doubs, leste da
Primeira República Francesa, a qual seria logo mais dissolvida. Nesse
ínterim, aconteceu a morte de Luís XVI e a ascensão de Napoleão
Bonaparte. Seu pai, Joseph Léopold Sigisbert Hugo (1774-1828), foi
general das tropas napoleônicas. Foi criado conde, segundo a tradi-
ção de sua família, por Joseph Bonaparte, rei da Espanha, e ocupava
um posto na guarnição em Doubs na época do nascimento de Victor
Hugo. Já sua mãe, Sophie Trébuchet (1772-1821), tinha origem na
burguesia de Nantes e legou uma educação fundamentalmente cató-
lica e monarquista aos filhos. O pai de Hugo lhe relata, certo dia, que
ele havia sido concebido durante uma viagem de Lunéville a Besançon,
num dos picos mais altos dos Vosges. O simbolismo das montanhas,
bem como das coisas sublimes, ficaria impresso então no imaginário
de Hugo, como podemos ver ao longo de sua poesia, por exemplo, em
“As Duas Ilhas”:
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Nessas zonas aéreas. Parecia-vos
Tocar o céu, lá indo: e entre nuvens
Vos achareis perdido; tudo muda-se:
É um medonho abismo onde negrejam
Seculares pinheiros, e se cruzam
As torrentes e o fogo dos coriscos!
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da Vida, causa de uma menção honrosa em um concurso nacional de
poesia. Logo mais, ganhou o primeiro lugar no concurso Jeux Floraux
de Toulouse e fundou, com seus irmãos mais velhos Eugène e Abel,
um jornal literário chamado Le Conservateur Littéraire, no qual publi-
cou suas odes e sua primeira novela, Bug-Jargal, escrita aos dezesseis
anos. Seu talento foi desde cedo reconhecido e, aos vinte e dois anos,
recebeu a nomeação de Chevalier de la Légion d’Honneur por Carlos
X, cuja coroação, em 1825, homenageou com uma ode. À época, o
grande gênio literário era Chateaubriand. Pré-romântico, foi o herói
da infância de Victor Hugo. O menino chegou a afirmar: “ou Cha-
teaubriand, ou nada”, tamanha era a força inspiratória que um gênio
exercia sobre o outro.
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Também as cartas enamoradas de Hugo à sua amiga de infância, Adèle
Foucher, transmitiam o mesmo estilo.
Adèle Foucher nasceu em Paris, filha de Pierre Foucher, amigo dos pais
de Victor Hugo. Durante o namoro, Hugo escreveu cerca de 200 car-
tas de amor para Adèle, a maioria das quais foram publicadas. Eles se
casaram em outubro de 1822, mas um dos irmãos de Victor, Eugène
Hugo, também amava Adèle. Teve um colapso mental na ocasião do
matrimônio deles e foi internado numa casa de repouso.
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Victor Hugo publica um necrológio de Lord Byron no La Muse Fran-
çaise, o primeiro veículo de divulgação do romantismo francês. La
Muse Française era também um periódico porta-voz de um seleto gru-
po de poetas que, apesar de politicamente reacionários, eram a van-
guarda literária, a Société des Bonnes Lettres. Havia no movimento uma
tensão entre a forma literária inovadora e o conteúdo, por se dizer,
tradicionalista, que tanto incomodou Victor Hugo que, no prefácio
de suas Nouvelles Odes (1824), viu necessidade de se explicar perante
uma crítica cada vez mais crescente: “A literatura moderna pode ser o
resultado da Revolução, sem ser sua expressão”. Hugo ainda não ha-
via aderido aos ideais revolucionários, mas o romantismo passou a ser
considerado o grande inimigo da Academia Francesa de Letras e todas
essas distensões políticas, ideológicas e literárias punham Victor Hugo
constantemente diante do espelho de sua consciência, descobrindo seu
caráter cada vez mais polêmico e controverso: “E assim”, escreveu ele
no prefácio de sua primeira peça publicada, Cromwell (1827), “o autor
se entrega mais uma vez à ira dos jornalistas e se expõe aos olhos do
público, como o aleijado do Evangelho – sozinho, pobre e nu: solus,
pauper, nudus”.
