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TRANSCRIÇÃO AULA 01

MEMÓRIAS PÓS-
TUMAS DE BRÁS
CUBAS
MACHADO DE ASSIS
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Introdução e comentários

E aí, galera, tudo bem?

Sejam muitíssimo bem-vindos à primeira aula sobre Memórias Póstumas de


Brás Cubas, de Machado de Assis!

Quero começar nossa aula com uma pergunta: quem se surpreendeu com a
leitura de Memórias Póstumas?

“Melhor do que eu esperava!”

“Eu me surpreendi muito!”

“Achei muito melhor do que esperava na releitura.”

“Achei que o livro seria chato, mas fiquei apaixonada.”

“É mais difícil que Dom Casmurro.”

O curioso é que muitos dos meus alunos me disseram ter achado o livro melhor
na releitura. Isso é engraçado pois derruba aquele pavor de spoilers que o
pessoal tem.

Leitor, quando o livro é bom mesmo, ele tende a ficar melhor com as
releituras.

Quando lemos um livrinho água com açúcar, mesmo que gostemos dele, nunca
conseguimos relê-lo. E se conseguíssemos fazê-lo, acharíamos uma porcaria,
pois iríamos perceber toda a superficialidade contida ali.

Já um livro realmente bom fica mais interessante, mais cativante e mais


memorável quando o lemos novamente. Começamos a perceber coisas que
não havíamos notado antes: dicas que o autor tinha dado sobre a trama; pistas
que deixou; alguma piada ou frase memorável que nos tinha passado batida etc.

Desse modo começamos a perceber mais detalhes, porque um livro bom é um


livro em que o autor trabalha com cuidado; é como um bom filme. Um exemplo:
eu estava vendo, esses dias, um vídeo sobre o filme O Iluminado, que é
maravilhoso. Esse vídeo foca apenas no uso da música no filme, em como o
diretor e o pessoal do áudio a usam para ilustrar a presença dos fantasmas.

É como se o áudio servisse para te indicar que tem alguma coisa a mais ali
além do hotel e dos personagens.
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É esse tipo de detalhe que conseguimos “pescar” em filmes e livros bons, e


Memórias Póstumas se inclui aí. Tanto que essa questão da releitura ser mais
prazerosa aconteceu comigo.

Eu já tinha lido Memórias Póstumas antes e não me lembrava de quase nada.


Voltei, reli e, rapaz… encontrei várias jóias ali dentro. Vi no livro um monte de
intencionalidades e boas frases; a obra me pareceu muito mais bem amarrada
do que da primeira vez que eu a tinha lido.

Muitas digressões, no fim, não eram digressões, e sim formas de Machado


apresentar algum ponto ou reforçar características dos personagens, como
por exemplo o capítulo do nariz.

Este capítulo expõe, de modo sarcástico e irônico, toda a filosofia de vida de Brás
Cubas, que é uma variação do que gosto de chamar de “umbiguismo”. Mas,
chegaremos nesse e outros assuntos a seu devido tempo.

Sem mais delongas, vamos à aula!

Início da aula

Memórias Póstumas de Brás Cubas é o primeiro livro de Machado de Assis em


sua fase “realista”. Digo isso porque a maior parte de seus estudiosos dizem que
houve uma mudança em Machado.

Antes de Memórias Póstumas, Machado já havia escrito outros romances: Iaiá


Garcia, Helena, A Mão e a Luva etc.

Esses romances, mesmo tendo algumas características do Machado que


conhecemos — ironias, ambiguidades —, em geral eram romances mais
catalogados, por assim dizer. Dava para saber se tal livro era uma história de
amor, por exemplo, ou um drama familiar.

Com Memórias Póstumas, a coisa fica mais complexa do que isso.

É importante dizer aqui que Machado tinha epilepsia, contraída, muito


provavelmente, por conta dos traumas pelos quais passou: a morte de sua mãe,
irmã e madrinha; a morte do pai, um pouco mais tarde; sua infância bastante
pobre, entre outros acontecimento.

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Então, na época em que já estava casado, Machado tem uma crise de epilepsia
muito forte. Nesse período Machado também já era funcionário público e ficara
conhecido por seus livros e contos.

Porém, embora gozasse de respeito, nessa época o autor ainda não era “o
Machado”.

Essa crise de epilepsia deixa Machado cego e acamado. Ele vai para uma casa de
recuperação e, nessa situação, — como poderia acontecer com qualquer um
numa — passa por uma crise moral e existencial.

