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Dedicado a:
Jorge Ferraz Seca
Em memória de:
António Ferraz Seca
Filipe Ferraz Seca
João Ferraz Seca
13 de Maio a 01 de Setembro
2019
Ngoma Usuku
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PEDRA
A
● «…a razão agradável…» ●
3
– Makongu – exclamou Utu. – Queres transformar a minha irmã em
quê? Papá, essas duas aqui são ngapa? Contrataste muloji só porque
deixamos a raposa levar aquelas tuas galinhas?
– Não, filho – respondeu o homem, sorrindo. – Elas estão aqui para
vos mostrar que, inquestionavelmente, vocês são os meus filhos predilectos.
– Papá, e elas vão nos mostrar isso como? – perguntou Utu.
– Queres mesmo saber?
– Responde só, pai – depreciou Arusha. – Se ele não quisesse saber,
não perguntaria.
– São vossas tias essas duas senhoras e…
– Tias?! – interromperam as três crianças em uníssono.
– Vulgar voz visceral, venenosa, vândala – classificou a segunda
mulher, olhando de forma fria para o trio infantil. Descrição? Nua; pele
translúcida como a água, reluzindo as sete cores do arco-íris.
– Xosa – chamou a primeira mulher – diz de uma vez a eles a razão
agradável de estarmos aqui. Não podemos perder tempo.
– Zénite dos meus planos – disse ele para as três crianças, com o
olhar avermelhado – essas são as vossas tias Neve Negra e Orvalho Arco-
Íris. Elas estão aqui para vos tornar em seres mais fortes, mas, para isso,
antes, elas terão de vos matar.
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PEDRA
E
● Embargamento ●
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– Frustrado, frouxo, frígido, fresco fraco – insultou Nvula.
– Grandes grelhas gritarão grotescas grutas – ameaçou-lhes Xosa,
fazendo-as calar.
– Há uma festa para vocês, mocinhos – gritou a silhueta,
aproximando-se. Era Yoruba, mãe das três crianças. – Hembadoon,
Hilombe, Homa e Hukata já estão lá de kingila e zunga.
– Já chegaram há muito tempo?! – perguntou Xosa, falseando um
sorriso. – Jejum não iria lhes fazer mal, por enquanto. Jiboia grelhada com
molho de kasakaya é o que lhes oferecerei pela espera; sei que eles gostam
muito disso. Jorrará kisangwa e mahindi por todo lado, mas, por enquanto,
dá-me só esses momentos a sós com os rapazes, por favor. Em pouco tempo
estaremos aí, mulher. Juro-te!
– Lá em casa já está tudo pronto, homem. Leite de cabrito, carne de
pakasa, fumbwa, kuz-kuz e muitas frutas. Litros e mais litros de kapuka,
kimbombu e kombota estão à espera dos mais velhos, que somos apenas
nós os dois, marido. Louvaremos a Mpungo até ao amanhecer. Lua e sol
assistirão à nossa alegria durante dois dias com inveja!
Marcas de testas franzidas por raiva e impaciência – Neve Negra e
Orvalho Arco-Íris queriam chacinar as três crianças à frente da sua mãe
sem mais demora. Mercadejaram formas de se livrar de Yoruba com
displicência – se a matassem no processo não importava, ao menos
cumpririam com o combinado a horas. Miraram com desprezo Xosa e a sua
indolência – como era possível ele ser irmão delas se à frente de uma
mulher não conseguia demonstrar nem um pouco da vilania que exibira
outrora? Morderam os próprios lábios exalando sanguinolência – pelo
desenrolar dos acontecimentos, não se faria nada àquelas crianças; tempo
jogado fora. Muralhas conjugais gerando incompetência – como colocariam
em prática o plano sombrio oculto neste plano macabro agora?
Narcótico indutor de fúria descontrolada: Yoruba pegou as mãos de
Arusha, Utu e Impi e começou a levá-los em afastamento do trio assassino.
Nervos à flor da pele enrubescida; Xosa sentiu ódio por sua esposa agir
daquele modo desrespeitoso e asinino. Nirvana de gente enlouquecida: ele
segurou a mão de duas crianças e olhou para Yoruba com sentimento
ferino. Normal, anormal e paranormal era aquela alhada – quem sairia daí
vivo se se tocasse o berimbau de partida para o extermínio? Números era o
que menos importava – o expoente com único valor relevante era de quem
não entregaria o bom senso ao declínio.
– Prática presciência; prioridade: procurar prudência – comunicou-
se Makala dya Kixiketela com Xosa, para que este não arruinasse o plano.
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Quarto de calma contra terço de fúria – a cólera inumana e a
passividade insana de Xosa digladiaram ferozmente no seu coração e na sua
mente com incontrolável bravura. Querer a morte dos seus filhos não era
prioridade, era penúria, mas mascarou este sentimento retirando-lhe
sublimidade, ternura e candura. Quilates de objectividade tresloucada
contra quilates de sentimentalismo recheado de finura – até onde iria a
sanidade dele sem que fosse descoberta que, sem esse disfarce, era pura
loucura?
Rarefeito já era o ar que se respirava; até a cor de Neve Negra perdeu
o seu brilho de diamante. Dia amante de paradoxos e drama; parecia que o
sol tinha nascido para oferecer-lhes alegria e sensaboria candentes. Clã
Dentes Sombrios de Trama, provavelmente era esse o nome do grupo que
Xosa, Neve Negra e Orvalho Arco-íris pertenciam, visto que demonstravam
ter ódio por qualquer espécie, até a nativa. Alternativa: estruturar em outra
ordem o plano: reerguer, ripostar, roxear e ruptura.
– Sarna comigo é o que vais arranjar se não largares já os meninos,
Xosa – anunciou Yoruba, irritada. – Ser marido não te dá o direito de
mandar em tudo dentro e fora da nossa kubata. Silêncio! Não me responde
mais, homem! Sorte a tua que tem aqui criança a ouvir e a ver, senão, ia-te
mostrar por que é que uma muhetu tem sempre mais peito que um dyala.
Surtir efeito contra ti é o resultado se não largares o Impi e a Arusha; deixa,
homem, lhes deixa!
– Trabalho é trabalho; família é família – desvalorizou Xosa. –
Tremeres com calor é o que vai acontecer se eu continuar aqui, Yoruba.
Tributo que paguei à tua família por ficar contigo não chega para me
respeitares? Troca de papel então: ficas tu o marido e eu, a esposa! –
Suspirou em aparente derrota. – Trunfo que as tribos usam para o homem
perder o seu poder: mulher.
Urgência estava atribuída ao plano que ele tinha em mente, mas
decidiu adiá-lo? Uma simples afronta feminina era o suficiente para
desestabilizar Xosa, o desumano?
Vassouraram-se dúvidas na mente das crianças: porque a sua mãe
não falava das duas mulheres estranhas? Não as conseguia ver? Vermelha
tinha ficado a pele de Xosa por ínfimos instantes; será que só Arusha, Impi
e Utu notaram aquela estranha coloração da derme de seu pai e a
conseguiram perceber? Vir em socorro deles naquele momento exacto era
estranho; Yoruba estava aí por simples casualidade ou porque estava de
sentinela? Vórtice de perguntas contra vácuo de respostas: a única coisa
que o trio infantil sabia era que tinham vida e tencionavam mantê-la.
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Vulnerabilidade não era permitida, então, aproveitando-se da distracção
paterna, os três saíram em afastamento de Xosa a correr.
Xadrez abespinhado – o jogador mais forte parecia perder para peões
fracos e tolos. Xerez dos acobardados – o medo de perder a sua esposa
embriagava o jogador de modo a enfraquecer-lhe os miolos. Xícara da
altivez dos enfraquecidos – o jogador bebeu aos tragos a decisão de sair em
retirada, e não o faria a solo. Xosa deixou os seus ombros descaírem – não
fazia nada para ir buscar as três crianças; estaria a libertá-las? Xuxu
transviado – parecia que a exequibilidade do plano seria rotulada com
falha.
Zarpar com mares de lágrimas em seus olhos parecia viável para
Arusha, Impi e Utu. Zero foi a nota que Yoruba atribuiu ao seu marido por
ele não ter aceitado ir à festa com ela. Ziguezague dos acontecimentos –
seria esse o fim do plano assassino? Zoológico da insanidade – na verdade,
Xosa criara outro plano animalmente macabro, até mesmo contra Yoruba, e
o colocaria em acção mais tarde. Zulu, o primogénito, estava longe, senão
serviria de entrave.
•
A altitude em que aquela mulher idosa de corpo extraordinário se
encontrava apresentava perigo para a sua respiração. Além disso, já não
tinha mantimentos nem água há dias. Ainda assim, cavava aquela
montanha com as suas próprias mãos, retirando rocha após rocha, apesar
do colossal peso das mesmas. Auspicioso – a mulher tinha o nome de
Sanzala e não dava azo a qualquer embargo aos seus intentos porque estava
prestes a descobrir a origem de um duo implacável de criaturas: Yamungi e
Jokota.
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PEDRA
I
● Irmãos ●
Incrível era a velocidade com a qual Arusha, Impi e Utu corriam entre
as chanas altas. Fugiam – grande era o terror que sentiam naquele
momento; fugiam – da ameaça de morte perpetrada por seu pai.
O que se passava na mente de Xosa? Que ideia era aquela? Porque a
tivera? Para que fim a queria executar?
– Utu, cuidado! – gritou Impi, ao ver o irmão tropeçar num burgau
com a sua perna manca.