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cante que, enquanto esperava o pelotão de fuzilamento, Dostoiévski
se lembrou dele). Com outros poemas e novelas publicados, aos vinte
e nove anos Victor Hugo publica um de seus mais importantes escri-
tos, a novela Notre-Dame de Paris (1831). Em 5 de junho de 1832,
aconteceu a Revolta de Paris, que num só ato poderia estabelecer uma
República, caso não fosse brutalmente repreendida. Hugo ouviu tiros
à noite, andou em direção de Les Halles e se viu preso entre as tropas
do governo e os rebeldes. Ao todo, cerca de 800 manifestantes – tan-
to legitimistas quanto socialistas, trabalhadores e burgueses – foram
mortos ou feridos. Em seu diário, Hugo escreve: “Follies se afogou
em sangue. Um dia teremos uma República e, quando vier por sua
própria vontade, será bom. Não devemos permitir que bárbaros man-
chem nossa bandeira de vermelho”. Essas reflexões, ainda incipientes e
esparsas em seu diário, terão espaço anos depois nos Miseráveis.
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no lugar. Blanche é morta e entregue no lugar do rei e a peça acaba com
os clamores de desespero de Triboulet: “Eu matei minha filha!”.
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France e, enquanto galgava prestígio na Sociedade, preparava os esbo-
ços de sua grande obra Les Misérables.
DURANTE O EXÍLIO
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Juliette Drouet. Esta também se muda para a vizinhança para manter
o caso com o escritor. A família passa a morar à beira-mar, e, de novo,
mais um elemento da natureza e todo o seu profundo simbolismo são
introjetados na alma sensível de Victor Hugo, como podemos teste-
munhar num poema seu, em que compara o mar ao povo:
AO POVO
(À borda do oceano)
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Na vasta dimensão, azul universal,
Todos os astros têm a cúpula ideal.
A força rude tem, tem a soberba graça,
Respeita um ramo de erva e a rocha despedaça.
Como tu, ele a espuma atira à sumidade,
Povo, somente o mar não mente à lealdade,
Quando, fixo o olhar, na sacra borda, em pé,
Pensativo, se espera a hora da maré.
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ampliar suas manifestações artísticas, experimentando as artes plásticas
também).
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período. Quanto ao conteúdo, trata-se de uma narrativa em louvor
do amor, que se revela em diversas formas no contexto de cada perso-
nagem, mas, principalmente, de uma denúncia das injustiças sociais
que Victor Hugo presenciava. Sobre isso, escreve em Hauteville-Hou-
se (1862):
DEPOIS DO EXÍLIO
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Em 1871, Victor Hugo retorna a Guernsey, onde escreveu o romance
Quatrevingt-treize. Em 1873, volta para Paris e se dedica à educação
de seus dois netos, Georges e Jeanne, que o inspiram a escrever A Arte
de ser Avô. Victor Hugo se tornou guardião dos netos, porque seu filho
Charles teve um AVC e faleceu. Seguidamente, sua nora também fa-
leceu. A Arte de ser Avô é uma coleção de poemas carregada de ternura
e sentimento de responsabilidade sobre as duas delicadas criaturas que
lhe foram confiadas pela fatalidade do destino. Velhice e infância se
encontram e suavizam as dores e necessidades uma da outra. Cenas
prosaicas, como uma ida ao zoológico ou a um parque, a companhia
inocente e alegre das crianças, tudo isso faz parte da ambientação dos
poemas e cristaliza a experiência vívida de Victor Hugo em sua velhice.
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que haviam participado da Comuna de Paris, causa pela qual precisou
batalhar até 1880. Ao final de sua carreira, quando reuniu seus escritos
esparsos, ele próprio dividiu sua produção em três partes: antes, du-
rante e depois do exílio. Foi em 1878 que Victor Hugo sofreu o der-
rame do qual não conseguiu mais recuperar o vigor literário. Porém,
sua produção inédita era tão vasta que supriu qualquer suspeita do
público. Publica obras escritas décadas antes, como La Pitié Suprème,
Religions et religion e Les Quatre Vents de l’esprit. Morre em 1885, dei-
xando ainda uma vasta coleção de obras inéditas. Adentra, assim, na
imortalidade literária.