Quando Machado fica cego, algum tipo de revolução moral o modifica. Machado
diz, em uma carta a um amigo, que naquele instante ele perde a esperança nos
homens.

E é em meio a essa crise, ainda cego, que lhe surge a ideia de escrever
Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Machado dita os primeiros capítulos para sua esposa, pois cego, estava
incapacitado de escrever. Depois de recuperado, já enxergando novamente,
Machado termina o livro, ele mesmo escrevendo. Mas por que tudo isso é
relevante?

Porque a revolução moral de Machado dá vida à revolução na literatura.

A partir de Memórias Póstumas, Machado entra em sua fase mais genial e


inigualável: a fase de onde saem seus melhores contos e romances, inclusive
Dom Casmurro, que em minha opinião é o melhor livro do Bruxo.

A esposa de Machado não teve participação autoral na obra; apenas escreveu o


que o marido ditava, o que não é diminuir a importância da esposa de Machado
em sua vida. Ela foi extremamente importante na vida do escritor, porém,
criativamente, não teve nenhum tipo de influência sobre o livro.

Brás Cubas

Eu já adianto para você, leitor, que este é um livro desesperançoso. Esta não é
uma obra que traga alguma mensagem de redenção, de melhora. Não é um livro
que vai lhe dizer que, na morte, de fato, conseguimos enxergar a vida com
clareza.

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Qual é o lugar comum da obra? Bem, sua premissa é a de que Brás Cubas
consegue ser sincero porque escreve o livro do além.

Mas aí eu te pergunto: será mesmo que Brás Cubas é um narrador


completamente sincero?

Deixem-me reformular a pergunta: vocês que leram ou estão lendo, sentiram


que Brás Cubas é um sujeito sincero? Honesto? Vocês confiam totalmente na
narração de Brás?

“Eu tive dificuldades para acreditar que ele foi 100% sincero.”
“Não, claramente não.”
“Não confiei.”
“Não!”
“Nem a pau!”

Pois é… E aí você chega na escola e o professor te diz algo assim: “Olha, alunos,
esse livro aqui é muito bom porque o narrador morreu, então ele consegue ser
totalmente sincero.”

Então você vai lá, lê o livro e pensa: “Mas, peraí… Esse cara aqui está sendo
sincero? Meio estranha essa sinceridade, hein…”

A coisa não bate, concorda, leitor?

Memórias Póstumas é um livro que tem algumas semelhanças com Dom


Casmurro, assim como Brás Cubas se assemelha a Bento. Nos dois casos os
narradores não são confiáveis.

Você percebe, desde o começo do livro, que Brás Cubas, mesmo na morte, só
consegue confessar algumas coisas. Mesmo falecido, Brás Cubas está
escondendo o jogo.

Brás não está rasgando o coração e revelando suas intenções ocultas. E nos
casos em que o personagem revela algo — sua malignidade infantil, ou o fato de
ter se relacionado com uma mulher casada, por exemplo — não existe remorso.

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Ademais, não são revelações que realmente nos chocam, concorda?

Parece que Brás Cubas está controlando a situação. Ele afrouxa um pouquinho
a corda, mas nunca a solta; quando percebe que a coisa está indo longe
demais, ele se segura.

Além disso, ao longo de todo livro, Brás Cubas foge de algumas coisas. Repare,
leitor, que Brás faz isso com as coisas tristes: sempre as conta rapidamente, e às
vezes nem as conta e só nos deixa a imaginar a cena.

Logo depois, Cubas muda para uma piada ou uma digressão, ou ainda uma
história aleatória. Isso nos faz perceber que, mesmo na morte, o sujeito continua
dissimulado e frágil.

Notamos que não houve, na verdade, nenhuma redenção especial para ele.
Nem mesmo o além fez com que olhasse para sua vida com real sinceridade,
o que poderia realmente destruir a auto-imagem que tinha de si mesmo.

Brás Cubas abre um pouco de espaço e se faz algumas críticas, mas não passa
disso. E, ainda por cima, sempre tempera a crítica com alguma piada ou dito
espirituoso.

“O além”

Se analisarmos a história de uma perspectiva cristã — lembrando que Machado


escreveu a obra num contexto cristão — Brás Cubas está contando sua história
do inferno.

Mas o que é o inferno?