Braços e mãos lacerados foi o resultado corporal da queda de Utu.
Quando Arusha e Impi se aproximaram para o ajudar a se levantar –
tenebroso – ouviram passos céleres avizinhando-se deles.
Como era possível não terem ouvido os passos antes? De quem eram
os passos? Seriam do seu pai enlouquecido e das duas mulheres
tresloucadas?
– De kambwa não passam – apoucou um dos detentores dos passos,
rindo em zombaria irritante para as três crianças. – Começam a ladrar, pá!
Ladrem agora!
– Falas à toa! Kambwa é muito pra eles – menoscabou outra voz em
escárnio. – Esses aqui são kanjila, são os passarinhos aqui da nossa aldeia!
– Garoto – disse Arusha em timbre intimidador – sentes alguma
coisa de passarinho enquanto ouves a minha voz? Se com o que sai da
minha boca te sentes assim, imagina o que te acontecerá se eu usar as
minhas mãos...
– Há muito cuspe na boca dessa fininha – vexou outro do grupo dos
mofadores. – Deixam, vou-lhe secar com dois bicos da bexiga.
– Já nem vais ter pés se lhe encostares – ameaçaram Utu e Impi em
uníssono, exibindo um olhar intimidador.
– Lhes dão com pedra! Lhes dão com pedra – gritaram outros
zombadores, apanhando os objectos mencionados.
– Moços, as vossas mães não iam gostar nada de saber que vocês
arranjaram dikulu com os filhos do soba – preconizou Yoruba, colocando-
se entre eles e os seus filhos. – Vão embora!
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No rosto dos jovens houve intensão de continuidade do biltre intento,
mas as suas mãos largaram os burgaus.
– Pra quê bater alguém que chama sempre a mãe pra lhe acudir? –
demandou um dos jovens em escárnio. – Vamos embora. Vamos sentar à
volta da fogueira pra se contarmos bem a história dos passarinhos!
– Queria vos convidar para a festa lá na nossa kubata – disse Yoruba
– mas parece que já têm diversão.
– Repolho, mbiji e kisangwa na nossa casa também tem. Vamo
mbora! Somos os elefantes daqui, não nos juntamos com esses kanjila!
Saíam da visão de Yoruba e dos seus filhos gradativamente, quando,
de repente, um dos jovens mofadores caiu porque alguém o derrubara com
uma cabeçada entre os lábios. O alguém ficou por cima do derrubado,
tapando-lhe a boca e segurando-lhe um dos braços.
Todos os rapazes mofadores pensaram em acudir, mas conheciam
bem demais o alguém para se intrometerem numa batalha dele;
contiveram-se.
– Vivo… uma vez que sei que queres continuar vivo – disse o alguém
– retira tudo o que disseste contra os meus irmãos e grita: Eu e os meus
irmãos é que somos kanjila!
– Xosa é o meu pai – disse outro alguém, derrubando o jovem mais
forte, batendo-lhe com um burgau no abdómen – e o meu pai manda
nessas terras. Digam que vocês mesmos é que são kanjila ou vão voltar em
casa inflamados!
– Zulu e Herero, parem! – imperou Yoruba, denunciando o nome do
alguém e do outro. – Deixem esses meninos irem embora. Venham, meus
filhos. Venham. Hoje é dia de festa, não de heróis e vingança.
•
– Aonde foste, minha filha? Aonde foste por causa da tua curiosidade
e por causa dessa tua teimosia inamovível? – argumentava em quesito de si
para si o homem enorme de cabelos brancos, enquanto escalava uma
montanha. – Andarias melhor se estivesses sempre comigo ou com os teus
irmãos. Aqui o único resultado que terás é seres assassinada.
Estava cansado em demasia, mas a preocupação paternal dava-lhe
forças. Encararia qualquer situação para trazer de volta a sua filha, afinal
ele era Ngola, um idoso que possuía um exército extraordinário.
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PEDRA
O
● Outro caminho ●
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não, mas era possível ela garantir que os seus filhos continuassem a
desfrutar do prazer do puro ócio por mais tempo.
– Mas não convidaste também nossas mãe pra quê, tia Yoruba? –
perguntou uma das jovens. Homa era a sua denominação. – Assim plano da
tia é nos pôr a lavar kibutu de louça quando a festa acabar? Os hábito e
costume da nossa aldeia não são assim. As mãe é que dão exemplo...
– Não és pouco engraçada – disse Yoruba, sorrindo amigavelmente –
mas a festa é de criança. Criança come, criança limpa. Eh! Se me
responderes, vais ser desprezada como as kamuhetu da nossa tribo. Sabes
bem como eles são rabugentas, porcas, preguiçosas e nem sabem cozinhar.
– Palavra assim bem pesada neu que só tá me saí chucha agora, eh!
Isso fala na Hembadoon e na Hukata que já têm sema de homem, tia.
– Quero dançar, kalumba – disse Yoruba para ela, puxando-a. – Vem!
Hoje é festa! Maka, makongu e dikulu é amanhã.
Rapazes, raparigas e mulher dançaram e comeram. Houve masemba
e kabetula. Dikanza e marimba fizeram os seus papéis no cenário acústico
sem modéstia. Alegria, felicidade, celebração em inusitado frenesim – tudo
era agradável e parecia que não teria fim.
– Será que é para isto que nos obrigaste a fazer parte do teu plano,
irmão? – demandou Neve Negra, estando posicionada longe da festa com a
sua irmã e o receptor das suas palavras.
– Tens de prestar mais atenção às minhas acções, senão nunca me
entenderás – respondeu-lhe o receptor em emissão injuriosa.
– Vejo apenas um homem fraco diante dos caprichos da sua mulher –
interpôs-se Orvalho Arco-Íris.
Xosa ignorou o palavreado desrespeitoso das suas correligionárias.
Apontou a sua mão esquerda para as pessoas que dançavam. A sua mão
ganhou rubescência como cor e atacou o coração dos bailarinos. Nvula
baixou-lhe a mão antes que os matasse e tornou roxa a pupila de todos. O
resultado?
Zulu, Yoruba, Herero, Arusha, Impi, Utu, Hembadoon, Hilombe,
Homa, Hukata e todos ao seu redor ficaram cegos.
•
As mãos de Sanzala começavam a sangrar. As toneladas de rochas que
retirara eram imensuráveis. Agarrava, pousava; pousava, agarrava – as
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gotas de suor misturavam-se com as gotas de sangue causando-lhe
ardência.
Elevou-se e abaixou-se por uma eternidade até que um barulho a
interrompeu. Em movimentos rápidos, olhou à sua volta enquanto lançava
rochas a esmo. Elas bateram em algo, mas o algo não gemeu. Em passos
lentos, o algo aproximou-se dela. Eram duas palanka enormes,
descomunais. Ela voltou-se para fugir. Embora tivesse vontade, as suas
pernas pararam quando ela viu um ser gigantesco, com olhos
avermelhados, um monstruoso crocodílida e uma criatura que parecia ser
um fantasma à frente de si. Eles eram conhecidos por ela: o dos olhos
avermelhados era Kinguri, amplamente conhecido como Homem do Saco, o
crocodílida era Samanu, também chamado de Jacaré Bangão, e o último era
Wana, o Kazumbi.
Inventou formas de fugir na sua mente, mas Sanzala viu que eram
todas inexequíveis – impraticável: o caminho para fuga tornara-se
impossível; inclinou-se, ajoelhou-se e chorou.
Mahezu nngwe
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PEDRA
U
● Um par de insectos ●
Um breu roxeado foi o que invadiu a pupila dos que festejavam. Sem
mais demora, abriram-se três rupturas no chão, cada uma por baixo dos
pés de Arusha, Impi e Utu, e eles caíram nelas.
– Bem – disse Xosa – finalmente começará o treinamento.
Com frieza insanamente infanticida, deixou cair uma enorme catana
na ruptura de Arusha. Nvula e Makala dya Kixiketela fizeram o mesmo nas
de Impi e Utu, respectivamente.
Desciam em profunda escuridão as três crianças, gritando. O que lhes
aconteceria quando chegassem ao fim das rupturas? Treinamento? Que
tipo de pai faria aquilo aos próprios filhos?
Foram extensos os minutos que o trio de crianças caiu no vácuo até
atingir uma superfície sólida. As catanas quase lhes rasgaram as nucas em
homicídio, mas eles, involuntariamente, conseguiram esquivá-las.
Gastos e abismados, Arusha, Impi e Utu começaram a andar a esmo à
procura de uma saída. Encontraram-na? Não! Encontraram-nas, pois
tinham caído em lugares diferentes.
– Há agora a oportunidade de se superarem – disse Neve Negra aos
três, aparecendo de rompante no meio deles.
– Já que não parece haver outra solução – disse Arusha, colocando-se
entre Preta de Carvão e Impi e Utu – fujam, manos. Eu vou ficar aqui e me
submeter ao que quer que seja que essa louca quer.
– Louca? Eu? – demandou Neve Negra. – Vê-se bem que não
conheces bem o homem por meio do qual você nasceu.
– Mana, vem connosco – disse Utu, puxando Arusha para si e
começando a correr com ela e Impi em afastamento de Makala dya
Kixiketela.
– Não vos é permitido sair daqui enquanto não evoluírem. Vemo-nos
em breve. Aproveitem o meu desafio.
Pararam – sim, o trio de crianças parou e olhou para trás. Neve Negra
tinha desaparecido. Sentiram a terra tremer. Pânico era o que recomeçava a
consumir-lhes enquanto o barulho se aproximava cada vez mais deles.