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Os
Trabalhadores
do Mar
Apresentação
Les Travailleurs de la Mer foi publicado pela primeira vez em Bruxelas,
em 1866. Uma tradução em inglês foi publicada no mesmo ano em
Nova York. No ano seguinte, é feita uma publicação da tradução de
Sir G. Campbell, sob o título Workers of the Sea. Hugo havia escrito o
ensaio L’Archipel de la Manche (O Arquipélago do Canal da Mancha)
como uma introdução ao romance, mas somente após a sua morte se
cumpriu o desejo de ambos serem publicados juntos.
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Que sonhou Triboulet, Marion Delorme,
E Esmeralda a Cigana.
Porém, mesmo na leitura de suas novelas, vale a pena lembrar que Vic-
tor Hugo educou seu ouvido desde a mais tenra infância, não havendo
para ele processo criativo que não carregasse em si a musicalidade que
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os poetas ouvem em tudo o que se lhes apresenta. O leitor deve prestar
atenção em como Victor Hugo se esmera em criar um espaço textual
que minimize a importância da simples narrativa cronológica, dando
lugar à construção psicológica da narrativa. O capítulo inicial, “Pala-
vra escrita em uma página branca”, evoca tanto o começo do que será
narrado, quanto o fato de maior valor para o herói. O próprio Hugo
assinala como notável (“notável” aparece na primeira frase) e impõe
imagens determinantes: é Dia de Natal na ilha de Guernesey; três fi-
guras – uma criança, uma jovem e um homem andando na mesma
direção, mas a uma distância de trinta metros um do outro; o silêncio
reina. Entre essas figuras não há uma conexão visível. A certa altura, a
jovem nessa paisagem onírica se vira brevemente, para e com o dedo
escreve algo na neve. Quando o homem chega ao local, ele vê seu pró-
prio nome inscrito na neve como em uma página em branco que inicia
uma história. Ele também continua a andar – embora agora absorto
em pensamentos.
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obra poder ser lida como um experimento em prosa poética de van-
guarda, pois é carregado de figuras típicas da poesia, como a aliteração,
a metáfora, a elipse e a sonoridade das frases.
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Resumo
A narrativa começa com um evento marcante na memória do herói
Gilliatt. Tal como uma palavra escrita numa página branca – o iní-
cio de tudo – foi a escrita de seu nome na neve, feita por uma bela
mocinha da ilha, Déruchette: “Casualmente, tinha os olhos baixos, e
assim os levou maquinalmente ao lugar em que parara a menina. Dois
pezinhos aí estavam impressos e ao lado deles a palavra escrita por ela:
Gilliatt”. Gilliatt não era estimado na Ilha, pois as pessoas acreditavam
que ele fosse uma espécie de feiticeiro. Tal crença vinha do fato de que,
quando sua mãe chegou com ele em Guernesey, vindos de não se sabe
onde, comprou uma casa que diziam ser mal-assombrada.
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com a personagem, que a coloca ainda envolta numa amálgama de
mistério e simplicidade. Caracterizado como um pescador de Guerne-
sey, carrega em si os traços de um verdadeiro homem do mar: “À força
de trepar aos rochedos, de escalar os declives, de navegar no arquipéla-
go, qualquer que fosse o tempo, de manobrar a primeira embarcação
que aparecesse, de arriscar-se de dia e noite nos canais difíceis, tornou-
-se, sem tirar lucro disso, e só por fantasia e satisfação, um admirável
homem do mar. Nasceu piloto. O verdadeiro piloto é o marinheiro
que navega mais no fundo do que na superfície. […] Naquela pesada
chalupa é que ele ia à pesca. [...] Ao cair da noite, atirava a rede às cos-
tas [...] e saltava na barca. Daí fazia-se ao mar”.
