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Ngoma Usuku

As lendas e a vida são uma sinfonia de sílabas


Elevam-se e imergem com júbilo e melodrama

Há assim mentira na verdade e realidade nas fábulas


Expiando o nosso passado mártir com peso de trama

Dedicado a:
Jorge Ferraz Seca

Em memória de:
António Ferraz Seca
Filipe Ferraz Seca
João Ferraz Seca

13 de Maio a 01 de Setembro
2019

Ngoma Usuku

2
PEDRA
A
● «…a razão agradável…» ●

– A Era iria obscurecer, Utu!


– É impressionante o ultraje açambarcado.
– Irias obliterar unicamente? Antes, extrai.
– O um a energizar ininteligentemente…
– Uma ameaça especial, implícita, ordinária!
Bastantemente concentrados, davam favor grotesco – hiperbólico,
justiceiro, letífico, misantrópico – num particular quesito sobre tribos. Um
vulto xadrezava, zangado.

– Conversa interessante essa de vocês os três – disse o vulto, sorrindo


falsamente, após algum tempo, enquanto se aproximava deles com duas
outras sombras. – Podem expor mais as vossas ideias?
– Darias voltas à cabeça e não entenderias – respondeu Arusha com
desmesura.
– Falar assim com o nosso pai é um crime, mana – recobrou Impi. –
Estamos só a exercitar a nossa mente, papá, mais nada. Já nos vieste
buscar?
– Gozo! – depreciou Utu. – Ainda é muito cedo. Porque não vais
buscar primeiro o Zulu, o teu filho preferido? Ele pode ficar a caçar seixa
com a namorada dele até a lua aparecer, e o papá não lhe fala nada!
– Há uma grande diferença entre filho mais achegado e filho
preferido – disse o vulto, abeirando-se cada vez mais deles, permitindo ser
vista a sua expressão facial e a das duas mulheres que vinham consigo. – O
Zulu é o meu filho mais achegado. Vocês três são os meus preferidos.
– Já nos disseste isso tantas vezes – anuiu Arusha – mas nunca o
demonstraste. – Quem são essas mulheres e por que é que têm a pele tão
estranha? São de outra tribo ou estão doentes?
– Lideras a conversa entre os teus irmãos – disse uma das mulheres.
A sua descrição? Seminua; pele negra como o céu nocturno, estrelado. Os
dentes e os olhos brilhavam como a lua; a língua era roxa. – Deves ser a
mais velha. Vai ser interessante transformar-te.

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– Makongu – exclamou Utu. – Queres transformar a minha irmã em
quê? Papá, essas duas aqui são ngapa? Contrataste muloji só porque
deixamos a raposa levar aquelas tuas galinhas?
– Não, filho – respondeu o homem, sorrindo. – Elas estão aqui para
vos mostrar que, inquestionavelmente, vocês são os meus filhos predilectos.
– Papá, e elas vão nos mostrar isso como? – perguntou Utu.
– Queres mesmo saber?
– Responde só, pai – depreciou Arusha. – Se ele não quisesse saber,
não perguntaria.
– São vossas tias essas duas senhoras e…
– Tias?! – interromperam as três crianças em uníssono.
– Vulgar voz visceral, venenosa, vândala – classificou a segunda
mulher, olhando de forma fria para o trio infantil. Descrição? Nua; pele
translúcida como a água, reluzindo as sete cores do arco-íris.
– Xosa – chamou a primeira mulher – diz de uma vez a eles a razão
agradável de estarmos aqui. Não podemos perder tempo.
– Zénite dos meus planos – disse ele para as três crianças, com o
olhar avermelhado – essas são as vossas tias Neve Negra e Orvalho Arco-
Íris. Elas estão aqui para vos tornar em seres mais fortes, mas, para isso,
antes, elas terão de vos matar.

4
PEDRA
E
● Embargamento ●

– Ewe! Kokolo yetu! – exclamou Utu em engraçado sarcasmo. – Vão


nos matar por causa de quatro galinhas que desapareceram? Se roubassem
os bois, iam nos fazer o quê?
– Irradias intelectualidade de matumbu dizendo isso, irmãozinho –
depreciou Arusha, soltando um muxoxu.
– O teu cérebro é que te diz isso, mana – retrucou ele – mas este é o
teu ponto de vista sobre o meu ponto de vista, não o meu ponto de vista.
– Únicos a conversar, únicos a discutir – pavoneou-se Xosa. – Esses é
que são os meus filhos; por isso mesmo é que têm de ser vocês a passar por
esta transformação.
Braços agarrados, aprisionados – cada um do trio de adultos segurou
uma das três crianças pelos membros superiores e preparavam-se para
torcer-lhes o pescoço. Brevidade no homicídio – era essa a sua intenção
com o intuito de evitar qualquer tipo de alvoroço. Brio amplamente
inumano, gelificado – o pai e as tias daquelas crianças pareciam executar
tal acto não tendo no seu coração o amor em destroço. Brotava então dos
três rostos pueris uma expressão de novilho terrivelmente assustado – as
crianças começavam a acreditar que aqueles adultos iriam chaciná-los com
empedernido esforço. Brutalidade no método – os adultos pegaram cada
um uma catana com a ideia de cortar-lhes a carne e partirem-lhe os ossos?
Crateras começaram a abrir-se no chão – eram três buracos em forma
de cova, aguardando preenchimento imediato. Crença no salvamento em
acção – uma silhueta vinha correndo para não deixar aqueles três meninos
passarem por tal sofrimento. Crianças como sacrifício para uma religião?
Onde tinham ido aqueles três buscar tal tolice sem fundamento? Crosta
terrestre esburacada em dissipação – as covas começaram a fechar-se em
prenúncio de livramento. Crueldade paterna em adiamento, não em
abolição – Xosa fez sinal para que as tias largassem os meninos e ele fez o
mesmo sem apresentar qualquer esclarecimento.
– Drástico, drenou drinque drogado, drupáceo – desdenhou Makala
dya Kixiketela.

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– Frustrado, frouxo, frígido, fresco fraco – insultou Nvula.
– Grandes grelhas gritarão grotescas grutas – ameaçou-lhes Xosa,
fazendo-as calar.
– Há uma festa para vocês, mocinhos – gritou a silhueta,
aproximando-se. Era Yoruba, mãe das três crianças. – Hembadoon,
Hilombe, Homa e Hukata já estão lá de kingila e zunga.
– Já chegaram há muito tempo?! – perguntou Xosa, falseando um
sorriso. – Jejum não iria lhes fazer mal, por enquanto. Jiboia grelhada com
molho de kasakaya é o que lhes oferecerei pela espera; sei que eles gostam
muito disso. Jorrará kisangwa e mahindi por todo lado, mas, por enquanto,
dá-me só esses momentos a sós com os rapazes, por favor. Em pouco tempo
estaremos aí, mulher. Juro-te!
– Lá em casa já está tudo pronto, homem. Leite de cabrito, carne de
pakasa, fumbwa, kuz-kuz e muitas frutas. Litros e mais litros de kapuka,
kimbombu e kombota estão à espera dos mais velhos, que somos apenas
nós os dois, marido. Louvaremos a Mpungo até ao amanhecer. Lua e sol
assistirão à nossa alegria durante dois dias com inveja!
Marcas de testas franzidas por raiva e impaciência – Neve Negra e
Orvalho Arco-Íris queriam chacinar as três crianças à frente da sua mãe
sem mais demora. Mercadejaram formas de se livrar de Yoruba com
displicência – se a matassem no processo não importava, ao menos
cumpririam com o combinado a horas. Miraram com desprezo Xosa e a sua
indolência – como era possível ele ser irmão delas se à frente de uma
mulher não conseguia demonstrar nem um pouco da vilania que exibira
outrora? Morderam os próprios lábios exalando sanguinolência – pelo
desenrolar dos acontecimentos, não se faria nada àquelas crianças; tempo
jogado fora. Muralhas conjugais gerando incompetência – como colocariam
em prática o plano sombrio oculto neste plano macabro agora?
Narcótico indutor de fúria descontrolada: Yoruba pegou as mãos de
Arusha, Utu e Impi e começou a levá-los em afastamento do trio assassino.
Nervos à flor da pele enrubescida; Xosa sentiu ódio por sua esposa agir
daquele modo desrespeitoso e asinino. Nirvana de gente enlouquecida: ele
segurou a mão de duas crianças e olhou para Yoruba com sentimento
ferino. Normal, anormal e paranormal era aquela alhada – quem sairia daí
vivo se se tocasse o berimbau de partida para o extermínio? Números era o
que menos importava – o expoente com único valor relevante era de quem
não entregaria o bom senso ao declínio.
– Prática presciência; prioridade: procurar prudência – comunicou-
se Makala dya Kixiketela com Xosa, para que este não arruinasse o plano.

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Quarto de calma contra terço de fúria – a cólera inumana e a
passividade insana de Xosa digladiaram ferozmente no seu coração e na sua
mente com incontrolável bravura. Querer a morte dos seus filhos não era
prioridade, era penúria, mas mascarou este sentimento retirando-lhe
sublimidade, ternura e candura. Quilates de objectividade tresloucada
contra quilates de sentimentalismo recheado de finura – até onde iria a
sanidade dele sem que fosse descoberta que, sem esse disfarce, era pura
loucura?
Rarefeito já era o ar que se respirava; até a cor de Neve Negra perdeu
o seu brilho de diamante. Dia amante de paradoxos e drama; parecia que o
sol tinha nascido para oferecer-lhes alegria e sensaboria candentes. Clã
Dentes Sombrios de Trama, provavelmente era esse o nome do grupo que
Xosa, Neve Negra e Orvalho Arco-íris pertenciam, visto que demonstravam
ter ódio por qualquer espécie, até a nativa. Alternativa: estruturar em outra
ordem o plano: reerguer, ripostar, roxear e ruptura.
– Sarna comigo é o que vais arranjar se não largares já os meninos,
Xosa – anunciou Yoruba, irritada. – Ser marido não te dá o direito de
mandar em tudo dentro e fora da nossa kubata. Silêncio! Não me responde
mais, homem! Sorte a tua que tem aqui criança a ouvir e a ver, senão, ia-te
mostrar por que é que uma muhetu tem sempre mais peito que um dyala.
Surtir efeito contra ti é o resultado se não largares o Impi e a Arusha; deixa,
homem, lhes deixa!
– Trabalho é trabalho; família é família – desvalorizou Xosa. –
Tremeres com calor é o que vai acontecer se eu continuar aqui, Yoruba.
Tributo que paguei à tua família por ficar contigo não chega para me
respeitares? Troca de papel então: ficas tu o marido e eu, a esposa! –
Suspirou em aparente derrota. – Trunfo que as tribos usam para o homem
perder o seu poder: mulher.
Urgência estava atribuída ao plano que ele tinha em mente, mas
decidiu adiá-lo? Uma simples afronta feminina era o suficiente para
desestabilizar Xosa, o desumano?
Vassouraram-se dúvidas na mente das crianças: porque a sua mãe
não falava das duas mulheres estranhas? Não as conseguia ver? Vermelha
tinha ficado a pele de Xosa por ínfimos instantes; será que só Arusha, Impi
e Utu notaram aquela estranha coloração da derme de seu pai e a
conseguiram perceber? Vir em socorro deles naquele momento exacto era
estranho; Yoruba estava aí por simples casualidade ou porque estava de
sentinela? Vórtice de perguntas contra vácuo de respostas: a única coisa
que o trio infantil sabia era que tinham vida e tencionavam mantê-la.

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Vulnerabilidade não era permitida, então, aproveitando-se da distracção
paterna, os três saíram em afastamento de Xosa a correr.
Xadrez abespinhado – o jogador mais forte parecia perder para peões
fracos e tolos. Xerez dos acobardados – o medo de perder a sua esposa
embriagava o jogador de modo a enfraquecer-lhe os miolos. Xícara da
altivez dos enfraquecidos – o jogador bebeu aos tragos a decisão de sair em
retirada, e não o faria a solo. Xosa deixou os seus ombros descaírem – não
fazia nada para ir buscar as três crianças; estaria a libertá-las? Xuxu
transviado – parecia que a exequibilidade do plano seria rotulada com
falha.
Zarpar com mares de lágrimas em seus olhos parecia viável para
Arusha, Impi e Utu. Zero foi a nota que Yoruba atribuiu ao seu marido por
ele não ter aceitado ir à festa com ela. Ziguezague dos acontecimentos –
seria esse o fim do plano assassino? Zoológico da insanidade – na verdade,
Xosa criara outro plano animalmente macabro, até mesmo contra Yoruba, e
o colocaria em acção mais tarde. Zulu, o primogénito, estava longe, senão
serviria de entrave.


A altitude em que aquela mulher idosa de corpo extraordinário se
encontrava apresentava perigo para a sua respiração. Além disso, já não
tinha mantimentos nem água há dias. Ainda assim, cavava aquela
montanha com as suas próprias mãos, retirando rocha após rocha, apesar
do colossal peso das mesmas. Auspicioso – a mulher tinha o nome de
Sanzala e não dava azo a qualquer embargo aos seus intentos porque estava
prestes a descobrir a origem de um duo implacável de criaturas: Yamungi e
Jokota.

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PEDRA
I
● Irmãos ●

Incrível era a velocidade com a qual Arusha, Impi e Utu corriam entre
as chanas altas. Fugiam – grande era o terror que sentiam naquele
momento; fugiam – da ameaça de morte perpetrada por seu pai.
O que se passava na mente de Xosa? Que ideia era aquela? Porque a
tivera? Para que fim a queria executar?
– Utu, cuidado! – gritou Impi, ao ver o irmão tropeçar num burgau
com a sua perna manca.
Braços e mãos lacerados foi o resultado corporal da queda de Utu.
Quando Arusha e Impi se aproximaram para o ajudar a se levantar –
tenebroso – ouviram passos céleres avizinhando-se deles.
Como era possível não terem ouvido os passos antes? De quem eram
os passos? Seriam do seu pai enlouquecido e das duas mulheres
tresloucadas?
– De kambwa não passam – apoucou um dos detentores dos passos,
rindo em zombaria irritante para as três crianças. – Começam a ladrar, pá!
Ladrem agora!
– Falas à toa! Kambwa é muito pra eles – menoscabou outra voz em
escárnio. – Esses aqui são kanjila, são os passarinhos aqui da nossa aldeia!
– Garoto – disse Arusha em timbre intimidador – sentes alguma
coisa de passarinho enquanto ouves a minha voz? Se com o que sai da
minha boca te sentes assim, imagina o que te acontecerá se eu usar as
minhas mãos...
– Há muito cuspe na boca dessa fininha – vexou outro do grupo dos
mofadores. – Deixam, vou-lhe secar com dois bicos da bexiga.
– Já nem vais ter pés se lhe encostares – ameaçaram Utu e Impi em
uníssono, exibindo um olhar intimidador.
– Lhes dão com pedra! Lhes dão com pedra – gritaram outros
zombadores, apanhando os objectos mencionados.
– Moços, as vossas mães não iam gostar nada de saber que vocês
arranjaram dikulu com os filhos do soba – preconizou Yoruba, colocando-
se entre eles e os seus filhos. – Vão embora!