A ideia do inferno é a seguinte: uma pessoa que vai para o inferno morreu e não
se desapegou das coisas deste mundo.

As mentiras que você conta para si aqui na terra e que criam a auto-imagem
falsa que você tem de si mesmo, e as coisas com as quais você se apega neste
mundo — o amor à própria glória ou aos bens materiais; o amor às coisas
meramente prazerosas, sem nenhum peso ou qualquer tipo de sentido mais
elevado, como sexo ou comida, por exemplo — fazem com que a forma de sua
vida de uma se feche presa a essas coisas terrenas.

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No além, você ainda está apegado às coisas que não lhe são mais acessíveis.

Quando o indivíduo morre, acabou tudo. Acabaram os prazeres, o louvor alheio, o


amor a si mesmo, a comida e a bebida etc. Se o sujeito, no tempo em que esteve
aqui, não cultivou bens espirituais — que permanecem no além — ele fica preso,
eternamente, às coisas terrenas.

Essa é a tortura eterna. E é o caso de Brás Cubas.

Brás está sendo torturado porque não cultivou NADA que não fosse baixo e não
estivesse de acordo com a “filosofia do nariz”, exposta por ele mesmo no livro.

Ou seja, Brás Cubas viveu para si e para seus prazeres, e quando morreu
perdeu essas coisas. E não melhorou. A morte não o ajudou.

Brás continua, no além, a mesma pessoa, mas agora sem acesso às coisas que
o deixavam “feliz”.

Vou parar este tópico por aqui, leitor, mas voltaremos a ele na próxima aula.

O Início

Memórias Póstumas de Brás Cubas começa com a famosa e clássica citação:

“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como
saudosa lembrança estas Memórias póstumas.” Brás Cubas também diz que a
obra seria escrita com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”.

“Galhofa” significa tiração de sarro, zoeira.

“Melancolia” é o mesmo que tristeza.

Então a tristeza e a zoeira são coisas indissociáveis no livro: Brás Cubas é um


sujeito totalmente desesperançoso, mas que encontra, na tiração de sarro, uma
forma de desafiar a desesperança, um recurso, aliás, bastante comum.

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Cinismo

Nós descobrimos, logo nos primeiros capítulos, que Brás Cubas é um sujeito
cínico.

Por exemplo, no primeiro capítulo, em vez de dizer, ao morrer, algo como “os
meus dias chegaram ao fim”, Brás Cubas diz “esta foi a cláusula dos meus
dias”. Ou seja, Brás usa a imagem de um contrato para se referir a própria morte.

Pois a vida, para esse sujeito, era como um contrato.

Brás Cubas existia por mero dever, como se alguém o tivesse ordenado a
respirar e ter aspirações. Já que o mandaram viver, então ele viveria, mas como
um contrato.

Acabado o contrato, Brás Cubas se despede da vida “com um piparote”,


mostrando seu desprezo por tudo.

No segundo capítulo, Brás fala sobre o emplasto, sua ideia de um remédio que
curaria a tristeza universal e sobre o qual projetava três coisas:

1. Fazer bem às pessoas;


2. Ganhar dinheiro;
3. Ver seu nome estampado no remédio.

Neste último ponto — que é o amor à glória — é muito fácil tirar sarro de Brás,
chamando-o de fraco.

Mas eu mesmo, o Raul, já sofri com minha “vaidadezinha” de merda, porque vi


pessoas no IG crescendo mais do que eu.

Isso me irritava, pois na minha cabeça, por que eu não deveria crescer mais
do que o fulano ou a sicrana? Por que beltrano ou fulana têm de ter mais likes
do que eu?

Então veja, leitor, que o amor à glória não é uma coisa assim tão distante de nós.
Se você for sincero talvez encontre algo parecido em sua vida também.

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Família

No terceiro capítulo nos é revelada a história da família de Brás Cubas.

Essa família tinha dinheiro mas não era de linhagem nobre. Isso acaba por gerar
um espírito de inferioridade — mesmo com o dinheiro que possuíam — que irá
contaminar o avô e o pai de Brás Cubas, assim como o próprio Brás.

Por quê? Ora, porque o fundador da família, um tal de Damião, ficara rico no ramo
do comércio; o sujeito, pelos próprios méritos, havia saído da pobreza e
ascendera financeiramente, tornando-se rico.

