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III.

A ÉTICA DA TERRA DOS ELFOS


- RECOMENDAÇÕES DE LEITURA: Sobre o homem de negócios que critica o
idealismo alheio, ler o primeiro dos contos em The Poet and the Lunatics; sobre os
usos do idealismo, ler Hereges, sobretudo os dois primeiros capítulos e o último,
"observações finais sobre a importância da ortodoxia". 

- Este capítulo foi posto numa coletânea de escritos científicos, ao lado de nomes
como Albert Einstein, Alfred North Whitehead,  Bertrand Russell, John Dewey e T.
H. e Julian Huxley.

- O primeiro ponto é que o idealismo não é coisa superável, própria a crianças que o
descartam assim que atingem certa maturidade para coisas mais "práticas". Não: "o
sonho é sempre concreto e confiável; o sonho é sempre um fato. A
realidade é que é, muitas vezes, uma fraude".

- Chesterton faz a digressão a fim de entrar no ponto com que começará a delinear
sua própria filosofia: a democracia. 
- A democracia, segundo ele, pode ser estabelecida em duas proposições:
1)"as coisas comuns a todos os homens são mais importantes que as
coisas peculiares apenas a alguns." Cabe notar, aliás, que é precisamente
esta a base para Chesterton dizer que Dickens, tanto quanto
Shakespeare, Dante, Homero e todos os universais, eram democratas.
Ou, noutras palavras, "as coisas essenciais nos homens são aquelas que eles
possuem em comum, e não as que eles possuem individualmente".
2) "O instinto ou desejo político" é uma dessas coisas que os homens possuem
em comum. Certas coisas, como apaixonar-se, esperamos que os homens façam
sozinhos, ainda que façam mal feito. "Em resumo: a fé democrática pretende
que as coisas mais importantes sejam deixadas a cargo dos homens
comuns -- a procriação, a educação dos jovens, as leis do Estado. Isso é
democracia".

- Pois bem. Logo após definir, com sua genialidade costumeira, em duas frases
apenas, o espírito da verdadeira democracia, Chesterton desembesta a atacar outro
erro moderno: a oposição entre tradição e democracia. Ora, o escritor diz, "a
tradição é somente a tradição projetada através dos tempos", é o
"consenso de vozes humanas" contra a aristocracia implícita de um
"historiador alemão" qualquer (não seria forçar a barra enxergar uma alusão a
Lutero, aqui). A tradição é a "democracia dos mortos", o direito de voto
estendido "à mais obscura de todas as classes" -- a classe dos que já morreram. 
- Chesterton afirma não poder separar uma ideia da outra, já que lhe
parecem ser, no final, apenas a mesma ideia. Inclinava-se pela tradição
justamente por inclinar-se pela democracia. 

"...sempre fui mais inclinado a acreditar na massa


anônima do povo trabalhador do que nessa particular
e irritante classe literária a que pertenço".

- "Enquanto a imaginação não sair do terreno do bom senso, poderá ser


tão extravagante quanto lhe aprouver".
- A ideia do livro é reforçada, ainda uma vez mais. Longe de ser um tratado ou coisa
que o valha, o livro é o esboço apenas de "um posicionamento geral", elencar de
ordem antes biográfica que lógica de "três ou quatro ideias" que lhe haviam
ocorrido. Feito o elencamento, Chesterton tentará "sintetizá-las de forma
genérica, resumindo [a sua] filosofia pessoal ou religião natural" -- a sua
própria heresia, que feitos os remates e retoques finais, mais tarde mostrar-se-ia
nada mais que a boa e velha ortodoxia. 

- A ideia de tradição popular é a primeira destas três ou quatro ideias, e Chesterton


invoca-a para falar de sua primeira filosofia, na qual sempre creu com "certeza
inquebrantável": a filosofia dos contos-de-fada que lhe fora ensinada
pela babá, esta "grave sacerdotisa da democracia".
- Chesterton dá alguns exemplos esparsos da moral profunda por trás de alguns
contos-de-fada mas logo emenda: não lhe interessava, ali, os estatutos isoladamente.
Queria chamar a atenção para "o espírito de totalidade da sua lei", para
"determinada maneira de encarar a vida" que, mais tarde, a vida e todos os
seus fatos só o que fizeram foi tratar de corroborar.
- O espírito ou modo de encarar a vida é este: 1) há coisas que são realmente
lógicas e necessárias, como "sequências matemáticas e puramente
lógicas"; 2) estas tais são tão lógicas e necessárias aqui quanto são no
País das Fadas, que não tem como escapar ao fato de que se a Cinderela é a irmã
mais nova das Irmãs Feias, elas são mais velhas do que ela, ou de que o príncipe
porém, falavam do mundo todo -- do alvorecer, da morte, do amor e da
fé -- como se fosse, todo ele, necessário e lógico; 4) isso é mentira. Há o
teste da imaginação, que nada mais é do que o teste do País das Fadas.
Não é imaginável que 2 + 2 seja igual a 5, assim como não temos como imaginar
uma bola quadrada ou um casado solteiro. Mas temos como imaginar uma maçã
que, em vez de cair no nariz de Newton, houvesse entrado a voar, nervosa, para
acertar outro nariz que lhe parecesse mais digno da pancada; 5) "Nos nossos
contos-de-fada, sempre conservamos esta nítida distinção entre a
ciência das relações mentais, onde há, realmente, leis, e a ciência dos
fenômenos físicos, onde não há leis, mas apenas estranhas repetições.
Acreditamos em milagres materiais, mas não em impossibilidades
mentais"; 6) Assim, os fenômenos naturais, que os modernos julgavam
ter domesticado, continuam tão selvagens e mágicos como antes.

O mundo das Fadas está tão submetido às leis lógicas, e sobretudo à lei
da não-contradição, quanto está o nosso. É universo rigorosamente
aristotélico, e se seus silogismos voam como fadas, ainda são silogismos. 

- Assim, os mesmos progressistas liberais que trombeteavam a democracia


rejeitavam todas as tradições populares, sacrificando o folk lore sobre o altar da
nova oligarquia científica. Chesterton invoca toda a enorme fila de mortos para que,
sentada à mesa, a Tradição possa falar -- e sua voz faz tremer o castelo de cartas
racionalista-cientificista atual.

- Chesterton nega que, aqui, esteja a usar a palavra "mágica" no sentido


"fantástico ou místico". Urge não pularmos etapas. Segundo ele, a linguagem
dos contos de fadas é, simplesmente, "racional", por ater-se ao que de fato sabemos
e não a extrapolar até leis gerais que não sabemos, e "agnóstica", por enfatizar
justamente isto que não sabemos. A linguagem era-lhe a única adequada para
expressar a ideia filosófica sólida de que "não há qualquer ligação lógica entre
voar e pôr ovos".
- Mais, por certo sabendo que poderia andar pela cabeça do leitor a objeção de que
sua linguagem era "sentimental" diz logo: sentimental é o homem de ciência, por
deixar-se levar por meras associações e imaginar que há mesmo uma ligação
"onírica e tênue" entre as duas ideias acima quando o que realmente há é apenas
uma série de repetições.
- E é para isto que servem os contos de fada; para lembrar-nos, através
do choque imaginativo, que não temos o Cosmo assim sob controle nas
palmas de nossas mãos. Os cientistas julgam-no bolinhas de gude a ser jogadas
de um lado pro outro, um brinquedinho apenas cujo significado, início e meio e fim,
foram todos esgotados pela gloriosa "ciência moderna". O velho e adormecido
instinto da surpresa, ou do "espanto" aristotélico mesmo, tinha de abrir os olhos
uma vez mais. 

"Todos nós lemos nos livros científicos e, talvez, em todos os romances,


a história do homem que esqueceu seu nome. Esse homem passeia pelas
ruas, é capaz de ver e apreciar todas as coisas; somente não pode
lembrar-se de quem é. Pois bem: todo homem é o homem dessa história;
todos nos esquecemos de quem somos. O homem pode compreender o
cosmos, mas nunca pode compreender o ego; este está mais distante que
qualquer estrela. Amarás o Senhor teu Deus, mas não te conhecerás a ti
próprio. Todos estamos sujeitos à mesma calamidade mental, todos
esquecemos os nossos nomes. Esquecemos quem realmente somos.
Tudo aquilo a que chamamos bom senso, racionalidade, praticidade e
positivismo significa apenas, no que diz respeito a certas fases já mortas
da nossa vida, que nos esquecemos de que estamos esquecidos. Tudo
aquilo a que chamamos de espírito, arte e êxtase, significa que, durante
um atroz instante, nos lembramos de que esquecemos".

- Esta admiração, este maravilhamento espantado tem um quê de louvor (que nada
tem a ver com otimismo), um saber que a vida é tão "enigmática" quanto é
"preciosa". Assim, sabendo-se num mundo que tem lá sua boa quota de
males (mais dragões que princesas), ainda assim Chesterton estava
grato por ter nascido e entrado na aventura de viver. Afinal de contas, se
não estivesse vivo, não teria nem como agradecer por um charuto que
lhe dessem no aniversário. A vida é o primeiro bem, e é um bem, ainda que
tenha males sem conta.

- "O mundo era um choque, mas não meramente chocante; a existência


era uma surpresa, mas era uma surpresa agradável". Este é o primeiro
princípio da filosofia dos contos-de-fada. O paradoxo de um choque
familiar, por assim dizer, que Chesterton resume magistralmente: "Deus
fez o sapo saltar; mas o sapo prefere saltar".
- E aqui chegamos ao segundo princípio, a "Doutrina da Alegria
Condicional": se o homem moderno havia ficado doido ao querer se achegar por
detrás dos primeiros princípios do pensamento, doida ficará a moral se quiser
questionar a máxima escolástica de "o bem deve ser praticado". Nos contos de fada,
a felicidade incompreensível assenta numa condição incompreensível: a mesma
aparente arbitrariedade que tomamos por leis da natureza surge aqui em relação à
moral. 
- Esta condição, este "se" em que se pendurava toda a felicidade nos contos de fada,
Chesterton extrapolou-o para a existência mesma, e passou a sentir que "a própria
vida é brilhante como o diamante e frágil como a vidraça".
- Chesterton, sentindo, com o espanto primeiro da existência, que ela mesma era tão
excêntrica e extravagante quanto as condições, não achava injusto ficar quieto e não
compreender os limites da dádiva quando não conseguia compreender
nem mesmo a dádiva. O segundo princípio é consequência natural e
lógica do primeiro. O gordo chama-lhe "FILOSOFIA DA FADA MADRINHA", ou
"CALA A BOCA, FAZE O BEM E SERÁS FELIZ". 
- "Nunca me senti... inclinado a opor-me a qualquer imposição pelo
simples fato de ser misteriosa [...] eu desejava ardentemente possuir a
Terra e o Céu", fosse como fosse. Ele queria gozar o presente, não controlá-
lo. 
- O exemplo que nos dá é o do sexo. Enquanto sua geração amaldiçoava os
limites da monogamia Chesterton estava a fitar, espantado, o fato
mesmo do sexo.Estava tão maravilhado que pudéssemos ter uma mulher
que nunca lhe passou pela cabeça reclamar por não poder ter dez. Assim,
o espanto perante o sexo trazia consigo uma curiosa sobriedade. Os polígamos, como
todos os filósofos que ficavam a tagarelar sobre expansão ilimitada, na verdade
haviam falhado em realizar o sexo. 
- Daí Chesterton arranca o problema central do estetismo exacerbado dos tempos
modernos: ninguém estava disposto a fazer um sacrifício simbólico, como ficar
sóbrio ou casar-se com uma só mulher e a ela ser fiel, para pagar os prazeres. "A
verdade", porém, "é que qualquer um de nós pode pagar, com um ato
ordinário de moral, uma alegria extraordinária".

- Pois bem. Chesterton deu-se conta de que o mundo moderno vinha na direção
exatamente contrária a que corriam estes dois princípios, o mundo romântico
(chocante porém familiar; selvagem porém aconchegante) e a moral que não
reclamava dos limites em vista da coisa limitada. Deste choque, "brotaram dois
súbitos e espontâneos sentimentos" que o tempo viria sedimentar em duas
convicções para o resto de sua vida. 

- 1) Chesterton topou, primeiro, no FATALISMO CIENTÍFICO (a que já se


referira, aliás, no início do capítulo) alardeando que "as coisas são sempre como
deviam ter sido, sucedendo-se, invariavelmente, desde que o mundo é
mundo", o que é outro modo de dizer que "nada tinha realmente acontecido
desde o início do mundo, e nada acontecera desde que a existência
começara". Contra isso, erguia-se seu filósofo dos contos de fadas, dizendo que há,
em todas as coisas, um elemento de escolha: sentia que algo havia sido FEITO. 
- Mais: a única prova que lhe podiam dar para o fatalismo era a repetição. Ora, para
o gordo, a repetição era antes um mistério que uma explicação. Que todos os
elefantes tivessem uma tromba cheirava-lhe a uma conspiração e não a uma "lei
científica". A repetição na Natureza parecia-lhe a "repetição exacerbada de um
professor zangado" e, assim, ele começou a entrever uma ideia: 
- E é aqui que o gordo dá uma de suas proverbiais pancadas bem na escondida
jugular duma escola inteira de pensamento. O materialismo, ao fim e ao cabo,
assenta sobre uma suposição, que aliás é falsa: "supõe-se que se uma coisa
continua a se repetir é, provavelmente, uma coisa morta". A variação,
longe de ser sinal inequívoco de vida, é geralmente produzida pelo
"enfraquecimento ou interrupção de sua força ou desejo". Um homem
toma um ônibus por estar cansado de andar, um homem sai para andar por estar
cansado de ficar quieto em casa. Fossem a vida e a alegria descomunais,
porém, conseguiríamos, ao modo de Santo Antão, ficar a orar por dias a
fio num deserto. 
"Ora, utilizando uma frase popular, pode ser que o Sol se levante todas
as manhãs porque nunca se cansa de levantar-se. Pode ser que a sua
rotina se deva não à falta de vida, mas sim a uma torrente dela. O que
quero dizer pode ser observado, por exemplo, nas crianças, que
encontram algum jogo ou brincadeira da qual especialmente gostam.
Uma criança balança ritmicamente as pernas devido a excesso e não à
ausência de vida. As crianças são dotadas de abundante vitalidade, são
essencialmente impetuosas e livres e, por isso, querem as coisas
repetidas e inalteradas. É por isso que dizem "de novo", e o adulto
repete-lhe a mesma coisa até quase cair morto. Os adultos não são
suficientemente fortes para exultarem na monotonia, mas talvez Deus
todas as margaridas iguais; talvez Deus faça cada uma separadamente,
sem que nunca se sinta cansado de fazê-las. Pode ser que Ele sinta em si
o eterno apetite da infância, pois nós pecamos e envelhecemos, ao passo
que o Nosso Pai é mais jovem que nós".
- Assim, surgiu-lhe a sua primeira convicção: os fatos não eram
milagrosos apenas por serem prodigiosos; eram milagrosos por serem
premeditados. O mundo envolvia certa mágica; pode ser que houvesse um
mágico. O mundo tinha um objetivo, como uma história; pode ser que houvesse um
contador de histórias. 