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No rosto dos jovens houve intensão de continuidade do biltre intento,
mas as suas mãos largaram os burgaus.
– Pra quê bater alguém que chama sempre a mãe pra lhe acudir? –
demandou um dos jovens em escárnio. – Vamos embora. Vamos sentar à
volta da fogueira pra se contarmos bem a história dos passarinhos!
– Queria vos convidar para a festa lá na nossa kubata – disse Yoruba
– mas parece que já têm diversão.
– Repolho, mbiji e kisangwa na nossa casa também tem. Vamo
mbora! Somos os elefantes daqui, não nos juntamos com esses kanjila!
Saíam da visão de Yoruba e dos seus filhos gradativamente, quando,
de repente, um dos jovens mofadores caiu porque alguém o derrubara com
uma cabeçada entre os lábios. O alguém ficou por cima do derrubado,
tapando-lhe a boca e segurando-lhe um dos braços.
Todos os rapazes mofadores pensaram em acudir, mas conheciam
bem demais o alguém para se intrometerem numa batalha dele;
contiveram-se.
– Vivo… uma vez que sei que queres continuar vivo – disse o alguém
– retira tudo o que disseste contra os meus irmãos e grita: Eu e os meus
irmãos é que somos kanjila!
– Xosa é o meu pai – disse outro alguém, derrubando o jovem mais
forte, batendo-lhe com um burgau no abdómen – e o meu pai manda
nessas terras. Digam que vocês mesmos é que são kanjila ou vão voltar em
casa inflamados!
– Zulu e Herero, parem! – imperou Yoruba, denunciando o nome do
alguém e do outro. – Deixem esses meninos irem embora. Venham, meus
filhos. Venham. Hoje é dia de festa, não de heróis e vingança.


– Aonde foste, minha filha? Aonde foste por causa da tua curiosidade
e por causa dessa tua teimosia inamovível? – argumentava em quesito de si
para si o homem enorme de cabelos brancos, enquanto escalava uma
montanha. – Andarias melhor se estivesses sempre comigo ou com os teus
irmãos. Aqui o único resultado que terás é seres assassinada.
Estava cansado em demasia, mas a preocupação paternal dava-lhe
forças. Encararia qualquer situação para trazer de volta a sua filha, afinal
ele era Ngola, um idoso que possuía um exército extraordinário.

10
PEDRA
O
● Outro caminho ●

Obtusos aos intentos de Xosa, as três crianças chegaram ao local da


festa com Yoruba, Zulu e Herero. O local estava recheado de pessoas,
comida e bebida – parecia o paraíso propício para se esquecer uma ameaça
paterna.
– Uh! Os kanjila se dão de muito – cochichou uma rapariga para a
outra. Hukata era o seu nome. – Até na festa deles, na casa deles, querem já
chegar tarde para toda aldeia lhes ver.
– Bem burros só, ya? – continou a outra. Hembadoon; era assim que
se chamava. – Querem se dar de águia, mas são mesmo só kanjila, we!
– Como é que eles ainda têm coragem de aparecer nessa festa bem
grande? – cochichou o rapaz denominado Hilombe. – Eles não sentem que
não merecem isso?
– Dá pra lhes fritar tipo pardal e lhes comer com um bom molho sujo
de tão insignificantes que são – acrescentou Hukata.
– Falam muito, mas nada fazem – disse Herero para Arusha, Impi e
Utu, para acalmá-los. – Esqueçam esses malucos. Vêm comigo; escondi
dois reco-recos de kapuka com xitu seca de coelho e de jiboia naquele nosso
sítio, para apreciarmos.
– Gostas muito! – disse Arusha. – Depois você mesmo é que vai nos
queixar na mamã que bebemos do garrafão dela!
– Herero, eu sou o mais velho – disse Zulu. – Se fizeres isso dessa vez,
vou contar as tuas maka de raparigas que andas a esconder.
Jorraram risos fraternais entre os quatro rapazes e a rapariga.
Enquanto se dirigiam para a kubata com intuito de saborear a bebida
proibida, interruptivo – foram segurados por alguns jovens e colocados no
meio da roda humana que aplaudia para eles em quesito de dança. O som
do batuque e da marimba eram agradáveis, convidativos, as palmas e os
gritos alegres também. Não resistiram – dançaram efusivamente.
Lágrimas de felicidade desceram do rosto de Yoruba ao ver os seus
filhos divertirem-se. Lembrou-se de extensas décadas atrás quando tinha a
mesma idade e não tinha de se preocupar com nada mais do que laser.
Seria possível aqueles dias ainda voltarem para ela? Não, provavelmente

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não, mas era possível ela garantir que os seus filhos continuassem a
desfrutar do prazer do puro ócio por mais tempo.
– Mas não convidaste também nossas mãe pra quê, tia Yoruba? –
perguntou uma das jovens. Homa era a sua denominação. – Assim plano da
tia é nos pôr a lavar kibutu de louça quando a festa acabar? Os hábito e
costume da nossa aldeia não são assim. As mãe é que dão exemplo...
– Não és pouco engraçada – disse Yoruba, sorrindo amigavelmente –
mas a festa é de criança. Criança come, criança limpa. Eh! Se me
responderes, vais ser desprezada como as kamuhetu da nossa tribo. Sabes
bem como eles são rabugentas, porcas, preguiçosas e nem sabem cozinhar.
– Palavra assim bem pesada neu que só tá me saí chucha agora, eh!
Isso fala na Hembadoon e na Hukata que já têm sema de homem, tia.
– Quero dançar, kalumba – disse Yoruba para ela, puxando-a. – Vem!
Hoje é festa! Maka, makongu e dikulu é amanhã.
Rapazes, raparigas e mulher dançaram e comeram. Houve masemba
e kabetula. Dikanza e marimba fizeram os seus papéis no cenário acústico
sem modéstia. Alegria, felicidade, celebração em inusitado frenesim – tudo
era agradável e parecia que não teria fim.

– Será que é para isto que nos obrigaste a fazer parte do teu plano,
irmão? – demandou Neve Negra, estando posicionada longe da festa com a
sua irmã e o receptor das suas palavras.
– Tens de prestar mais atenção às minhas acções, senão nunca me
entenderás – respondeu-lhe o receptor em emissão injuriosa.
– Vejo apenas um homem fraco diante dos caprichos da sua mulher –
interpôs-se Orvalho Arco-Íris.
Xosa ignorou o palavreado desrespeitoso das suas correligionárias.
Apontou a sua mão esquerda para as pessoas que dançavam. A sua mão
ganhou rubescência como cor e atacou o coração dos bailarinos. Nvula
baixou-lhe a mão antes que os matasse e tornou roxa a pupila de todos. O
resultado?
Zulu, Yoruba, Herero, Arusha, Impi, Utu, Hembadoon, Hilombe,
Homa, Hukata e todos ao seu redor ficaram cegos.


As mãos de Sanzala começavam a sangrar. As toneladas de rochas que
retirara eram imensuráveis. Agarrava, pousava; pousava, agarrava – as

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gotas de suor misturavam-se com as gotas de sangue causando-lhe
ardência.
Elevou-se e abaixou-se por uma eternidade até que um barulho a
interrompeu. Em movimentos rápidos, olhou à sua volta enquanto lançava
rochas a esmo. Elas bateram em algo, mas o algo não gemeu. Em passos
lentos, o algo aproximou-se dela. Eram duas palanka enormes,
descomunais. Ela voltou-se para fugir. Embora tivesse vontade, as suas
pernas pararam quando ela viu um ser gigantesco, com olhos
avermelhados, um monstruoso crocodílida e uma criatura que parecia ser
um fantasma à frente de si. Eles eram conhecidos por ela: o dos olhos
avermelhados era Kinguri, amplamente conhecido como Homem do Saco, o
crocodílida era Samanu, também chamado de Jacaré Bangão, e o último era
Wana, o Kazumbi.
Inventou formas de fugir na sua mente, mas Sanzala viu que eram
todas inexequíveis – impraticável: o caminho para fuga tornara-se
impossível; inclinou-se, ajoelhou-se e chorou.

Mahezu nngwe

Nome: Xosa – Ditadi Xamavu

Poderes conhecidos: Inibir e


eludir a mente de outros. Transformar-se
completamente em humano,
disfarçando, assim, o seu aspecto
cutâneo vermelho e parecer um homem
normal. Controlar o sangue de qualquer
ser.

Ponto fraco: Desconhecido.

Poderes desconhecidos: Sete.

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PEDRA
U
● Um par de insectos ●

Um breu roxeado foi o que invadiu a pupila dos que festejavam. Sem
mais demora, abriram-se três rupturas no chão, cada uma por baixo dos
pés de Arusha, Impi e Utu, e eles caíram nelas.
– Bem – disse Xosa – finalmente começará o treinamento.
Com frieza insanamente infanticida, deixou cair uma enorme catana
na ruptura de Arusha. Nvula e Makala dya Kixiketela fizeram o mesmo nas
de Impi e Utu, respectivamente.
Desciam em profunda escuridão as três crianças, gritando. O que lhes
aconteceria quando chegassem ao fim das rupturas? Treinamento? Que
tipo de pai faria aquilo aos próprios filhos?
Foram extensos os minutos que o trio de crianças caiu no vácuo até
atingir uma superfície sólida. As catanas quase lhes rasgaram as nucas em
homicídio, mas eles, involuntariamente, conseguiram esquivá-las.
Gastos e abismados, Arusha, Impi e Utu começaram a andar a esmo à
procura de uma saída. Encontraram-na? Não! Encontraram-nas, pois
tinham caído em lugares diferentes.
– Há agora a oportunidade de se superarem – disse Neve Negra aos
três, aparecendo de rompante no meio deles.
– Já que não parece haver outra solução – disse Arusha, colocando-se
entre Preta de Carvão e Impi e Utu – fujam, manos. Eu vou ficar aqui e me
submeter ao que quer que seja que essa louca quer.
– Louca? Eu? – demandou Neve Negra. – Vê-se bem que não
conheces bem o homem por meio do qual você nasceu.
– Mana, vem connosco – disse Utu, puxando Arusha para si e
começando a correr com ela e Impi em afastamento de Makala dya
Kixiketela.
– Não vos é permitido sair daqui enquanto não evoluírem. Vemo-nos
em breve. Aproveitem o meu desafio.
Pararam – sim, o trio de crianças parou e olhou para trás. Neve Negra
tinha desaparecido. Sentiram a terra tremer. Pânico era o que recomeçava a
consumir-lhes enquanto o barulho se aproximava cada vez mais deles.

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Queriam recomeçar a correr, mas a terra do outro lado também deu
azo a grandes tremores. Olharam para a silhueta das criaturas que se
aproximavam. Pelas antenas e as seis pernas, reconheceram-nas
rapidamente. Utu e Impi desataram a ridicularizar às gargalhadas. Iriam
ser desafiados por formigas?
– Rir para esta brincadeira é escusado – disse Arusha. – Se estamos a
ver as sombras de formigas assim tão grandes, quer dizer que há uma fonte
de luz aqui perto. E, se há uma fonte de luz, há uma saída.
– Sem hipóteses de saída – declarou Preta de Carvão, reaparecendo.
– Kisonde, Kasumuna, skwata!
– Tratem de parar de rir – mandou Arusha, enquanto Impi e Utu
gargalhavam da ordem de ataque que Makala dya Kixiketela dera aos
insectos.
– Vamos lutar então! – disse Utu em gracejo, empunhando a catana
que tinha apanhado. Impi seguiu-lhe o gesto.
Xícara de decisão precipitada – os próprios insectos eram gigantes –
sim, eram formigas dez vezes maiores que aquelas crianças, e
aproximavam-se velozmente enquanto ladravam. A primeira formiga
engoliu Utu e Impi na primeira emboscada. Arusha nem teve tempo de
gritar ou fugir porque pela outra formiga foi celeremente deglutida.
– Zero para este desafio – disse Neve Negra, batendo palmas com voz
chorosa. – Veremos como se sairão no outro.


A primeira imagem a ocupar o campo de visão de Ngola ao alcançar o
topo da montanha foi a de Sanzala a ser agarrada por um trio de criaturas
aberrantes que a arrastavam para uma abertura. Ao intentar apressar-se em
resgate, a marrada agressiva de uma palanka incomum impediu-o, no
mesmo instante em que Kazumbi voltava a face para ele em brio combativo.
– Eh! Essa é a minha filha – elucidou Ngola, em desequilíbrio
doloroso, intentando usar o seu poder exterminador. – Entreguem-ma!
– Irias sofrer muito se te atrevesses a me desafiar – intimidou uma
outra criatura atrás dele. Identificação: Kyala, o conhecedor das fraquezas
de qualquer entidade.
O idoso musculado suspirou, resignado. O desejo de salvar a sua filha
tinha de ser adiado, embora as suas mãos e o seu coração o obrigassem a
esmagar Kazumbi e Kyala como um par de insectos.

15
PEDRA
B
● Brotando novos seres ●

Beneficamente repletas, as duas formigas gigantescas ambularam


lentamente pelas escavações, com locomoção pesada. No estômago de uma,
estavam Utu e Impi, no da outra, Arusha.
Caminharam por longo tempo até chegarem ao que parecia ser um
ninho feito de brasas. Contorceram-se – parecia que entravam em
sofrimento; saía um som aterrador das suas bocarras que pareciam brados
de lamento e favas.
Desceram as suas cabeças até ao chão – enterraram-nas. O seu corpo
fumegava enquanto se lhes encandeavam o coração e as partes internas. O
volume do seu estômago entrou em fermentação intensa. Nos seus úteros,
um óvulo formava-se, e, a cada segundo, ganhava fecundação de genética
humana.
Fantasmagórico – uma vagem rectal abriu-se em cada uma das
formigas. A primeira expeliu dois ovos enormes e a outra, um. Sombrio –
cada ovo reluzia luminescência incomum.
Garras era o que aparentava rasgar o ovo de dentro para fora,
contudo eram apenas unhas humanas em dedos fortes. Eclodiram deles
dois homens e uma mulher que eram crianças num mui recente outrora,
mas que no momento pareciam exímios guerreiros de extraordinário porte.
– Há, agora, à vossa disposição, o segundo enigma – disse Nvula ao
aparecer de rompante, lançando a cada um deles peças de roupas dos
Tswana, pois estavam completamente nus, assim como ela se apresentava.
– O que levaria um pai a matar os próprios filhos se no seu coração há amor
em ebulição por eles?
– Jocosidade estúpida é o que acho disso tudo – respondeu Arusha
em displicência, ao mesmo tempo que se assustava com o seu próprio
corpo. – O que é que vocês estão a fazer connosco?!
– Linda rapariga, sou poderosa demais para te dirigires a mim neste
tom irreverencioso. Responde apenas ao que te perguntei ou te
demonstrarei o que é um ataque doloroso.