O filho de Damião, Luis, avô de Brás Cubas, já nascera com acesso à educação,
coisa que Damião não tivera. Luís, por conta disso, passou a esnobar o pai, e seus
descendentes traçavam a linhagem da família, não a partir de Damião, que tinha
feito fortuna, mas a partir de Luís.

Tudo porque Luís tinha ido à universidade e conhecera gente importante.


Porque Luís tinha presença pública, e possuía diploma.

E quer saber do que mais, leitor?

O brasileiro até hoje é assim: nós amamos uma boa “carteirada”. Os médicos que
lerem isso me perdoem, mas tem por aí um monte de “doutô” que adora cantar
aos quatro ventos sua profissão, a fim de separar-se do resto da humanidade, os
reles mortais.

E os “adevogados”, então?

“Eu estudei seis anos na universidade! Com quem você pensa que está falando?
Eu tenho mestrado!”

Essa mesmíssima bobagem já existia na época de Brás Cubas, e está muito bem
escrita nesse trecho do livro.

Outro sinal de que Brás Cubas era um grande filho da p*** é que ele diz que seu
pai era um “homem de imaginação, um sujeito de bom caráter, digno, leal”,
mesmo que esse pai tenha apagado da linhagem dos Cubas, Damião, o homem
que construiu a fortuna de toda a família.

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“Sou médico, mas nunca pus foto de jaleco no perfil.”

Glória a Deus por isso!

O delírio

No capítulo 7 temos o delírio de Brás Cubas.

Neste capítulo, Machado encontra uma forma bastante engenhosa de mostrar o


que Brás Cubas, basicamente, acha da vida.

Brás realmente está delirando, e isso acontece no final de sua vida. Ou seja, ele
está perto de morrer.

Ao delirar, Brás se transforma em algumas coisas, até que um hipopótamo o leva


para uma viagem, transportando-o a uma terra cheia de gelo.

E caso não saiba, leitor, o círculo mais profundo do inferno de Dante, em A Divina
Comédia, não é de fogo, e sim de gelo. Além disso, algumas culturas também
têm a concepção de um inferno gelado.

Portanto, não acho que Machado tenha colocado a ida de Brás Cubas, ao pé da
morte, para um lugar de gelo, de forma acidental.

Então ambos param em uma planície de gelo, que a princípio está vazia. Depois
de um tempo surge um imenso vulto de mulher, que fitava Brás com olhos
rutilantes, que brilhavam como o sol.

Tudo nela tinha “a vastidão das formas selváticas”, referindo-se à selva, como se
aquela figura fosse uma imensa mãe natureza. E é aí que Brás descobre que
aquela figura era, de fato, a natureza, tanto mãe quanto inimiga de Brás Cubas.

No rosto dela só se via “impassibilidade egoísta, eterna surdez, vontade


imóvel”, sendo que ao mesmo tempo, possuía um “ar de juventude, uma
mescla de força e viço”.

E o que isso significa?

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Bem, essa natureza é como Brás Cubas enxerga a vida. Para ele a vida é, ao
mesmo tempo, sua mãe e sua inimiga.

A vida, para Brás, no geral, é uma impassibilidade egoísta, uma eterna surdez,
uma vontade imóvel.

Trocando em miúdos, isso é desesperança total.

Segundo Brás Cubas, o mundo está cagando para você; o mundo é impassível e
não se mexe. Faça o que quiser, mas o mundo continuará igual, inalterado e
egoísta.

Ademais, o mundo é eternamente surdo. O homem pode gritar e espernear,


chorar e gargalhar; mas nada disso importa, porque o mundo é surdo.

E o mundo é vontade imóvel: você pode fazer o que quiser, e as coisas vão
continuar como estão. Você vai nascer, viver e morrer, e o mundo ficará
exatamente igual, impassível e surdo.

Mas ao mesmo tempo existe um ar de juventude no mundo, uma mescla de


força e viço. Lembra-se da galhofa e melancolia? Ela vem mais ou menos disso
aqui.

Perceba que Brás apresenta um mundo sujo, impassível e egoísta que nos
esmaga. Mas por outro lado, temos algum tipo de juventude e brilho, de coisas
boas, que se movem.

Esses são dois aspectos do mundo que Brás Cubas toma para si,
articulando-os em sua filosofia torpe.

Em suma: já que o mundo é essa merda toda, vou viver para gozar das partes
boas, poucas e passageiras, mas não espero nada de grandioso ou significativo
— e muito menos transcendente — do mundo.