- 2) O mundo moderno fatalista era também contra os limites e


condições, e só "gostava de falar era de expansão e limitação". A sua
filosofia dos limites perigava sumir sob a retórica do primeiro dos imperialistas
cósmicos, Herbert Spencer. Este filósofo falava como se houvéssemos sido
"conquistados anexados pelo universo astronômico": o dogma espiritual do
homem apequenava-se ante o simples tamanho do universo; a Humanidade tornava-
se uma "pequena nacionalidade" apenas em vez de uma raça de deuses -- anjos e
diabos. 
- Pior: os expansionistas eram os mesmos fatalistas que haviam atacado o seu
primeiro princípio e, assim, pareciam gostar e achar particularmente inspirador
ficar a falar que a prisão cósmica era enorme. Prisão, aliás, cuja estrutura não
tínhamos como violar, pois que éramos apenas parte dela, com todo o livre-arbítrio
próprio a tijolos. 
- Se o Universo era uma coisa (pois tinha uma regra inviolável), devia também ser a
única coisa que existe. Mas, se é assim, por que deveríamos chamar-lhe grande em
vez de pequeno? Por que dar ênfase a um sentimento em detrimento ao outro?
- Chesterton, por sua vez, impressionava-se com a pequenez do Cosmo, pois
"quando alguém gosta de alguma coisa, refere-se a ela com diminutivos".
A vastidão é incomensurável, o incomensurável é amorfo. Não se pode amar o que
não tem forma: "Essas pessoas admitiam que o Universo era coerente, mas
não eram amigas do Universo. Eu, porém, era terrivelmente amigo do
Universo e desejava tratá-lo por um diminutivo". Enquanto os modernos
folgavam em alardear "um lúgubre desperdício", Chesterton afagava uma sorte
de "economia sagrada".
- "Todo homem vive uma terrível aventura: podia não ter nascido, como
as crianças que nunca vieram à luz"; "qualquer homem da rua é um
- Assim, a segunda convicção subconsciente lhe viera ao modo de Crusoé na ilha
perdida entre os oceanos: enquanto os modernos desembestavam a tagarelar sobre
expansões e alargamentos sem fim nem conta, Chesterton veio a perceber que
as coisas boas que do mundo haviam perdurado, sobrevivido a alguma
ruína primordial e escapado por um triz. A própria existência poderia não ter
sido, e o firmamento mesmo era tão frágil quanto o sapatinho de cristal da princesa. 

- Assim, o próprio Chesterton resume o capítulo em cinco pontos: 1) o


mundo não se pode explicar a si próprio. Ou é um milagre com uma
explicação sobrenatural, ou alguma sorte de mágica; 2) se o milagre tem algum
sentido, faz sentido que haja alguém a que se possa atribuí-lo; 3) a
existência é boa, a despeito de seus males; 4) a gratidão adequada, que afinal é
o teste de toda felicidade verdadeira, é a "humildade e a limitação"; 5) o
Universo que escapou por um triz e como tesouro salvo dum naufrágio; o
homem deve amá-lo como algo frágil que se poderia ter perdido. 
 

 
INTRODUÇÃO - EM DEFESA DE
TUDO O MAIS
- O livro foi escrito em resposta ao desafio que lhe lançara um certo G. S. Street que,
ao ler Hereges, havia notado que Chesterton descia o porrete em todas as filosofias
modernas sem, contudo, jamais mostrar às claras do que, afinal de contas, era feito o
próprio porrete; sem dizer-nos qual era a sua própria filosofia. 
- A obra tinha em mira, portanto, apresentar, ao modo chestertoniano, tanto qual
era a filosofia do escritor quanto o modo pelo qual ele se sentira compelido a tomá-la
para si. 
- Aliás, a filosofia não erasua: era da humanidade tanto quanto de Deus. 
- Assim, temos, logo na primeira página e em dois parágrafos apenas, muito da
personalidade chestertoniana: a pugnacidade, o bom porém amigável e espirituoso
combate; a obra direta, no mais das vezes reação direta a algum fato ou opinião --
direta ou indireta, próxima ou distante, grande ou pequena; a ironia solar, socrática,
sem malícia nem amargor, que lhe saia da pena tanto por método quanto por
vocação; a pessoalidade, enorme personalidade de que nem uma linha sua que fosse
jamais conseguiu safar-se ilesa; a Tradição...

- O principal problema do livro está (e, segundo o autor, o único problema que deve
ser enfocado) emcomo manter o romance; isto é dizer,em como manter a
qualidade romântica que surge da tensão contínua entre o
desconhecido, estranho e perigoso por um lado, e o aconchegante,
familiar e caseiro, por outro.É isto que, segundo Chesterton, o
cristianismo mantém, e é isto e apenas isto que o livro tem em mira
provar. 
-"romance positivo", "combinação do inusitado com o seguro",
"combinar a idéia da maravilha do inusitado com a ideia da comodidade
do que já está estabelecido".
- A pessoalidade do livro iria safar Chesterton, ao menos, da acusação que mais
detestava: a de ser frívolo, e de dizer as coisas apenas por dizer, cunhando,
irresponsável, paradoxos apenas para ver como soavam ou, pior, para defender o
que, no fundo, sabia ser indefensável. A quem quer que tenha lido as críticas de
Chesterton à arte pela arte, e de como ligava a arte genuína a um fundo moral sólido,
o desprezo, aqui, tornar-se-á ainda mais claro.

"Nunca na minha vida disse qualquer coisa pelo


simples motivo de achá-la engraçada".

- E, então, vem a lume a citação com que Alan Watts intenta descrever toda a
filosofia de Chesterton, sobre a entrevista com um grifo e o rinoceronte que parecia
não existir. Aqui, o que a frase quer dizer é o seguinte: Chesterton REALMENTE cria
no que dizia e jamais inventara mentiras em nome do "estilo" ou o que quer que
fosse. Seus escritos não nos contavam mentiras, seu estilo não hiperbolizava o que
não está lá. 
- As "elefantescas aventuras em busca do óbvio". A descoberta de que sua
heresia própria nada mais era que uma pálida cópia da tradição cristã foi um "feliz
fiasco".
- A teologia central cristã, teologia do Credo, "é a melhor fonte de energia e
ética sã", que seria uma energia e ética que mantêm, precisamente, o romance em
pé. Que mantêm tanto o maravilhamento pelo desconhecido como a afeição pelo
conhecido.
- O livro é uma "mal alivanhada biografia", e não um "tratado eclesiástico",
daí que Chesterton não entre em bulhas teológicas e nada fale sobre a primazia
Papal, por exemplo. Mas, como não poderia deixar de ser, termina a introdução com
uma provocação: bastava o senhor G. S. Street lançar-lhe novo desafio que, de
pronto, escrever-lhe-ia outro livro. 

I. OS MANÍACOS
RECOMENDAÇÕES DE LEITURA: Sobre os contos-de-fadas e a relação com a
sanidade, ler A Avó do Dragão e O Anjo Vermelho -- Tremendas Trivialidades; sobre
a razão causadora da loucura, ler "Ciência e Demência", do prof. Olavo de Carvalho;
sobre o que é, afinal, a razão, e qual é a sua relação com a verdade, ler "Inteligência e
justamente, por esta fixação maluca numa só ideia às custas de tudo o mais; sobre
como as filosofias modernas explicam sem explicar o importante, ler "Café, Chá e
Abstrações"; 

- "Os homens que realmente acreditam em si m esmos estão todos nos


hospícios". Chesterton, que segundo ele mesmo quase ficara louco, literalmente
louco, safou-se da demência ao apegar-se a um frágil fio de gratidão e, segurando
firme sempre, escapou para fora do próprio umbigo (e, junto, das próprias dúvidas e
do solipsismo pessimista e niilista). O homem que realmente crê em si mesmo, que
acredita em si mesmo acima de todas as outras coisas e fecha por dentro a porta
para o mundo lá fora, acabará, cedo ou tarde, ficando louco. 
- Acreditar em si próprio é tanto um "pecado" quanto uma "fraqueza", é sinal de
"histeria e superstição" bem como uma das "características mais comuns de
um fracassado".
- Chesterton inicia a argumentação "nos arredores de um manicômio" pois a
teologia que então andava em voga era o protestantismo liberal e a alta crítica da
Bíblia, linha teológica cética e racionalista que negava a existência do pecado e,
assim, negava a única parte da teologia cristã que, podendo ser de fato provada,
poderia servir de ponto de partida para a discussão. Como o pecado era coisa
controversa (e como sempre lhe aprazia entabular uma discussão metafísica
partindo de coisas as mais aleatórias possíveis), Chesterton começou com a loucura,
coisa típica de seus escritos e uma das chaves interpretativas de toda a sua filosofia.
- Se os homens duvidavam do pecado original, não lhe constava que estivessem a
duvidar que existissem manicômios. "Os homens negam o inferno, mas não
negam a existência de Hanwell".

- A loucura como coisa poética apenas para os sãos. O excêntrico só é chocante e


interessante e poético para quem é comum. Para o excêntrico, ou para o doido, sua
excentricidade ou doidice nada têm de misterioso e atraente. Assim, é o sujeito
comum que passa o tempo de maneira mais divertida, enquanto o
excêntrico, o artista diferentão, só o que faz é queixar-se da chatice da
vida. Seu próprio queixume é motivo para causar divertimento numa pessoa
ordinária.
- Assim, também, são os contos-de-fadas, que têm por protagonistas pessoas
normais em aventuras anormais, que perdurarão; enquanto os modernos romances
psicológicos e seus heróis anormais, seus centros que não estão no centro, perdem a
força psicológica que há, justamente, no choque entre o ordinário e o extraordinário:
de nada adianta escrever uma história de dragões entre dragões. Ou
melhor, até adianta: só ficará uma merda. 

- A primeira coisa a se fazer, portanto, antes de entrar de cabeça no estudo da


"filosofia da sanidade", era corrigir o erro, bastante em voga, de que o perigo
da doidice estava, principalmente, na imaginação, e sobretudo na
imaginação poética. Uma parcela da modernidade, desconfiada de tudo o que
não fosse estritamente "lógico" e "científico", rejeitava em princípio tanto a fé
quanto a imaginação. Contudo, lá vem o gordo, para quebrar a porra toda: "A
imaginação não produz a loucura: o que produz a loucura é exatamente
a razão". Sem querer ser contra a razão, Chesterton está apenas a apontar que o
perigo, que é real, está nesta e não naquela: na razão do jogador de xadrez, e não na
imaginação do poeta.

pág. 36: "O fato geral é simples... e é a cabeça que estoura". LER A PASSAGEM

- E sobre as inteligências que estão sempre a um pé da doidice, Chesterton diz que


não são TODAS as grandes inteligências, mas apenas as inteligências mundanas, dos
céticos e cínicos políticos e diplomatas que ficam sempre a tentar medir as cabeças
alheias bem como calcular o que lhe anda em meio à massa cinzenta.

- Os maníacos são, no mais das vezes, grandes pensadores. São grandes pensadores
pois lhes falta a força para, como o homem sadio, distrair-se: ficam fixados,
obsessivamente, num só ponto, e repisam-no e ruminam sobre até, literalmente, a
doidice. "É o homem são quem pratica atos inúteis, pois o doente não é
suficientemente forte para estar ocioso". O louco, como o determinista, "vê
sempre razão demais em todas as coisas" e não consegue entender os atos
mais banais. Isso é característica notável, também, da depressão. O
depressivo simplesmente não tem força para assobiar ou bater um pé no
outro enquanto espera o ônibus.
- "Se o louco pudesse, por um instante, praticar qualquer ato impensado,
estaria curado".

- O louco raciocina muito mais rápido e é capaz de um espantoso e macabro nível de


detalhamento justamente por deixar de fora tudo aquilo que, numa pessoa sã, faz ela
pensar duas vezes: o senso de humor, as enormes verdades da experiência,
mesma até formar um círculo impenetrável: mas o círculo é minúsculo e deixa de
fora todo o mundo.
- Uma "universalidade estreita", uma "eternidade pequena e acanhada".
- A mais evidente marca da loucura é a combinação de uma "completude lógica
com uma contração espiritual". Os contos-de-fada, aliás, bem como a
poesia no geral e sobretudo a fé, são excelentes antídotos a esta
peçonhenta mistura mental e espiritual. Tudo isso haverá de ressaltar,
se não conceitualmente ao menos intuitivamente, a diferença
fundamental que há entre PENSAR e INTELIGIR. Mais, a lógica é apenas
possibilidade, sempre. O trabalho que a gente tem para criar um
esquema mental não é, como Kant imaginava, a prova de sua
veracidade. Mais trabalho NÃO QUER DIZER mais verdade. 

- Assim, com uma mente mórbida (como mórbida estava a mente de Chesterton na
escola Slade), o que temos de fazer não é tanto argumentar mas, por outra, borrifar-
lhe ar fresco pelos ouvidos, salvá-lo da asfixia de um só argumento ao mostrar
que o mundo é infinitamente maior do que ele mesmo -- isto é dizer, ao
humilhá-lo perante o espetáculo do universo. - Nos três exemplos dados por
Chesterton, do sujeito que se julgava perseguido por todos, do sujeito que se achava
o Rei da Inglaterra e do sujeito que tinha por certo ser Jesus Cristo, a solução era a
mesma: humildá-los. Para o primeiro, o remédio era fazer com que ele entretivesse a
possibilidade apenas de que as outras pessoas todas não viviam em função dele
mesmo, que havia vida própria para fora de seu próprio umbigo; no segundo caso, a
solução era fazê-lo desdenhar de ser um Rei, baixar-lhe a bola; no terceiro e último,
o tratamento era esmagar-lhe a doidice sob o peso cósmico da realidade. 

- A ciência moderna não crê na liberdade do pensamento tanto quanto a antiga


religião não cria. Se esta desencorajava os homens a pensarem em sexo, aquela
desencoraja-os a pensar na morte, pois, ainda que seja um fato inescapável, é
considerado "mórbido". Assim, quando se depara com um sujeito que tem a
morbidez por mania, a ciência não se preocupa tanto com a "lógica": preocupa-se em
agir como um curandeiro agiria, preocupa-se em FAZER algo. 
- Como é o próprio órgão da razão que está enfermo, de nada adiantará usá-lo para
escapar: assim que o engenho começar a mover-se, só o que fará é cair no mesmo
sulco circular e ficará a dar voltar eternas a menos que pela VONTADE ou pela FÉ
FAÇA ALGO e saia de lá. 
lhe mesmo o oposto [vide "Inteligência e Verdade", de Olavo de Carvalho]. 
- "O doido vive na arejada e bem iluminada prisão de uma única ideia"
falta-lhe "aquela hesitação e complexidade própria das pessoas normais".
Feministas, veganos, liberais, céticos, racionalistas, etc. etc...
- A combinação de uma "exaustiva e expansiva razão com um limitado
senso comum". Assim, espiritualidade e senso comum são, ao menos aqui,
sinônimos.