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– Monstros é o que vocês são – disse Arusha, antes de avançar com
ímpeto assassino na direcção de Orvalho Arco-Íris – então, como monstros
devem ser tratados.
Nua e incompreensivelmente bela, Arusha atacou sem piedade a irmã
de Makala dya Kixiketela. Nvula intentou defender-se e causar-lhe extrema
dor para impedir a continuidade insultuosa daquela querela mas –
impossível – viu o seu próprio braço a solidificar-se em gelo e a ser
arrancado por ela.
– Para, mana. Mana, para! – foi o que Utu gritou ao ver o punho de
Arusha a dirigir-se para a face de Nvula com extrema fúria.
Quebrado – rectificação: completamente quebrado em pedras
disformes de gelo – foi assim que ficou o rosto de Orvalho Arco-Íris após
receber o soco substancial de Arusha. Prostrado – nova informação:
deitado de costas para o chão e sem fôlego – foi desta forma que o corpo de
Nvula ficou por um tempo.
– Respeito é uma resposta que o nosso peito dá quando gosta do jeito
da pessoa sã nos tratar e ser tratada – disse Arusha em resfôlego para a sua
oponente, com o olhar marejado. – Se não sinto isso por ti, para mim não
és nada.
– Sabotaste a vida de uma pessoa, mana?! – demandou Utu,
enquanto cobria o corpo de Arusha com uma grande peça de roupa. –
Agora és o quê assim? O que é que vão nos fazer?
– Tenho tantas dúvidas quanto as que tens, mano – respondeu ela,
levantando-se. – Se calhar, tenho mais até...
– Vens me atacar com esse tipo de poder como?! – imperou Nvula,
agora distante dos três, enquanto o seu corpo se recompunha, crescendo-
lhe outro braço e outra cabeça. – Foi o teu pai que te deu isso? Xosa, não
estava combinado eles ganharem poderes sobre-humanos neste
compromisso! – Suspirou cólera antes de inspirar calma. – Contudo,
tornou-se mais interessante para o que neste momento te professo:
sobrinha, morrerás com o corpo no avesso. Derrotei tribos inteiras que
vieram respirando desdém, intentando me fazer refém, mas, com apenas
um assobio, matei-os, não um a um, mas cem vezes a cem vezes cem.
Então, esquece a pergunta que te fiz; não preciso mais do teu cérebro nem
da tua boca. Vou atacar-te agora mortalmente apenas com a terça parte de
um terço da minha força.
Xosa apareceu de repente entre a sua irmã e os seus três filhos,
impedindo assim um desfecho funesto. Orvalho Arco-Íris respirou cólera
antes de suspirar contento.

17
– Zero para vocês neste desafio – disse Nvula, retirando-se. – Verei
como se sairão com o vosso pai.


Apesar dos seus movimentos estrondosamente bruscos, a mulher de
nome Sanzala foi levada por Samanu e Wana na companhia de Kinguri.
Andaram por entre vários caminhos dentro da montanha até chegarem a
um local especial, onde estava uma desmedida mesa rudimentar de pedra
sobre o entroncamento da foz de um rio e a nascente de outro. Acima da
mesa, gravitavam nove pedras de diferentes cores – a maior era da cor do
fogo e a mais brilhante, verde e azul.
– É agora que me executas, Kinguri? – expos Sanzala em quesito. –
Estúpido! Extensivos são os prenúncios que dizem que, quando eu estiver
prestes a perder a vida, serei eu quem matará a Morte.
– Insurrecta! – indignou-se Wana, por ela se dirigir com
insubordinação para o seu líder. – Isto que tu e os teus familiares chamam
de Morte está a tentar salvar-vos! Imperioso é o motivo de estarmos aqui.
Ignoras ou conheces bem a lenda do Homem do Saco ter de ser substituído
a cada dez anos por uma criança?
– Oh, loucura! O que vês nas rugas que tenho? Observem com um
mínimo de atenção inteligente e entenderão que sou idosa demais para ser
uma criança sucessora. Ou estão a pensar em me enterrar viva para que
depois eu brote como um novo ser?
– Uma introdução – falou Kinguri com a sua voz de monstro – uma
introdução é o que o Wana quis fazer para entenderes que existem lendas
que, no fundo, contam a verdade. Única é a razão de estares aqui: descobrir
a lenda sobre a criação de Yamungi e Jokota.

18
PEDRA
C
● Conflito de interesses ●

– Como é que estão a fazer isso connosco, papá? – perguntou Impi,


abraçando Xosa.
– Disse-vos já, meu filho. Em resumo, é para o bem da vossa vida e
para o mal da vossa morte.
– Fazes isso connosco porque as tuas galinhas começaram a
desaparecer – deduziu Utu. – Não, Arusha! Desta vez não é brincadeira. O
papá começou a olhar para nós de forma estranha desde aquele dia...
– Ganhas o quê nos fazendo isso, pai? – questionou Arusha.
– Há, antes disso, um enigma que vocês devem responder, meus
filhos. E...
– Já chega disso de enigmas e desafios – vociferou Arusha em
interrupção afrontadora. – O que é que se passa? Quem são aquelas duas
mulheres? Para quê tudo isso?
– Levantas demasiadamente a voz para alguém tão inteligente, filha.
As respostas virão no tempo certo.
– Matar-nos para nos tornar mais fortes, papá? – perguntou Impi. –
Não vês que este teu pensamento logicamente tem uma grande falha?
– Nunca falho, meu filho. Mesmo quando erro, não falhei.
– Pedimos-te explicação; dá-no-la! Ou podes nos matar agora –
sentenciou Arusha.
– Queria muito que vocês fossem mais obedientes, meus filhos
preferidos. Contudo, nem tudo acontece como queremos – suspirou. – A
mulher preta chama-se Makala dya Kixiketela; tem o poder de aumentar o
negativo ou o positivo em nós e torná-los mais fortes. A mulher arco-íris é a
Nvula; tem o poder de enfraquecer-nos os sentidos todos. Eu sou Ditadi
Xamavu; controlo o sangue e o coração. Elas são realmente vossas tias,
como já vos disse. São minhas irmãs. Andavam desaparecidas.
Reencontrei-as, tudo porque precisamos de derrotar alguém extremamente
forte.
– Respondes sem explicar totalmente o problema – continuou
Arusha. – Como é que elas são nossas tias? De onde é que vocês vieram?

19
– Somos mais antigos que a existência das tribos. Não somos
humanos, mas desconhecemos a nossa espécie e origem...
– Tem um mais potente? – interrompeu Utu em pungente
curiosidade. – Quem entre vocês é o mais forte?
– Vais pedir que o pai responda a uma pergunta tão parva quando há
coisas mais importantes e urgentes por se saber? – demandou Arusha.
Xosa olhou para os seus filhos e foi acometido por uma emoção
inexplicável. Lembrou-se que ele e suas irmãs também eram três, assim
como aquelas crianças, mas nunca haviam tido uma conversa com o seu
pai. Nunca o tinha visto, muito menos entendia a sua personalidade. Por
isso, fez gesto para que os seus filhos se sentassem. Arusha sentou-se à sua
esquerda e pôs a cabeça no colo dele. Impi sentou-se à direita e pôs a
cabeça no seu peito. Utu sentou-se atrás dele e pousou a cabeça nas suas
costas. Ele pousou as mãos sobre a cabeça de Arusha e Impi e descansou a
nuca na cabeça do Utu.
– Zero para vocês neste enigma – desconsiderou Xosa, suspirando
com brio paternal. – Vou vos contar uma luta para saberem se entre mim e
as vossas tias quem é o mais forte, antes de continuarmos com a vossa
morte...


– A tua especialidade em conhecer a fraqueza de qualquer indivíduo
não faz de ti o vencedor de qualquer batalha, Kyala – argumentou Ngola,
afectado pelo pensamento das possíveis atrocidades que fariam à Sanzala.
– Estás mesmo a querer desafiar-me?
– Irias fazer o mesmo se estivesses no meu lugar. Intentam fazer mal
à minha filha. Irei impedi-los, nem que para isso tenha de te mostrar quem
eu sou realmente.
– O prazer que eu teria em te derrotar seria imenso, no entanto, não
estou aqui para lutar, mas ele, que vem agora atrás de ti, está.
Um estrondoso barulho entre o arvoredo e o capim foi o que se ouviu.
Uma chama começou a queimar as árvores e tudo ao seu redor ruiu.
Untando-se rapidamente, Kyala colocou-se de joelhos, prestando
homenagem à entidade que se aproximava. Urgentemente assustador –
Ngola olhou para si mesmo e viu que seu corpo ficava cada vez menor,
minguava. Um grupo de duas dezenas de palavras ele deixou Kyala ouvir,

20
antes de agir em conformidade com elas, visto que o seu corpo passou, num
ápice, de idoso para criança.
– Bem, com este conflito de interesses em salvar a minha vida para
salvar a da minha filha, agora posso apenas fugir…

21
PEDRA
D
● «…deus ateu…» ●

Dois era o número de mulheres que percorria o morro do Moku até ao


morro do Kabutikila à procura da sua irmã trigémea, contudo, foi um
homem de pele vermelha que encontraram à beira do fim do caminho.
– Fracas frestas, frívolas frotas, frutas – disse o homem, chacoteando
as mulheres.
– Ganhaste esta forma silábica sequencial progressiva por ouvir
alguém e imitá-lo ou te é intrínseca? – perguntou Neve Negra, gargalhando,
mas em posição de batalha. – A da minha irmã atrás de ti é silábica
sequencial regressiva.
Houve um ínfimo momento de espanto na mente do homem: como
era possível a outra mulher aparecer tão rapidamente atrás dele se há
breves instantes estava à sua frente com centenas de metros de distância?
– Juro jorrar jibóias jejunas. Já? – demandou Nvula para Makala dya
Kixiketela, recebendo sim como resposta para à pergunta sobre o início do
ataque.
– Louvem-me primeiro antes de entrarem numa batalha contra mim.
Ou, antes, me perguntem o que quero e submetam-se à minha vontade.
– Mentes poderosas entendem mentes poderosas – expôs Nvula – e
eu consigo perceber que os teus intentos são perversos, poderosamente
insanos, por isso é que conseguimos te encontrar facilmente.
– Nunca sou encontrado, mesmo quando me encontram, continuo
desaparecido.
Petrificante – o homem apontou o seu dedo vermelho para o peito de
Preta de Carvão e o coração dela explodiu. Conseguia ver-se isso pelo
sangue que saía dos poros sobre o tórax dela. O homem intentou voltar-se
para Nvula e fazer o mesmo com ela, contudo, Orvalho Arco-Íris já tinha
separado o corpo dele em três formas corpóreas: ossos, músculos e veias.
– Queres lutar comigo assim? – demandou o homem, mofando. – Se
com um de mim não tinhas hipótese, imagina agora que sou três! A vitória
é triplamente minha!

22
– Retalha-o, irmã, mas deixa uma parte para mim – imperou Neve
Negra, recompondo-se, contudo, o seu coração que voltara a crescer tornou
a explodir.
– Se és um deus que acredita em vitória numa luta contra mim –
verbalizou Nvula, enquanto fazia aparecer enormes jibóias famintas que
possuíam três chifres e inúmeros dentes – então és um deus ateu.
Tenebroso – terminadas as palavras de Nvula, a cabeça dela rolava
sobre o chão – o homem arrancou-a, batendo-lhe fortemente com o fémur
que retirara do seu próprio esqueleto. As três formas corpóreas do homem
juntaram-se, era novamente um, e as jibóias desvaneceram-se com o vento.
A sua pele áspera perdeu a cor vermelha e o seu rosto ganhou outra
aparência, fazendo com que Neve Negra o reconhecesse.
– Xosa?! És tu?! Como é que... – uma terceira explosão do coração
interrompeu-a, enquanto o homem voltava a arrancar ferozmente a nova
cabeça de Nvula.
Ziguezagueou correntes no corpo de ambas e começou a arrastá-las
com um sombrio brilho nos olhos – sim, Xosa era o imbatível vencedor.


– Assim queres que acredite em ti, Homem do Saco? – afrontou
Sanzala, atribuindo ateísmo ao deísmo que o outro tentava argamassar. – A
razão de me ajudares, qual é?
– Eu sou aquele que te está a dar grande parte da solução dos
problemas da tua tribo, e ainda assim me questionas?
– Ingénua não sou, nunca fui e nunca serei, e, interpondo inteligência
na continuidade desta minha indagação anterior, não te fiz nenhuma
questão que mereça uma pergunta como resposta.
– O tempo para te dar soluções acabou, filha de Ngola – organizou
em conclusão abruta, untando a si e aos seus lacaios, enquanto fortes
chamas se encaminhavam para a gruta. – Ordeno-te para o teu próprio
bem: foge!
– Única coisa que me pode tirar daqui são as respostas ao que vim
procurar.
– Basta de ser teimosa, Sanzala! Bem sabes que não se pode resistir
ao poder dele. Bastante improvável era, mas Kilembeketa, o criador de
Yamungi e Jokota, chegou até aqui!

23
Curiosidade encheu o coração dela. Correu-lhe na mente a ideia de
ficar, contudo, olhou para o seu corpo e viu que este ganhava aspecto
infantil. Computou o tempo e desejou ficar ainda assim para contemplar
aquela poderosíssima criatura e importuná-la com um extensivo
interrogatório, mesmo que isso significasse desaparecer para sempre.
Contra-resposta: para que não morresse, foi retirada à força por uma das
palanka que a abocanhou e saiu galopando.

Mahezu pedi

Nome: Orvalho Arco-Íris –


Nvula

Poderes conhecidos: Enfraquecer


o poder de outros até à morte destes.
Controlar e dividir qualquer parte do
corpo de outrem apenas com um estar
de dedos. Regeneração.

Ponto fraco: A cabeça.

Poderes desconhecidos: Cem.