Redenção, céu, paraíso? Jamais!

O mundo está aqui e o máximo que podemos fazer é gozar de algumas coisas
boas, sabendo que no final vamos fechar os olhos e findar nossa existência.

Essa é a filosofia de Brás Cubas.

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E, continuando a história, a natureza faz uma pregação a Brás, falando sobre a


filosofia do “egoísmo, da conservação”.

“A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o
novilho é tenro tanto melhor…”

Esse também é o raciocínio de Brás Cubas, um sujeito mais forte que os outros
pois tem dinheiro, e nasceu numa sociedade escravocrata.

Quer um exemplo disso? Assim que começa a história, qual é a segunda coisa
que vemos Brás fazendo?

Ele monta em cima de um menino negro e coloca-lhe uma rédea na boca,


como se o garoto fosse um pônei ou um cavalo; e seu pai, ainda por cima, ri e
aplaude a situação.

Brás nasceu numa posição privilegiada e criou toda uma filosofia para se colocar
no lugar da onça, por assim dizer. Tanto pior, em sua cabeça, para quem nasceu
em uma posição inferior.

Na sequência, o hipopótamo o leva ao alto de um morro para que Brás pudesse


ver “o desfilar dos séculos”.

Brás Cubas vê, diante de si, tudo o que aconteceu desde o início dos tempos, na
forma de toda a humanidade a desfilar.

Impérios crescendo e chegando ao auge, para cair. Ideias, sistemas,


filosofias, religiões, tudo. Brás vê o começo, o meio e o fim de todas as coisas.

Brás diz que para descrever a experiência seria preciso “fixar o relâmpago”,
porque aquilo era fantástico. Ele enxergava tudo, da glória à miséria: via a cólera,
a cobiça, a inveja, o amor, a melancolia, a vaidade.

Mas, embora enxergasse todos os movimentos do homem, os bons e os maus,


repare como Brás Cubas era cínico:

“Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a
enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a
melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um
chocalho, até destruí-lo, como um farrapo.”

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Segundo Brás o amor, uma coisa boa, nada mais era que uma variação da cobiça
e de todo o resto. Ainda por cima, para Brás, existia uma espécie de palhaço, uma
força maligna, como um demônio, que só existia para chacoalhar o homem. E as
formas várias que o palhaço usava para esse mal, que não levaria o homem a
lugar nenhum — porque, afinal, não há redenção alguma — eram a cobiça, a raiva,
a inveja, a melancolia, a vaidade e o amor.

Por isso que, para Brás, o amor é apenas uma forma diferente de chacoalhar o
homem para não levá-lo a lugar nenhum, como uma tortura.

Depois disso, Brás diz que o homem caçava a quimera da felicidade, e rapaz,
esse trecho é maravilhoso!

“A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença…”

Ou seja, o homem estava sempre com cor. Quando esta cedia, o fazia para dar
lugar à indiferença.

“...que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda.”

O prazer, para Brás Cubas, é uma forma diferente de dor, pois não tinha nenhum
significado mais profundo. Nada mais era que uma forma de tortura, como é
uma tortura para todas as pessoas que envelhecem e não constituem família,
passam a vida inteira viajando e experimentando tudo, tudo mesmo.

O prazer assim é vazio. Torna-se um vício e uma compulsão: quanto mais triste
se está, mais se procura o prazer. Quanto mais se procura o prazer, menos este
é recompensador. É um círculo vicioso.

“Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas…”

O homem tenta correr atrás do destino, que é inexorável.

“...atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de


impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto
precário, com a agulha da imaginação;”

O homem, esse ser chacoalhado por um palhaço demoníaco, quando não sofria
estava indiferente, e quando sentia prazer estava apenas sendo torturado,
correndo eternamente atrás de uma felicidade que era improvável, invisível e
impalpável, algo que existia apenas na imaginação do homem.
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E essa felicidade ou fugia eternamente ou, às vezes, se deixava pegar e ser


colocada no peito, para depois sumir, gargalhando da cara do homem.

“Como assim, Raul?” você me pergunta, leitor.

Bem, pense na Virgília, por exemplo, que foi uma felicidade que, durante um
tempo, Brás Cubas colocou no peito. Pense na Marcela, o mesmo caso. Pense na
nomeação de Braz a deputado.

No final das contas, é isso que Braz Cubas pensa de sua vida: ou nunca alcançava
a felicidade, ou a alcançava e ela lhe fugia após um tempo.