- A primeira teoria a cair vítima do criticismo chestertoniano é o materialismo -- a


teoria de que tudo o que há é a matéria, e que a matéria é tudo o que tem massa e
está sujeito à ação do espaço-tempo. 
- Para começar, o materialismo exibe esta mesmíssima característica que é própria
aos loucos: explica todas as coisas ao mesmo tempo em que deixa tudo o mais de
fora. Explica tudo e não explica nada. Fixado nesta ideia de que só o que há é a
matéria, torna-se "inconsciente das energias alheias e da grande
indiferença da Terra; não se ocupa das coisas reais... tais como as lutas
dos povos, o orgulho das mães, o primeiro amor ou o medo do mar". 

- págs. 44 e 45: "Podemos explicar a detenção de um homem... as partes parecem


maiores que o todo". A objeção, ou antes a sensação geral que tanto as explicações
dum doido quanto as explicações da filosofia moderna suscitam numa pessoa
normal é a de que o universo, ou Deus, ou o próprio homem parecem algo
menor, mesquinho e desimpressionante quando comparados ao que
sentimos na realidade. Há um desequilíbrio entre o senso-comum e a
filosofia. "As partes são maiores que o todo" -- isto é dizer, um bebê a ser
segurado e amamentado por uma mãe, por exemplo, é algo mais do que
um punhado de átomos a transmitir outros tantos punhados de átomo a
um punhadinho de átomos, todos a boiarem num mundo visto pelos
olhos cegos de uma vontade sem inteligência. Há algo mais, ali, um
misto insondável de amor, reminiscências de infância, religião,
memórias e afeições e filosofias que jamais poderiam ser reduzidas a
pura bioquímica mecânica. É justamente este algo a mais, que enfim
parece ser o mais importante de tudo, que as filosofias deixam de fora. 

- Ademais, a filosofia materialista (se verdadeira ou não) é muito mais limitadora do


que o "espiritualismo", e limitadora não no sentido óbvio em que TODAS as ideias
regido por uma Vontade, e vontade una e trinitária, infinitamente simples e
complexa, por isso mesmo crê num mundo multiforme, e sabe-se um algo de animal,
de santo, de diabo, de cidadão e, mesmo, de doido. O doido materialista, por outro
lado, por crer que o universo é como um relógio de corda acionado por ninguém, não
tem como aceitar a mínima brecha que seja: aceitar que algo pudesse sair do
esquema cósmico seria como aceitar que o relógio tenha sentado-se, um belo dia,
para mudar as próprias engrenagens. 
- Quem crê na eternidade pode ou não pensar nela, conforme queira;
quem nela não crê, não pode pensar a respeito, ainda que muito
quisesse. 

- Além: as deduções que decorrem da doutrina materialista vão sufocando, aos


poucos, a humanidade, exatamente como faz a loucura e as deduções dos doidos.
Vão assassinando, a pancadas insistentes, a bondade, a esperança, a coragem, a
poesia e iniciativa, além de outras tantas coisas que nos fazem, enfim, humanos.
- Seria absurdo dizer, por exemplo, que o fatalismo completo seria um avanço no
tocante à liberdade. Que liberdade poderá haver no determinismo, que arranca do
homem tanto suas asas de anjo quanto seu rabo de demônio e transforma-o numa
engrenagem somente, peça que se inclina ao mal ou ao bem ao sabor da vontade
aleatória de um cosmos cego e estúpido? 
- Está tudo muito bem em falar de liberdade na doutrina materialista,
mas resta o fato de que o fodástico materialista que se diz livre para crer
que não há liberdade alguma é como um preso que, cuidadoso e
metódico, põe grilhões nos pés e nas mãos e mete-se a si mesmo na
cadeia -- gabando-se sempre de como é ousado, claro. "...o fato mais
concreto e importante é que ele não é livre para louvar, maldizer,
agradecer, justificar, solicitar, punir, resistir às tentações, promover
arruaças, tomar resoluções no Ano Novo, perdoar os pecadores, lutar
contra os tiranos ou, até, dizer um simples obrigado quando, à mesa, lhe
passam a mostarda".

- Tampouco é verdade que o materialismo seja filosofia inclinada a aplacar a


crueldade ou os castigos de qualquer sorte. Conquanto seja perfeitamente concebível
que nada em absoluto irá mudar com o fatalismo a ser pregado, se algo mudar, não
será o castigo -- consequência inapelável de pecados inevitáveis --, será a tentativa
de evitá-los, de tentar suscitar no criminoso uma luta moral, coisa que pressupõe o
cavalgados ou por Deus ou pelo Diabo, não lhes cabe trocar de
cavalgador mas apenas cavalgar.

- Do materialismo Chesterton passa ao ceticismo, e passa a falar do homem que, pior


do que quem cria que tudo começou na matéria, crê mesmo que tudo começou em si
mesmo -- dentro de sua cabeça. É o sujeito que crê ser a sua família e amigos uma
mitologia. 
- Mais: o ceticismo tem um quê de algo que apela fortemente ao "egoísmo um
tanto místico do mundo moderno".
- Este extremo "pan-egoísmo" é, como o materialismo, "completo em teoria e
ineficaz na prática".
- O erro de ambos, do materialista e do cético, está não numa falácia lógica ou erro
qualquer no meio de suas teorias -- está em suas vidas, da cabeça aos pés, vivem um
erro manifesto, um descompasso insano entre a realidade e a teoria.
- A posição deles é infinitamente racional, tão infinitamente racional
quanto uma moeda de um centavo é infinitamente circular. 

- A imagem da cobra comendo a si mesma como símbolo da "média


infinidade", da "eternidade básica e escravizante".

- A marca principal da loucura é a "razão utilizada sem sua raiz, a razão no


vácuo". Com premissas erradas, de nada adianta a lógica, que só o que fará é
construir um castelo sobre areia movediça. O que importa são "os primeiros
princípios", que fazem com que o homem comece a pensar partindo do lado certo
da ponta.

- NA PRÁTICA (já que Chesterton irá tratar sobre a doutrina positiva da sanidade só
mais tarde), o que conserva os homens sãos é o misticismo: isto é dizer, o homem
que aceita que a vida é feita tanto de luz quanto trevas; tanto de coisas
compreensíveis quanto de coisas que não entendemos em absoluto.
- pág. 50: "É o misticismo que conserva os homens sãos:...  é como um poste
indicador para os viajantes livres". LER A PASSAGEM

- Além do círculo, centrípeto e de uma universalidade pequena e mesquinha, e a


cruz, que carrega no peito uma contradição e, por isso mesmo, tem como estender os
quatro braços até o infinito sem jamais perder a forma, Chesterton fala do Sol e da
de modo nenhum claro. Sua luz é própria e exuberante. A lua, por sua vez, tem uma
luz emprestada, cadáver cuja vida está toda no sol. A lua tem uma circunferência
"clara e inconfundível", é "periódica e inevitável" e, por isso mesmo, é a
"mãe dos lunáticos".

- Em suma: o mundo moderno, que não crê mais nem mesmo no pecado, ainda não
descrê nos manicômios e na doidice; a doidice só é poética para quem é são, pois
apenas o são tem como enxergar a ironia; a doidice, aliás, é perigo que espreita
muito mais os lógicos e matemáticos que os poetas e imaginativos; os doidos são, no
geral, excelentes argumentadores, e sua lógica é impecável; sua lógica é impecável
precisamente por deixar de fora tudo o mais que não é puramente lógico e que freia
o homem são; a cura para um doido, portanto, não é argumentar com ele mas
humilhá-lo, humildá-lo ao mostrar-lhe que o mundo é infinitamente maior do que
ele mesmo; o doente tem de parar de pensar a fim de não ficar doido: "o doido é o
homem que perdeu tudo exceto a razão"; tanto o materialismo quanto o ceticismo
exibem precisamente as MESMAS características de um doido: a mesma completude
lógica misturada à mesma estreiteza espiritual, a mesma razão exaustiva e expansiva
aliada a um limitado senso comum, a mesma completude teórica com a mesma
ineficácia prática; assim, a lógica, de si e por si, não garante coisa nenhuma. O que
garante, não apenas a verdade, mas mesmo a sanidade, são os primeiros princípios
corretos; o primeiro princípio correto, que sempre conservou aos homens a sua
sanidade é o misticismo: que "o homem pode compreender tudo com a ajuda
daquilo que não compreende".
Este capítulo quer provar, como nos diz o próprio Chesterton no
seguinte, que "o perigo da morbidez provém, para o homem, mais da
razão do que da imaginação".

VIII. A AUTORIDADE E O
AVENTUREIRO
- Chesterton começa este último capítulo com o melhor resumo que alguém poderia
ter feito do capítulo anterior. A ortodoxia, além de manter a moralidade e a ordem, é
a única guardiã lógica "da liberdade, inovação e progresso".
espírito precede a matéria e a ela dobra; despertar as gentes para a vigília constante
das instituições não será coisa que conseguiremos insistindo na imanência divina e
na Luz Interior, razões para contentamento e apatia; a Trindade fomenta e sustenta
a noção de um generoso equilíbrio em vez de uma "autocracia pavorosa"; para a
Europa ser tanto um ataque quanto resgate reais, há que se insistir na realidade do
perigo; e, sendo o próprio Deus um abandonado e revoltado, ateus e revolucionários
e desprezados de toda a sorte têm uma divindade que os entende. 

- Feito o resumo, Chesterton chega no ponto crucial, "a verdadeira e última


questão", que conclui todo o assunto. Por que é que, tendo descoberto as
verdades na doutrina cristã, alguém não poderia razoavelmente ficar
com aquelas e rejeitar esta? Ficar com a ideia do perigo sem a condenação, da
fraqueza humana sem a Queda?

- A primeira razão é que Chesterton era "racionalista", no sentido estrito de


ser racional e ter "alguma justificação intelectual para as minhas
intuições". Com a alegre ironia que lhe é de praxe, faz notar como é
intelectualmente conveniente crer que o homem caiu para tratá-lo como um homem
caído.

- Chesterton cria no cristianismo pela mesma razão, ou razões, pelas quais os


agnósticos não criam. O problema não estava numa suposta demonstração solitária,
mas, antes, "numa enorme acumulação de fatos pequenos mas unânimes".
- Aqui, há um ponto interessante. Chesterton diz que "um homem pode ficar
menos convencido de determinada filosofia após ler quatro livros do
que após ler um só livro, ouvir sobre uma batalha, ver uma paisagem e
encontrar um velho amigo." Há uma série de experiências vagas porém vivas, de
fatos enormemente variados que acabam por convergir para uma única conclusão. É
a mesma coisa que diz noutro lugar, sobre a dificuldade de provar por que era
católico.
O problema com os fatos pequenos mas unânimes dos
agnósticos era simples: eles não eram fatos, pura e
simplesmente.
O gordo começa com três: 1) os homens são muito parecidos a animais irracionais,
uma variedade acidental apenas; 2) a religião nasceu do medo e da ignorância; 3)
amarguras e tristezas sem-conta trouxeram os sacerdotes à sociedade.
- Primeiro, o homem. O espantoso não é que o homem pareça tanto com os
animais irracionais; espantoso mesmo é que, parecendo tanto, ainda assim seja tão
"desmedidamente diferente". Chesterton fala da arte do homem, de como
estátuas e quadros e ferramentas e jogos e arquiteturas são marcas distintamente
humanas. Selvagem é o homem; dos animais, o único que não está perfeitamente
domesticado jamais. Assim, o que tem de ser explicado é este abismo, que por sua
natureza está mais para a religião do que para a biologia materialista. 
- Segundo, a religião. Era com base numa pré-história sobre a qual sabemos nada
que eminentes homens de ciência afirmavam ter surgido o divino a partir das trevas
e do terror. Mais: enquanto a história nada podia dizer, todas as lendas diziam
precisamente o contrário, que noutros e primevos tempos o mundo era mais amável,
até haver algo como uma calamidade cósmica. "Toda a raça humana tem uma
tradição da Queda do homem" -- o que é dizer que toda a raça humana crê
numa felicidade antiga.
- Terceiro, os sacerdotes e o soturno do clero. Os países da Europa com
alguma influência restante dos sacerdotes eram precisamente os mais coloridos,
dançantes, artísticos e alegres. "O Cristianismo foi a única barreira que
resguardou o prazer do paganismo".
- Assim, diz Chesterton: "Primeiramente, dê-me uma explicação da extrema
excentricidade do homem entre os brutos; em segundo lugar, da vasta
tradição humana sobre alguma antiga felicidade; e, em terceiro lugar, da
conservação parcial de tal alegria pagã nos países da Igreja Católica".

- O próprio Chesterton dá uma resposta, que segundo ele abrange as três perguntas:
o Céu descera sobre a Terra duas vezes: primeiro, para povoá-la com Sua imagem, o
homem, e, mais tarde, para resgatar este mesmo homem sob a forma terrível de Um
Homem. Isso explicaria, primeiro, por que todo mundo olha para trás, para a Queda,
e por que todo mundo só olha pra frente no pequeno continente em que Cristo, o
Homem, assentou Sua Igreja. 

- Porém, dá mais três argumentos a fim de cimentar sua tese. 1) Cristo era
criatura dócil e domesticada, de todo desligado do mundo e para ele incapaz de
oferecer qualquer atrativo; 2) o Cristianismo surgira e florescera em meio às
trevas da ignorância; 3) povos muito religiosos (ou supersticiosos) são fracos,
atrasados e carecem de praticidade. 
- Primeiro, o Cristo dócil e domesticado. Em vez de ler livros sobre o Novo
Testamento, Chesterton foi ler o Novo Testamento, e longe de topar numa "pessoa
um "ser extraordinário, com lábios de trovão e atos de impressionante
decisão", que muitas vezes agiu como um deus irado -- e sempre como um Deus.
- Segundo, a noção de que o Cristianismo pertence à Idade das Trevas. É,
simplesmente, mentira. O Cristianismo foi a única coisa na Idade das Trevas que
não era sombria. Era, aliás, uma ponte brilhante que ligava duas civilizações
também brilhantes. Nasceu em pleno verão do Império Romano, e não em meio à
barbárie. Sobreviveu à morte do Império Romano, aliás. "...a Igreja Cristã foi a
última vida de uma sociedade velha assim como a primeira vida de uma
sociedade nova". Longe de querer arrastar-nos de volta para a Idade das Trevas, a
Igreja foi a única coisa que nos tirou de lá.
- Terceiro, os povos supersticiosos ou religiosos são fracos, e lhes falta
praticidade. Os irlandeses, porém, nada tinham de fracos e sempre souberam fazer
valer os seus direitos, além de sempre trabalharem ao máximo o que tinham e se
adaptarem muito bem a profissões penosas, como a serralheria, a advocacia e a
milícia. 
- O cético, conquanto fizesse bem em guiar-se por fatos, esquecia-se de checar seus
fatos. Era por demais crédulo; cria até mesmo em jornais ou enciclopédias. 