24
PEDRA
F

● Franqueza ●

Fatídicas centenas de quilómetros distantes de onde Xosa contava


efusivamente a história em que venceu Neve Negra e Orvalho Arco-Íris aos
seus filhos Arusha, Impi e Utu, encontravam-se dois seres como o objectivo
de terem uma conversa de caris esperançoso que, no entanto, terminaria
com intemperança. Um tinha a forma de mulher, o outro, de criança.
– Gostaria de dizer que estou feliz por ver os nossos filhos finalmente
reunidos, mas a loucura levada a cabo pelo Ditadi Xamavu tem de ser
parada – disse o de aspecto infantil.
– Há ainda a possibilidade de ele estar a fazer isso por um motivo que
não conhecemos, um motivo bom.
– Já sabes sobejamente da energia negativa que emana do corpo dele
desde que se deu azo à sua existência...
– Levas tudo ao passado para falar do futuro como se fosse um facto?
Temos de reconhecer que ele sempre cuidou bem da família dele...
– Motivo bom... Ele deixou o Zulu ser o Ngola para quê? Para
encontrar as tuas filhas insanas com o objectivo de nos descobrir e nos
matar. Ele é calculista; planeia detalhadamente os seus passos para o mal...
– Nos matar?! Ele sabe, e tu também, que isso não é possível. Por
isso, digo-te que o motivo deve ser outro. Ele colocou a ideia relativa à
xenofilia na mente do Zulu, mas foi o próprio Zulu e as acções da tua filha
obscura que lhe levaram a se tornar o Ngola.
– Para de tentar defender o indefendível. Este teu filho é pérfido.
Maldade é o que ele inspira; crueldade é o que lhe sai pelas narinas.
– Quando meditares melhor no assunto, entenderás que nem sempre
o reflexo espelha perfeitamente a imagem original.
– Regar imbondeiros com as mãos cansa o camponês e é inútil para a
árvore. Sei exactamente como e quem tu és. Só estás a falar bem do teu
filho porque já tens um plano pior que o meu para o travar.
– Se o tivesse, já estaria em prática, não contra ele, mas contra ti –
afrontou em veemência.
Trovejou fulminantemente, mas não se ouviu nada. As nuvens
ficaram escuras e parecia que dariam azo à uma colossal descarga.

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– Vais persistir na insistência de que pode haver benefícios salutares
nos ideais do teu rapaz por mais que eu te mostre que não. Desisto.
– Xosa é um menino brilhante, Jokota.
– Zelo infundado é o que tens, Yamungi, contudo, vou apreciar os
acontecimentos à distância. Todavia, tenha em mente a certeza de que,
quando não me conseguires localizar, é porque matei o teu Ditadi.


A intensidade do calor atrás de Ngola era alucinante e a velocidade
que ele levava fugindo dela, evitando a inusitada querela com Kilembeketa,
era cambiante. Atónito, ouviu um barulho à frente de si; atribuiu-o
acertadamente a um animal colossal com um frenético e feroz frenesi.
Ele, embora estivesse, no momento, com corpo de menino, elevou-se
em formação de batalha ao ver alguém andando à frente da gigantesca
besta.
– Inclinas-te perante mim ou lutas? – inquiriu o alguém com o olhar
ferino e posição de incursão sinistra.
– O que pisa nestas terras deve reverenciar-me – ostentou-se ele com
franqueza homicida. – Ordenando-me submissão, chegas a insultar-me.
Um forte golpe contra o seu estômago foi o que Ngola sentiu naquele
instante. Urdiu sorrir ao ver que era uma rapariga o seu ponente, enquanto
a sua mão relampagueava e golpeava duas vezes a carótida dela sem
misericórdia aparente.
Brilhou o olhar da rapariga no exacto momento em que os seus
dentes e as suas unhas ganhavam a mesma veemência. Belígera
concorrência – foi então que ele viu que tinha de atacar em defensiva
violência.
Cataclismo – o corpo de Ngola entrou em confusão. Cada um dos seus
membros não sabia como agir. Concluiu em reconhecimento alegre: com
aquela forma de atacar, aquele poder, só podia ser uma pessoa – aquela
rapariga era Sanzala, sua filha.
Drástico – Kyala apareceu por trás dos dois de rompante, golpeou-
lhes o que era a fraqueza de qualquer ser vivo – a memória – e dirigiu-os de
volta à sua tribo, mas por caminhos diferentes.

26
PEDRA
G
● Gerenciando o ataque ●

– Gostei de saber que és o mais forte, papá – revelou Utu,


levantando-se. – E quem é o mais velho?
– Há perguntas cujas respostas não fazem nexo para a realidade
humana: Eu e elas nascemos ao mesmo tempo.
– Já estás a falar coisa sem sentido outra vez – disse Impi. – Ou tens
medo de nos contar que és o ndenge delas?
– Levando em consideração tudo o que já nos disseste até agora –
redireccionou Arusha – acho que não podes dizer que és o mais forte, pai.
Foi uma luta estranha. E se elas estivessem apenas a medir os teus poderes
ou algo do género? Tu és apenas vermelho. Uma delas é o negrume em
pessoa, a outra não é só vermelho, tem mais seis cores...
– Mas o que é que essa tua filha está então a falar? – cortou Utu. –
Arusha, não entendes que não importa quanto poder o adversário tenha,
aquele que vence sempre é o mais forte?
– Não concordo plenamente contigo, mano – recobrou Utu. – Quem
vence a luta não recebe o título de mais forte, mas de vencedor. Então,
neste assunto, tu podes estar certo, mas os argumentos da Arusha também
possuem veracidade.
– Parece que não sou a única em todo o continente que entende o que
eu digo – elogiou Arusha em pavoneio narcisista. – Muito obrigada por,
pela primeira vez, a tua esperteza entrar em parcial sintonia com a minha
sapiência, Utu.
– Quase que vocês conseguem me fazer desistir dos meus objectivos
para ficar aqui a vos ouvir o dia todo – cortou Xosa. – Falando em
continente, chegamos à razão de eu vos ter matado para ficarem mais
fortes. Há duas criaturas tão poderosas e tão inteligentes neste continente
que não podem nem ser encontradas, nem ser vencidas. Pelas
transformações que vocês passaram e pelo nível de inteligência que vocês
têm, há uma hipótese mínima, ínfima, de os poderem encontrar.
– Responde-me sem rodeios, pai – disse Arusha. – Por que é que você
ou estas duas mulheres estranhas não encontram esses dois seres? Porque
temos de ser nós?

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– Simplesmente, porque eles sentem a nossa presença a milhares de
quilómetros, o que torna impossível qualquer aproximação.
– Terá que objectivo encontrarmo-los? – perguntou Utu. – Vamos
achá-los para quê?
– Vão entender depois – adiou Xosa. – Eles representam um perigo
inimaginável. Mas vocês próprios devem descobrir como e qual. Contudo,
quando os descobrirem, deixem que eu e as vossas tias tomemos conta do
assunto.
Xosa levantou-se. Arusha e Utu fizeram o mesmo. Xosa endireitou as
roupas dos seus filhos e começou a encaminhá-los para uma saída. Ora,
Nvula e Makala dya Kixiketela ouviam atentamente a conversa deles
escondidas nos bastidores e, no fim, as palavras que Orvalho Arco-Íris disse
à Preta de Carvão deixaram-na aturdida:
– Zulu e Herero estavam aqui a espiar-nos por instantes. Não os
deixámos cegos com os outros?


– Aonde vai a insensatez que está a governar as tuas acções? –
adjectivou a obscuridade da criatura que auferia luminosidade à gruta com
chamas assombrosamente dissipadoras.
– Era para ser simples, Nga Kilembeketa – explanou Kinguri,
ajoelhado e untando, com o rosto inclinado para o chão. – Estes segredos
que gerenciam arriscadamente o ataque complicaram tudo. É a vida dos
dois Entes que está em jogo!
– Iluminas-te de insanidade dizendo isso. Incondicional é a salvação
de todas as tribos, e te preocupas com apenas dois Entes?
– O que sinto é que, sem os dois Entes, a existência das tribos deixa
de ser importante para mim…
– Um baralhado é que o és! Ultimamente não tens feito jus ao
privilegiado cargo que recebeste.
– Bem, perdoa-me, Nga Kilembeketa, mas, basta olhar com atenção
para mim para se perceber que, pelo que preso, sou uma criatura
susceptível a encaminhar-se para o egoísmo, assim como tu também o és.
– Com certeza sabes que os dois Entes planearam o bem para todos.
Controla-te, visto que foi uma escolha deles. Como essa escolha tem o meu
consentimento, conclua que o teu bem também está envolvido.

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– Desejo muito deliciar-me desta lógica fria que tentas me fazer ver,
mas o meu coração não pode ficar impávido ao risco de aqueles dois
desviverem.
– Falarás isso se eu for aí agora ter contigo face a face? – fabulizou em
comedida ameaça, fazendo Kinguri engolir pavor. – Faço esse diálogo
contigo neste momento através da minha sombra e nem consegues ficar de
pé. Far-me-ei presente pessoalmente se não desistires imediatamente.
Fenecerás então, e aí veremos como protegerás beltrano ou fulano.

29
PEDRA
H
● Hipopótamos e elefantes ●

Havia ar fresco e capim quando Arusha, Impi e Utu saíram do que


parecia ser uma gruta. Olharam para trás e notaram, surpreendidos, a
ausência de Xosa.
– Juro memo – disse um rapaz, desviando-lhes o pensamento,
enquanto passava a correr à frente deles, perseguindo um bando de
galinhas; Dyakizeu Kiswa era o seu nome – se eu vos agarrar, vou vos
depenar e vos pôr na panela de água quente!
– Lenha é o que não nos falta – asseverou outro rapaz que corria com
ele. Kalumbi era como se chamava. – Só memo o vapor já vai vos grelhar!
– Matam as galinhas por tudo e por nada aqui? – intrometeu-se Utu,
começando a correr também atrás das galinhas em ânimo esfaimado. –
Tipo estamos em casa!
– Não, xe – retrucou Dyakizeu. – Essas aqui são galinha da mama
Muhongo e da mama Musoki. Só estamo a lhes dar corrida pra lhes pôr no
galinhero. Mas uma pode desaparecer sem querer, se nos ajudares a
apanhar todas…
– Paka inteira não me chega e estás a me oferecer só uma galinha? –
perguntou Utu. – E os meus irmãos vão comer o quê?
– Quando apanharmos todas, vamo decidi – concluiu Kalumbi.
Recorreram a todo tipo de estratégias de caça e, após vários minutos,
conseguiram apanhar os galináceos. Antes de sorrirem em transpiração
satisfeita, amarram-lhes as asas e as patas. Ora, sem que eles notassem, um
conjunto de feras vigiava-os.
Torceram o pescoço de duas galinhas em brio salivante; sangraram-
nas e depenaram-nas. Juntaram gravetos; acenderam-nos. Kalumbi tinha
sal nos bolsos; indicativo de que premeditaram anteriormente degustar
uma daquelas aves. Colocaram-nas sobre as brasas sem demora e, quando o
repasto finalmente ficou pronto, saborearam-no com gana avassaladora.
Seriam aquelas galinhas grelhadas os dois inimigos poderosos que
Arusha, Impi e Utu tinham de encontrar? Se fossem, demonstravam um
poder delicioso ao entrarem para as suas bocas. E se fossem galinhas
envenenadas? Ou se fossem seres que se transformassem em entes
gigantescos após terem sido engolidos? Não, aquela desconfiança não tinha

30
qualquer sentido e, se tivesse, ao menos morreriam com os estômagos
cheios.
Terminado o banquete, Dyakizeu e Kalumbi despediram-se dos três
amigos de tamanho colossal, levando as galinhas restantes em cestos
artesanais.

– Vamos começar a procurar essas duas criaturas por onde? –


demandou Impi, após Dyakizeu e Kalumbi terem desaparecido
completamente do seu campo de visão e audição.
Xícara de interrupção – um estrondoso barulho começou a
aproximar-se deles – as feras que os vigiavam entraram em acção.
Ziguezaguearam em corrida célere abismados, estarrecidos – sim, o
apavoramento tomou conta de Arusha, Impi e Utu ao verem que eram
agora caçados por uma misturada manada de elefantes e hipopótamos.


A rapariga que lutara contra Ngola andava atordoada por entre as
árvores. Ainda assim, antes que tivesse algum descanso, uma criatura
feminina de pele nocturna, brilhante, apareceu à sua frente.
– Eloquente e rebelona criança – elogiou a criatura em saudação –
em cima do chão pouse, por favor, essas pedras que te puseram na mão.
– Impossível: isso nunca mostrarei a intrusos nem a estranhos!
– Olha bem para mim – objectivou com a face bem perto da outra. –
Observas estranheza em mim? Olvidaste que somos familiares?
Um abraço foi o que ela deu à criatura ao reconhecê-la totalmente.
– Braços à volta da tua cintura não resolvem o que queres resolver.
Bem sei disso – bafejou a rapariga em tristeza, largando a outra.
Colocou as nove pedras sobre o chão. Como esferas, oito pedras
giraram à volta da pedra maior e – cativante – conquistaram a aparência de
guerreiros, correram até à pedra maior e colheram dela o que parecia ouro,
contudo a pedra azul e verde ganhou a cor preta e vermelha.
– De que proveito me é ter essas rochas se não sei o significado disso?
Fria, antes de se retirar, a criatura deixou-a ouvir a seguinte frase:
– Gostarias que te facilitasse, Sanzala, mesmo sabendo que eu, Neve
Negra, deixo que hipopótamos e elefantes descubram o seu potencial
sozinhos?

31
PEDRA
J
● Jogada imprevisível ●

Já se via o pôr-do-sol quando Dyakizeu Kiswa e Kalumbi chegaram à


kubata. Visto que Muhongo, mãe deles, estava extremamente preocupada
com a sua demora, julgando que se haviam perdido ou sido devorados por
um animal selvagem, as primeiras palavras que os dois rapazes ouviram
como saudação foram ofensas intempestivas.
Levaram fortes puxões de orelha o dueto de meninos, mas a barriga
cheia não lhes permitia chorar. Aquela vez não era a primeira que lhes era
outorgada uma tareia por chegarem tão tarde à casa.
– Mama Muhongo memo é assim: tá nos bater, mas, depois, inda vai
nos dar jantar – disse Dyakizeu para Kalumbi, apenas com o olhar.
– Nenés da minha kubata são assim pra quê? – reclamou ela,
enquanto lhes batia a cabeça com os punhos. – Todos monadyala da mama
Musoki e da mama Madó já tomaram banho e já tão comer. Vosso tata já
lhes viu. Assim, se vocês morressem, eu ia lhes avisar como? "Marido, fiz do
bom jantar pra ti, mas não come, porque temos dois óbito"? Deixem as
galinha aí e vão só já. Vão! Atrás da bananeira tem uma banheira com água
e sabão.
Principiaram os dois rapazes a marcha em aproximação da grande
bacia, mas fizeram-no com a cara trancada, pois sabiam que a água estava
fria.
– Quero inda ver se hoje mô marido vai dormir com quem. Eu que lhe
fiz da boa carne de paka, funji e maxanana e tô tratar bem monami dele?
Ah! Deixa já pôr as minha cinco galinha na capoeira. Eh! Como é que aqui
só tem oito? Kalumbi, vocês tinham que trazer dez galinha, não?
– Revistamo todo mato; só encontramo essas.
– Tás querer que me dão senga no teu pai ou que as tuas duas
madrasta me dão kapote?! Kokolo we! Deixa inda ver se minha galinha
vieram certa. Moxi, yadi... tatu... wana... Eh! Kwakambe umoxi! Vou tirar
memo a minha que falta aqui nas da mama Musoki. Ela depois manda
filhos dela procurar...
Vigoroso foi o tremor de terra que Muhongo sentiu ao se abaixar para
segurar os galináceos. A bacia de água fria ao longe tombou para alegria das
crianças e encharcou o espaço. Todavia, o que aconteceu a seguir foi

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aterrador em demasia – uma silhueta colossal e monstruosa, em insondável
melancolia, derrubou Dyakizeu e Kalumbi, fazendo-os cair inertes em
sensaboria – sim, a queda apagou-lhes os sentidos com taquicardia.
Xinguilamento – foi isso o que atacou o corpo de Muhongo ao ver os
seus filhos tombados. A besta avizinhou-se dela e abriu a sua boca
monstruosa que tinha todos os dentes cerrados.
Zénite do desespero – a criatura colocou Muhongo na boca e saiu
galopando entre as densas moitas, apesar das pedras e das estacas que
homens, mulheres e crianças lhes lançavam ao saírem das kubatas.