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Queriam recomeçar a correr, mas a terra do outro lado também deu
azo a grandes tremores. Olharam para a silhueta das criaturas que se
aproximavam. Pelas antenas e as seis pernas, reconheceram-nas
rapidamente. Utu e Impi desataram a ridicularizar às gargalhadas. Iriam
ser desafiados por formigas?
– Rir para esta brincadeira é escusado – disse Arusha. – Se estamos a
ver as sombras de formigas assim tão grandes, quer dizer que há uma fonte
de luz aqui perto. E, se há uma fonte de luz, há uma saída.
– Sem hipóteses de saída – declarou Preta de Carvão, reaparecendo.
– Kisonde, Kasumuna, skwata!
– Tratem de parar de rir – mandou Arusha, enquanto Impi e Utu
gargalhavam da ordem de ataque que Makala dya Kixiketela dera aos
insectos.
– Vamos lutar então! – disse Utu em gracejo, empunhando a catana
que tinha apanhado. Impi seguiu-lhe o gesto.
Xícara de decisão precipitada – os próprios insectos eram gigantes –
sim, eram formigas dez vezes maiores que aquelas crianças, e
aproximavam-se velozmente enquanto ladravam. A primeira formiga
engoliu Utu e Impi na primeira emboscada. Arusha nem teve tempo de
gritar ou fugir porque pela outra formiga foi celeremente deglutida.
– Zero para este desafio – disse Neve Negra, batendo palmas com voz
chorosa. – Veremos como se sairão no outro.
•
A primeira imagem a ocupar o campo de visão de Ngola ao alcançar o
topo da montanha foi a de Sanzala a ser agarrada por um trio de criaturas
aberrantes que a arrastavam para uma abertura. Ao intentar apressar-se em
resgate, a marrada agressiva de uma palanka incomum impediu-o, no
mesmo instante em que Kazumbi voltava a face para ele em brio combativo.
– Eh! Essa é a minha filha – elucidou Ngola, em desequilíbrio
doloroso, intentando usar o seu poder exterminador. – Entreguem-ma!
– Irias sofrer muito se te atrevesses a me desafiar – intimidou uma
outra criatura atrás dele. Identificação: Kyala, o conhecedor das fraquezas
de qualquer entidade.
O idoso musculado suspirou, resignado. O desejo de salvar a sua filha
tinha de ser adiado, embora as suas mãos e o seu coração o obrigassem a
esmagar Kazumbi e Kyala como um par de insectos.
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PEDRA
B
● Brotando novos seres ●
–
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– Monstros é o que vocês são – disse Arusha, antes de avançar com
ímpeto assassino na direcção de Orvalho Arco-Íris – então, como monstros
devem ser tratados.
Nua e incompreensivelmente bela, Arusha atacou sem piedade a irmã
de Makala dya Kixiketela. Nvula intentou defender-se e causar-lhe extrema
dor para impedir a continuidade insultuosa daquela querela mas –
impossível – viu o seu próprio braço a solidificar-se em gelo e a ser
arrancado por ela.
– Para, mana. Mana, para! – foi o que Utu gritou ao ver o punho de
Arusha a dirigir-se para a face de Nvula com extrema fúria.
Quebrado – rectificação: completamente quebrado em pedras
disformes de gelo – foi assim que ficou o rosto de Orvalho Arco-Íris após
receber o soco substancial de Arusha. Prostrado – nova informação:
deitado de costas para o chão e sem fôlego – foi desta forma que o corpo de
Nvula ficou por um tempo.
– Respeito é uma resposta que o nosso peito dá quando gosta do jeito
da pessoa sã nos tratar e ser tratada – disse Arusha em resfôlego para a sua
oponente, com o olhar marejado. – Se não sinto isso por ti, para mim não
és nada.
– Sabotaste a vida de uma pessoa, mana?! – demandou Utu,
enquanto cobria o corpo de Arusha com uma grande peça de roupa. –
Agora és o quê assim? O que é que vão nos fazer?
– Tenho tantas dúvidas quanto as que tens, mano – respondeu ela,
levantando-se. – Se calhar, tenho mais até...
– Vens me atacar com esse tipo de poder como?! – imperou Nvula,
agora distante dos três, enquanto o seu corpo se recompunha, crescendo-
lhe outro braço e outra cabeça. – Foi o teu pai que te deu isso? Xosa, não
estava combinado eles ganharem poderes sobre-humanos neste
compromisso! – Suspirou cólera antes de inspirar calma. – Contudo,
tornou-se mais interessante para o que neste momento te professo:
sobrinha, morrerás com o corpo no avesso. Derrotei tribos inteiras que
vieram respirando desdém, intentando me fazer refém, mas, com apenas
um assobio, matei-os, não um a um, mas cem vezes a cem vezes cem.
Então, esquece a pergunta que te fiz; não preciso mais do teu cérebro nem
da tua boca. Vou atacar-te agora mortalmente apenas com a terça parte de
um terço da minha força.
Xosa apareceu de repente entre a sua irmã e os seus três filhos,
impedindo assim um desfecho funesto. Orvalho Arco-Íris respirou cólera
antes de suspirar contento.
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– Zero para vocês neste desafio – disse Nvula, retirando-se. – Verei
como se sairão com o vosso pai.
•
Apesar dos seus movimentos estrondosamente bruscos, a mulher de
nome Sanzala foi levada por Samanu e Wana na companhia de Kinguri.
Andaram por entre vários caminhos dentro da montanha até chegarem a
um local especial, onde estava uma desmedida mesa rudimentar de pedra
sobre o entroncamento da foz de um rio e a nascente de outro. Acima da
mesa, gravitavam nove pedras de diferentes cores – a maior era da cor do
fogo e a mais brilhante, verde e azul.
– É agora que me executas, Kinguri? – expos Sanzala em quesito. –
Estúpido! Extensivos são os prenúncios que dizem que, quando eu estiver
prestes a perder a vida, serei eu quem matará a Morte.
– Insurrecta! – indignou-se Wana, por ela se dirigir com
insubordinação para o seu líder. – Isto que tu e os teus familiares chamam
de Morte está a tentar salvar-vos! Imperioso é o motivo de estarmos aqui.
Ignoras ou conheces bem a lenda do Homem do Saco ter de ser substituído
a cada dez anos por uma criança?
– Oh, loucura! O que vês nas rugas que tenho? Observem com um
mínimo de atenção inteligente e entenderão que sou idosa demais para ser
uma criança sucessora. Ou estão a pensar em me enterrar viva para que
depois eu brote como um novo ser?
– Uma introdução – falou Kinguri com a sua voz de monstro – uma
introdução é o que o Wana quis fazer para entenderes que existem lendas
que, no fundo, contam a verdade. Única é a razão de estares aqui: descobrir
a lenda sobre a criação de Yamungi e Jokota.
18
PEDRA
C
● Conflito de interesses ●
19
– Somos mais antigos que a existência das tribos. Não somos
humanos, mas desconhecemos a nossa espécie e origem...
– Tem um mais potente? – interrompeu Utu em pungente
curiosidade. – Quem entre vocês é o mais forte?
– Vais pedir que o pai responda a uma pergunta tão parva quando há
coisas mais importantes e urgentes por se saber? – demandou Arusha.
Xosa olhou para os seus filhos e foi acometido por uma emoção
inexplicável. Lembrou-se que ele e suas irmãs também eram três, assim
como aquelas crianças, mas nunca haviam tido uma conversa com o seu
pai. Nunca o tinha visto, muito menos entendia a sua personalidade. Por
isso, fez gesto para que os seus filhos se sentassem. Arusha sentou-se à sua
esquerda e pôs a cabeça no colo dele. Impi sentou-se à direita e pôs a
cabeça no seu peito. Utu sentou-se atrás dele e pousou a cabeça nas suas
costas. Ele pousou as mãos sobre a cabeça de Arusha e Impi e descansou a
nuca na cabeça do Utu.
– Zero para vocês neste enigma – desconsiderou Xosa, suspirando
com brio paternal. – Vou vos contar uma luta para saberem se entre mim e
as vossas tias quem é o mais forte, antes de continuarmos com a vossa
morte...
•
– A tua especialidade em conhecer a fraqueza de qualquer indivíduo
não faz de ti o vencedor de qualquer batalha, Kyala – argumentou Ngola,
afectado pelo pensamento das possíveis atrocidades que fariam à Sanzala.
– Estás mesmo a querer desafiar-me?
– Irias fazer o mesmo se estivesses no meu lugar. Intentam fazer mal
à minha filha. Irei impedi-los, nem que para isso tenha de te mostrar quem
eu sou realmente.
– O prazer que eu teria em te derrotar seria imenso, no entanto, não
estou aqui para lutar, mas ele, que vem agora atrás de ti, está.
Um estrondoso barulho entre o arvoredo e o capim foi o que se ouviu.
Uma chama começou a queimar as árvores e tudo ao seu redor ruiu.
Untando-se rapidamente, Kyala colocou-se de joelhos, prestando
homenagem à entidade que se aproximava. Urgentemente assustador –
Ngola olhou para si mesmo e viu que seu corpo ficava cada vez menor,
minguava. Um grupo de duas dezenas de palavras ele deixou Kyala ouvir,
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antes de agir em conformidade com elas, visto que o seu corpo passou, num
ápice, de idoso para criança.
– Bem, com este conflito de interesses em salvar a minha vida para
salvar a da minha filha, agora posso apenas fugir…
21
PEDRA
D
● «…deus ateu…» ●
22
– Retalha-o, irmã, mas deixa uma parte para mim – imperou Neve
Negra, recompondo-se, contudo, o seu coração que voltara a crescer tornou
a explodir.