- Aqui, Chesterton, sabendo dos fatos de fato, fica terrivelmente espantado e


pergunta-se sobre de onde poderia vir tamanha energia para morrer junto com um
Império apenas para ressuscitar noutro; para fazer de camponeses arruinados de
uma desprotegida ilha do Império nação autossuficiente? E a única resposta
plausível era que era energia vinda de outro mundo. E tão de outro mundo que fez
da Europa uma civilização com poder de auto-renovação que lhe é único -- uma
fênix que morre todos os dias. No Cristianismo histórico há uma força que de tão
não-natural só pode ser explicada como sobrenatural. A nossa civilização deveria ter
morrido junto com Roma; deveria ter sido absorvida pela Assíria ou
Babilônia: "somos todos uns revenants; todos os cristãos vivos são pagãos
mortos andando por aí".

- Depois de mais um apanhado do capítulo, passa a tratar, de modo isolado e um


tantinho mais demorado, da "ocorrência objetiva do sobrenatural". 1) diz que
crê nos milagres de modo estritamente racional, sem nada daquela convicção
primária, pré-racional, que envolvia a sua crença em Deus; 2) deixa claro que quem
crê nos milagres fá-lo pois tem provas. É quem os nega que se baseia numa doutrina
qualquer. É apenas óbvio crer num camponês que se diga testemunha de um
sobrenatural; 4) rejeitar esta massa de testemunhos revelará uma de duas coisas: ou
se estará a negar o princípio da democracia, ou se estará a afirmar o princípio
essencial do materialismo; 5) todos os argumentos contra os testemunhos de
milagres, antigos ou modernos, são circulares: diz-se que não se pode confiar nos
relatos milagrosos de camponeses ou nos medievais porque são supersticiosos, e são
supersticiosos porque têm relatos milagrosos; 6) mais há ainda outro argumento,
embora tão circular quanto. É o argumento de que os milagres só acontecem para
quem neles crê. Assim, diz Chesterton que, se a fé é pre-condição para o miraculoso,
será ocioso bater as tamancas exigindo que o milagre ocorra sem a fé. 
- Outra: exigir condições "científicas" para a ocorrência do sobrenatural é
igualmente estúpido, antifilosófico e anticientífico. Todos os fenômenos ocorrem
apenas sob certas circunstâncias que, se não lhes são necessárias no sentido lógico,
são-no a menos acidentalmente, ou psicologicamente. Não é diferente com o
sobrenatural. Seria como "insistir em querer luz solar perfeita para assistir
a um eclipse do Sol".
- Os homens e mulheres que relatam eventos sobrenaturais são gente simples, a um
tempo rude e prudente, e não místicos ou sonhadores; a própria Ciência estava a
admitir, cada vez mais, eventos desta natureza; os fatos sobrenaturais nunca são
negados, a não ser com base numa antidemocracia ou num dogmatismo
materialista; e o último: fraudes provam a inexistência de fantasmas tanto quanto
notas falsas provam a inexistência do Banco da Inglaterra.

- "A evolução ensinou os homens a pensarem que, da mesma forma que


tinham passado de macacos a homens, poderiam passar agora a anjos.
Mas pode-se passar de macaco a demônio". Chesterton diz que o grande
desastre do século XIX foi os homens começarem a usar "espiritual" como sinônimo
de "bom". Se, por um lado, havia os céticos materialistas ou antidemocráticos, por
outro havia os "meros espiritualistas". Disraeli estava certo quando disse estar do
lado dos anjos. Estava do lado dos anjos caídos.
- Há aqui um argumento interessantíssimo pois que incomum: havendo, como é de
se supor, espíritos de todas as formas e tamanhos entre o orgulho caído e as levezas
douradas do Céu, "não basta encontrar os deuses, porque estes são óbvios;
devemos encontrar Deus, o verdadeiro chefe dos deuses". O homem que
tope no mundo espiritual pode ficar, a princípio, desorientado, como desorientado
ficaria um homem a entrar numa sociedade qualquer sobre a qual nunca tivesse
ouvido falar nada. Partindo daqui Chesterton diz que não o perturbara nem um
como a água e confortar como o fogo, se era Ele que, na Eternidade, poderia fazer-
nos sentir literalmente em casa. Chesterton resume o princípio no parágrafo a
seguir: milagres existem, e os mais nobres dos milagres pertencem à nossa tradição.

- Afora esta convergência quase milagrosa de fatos acumulados, porém, Chesterton


diz que há um fato "muito mais sólido e central" em que assentava sua fé no
Cristianismo. O alicerce era o seguinte: "a Igreja Cristã, nas suas relações
práticas com a minha alma, é um mestre vivo, não um mestre morto.
Não só me ensinou, com certeza, ontem, como haverá de ensinar-me,
quase com certeza, amanhã".
- É aqui, aliás, que Chesterton mais propriamente responde à pergunta com que
iniciara o capítulo, em vez de apenas listar argumentos apologéticos soltos. Viver
com uma Igreja viva é viver à espera de topar num Platão ou num Shakespeare
amanhã na hora do almoço. É viver esperando que lhe seja ensinada, do nada, uma
Verdade que até então desconhecera. Só havia um paralelo para isso: os nossos pais
ensinando-nos sobre o mundo quando éramos crianças. O pai dizia que as flores
eram perfumadas, e não o tomávamos por um símbolo grosseiro e bárbaro,
carregador inconsciente da verdade que as flores são perfumadas. Não; julgávamo-
lhe "uma fonte viva da verdade, alguém que sabia mais do que nós e que
amanhã, como hoje, voltaria a falar-nos sem mentir".
- E se isso era-lhe verdade em relação ao pai, quanto mais não era em relação à sua
mãe! "Relembro com segurança este arraigado fato psicológico: durante
o tempo em que estive subordinado à autoridade de uma mulher, senti-
me mais cheio de ardor e de aventura. Exatamente porque quando
minha mãe dizia que as formigas mordiam, elas de fato mordiam, é que
eu tinha a impressão de que todo o Mundo era uma terra de fadas e de
maravilhosas realizações, como se vivesse naqueles tempos hebraicos
em que as profecias cumpriam-se umas após as outras". O Cristianismo,
uma vez aceitado como a uma mãe em vez de como a um exemplo casual,
transformou-lhe a Europa e o mundo inteiro neste mesmo jardim de infância, e fê-lo
olhar para "todas as coisas com a mesma antiga ignorância e ingênua
expectativa"; "um sacerdote poderá ser, aparentemente, tão inútil
quanto um gato, mas é também fascinante, precisamente porque deve
haver alguma estranha razão para ele existir".
- Assim, a virgindade, por exemplo, que particularmente não lhe dava nenhum
entusiasmo em particular, era, para o mundo em geral, pagão tanto quanto cristão,
experiência humana, aliada à autoridade cristã, concluo, simplesmente,
que estou errado e que a Igreja está certa; ou melhor, que sou
imperfeito, ao passo que a Igreja é universal. É preciso de tudo para se
fazer uma Igreja; ela não me pede que seja celibatário. Não aprecio o
celibato, mas aceito esse fato como aceito o fato de não ter ouvidos
para a música. O melhor da experiência humana está contra mim, como
no caso de Bach."
- Chesterton, portanto, aceita a religião sobretudo por ela não apenas
dizer a verdade aqui ou acolá, mas por ter-se mostrado como a
verdadeira mestre, que SEMPRE diz a verdade. Mais: apenas esta filosofia
havia dito, um sem-fim de vezes, coisas que, não parecendo verdadeiras, o são;
enquanto filosofias outras diziam coisas que pareciam verdadeiras, mas eram falsas.
É o único credo que convence onde não é atraente; que acerta nos
pontos-cegos e busca as verdades escondidas nas curvas das obviedades.
É, por exemplo, apenas com o Pecado Original -- doutrina evidentemente pouco
atrativa, para dizer o mínimo -- que podemos ser misericordiosos para com um
mendigo ao mesmo tempo em que desconfiamos de um rei. 
- Nos portões de fora do Cristianismo jazem, rígidos e imovíveis como pedras vivas,
os guardiões das abnegações éticas e dos sacerdotes profissionais; dentro de seus
portões, há a velha vida humana, dançando como criança e bebendo como homem,
"pois o Cristianismo é a única estrutura para a liberdade pagã". Na
filosofia moderna temos o inverso: seu exterior é manifestamente artístico e
emancipado; seu interior, soturno de desespero niilista. Por não crer que há sentido
no Universo, não pode crer que lhe haja qualquer romance. Não há enredo na
anarquia nem significados no ceticismo. Há, porém, na terra da autoridade, romance
e significado, perigos reais e aventuras reais. "Aqui, todas as coisas têm uma
história amarrada à cauda, como as ferramentas e os quadros da casa de
meu pai, pois estou agora na casa de meu pai. Termino onde comecei --
no devido fim. Atravessei, finalmente, o portão da boa filosofia. Cheguei
na minha segunda infância". 

- Havia, porém, uma característica final deste mundo cristão, maior e mais
aventureiro. Conquanto difícil de se expressar, por óbvio Chesterton iria tentar.
Começa assim: "Todo argumento verdadeiro sobre a religião gira em torno
da questão de saber se um homem que nasceu de cabeça para baixo será
capaz de dizer quando encontrou a posição devida".
coração mesmo da religião é que "algo que nunca conhecemos num sentido
perfeito é não só melhor do que nós mesmos, mas ainda mais natural do
que nós mesmos". Como diz Sto. Agostinho, "Deus está acima do que em
mim há de mais elevado e é mais interior do que aquilo que eu tenho de
mais íntimo". O teste, aqui, não tem como ser outra coisa que não experimental.
Foi apenas após descobrir a Ortodoxia que Chesterton safou-se de vez da doidice.
- Para concluir, porém, há uma aplicação especial disso para a questão fundamental
da alegria.

- Depois de dizer o óbvio e mostrar, ainda pela quinquagésima vez, que não era o
otimista estúpido que seus críticos tanto gostavam de pintar ao afirmar que tudo que
é humano carrega seus quinhões de tristeza e alegria, importando apenas saber
"como essas duas coisas estão compensadas ou divididas", Chesterton faz
alguns comentários dignos de nota sobre o paganismo.
- A alegria do melhor paganismo está relacionada aos fatos da vida, e não à
sua origem. "Quando o pagão olha bem para o centro do cosmos, ele
gela. Por trás dos deuses, que são meramente despóticos, sentam-se os
destinos, que são fatais. Os destinos são, até, mais que fatais: são
mortos". 
- Neste sentido, portanto, o paganismo é muito mais moderno do que o
Cristianismo, pois tanto quanto os mais recentes escritores sentia-se profundamente
infeliz com o todo, enquanto o medieval ao menos com isso estava contente. "Giotto
vivia numa cidade mais triste que Eurípides, mas vivia num universo
mais alegre".
- E chegamos no ponto nevrálgico, com que Chesterton haverá de encerrar sua obra-
prima: que a maior parte dos homens tenha sido forçada a ser alegre nas pequenas
coisas e triste nas grandes não é sua condição natural: "O homem é mais ele
próprio, o homem é mais semelhante ao homem quando a alegria é a
característica fundamental que se encontra nele, e a tristeza,
superficial... o louvor deve ser a constante pulsação da alma".
- Para o pagão ou agnóstico médio, porém, esta uma necessidade básica da alma
jamais pode ser de fato satisfeita, e é a isso que Chesterton chama "nascer de
cabeça para baixo". O Cristianismo, assim, vem para fazer com que o homem se
apoie nos pés em vez na cabeça, que é afinal um pedestal bastante precário.
Quando o faz, é de imediato que o homem apercebe-se do fato. 
- E não apenas isso pois, por meio de seu credo, o Cristianismo torna a alegria algo
gigantesco, enquanto a tristeza apequena-se e vai ficar num canto, apenas por ora.  
- "A alegria, que foi a pequena propaganda do pagão, é o gigantesco
segredo do cristão." 

VII. O ROMANCE DA ORTODOXIA


- "Grande parte do maquinismo da linguagem moderna é apropriado
para poupar trabalho e, de fato, poupa trabalho mental muito mais do
que deveria... As palavras longas ecoam aos nossos ouvidos como o
ruído de trens deslizando ao longo de uma via férrea".
- "É um bom exercício tentar, vez ou outra, expressar qualquer opinião
por intermédio de palavras de uma só sílaba".

- As palavras longas e confortáveis, além de poupar ao homem moderno o trabalho


penoso de pensar, surgem em contextos os mais variados significando, sempre,
coisas de todo diversas. "Idealista", por exemplo, na filosofia, nada tem que ver com
"idealismo" na retórica moral.
- Assim, havia este mesmo problema com a palavra "liberal" que, na religião, queria
dizer algo, enquanto na política e sociedade queria dizer outra.
- Chesterton logo demonstra que os livre-pensadores só são considerados assim se
chegarem a certas conclusões, como "a origem material dos fenômenos, a
impossibilidade dos milagres, a improbabilidade da imortalidade
pessoal, etc". Todo o objetivo do capítulo, por sua vez, é mostrar como
estas conclusões de "liberais" não têm nada.

"Nas poucas páginas que se seguem, proponho-me a


demonstrar, tão rapidamente quanto possível, que em cada
uma das matérias mais ardentemente debatidas pelos
liberalizadores da teologia, seu efeito na prática social devia
ser definitivamente antiliberal".

- As propostas que pretendem "libertar" a Igreja só o que fariam é tiranizar o


mundo. Os dogmas particulares que os livres-pensadores queriam libertar são
"aliados naturais da opressão". É apenas a ortodoxia, na verdade, que nunca dá
por completo as mãos à tirania. Se se pode torcê-la para justificar, em parte, um
tirano, logo se poderá inventar uma filosofia alemã para justificá-lo por completo.