Então esse capítulo, que parece totalmente aleatório, na verdade tem tudo a
ver com o livro.

Caso leia com atenção, você percebe na hora com quem está lidando: com um
narrador que não é confiável — não porque esteja mentindo deliberadamente —
porque a filosofia que cria para si mesmo, desse egoísmo radical, faz com que
fique cego para algumas coisas.

Brás Cubas não consegue enxergar a vida como ela realmente é, pois é um
cínico. A mentira que conta reflete a mentira da vida que teve; não se trata,
portanto, de uma série de mentirinhas contadas de modo calculado para que
pensemos isso ou aquilo.

Brás Cubas morreu, leitor, pensando isso sobre a vida. Como poderia enxergá-la
com algum tipo de clareza pensando assim?

Brás só vai ver com clareza alguns pontos menores — sobre os quais falarei
depois — mas o todo da vida, seu sentido último, lhe escapa.

É por isso que não se pode confiar em Brás. A vida não parece ser como ele está
dizendo. Algumas partes, sim, você reconhece, mas no fundo sabe que não é
tudo tão terrível e falso assim. Creio que grande parte do que Brás atribui como
falsidade do mundo, era falsidade nele mesmo, não vista.

Quando acha que está sendo perfeitamente objetivo e realista, Brás apenas
está sendo falso, pois a vida não é essa desesperança radical que Brás pinta. O
amor não é simplesmente uma variação da cobiça, da inveja, da vaidade, da
tristeza e da ira.

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No fim das contas, para Brás o amor ou foi ira, ou cobiça, ou inveja, ou tristeza, ou
vaidade. Mas a verdade não é que esses seis itens são a mesma coisa, facetas de
um mesmo mal.

A verdade é que o senhor Brás Cubas viveu o “amor” como uma dessas cinco
coisas, sempre.

O amor desinteressado, que se desliga de si mesmo para entregar algo a seu


amado; o amor que “se gasta e se deixa gastar”, nas palavras do apóstolo Paulo;
o amor romântico, que estaria disposto a deixar pessoa partir…

Esse amor, o amor real, Brás Cubas nunca sentiu.

Para Brás o amor era:

Tristeza: quando alguma mulher lhe dava um pé na bunda;


Ira: quando Virgília se recusa a fugir com ele;
Cobiça e inveja: porque, vamos lembrar, Brás Cubas só se “apaixona” por
Virgília quando a vê com outro homem, casada.

Brás Cubas, nesta última, vê Virgília mais bonita do que antes quando ela
aparece com outro homem. E o sentimento que lhe é atiçado nesse momento é
o de posse, como se Virgília fosse dele.

Isso é pura vaidade: cobiça e inveja.

Brás não queria se sentir por baixo, mas é tão egoísta e falso consigo mesmo
que acha, realmente, que aquilo é amor, mas não é. Aquilo era, pura e
simplesmente, Brás Cubas alimentando seu próprio ego.

Então veja, leitor, que podemos ser levados a achar, quando lemos o livro, que
Brás Cubas é muito sincero.

Coisa nenhuma. A sinceridade é um privilégio de poucos; daqueles que


conseguem construí-la ao longo do tempo. Não é algo que cai do céu.

Quanto mais nos enganamos e criamos justificativas — e veremos que Brás


Cubas era mestre em inventá-las — mais a sinceridade vai se tornando
impossível para nós.

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É impossível ser sincero nesses termos, pois você não sabe mais o que é
auto-engano, o que é justificativa e o que é, de fato, a verdade objetiva.

Quando lemos Memórias Póstumas da forma correta, vemos diante de nós a


imagem do que é um homem cínico. Desse modo temos a chance de não
querer terminar nossos dias de forma patética, como Brás Cubas.

E depois de ver o desfile, Brás gargalha de modo “descompassado e idiota.”

Brás age assim porque era orgulhoso demais para cair numa terrível depressão
ao contemplar aquelas coisas. A zombaria é o último recurso do orgulhoso
contra o absurdo.

Então note, leitor, que esse capítulo não é uma digressão, e muito menos, inútil.

Esse capítulo, na verdade, resume e ilumina o livro inteiro.

Consegue perceber, leitor, que quando digo que um livro bom, em sua releitura,
fica melhor ainda, é a isso que me refiro? São essas construções narrativas que
enriquecem a leitura, e que não são percebidas por nós, às vezes, na primeira
leitura. Depois desses primeiros capítulos, caímos na história de fato.