– Se és um deus que acredita em vitória numa luta contra mim –
verbalizou Nvula, enquanto fazia aparecer enormes jibóias famintas que
possuíam três chifres e inúmeros dentes – então és um deus ateu.
Tenebroso – terminadas as palavras de Nvula, a cabeça dela rolava
sobre o chão – o homem arrancou-a, batendo-lhe fortemente com o fémur
que retirara do seu próprio esqueleto. As três formas corpóreas do homem
juntaram-se, era novamente um, e as jibóias desvaneceram-se com o vento.
A sua pele áspera perdeu a cor vermelha e o seu rosto ganhou outra
aparência, fazendo com que Neve Negra o reconhecesse.
– Xosa?! És tu?! Como é que... – uma terceira explosão do coração
interrompeu-a, enquanto o homem voltava a arrancar ferozmente a nova
cabeça de Nvula.
Ziguezagueou correntes no corpo de ambas e começou a arrastá-las
com um sombrio brilho nos olhos – sim, Xosa era o imbatível vencedor.
•
– Assim queres que acredite em ti, Homem do Saco? – afrontou
Sanzala, atribuindo ateísmo ao deísmo que o outro tentava argamassar. – A
razão de me ajudares, qual é?
– Eu sou aquele que te está a dar grande parte da solução dos
problemas da tua tribo, e ainda assim me questionas?
– Ingénua não sou, nunca fui e nunca serei, e, interpondo inteligência
na continuidade desta minha indagação anterior, não te fiz nenhuma
questão que mereça uma pergunta como resposta.
– O tempo para te dar soluções acabou, filha de Ngola – organizou
em conclusão abruta, untando a si e aos seus lacaios, enquanto fortes
chamas se encaminhavam para a gruta. – Ordeno-te para o teu próprio
bem: foge!
– Única coisa que me pode tirar daqui são as respostas ao que vim
procurar.
– Basta de ser teimosa, Sanzala! Bem sabes que não se pode resistir
ao poder dele. Bastante improvável era, mas Kilembeketa, o criador de
Yamungi e Jokota, chegou até aqui!
23
Curiosidade encheu o coração dela. Correu-lhe na mente a ideia de
ficar, contudo, olhou para o seu corpo e viu que este ganhava aspecto
infantil. Computou o tempo e desejou ficar ainda assim para contemplar
aquela poderosíssima criatura e importuná-la com um extensivo
interrogatório, mesmo que isso significasse desaparecer para sempre.
Contra-resposta: para que não morresse, foi retirada à força por uma das
palanka que a abocanhou e saiu galopando.
Mahezu pedi
24
PEDRA
F
–
● Franqueza ●
25
– Vais persistir na insistência de que pode haver benefícios salutares
nos ideais do teu rapaz por mais que eu te mostre que não. Desisto.
– Xosa é um menino brilhante, Jokota.
– Zelo infundado é o que tens, Yamungi, contudo, vou apreciar os
acontecimentos à distância. Todavia, tenha em mente a certeza de que,
quando não me conseguires localizar, é porque matei o teu Ditadi.
•
A intensidade do calor atrás de Ngola era alucinante e a velocidade
que ele levava fugindo dela, evitando a inusitada querela com Kilembeketa,
era cambiante. Atónito, ouviu um barulho à frente de si; atribuiu-o
acertadamente a um animal colossal com um frenético e feroz frenesi.
Ele, embora estivesse, no momento, com corpo de menino, elevou-se
em formação de batalha ao ver alguém andando à frente da gigantesca
besta.
– Inclinas-te perante mim ou lutas? – inquiriu o alguém com o olhar
ferino e posição de incursão sinistra.
– O que pisa nestas terras deve reverenciar-me – ostentou-se ele com
franqueza homicida. – Ordenando-me submissão, chegas a insultar-me.
Um forte golpe contra o seu estômago foi o que Ngola sentiu naquele
instante. Urdiu sorrir ao ver que era uma rapariga o seu ponente, enquanto
a sua mão relampagueava e golpeava duas vezes a carótida dela sem
misericórdia aparente.
Brilhou o olhar da rapariga no exacto momento em que os seus
dentes e as suas unhas ganhavam a mesma veemência. Belígera
concorrência – foi então que ele viu que tinha de atacar em defensiva
violência.
Cataclismo – o corpo de Ngola entrou em confusão. Cada um dos seus
membros não sabia como agir. Concluiu em reconhecimento alegre: com
aquela forma de atacar, aquele poder, só podia ser uma pessoa – aquela
rapariga era Sanzala, sua filha.
Drástico – Kyala apareceu por trás dos dois de rompante, golpeou-
lhes o que era a fraqueza de qualquer ser vivo – a memória – e dirigiu-os de
volta à sua tribo, mas por caminhos diferentes.
26
PEDRA
G
● Gerenciando o ataque ●
27
– Simplesmente, porque eles sentem a nossa presença a milhares de
quilómetros, o que torna impossível qualquer aproximação.
– Terá que objectivo encontrarmo-los? – perguntou Utu. – Vamos
achá-los para quê?
– Vão entender depois – adiou Xosa. – Eles representam um perigo
inimaginável. Mas vocês próprios devem descobrir como e qual. Contudo,
quando os descobrirem, deixem que eu e as vossas tias tomemos conta do
assunto.
Xosa levantou-se. Arusha e Utu fizeram o mesmo. Xosa endireitou as
roupas dos seus filhos e começou a encaminhá-los para uma saída. Ora,
Nvula e Makala dya Kixiketela ouviam atentamente a conversa deles
escondidas nos bastidores e, no fim, as palavras que Orvalho Arco-Íris disse
à Preta de Carvão deixaram-na aturdida:
– Zulu e Herero estavam aqui a espiar-nos por instantes. Não os
deixámos cegos com os outros?
•
– Aonde vai a insensatez que está a governar as tuas acções? –
adjectivou a obscuridade da criatura que auferia luminosidade à gruta com
chamas assombrosamente dissipadoras.
– Era para ser simples, Nga Kilembeketa – explanou Kinguri,
ajoelhado e untando, com o rosto inclinado para o chão. – Estes segredos
que gerenciam arriscadamente o ataque complicaram tudo. É a vida dos
dois Entes que está em jogo!
– Iluminas-te de insanidade dizendo isso. Incondicional é a salvação
de todas as tribos, e te preocupas com apenas dois Entes?
– O que sinto é que, sem os dois Entes, a existência das tribos deixa
de ser importante para mim…
– Um baralhado é que o és! Ultimamente não tens feito jus ao
privilegiado cargo que recebeste.
– Bem, perdoa-me, Nga Kilembeketa, mas, basta olhar com atenção
para mim para se perceber que, pelo que preso, sou uma criatura
susceptível a encaminhar-se para o egoísmo, assim como tu também o és.
– Com certeza sabes que os dois Entes planearam o bem para todos.
Controla-te, visto que foi uma escolha deles. Como essa escolha tem o meu
consentimento, conclua que o teu bem também está envolvido.
28
– Desejo muito deliciar-me desta lógica fria que tentas me fazer ver,
mas o meu coração não pode ficar impávido ao risco de aqueles dois
desviverem.
– Falarás isso se eu for aí agora ter contigo face a face? – fabulizou em
comedida ameaça, fazendo Kinguri engolir pavor. – Faço esse diálogo
contigo neste momento através da minha sombra e nem consegues ficar de
pé. Far-me-ei presente pessoalmente se não desistires imediatamente.
Fenecerás então, e aí veremos como protegerás beltrano ou fulano.
29
PEDRA
H
● Hipopótamos e elefantes ●
30
qualquer sentido e, se tivesse, ao menos morreriam com os estômagos
cheios.
Terminado o banquete, Dyakizeu e Kalumbi despediram-se dos três
amigos de tamanho colossal, levando as galinhas restantes em cestos
artesanais.
•
A rapariga que lutara contra Ngola andava atordoada por entre as
árvores. Ainda assim, antes que tivesse algum descanso, uma criatura
feminina de pele nocturna, brilhante, apareceu à sua frente.
– Eloquente e rebelona criança – elogiou a criatura em saudação –
em cima do chão pouse, por favor, essas pedras que te puseram na mão.
– Impossível: isso nunca mostrarei a intrusos nem a estranhos!
– Olha bem para mim – objectivou com a face bem perto da outra. –
Observas estranheza em mim? Olvidaste que somos familiares?
Um abraço foi o que ela deu à criatura ao reconhecê-la totalmente.
– Braços à volta da tua cintura não resolvem o que queres resolver.
Bem sei disso – bafejou a rapariga em tristeza, largando a outra.
Colocou as nove pedras sobre o chão. Como esferas, oito pedras
giraram à volta da pedra maior e – cativante – conquistaram a aparência de
guerreiros, correram até à pedra maior e colheram dela o que parecia ouro,
contudo a pedra azul e verde ganhou a cor preta e vermelha.
– De que proveito me é ter essas rochas se não sei o significado disso?
Fria, antes de se retirar, a criatura deixou-a ouvir a seguinte frase:
– Gostarias que te facilitasse, Sanzala, mesmo sabendo que eu, Neve
Negra, deixo que hipopótamos e elefantes descubram o seu potencial
sozinhos?