– Assim almejas altercar comigo? – arrazoou Ngola com a entidade
atrás de si. – Após ela te ter expulsado do óvulo há milhares de anos, fui eu
quem te apresentou a tua irmã; o ensejo de te vingares, fui eu quem te deu.
– Ela está a demonstrar ser agradável, em benigna medida, então não
a elimino.
– Isso quer dizer que a perdoaste? Inclinaste-te para o lado dela nesse
plano louco? Invade-me de respostas à vontade. Individualidade nenhuma
nos consegue ouvir aqui, inclusivamente o Kyala que acha,
ininteligentemente, que fez algo contra as minhas lembranças.
– Uma pergunta antes de te responder: Urdiste o teu plano tendo o
Zulu como base; porquê?
– Bem, isso é algo que apenas o tempo demonstrará...
– Como bem sabes, o teu plano é melhor do que o meu plano e muito
melhor do que o plano da dya Kixiketela. Com certeza, tenho que estar
contigo, contudo mereço maiores esclarecimentos.
– Desta vez não, menina favorita...
– Fabrica-me um favor então – falou, fagulhando insatisfação – faz-te
rapidamente presente na tua aldeia; fartas já são as peças para que o teu
povo entenda bem o que se passa.
Gargalhou o Ngola grotescamente, ganhando sinistralidade à jogada
imprevisível que solicitaria a seguir.
– Há uma coisa que te quero pedir também: Hílare Nvula, no fim,
deixa o teu irmão para mim.

33
Mahezu tharo

Nome: Neve Negra –


Makala dya Kixiketela – Preta
de Carvão
Poderes conhecidos: Diminuir e
aumentar os sentimentos de outros num
nível sobre-humano por meio de flocos
negros. Usar animais fabulosos para
fortalecer ou enfraquecer as suas
vítimas. Iludir a realidade. Regeneração.

Ponto fraco: O coração.

Poderes desconhecidos: Incógnito.

34
PEDRA
L
● Luto ●

Levantaram-se marfins afiados, bocarras desconformes e patas


grossas contra Arusha, Impi e Utu. Foram atacados? Esmagados? Não e
não. Agilmente esquivaram-se das presas dos elefantes e dos hipopótamos e
alcançaram o torso dos últimos como exímios praticantes de equitação.
Movidos por frenesi imparável, as bestas de tromba e os hipopótamos
locomoviam-se com furor, derrubando árvores e aproximando-se de
kubatas. Vidas estavam em jogo. Eram vidas desconhecidas por aqueles três
filhos de Xosa, contudo, eram vidas. O que fariam em salvamento para as
manter intactas?
Notoriedade no raciocínio e nos movimentos – Arusha identificou o
líder entre os elefantes e arriscou-se a pular de besta em besta até alcançá-
lo. Direccionou-o – redireccionou-o – para longe das kubatas. As pessoas
que já corriam em fuga desnorteada com os seus filhos pararam e olharam
para eles, pasmadas. Alguns gesticularam-lhes as mãos. Os três sentiram
que lhes aplaudiram em agradecimento. Contudo, o que pareciam ser
aplausos, eram, na verdade, avisos de aproximação de um desfiladeiro.
Precipitaram-se morro abaixo – visto que já estava escuro, Arusha
não viu que encaminhara tanto ela quanto seus irmãos e os animais para a
morte. Requisitaram socorro mas – drástico – os enormes pedregulhos por
cima deles cederam, outorgando-lhes inúmeros e dolorosos cortes à fatídica
sorte.
Quebraram-se-lhes os ossos? Os elefantes e os hipopótamos caíram
sobre Arusha, Impi e Utu esmagando-lhes os pescoços? Os três filhos de
Xosa conseguiram sair ilesos sem esforço? Ou os animais, em puro instinto
preservador, extinguiram o alvoroço? Não, não, sim e não. O corpo dos
elefantes desviou o curso das pedras e eles caíram num rio com correnteza e
caudal extensos. Contudo, os elefantes e os hipopótamos apertaram-se uns
contra os outros e Arusha e os seus irmãos estavam entre eles, tornando o
clima de desgraça mais intenso.
Respiraram água e desespero por algum tempo – Arusha e os seus
irmãos tinham os pulmões em apuros, embora os elefantes e os
hipopótamos tivessem começado a caminhar contra a correnteza,
aproximando-se da margem.

35
Sem ter como se livrar do iminente afogamento, as três crianças
deixaram-se guiar pelos gigantes de tromba. Não demorou muito tempo e
eles e os animais já estavam fora do rio, respirando alívio extenso.
Trombas jorraram água para os céus em refolgada celebração. Ainda
fracos, os filhos predilectos de Xosa voltaram a montar os elefantes como se
fossem seus animais de estimação.
Volvidos minutos, o trio viu correr na sua direcção uma besta pesada
que parecia galopar com intentos assassinos. Os elefantes e os hipopótamos
levantaram as patas e as presas – em aniquilamento? Não – em respeito;
prestaram homenagem à besta como se fosse o seu soberano e eles, o seu
exército.
Xícara de chá efervescente – havia um ser humano desmaiado dentro
da boca da besta. Ela pousou-o sobre o chão calmamente. Impi desceu do
elefante e viu que o ser humano era uma mulher desmaiada, inconsciente.
– Zambi, vem em nosso auxílio – disse ele com os dedos entrelaçados
e os olhos fechados. – Não sabemos o que é isso tudo, mas sabemos que
estamos de luto.


A mente atroz de Makala dya Kixiketela estava abatida, arrasada.
Agonizada, lembrava-se do seu plano. Atribuía insignificância à conjectura
de se seria entendida ou não. As pessoas conheciam-na como má, outros
chamavam-na de Morte. A verdade era-lhe irrelevante.
– Eu acho que o ser com o qual te deves abrir sou eu – elegeu-se
Nvula, chegando de rompante.
– Intrinsecamente sou o problema, irremediavelmente sou a solução.
Isto dito, não preciso de mais ninguém, irmã da importunância.
Obstrução – a presença rubra de Ditadi Xamavu interrompeu-as. O
seu olhar parecia ter um brilho ostentosamente obnóxio.
– Uma verdadeira família é o que somos – unificou ele, abraçando-as,
causando-lhes admiração uníssona. – Ultrajante seria se eu agora não vos
agradecesse amplamente por seguirem à risca o que vos orientei.
– Bem sabes que os nossos Yamungi e Jokota são muito mais
inteligentes – baseou Nvula, abraçando-o em resposta. – Biltre contra ti
mesmo é o que estás a ser.

36
– Com o tempo saberás que soluciono qualquer coisa. Coloque como
imutáveis estas minhas palavras na tua substituível cabeça: conquanto
pareça que estou a perder, estou na verdade a ganhar, sempre.
– Dentre os filhos dos nossos pais és de longe o único que não se lhe
pode atribuir a palavra despretensioso – desdenhou Makala, soltando-se
dos braços gélidos dele.
– Faço, no fundo, o que é para o bem de todos nós, mesmo que seja o
mal – falou ele com brio visceral.
– Gosto desta tua confiança – galanteou Nvula, gastando dois beijos
na face dele. – Gostaria que te preparasses mais para suportar um encontro
com Yamungi e Jokota, se é que isso algum dia acontecerá. Grandes são os
contos que apregoam que Yamungi não abre a boca, mas a sua voz pode ser
ouvida há milhares de quilómetros apenas por quem tem poder suficiente
para o ouvir e que ele pode converter o som em energia capaz de destruir
todas as tribos apenas com um suspiro. Garbosas são as histórias que
contam que Jokota pode fazer um dilúvio de água escaldante cair dos céus,
mas ela mesma nunca ficar molhada. Gaiatos falam até que ela já fez cair
uma tempestade tão quente quanto o sol.
– Haverá então nestes teus beijos uma tentativa de te preparares para
o luto deste teu irmão, ndenge yame kabasa?
– Já chega de conversa negativa, Neve Negra – jogou Ditadi em
conclusão. – Jarretem as vossas tentativas de me demoverem dos meus
intentos e venham, venham observar o desenrolar apocalíptico do meu
plano agora….

37
PEDRA
M
● Manobra de inversão ●

Minutos arrastaram as horas e as horas, os dias. Muhongo foi cuidada


por um trio de rapazes de corpo gigantesco e o seu estado de saúde revelou
melhorias.
– Ngeve e jamba, jamba e ngeve – disse ela, após ver que estava
ladeada por hipopótamos e uma manada de elefantes. – Assim é o quê?
Aqui é aonde? Me deixam! Tenho que ir ver meu marido e môs filho.
– Perguntas exactamente o que estamos a nos perguntar há quase
uma semana – respondeu-lhe Arusha. – Esse hipopótamo te trouxe aqui
quase morta. Esses elefantes nos trouxeram aqui. Não sabemos para que
fim, apenas esperamos...
– Querem o almoço grelhado ou cozido hoje? – perguntou Utu,
aproximando-se deles com uma gaiola cheia de pássaros e um cesto cheio
de caracóis. – Esperar com a barriga vazia é muito chato.
– Rouba couve na mama Madó e cebola e tomate na mama Musoki e
eu, a grande mama Muhongo, vou vos fazer do bom makolokoso e ainda vos
temperar e fritar essa carne de kanjila – respondeu Muhongo
apressadamente. – Kanjila frito também é bom. Eles são pequenos, mas são
bwe. Estão em todo sítio.
Sensação de desvendamento – Arusha, Impi e Utu sentiram que
começavam a entender parcialmente o enigma que lhes fora colocado por
seu pai há algum tempo. Galinhas roubadas, passarinhos – teria tudo a ver
com o seu desvirtuado comportamento? Seria aquilo um teste de Xosa
demandando-lhes aprimoramento? Resumiram os acontecimentos que os
levaram até aí: A conversa imperceptível deles três antes de serem
interrompidos por Xosa e as irmãs dele, os dizeres do seu pai sobre amá-los
mas ter de os matar para os tornar mais fortes, serem lançados para um
buraco com catanas, serem engolidos e expelidos com corpo adulto por
formigas gigantes; elefantes, hipopótamos, crianças – a compreensão do
enigma ainda era desordenada, mas começavam a obtê-la.
– Tem que ter kaombo pra kuyar mais, mama Muhongo – disse Impi,
reencaminhando o assunto.

38
– Vão então só já buscar as coisas que vos pedi. Também trazem o
garrafão de kimbombu que escondi na cozinha. Pra vocês beberem,
arrancam folha de kapungupungu e jindungu. Os dois litro são meu.
Xosa, Neve Negra e Orvalho Arco-Íris estavam a espiá-los. Leram o
coração de Muhongo, sorriram.
– Zero já não é uma nota que lhes podemos dar – disse Xosa em
alegria vibrante. – Agora começaram a subir.


– As pessoas que queres impedir estão a tentar proteger algo maior –
adensou Wana, após Kilembeta dar azo à sua própria ausência naquela
gruta. – Almejas mesmo fazer isso?
– Eu é que mando, não os dois Entes.
– Irmão, somos todos uma família – incitou Samanu. –
Impressionante é lembrar que também concordaste com o plano deles.
Incompreensível é ver que agora mudaste radicalmente de ideia.
– O resultado final do plano é doloroso demais…
– Um dia de cada vez, irmão. Ultrapassado é o pensamento de se
viver todos os futuros possíveis num presente mutável.
– Brilhantes palavras, mas põe-te na minha situação. Baterias palmas
a isso, Samanu? Brindarias com euforia, Wana?
– Comparar situações, às vezes, é um absurdo – contrapôs Wana. –
Computando a alegria ou a tristeza do dia, eu poderia agir de modo igual ou
pior que tu nesta situação, contudo o que está em jogo não é a nossa
reacção individual, mas a preservação de todas as tribos.
– Deves pensar nas crianças que desaparecerão se impedires isso –
dardejou Samanu. – Dirige os teus pensamentos para o colectivo…
– Fraco demais estou para pensar com nobreza – falou Kinguri em
franqueza. – Fraco e carnal, e os carnais defendem apenas o que é seu.
– Grande Kinguri, terás de conviver com a tua própria consciência
depois disso – golpeou sentimentalmente Wana.
– Haverá amargura ou felicidade em ti depois, se impedires? –
hipotecou Samanu.
Jorraram suspiros e raiva antes de Kinguri voltar tornar audível a sua
voz de monstro com uma manobra de inversão.
– Libertem os vossos poderes e ataquem Ngola e Sanzala para que
não entendam o plano.

39
PEDRA
N
● Nobre filho ●

Nevoeiro denso. Arusha e os seus irmãos, com dificuldades, andavam


montados nos elefantes em direcção à uma aldeia. Contudo, a cada passo, o
nevoeiro perdia compacidade, e eles desceram dos animais para se
revitalizarem num rio.
– Parecem aqueles três que nos xularam duas galinha, né, mano? –
perguntou Kalumbi, espreitando atrás de uma árvore com Dyakizeu.
– Queres mesmo saber? Vamos lá!
Rapidamente, os dois rapazes aproximaram-se deles. Reconheceram
e foram reconhecidos com alacridade, soltando risos em desvario.
– São vocês que merecem ouvir essa boa notícia – disse-lhes Utu. – A
vossa mãe está viva!
– Tá onde ela? – demandou Kalumbi. – Nos levam lá. Estamos a lhe
procurar há muito tempo. Até o tata já quer lhe fazer komba sem enterro
porque dizem que lhe levaram num bicho grande. Ele está a falar que é
culpa dela porque ela se comporta mal com as comadres. Só porque ela é a
primeira que lhe fizeram lobolu, diz que até o que é das outras mulheres do
tata é dela.
– Vamos lhe ver primeiro, Kalumbi – interrompeu Dyakizeu. – Para
ainda de falar. Tua mãe apareceu e você fica a estender vida dela assim?
Nos levam só lá onde ela está, faz favor.
Xerez de folia – os dois rapazes estavam tão contentes que ideias
festivas lhes fluíam em demasia. Na mente de Kalumbi, a justiça lutava
contra a alegria. Não era adequado receber a sua mãe de mãos a abanar
após ela estar desaparecida por tanto tempo. Ela cuidava tão bem deles,
mesmo quando eles faziam o errado, havia sempre comida, banho e um
luandu aconchegante onde dormir. Então, a sua mãe tinha o direito de
voltar a um lar com tudo a postos para si.
– Zangado vais ficar se eu te pedir para não irmos buscar ela ainda,
mano? – perguntou Kalumbi a Dyakizeu. – Vamos primeiro caçar paka.
Assim vamos ter muita carne e kimbombu para mama logo que ela estiver
na kubata. Até o tata vai gostar!