Infância

Brás Cubas era um menino mimado, opiniático, egoísta e deprezador dos outros.

Sua mãe era melindrosa, e seu pai, um idiota completo que amava tudo o que o
filho fazia. Um de seus tios era um pândego — um sujeito festeiro —, tranqueira e
boca suja, que ficava metralhando Brás Cubas com piadas obscenas.

Por aí já dá para se ter uma ideia de como era o ambiente em que Brás nasceu. E
Brás, diga-se de passagem, era o diabo: maligno, indiscreto, arguto e
voluntarioso.

O moleque chegava a montar num dos escravos da casa, como se fosse uma
mula. Sua mãe era fraca da cabeça e larga de coração. Ou seja, burra mas
generosa. Era mansa e frágil; em suma, uma mulher fraca, submissa no mal
sentido da palavra.

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A mulher idolatrava o marido, o que fará com que Brás Cubas tenha uma visão
bastante machista dos relacionamentos.

Da junção de ambos — o pai, um palhaço que se preocupava apenas com a


glória, e a mãe, frágil, fraca e submissa — saiu Brás Cubas.

Da mãe Brás herdara a melancolia; do pai viera a fanfarronice.

Mas, além disso, havia o tal tio de Brás, bem próximo da família, que ficava, como
já vimos, soltando piadas sujas para o menino ainda novo; fazia chacotas com as
escravas também, tudo longe de casa, porque era um covarde.

Já o cônego, o religioso que deveria ser a coluna moral do jovem Brás, tinha
austeridade e pureza. Só que… era medíocre. Sua austeridade e pureza eram
uma casca que o padre usava para tentar compensar seu espírito frágil que, no
final das contas, interessava-se apenas por títulos eclesiásticos.

Então Brás Cubas nasce num ambiente sem nenhum tipo de referência.

Qual você acha que seria a personalidade de uma pessoa dessas, leitor? E Brás
ainda fez uma citação interessante, dizendo que daquela terra e estrume,
referindo-se à sua família, nascera uma flor: ele, Brás Cubas.

Depois dessa singela apresentação familiar, muita coisa acontece. Entretanto,


vamos avançar a uma parte específica da história.

Marcela

Marcela era uma prostituta..

Lépida, sem escrúpulos, era tolhida porque não podia arrastar suas leviandades
e brincadeiras pela rua. Ou seja, não poderia ficar falando putarias em qualquer
lugar.

Marcela era amiga de duas coisas: rapazes e dinheiro.

E o que tinha feito Brás Cubas se encantar por ela era um “desgarre”, que
significa cara de pau. Isso ele nunca tinha encontrado em mulheres “puras”.

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Esse era o amor de Brás Cubas por Marcela. Logo, isso não era amor, e sim tesão.

Marcela enganava Brás, que gastava fortunas com ela. Além de Brás, Marcela
mantinha vários outros homens que lhe davam dinheiro.

Brás fica louco por Marcela, chegando a parecer um drogado, o que obriga seu
pai a mandá-lo para Coimbra a fim de separá-lo de seu “vício”. Como achava que
dinheiro nascia em árvore, Brás gastou uma grana preta de seu pai com esse
caso.

Coimbra

Na Europa, Brás não muda muito. É um aluno medíocre que não se esforça em
estudar. Vive enchendo a cara e participando de putarias de todo tipo, e conserva
a “casca” de universitário.

Porém, porque não estudou nada, Brás sai de Coimbra sem saber bulhufas de
sua profissão.

Quando parte, Brás leva consigo um sentimento ambíguo: de felicidade


porque agora tinha diploma, mas também de melancolia, porque seria
obrigado a trabalhar.

Quando está retornando para casa, de navio, Brás se depara com a morte pela
primeira vez, com a mulher do capitão, que morre de tuberculose na viagem.

Brás foge do “espetáculo” da morte da mulher, pois aquilo lhe causa


repugnância. Ele observa a mulher morta sendo jogada no mar:

“A vaga abriu o ventre, acolheu o despojo, fechou-se, — uma leve ruga, — e a


galera foi andando.”

Lembra-se da natureza surda, leitor? Do mundo indiferente e impassível? Assim


é com o mar aqui, totalmente indiferente. Os peixes continuaram lá, nada
mudou; até o navio continuou a andar.