31
PEDRA
J
● Jogada imprevisível ●
32
aterrador em demasia – uma silhueta colossal e monstruosa, em insondável
melancolia, derrubou Dyakizeu e Kalumbi, fazendo-os cair inertes em
sensaboria – sim, a queda apagou-lhes os sentidos com taquicardia.
Xinguilamento – foi isso o que atacou o corpo de Muhongo ao ver os
seus filhos tombados. A besta avizinhou-se dela e abriu a sua boca
monstruosa que tinha todos os dentes cerrados.
Zénite do desespero – a criatura colocou Muhongo na boca e saiu
galopando entre as densas moitas, apesar das pedras e das estacas que
homens, mulheres e crianças lhes lançavam ao saírem das kubatas.
•
– Assim almejas altercar comigo? – arrazoou Ngola com a entidade
atrás de si. – Após ela te ter expulsado do óvulo há milhares de anos, fui eu
quem te apresentou a tua irmã; o ensejo de te vingares, fui eu quem te deu.
– Ela está a demonstrar ser agradável, em benigna medida, então não
a elimino.
– Isso quer dizer que a perdoaste? Inclinaste-te para o lado dela nesse
plano louco? Invade-me de respostas à vontade. Individualidade nenhuma
nos consegue ouvir aqui, inclusivamente o Kyala que acha,
ininteligentemente, que fez algo contra as minhas lembranças.
– Uma pergunta antes de te responder: Urdiste o teu plano tendo o
Zulu como base; porquê?
– Bem, isso é algo que apenas o tempo demonstrará...
– Como bem sabes, o teu plano é melhor do que o meu plano e muito
melhor do que o plano da dya Kixiketela. Com certeza, tenho que estar
contigo, contudo mereço maiores esclarecimentos.
– Desta vez não, menina favorita...
– Fabrica-me um favor então – falou, fagulhando insatisfação – faz-te
rapidamente presente na tua aldeia; fartas já são as peças para que o teu
povo entenda bem o que se passa.
Gargalhou o Ngola grotescamente, ganhando sinistralidade à jogada
imprevisível que solicitaria a seguir.
– Há uma coisa que te quero pedir também: Hílare Nvula, no fim,
deixa o teu irmão para mim.
33
Mahezu tharo
34
PEDRA
L
● Luto ●
35
Sem ter como se livrar do iminente afogamento, as três crianças
deixaram-se guiar pelos gigantes de tromba. Não demorou muito tempo e
eles e os animais já estavam fora do rio, respirando alívio extenso.
Trombas jorraram água para os céus em refolgada celebração. Ainda
fracos, os filhos predilectos de Xosa voltaram a montar os elefantes como se
fossem seus animais de estimação.
Volvidos minutos, o trio viu correr na sua direcção uma besta pesada
que parecia galopar com intentos assassinos. Os elefantes e os hipopótamos
levantaram as patas e as presas – em aniquilamento? Não – em respeito;
prestaram homenagem à besta como se fosse o seu soberano e eles, o seu
exército.
Xícara de chá efervescente – havia um ser humano desmaiado dentro
da boca da besta. Ela pousou-o sobre o chão calmamente. Impi desceu do
elefante e viu que o ser humano era uma mulher desmaiada, inconsciente.
– Zambi, vem em nosso auxílio – disse ele com os dedos entrelaçados
e os olhos fechados. – Não sabemos o que é isso tudo, mas sabemos que
estamos de luto.
•
A mente atroz de Makala dya Kixiketela estava abatida, arrasada.
Agonizada, lembrava-se do seu plano. Atribuía insignificância à conjectura
de se seria entendida ou não. As pessoas conheciam-na como má, outros
chamavam-na de Morte. A verdade era-lhe irrelevante.
– Eu acho que o ser com o qual te deves abrir sou eu – elegeu-se
Nvula, chegando de rompante.
– Intrinsecamente sou o problema, irremediavelmente sou a solução.
Isto dito, não preciso de mais ninguém, irmã da importunância.
Obstrução – a presença rubra de Ditadi Xamavu interrompeu-as. O
seu olhar parecia ter um brilho ostentosamente obnóxio.
– Uma verdadeira família é o que somos – unificou ele, abraçando-as,
causando-lhes admiração uníssona. – Ultrajante seria se eu agora não vos
agradecesse amplamente por seguirem à risca o que vos orientei.
– Bem sabes que os nossos Yamungi e Jokota são muito mais
inteligentes – baseou Nvula, abraçando-o em resposta. – Biltre contra ti
mesmo é o que estás a ser.
36
– Com o tempo saberás que soluciono qualquer coisa. Coloque como
imutáveis estas minhas palavras na tua substituível cabeça: conquanto
pareça que estou a perder, estou na verdade a ganhar, sempre.
– Dentre os filhos dos nossos pais és de longe o único que não se lhe
pode atribuir a palavra despretensioso – desdenhou Makala, soltando-se
dos braços gélidos dele.
– Faço, no fundo, o que é para o bem de todos nós, mesmo que seja o
mal – falou ele com brio visceral.
– Gosto desta tua confiança – galanteou Nvula, gastando dois beijos
na face dele. – Gostaria que te preparasses mais para suportar um encontro
com Yamungi e Jokota, se é que isso algum dia acontecerá. Grandes são os
contos que apregoam que Yamungi não abre a boca, mas a sua voz pode ser
ouvida há milhares de quilómetros apenas por quem tem poder suficiente
para o ouvir e que ele pode converter o som em energia capaz de destruir
todas as tribos apenas com um suspiro. Garbosas são as histórias que
contam que Jokota pode fazer um dilúvio de água escaldante cair dos céus,
mas ela mesma nunca ficar molhada. Gaiatos falam até que ela já fez cair
uma tempestade tão quente quanto o sol.
– Haverá então nestes teus beijos uma tentativa de te preparares para
o luto deste teu irmão, ndenge yame kabasa?
– Já chega de conversa negativa, Neve Negra – jogou Ditadi em
conclusão. – Jarretem as vossas tentativas de me demoverem dos meus
intentos e venham, venham observar o desenrolar apocalíptico do meu
plano agora….
37
PEDRA
M
● Manobra de inversão ●
38
– Vão então só já buscar as coisas que vos pedi. Também trazem o
garrafão de kimbombu que escondi na cozinha. Pra vocês beberem,
arrancam folha de kapungupungu e jindungu. Os dois litro são meu.
Xosa, Neve Negra e Orvalho Arco-Íris estavam a espiá-los. Leram o
coração de Muhongo, sorriram.
– Zero já não é uma nota que lhes podemos dar – disse Xosa em
alegria vibrante. – Agora começaram a subir.
•
– As pessoas que queres impedir estão a tentar proteger algo maior –
adensou Wana, após Kilembeta dar azo à sua própria ausência naquela
gruta. – Almejas mesmo fazer isso?
– Eu é que mando, não os dois Entes.
– Irmão, somos todos uma família – incitou Samanu. –
Impressionante é lembrar que também concordaste com o plano deles.
Incompreensível é ver que agora mudaste radicalmente de ideia.
– O resultado final do plano é doloroso demais…
– Um dia de cada vez, irmão. Ultrapassado é o pensamento de se
viver todos os futuros possíveis num presente mutável.
– Brilhantes palavras, mas põe-te na minha situação. Baterias palmas
a isso, Samanu? Brindarias com euforia, Wana?
– Comparar situações, às vezes, é um absurdo – contrapôs Wana. –
Computando a alegria ou a tristeza do dia, eu poderia agir de modo igual ou
pior que tu nesta situação, contudo o que está em jogo não é a nossa
reacção individual, mas a preservação de todas as tribos.
– Deves pensar nas crianças que desaparecerão se impedires isso –
dardejou Samanu. – Dirige os teus pensamentos para o colectivo…
– Fraco demais estou para pensar com nobreza – falou Kinguri em
franqueza. – Fraco e carnal, e os carnais defendem apenas o que é seu.
– Grande Kinguri, terás de conviver com a tua própria consciência
depois disso – golpeou sentimentalmente Wana.
– Haverá amargura ou felicidade em ti depois, se impedires? –
hipotecou Samanu.
Jorraram suspiros e raiva antes de Kinguri voltar tornar audível a sua
voz de monstro com uma manobra de inversão.
– Libertem os vossos poderes e ataquem Ngola e Sanzala para que
não entendam o plano.
39
PEDRA
N
● Nobre filho ●
40
•
– Agora sim podemos falar punho contra punho, se não me
devolveres estas pedras – afrontou Samanu, em sua forma crocodílida, ao
encontrar-se com Sanzala num precipício.
– Eh, foi o teu próprio líder que mas deu e, se tens a certeza que
queres lutar contra mim, basta me atacares!
Impressionante – nem as palavras tinham terminado de sair da boca
dela e ele já subia e caía por entre as árvores, sangrando.
– O envaidecimento leva sempre ao trambolhão – orquestrou ele em
velocidade estonteante, agarrando o pescoço dela com a sua forte cauda.
Uma dor sufocante foi o que Samanu sentiu – ultrajante: ele apertava
o pescoço da sua oponente, mas era ele quem sufocava, por isso, largou-a.
Bafejou com ira – Samanu abriu a sua enorme bocarra e agrediu o
braço de Sanzala com uma esmagadora mordida, mas sentiu que trincava
pungentemente o seu próprio braço.
– Com estes ataques animalescos só farás mal a ti próprio – contou
ela, após ele a ter soltado. – Combate contra mim na tua forma de homem.
– Darás um bom cadáver – disse ele, ganhado a forma colossal de
guerreiro humano.