- Assim, a primeira doutrina a cair-lhe no crivo são os milagres, rejeitados


enfaticamente pela Nova Teologia. A fim de resumir a argumentação: 1)
ironicamente, teólogo "liberal" é quem deseja diminuir, em vez de aumentar, o
número de milagres; 2) a própria ciência estava a admitir mais milagres que outrora;
3) a Nova Teologia não os negava por ser "livre" mas, sim, por um estúpido
preconceito verbal, assentado no dogma do materialismo.
- Não foi uma "liberdade" que fez os adeptos da Nova Teologia duvidarem, mas sim
o estrito, rígido e estreito dogma materialista. 
- Na sua dúvida havia fé -- fé "num destino fixo e ateu, uma profunda e
sincera fé na incurável rotina do cosmos". 
- SOBRE O
MONISMO:  http://www.gilsonfreire.med.br/index.php/ubaldianos/breve-historia-
do-monismo
- Se se fosse para apontar de que lado estaria a ideia liberal da liberdade no tocante
aos milagres, óbvio está que estaria ao lado dos milagres, e não contra. A reforma é
apenas o controle gradual da matéria pela mente; o milagre, apenas o controle
imediato da matéria pelo espírito: "Um feriado... significa apenas a
liberdade do homem; um milagre, apenas a liberdade de Deus".
- Os "teólogos liberais", na rabeira do materialismo, queriam acorrentar Deus e
arrancar-Lhe, pasmem!, a LIBERDADE. Assim, o gordo está a criticar apenas a
noção estapafúrdia de que há algo de LIBERTADOR em não crer na liberdade
divina. Se o homem não pode crer em milagres, pode ser honrado e
lógico, mas não mais liberal.
- Os milagres querem dizer 1) a liberdade da alma e 2) o controle que ela tem sobre a
tirania das circunstâncias.
- "Se é para desejar que o homem triunfe sobre a crueldade da Natureza
ou do hábito, então os milagres são certamente DESEJÁVEIS; mais
tarde discutiremos se são POSSÍVEIS".

- Passando adiante, Chesterton põe-se a abordar um "assunto bastante difícil" -- a


questão do panteísmo, ou imanentismo, ou Budismo.
- Primeiro, Chesterton aclara que a alardeada identidade de todas as religiões
humanas é falsa. Enquanto os modernos diziam ser todos iguais os credos enquanto
diferentes os ritos, o gordo faz notar que o inverso é que era verdade -- ritos,
sacerdotes, escrituras, altares, confrarias e festividades tinham-nas todas as religiões
assim como todos os homens têm corpos. É na alma, no credo, que diferem.
- O melhor exemplo, segundo ele, está na moda que havia de aproximar o
Cristianismo e o Budismo como se irmãos fossem. Chesterton diz que os argumentos
para tentar fazê-lo eram de dois tipos: ou mostravam semelhanças que lhes eram
comuns tanto quanto eram para o resto da humanidade, ou mostravam semelhanças
que, simplesmente, não eram semelhanças. Assim, por um lado falava-se de como a
voz divina havia irrompido do Céu para ambos os profetas, de como houve lavagens
de pés envolvidas e o preconizar da compaixão ou automoderação; pelo outro, de
como o manto de Buda havia sido feito em pedaços como o de Cristo -- ainda que
cortassem o daquele por honra e Deste lho houvessem arrancado por desprezo.
- Ao modo de Gabriel Gale Chesterton intui, como que por baixo do discurso
consciente, a enorme diferença de espírito entre as duas religiões ao reparar na
diferença artística de ambas as religiões. Foram IMAGENS, mui literalmente, que
lhe guiaram a intuição que, mais tarde, haveria de confirmar teoricamente. 
- O Budismo, com seus monges bem alimentados de olhos fechados, e o
Cristianismo, com seus Santos esfarrapados porém de olhos atrozmente abertos. "O
Budista olha com peculiar atenção para dentro; o cristão olha com
frenética atenção para fora".
- Então fala de como uma teosofista, a sra. Besant, defendia que na verdade só o que
há e um ego universal -- que somos, todos, apenas uma pessoa. Rebelando-se
instintivamente contra a doutrina, diz Chesterton: "Quero amar o meu próximo
não porque ele seja eu, mas exatamente porque ele não sou eu. Quero
adorar o mundo não como uma pessoa gosta do espelho, porque reflete
sua imagem, mas como um homem ama uma mulher, porque ela é
completamente diferente".
- E é exatamente aqui que o Budismo dava aos mãos ao panteísmo e
imanentismo modernos, enquanto o Cristianismo dava as mãos à
liberdade e ao amor.
- O Cristianismo, insistindo na separação real entre Criador e criatura, insiste
também na verdadeira liberdade e no amor. Pois apaixonar-se é apaixonar-se por
outrem; e somos livres tanto para nos salvarmos quanto para nos condenarmos. O
Santo cristão foi separado das coisas e, por isso, olha-as espantado; o
santo budista não teria por que admirar-se, já que há apenas uma coisa,
e ainda por cima uma coisa impessoal.
- E voltamos à tese do início do capítulo: o panteísmo budista não carrega em si
"nenhum impulso especial para uma ação moral, porque... implica, na
sua natureza, que uma coisa é tão boa quanto a outra, enquanto a ação
moral implica, na sua natureza, que uma coisa é grandemente preferível
à outra". É apenas a força da teologia ocidental, insistindo em separar-nos a todos,
que dá ao ocidente seu vigor prático. 
- "A mesma separação espiritual, que olhou para cima e viu um bom rei
no Universo, olhou para baixo e viu um mau rei em Nápoles". Pode ser
muito da parte dum santo indiano olhar para si mesmo a fim de encontrar os Eus,
Tus, Eles e Nós e as Coisas, mas não o ajudará, nem na teoria nem na prática, a olhar
para o Lorde que lhe pôs os pés sobre a garganta.
- Assim, a religião que tem o seu Deus fora de si está livre para olhar para fora de si -
- e vigiar. Os cristãos têm de caçar a Deus como se fora uma águia no pico duma
montanha. No caminho, matam todos os monstros.

"Insistindo em que Deus está dentro do homem, o homem


está sempre dentro de si mesmo. Insistindo em que Deus
transcende o homem, o homem transcende a si mesmo".

- E na questão da Trindade, repetia-se a coisa: o instinto social, que transformou


mesmo o ascetismo numa irmandade; o amor ocidental pela liberdade e variedade; a
paixão por uma complexidade viva, que perturba o intelecto mas acalma o coração,
tudo isso está encerrado no Deus do credo atanasiano. "Por outro lado, lá do
deserto e das regiões calcinadas pelo Sol mais ardente, vieram os cruéis
filhos de um deus solitário, os verdadeiros unitários que, de alfanje em
punho, devastaram o Mundo. Por isso, não é bom que Deus esteja só".

- Outra: o perigo que corre a alma. Dizer que a salvação é inevitável pode até
ser defensável -- mas não é lá de muita ajuda para a atividade ou o progresso. O
fatalismo transforma a vida numa ciência, equação matemática que acabará de uma
forma determinada. Para o cristão, a vida é uma história que poderá acabar de
qualquer forma. É perverso chamar um homem de "condenado", mas é religioso e
filosófico chamar-lhe "condenável". 
- "Todo o Cristianismo concentra-se no homem nas encruzilhadas... A
verdadeira filosofia está preocupada com o instante. Seguirá o homem
este caminho ou aquele? Essa é a única coisa na qual temos de pensar, se
realmente gostamos de pensar. É fácil meditar sobre os milênios. O
muito de batalhas e, na teologia, ocupa-se muito do inferno. Está cheia
de perigo, como um livro juvenil de aventuras; encontra-se numa crise
imortal".
- Assim, é o livre-arbítrio teológico que fez sobressair o cristianismo na
literatura. Se vulgar é a ficção popular, tanto mais vulgar são, para uns e outros, as
imagens da Igreja Católica. A vida da fé assemelha-se muito a um seriado de revista:
termina sempre com a promessa ou ameaça de "continuar no próximo capítulo",
cessando num cliff-hanger excitante: a morte. 
- Mais ainda: é o livre-arbítrio humano a objeção à doença moderna de
querer tratar o crime como uma doença. O mal é matéria de escolha ativa,
enquanto a doença, não. "Um homem pode permanecer quieto e ser curado
de uma doença. Não deverá, porém, permanecer quieto se deseja curar-
se de um pecado; ao contrário, tem de levantar-se e de se mexer
ativamente... "paciente" é uma forma passiva, ao passo que "pecador" é
uma forma ativa... Toda reforma moral deve partir de uma vontade ativa
e não de uma vontade passiva".

- Por último, a divindade de Cristo. Jesus, o Deus posto contra a parede, é


"motivo de orgulho para todos os rebeldes da Terra". De todos os credos, o
Cristianismo foi o único que adicionou a coragem às virtudes do Criador; que
percebeu que para que Ele pudesse ser inteiramente Deus tinha de ser tanto rebelde
quanto rei. O pessimismo que sofremos Ele sofreu sobre-humanamente. O próprio
Deus foi abandonado por Deus. 
- Assim, que os revolucionários buscassem outro Deus que houvesse sido, Ele
mesmo, um revoltado; que todos os ateus procurem outra divindade que tenha,
mesmo que por um fugaz momento, sido ateia Ela mesma.

- A "velha ortodoxia" é, portanto, a fonte natural da revolução e da reforma; a


mais aventurosa e humana de todas as teologias. 

- O último e mais surpreendente fato sobre esta fé é que os seus inimigos


arruinariam a si mesmos e a toda a sua civilização apenas se pudessem com isso
arruiná-la: "Os homens que começam a lutar contra a igreja em nome da
liberdade e da Humanidade acabam sempre jogando fora a mesma
liberdade e a mesma Humanidade".
"A fé é a mãe de todas as energias mundiais e os seus
inimigos são os pais de toda a confusão mundial".

VI. A ETERNA REVOLUÇÃO


- Chesterton parte a falar sobre o que é, enfim, melhorar o mundo. O que é melhor?
Parte à definição do bem, portanto.

- Buscar um princípio na natureza é fútil, vez que não há princípio


algum na natureza.

- Como não quer ainda falar de teologia, Chesterton começa a se perguntar quais
foram os princípios oferecidos pelos modernos. 
- O primeiro é aquela dos que falam que a moralidade nunca "está em dia", está
sempre a evoluir e progredir e etc. Chesterton diz que é ridículo falar numa coisa
estar "em dia" -- o dia não tem caráter.
- Depois, fala sobre as metáforas materiais, e de como palavras como "elevado"
haviam tomado o lugar de filosóficas e substanciosas palavras como "BOM". É
daqui, aliás, que surge seu ataque a Nietzsche.
- Outras, ficam de todo passivas e, fatalistas, dizem que se algo aconteceu, era para
acontecer; se não, não era. 
- O quarto tipo de gente são as que ligam o fim último da evolução ao que querem --
e por isso Chesterton chama-lhe sensatas. Suas metáforas, ao menos, se falsas ou
medonhas, fazem sentido, pois definem um ideal e a tudo o que se lhe achegar
chamam "evolução" ou "progresso". Daqui, faz a ponte para mais um princípio:
além de termos de gostar do mundo, ainda que queiramos mudá-lo,
temos de gostar de um outro mundo, real ou imaginário, à imagem do
qual queremos transformar este aqui. 

- Chesterton, em vez de falar em "progresso" ou "evolução", prefere falar em


REFORMA -- por implicar FORMA. Toda reforma é moldar algo a fim de adequar-se
a uma forma ideada: "...a reforma é uma metáfora para homens razoáveis e
determinados: significa que vemos uma coisa fora de forma e
pretendemos colocá-la na forma devida. E sabemos bem qual é essa
forma".
- E é a vez do progresso entrar na roda e apanhar um pouco: o progresso moderno
não quer mudar o real para ajustá-lo ao ideal; quer ficar a mudar o ideal, pois é mais
fácil. Não quer ajustar o visto para conformar-se à visão -- quer mudar a visão. O
homem que quer pintar o mundo inteiro de azul só pode progredir se não mudar
amanhã para o amarelo, e depois de amanhã para o vermelho.
O radical há que ser conservador; há que conservar ao menos a própria crença. As
grandes mudanças na civilização política haviam todas ocorrido quando os homens
criam, com fé não misturada, no Calvinismo, no Protestantismo, no Toryismo. A
regra estrita é tão necessária na Revolução quanto é no governo.
- "Quanto mais desorientada estiver a vida do pensamento, mais a vida
da matéria ficará abandonada a si mesma".
- A sucessão desembestada de filosofias céticas contraditórias acaba por aquietar o
sujeito, e sobretudo o "escravo moderno" de
que Chesterton tanto fala. Mais: as doutrinas céticas, no final, fazem bem apenas ao
dono da fábrica, que poderá manter seus funcionários sempre quietinhos e dóceis
desde que lhes dê esta enxurrada de revoluções diárias: "Enquanto a visão do
Céu for mudando constantemente, a visão da Terra permanecerá
sempre a mesma".

- Daí, Chesterton retira a primeira característica obrigatória


do ideal que buscamos: ele tem de ser imutável.

- E já embica a questão que lhe vinha na rabeira: como fazer com que o homem,
pintor do mundo, jogue sempre os retratos imperfeitos pela janela em vez do
modelo? 
- Sem dar-lhe resposta, porém, retorna à questão da regra fixa para a Revolução,
nesta esteira, entra a criticar escolas progressistas que falavam numa moralidade
que se ia desenvolvendo lentamente, apontando que a justiça, sob determinadas
condições, tem de ser rápida e não pode esperar alguns séculos. Se um homem esfola
um gato, eu tenho de detê-lo AGORA, e não amanhã ou daqui a cento e trinta e dois
anos: "O que é a moralidade corrente senão, literalmente, a moralidade
que está sempre a correr?" E torna a dizer o que já havia dito: o ideal, seja para
erigir um Império milenar, seja para suscitar revoluções mensais, tem de ser
imutável.
- Neste ponto, sussurrou-lhe aos ouvidos, ainda mais uma vez, a
estranha voz do Cristianismo, dizendo-lhe que seu ideal era tão imutável
quanto a eternidade que era antes de o mundo ser mundo. Para o
ortodoxo, a revolução é o seu pão diário, pois a restauração é sua missão.

- Passa, agora, ao seguinte item necessário, já mostrando ainda outra


consequência do progresso automático e impessoal: ele estimula o ócio, e não a
atividade. O fatalismo nunca poderá estimular nada que não seja a indolência
completa pois, se somos obrigados a fazer algo, para que nos esforçarmos para fazê-
lo? e, por outra, se somos obrigados a não fazer algo, por que nos esforçarmos para
tentar fazê-lo? 
- Porém, o ponto a ser enfatizado é o seguinte: se o aperfeiçoamento ou
progresso for impessoal, terá de ser tão simples quanto o Mundo que se torna todo
azul. Se houver, por outro lado, qualquer combinação de cores, qualquer toque
artístico de luzes e de claro-escuro, o progresso terá de ter um plano e, portanto, terá
de ser pessoal. 