Existe — e isso é verdade — uma indiferença radical do mundo em relação a


nós.

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Quando minha avó faleceu e eu fui ao enterro, vi seu corpo esvaziado de espírito
— basicamente um pedaço de carne — então assisti seu caixão ser baixado à
cova e… foi isso. Acabou-se.

O mundo continuou igual, a terra não se mexeu; os céus não derramaram


lágrimas de chuva; não houve trovão ou relâmpago; a terra não se fendeu.

Nada aconteceu. Nada.

Quando eu e você morrermos, leitor, também vai ser assim.

Ou você tem algum tipo de filosofia, crença, ou algo que te dê sustentação em


outro lugar, ou, quando contemplar a morte vai chegar à conclusão de que tudo
aquilo é um absurdo.

Vai intuir que você, no fim das contas, não vale nada; é apenas um aglomerado
de átomos, e que a natureza não dá a mínima para você.

Esse livro é engraçado, mas também é meio triste e depressivo.

Rio de Janeiro

Brás volta ao Rio de Janeiro porque recebe uma cara do pai que, desesperado,
diz que a mãe de Brás está para morrer.

Brás consegue chegar ao Rio de Janeiro com a mãe ainda viva.

Ao retornar, Brás fica feliz, pois gosta do Rio de Janeiro: sua memória traz de
volta o que ele já conhecia e seu espírito volta à infância.

Aqui, Brás Cubas novo — na casa dos 20 anos — rico e cheio de possibilidades,
diz que a infância era “a água fresca e pura, ainda não mesclada do enxurro da
vida.”

O que ele quer dizer com isso?

“Enxurro” significa uma enxurrada de imundícies. Então, mesmo aos vinte e


poucos anos, Brás já se considera uma enxurrada de imundícies.

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Ao se encontrar com a mãe, que fica feliz em vê-lo e lhe sorri, Brás não consegue
dizer nada. E mais uma vez temos um reforço do absurdo que é a vida para Brás
Cubas:

“Não chorei; lembra-me que não chorei durante o espetáculo: tinha os olhos
estúpidos, a garganta presa, a consciência boquiaberta. Quê? uma criatura tão
dócil, tão meiga, tão santa, que nunca jamais fizera verter uma lágrima de
desgosto, mãe carinhosa, esposa imaculada, era força que morresse assim,
trateada,mordida pelo dente tenaz de uma doença sem misericórdia?
Confesso que tudo aquilo me pareceu obscuro, incongruente, insano…”

Brás primeiro vê a mulher morrendo no mar, engolida pelas águas; depois vê


a própria mãe morrendo de forma sofrida.

Lembremos que a mãe de Machado de Assis também morreu em sofrimento,


vítima de febre tifóide em uma epidemia. Logo, não seria exagero dizer que essa
passagem do livro é um pouco autobiográfica. E então, quando o problema da
morte começa realmente a entrar na cabeça de Brás Cubas, fazendo-o pensar
nessa questão com alguma seriedade, o que poderia levá-lo a algo mais
elevado, Brás foge.

Brás desconversa e leva a história para o cabeleireiro.

A não filosofia

O tal cabeleireiro ensina a Brás a filosofia da não filosofia, que consistia em


encher a vida de conversa fiada, frases feitas, mentiras e de uma “picância”, que
eram as histórias sexualmente picantes.

Para Brás o mundo não fazia sentido; além disso, Brás não queria pensar na
morte.

Portanto, essa filosofia lhe cai como uma luva.

Conclusão

Leitor, ainda há muito mais a se falar sobre este livro, mas creio que seja bom
deixarmos isso para nossa próxima aula.

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Entretanto, a chave de Memórias Póstumas é essa que passei. Esse é o Brás


Cubas.

O restante do livro será uma exposição da filosofia de vida descrita por Brás no
capítulo 7 — O delírio.

Ao longo do livro, veremos um desdobramento de tudo aquilo que já apareceu


nos primeiros capítulos.

Brás Cubas não é um narrador sincero, apenas acha que é. Seu egoísmo o
impede de ser sincero, de forma que nós, leitores, conseguimos enxergar os
pontos cegos que Brás não vê.

Encerramento da aula

Leitor, espero que você tenha gostado da primeiríssima aula de nosso Clube
2022!

Nos vemos na próxima aula, ainda falando sobre Memórias Póstumas de Brás
Cubas!

Um forte abraço!

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