Formidável – Samanu fechou os olhos e, sem se mover, Sanzala foi
rasteirada, socada e projectada incontáveis vezes para o chão.
– Golpes apenas de ensaio, nobre filha de Ngola – gozou ele em
posição ofensiva. – Gostarás de sentir os golpes finais?
– Há algum medo prazeroso sendo demonstrado por mim?
– Já se nota o vencedor, não achas?
– Levarás apenas derrota daqui – limitou ela, deixando ribombar o
trovejar dos seus dentes e o relampaguear das suas unhas.
Mirabolante – Sanzala viu uma enorme enxurrada de um rio a
aproximar-se de si pelos flancos e, quando a tentou esquivar, um
embondeiro abalroou-a por cima, fazendo-lhe cair do precipício.
41
PEDRA
P
● Perda ●
42
•
Atribuladamente auspicioso, Ngola estava sentado na sua omangu.
Afluíam reflexões à sua mente sobre como reencontraria a sua filha e
transmitiria à sua tribo o que parecera ter descoberto.
– Estou a sentir que alguém inimigo está a aproximar-se daqui, caro
Ngola – embargou-lhe o Mwata.
– Irracional! Introdução sobre a minha presença é inútil – instou
Wana, instaurando-se repentinamente no meio deles em forma de
Kazumbi. – Intocável e invencível é o que sou.
– O que queres é paz ou guerra, oscilante criatura? – obsequiou em
afronta um dos Kilama.
– Uma pergunta ousada, mas não é contigo que quero… a guerra.
Breve foi o instante que levou para Wana estar cercado por uma
multidão de Kota e um exército de Kilama. Bravura em mente insana – os
súbditos de Ngola entesaram os seus xuxu, azagaias e outras artesanais
armas.
– Centenas contra um? – contabilizou Wana em escárnio. – Contenda
injusta, não? Colocaria equilíbrio se fossem centenas contra apenas meia
metade da minha mão…
– Deixem-no – demandou o Ngola, doando verticalidade ao seu
corpo. – Dêem o privilégio de ser esquartejado por mim a este ser vivo que
já parece morto.
– Folgo em saber que te sentes forte, mas tens agora o corpo de
criança. Farás o quê numa luta contra alguém milhares de anos mais adulto
que tu em intemperança?
– Gostarei de ver a tua face quando descobrires que, num passado
mui distante, eu é que fui o teu treinador.
Houve nuvens negras em forma de onças rondando a arena no
mesmo instante – as nuvens eram dez vezes maiores que Wana e tinham
olhos de fogo, dentes lunares e garras de diamante. Ngola sorria. Os seus
dentes trovejavam. A multidão de Kota e o exército de Kilama correu em
fuga para se protegerem daquele poder fulminante. Wana nada fazia.
Apenas fagulhas de seus olhos esvoaçavam.
– Já sei que vieste aqui com a ideia que eu não demonstraria o meu
verdadeiro poder, Kazumbi. Jorraste engano para ti ao pensares assim.
Levou algum tempo para que Wana notasse que estavam dentro de
uma cárcere esferal criada por Ngola e que ninguém notaria aquela
43
estrondosa emanação de poder. Lentamente, Ngola sentou-se na sua
omangu e deixou que as nuvens negras em forma de onça atacassem o seu
oponente a bel-prazer.
Multiplicou as suas forças o Kazumbi; mistificou a gravidade e tudo,
para cima, começou a subir. Magnificentes e monstruosas eram as najas
ígneas que ele fez aparecer com máscaras de mukixi. Mortal – as najas
intentaram atacar Ngola, mas as onças foram notavelmente mais rápidas
em abocanhar Wana em malefício. Manobrando em retaguarda, as najas
serpentearam para tentar ajudar o seu dono, visto que, a cada mordida, ele
perdia grandes pedaços do seu corpo que parecia intangível. Momentos
antes do derrotado ser completamente dilacerado, o seu oponente, mesmo
sem mexer a boca, manifestou-se em timbre audível.
– Ngola é o vencedor.
Mahezu nne
44
PEDRA
Q
● Querela ●
•
– Ah! Assim, desta forma asinina, fazes o que te pedi? – abalroou
Kilembeketa a Kinguri, aparecendo novamente na gruta.
45
– Eu enviei o Samanu e o Wana para os amedrontar – esclareceu,
escorrendo unção ao seu corpo e prostrando-se.
– Irresponsável! Intrínseco é-te o conhecimento de que uma querela
directa contra aqueles dois serviria para despertar o poder que eles não
podem saber que têm…
– Ó Nga Kilembeketa, olvidaste que eles sabem, omitindo para todos
o…?
– Uma verdade acabaste de expor agora – ultrapassou-o em
interrupção hegemónica. – Unilateralmente queres que eles ajam segundo
o plano dos dois Seres, não dos dois Entes. Ultrajas o teu cargo desejando
que eles sacrifiquem o que é deles para preservares o teu?
– Bem, tenho de tentar de tudo pelos que são por mim benquistos…
– Castigo é o que mereces: Colocarei fora de ti todos os poderes que te
conferi!
– Drástico seria para nós e para ti – dardejou em ripostar contido,
depois de Wana e Samanu chegarem e se untarem. – Destruirias tudo se
tomasses essa acção, porque precisas do poder de todos para que
sobrevivamos.
– Falas como se não fosses o Homem do Saco. Francamente,
consegues ser muito mais sapientemente que isso. Farei a entrega dos teus
poderes a outro que desempenhará melhor o teu papel.
– Grande Kilembeketa, gastarias tempo em vão para que este outro
tenha a experiência que só eu tenho neste nível.
– Há muita coisa que sou capaz de fazer que ainda desconheces.
– Já sabes que não pretendo perder ninguém!
– Loucura! Lembra-te: longa foi a assembleia onde tudo foi discutido
e ficou decidido que o plano dos dois Entes é o melhor!
– Minha memória me diz que não, grande Kilembeketa!
– Não há nada em contra-argumento – notificou, intensificando o
calor magmático das suas chamas. – Nulos tornarei todos os poderes que te
dei a partir de agora!
– Perdoa-me – precipitou-se em lágrimas. – Partimos agora,
Samanu, Wana. Pela vida dos dois Entes, juro não voltar a me intrometer
neste assunto, Grande Kilembeketa.
46
PEDRA
R
● Risos chorosos ●
47
•
– A forma como falas com o Kinguri – analisou Nvula em riso,
untada, aproximando-se de Kilembeketa na gruta – até parece que não
foste tu que lhe ensinaste a pôr em primeiro lugar a família.
– Ele tem de ser controlado. Estragará tudo se não for…
– Impossível! Intentas me fazer crer que tanto tu quanto eu não
sabemos que o que ele está a fazer também está no teu plano oculto?
– Oh! Ornamentas uma questão assim, ocultando que dentro do meu
plano oculto há um plano oculto teu?
– Uma vez te procurei para me ajudares a unir a minha família,
ultrapassou-me a ideia de que encontraria todos esses outros problemas.
Um suspiro de Yamungi pode-me deixar morta – urdiu em explicação
melancólica.
– Bem sabes que não há uma família que só tenha soluções. Basta-te a
minha protecção para não temeres o que Yamungi pode fazer contra ti.
– Como estão os dois Entes? – coligou, com riso choroso de angústia.
– Darei tudo para te responder, depois de tudo estar solucionado
apenas…
– Falarei então sobre outra coisa. Farta estou de ouvir o silêncio da
dya Kixiketela. Fantasmagórico é o sentimento que tenho de que ela está a
levar um enorme fardo. Fazes-me o favor de me dizer em que é que a posso
ajudar?
– Gostaria que fosse mesmo ela a te responder, garota querida –
galanteou com sorriso triste.
– Há a possibilidade de salvares a Arusha e a Sanzala no fim disso
tudo?
– Já é do teu conhecimento quem são elas, já não?
– Literalmente já é, mas quando estiverem todos juntos e acordarmos
disso tudo, lamentavelmente elas já não existirão. Louvar-te-ia mais ainda
se as salvares.
– Menina, mencionares isso como solicitação é o mesmo que dizeres
que queres que salve o Zulu, o Herero e os outros…
– Notavelmente…
Ponderou, depois ele respondeu, permitindo a ela ficar com um riso
choroso de alegria:
– Querida menina, terás de trabalhar muito para teres a Sanzala e a
Arusha contigo.
48
PEDRA
S
● Soba ●
49
– Cala masé essa boca! – disse uma idosa de extraordinário porte. –
Eu sou Arusha. Vocês foram enviados pelos nossos inimigos, logo, sabem os
nossos nomes.
– De onde vocês vieram? – perguntou Utu. – Se nós ainda somos
crianças, como é que vocês já cresceram e têm filhos?
– Flechas e xuxu! – gritou uma mulher guerreira. – Atirem contra
eles flechas e xuxu! São mentirosos e intriguistas.
– Gostaríamos de lhes pedir desculpas se parecemos mentirosos –
ataviou Arusha – mas o nosso tata é o Xosa e a nossa mãe, a Yoruba. Somos
cinco filhos deles: Zulu, Herero, Arusha, Impi e Utu. E, um segredo que só
nós como irmãos sabemos, é que roubamos as galinhas da nossa mãe e
mentimos-lhe que é uma raposa que as leva. Também bebemos o kapuka do
nosso tata às escondidas.
– Há feitiço aqui! Há feitiço aqui! – exclamou o soba. – Como é que
sabem isso?
