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TRANSCRIÇÃO MINI AULA 02

CEM ANOS
DE SOLIDÃO
DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

Raul Martins - suporte@oraulmartins.com.br - IP: 191.17.145.123


Introdução e comentários

Fala, galera, tudo bem?

Cá estou para a segunda miniaula sobre Cem Anos de Solidão, o livro do Gabriel
Garcia Márquez.

Nessa aula quero lhe dar mais alguns conselhos para que sua leitura seja ainda
mais fluida, e te dar uma ou duas ideias sobre o que raios Garcia Márquez queria
fazer no livro, a fim de que a leitura seja interessante e um tanto mais
significativa desde o início.

Pois este livro é uma obra interessante de qualquer modo, mesmo que você não
goste dele.

É inegável que essa mistura aparentemente aleatória entre uma descrição


quase jornalística das coisas normais assim como das absolutamente
fantásticas é interessantíssima.

Porém, às vezes você pode ler o livro todo, achar tudo muito interessante, se
lembrar de algumas anedotas e pescar, aqui e ali, eventos e histórias
particularmente marcantes ou engraçados mas ainda assim terminar a leitura
com aquele gostinho de… tá, e aí?

Ao fim da leitura o livro pode parecer apenas uma coletânea de coisas


engraçadas ou memoráveis, mas sem ligação entre si.

Não é bem assim, e explicarei o porquê.

Ínicio da aula

E qual seria meu primeiro conselho nessa aula?

Bem, já falei na miniaula anterior, de maneira bem extensa, sobre a ideia de se ler
o livro como se estivéssemos num sonho, nos abrindo à sua absoluta variedade
e imprevisibilidade.

Feito isso, você pode começar a pegar algumas chaves de leitura.

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Primeira chave de leitura

Talvez alguns de vocês tenham percebido semelhanças entre Cem Anos de


Solidão e a Bíblia.

Em uma de nossas discussões do Instagram, cheguei a mencionar a questão da


leitura literária da Bíblia. Lá eu disse que muita gente acaba fazendo a leitura
bíblica com olhos meramente teológicos, e se esquece de olhar a história, pois a
Bíblia é um livro cheio de histórias fantásticas.

Disclaimer: já deixo bem claro que não estou entrando no mérito teológico.
Não estou dizendo que as histórias bíblicas são falsas.

Estou falando de abrir a Bíblia e lá encontrar histórias como a de Noé, ou do


profeta Elias que ora e Deus envia uma coluna de fogo que incinera vários
profetas de outra religião. Enfim, esses são pouquíssimos exemplos do que
podemos encontrar na Bíblia.

E também podemos encontrar histórias fantásticas em Cem Anos de Solidão,


logo alguns podem ter tido a percepção de algumas semelhanças entre os dois
livros.

Outra disclaimer: não estou dizendo que Cem Anos de Solidão é um livro
comparável à Bíblia! Só digo que de fato existe uma semelhança, porque o
próprio Gabriel García Márquez se inspirou na Bíblia.

Márquez não era trouxa e sabia que a Bíblia, assim como alguns outros textos
antigos e míticos -- que fundamentaram civilizações -- são histórias que
permeiam a cabeça de todos e sobre as quais construímos nossos valores.

Os textos míticos são os mais poderosos e profundos que existem; eles nunca se
esgotam, especialmente a Bíblia.

Segunda chave de leitura

Além da Bíblia, Márquez também se baseia em sua avó, que contava eventos
fantásticos com aquela “poker face”, sem perder a compostura. Você pode
entender Cem Anos de Solidão, especialmente o primeiro capítulo, com a
fundação de Macondo, como um tipo de Gênesis.

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Quando abrimos o livro, a primeiríssima frase que ele nos apresenta é a
seguinte:

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano


Buendia havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para
conhecer o gelo.”

Aí você se pergunta qual é o tempo disso aqui, afinal o autor escreve “muitos
anos depois”; depois de quê? Sabemos que não é no presente, e sim no futuro;
mas futuro de que presente?

“...o coronel Aureliano Buendia havia de recordar…”: só que isso não é bem
futuro, certo?

“...aquela tarde remota em que seu pai o levou…”: esse trecho já é passado.

Viram que, logo na primeira frase temos uma mistura de tempos verbais? Não
são estabelecidos presente, passado e futuro claros. Por quê?

Porque os eventos descritos em Cem Anos de Solidão ocorrem em um tempo


próprio, fora do tempo, pois o texto tem uma estrutura mítica.