40

– Agora sim podemos falar punho contra punho, se não me
devolveres estas pedras – afrontou Samanu, em sua forma crocodílida, ao
encontrar-se com Sanzala num precipício.
– Eh, foi o teu próprio líder que mas deu e, se tens a certeza que
queres lutar contra mim, basta me atacares!
Impressionante – nem as palavras tinham terminado de sair da boca
dela e ele já subia e caía por entre as árvores, sangrando.
– O envaidecimento leva sempre ao trambolhão – orquestrou ele em
velocidade estonteante, agarrando o pescoço dela com a sua forte cauda.
Uma dor sufocante foi o que Samanu sentiu – ultrajante: ele apertava
o pescoço da sua oponente, mas era ele quem sufocava, por isso, largou-a.
Bafejou com ira – Samanu abriu a sua enorme bocarra e agrediu o
braço de Sanzala com uma esmagadora mordida, mas sentiu que trincava
pungentemente o seu próprio braço.
– Com estes ataques animalescos só farás mal a ti próprio – contou
ela, após ele a ter soltado. – Combate contra mim na tua forma de homem.
– Darás um bom cadáver – disse ele, ganhado a forma colossal de
guerreiro humano.
Formidável – Samanu fechou os olhos e, sem se mover, Sanzala foi
rasteirada, socada e projectada incontáveis vezes para o chão.
– Golpes apenas de ensaio, nobre filha de Ngola – gozou ele em
posição ofensiva. – Gostarás de sentir os golpes finais?
– Há algum medo prazeroso sendo demonstrado por mim?
– Já se nota o vencedor, não achas?
– Levarás apenas derrota daqui – limitou ela, deixando ribombar o
trovejar dos seus dentes e o relampaguear das suas unhas.
Mirabolante – Sanzala viu uma enorme enxurrada de um rio a
aproximar-se de si pelos flancos e, quando a tentou esquivar, um
embondeiro abalroou-a por cima, fazendo-lhe cair do precipício.

41
PEDRA
P
● Perda ●

Pakas corriam de um lugar para o outro em fuga célere. Atrás delas


estavam um quinteto de humanos com intento devorador. Contudo, já
havia armadilhas montadas mais à frente. Então, os roedres não tinham a
velocidade a seu favor. Caça bem-sucedida: Algumas das presas foram
apanhadas, amarradas e colocadas à volta do pescoço dos cinco caçadores.
Quando começaram a empreender passos vitoriosos de retirada, o
quíntuplo de predadores viu, ao longe, uma paka gorda, deliciosamente
recheada. Largaram as pakas amarradas ao lado dos elefantes. Uns
correram entre as moitas, mas Kalumbi resolveu trepar os ramos das
árvores mais baixos. O antílope roliço esquivou as mãos de Arusha, os pés
de Impi, as flechas de Dyakizeu e as pedras de Utu, mas quando se
preparava para entrar para um buraco, Kalumbi lançou-se contra ela e
agarrou-a num abraço intragável.
Respiraram satisfação e admiração os outros quatro predadores.
Como era possível aquele rapaz magro ser tão inteligente e hábil e nunca
dar azo à hesitação?
– Soba... Sou filho de soba, então tenho de ter atitudes soberanas –
pavoneou-se o rapaz para a paka com gracejo, enquanto os outros quatro
corriam na sua direcção.
– Tens que segurar bem as perna dela – gritou-lhe Dyakizeu, ainda
distante.
– Vem só! Achas que vou lhe largar? A maior parte da carne dessa
paka é minha, e vou dar tudo à mama.
Xícara de desastre – por ter as mãos e os olhos ocupados, Kalumbi
não notou que uma serpente se aproximava dele com rapidez. A serpente
não deu tempo às flechas de Dyakizeu ou às pedras de Utu, mordeu a perna
de Kalumbi soltando a sua venenosa fluidez.
Zurrapa da sinistralidade – Kalumbi gritou e largou o roedor. O
animal começou a fugir e, acto contínuo, a flecha de Dyakizeu acertou-a no
pescoço, derrubando-a. No entanto, Kalumbi estava estatelado sobre o
chão, não se movia.

42

Atribuladamente auspicioso, Ngola estava sentado na sua omangu.
Afluíam reflexões à sua mente sobre como reencontraria a sua filha e
transmitiria à sua tribo o que parecera ter descoberto.
– Estou a sentir que alguém inimigo está a aproximar-se daqui, caro
Ngola – embargou-lhe o Mwata.
– Irracional! Introdução sobre a minha presença é inútil – instou
Wana, instaurando-se repentinamente no meio deles em forma de
Kazumbi. – Intocável e invencível é o que sou.
– O que queres é paz ou guerra, oscilante criatura? – obsequiou em
afronta um dos Kilama.
– Uma pergunta ousada, mas não é contigo que quero… a guerra.
Breve foi o instante que levou para Wana estar cercado por uma
multidão de Kota e um exército de Kilama. Bravura em mente insana – os
súbditos de Ngola entesaram os seus xuxu, azagaias e outras artesanais
armas.
– Centenas contra um? – contabilizou Wana em escárnio. – Contenda
injusta, não? Colocaria equilíbrio se fossem centenas contra apenas meia
metade da minha mão…
– Deixem-no – demandou o Ngola, doando verticalidade ao seu
corpo. – Dêem o privilégio de ser esquartejado por mim a este ser vivo que
já parece morto.
– Folgo em saber que te sentes forte, mas tens agora o corpo de
criança. Farás o quê numa luta contra alguém milhares de anos mais adulto
que tu em intemperança?
– Gostarei de ver a tua face quando descobrires que, num passado
mui distante, eu é que fui o teu treinador.
Houve nuvens negras em forma de onças rondando a arena no
mesmo instante – as nuvens eram dez vezes maiores que Wana e tinham
olhos de fogo, dentes lunares e garras de diamante. Ngola sorria. Os seus
dentes trovejavam. A multidão de Kota e o exército de Kilama correu em
fuga para se protegerem daquele poder fulminante. Wana nada fazia.
Apenas fagulhas de seus olhos esvoaçavam.
– Já sei que vieste aqui com a ideia que eu não demonstraria o meu
verdadeiro poder, Kazumbi. Jorraste engano para ti ao pensares assim.
Levou algum tempo para que Wana notasse que estavam dentro de
uma cárcere esferal criada por Ngola e que ninguém notaria aquela

43
estrondosa emanação de poder. Lentamente, Ngola sentou-se na sua
omangu e deixou que as nuvens negras em forma de onça atacassem o seu
oponente a bel-prazer.
Multiplicou as suas forças o Kazumbi; mistificou a gravidade e tudo,
para cima, começou a subir. Magnificentes e monstruosas eram as najas
ígneas que ele fez aparecer com máscaras de mukixi. Mortal – as najas
intentaram atacar Ngola, mas as onças foram notavelmente mais rápidas
em abocanhar Wana em malefício. Manobrando em retaguarda, as najas
serpentearam para tentar ajudar o seu dono, visto que, a cada mordida, ele
perdia grandes pedaços do seu corpo que parecia intangível. Momentos
antes do derrotado ser completamente dilacerado, o seu oponente, mesmo
sem mexer a boca, manifestou-se em timbre audível.
– Ngola é o vencedor.

Mahezu nne

Nome: Jokota – Trovão


Mudo
Poderes conhecidos: Criar
energia destrutiva com o som.
Materializar nuvens em bestas
gigantescas. A sua própria presença
destrói humanos, o simples som da sua
boca destrói civilizações.

Ponto fraco: Incógnito.

Poderes desconhecidos: Tendência


ao infinito.

44
PEDRA
Q
● Querela ●

– Querido lar! – exclamou Ngola a escassos metros da sua aldeia. –


Ah! Finalmente estou de volta!
– Reitero que preciso de saber o que já descobriste, meu filho
achegado – disse Ditadi, pousando-lhe a mão gelada e vermelha sobre o
ombro. – Houve um momento em que não consegui sentir a tua presença.
Pensei que te tinha perdido. E agora apareces assim com corpo de rapaz?!
O que aconteceu?
– Saudoso pai – disse, voltando-se para o abraçar em nostalgia
infantil, premeditando mentir-lhe com meias verdades – fui duas vezes
atacado por criaturas estranhas, pareciam uma rapariga e um fantasma,
não sei o que fizeram comigo.
– Totalmente interessante! Então um dos lacaios do Homem do Saco
também está metido nisso? Como era a rapariga? Sentiste dificuldades ao
respirar perto dela? Choveu sol sobre ti? Talvez ela seja a Yamungi,
disfarçada…
– Vou precisar de uma coisa por enquanto, por obséquio: ir ter com
os meus irmãos porque estou a ouvir grandes choros vindo das kubata
neste momento. Preciso de ir.
– Xuxu para os insubordinados! – exaltou-se. – Toda a tua família
existe por minha causa. Se alguém morreu aí também é meu familiar.
Conta-me o que preciso saber agora!
– Zangado podes ficar, pai – disse-lhe, virando-lhe as costas e a
começar a andar em afastamento dele – mas contar-te-ei mais tarde.
Consegui ver apenas que todos os seres poderosos estão envolvidos nesta
querela. Acho que a luta não é apenas tua…


– Ah! Assim, desta forma asinina, fazes o que te pedi? – abalroou
Kilembeketa a Kinguri, aparecendo novamente na gruta.

45
– Eu enviei o Samanu e o Wana para os amedrontar – esclareceu,
escorrendo unção ao seu corpo e prostrando-se.
– Irresponsável! Intrínseco é-te o conhecimento de que uma querela
directa contra aqueles dois serviria para despertar o poder que eles não
podem saber que têm…
– Ó Nga Kilembeketa, olvidaste que eles sabem, omitindo para todos
o…?
– Uma verdade acabaste de expor agora – ultrapassou-o em
interrupção hegemónica. – Unilateralmente queres que eles ajam segundo
o plano dos dois Seres, não dos dois Entes. Ultrajas o teu cargo desejando
que eles sacrifiquem o que é deles para preservares o teu?
– Bem, tenho de tentar de tudo pelos que são por mim benquistos…
– Castigo é o que mereces: Colocarei fora de ti todos os poderes que te
conferi!
– Drástico seria para nós e para ti – dardejou em ripostar contido,
depois de Wana e Samanu chegarem e se untarem. – Destruirias tudo se
tomasses essa acção, porque precisas do poder de todos para que
sobrevivamos.
– Falas como se não fosses o Homem do Saco. Francamente,
consegues ser muito mais sapientemente que isso. Farei a entrega dos teus
poderes a outro que desempenhará melhor o teu papel.
– Grande Kilembeketa, gastarias tempo em vão para que este outro
tenha a experiência que só eu tenho neste nível.
– Há muita coisa que sou capaz de fazer que ainda desconheces.
– Já sabes que não pretendo perder ninguém!
– Loucura! Lembra-te: longa foi a assembleia onde tudo foi discutido
e ficou decidido que o plano dos dois Entes é o melhor!
– Minha memória me diz que não, grande Kilembeketa!
– Não há nada em contra-argumento – notificou, intensificando o
calor magmático das suas chamas. – Nulos tornarei todos os poderes que te
dei a partir de agora!
– Perdoa-me – precipitou-se em lágrimas. – Partimos agora,
Samanu, Wana. Pela vida dos dois Entes, juro não voltar a me intrometer
neste assunto, Grande Kilembeketa.

46
PEDRA
R
● Risos chorosos ●

Risos não existiam, apenas choros, rogos. Dyakizeu não acreditava


que o seu irmão menor estava morto. Culpava-se por o ter incentivado a
agarrar o animal; talvez se ele não tivesse feito isso, Kalumbi tivesse visto a
cobra e se esquivado daquela picadela fatal. Com quem brincaria? Com
quem correria? Parecia uma pergunta de moral errada, mas: com quem
roubaria? A vida pareceu-lhe infeliz, ingrata. Como era possível ela ter a
coragem de sair do corpo de um rapaz cujas actividades infantis a louvavam
de forma tão carismática?
Só restava o corpo inerte; ideias e acções já não havia. Maldita
fatalidade – porque era tão insensível em distribuir sensaboria?
Tanto Dyakizeu quanto Arusha, Impi e Utu seguraram o corpo dele e
o colocaram na boca do hipopótamo. O animal carregou-o assim em
procissão de luto por quilómetros. Passaram por rios sob orvalhos e
nevoeiros. A garganta de Dyakizeu fechava quando pensava na mulher que
ouviria aquela notícia funesta primeiro. Chegaram ao local e, entre
lágrimas, revistaram-no de lateral a lateral.
Viram que Muhongo já não estava ali. Afinal, ela usara o truque dos
condimentos e da bebida para aproveitar fugir. Os pensamentos de
Dyakizeu o agonizavam em imperturbável desconforto. Porque fugir de um
aparente rapto para depois ser confrontada com a notícia de um filho
morto? Como um louco depressivo, Dyakizeu começou a roer os dentes até
o seu maxilar inferior parecer torto.
Xícara de qualquer líquido morno sem açúcar – a vida era um eterno
dissabor. Dyakizeu pediu que Arusha, Impi e Utu levassem a si e ao cadáver
do seu irmão à sua aldeia para informar o funesto acontecimento a todos a
fim de partilhar a excruciante dor.
Zurrapa de intemperança – tanto a paka gorda quanto a cobra
assassina foram alvos de brutal matança – os quatro predadores invictos
levaram a carne dos dois animais para ser comida com teor de vingança.

47

– A forma como falas com o Kinguri – analisou Nvula em riso,
untada, aproximando-se de Kilembeketa na gruta – até parece que não
foste tu que lhe ensinaste a pôr em primeiro lugar a família.
– Ele tem de ser controlado. Estragará tudo se não for…
– Impossível! Intentas me fazer crer que tanto tu quanto eu não
sabemos que o que ele está a fazer também está no teu plano oculto?
– Oh! Ornamentas uma questão assim, ocultando que dentro do meu
plano oculto há um plano oculto teu?
– Uma vez te procurei para me ajudares a unir a minha família,
ultrapassou-me a ideia de que encontraria todos esses outros problemas.
Um suspiro de Yamungi pode-me deixar morta – urdiu em explicação
melancólica.
– Bem sabes que não há uma família que só tenha soluções. Basta-te a
minha protecção para não temeres o que Yamungi pode fazer contra ti.
– Como estão os dois Entes? – coligou, com riso choroso de angústia.
– Darei tudo para te responder, depois de tudo estar solucionado
apenas…
– Falarei então sobre outra coisa. Farta estou de ouvir o silêncio da
dya Kixiketela. Fantasmagórico é o sentimento que tenho de que ela está a
levar um enorme fardo. Fazes-me o favor de me dizer em que é que a posso
ajudar?
– Gostaria que fosse mesmo ela a te responder, garota querida –
galanteou com sorriso triste.
– Há a possibilidade de salvares a Arusha e a Sanzala no fim disso
tudo?
– Já é do teu conhecimento quem são elas, já não?
– Literalmente já é, mas quando estiverem todos juntos e acordarmos
disso tudo, lamentavelmente elas já não existirão. Louvar-te-ia mais ainda
se as salvares.
– Menina, mencionares isso como solicitação é o mesmo que dizeres
que queres que salve o Zulu, o Herero e os outros…
– Notavelmente…
Ponderou, depois ele respondeu, permitindo a ela ficar com um riso
choroso de alegria:
– Querida menina, terás de trabalhar muito para teres a Sanzala e a
Arusha contigo.