– Lamento, mas não é feitiço nenhum, Ngana Utu – continuou
Arusha. – Peço ao vosso Impi que olhe bem para o nosso Utu; verá que têm
o olho cego do mesmo jeito. Os sinais de corte de faca no rosto da vossa
Arusha são iguais aos meus. E com certeza o vosso Utu tem a mesma perna
manca que o nosso. Não é embuste, não é engano, não é mentira. É
incomum, mas é a verdade: Somos as mesmas pessoas, mas com diferentes
idades.
– Mentira! – exclamou a mulher guerreira. – Vamos ainda matar a
Arusha deles para ver se a nossa também morre.
– Não sejas estúpida – disse a Arusha idosa. – Se queres te livrar de
mim, aprende a cuidar bem do teu marido, nora tola. Vocês disseram que
ainda são crianças? Assim? Com esse corpo?
– Parece que o nosso pai nos escondeu por muito tempo que temos
poderes especiais – conjecturou Impi. – Transformou-nos em adultos e
mandou-nos para aqui com o objectivo de encontrarmos e derrotarmos os
dois seres mais fortes desse continente.
– Querem derrotar o Yamungi e a Jokota?! – admirou o soba em
quesito. – Vocês são muito fracos para eles! Há quilómetros de distância,
Yamungi pode atrofiar o ar do vosso corpo, deixando-vos desmaiados ou
mortos. Pode também evaporar o vosso sangue e depois fazê-lo chover em
gotas de fogo. Vieram com algum poder mais forte?
– Responde depois – disse Dyakizeu para Impi, chorando. – Tata
Utu, mama Muhongo, o Kalumbi morreu.
50
PEDRA
T
● Tesouro e Tesoura ●
51
– «O um a energizar ininteligentemente» – disse o Impi jovem – é
isso o que eu disse, e parece que estava certo.
– «Uma ameaça especial, implícita, ordinária» foi a minha conclusão
– disse o Utu jovem. – Agora parece tudo tão claro.
– Bocas abertas movendo-se com palavras de admiração não nos
servirão de nada neste momento – cortou Zulu. – Sei muito bem quem
vocês são, na verdade, como o meu irmão soba já disse, estávamos à vossa
espera. Tudo o que vos aconteceu, todas as transformações pelas quais
vocês passaram e os perigos que vos perseguiram até aqui fazem parte de
uma investigação do nosso pai para encontrar os dois seres mais poderosos
destas terras. O nosso pai sente que, de alguma forma, vocês três estão
conectados a esses seres, por isso, só vocês os podem encontrar. Eu percorri
o continente todo à procura deles. Parece que houve uma vez que me
aproximei deles sem me dar conta, e isso fez com que eu passasse de adulto,
idoso, à criança – mentiu com meias verdades. – Com isto, conclui que, na
presença deles, provavelmente, o tempo regride para humanos normais,
fazendo a idade deles recuar, talvez até se tornarem bebés, fetos, e, por fim,
desaparecerem, deixarem de existir.
– Com que objectivo o nosso pai quer encontrar esses seres? –
perguntou o Utu jovem.
– Dissipar, destruir, matar – respondeu a Arusha idosa.
– Fizeram o quê ao nosso pai? – interrogou o Impi jovem. – Fizeram
o quê ao continente? Esses seres são perigosos?
– Gostaria de ter uma resposta mais complexa para isso – redarguiu
Zulu – mas o nosso pai quer matá-los simplesmente porque eles são… os
nossos avós.
– Há loucura tomando a mente do papá – replicou o Impi jovem. –
Os nossos avós já morreram há muito tempo, e são pais dele! Ele quer
matar mortos?!
– Já chega dessa conversa podre – cortou Muhongo em cólera
lutuosa. – Zulu, se esses vossos avós têm poderes, vamos lhes encontra pra
eles devolverem a vida ao meu Kalumbi!
– Lamento muito por isso não poder acontecer – respondeu-lhe Zulu.
– Como disse, se nos aproximássemos dos nossos avós, todos nós
morreríamos.
– Mas os vossos pai nasceram como? – replicou Muhongo em
contínuo quesito. – Se estar com eles fosse assim tão perigoso, eles nunca
iriam lhes parir. – E se vocês são neto deles, vocês também não são dyala e
muhetu normal. Olhem pro meu Kalumbi. Vêem só o meu Kalumbi. Vão lhe
deixar assim até quando?
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– Não há nada que possamos fazer acerca disso porque encontrar-
lhes é impossível, mulher – respondeu o Utu idoso. – Nós não podemos
encontrar esses dois seres. Eles podem saber sempre onde estamos. Nós
não…
– Por favor, lhes encontra só, ngana marido soba. Kalumbi é meu
filho, teu filho também. Ele é muito importante para mim. Ele ainda é
criança. Podem tirar a minha vida e dar pra ele, por favor. Mas não lhe
deixem assim. Levantem o meu Kalumbi. Lhe fazem viver de novo.
– Quero tirar-te daqui à força para parares de interromper uma
conversa tão importante – disse uma rapariga imponente que acabava de
entrar para a kubata – mas entendo o teu luto. O que estamos aqui a falar
envolve a morte de todos nós…
– Rabo tá a te subir na boca por isso é que falas coisas mal cheirosas
até com a tua mais velha? – vociferou Muhongo.
– Sei que não consegues me reconhecer por causa do meu actual
aspecto. Voltei da minha viagem e descobri que toda essa loucura do avô
Xosa tem a ver com a lenda de Tesouro e Tesoura contada pelos nossos
antepassados. Sim, sou a Sanzala, a primogénita do Ngola Zulu.
Mahezu tlhano
Nome: Yamungi –
Tempestade Seca
Poderes conhecidos: Fazer
chover torrencialmente gotas de água
que podem alcançar a temperatura do
sol. Eliminar o oxigénio e o dióxido de
carbono da atmosfera. Pele
absurdamente quente que evapora
qualquer líquido.
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PEDRA
V
● Verdade ●
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– Zulu, diz ao teu pai que não moveremos nenhum dedo a partir
daqui até que ele nos leve de volta para casa – declarou Arusha. –
Queremos continuar a nossa festa, ver a nossa mãe, abraçar os nossos
amigos. Depois disso, voltaremos. Contudo, pai, acho que estamos a nos
precipitar em achar que os nossos avós são maus, mas isso é uma conversa
que teremos mais tarde. Nós já sabíamos dessa conversa toda. Era sobre
isso que conversávamos quando vieste com as nossas tias falar que nos
matarias. Há uma ameaça implícita, ordinária, nisso tudo. Estás a agir
ininteligentemente, pai, estupidamente. Eu, o Impi e o Utu temos poderes
que não imaginas, contudo, conseguimos esconder esses nossos poderes,
assim como tu. Eu sozinha posso obliterar-te num piscar de olhos, embora
o Impi me tenha aconselhado a extrair os teus poderes apenas.
Conseguimos nos fazer de tolos. Apagar a nossa própria memória e viver
como crianças normais. Só quando desejamos nos lembrar disso é que o
fazemos. Há coisas que vão além da tua compreensão. Se agirmos da forma
que pensas, vais obscurecer a Era, vais retirar a réstia de luz que ainda
temos como esperança de não morrermos todos. Sanzala, sobrinha, o Impi,
o Utu e eu somos três destes guerreiros. Agora temos apenas de encontrar
os dois restantes. Mama Muhongo, o Kalumbi voltará à vida para ti quando
formos embora daqui. Não, pai! Não adianta nos ameaçar de morte. Não é
possível nos matar. Mesmo quando perdemos a vida, não morremos. Leva-
nos para a casa, pai. Agora!
– Agora não será possível – disse Xosa. – Consegui entender que
vocês têm o poder de ver o futuro. Quem vos deu esse poder? Os meus pais?
Arusha, como é que conseguiste quebrar o braço da minha irmã em pedras
de gelo? Será que…
– Ela pediu para levá-los agora para a casa, pai – lembrou Ngola com
veemência. – Satisfaz o desejo dela agora.
– Intentas continuar a falar comigo assim? – inquiriu Xosa,
transformando-se em Granizo Vermelho. – Não sabes quem eu sou?
Perdeste o respeito?
– Ó avó – chamou Sanzala. – Para com essa tentativa de tentar impor
respeito por meio de medo. Lembra-te, se descendemos dos seres mais
poderosos deste continente, nós também somos poderosíssimos.
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– Ultraje! Makala e Nvula, vocês conseguiram enganar-me? Deram
poderes aos meus descendentes para eles próprios me matarem? Como é
que fizeram isso sem eu me aperceber? Mas já não há importância. Já
tenho o que queria. Eu consigo entrar nos vossos pensamentos e convencer-
vos a fazer o que eu quero, depois vos mato a todos!
– Bem, falando em entrar nos pensamentos dos outros – dizia Neve
Negra, rondando-o. – Eu estou na tua mente, querido irmão. Tudo o que
viste e fizeste agora é só uma ilusão. Estás na tua casa deitado aos meus pés
e eu estou a ler o teu coração. A Arusha tem razão. Há uma ameaça enorme
fora daqui. Contudo, há outra ameaça aqui dentro: tu. Mas não me apetece
explicar isso agora. Explicarei quando eu mesma entender que já é a hora.
Arusha, Impi e Utu, vocês queriam saber quem é o mais forte entre mim, a
vossa tia arco-íris e o vosso pai? Terão a oportunidade de ver isso sem
demora, porque a luta que ele vos contou é mais uma das coisas que iludi a
mente dele a ver.
– Com os vossos próprios ouvidos vocês ouviram essa manipuladora
– clamou Ditadi Xamavu, pungentemente enraivecido. – Juntem-se a mim
e a derrotaremos.