Alguns diziam que ele era filho do demônio, outros que ele tinha o po-
der de curar as pessoas, mas, acima de tudo, sua condição de solitário
lhe permitia entrar em contato com o sonho: “Gilliatt era o homem
do sonho. Vinham daí suas audácias e as suas hesitações [...]. A solidão
desprende uma certa quantidade de desvario sublime”. Assim, entra-
mos em contato com o próprio fenômeno da solidão humana, com a
condição de exílio. Sua mãe era estrangeira e ele era tido como alguém
de fora, de costumes alheios aos da Ilha onde habitava. Da mesma for-
ma, todos nós sentimos em alguma medida a própria existência como
uma condição de exílio, e a luta que Gilliatt travará contra a Natureza
para ser tido como um semelhante entre os habitantes de Guernesey
representa os esforços que o homem empreende para se integrar à pró-
pria condição humana.
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Em Guernesey também vive um ex-marinheiro, Mess Lethierry: “Mess
Lethierry, o homem notável de Saint-Sampson, era um marinheiro
terrível. Tinha navegado muito. Foi grumete, gajeiro, timoneiro, con-
tramestre, mestre de equipagem, piloto, arrais. Agora era armador.
Ninguém conhecia o mar como ele. Era intrépido para salvar gente”.
Além dessas características de grande marinheiro, ele era o proprietário
do primeiro navio a vapor da ilha, mas a invenção não era bem vista
no local: “Não era tão grande a calma a respeito de tais invenções no
primeiro quarto do nosso século, e estas máquinas fumegantes eram
particularmente suspeitas entre os insulares da Mancha”.
Déruchette foi muito bem criada por seu tio, que conseguia com Du-
rande um bom dinheiro para o futuro da moça. Era uma jovem de ex-
cepcional delicadeza, gostava de cuidar do jardim e de tocar ao piano
a melodia Bonny Dundee, mas também leve e de poucas responsabili-
dades na vida. Ia crescendo, mas não se casava. Tanto ela, quanto o tio
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eram exigentes, e este queria desposar não só a sobrinha, mas também
o navio com um só genro que pudesse cuidar de ambos os seus amores.
Com o tempo, Gilliatt se apaixona por Deruchette, frequenta os arre-
dores de sua casa para ouvi-la e chega mesmo a tocar na gaita de fole a
mesma canção que a moça tocava ao piano.
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do controle, e a Durande começa a naufragar. O capitão põe toda a tri-
pulação numa chalupa, mas se recusa a ir junto, afirmando que “quan-
do o navio se perde, morre o capitão”, fazendo-se herói do ocorrido.
No denso nevoeiro, Clubin navegaria para os penhascos de Hanói, de
onde poderia nadar facilmente até a costa, encontrar os contrabandis-
tas e desaparecer, deixando a aparência de ter se afogado. Esse era seu
plano, afortunar-se e desaparecer, dado por morto e bem afamado. Em
vez disso, ele se perde e navega para os rochedos Douvres, que estão
muito mais longe da costa, lugar desértico e horrível. Tem o plano,
então, de ser avistado por algum navio que passasse para ser salvo. De-
veria nadar, porém, até o Rochedo Homem para tal. Quando se atira
ao mar, sente-se agarrado pela perna e puxado para o fundo.
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ela, sai de sua zona de conforto e aceita a missão confiada por Mess
Lethierry. A conquista do motor do navio significa, de modo geral, a
conquista do progresso humano sobre a Natureza e, de modo particu-
lar, a conquista do destino de sua própria vida.
Gilliatt chega, em sua pança, aos rochedos Douvres e passa por muitas
dificuldades para conseguir se instalar perto dos escombros. A Durande,
ou o que restou do navio, estava aos pedaços, e parecia ser necessária
uma porção de homens para fazer o trabalho que Gilliatt se propôs fazer
sozinho. Despendeu muitos dias explorando os escombros e o lugar, até
encontrar uma caverna fantástica. E, na cava, tem a experiência de se
deparar com alguma coisa quimérica e inexprimível.
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Continuando o trabalho nos escombros do navio, viu-se impedido
pela prudência de desmontar o maquinário do motor. Mas, engenhoso
que era, viu que o maquinário cabia em sua pança e, com dificuldade,
elabora uma espécie de guincho para o maquinário da Durande. O
trabalho esgotava todas as provisões de Gilliatt, mas sua teimosia em
cumprir a missão era maior, fato que o levou a conseguir transportar o
motor das rochas para a sua embarcação.