Esse livro não é escrito como uma história linear. Comparemos com Orgulho e
Preconceito, por exemplo, uma obra que se passa num intervalo entre os anos
1700 e bolinha e 1800, em certa parte da Inglaterra.

Em Cem Anos de Solidão não é assim. A ideia aqui é transportar você desde o
começo para outro mundo, em outra esfera de tempo.

Isso acontece, pois...

Cem Anos de Solidão é uma espécie de alegoria sobre a história humana. Por
ter essa característica, a história deve abarcar passado, presente e futuro, tudo
ao mesmo tempo.

Esse é um livro realmente diferenciado. Seu começo já nos entrega essa quebra
de expectativa: o tempo não é linear, e sim totalmente misturado. Lendo o livro
vamos perceber, ao longo das sete gerações dos Buendia, que o tempo é quase
cíclico.

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Ao mesmo tempo que não há passado, presente e futuro, e que a narração é
quase sempre do passado -- ou seja, um personagem lembrando-se do que
aconteceu -- e que em Macondo o tempo parece estático, vemos as gerações
subsequentes repetindo os erros de seus pais.

É como se o tempo não andasse para frente; se as pessoas cometem os


mesmos erros dos pais é como se o tempo estivesse sempre repetindo-se. Se
as coisas não mudam, como podemos contabilizar o tempo?

Só é possível para nós contabilizar o tempo porque coisas diferentes acontecem.

Por isso se trata, repito, de uma alegoria da história da humanidade e também,


em muitos aspectos, da maldade humana, pois vemos muito disso no livro:
incesto, pedofilia, violência, inveja e todos os vícios humanos estão no livro.

A obra também é uma alegoria da história da América Latina, porém não vou
entrar nesse assunto agora, pois esse é um tema mais espinhoso e eu
sinceramente acho que o livro funciona melhor como uma alegoria da história
humana.

Esse é, portanto, o segundo ponto: o livro tem uma estrutura mítica, não é
linear e precisa ser lido com outros olhos.

Terceira chave de leitura

O primeiro capítulo fala da fundação de Macondo. Temos o cigano Melquiades,


que surge em Macondo vindo de lugar nenhum, com mão de pardal,
apresentando utensílios para as pessoas: um imã, uma lupa e outras coisas
mais.

José Arcadio Buendia recebe esses conhecimentos do cigano misterioso e logo


começa a tentar aplicá-los a fim de ganhar dinheiro e conquistar poder militar.

Se voltarmos ao raciocínio anterior, de Gênesis, da estrutura mítica e da alegoria,


podemos pensar em Melquiades como uma figura divina, alguém superior que
apresenta ao homem determinados conhecimentos.

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Esse conhecimento, no caso de José Arcadio Buendia, o deixa meio doido,
desvairado. José vira as costas para a família e deixa de ter cuidado com a terra.
Sua vida, antes simples mas significativa, vai sendo deixada de lado e José se
fecha cada vez mais em si mesmo. Essa febre de conhecimento, como vimos
em Frankenstein, é menos uma contemplação do universo, e mais uma vontade
de dominá-lo.

Essa é uma alegoria clara de como a humanidade, na visão de Garcia Márquez,


foi pegando esse conhecimento “mágico”, e se corrompendo, afastando-se de
uma simplicidade primordial.

Podemos ligar isso, também, a Gênesis; Adão e Eva caem porque querem ser
como Deus e isso significa conhecer o bem e o mal, ou seja ter conhecimento.

Essa é a terceira chave: a fundação de Macondo é como a criação do próprio


mundo.

Conclusão

Tudo que acontece em Macondo é como a somatória de milhões de


experiências. José Arcadio Buendia é milhões de homens e mulheres ao
mesmo tempo. Ursula é milhões de mulheres. Seus filhos são bilhões de
pessoas.

No final das contas, eles são todos nós. É daí que vem a estranheza do tempo.
Não sabemos se estamos no passado, no futuro ou no presente… Daí vem nossa
incapacidade em se situar: onde raios fica Macondo no mapa?

Mas essa vagueza por um lado transforma-se em clareza por outro, pois o livro
tem uma estrutura mítica e não de uma história linear.

Encerramento da aula

Bem, leitor, creio que com essas três chaves de leitura você já seja capaz de
abordar melhor o livro. Espero que você goste, e que essa miniaula tenha sido
útil! Nos vemos na próxima!

Um abração do José Arcadio Buendia, também chamado de Raul!

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