48
PEDRA
S
● Soba ●

Sem que pudessem chegar perto da aldeia, de rompante, Dyakizeu,


Arusha e os consigo viram-se emboscados, cercados por guerreiros.
– Têm a audácia de raptar a minha mulher e ainda me roubar os
filhos? – demandou o líder dos guerreiros em ira visceral. – Vocês foram
enviados por quem?
– Vamos mbora pra casa, tata – disse Dyakizeu, sentado sobre um
dos elefantes, chorando. – Esses aqui num nos rapitaram. O Kalumbi...
– Xuxu quente é o que vocês vão sentir para entenderem o furor do
soba daqui – continuou o líder, interrompendo o rapaz. – Dyakizeu, cala a
boca! Cala a boca e desce daí! Senhor Kalumbi, faz o mesmo! Esses homens
já não podem vos fazer nada. Aqui eu sou o soba mais forte; ninguém pode
nos vencer em nada. Até as outras tribos solicitam a nossa força para
poderem vencer guerras. Se vocês foram enviados por aqueles que nos
consideravam kanjila quando éramos crianças, vão lhes dizer que eles não
têm vergonha na cara. Já lhes derrotamos várias vezes e as nossas terras
continuam a espalhar-se. Kanjila? Sim! Somos kanjila com muito orgulho,
porque somos muitos, sorrateiros, esquivos e nos espalhamos por todo
sítio. Irmão, arrastem esses três até à nossa aldeia. Vamos mostrar a esses
quem manda aqui. Zulu, podes ser tu e a tua tribo a amarrá-los.
– Zulu não está aqui – respondeu um homem. – Deixa que eu, o
grande Herero, faço isso.
As últimas dezenas de palavras saídas da boca do líder e daquele
homem não faziam o menor sentido para Arusha, Impi e Utu. Se aí também
estavam Zulu e Herero, quem era aquele soba arrogante? E se eram
realmente irmãos deles, então Dyakizeu e Kalumbi também eram seus
familiares.
– Esses nomes que disseste – disse Arusha, aturdida – há aqui
também um Impi e um Utu?
– Oh! Mais respeito ao te dirigires a mim. Sou soba. Tens de dizer
soberano Utu.
– Utu?! Eu também sou Utu.
– Brincadeira! – adjectivou Arusha em sarcasmo. – Há aqui também
alguma Arusha?

49
– Cala masé essa boca! – disse uma idosa de extraordinário porte. –
Eu sou Arusha. Vocês foram enviados pelos nossos inimigos, logo, sabem os
nossos nomes.
– De onde vocês vieram? – perguntou Utu. – Se nós ainda somos
crianças, como é que vocês já cresceram e têm filhos?
– Flechas e xuxu! – gritou uma mulher guerreira. – Atirem contra
eles flechas e xuxu! São mentirosos e intriguistas.
– Gostaríamos de lhes pedir desculpas se parecemos mentirosos –
ataviou Arusha – mas o nosso tata é o Xosa e a nossa mãe, a Yoruba. Somos
cinco filhos deles: Zulu, Herero, Arusha, Impi e Utu. E, um segredo que só
nós como irmãos sabemos, é que roubamos as galinhas da nossa mãe e
mentimos-lhe que é uma raposa que as leva. Também bebemos o kapuka do
nosso tata às escondidas.
– Há feitiço aqui! Há feitiço aqui! – exclamou o soba. – Como é que
sabem isso?
– Lamento, mas não é feitiço nenhum, Ngana Utu – continuou
Arusha. – Peço ao vosso Impi que olhe bem para o nosso Utu; verá que têm
o olho cego do mesmo jeito. Os sinais de corte de faca no rosto da vossa
Arusha são iguais aos meus. E com certeza o vosso Utu tem a mesma perna
manca que o nosso. Não é embuste, não é engano, não é mentira. É
incomum, mas é a verdade: Somos as mesmas pessoas, mas com diferentes
idades.
– Mentira! – exclamou a mulher guerreira. – Vamos ainda matar a
Arusha deles para ver se a nossa também morre.
– Não sejas estúpida – disse a Arusha idosa. – Se queres te livrar de
mim, aprende a cuidar bem do teu marido, nora tola. Vocês disseram que
ainda são crianças? Assim? Com esse corpo?
– Parece que o nosso pai nos escondeu por muito tempo que temos
poderes especiais – conjecturou Impi. – Transformou-nos em adultos e
mandou-nos para aqui com o objectivo de encontrarmos e derrotarmos os
dois seres mais fortes desse continente.
– Querem derrotar o Yamungi e a Jokota?! – admirou o soba em
quesito. – Vocês são muito fracos para eles! Há quilómetros de distância,
Yamungi pode atrofiar o ar do vosso corpo, deixando-vos desmaiados ou
mortos. Pode também evaporar o vosso sangue e depois fazê-lo chover em
gotas de fogo. Vieram com algum poder mais forte?
– Responde depois – disse Dyakizeu para Impi, chorando. – Tata
Utu, mama Muhongo, o Kalumbi morreu.

50
PEDRA
T
● Tesouro e Tesoura ●

Todos estavam aflitos. Como podia uma criança morrer no apogeu do


momento em que quis fazer a sua mãe feliz? Além disso, havia aquela
descomunal presença do futuro e do passado ao mesmo tempo. Como
podiam estar aí uma Arusha jovem e outra Arusha idosa e ambas serem a
mesma pessoa? Por que motivo tinham colocado um Impi jovem e um Impi
idoso a conviver? Porque fizeram o Utu jovem não saber que o Kalumbi era
seu filho no futuro? Talvez se o Impi jovem soubesse, lutaria mais
impetuosamente para impedir o ataque daquela serpente. Por não
aguentarem mais o crepitar daquela situação angustiante, escolheu-se uma
kubata onde os directamente envolvidos entraram para conferenciar em
torno de peremptórias respostas.

– Vamos tentar ser simples e claros – disse a Arusha jovem, sentada À


volta de uma grande mesa de madeira. Ao lado desta estava uma outra
mesa onde jazia o corpo de Kalumbi. – Temos uma ideia do que está a
acontecer.
– Xosa e Yoruba são meus pais há mais tempo que teus – disse a
Arusha idosa. – Se os consegui compreender, também to consigo, e muito
mais facilmente. Na verdade, o que achas que já entendeste, espera até
ouvires a nossa versão, talvez seja mais explícita do que a tua.
– Zulu – disse o Impi idoso, enquanto o outro entrava para a kubata –
ainda bem que já levantaste do teu descanso depois da longa viagem que
fizeste. Espero que as informações sobre a morte do teu sobrinho já tenham
chegado a ti. – Pausou para chorar por instantes, enquanto a Arusha jovem
e os seus irmãos olhavam admirados para o aspecto do recém-vindo –
Espero também que já te tenham contado que aqueles que esperamos há
muito tempo são estas três pessoas aqui connosco.
– Ah! Isso é loucura! Este é o Zulu ou o bisneto dele? – demandou o
Utu jovem. – Esse é um rapaz com menos de doze anos!
– Ele parece jovem, mas não é – disse o Impi idoso. – Já tem netos e
bisnetos. Ele é Zulu, o nosso irmão mais velho, o primogénito de Xosa.
– Impossível – exclamou a Arusha jovem de si para si. – Lembras-te
que te disse que a Era iria obscurecer, Utu? Chegou o momento…

51
– «O um a energizar ininteligentemente» – disse o Impi jovem – é
isso o que eu disse, e parece que estava certo.
– «Uma ameaça especial, implícita, ordinária» foi a minha conclusão
– disse o Utu jovem. – Agora parece tudo tão claro.
– Bocas abertas movendo-se com palavras de admiração não nos
servirão de nada neste momento – cortou Zulu. – Sei muito bem quem
vocês são, na verdade, como o meu irmão soba já disse, estávamos à vossa
espera. Tudo o que vos aconteceu, todas as transformações pelas quais
vocês passaram e os perigos que vos perseguiram até aqui fazem parte de
uma investigação do nosso pai para encontrar os dois seres mais poderosos
destas terras. O nosso pai sente que, de alguma forma, vocês três estão
conectados a esses seres, por isso, só vocês os podem encontrar. Eu percorri
o continente todo à procura deles. Parece que houve uma vez que me
aproximei deles sem me dar conta, e isso fez com que eu passasse de adulto,
idoso, à criança – mentiu com meias verdades. – Com isto, conclui que, na
presença deles, provavelmente, o tempo regride para humanos normais,
fazendo a idade deles recuar, talvez até se tornarem bebés, fetos, e, por fim,
desaparecerem, deixarem de existir.
– Com que objectivo o nosso pai quer encontrar esses seres? –
perguntou o Utu jovem.
– Dissipar, destruir, matar – respondeu a Arusha idosa.
– Fizeram o quê ao nosso pai? – interrogou o Impi jovem. – Fizeram
o quê ao continente? Esses seres são perigosos?
– Gostaria de ter uma resposta mais complexa para isso – redarguiu
Zulu – mas o nosso pai quer matá-los simplesmente porque eles são… os
nossos avós.
– Há loucura tomando a mente do papá – replicou o Impi jovem. –
Os nossos avós já morreram há muito tempo, e são pais dele! Ele quer
matar mortos?!
– Já chega dessa conversa podre – cortou Muhongo em cólera
lutuosa. – Zulu, se esses vossos avós têm poderes, vamos lhes encontra pra
eles devolverem a vida ao meu Kalumbi!
– Lamento muito por isso não poder acontecer – respondeu-lhe Zulu.
– Como disse, se nos aproximássemos dos nossos avós, todos nós
morreríamos.
– Mas os vossos pai nasceram como? – replicou Muhongo em
contínuo quesito. – Se estar com eles fosse assim tão perigoso, eles nunca
iriam lhes parir. – E se vocês são neto deles, vocês também não são dyala e
muhetu normal. Olhem pro meu Kalumbi. Vêem só o meu Kalumbi. Vão lhe
deixar assim até quando?

52
– Não há nada que possamos fazer acerca disso porque encontrar-
lhes é impossível, mulher – respondeu o Utu idoso. – Nós não podemos
encontrar esses dois seres. Eles podem saber sempre onde estamos. Nós
não…
– Por favor, lhes encontra só, ngana marido soba. Kalumbi é meu
filho, teu filho também. Ele é muito importante para mim. Ele ainda é
criança. Podem tirar a minha vida e dar pra ele, por favor. Mas não lhe
deixem assim. Levantem o meu Kalumbi. Lhe fazem viver de novo.
– Quero tirar-te daqui à força para parares de interromper uma
conversa tão importante – disse uma rapariga imponente que acabava de
entrar para a kubata – mas entendo o teu luto. O que estamos aqui a falar
envolve a morte de todos nós…
– Rabo tá a te subir na boca por isso é que falas coisas mal cheirosas
até com a tua mais velha? – vociferou Muhongo.
– Sei que não consegues me reconhecer por causa do meu actual
aspecto. Voltei da minha viagem e descobri que toda essa loucura do avô
Xosa tem a ver com a lenda de Tesouro e Tesoura contada pelos nossos
antepassados. Sim, sou a Sanzala, a primogénita do Ngola Zulu.

Mahezu tlhano

Nome: Yamungi –
Tempestade Seca
Poderes conhecidos: Fazer
chover torrencialmente gotas de água
que podem alcançar a temperatura do
sol. Eliminar o oxigénio e o dióxido de
carbono da atmosfera. Pele
absurdamente quente que evapora
qualquer líquido.

Ponto fraco: Incógnito.

Poderes desconhecidos: Infinitos.

53
PEDRA
V
● Verdade ●

– Venham ver – pediu Sanzala, colocando as nove pedras arredondas


sobre a mesa de madeira. – Ouçam o que direi e, por favor, não me
interrompam até que eu termine. – fez uma pausa, enquanto as pedras
repetiam o desenrolar anterior: oito pedras giraram à volta da pedra maior,
tomaram a aparência de guerreiros, correram até à pedra maior e colheram
dela o que parecia dourado, deixando, no entanto, a pedra azul e verde
enegrecida e avermelhada. – Essas pedras nos ensinam algo sobre a origem
de Yamungi e Jokota. Elas nos contam a lenda de Tesouro e Tesoura. Essa
lenda parece consistir na crença de que há nove seres, estando, entre eles,
um vermelho, um verde e azul e um preto. Yamungi e Jokota com certeza
escondem um tesouro, protegem-no. Se conseguirmos uma forma de os
ludibriarmos, sem termos de os enfrentar, alcançaremos esta imensurável
fortuna. Precisaremos também de convencer ou ludibriar esses oito seres
que almejam o tesouro. Quem são esses seres? São da nossa família. Já
sabemos que Xosa é vermelho, a Morte é preta, a Nvula tem um brilho
verde e azul; temos então de descobrir os outros sete seres para
descobrirmos este tesouro inimaginável, tornando assim os nossos nomes
eternos em todas as tribos.
– Xosa é um dos meus nomes – disse Granizo Vermelho, entrando,
batendo palmas com Neve Negra e Orvalho Arco-Íris. – Muito obrigado por
me darem finalmente as informações que eu precisava. Sanzala, fui eu que
influenciei o Kinguri a te dar essas pedras. Sem ele se aperceber, entregou-
te uma arma mortífera. Agora sim, Arusha, Impi e Utu, vocês estão prontos
para ir comigo e com as vossas tias. Eu localizei o lugar em que eles estão.
Estão entre o monte Waku e o monte Kungu, os montes dos nevoeiros.
Vamos lá. Talvez nenhum de nós volte com vida, contudo, não os
deixaremos com vida também, visto que abdicaram de cuidar de mim e das
minhas irmãs por um simples tesouro. Vocês os três têm agora algo capaz
de os derrotar: engulam, cada um, três dessas pedras e, com as
transformações que já vos fiz, terão um poder semelhante ao de Trovão
Mudo e Tempestade Seca. Vamos!