- É a vez do darwinismo, que poderia ser usado para apoiar duas moralidades
insanas -- ou uma crueldade enorme ou um sentimentalismo retardado. O amor
sadio pelos animais não poderia surgir da doutrina sobre o parentesco e competição
de todas as criaturas vivas. Que nós e o tigre sejamos um só pode fazer com que
ensinemos o tigre -- ou com que o tigre nos ensine. Tratá-lo como um ser-humano
normal faria, porém, admirando-lhe as listras enquanto evitamos-lhe as garras, não
é coisa que possamos aprender com o evolucionismo.
- Assim, apenas o sobrenatural (que, aqui, é o Cristianismo) tem uma visão sã da
Natureza, por tratá-la como uma irmã, e não como mãe. Os cristãos podem admirar
a Natureza sem querer imitá-la; podem orgulhar-se de sua beleza, podem amá-la
como a uma irmã, mas não devem tomá-la por Mestre, pois Mestre há apenas Um,
Pai de ambos.

- Mas o ponto não é este, e sim aquele sobre a simplicidade estúpida trazida a cabo
por um progresso impessoal. O exemplo, agora, é sobre um nariz que, progredindo
impessoalmente, pudesse ficar mais longo a cada geração. Mas ninguém QUER isso.
Queremos narizes bem comportados, proporcionais a um rosto interessante, que por
sua vez depende de uma combinação desesperadamente complexa: "A proporção
não pode ser um acúmulo de coisas: ou é um acidente, ou um projeto".
- Assim, na moralidade, poderíamos cegamente evoluir para gente que, amando
insanamente tudo ao seu redor, não se atrevesse a mexer para não incomodar uma
pergunta de Chesterton é simples: QUEREMOS isto, como queríamos narizes
longos? Não, é a resposta óbvia. O que queremos é uma combinação proporcional
de ambas, delicadeza e desprezo, amabilidade e pugnacidade, paz e guerra. "Tudo
depende [de sermos] suficientemente humildes para admirar e
suficientemente altivos para desafiar"; tudo depende de estabelecermos um
equilíbrio saudável entre as duas tendências que, se deixadas ao léu, haverão de
alargar-se a despeito de tudo o mais.

"A felicidade perfeita do homem na Terra (se ela alguma vez vier) não
será uma coisa plana e sólida, como a satisfação dos animais. Será um
perigoso e rigoroso equilíbrio, como o de um romance desesperado. O
homem deve alimentar em si fé suficiente para experimentar aventuras,
e duvidar suficientemente de si para ter prazer nessas aventuras". Eis o
romance! 

- A segunda exigência para o ideal é que, além de imutável,


deve ser composto -- isto é dizer, deve ser o resultado final e
proporcional de partes arranjadas ou por um plano, ou por
acidente.

- Apenas um espírito poderia encontrar as proporções exatas de uma felicidade


completa; apenas um artista poderia criar uma pintura definida e composta, em vez
de simplesmente mergulhar o mundo no azul. E, aqui, interrompe-lhe a
meditação, novamente, a voz do Cristianismo: uma força impessoal
poder-lhe-ia conduzir para o deserto de uma planície perfeita ou para o
pico de uma altura perfeita, mas apenas um Deus pessoal lhe poderia
levar até uma cidade com "ruas adequadas e proporções arquitetônicas
perfeitas".

- Daí, passa à terceira exigência, que é a necessidade de vigilância constante,


mesmo na Utopia, para que dela não caiamos como caímos do Éden.
- Chesterton diz que a razão para sermos progressistas não é que as coisas,
naturalmente, tendem a melhorar; é que tendem a piorar. Se deixarmos as coisas
como estão, eis o caos (o poste branco que deve ser repetidamente pintado para
continuar branco). 
 
- Assim, o terceiro elemento do ideal é que, além de imutável
e composto, teria de manter-se sempre atento para que os
privilégios não fossem abusados e a boa obra corrompida.

- E, então, veio o Cristianismo, dizendo-lhe que sempre afirmara serem


os homens fracos e a virtude frágil, e que os homens, e sobretudo os
homens prósperos e orgulhos0s, agiam mal. "A esta eterna revolução, a
esta suspeita mantida através dos séculos", os Cristãos chamavam
Pecado Original. Ao que diziam ser avanço cósmico, os cristãos
chamavam a Queda. 

- Aqui, como não é de espantar, há uma digressão: o Cristianismo era a única coisa
que restara capaz de contestar o poder das classes superiores. Ao ouvir socialistas e
democratas dizendo que pobres iriam necessariamente virar uns diabos, e homens
de ciência dizendo que se tão-só conseguíssemos fazer os pobres subir de vida todo o
vício e mal haveriam de desaparecer, Chesterton fez notar uma coisa apenas: ambas
as doutrinas eram perfeitamente antidemocráticas. Se os pobres estavam assim
desmoralizados, então não deviam, por óbvio, ter nas mãos o poder do voto. Os
socialistas mais fervoroso, ansiosos como estavam por provar que os pobres não
eram confiáveis, estavam dando aos ricos a chance de dizer-lhes: pois bem, então
não confiaremos nos pobres. Não há nada melhor para estabelecer a aristocracia do
que o socialismo. Os argumentos sobre a hereditariedade e sobre o meio-ambiente,
tão característicos dos socialistas, eram um tiro no pé: se tanto mais apto a votar
estará o pobre quanto melhor forem suas condições, então a única conclusão lógica
é que infinitamente mais apto estará o milionário que lhe for infinitamente mais
rico. 
- Da página 176 até a 178, está a melhor exposição que já vi sobre a relação
chestertoniana com os ricos. O que ele diz é, simplesmente, isto: não é
necessariamente errado submetermo-nos aos ricos, assim como certamente não é
errado rebelarmo-nos contra eles. Não é necessariamente anti-cristão botar-lhes na
cabeça uma coroa ou arrancar-lhas com a guilhotina. Anti-cristão é dizer que
os ricos são moralmente mais confiáveis que os pobres. Anti-cristão é dizer que
"aquele sujeito não se deixaria jamais subornar", pois o Adão em todos nós jamais
estará de todo livre do perigo do suborno. Chesterton só o que faz é ecoar a
advertência evangélica quanto aos ricos, o camelo e a agulha. Chesterton só o que faz
é ecoar a doutrina cristã de que, se há algum ambiente perigoso ao homem, tanto
mais perigoso ser-lhe-á o ambiente quanto mais confortável.
- Aliás, a digressão não é bem digressão. Chesterton trata dos ricos apenas para
deixar claro que, numa Utopia que houvesse logrado criar um Éden na Terra, seus
habitantes ainda seriam Adões e Evas. 

- Outra: Chesterton tem nada da ingenuidade que lhe atribuem alguns críticos. Diz,
com todas as letras, que "o simples processo de votação não é democracia",
conquanto reconhecesse que estava difícil para arranjar um outro menos pior. A
coincidência cristã com a democracia não era assim superficial, ia mais fundo. A
convergência estava no sentido prático da coisa, "na tentativa de obter a
opinião daqueles que seriam demasiadamente modestos para oferecê-la.
[Tratava-se] de uma aventura mística: confiar especialmente naqueles
que não confiam em si mesmos".

- Daí, dispara a falar sobre como a força de fato é leve e não pesada; como o orgulho
arrasta todas as coisas para uma seriedade fácil. Ser sério e levar-se demasiado a
sério é apenas deixar-se levar pelo orgulho que, como a força da gravidade, está
sempre a querer derrubar-nos como outrora derrubou Satanás. Faz isso a fim de
dizer que a aristocracia numa Europa cristã jamais fora considerada, no mesmo
sentido sagrado e absoluto, melhor espiritualmente do que o resto da população. 

- Assim, para o terceiro elemento do ideal, a necessidade de haver uma lei de


igualdade na Utopia, Chesterton descobriu que o Cristianismo já havia provisionado,
de novo, milênios antes. Como, porém, seria por demais demorado demonstrar
como a Nova Jerusalém havia feito isso, Chesterton lança mão do casamento a
fim de fazê-lo exemplo "do impulso convergente de todo o resto".
- Assim, há desejos e desejosos: os há inatingíveis como os há indesejáveis. Daí,
Chesterton passa a falar de como a anarquia é um destes desejos indesejáveis por
matar o compromisso e, com ele, todo o romance e prazer da vida. Uma aposta,
assim como uma aventura e o casamento, depende de "resultados irrevogáveis".
 
- Assim, o gordo diz que a última coisa que pediria de um paraíso social, depois de
um ideal imutável e composto, e depois de uma vigilância constante, é
"...que me fossem cumpridas as promessas; pediria que os
meus compromissos e juramentos fossem levados a sério; e,
finalmente, pediria à Utopia que vingasse sobre mim mesmo
a minha honra". 
- Para se ter aventuras reais, há que se ter obrigações reais. Aqui, de novo, viera o
Cristianismo dizer-lhe que em Sua utopia, tanto uma quanto a outra seriam reais,
mortalmente reais. A aventura mais difícil, porém, "seria chegar lá".

V. OS PARADOXOS DO
 

CRISTIANISMO
- "...o mundo é quase, mas não totalmente, sensato. A vida não é uma
negação da lógica: é uma armadilha para os lógicos [...] sua exatidão é
evidente, mas sua inexatidão está oculta, e sua fúria selvagem está à
espreita".

- A fim de exemplificar a falência do método indutivo para apreender leis gerais a


partir de casos concretos específicos, Chesterton fala sobre o alienígena que, tendo
visto o homem duplicado em tudo, olhos e mãos e rins e pulmões, errasse feio bem
quando estivesse mais certo de que havia, também, dois corações.

- Há, em todas as coisas, um "elemento misterioso" que é este "silencioso e


imperceptível desvio de precisão", esta "secreta traição do universo" que
sempre acaba por escapar aos racionalistas. Colhidos centenas ou milhares de
exemplos, feitos os raciocínios mais inescapáveis e os silogismos mais sólidos, as
cartas na manga da realidade jamais são postas todas na mesa, às claras, para o
escrutínio de homens de ciência.

- Pois bem. O matemático, racionalista e lógico acerta na medida em que a realidade


é linear. No momento em que a pegadinha cósmica entra em cena, porém, lá vai ele
crer nas coisas mais imbecis. Assim, o modo de testar "a verdadeira intuição ou
inspiração" seria checar se, na hora de descobrir onde está o coração, na hora de
"O meu único objetivo neste capítulo é mostrar que sempre
que julgamos haver alguma coisa estranha na teologia cristã,
verificaremos, geralmente, que há algo de estranho na
verdade".

- "...quanto mais complicada parece a coincidência, tanto menos poderá


ser uma coincidência". Caíssem os flocos de neve com o formato exato do
labirinto de Hampton, poderíamos julgá-lo, sem exageros, um milagre. "É
exatamente como um milagre que tenho, desde então, encarado a
filosofia do cristianismo. A complexidade do nosso mundo moderno
prova a verdade da crença de maneira mais perfeita do que qualquer das
simples questões dos tempos de fé".
- O cristianismo era, portanto, uma coincidência milagrosamente minuciosa;
doutrina que se encaixava perfeitamente nos menores orifícios e curvas da realidade.

- "Existe, portanto, para toda a convicção absoluta, uma espécie de


enorme incapacidade". Tendo deixado claro ser capaz de começar a provar suas
convicções cristãs a partir de um nabo ou um táxi, Chesterton, para fins didáticos,
decide continuar o argumento sobre as "místicas coincidências", ou, por outra,
"ratificações" contínuas que fora encontrando no cristianismo.
- Por exemplo: os grandes agnósticos fizeram-no duvidar da própria dúvida, e os
racionalistas, de se a razão afinal servia para alguma coisa. Quando o tópico era o
cristianismo, causaram-lhe a mais inusitada das sensações: ainda que fosse perverso
e maligno, o cristianismo era ao menos sensacional. De tanto atacarem-no de
todos os lados e por razões por vezes diametralmente opostas, Chesterton veio a
pensar que a religião tinha "o místico talento de conciliar defeitos que
pareciam incompatíveis entre si".
- O primeiro exemplo é o pessimismo e o otimismo. Uns argumentavam que
a religião cristã era por demais mórbida e botava a alma em grilhões; outros, que era
demasiadamente otimista, e botava a alma num carrossel cor-de-rosa. Um xingava-o
por esconder-lhe a bela e libertadora Verdade; outro, por esconder-lhe a terrível e
fatalista Verdade. "E, num momento de exaltação, veio-me à mente a ideia
de que aqueles talvez não fossem os melhores juízes da relação entre a
religião e a felicidade, pois não possuíam nem uma coisa nem outra".
Neste ponto, porém, Chesterton tinha-se dado conta apenas de que o cristianismo
- O segundo exemplo é a pusilanimidade belicosa, o virar a outra face que de
tão covarde havia feito submergir o mundo sob sua horrível ira. Típicos cristãos
eram os Quakers; típicos cristãos eram os Cruzados. Monstruoso assassino de
monstruosa mansidão. 
- O terceiro (e tanto mais estranho por conter uma objeção real à Fé) é o seguinte: os
mesmos agnósticos que falavam de uma doutrina da irmandade moral
de todos os homens falavam, também, de uma moralidade que havia
mudado completamente e estava em constante fluxo. Além, insultavam o
cristianismo por (segundo eles) dizer-se o único a carregar luz num mundo de trevas
enquanto vangloriavam-se da ciência moderna por ser (ainda segundo eles)... a
única a carregar luz num mundo de trevas.
- De tão extraordinário que era o cristianismo, os agnósticos não davam a mínima
em contradizerem-se uns aos outros bem como a si próprios no afã de desdizer a
religião. Chesterton dá mais exemplos além destes três:
- O cristianismo era mal por desfazer a família e arrastar as mulheres para os
mosteiros e para longe da vida meditativa; o cristianismo era mal por forçar o
casamento e arrastar as mulheres para dentro de casa e para longe da vida
meditativa; 
Cuspiam na Igreja por supostamente desprezar o intelecto feminino; cuspiam nela,
também, por ser frequentada "apenas por mulheres";
Achavam um absurdo a morbidez das vestes de mendicantes; achavam um absurdo
a pompa das vestes papais. Acusavam-no por ser humilde demais e por ser pomposo
demais; 
Xingavam-no por ter reprimido a sexualidade; outros, por tê-la reprimido é pouco;
Era ruim por ser recatada demais; ruim por ser extravagante demais;
Não se poderia confiar numa religião assim sem unidade doutrinária; não se poderia
confiar em nada que não tivesse pluralidade de opiniões;
"No decorrer da mesma conversa, um amigo meu, livre-pensador,
censurava o Cristianismo por desprezar os judeus e depois desprezava a
si mesmo por ser judeu".
- Assim, Chesterton ficou numa sinuca de bico: se o cristianismo estava mesmo
errado, estava sobrenaturalmente errado de tão errado que estava. Nada natural
poderia ter todos os vícios -- e aliás vícios contraditórios -- em si. Se Jesus não era o
Cristo, por certa era o anticristo.
- Surgira-lhe, porém, uma outra explicação possível: talvez não fosse o cristianismo
a coisa estranha e grotesca. Talvez, estranhos e grotescos fossem os críticos. Talvez,
normal e saudável fosse a coisa que suscitava reações assim disparatadas. A fim de
descobrir quão acertada era a ideia, pôs-se a perguntar se havia à volta dos críticos
qualquer coisa de mórbida -- e encontrou: "O homem moderno considerava a
Igreja demasiadamente simples, exatamente porque a vida moderna é
demasiadamente complexa: ele julga a Igreja demasiadamente faustosa,
porque a vida moderna é tão destituída de brilho"; "...os Malthusianos
atacavam, instintivamente, o Cristianismo, não porque haja qualquer
coisa especialmente antimalthusiana no Cristianismo, mas porque há
alguma coisa um pouco anti-humana no malthusianismo".