O lugar é tomado por fortes ventos que colocam Gilliatt numa situa-
ção ainda mais perigosa. Logo, vê-se em meio a mais forte tempestade
e tem de tirar forças de si mesmo para enfrentar a Natureza, uma das
três grandes lutas do homem.
Após a grande batalha, Gilliatt sentiu fome. Voltou à cava onde ou-
trora encontrara frutos do mar (e a criatura sinistra). De repente, uma
coisa pegajosa o agarra pelo braço, chicoteia-lhe com tentáculos: era
uma pieuvre, uma monstruosidade quimérica, a própria encarnação do
mistério do mal feita criatura e que, agora, envolvia e sufocava Gilliatt.
O herói, com uma faca em riste, consegue aproveitar o exato segundo
em que o monstro estica a cabeça e lhe desfere um golpe mortal.
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Mess Lethierry, enquanto isso, recebe uma carta de seu antigo sócio,
contando-lhe que restituíra ao Sr. Clubin o dinheiro roubado. Ele fica
abatido pela notícia, até encontrar no porto o seu maquinário voltando
intacto na pança de Gilliatt, o herói que mal desembarca e se dirige apai-
xonadamente à janela da amada para tão somente imaginá-la ali. Mais
que isso, ele a viu no jardim. Ouviu também um ruído, um suspiro de
surpresa da moça e uma voz de homem: o jovem padre declara seu amor
e pede Dèrruchette em casamento. Ela, por sua vez, corresponde a jura
de amor e Gilliatt, ferido, desaparece da cena.
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Gilliatt e a Natureza
A literatura do século XIX possui o topos da luta entre o homem e a
natureza, pois havia uma ideia de progresso que incentivava a reflexão
acerca da dominação dos recursos naturais. A figura clássica de Prome-
teu começa a ressurgir, e vemos no herói Gilliatt traços característicos
dessa luta do homem que descobre segredos da natureza e aproveita as
forças naturais para a construção de si mesmo como herói. Heroísmo,
aqui, no sentido romântico (e não clássico) do termo, em que o ho-
mem consegue fazer frente a seu próprio Destino, vencendo as forças
que se apresentam como superiores, sejam elas os Elementos, seja a
própria Natureza ou o Fado.
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Nesses seus dois romances precedentes, ele havia representado, respec-
tivamente, a ananke dos dogmas e a das leis. Em Os Trabalhadores do
Mar, explora por fim a ananke dos Elementos.
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A navegação a vapor é admirável porque disciplina o navio. Diminui
a obediência ao vento e aumenta a obediência ao homem”. Tornava-
-se, agora, Mess Lethierry uma vítima da fatalidade, portanto?! Victor
Hugo também afirma, em outra digressão, que “o homem é o paciente
dos acontecimentos. A vida é um perpétuo sucesso, imposto ao ho-
mem. O homem não sabe de que lado virá a brusca descida do acaso.
As catástrofes e as felicidades entram e saem como personagens ines-
peradas. Têm a sua fé, a sua órbita, a sua gravitação fora do homem”.
3 Paul Bénichou, em seu artigo “Les Mages romantiques”, afirma que Hugo, como todo deísta
socialista de sua época, recusa-se a escolher entre as ideias contraditórias de que o homem está
no controle ou de que somos movidos por uma força superior.
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três fatalidades que envolvem o homem junta-se a fatalidade interior,
o ananke supremo, o coração humano”. Gilliatt vence, de fato, a luta
contra a Natureza e faz frente a ela. Quando se trata, porém, do cora-
ção humano, sua força é a impotência. Abnega-se da herança materna,
do amor de Déruchette e da própria vida, afunda no mar como a neve
que derrete. Essa dialética faz parte da caracterização de Victor Hugo
como um autor romântico: quando se trata da Natureza, o homem
está sempre pendendo entre a harmonia e a dúvida.
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Referências
HUGO, Victor. Hugonianas, Poesias de Victor Hugo Traduzidas por
Poetas Brasileiros. Imprensa Nacional, 1885.