54
– Zulu, diz ao teu pai que não moveremos nenhum dedo a partir
daqui até que ele nos leve de volta para casa – declarou Arusha. –
Queremos continuar a nossa festa, ver a nossa mãe, abraçar os nossos
amigos. Depois disso, voltaremos. Contudo, pai, acho que estamos a nos
precipitar em achar que os nossos avós são maus, mas isso é uma conversa
que teremos mais tarde. Nós já sabíamos dessa conversa toda. Era sobre
isso que conversávamos quando vieste com as nossas tias falar que nos
matarias. Há uma ameaça implícita, ordinária, nisso tudo. Estás a agir
ininteligentemente, pai, estupidamente. Eu, o Impi e o Utu temos poderes
que não imaginas, contudo, conseguimos esconder esses nossos poderes,
assim como tu. Eu sozinha posso obliterar-te num piscar de olhos, embora
o Impi me tenha aconselhado a extrair os teus poderes apenas.
Conseguimos nos fazer de tolos. Apagar a nossa própria memória e viver
como crianças normais. Só quando desejamos nos lembrar disso é que o
fazemos. Há coisas que vão além da tua compreensão. Se agirmos da forma
que pensas, vais obscurecer a Era, vais retirar a réstia de luz que ainda
temos como esperança de não morrermos todos. Sanzala, sobrinha, o Impi,
o Utu e eu somos três destes guerreiros. Agora temos apenas de encontrar
os dois restantes. Mama Muhongo, o Kalumbi voltará à vida para ti quando
formos embora daqui. Não, pai! Não adianta nos ameaçar de morte. Não é
possível nos matar. Mesmo quando perdemos a vida, não morremos. Leva-
nos para a casa, pai. Agora!
– Agora não será possível – disse Xosa. – Consegui entender que
vocês têm o poder de ver o futuro. Quem vos deu esse poder? Os meus pais?
Arusha, como é que conseguiste quebrar o braço da minha irmã em pedras
de gelo? Será que…
– Ela pediu para levá-los agora para a casa, pai – lembrou Ngola com
veemência. – Satisfaz o desejo dela agora.
– Intentas continuar a falar comigo assim? – inquiriu Xosa,
transformando-se em Granizo Vermelho. – Não sabes quem eu sou?
Perdeste o respeito?
– Ó avó – chamou Sanzala. – Para com essa tentativa de tentar impor
respeito por meio de medo. Lembra-te, se descendemos dos seres mais
poderosos deste continente, nós também somos poderosíssimos.

55
– Ultraje! Makala e Nvula, vocês conseguiram enganar-me? Deram
poderes aos meus descendentes para eles próprios me matarem? Como é
que fizeram isso sem eu me aperceber? Mas já não há importância. Já
tenho o que queria. Eu consigo entrar nos vossos pensamentos e convencer-
vos a fazer o que eu quero, depois vos mato a todos!
– Bem, falando em entrar nos pensamentos dos outros – dizia Neve
Negra, rondando-o. – Eu estou na tua mente, querido irmão. Tudo o que
viste e fizeste agora é só uma ilusão. Estás na tua casa deitado aos meus pés
e eu estou a ler o teu coração. A Arusha tem razão. Há uma ameaça enorme
fora daqui. Contudo, há outra ameaça aqui dentro: tu. Mas não me apetece
explicar isso agora. Explicarei quando eu mesma entender que já é a hora.
Arusha, Impi e Utu, vocês queriam saber quem é o mais forte entre mim, a
vossa tia arco-íris e o vosso pai? Terão a oportunidade de ver isso sem
demora, porque a luta que ele vos contou é mais uma das coisas que iludi a
mente dele a ver.
– Com os vossos próprios ouvidos vocês ouviram essa manipuladora
– clamou Ditadi Xamavu, pungentemente enraivecido. – Juntem-se a mim
e a derrotaremos.
– Demos-te a oportunidade de te renderes, pai – disse Ngola,
enquanto todos ladeavam Granizo Vermelho em formação de batalha. – Já
que não queres, vamos agarrar-te e convencer-te a força.
Gélida de modo absurdo ficou a kubata devido ao extremo frio que o
corpo de Ditadi Xamavu começou a emanar. O dedo dele apontou para o
coração de Neve Negra e o coração dela explodiu. Arusha e os consigo
deram passos para o seu pai enfrentar, contudo, Orvalho Arco-íris colocou-
se entre eles e os impediu.
– Há muita diferença entre o teu poder e o meu, Nvula – disse Ditadi
Xamavu, irritado. – Queres mesmo enfrentar-me ou estás do meu lado?
– Já estou cansada de te deixar pensar que és mais forte que eu –
disse Nvula. – Contudo, se eu lutar contigo, talvez despertes a real ameaça
que há em ti. É melhor acalmar os ânimos – disse ao ver e ouvir o coração
de Makala voltar a explodir. – Deixa o coração da dya Kixiketela em paz,
por favor.

56
– Levarei a tua cabeça cortada do teu corpo e o coração dessa maluca
para me divertir. Ela é má, horrenda, a pior coisa que a Humanidade já
conheceu, e tem de pagar pelos seus erros.
– Mana, controla-te. Não ajas impulsivamente, dya Kixiketela –
aconselhou Nvula a Neve Negra, ao ver que esta começava a ganhar
luminescência assassina.
– Não sou má como ele diz, ndenge yami kabasa. – disse Neve Negra,
chorando. – não sou má como ele diz. Sou pior. Muito pior!
Piscou o olho para Nvula e avançou com velocidade estonteante para
o seu oponente – sim, Neve Negra foi atacar Ditadi com expressão facial
sorridente. Arrancou o seu próprio coração e lançou-o na direcção de Ditadi
como um xuxu perfurante, mas ele fê-lo explodir em centenas de partes
equivalentes sem que o atingisse antes.
Quando Ditadi empreendeu o seu golpe mais feroz, Nvula dividiu o
corpo dele em três: ossos, músculos e veias. Neve Negra segurou-o pelas
vértebras do pescoço e levou-o para os céus, rompendo o tecto da kubata de
forma atroz e veloz.
Rapidamente, o corpo de músculos começou a atacar Nvula, enquanto
o de veias atacava Arusha e os com ela. A forma corpórea de veias dominou
a todos porque paralisou-lhes a circulação sanguínea. O corpo de músculos
socou Orvalho Arco-Íris de maneira intensa e pesada, mas ela recebeu
aqueles golpes sem fazer nada, apenas olhando para ele de forma fria.
Sangue sem circular por muito tempo poderia causar morte – Neve
Negra deu conta que se não se pusesse um fim àquela luta, Arusha e os
consigo teriam uma funesta sorte. Por isso, voltou a arrancar o seu próprio
coração e intentou colocá-lo na boca do corpo de ossos com extrema força.
Visto que os seus maxilares cediam, Ditadi decidiu pedir reforços. O corpo
de músculos e de veias juntaram-se ao de ossos, tornando-se novamente
um, contudo, a força de Neve Negra era tanta que Granizo Vermelho foi
obrigado a fazer algo incomum. Fez com que seu próprio coração subisse
até a sua própria garganta e impedisse o coração de Makala dya Kixiketela
de entrar. A insanidade de Neve Negra piorou: usou o fémur dele para o seu
coração empurrar. O fémur entrou pela garganta empurrando os dois
corações. O que se ouviu a seguir foram gemidos de Ditadi pelo estrago que
a explosão causou aos seus pulmões. Makala desceu com ele dos céus e fez

57
sinal para Nvula, Arusha, Impi e Utu irem com ela sem dar explicações.
Eles obedeceram-lhe após se despedirem dos aldeões. Antes de
desaparecerem do campo de visão de todos, ouviram um breve discurso de
Xosa que estremeceu-lhes as convicções:
– Todos, ouçam-me bem: Eu nunca perco. Mesmo quando não venço,
não perdi.

58
PEDRA
X
● Xosa, o desaparecido ●

Xilofone da vitória. Arusha, Impi e Utu voltaram à kubata com a


idade de criança. Estavam a comer carne seca e dando goles de kapuka com
Herero em abonança. As lembranças do que acontecera na aldeia dos
idosos foram-lhes apagadas. Tudo o que eles queriam saber naquele
momento era de festança.
Zonzo, parcialmente inebriado, Herero sentiu uma estranha presença
a observá-los.
– A mama se entrar aqui vai nos dar uma surra que nunca mais
vamos comer nada – anteviu ele. – Vamos já nos juntar a festa aí fora. Impi
larga esse garrafão! Você fica bêbado à toa. Vais fazer nos apanharem.
– Ele tem razão – assentiu Utu. – Estou a sentir que há alguém a nos
ver. Surra da mama dói bwe. Vamos embora.
Instantes foi o tempo que levaram para arrumar tudo e sair à socapa.
Limparam as bocas e arrotaram de lado como se não tivessem feito nada.
Correram em aproximação da roda humana e começaram a dançar. Ao som
do batuque e da marimba o mundo pareceu-lhes dar alegria sem par.
– Oh! Olha os kanjila – gozou Hilombe na roda humana. – Aqui
estamos a bailar e eles vieram xingilar!
– Um bando de passarinhos insignificantes é o que eles são – gritou
Hembadoon. – Estão a estragar a nossa roda. Lhes tirem daí!
Brutas e alegres gargalhadas foram soltas por Arusha, Impi e Utu. Na
companhia de Herero, saíram da roda e formaram a sua própria roda,
continuando a dar fortes gargalhadas. E dançaram mais ritmadamente em
euforia.
Com extremo desgosto, os zombadores sentiram-se envergonhados.
E, um a um, a roda deles foi se dissipando, aumentando assim a roda de
Arusha e os consigo. Arusha não se lembrava porque ria tanto da palavra
kanjila, contudo, estava em paz com o termo e já não o considerava um
insulto.
Depois de um tempo, ela pegou pela mão dois dos zombadores e
dirigiu-os para o meio da roda e dançou com eles. Utu e Impi fizeram o
mesmo com Homa e Hukata e todos os zombadores dançaram juntos,
tornando-se amigos naquele momento.

59
– Foi mesmo necessário colocar o teu coração dentro dele, dya
Kixiketela? – demandou Nvula, estando as duas sentadas sobre as nuvens.
– Gastas saliva com uma pergunta que já sabes a resposta? Ele está
quase a descobrir o poder que tem. A presença do meu coração no corpo
dele vai impedir isso durante algum tempo.
– Há várias coisas que não me contas. Não achas que já está no tempo
de me dizeres a verdade? Abre-te comigo. Sou tua irmã. Confia em mim.
Não podes carregar esse peso sozinha.
– Jorras estupidez com a língua e queres parecer inteligente? Sabes
tudo o que sei, a nossa mente é a mesma. Para quê te contar o que já lês nos
meus pensamentos?
– Lá no fundo sabes que precisas de desabafar. Podemos ter as nossas
diferenças, mas estou do teu lado.
– Muito obrigada pela preocupação, mas devias canalizá-la para o teu
irmão. Já notaste que ele não voltou connosco? Eu estava a segurá-lo, mas
ele desapareceu.
– Não foste tu que o fizeste desaparecer, pois não? Ou deixaste-o de
propósito no futuro?
– Por dentro e por fora sou negra, mas não tenho ideias tão obscuras.
Se o deixasse lá, estaria a assinar a destruição de todas as tribos.
– Quando o trazias, não sentiste outra presença poderosa perto de
nós?
– Tens a certeza que senti. E sei que, em breve segundos, sentiste que
ficamos mais jovens. Então, ambas sabemos o que aconteceu…
– Verazmente. Bem, isso é um problema que ele arranjou para si
mesmo. Ele quis encontrar-se com os nossos pais, e parece que conseguiu,
com apenas um deles, mas conseguiu.

60
PEDRA
Z
● Zumbido aquoso ●

Zangadas pareciam estar as gotas que caíam do céu até aos corpos de
Arusha, seus irmãos e os amigos enquanto intentavam continuar a festejar,
todavia, as gotas, além de parecerem ter ficado furibundas, tornaram-se
mornas, depois quentes, escaldantes. Por isso, os filhos de Xosa e os seus
convidados correram para as kubata em busca de abrigo.
– Aqui só acontecem coisas estranhas? – perguntou Hembadoon. –
Primeiro pareceu que ficamos cegos, agora cai chuva quente do céu?
– Eu vou te responder o quê? – retrucou Utu. – O que te aconteceu
também me aconteceu…
– Impi, viste o Zulu e a mamã? – perguntou Herero.
– O tempo todo que ficamos aí a dançar e a comer, não.
– Umas quatro horas devem ter passado, e eles desapareceram por
tanto tempo? Se estiverem longe e não conseguirem se abrigar?
– Bem, já que não dá para ter a festa aí fora, aqui tem carne seca e
kapuka – apimentou Impi em desvio dialogal. – Vamos abater!
– Com a boca que a mamã tem? – perguntou Utu, mordendo um
pedaço de carne. – Vais assumir sozinho as consequências quando ela
chegar?
– Desta chuva acho que ninguém vai sobreviver. A kubata está a sair
fumo! – gritou Hukata. – Então, vamos comer e beber!
– Falou e disse! – gritaram Hilombe e outros jovens. – Kimbombu e
kombota pra nós! Carne seca de jiboia é só minha!
– Gostam muito vocês – disse Homa. – Eu quero ir na minha casa.
Quero os meus pais.
– Há como sair daqui, hã? – redarguiu Hembadoon em timbre
ameaçador. – Se queres se queimar sozinha, vai! Aqui essa bebida é que vai
nos queimar por dentro, antes de essa chuva nos queimar por fora.
– Já não basta serem crianças, ainda são estúpidos? – disse Arusha. –
Em vez de se preocupar com bebida, não deviam estar a pensar numa
forma de sobreviver?
– Lá vem essa kalumba a se armar em inteligente – ripostou Hilombe
em chiste. – Teu próprio irmão é que que deu ideia. Nós só tamo a
colaborá. É máli?

61
Mal a rapariga tinha acabado de falar, um fortíssimo vento começou a
vergastar vigorosamente a kubata, abrindo uma brecha maior que a da
entrada.
Notaram ao longe uma silhueta caminhando em aproximação da
kubata, olhando para os lados, como se procurasse alguma coisa. Cada
passo que a silhueta dava, tornava a chuva e o vento mais fortes. Ora, todos
na kubata não notavam que os seus próprios corpos diminuíam de
tamanho.
– Parece ser a mamã – conjecturou Arusha.
– Quero muito que seja ela – disse Impi. – Mas não me parece que ela
seja capaz de estar a andar tão calmamente com um tempo estranho desse.
– Repara bem. É a mamã, não é Utu?
– Se a kubata está a sair fumo e a rasgar, achas que a mamã estaria
como?
– Tenho a certeza que é ela. Olhem bem!

– Vais fazer isso porquê? – dizia a silhueta, olhando para o céu, sem
ser ouvida pelos que estavam na kubata a centenas de metros à sua frente.
– Não te consigo localizar. Não consigo localizar o Xosa. Mataste o teu filho,
Jocota? Mataste-o? Não podes fazer isso. Por favor, não faz isso.
Xícara do impossível – Arusha Impi e Utu confirmaram: era mesmo
Yoruba, e, por mais que aquela chuva caísse sobre ela, o seu corpo estava
seco.

Fim.

62

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