- De qualquer modo, havia no Cristianismo "um elemento de ênfase e mesmo


de frenesi" que suscitava a histeria das críticas: "O Cristianismo podia ser
sensato... mas, simplesmente, não era mundanamente sensato; não era
meramente moderado e respeitável. Os seus ferozes cruzados e
humildes santos podiam equilibrar-se mutuamente; no entanto, os
cruzados eram muito ferozes e os santos muito humildes -- muito além
do que seria razoável".
- Como era de se esperar, Chesterton ligou estas duas insanidades que, juntas,
faziam a sanidade, à questão dos otimistas e pessimistas, que para fazer algo
precisavam tanto amar quanto odiar o mundo, mantendo ambas as paixões juntas
no máximo grau. Fala sobre como isto é central na teologia através da natureza de
Cristo, e então parte a dizer como descobrira esta verdade ao seu modo.

"Todos os homens sadios são capazes de ver que a sanidade é


uma espécie de equilíbrio".

- Enquanto o paganismo dissera estar no equilíbrio a virtude; veio o Cristianismo


como um raio dizer-lhes que a virtude estava, antes, no conflito, "na colisão de
duas paixões aparentemente opostas". Toma como exemplo a coragem, que é
um forte desejo de viver sob a forma de prontidão para morrer. O Cristianismo fizera
mais do que a definir, porém; traçara-lhe os limites exatos, dando a distância que
separa o mártir do suicida.

"Comecei então a compreender que esta dupla paixão era a


chave cristã para a ética em toda parte. Em todo lugar, o
credo tornava moderado o embate contínuo entre duas
impetuosas emoções".
- A modéstia, equilíbrio entre o mero orgulho e a mera prostração, era por certo
expediente sensato e humano. Porém, sendo mistura de duas coisas, era também
diluição de duas coisas; e roubava a poesia de ambas. Assim, a "ligeira modéstia
racionalista" não tinha como erguer torres ou fazer a alma sentar-se na grama. O
Cristianismo separou as duas ideias, exagerou-as e enfiou ambas no mesmo homem
ao mesmo tempo: "Considerado como Homem, sou a principal das
criaturas; considerado como um homem, sou o maior dos pecadores".
Fazendo surgir a dignidade do homem que só podia ser representada por raios de
sol, fez surgir também a abjeta pequenez do homem, que só podia ser expressa por
jejuns e pelas cinzas pálidas de S. Domingos. Assim, o pessimista,
- Assim também na caridade, que havia sido potencializada ao vir o
Cristianismo e separar, com violência, o criminoso do crime. Àquele, deveríamos dar
compaixão infinita; a este, austeridade infinita. Nada mais do compromisso racional
e pagão de compaixão misturada com austeridade: "Havia espaço para que o
amor e a ira se tornassem violentos".

- "A liberdade mental e a liberdade emocional não são tão simples como
parecem. De fato, ambas requerem um equilíbrio de leis e de condições
quase tão cuidadoso como a liberdade social e política". É por isso, aliás,
que Chesterton irá sempre dizer que a sanidade é mais poética que a
doidice, assim como a ortodoxia é mais romântica que a heresia -- são,
ambas, equilíbrios delicados.

- Chesterton notou que esta qualidade paradoxal da ética cristã tinha


em mira libertar o melhor que havia nestas paixões paralelas. Certa
violência, certa ênfase sobrenatural era necessária para arrancar das paixões, como
pelo fogo, suas qualidades também sobrenaturais. A violência artística com que se
expandiam as coisas dentro do corpo cristão só era possível a anarquistas. "O
Cristianismo procurou, na maior parte dos casos, conservar duas cores
coexistentes, mas puras".

- Depois de mais alguns exemplos, Chesterton amarra o capítulo e retorna à tese


inicial: "Depreciam o Cristianismo aqueles que afirmam ter ele
descoberto a compaixão: qualquer um podia descobrir a compaixão. E,
de fato, todos o fizeram. Mas descobrir uma maneira de ser compassivo
e, ao mesmo tempo, severo -- isto foi antecipar uma estranha
podíamos ser de todo miseráveis sem que se tornasse impossível sermos de todo
felizes, já era outra história. Apontar ONDE poderíamos nos orgulhar e ONDE
poderíamos nos aviltar, já era um milagre.

- A grande, enorme realização da ética cristã foi trazer ao mundo o novo equilíbrio
de um rochedo aparente e romanticamente disforme, por vezes grotesco como uma
gárgula gótica, mas por isso mesmo ereto há dois milênios.
- O próprio patriotismo europeu era prova disto: o instinto cristão, em nada
parecido com o instinto pagão, romano ou grego, foi o de deixar soltas as
características individuais dos povos, a fim de que o "absurdo alemão" pudesse
balancear a "insanidade francesa".

"Não era um rebanho de carneiros que o pastor cristão


estava conduzindo, mas sim uma manada de touros e tigres,
de idéias terríveis e doutrinas devoradoras, cada uma delas
forte o bastante para retomar uma falsa religião e devastar o
Mundo".

- E é, enfim, precisamente isto que explica as guerras sangrentas e revoluções


girando em torno de uma vírgula teológica. De tão delicado que era o equilíbrio, de
tão dependente que estava de umas poucas polegadas, qualquer pequeno desvio

IV. A BANDEIRA DO MUNDO


teórico poderia precipitar o Mundo todo numa doidice diabólica sem volta. 

- "Otimista é quem acha tudo bom exceto o pessimista; o pessimista,


quem acha tudo mau exceto si mesmo".

- O erro de toda esta coisa de otimistas contra pessimistas está no fato de que um e
outro criticam o mundo como se fora uma casa entre muitas outras disponíveis; um
novo apartamento. Isto é rematada mentira: "O homem pertence a este mundo
antes mesmo de ter tempo de perguntar se é bom ou não pertencer a ele".
- A relação de Chesterton para com todas as coisas não é otimista (termo que o gordo
rejeita por demais simplório e estúpido); é patriótica. O mundo exige certa
"lealdade primordial". 
"A questão não é que este mundo seja triste demais para se
amar, ou alegre demais para não se amar; a questão é que,
quando se ama algo, a sua alegria é uma razão para esse
amor, e a sua tristeza é uma razão para um amor ainda
maior".

- À guisa de exemplo, Chesterton fala sobre as favelas. Um pessimista, quando


confrontado com a favela da rocinha, só o que faria é ou jogar-se da ponte ou,
simplesmente, mudar-se para a Tijuca. Um otimista, como Leibniz, diria que a favela
é o melhor dos mundos possíveis e a deixaria como está. Apenas alguém que lhe
desse um amor transcendental, não condicionado, que a julgasse sagrada por ser
sua, poderia e de fato iria mudá-la: "Os homens não amaram Roma porque
ela era grande; Roma foi grande porque os homens a amaram".

- Após dizer que todas as grandes cidades surgiram ao redor dum poço ou árvore
sagrada, Chesterton parte a provar que a própria moralidade surgira apenas como
efeito colateral, por assim dizer, deste amor sacralizante, e nada tinha que ver com
as teorias contratuais do século XVIII. Os homens não acordaram entre si para um
não bater no outro e, voilá!, eis a moralidade: acordaram em não se bater naquele
ponto sagrado; lutara para defender o santuário e descobriram a coragem; ficaram
limpos para seus deuses e descobriram o banho. Aliás, muito das críticas
chestertonianas ao, por exemplo, higienismo moderno vinham daqui: os
modernos queriam a moralidade apenas, sem o sagrado, sem o
transcendente que primeiro lhes deu vida. A moralidade surgiu como efeito
colateral, por assim dizer, desta "primordial dedicação a um lugar ou a uma
coisa", que aliás é "uma fonte de energia criadora".

- O pessimista é o "amigo" que tem um prazer secreto e mórbido em dizer que tudo
está uma merda, e que estamos arruinados. Anida que apresente apenas fatos,
apresenta-os a fim de fazer com que os homens larguem a bandeira do mundo; diz a
verdade para dispersar homens e enforcar lealdades: seu problema "não é o fato
de ele castigar deuses e homens, mas o fato de ele não amar aquilo que
castiga". O otimista, por sua vez, no afã de defender a honra do mundo acabará por
defender o indefensável. Andará por aí com respostas prontas na língua para todos
os ataques e perplexidades; em vez de lavar o mundo, quererá caiá-lo. 
- Ou, ao menos, este é o problema com o "otimismo ruim", que
surpreendentemente é o otimismo "natural", ou "razoável". O patriota que ama
um lugar por alguma razão específica é o mais propenso a destruí-lo, pois acabará
por defender uma parte sua em detrimento do todo. O patriota místico, por outro
lado, ainda que derrube a favela abaixo para fazer dela "uma Nova Jerusalém",
estará a reformá-la. Amar a Inglaterra por ser um Império seria não a amar um
outro Império a subjugasse; amar a Inglaterra por uma teoria da História qualquer
(como Hegel e o seu Estado Alemão) haverá de desembocar no falsificar da História.
"Os piores jingoístas não amam a Inglaterra; amam uma teoria qualquer
sobre a Inglaterra".

- "Quanto mais transcendental for o seu patriotismo, mais prática será a


sua política". 
- Chesterton, então, pula para outro exemplo, e em vez do patriotismo fala das
mulheres e de sua "estranha e profunda lealdade". Estas, tão prontas a
enfrentar o mundo inteiro para defender os seus, têm muito claro para si, e quase
morbidamente claro, as falhas todas dos seus e as fraquezas de sua própria defesa.
Não são cegas; são leais. Amam e estão, por isso, sempre tentando mudar o que
amam. Se extremamente místicas no credo, são extremamente cínicas na crítica.
"Antes de qualquer ato cósmico de reforma, é necessário
prestar um juramento cósmico de fidelidade. O homem deve
estar interessado na vida para, depois, poder desinteressar-
se de qualquer dos seus aspectos."
- Chesterton rejeita, enfaticamente, a atitude da "pessoa racional" que, vendo no
Mundo um misto de bem e de mal, aceita-o como é, resignada e com certa dose de
satisfação. Porém, para "os objetivos titânicos de fé e revolução", precisamos é
de um modo de tanto amá-lo quanto odiá-lo, ao mesmo tempo e profundamente. A
raiva e a alegria não se devem neutralizar uma à outra, mas sim arder, ambas, com
uma força maior. O mundo deveria ser o castelo do ogro que atacamos à noite e a
casa a que retornamos de manhã. 
- O otimista irracional é bem-sucedido precisamente por falhar em harmonizar-se
com o mundo. Por falhar neste ponto, vence em tudo o mais. Odeia o mundo a ponto
de querer mudá-lo, em vez de apenas resignar-se, e ama o mundo a ponto de achar
que vale a pena mudá-lo, em vez de fazer coro a Matthew Arnold e dizê-lo bearable,
but hardly worth it. É o mesmo amor que o mantém, a um só tempo, quieto e
"O suicídio não é apenas um pecado: é o pecado. É o mal último e
absoluto, é a recusa a ter qualquer interesse pela existência e a recusa a
prestar um juramento de fidelidade à vida. O homem que mata um
homem, mata um homem; o homem que se mata, mata todos os
homens. No que lhe diz respeito, é um homem que liquida o mundo. O
seu ato é pior (simbolicamente considerado) do que qualquer estupro ou
atentado a dinamite. Pois ele destrói todos os edifícios e insulta todas as
mulheres".
- Não é por acidente, aliás, que o suicida é citado. Quem comete suicídio é quem
levou às últimas consequências lógicas a recusa a prestar o juramento de lealdade à
vida. Rejeitando olhar para fora de si antes de olhar para dentro; rejeitando
humildar-se perante as exigências imperativas de um Universo que com ele ou sem
ele passaria muito bem, obrigado, o homem desinteressa-se tanto por tudo
que não seja ele a ponto de querer matar-se para matar tudo o mais.

- E, então, após esclarecer a sem-vergonhice numa comparação feita entre os


mártires e os suicidas, Chesterton achega-se, pela primeira vez em todo o
livro, do cristianismo. A cristandade, diz ele, sempre se mostrara severa para
com o suicida enquanto estimulava, por outro lado e ardentemente, o martírio. Os
antigos cristãos que falavam da morte com uma horrível felicidade, e que aspiravam,
de longe, o odor das sepulturas como se flores fossem; os cristãos que haviam
esticado o martírio e o ascetismo a pontos alarmantes e mesmo pessimistas, estes
mesmos cristãos, porém, fincavam, no limiar mesmo do precipício, o aviso: "o
suicídio é um pecado mortal."
- Mais: não era uma questão de graduação ou coisa que o valha. Os dois atos, que de
fora pareciam iguais, para os cristãos de dentro estavam nos polos inversos do Céu e
do Inferno. A mesma coisa de que se apercebera Chesterton parecia estar viva na
tradição cristã, e foi assim que, "pela primeira vez, verifiquei que os meus
passos errantes estavam pisando um caminho já trilhado". Chesterton
achegou-se do cristianismo histórico primeiramente por perceber que o cristianismo
era cuspido por manter viva a mesma tensão que ele, sozinho, havia percebido ser
necessária:
"O Cristianismo era acusado, ao mesmo tempo, de ser
demasiadamente otimista acerca do universo e
- Em seguida, tira sarro dos filósofos terçafeiristas e de como tagarelavam sobre o
progresso que tornara inútil ou impossível determinadas crenças, apenas para dizer
que se lhe afigurava, cada vez mais nitidamente, Cristianismo surgira historicamente
precisamente para responder-lhe a pergunta sobre a tensão paradoxal que vai na
alma do patriotista cósmico.