– Demos-te a oportunidade de te renderes, pai – disse Ngola,
enquanto todos ladeavam Granizo Vermelho em formação de batalha. – Já
que não queres, vamos agarrar-te e convencer-te a força.
Gélida de modo absurdo ficou a kubata devido ao extremo frio que o
corpo de Ditadi Xamavu começou a emanar. O dedo dele apontou para o
coração de Neve Negra e o coração dela explodiu. Arusha e os consigo
deram passos para o seu pai enfrentar, contudo, Orvalho Arco-íris colocou-
se entre eles e os impediu.
– Há muita diferença entre o teu poder e o meu, Nvula – disse Ditadi
Xamavu, irritado. – Queres mesmo enfrentar-me ou estás do meu lado?
– Já estou cansada de te deixar pensar que és mais forte que eu –
disse Nvula. – Contudo, se eu lutar contigo, talvez despertes a real ameaça
que há em ti. É melhor acalmar os ânimos – disse ao ver e ouvir o coração
de Makala voltar a explodir. – Deixa o coração da dya Kixiketela em paz,
por favor.
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– Levarei a tua cabeça cortada do teu corpo e o coração dessa maluca
para me divertir. Ela é má, horrenda, a pior coisa que a Humanidade já
conheceu, e tem de pagar pelos seus erros.
– Mana, controla-te. Não ajas impulsivamente, dya Kixiketela –
aconselhou Nvula a Neve Negra, ao ver que esta começava a ganhar
luminescência assassina.
– Não sou má como ele diz, ndenge yami kabasa. – disse Neve Negra,
chorando. – não sou má como ele diz. Sou pior. Muito pior!
Piscou o olho para Nvula e avançou com velocidade estonteante para
o seu oponente – sim, Neve Negra foi atacar Ditadi com expressão facial
sorridente. Arrancou o seu próprio coração e lançou-o na direcção de Ditadi
como um xuxu perfurante, mas ele fê-lo explodir em centenas de partes
equivalentes sem que o atingisse antes.
Quando Ditadi empreendeu o seu golpe mais feroz, Nvula dividiu o
corpo dele em três: ossos, músculos e veias. Neve Negra segurou-o pelas
vértebras do pescoço e levou-o para os céus, rompendo o tecto da kubata de
forma atroz e veloz.
Rapidamente, o corpo de músculos começou a atacar Nvula, enquanto
o de veias atacava Arusha e os com ela. A forma corpórea de veias dominou
a todos porque paralisou-lhes a circulação sanguínea. O corpo de músculos
socou Orvalho Arco-Íris de maneira intensa e pesada, mas ela recebeu
aqueles golpes sem fazer nada, apenas olhando para ele de forma fria.
Sangue sem circular por muito tempo poderia causar morte – Neve
Negra deu conta que se não se pusesse um fim àquela luta, Arusha e os
consigo teriam uma funesta sorte. Por isso, voltou a arrancar o seu próprio
coração e intentou colocá-lo na boca do corpo de ossos com extrema força.
Visto que os seus maxilares cediam, Ditadi decidiu pedir reforços. O corpo
de músculos e de veias juntaram-se ao de ossos, tornando-se novamente
um, contudo, a força de Neve Negra era tanta que Granizo Vermelho foi
obrigado a fazer algo incomum. Fez com que seu próprio coração subisse
até a sua própria garganta e impedisse o coração de Makala dya Kixiketela
de entrar. A insanidade de Neve Negra piorou: usou o fémur dele para o seu
coração empurrar. O fémur entrou pela garganta empurrando os dois
corações. O que se ouviu a seguir foram gemidos de Ditadi pelo estrago que
a explosão causou aos seus pulmões. Makala desceu com ele dos céus e fez
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sinal para Nvula, Arusha, Impi e Utu irem com ela sem dar explicações.
Eles obedeceram-lhe após se despedirem dos aldeões. Antes de
desaparecerem do campo de visão de todos, ouviram um breve discurso de
Xosa que estremeceu-lhes as convicções:
– Todos, ouçam-me bem: Eu nunca perco. Mesmo quando não venço,
não perdi.
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PEDRA
X
● Xosa, o desaparecido ●
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– Foi mesmo necessário colocar o teu coração dentro dele, dya
Kixiketela? – demandou Nvula, estando as duas sentadas sobre as nuvens.
– Gastas saliva com uma pergunta que já sabes a resposta? Ele está
quase a descobrir o poder que tem. A presença do meu coração no corpo
dele vai impedir isso durante algum tempo.
– Há várias coisas que não me contas. Não achas que já está no tempo
de me dizeres a verdade? Abre-te comigo. Sou tua irmã. Confia em mim.
Não podes carregar esse peso sozinha.
– Jorras estupidez com a língua e queres parecer inteligente? Sabes
tudo o que sei, a nossa mente é a mesma. Para quê te contar o que já lês nos
meus pensamentos?
– Lá no fundo sabes que precisas de desabafar. Podemos ter as nossas
diferenças, mas estou do teu lado.
– Muito obrigada pela preocupação, mas devias canalizá-la para o teu
irmão. Já notaste que ele não voltou connosco? Eu estava a segurá-lo, mas
ele desapareceu.
– Não foste tu que o fizeste desaparecer, pois não? Ou deixaste-o de
propósito no futuro?
– Por dentro e por fora sou negra, mas não tenho ideias tão obscuras.
Se o deixasse lá, estaria a assinar a destruição de todas as tribos.
– Quando o trazias, não sentiste outra presença poderosa perto de
nós?
– Tens a certeza que senti. E sei que, em breve segundos, sentiste que
ficamos mais jovens. Então, ambas sabemos o que aconteceu…
– Verazmente. Bem, isso é um problema que ele arranjou para si
mesmo. Ele quis encontrar-se com os nossos pais, e parece que conseguiu,
com apenas um deles, mas conseguiu.
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PEDRA
Z
● Zumbido aquoso ●
Zangadas pareciam estar as gotas que caíam do céu até aos corpos de
Arusha, seus irmãos e os amigos enquanto intentavam continuar a festejar,
todavia, as gotas, além de parecerem ter ficado furibundas, tornaram-se
mornas, depois quentes, escaldantes. Por isso, os filhos de Xosa e os seus
convidados correram para as kubata em busca de abrigo.
– Aqui só acontecem coisas estranhas? – perguntou Hembadoon. –
Primeiro pareceu que ficamos cegos, agora cai chuva quente do céu?
– Eu vou te responder o quê? – retrucou Utu. – O que te aconteceu
também me aconteceu…
– Impi, viste o Zulu e a mamã? – perguntou Herero.
– O tempo todo que ficamos aí a dançar e a comer, não.
– Umas quatro horas devem ter passado, e eles desapareceram por
tanto tempo? Se estiverem longe e não conseguirem se abrigar?
– Bem, já que não dá para ter a festa aí fora, aqui tem carne seca e
kapuka – apimentou Impi em desvio dialogal. – Vamos abater!
– Com a boca que a mamã tem? – perguntou Utu, mordendo um
pedaço de carne. – Vais assumir sozinho as consequências quando ela
chegar?
– Desta chuva acho que ninguém vai sobreviver. A kubata está a sair
fumo! – gritou Hukata. – Então, vamos comer e beber!
– Falou e disse! – gritaram Hilombe e outros jovens. – Kimbombu e
kombota pra nós! Carne seca de jiboia é só minha!
– Gostam muito vocês – disse Homa. – Eu quero ir na minha casa.
Quero os meus pais.
– Há como sair daqui, hã? – redarguiu Hembadoon em timbre
ameaçador. – Se queres se queimar sozinha, vai! Aqui essa bebida é que vai
nos queimar por dentro, antes de essa chuva nos queimar por fora.
– Já não basta serem crianças, ainda são estúpidos? – disse Arusha. –
Em vez de se preocupar com bebida, não deviam estar a pensar numa
forma de sobreviver?
– Lá vem essa kalumba a se armar em inteligente – ripostou Hilombe
em chiste. – Teu próprio irmão é que que deu ideia. Nós só tamo a
colaborá. É máli?
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Mal a rapariga tinha acabado de falar, um fortíssimo vento começou a
vergastar vigorosamente a kubata, abrindo uma brecha maior que a da
entrada.
Notaram ao longe uma silhueta caminhando em aproximação da
kubata, olhando para os lados, como se procurasse alguma coisa. Cada
passo que a silhueta dava, tornava a chuva e o vento mais fortes. Ora, todos
na kubata não notavam que os seus próprios corpos diminuíam de
tamanho.
– Parece ser a mamã – conjecturou Arusha.
– Quero muito que seja ela – disse Impi. – Mas não me parece que ela
seja capaz de estar a andar tão calmamente com um tempo estranho desse.
– Repara bem. É a mamã, não é Utu?
– Se a kubata está a sair fumo e a rasgar, achas que a mamã estaria
como?
– Tenho a certeza que é ela. Olhem bem!
– Vais fazer isso porquê? – dizia a silhueta, olhando para o céu, sem
ser ouvida pelos que estavam na kubata a centenas de metros à sua frente.
– Não te consigo localizar. Não consigo localizar o Xosa. Mataste o teu filho,
Jocota? Mataste-o? Não podes fazer isso. Por favor, não faz isso.
Xícara do impossível – Arusha Impi e Utu confirmaram: era mesmo
Yoruba, e, por mais que aquela chuva caísse sobre ela, o seu corpo estava
seco.
Fim.
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