- O Cristianismo o atraíra precisamente por ser peculiar, e o que lhe havia de


peculiar é ele ser peculiar, não ser simples ou sincero, ideais óbvios para toda a
humanidade. Assim, "o Cristianismo foi a resposta a um enigma, e não a
última afirmação banal depois de uma longa conversa". Veio com o choque
de uma surpresa surgida de não-se-sabe-onde, não como a consequência inescapável
dos silogismos de um sábio.

- Assim, o cristianismo nada tinha que ver com a doutrina da "Luz


Interior", filosofia sobretudo estoica, a que Chesterton despreza. Que alguém tenha
de adorar o Deus dentro de si quer dizer, ao fim e ao cabo, que a pessoa tem de
adorar a si mesma. Marco Aurélio, um dos expoentes máximos da doutrina, era um
"egoísta desinteressado" que se apegava às coisas pequenas por faltar-lhe a força
para as reformas morais realmente grandes e necessárias. O cristianismo veio
trombetear o dever que os homens tinham de olhar para fora de si e contemplar,
"com admiração e entusiamos, uma companhia divina e um divino
capitão".
- Por outro lado, nada tinha com a "adoração da Natureza", inverso
filosófico da Luz Interior. Querer adorar o Sol é, no final, imitar as características
solares, encontrar na bola de fogo o ideal máximo de moralidade. Desnecessário
dizer que não iria demorar nadinha para isso descambar nalgo nada natural. De
manhã, adora-se a Natureza por sua bondade e pureza; de noite, banha-se no sangue
quente dum touro. "A natureza deve ser usufruída, não adorada". 
- O mundo antigo, portanto, caíra vítima do desolador dilema (que é, igualmente, o
nosso, e era especialmente o de Chesterton): de um lado, Marco Aurélio e os
estoicos, desesperançados e voltados apenas para o próprio umbigo, sabiam que
havia algo de torto no mundo mas não criam e nem queriam poder mudá-lo; do
outro, os povos bárbaros que, amando a Natureza de fato, descambaram para tudo o
que havia de mais anti-natural e estavam mesmo a destruí-la de vez.
- Foi nesta encruzilhada que fincaram a Cruz. Como uma espada, veio o cristianismo
e, num só e imisericordioso golpe, cortou fora a cabeça do dilema ao separar a
criação do Criador. Deus era um artista que, criando o mundo, separara-Se dele
assim como um poeta separa-se do poema que escreveu. 
- Importa notar, aliás, que Chesterton refere-se ao "primeiro princípio
filosófico" do cristianismo apenas para chamar a atenção para como o dilema se
havia dissipado ao tocá-lo. Se verdadeiro ou não, é questão que ele deixará para
depois.
- Neste sistema, o homem podia estar feliz e revoltado, ao mesmo tempo. "A
humanidade podia estar em paz com o Universo, embora estivesse em
guerra com o mundo".

- Ler desde o penúltimo parágrafo do capítulo até o seu final. É lá que Chesterton
descreve como as duas enormes máquinas do mundo e do cristianismo, que até
então ele havia carregado separadas, cada uma no seu lado, ajustaram-se nesta
questão do princípio filosófico da criação cristã com as necessidades espirituais do
patriota cósmico. Depois, "instinto após instinto foi respondido por doutrina após
doutrina".
- E é no último parágrafo que Chesterton demonstra como o cristianismo, acima de
tudo, redimiu-lhe o otimismo ao falar-lhe sobre como NÃO estava tudo certo com o
homem, sobre como éramos todos deuses caídos, imagens apagadas do Deus
supremo. Deuses, sim, mas caídos; criados para o Éden, expulsos do Paraíso. 

"Antes de qualquer ato cósmico de reforma, é necessário prestar um juramento


cósmico de fidelidade. O homem deve estar interessado na vida para, depois, poder

II. O SUICÍDIO DO PENSAMENTO


desinteressar-se de qualquer dos seus aspectos."

RECOMENDAÇÕES DE LEITURA: Sobre a surpresa ser o prazer essencial tanto


para o homem comum como para o verdadeiro filósofo, ler "Santo Tomás, a vaca
voadora e nós"; sobre a pequenez, a humildade portanto, ser característica essencial
do prazer e da sabedoria, ler os ensaios "Tremendas Trivialidades", "Em defesa da
Humildade", "O Paganismo do Sr. Lowes Dickenson" e "If I Had Only One Sermon
to Preach"; sobre o progresso, ler os capítulos "O Espírito Negativista" e
"Observações Finais sobre a Importância da Ortodoxia" de "Hereges"; 

- O mundo moderno tem o coração -- no mais das vezes grande e generoso -- no


lugar errado. Não apenas os vícios como também as virtudes andam à solta; boiam,
por assim dizer, na sociedade, sem se ligarem a qualquer hierarquia ou sistema
filosófico coerente e causando danos imensos a torto e a direito. 

"O mundo moderno está repleto de antigas virtudes


cristãs que enlouqueceram".

- Verdade imisericordiosa e compaixão falsa: Blatchford, por exemplo,


intoxicado com a caridade cristã isolada de todas as outras virtudes, hipertrofia-a até
a doidice e passa a defender que não há pecados a serem perdoados. A verdade --
que o impediria de mandar às favas o pecado -- não lhe importa. Por outro lado, há o
realista amargurado que assassinara, de caso pensado, todo o conforto humano
encontrado em histórias e na "cura dos males do coração".

- "A modéstia afastou-se do órgão da ambição e estabeleceu-se no órgão


da convicção, onde nunca deveria estar".

- O homem podia achar-se um bosta, podia julgar-se a escória da terra e o refugo da


humanidade, mas não duvidava da verdade; não duvidava da Divina Razão.
- A antiga humildade, portanto, impulsionava o homem a melhorar ao fazer-lhe
duvidar de seus esforços; a nova humildade o faz duvidar dos objetivos e, assim,
trava-o.

- Teríamos pensadores tímidos demais para crer na tabuada da multiplicação e


filósofos medrosos demais para crer na lei da gravidade. Ninguém, hoje em dia,
com filósofos tremendo só de pensar em afirmar que homem é homem e
mulher é mulher, acharia isso um exagero, não? 

- A autoridade religiosa -- se boa ou má agora não importa -- ergueu-se a fim de


barrar um perigo, tão real quanto mortal, e o perigo é este: "o intelecto humano é
livre para destruir-se a si mesmo".
- Se toda uma geração de pensadores sair a ensinar que o pensamento humano não
tem valor algum, a razão mesma estaria em apuros, assim como estaria em apuros a
raça humana se todos os homens e mulheres de agora se recusassem a ter filhos ou
abortassem todos que tivessem. 
- Toda a autoridade religiosa ergueu-se contra este último mal, contra o derradeiro
abismo do suicídio intelectual que é o "pensamento que para todo o
- "A razão acompanha a religião porque ambas são da mesma natureza
primária e autoritária. Ambas são métodos de prova não prováveis em si
mesmos. E ao destruirmos a ideia da Autoridade Divina, destruímos, em
grande parte, a ideia daquela autoridade humana por intermédio da
qual fazemos uma conta de dividir". [C. S. Lewis sobre os pensamentos no
materialismo: http://creation.com/cs-lewis-on-materialistic-thoughts; Olavo de
Carvalho responde a um ateu: https://www.youtube.com/watch?v=bhRSbZiTPk4]

- Já antecipando que iriam chamar-lhe irresponsável, fazedor de afirmações sem


fundamento algum, Chesterton põe-se a examinar "as principais correntes
modernas de pensamento que têm como efeito paralisar o pensamento
em si".

- Se o evolucionismo quiser dizer mais do que que um algo positivo chamado


macaco transformou-se noutro algo positivo chamado homem, então será um ataque
ao pensamento, e não à fé, pois quererá dizer que não há nada senão o fluxo eterno
de todas as coisas: estaremos, todos nós, enfiados nesta mistureba evolutiva e não
teremos como pensar em absoluto: não temos como pensar se não houver
nada para se pensar sobre, e não podemos pensar se não estivermos
separados do objeto sobre o qual pensaremos. 

- No outro extremo, estava Wells e a sua insistência na solidão e unicidade absoluta


de todas as coisas. Pensar é fazer ligações e criar categorias, diz Chesterton.
Sem isso, não teríamos nem como abrir a boca.

- Depois, temos o progresso que a toda hora muda o teste em vez de


tentar ultrapassá-lo. Nietzsche e a ideia de que os homens buscaram como se
fossem boas coisas que, hoje, julgamos serem más: mas, se for assim, se não há
nenhum padrão em absoluto, nenhuma direção fixa a ser seguida, nenhum norte
para guiar-nos a moral, é evidente que não teremos como falar em "progresso", no
sentido de achegarmo-nos mais para perto de um objetivo.
-  Tomar a própria mudança como objetivo é, óbvio, fixar a mudança e, portanto,
torná-la senhora absoluta. O devoto da mudança não pode jamais flertar com "o
ideal da monotonia".
- Por último: alterar, fundamentalmente, o padrão, é coisa que torna
impossível pensarmos quer sobre o passado, quer sobre o futuro. É a
opor-me a qualquer um que, no futuro, faça as coisas como Hitler ou Stalin fizeram.
Se não houver padrão, não pode haver qualquer juízo moral e estamos todos como
cegos, a tatear na escuridão. 

- O pragmatismo, que alardeia termos a precisão de crer apenas no que nos é


necessário (as utilidades práticas que decorrem de uma doutrina ou ideia qualquer)
e esquecermos do Absoluto é um tipo de paradoxo verbal pois o Absoluto, mais do
que tudo, é uma necessidade. "O sentido humano do fato real", que existe de si
e por si, afora suas consequências práticas -- em suma, os objetos COMO OS
EXPERIMENTAMOS NA VIDA REAL, são feitos absurdos por esta filosofia. 

- O livre pensamento já se havia esgotado, e estava farto do próprio sucesso:


"Encontramos todas as perguntas que era possível encontrar e já é
tempo de as deixarmos de lado para procurarmos as respostas". 

- Não fora apenas Chesterton, segundo o próprio Chesterton, que havia ligado a
doidice à "razão desvairada". Outra escola também o percebera, e apresentara seu
próprio remédio: se a razão destrói, a vontade cria. É a filosofia da vontade
de Schopenhauer e Nietzsche: o primeiro dizendo que tudo o que há é
"representação da consciência" apenas e pregando um ascetismo da vontade, força
infinita num mundo de finitos, e o segundo dizendo que por o mundo não ter
sentido algum, o único valor é a vontade do homem que "deve aceitar a vida tal como
ela é".
- O que importa não é o porquê de um homem procurar algo (já que este algo é
apenas representação que ecoa na consciência e não tem sentido algum em si
mesmo) mas, sim, o FATO de que ele procura algo. 
- Exemplos modernos Chesterton encontra em Bernard Shaw e H. G. Wells: o
primeiro atacando a idéia do padrão do desejo de felicidade; o segundo, dizendo que
deveríamos avaliar as coisas não como pensadores, mas como "artistas".
- Glorificar o ato volitivo em si acaba na mesma cobra a comer o próprio rabo: o
teste da felicidade é um teste; o teste da vontade, não. Como todo ato é ato
voluntário, não haveria, assim, modo de distinguir um do outro e,
portanto, não haveria modo de ESCOLHER: "O culto da vontade é a
negação da vontade. Admirar a simples escolha é recusar-se a escolher".
- Os adoradores da vontade sempre falam em termos expansionistas quando a
verdade é, claro, que a escolher é limitar-se: você se fecha para todo o universo de
ou limitativo da vontade que converte em quase tolice a maior parte das
afirmações dos anárquicos adoradores da vontade". O poeta John Davidson
dizia que não tomava parte no "tu não farás": Chesterton diz-lhe, amável, que não
pode haver escolha sem o "tu não farás".
- O mundo dos fatos é o mundo dos limites. A arte é limitação, e a essência de toda a
pintura é sua moldura. "O artista ama seus limites: eles constituem a coisa
que ele está fazendo".

- pág. 68: "Mas o novo rebelde é um cético... revoltar contra alguma coisa". 

- Que a sátira andasse a escassear na literatura de então era prova que as coisas mais
ferozes e combativas minguam se se lhes arranca o porquê: sem um padrão fixo,
nem sarro dos outros temos como tirar. Não temos como aloprar alguém por
ser gordo ou erguermos uma sobrancelha de espanto perante uma
mulher barbada. Aliás, corolário interessante disso é como a comédia,
em nossos dias, está pobre. O viva à diversidade é um golpe na jugular
da comédia, que vive de tirar sarro PRECISAMENTE DA DIVERSIDADE. 
- "Nietzsche podia zombar, mas não rir".
- Nietzsche e Tolstoi, um e outro, ambos estão imobilizados, o primeiro por crer que
toda ação é boa por não ser especial e o outro que toda ação é má. 

- Estes dois capítulos foram o exame breve das principais correntes de pensamento
modernas. Chesterton chama-as "pilhas de ingenuidades e futilidades", "os
inteligentes, admiráveis, enfadonhos e inúteis livros modernos". O ponto
final de todas estas filosofias era o manicômio, pois "a loucura pode ser definida
como o uso da atividade mental até se ter atingido a debilidade mental". 

- Joana D'Arc foi a camponesa que Tolstoi admirava e a guerreira a que Nietzsche
prestava reverências. Foi algo e fez algo, porém, enquanto os dois "não passaram
de estranhos especuladores que nada fizeram". É aqui que Chesterton alude,
pela primeira vez, a "algum segredo de unidade moral e de utilidade que se
perdeu". 
- "O amor de um herói é mais terrível que o ódio de um tirano. O ódio de
um herói é mais generoso do que o amor de um filantropo".    

- No final do capítulo, mais um trecho magistral: as filosofias nietzschianas e


tolstoiana nada mais eram do que pedaços soltos da moral de Cristo. São as
mantidas no núcleo de Sua personalidade, ambas vivem em conjunto que, se
harmonioso, não deixa nunca de escandalizar a "modernidade pó-de-arroz".
Rasgaram-Lhe a alma em farrapos e deram-lhes os nomes de egoísmo e altruísmo,
para logo depois ficarem petrificados diante de sua magnificência e submissão
enormes. O mesmo Deus que perdoa pecados e ressuscita os mortos deixa-se
humilhar até a morte, e morte de cruz. 

Sobre Ortodoxia
"Ortodoxia é o tronco do qual saem todos os ramos chestertonianos. Tudo o mais
que ele escreveu, de uma forma ou de outra, retorna a este livro". - Dale
https://www.youtube.com/watch?v=2i7wIJComxA
Ahlquist: 

"romancear consiste em tomar algo por mais agradável por ser mais perigoso. Isso é
uma idéia cristã". - HEREGES 

"[Ortodoxia] é uma tentativa de devolver-nos a tutela do universo de Deus". - Scott


Randall Paine, Chesterton e o Universo

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