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Ortodoxia , G. K.

Chesterton

Nascido em 29 de maio de 1874, G. K. Chesterton cresceu em um subúrbio de


Londres, no seio de uma família que, apesar de cristã, não pertencia
institucionalmente a nenhuma igreja, o que não a impediu, contudo, de batizá-lo logo
cedo na Igreja Anglicana.
G. K. Chesterton nunca foi o que se costuma chamar um “bom aluno”. De
temperamento sanguíneo, o futuro escritor não parecia adaptar-se bem a um estudo
planificado e pouco imaginativo. Interessavam-lhe mais a pintura e o desenho e, como
ele mesmo confessa, o ocultismo. Chesterton viveu, com efeito, um período bastante
delicado na história da Inglaterra. Foi precisamente nestes últimos anos do século
XIX que a ilha se viu invadida por uma onda de imoralismo, tanto na literatura
quanto nos costumes, e de doutrinas esotéricas, que eram a moda do momento.

Hereges
Na introdução de Ortodoxia, sua obra-prima, o autor afirma que aquele livro “é um
complemento” de Hereges. Assim, a precedência de Hereges estava clara para
Chesterton. O que levou Chesterton a escrever Hereges foi freqüentar clubes literários
na Londres fin de siècle, clubes estes onde se promoviam debates sobre as modas
intelectuais da época, ele começou a chegar a algumas conclusões. Eis a primeira
delas, sobre a qual ele nos conta em sua Autobiografia:

“A intelligentsia dos vagamente artísticos e anárquicos clubes constituía realmente um


mundo estranho. E a coisa mais estranha sobre esse mundo, imagino, era que, enquanto
ele pensava muito sobre o pensamento, ele realmente não pensava. Tudo parecia vir de
segunda ou terceira mão; de Nietzsche ou Tolstói, de Ibsen ou Shaw; e havia uma
agradável atmosfera de discussão de todas as coisas, sem qualquer particular senso de
responsabilidade de se chegar a qualquer conclusão sobre elas.”
Chesterton começava a notar que o ambiente intelectual reinante tinha abandonado o
senso comum e o tinha substituído por uma “atmosfera agradável”. Tudo começava a
ser aparência; a realidade das coisas passava ao segundo plano.
Em Hereges, por meio de vários paradoxos bem elaborados, demonstra a
inconsistência interna do pensamento e das ideias que se revelam nas atitudes do
homem de seu tempo e, sobretudo, do nosso. Trata-se de uma análise agudíssima
das grandes heresias modernas, essas formas de pensar que se tornam loucas,
justamente por serem unilateralmente racionais.
1. Hereges é uma série de ensaios filosóficos que Chesterton foi publicando no
jornal Daily News. Os ensaios consistem fundamentalmente em críticas
mordazes a alguns contemporâneos ilustres do escritor, sobretudo a Bernard
Shaw e George Wells, e num diagnóstico preciso e quase profético de muitos
males que, já em germe na distante Inglaterra do séc. XIX.

2. G. K. Chesterton se atém aqui ao significado etimológico do termo “heresia”,


que quer dizer “escolher”, “separar”, “dividir”.
3. Para Chesterton, herege é aquele que escolhe uma parte da verdade em
detrimento das outras, com as quais está conectada e por referência às
quais adquire sua força e sentido plenos. O herege chestertoniano, noutras
palavras, é o homem que não pode suportar a natureza muitas vezes
paradoxal da verdade, contemplada em sua deslumbradora integridade. É o
homem que vê, de fato, algo verdadeiro, mas não a verdade inteira.
Deixamos, pois, de perguntar-nos pelo essencial, e perdemo-nos no
secundário e acessório.

4. As heresias que, desse ponto de vista, Chesterton descreve neste livro


correspondem a grandes parcialismos, ou seja, àquelas formas de pensar que,
por enfatizarem uma só verdade, não apenas se tornam cegas para as outras,
mas desvirtuam aquilo mesmo que, ao menos em princípio, julgam defender.
São exemplos dessa forma de pensar gigantes literários da estatura dos já
citados Bernard Shaw, George Wells, mas também de Oscar Wilde e do
“anticristo” alemão, Friedrich Nietzsche.

Ortodoxia
“Muitas vezes me imaginei a escrever um romance onde um velejador inglês errasse ligeiramente
os cálculos de sua trajetória e viesse descobrir a Inglaterra sob a impressão de que era uma nova
ilha nos mares do sul. [...] Pois se este livro é uma piada, o feitiço se volta contra o feiticeiro. Sou
eu o homem que com a mais completa ousadia descobriu o que já fora descoberto.”
– G. K. Chesterton.

Ortodoxia (1908) é que se trata, como dito logo no prefácio, da autobiografia espiritual
de Chesterton, isto é, de uma descrição dos caminhos intelectuais que o levaram a
descobrir ou, antes, a ser descoberto pelo cristianismo.

Capítulo 1 - O Lunático.
Em resumo, esses primeiros capítulos expressam porque o mundo atual, apesar de
crer-se o mais racional de todos, é na verdade louco e suicida.
1. “O editor disse sobre alguém: “Aquele homem subirá na vida; ele acredita em si
mesmo [...] O senhor me permitiria dizer onde estão os homens que mais
acreditam em si mesmos? Pois tenho a resposta; conheço homens que
acreditam em si mesmos de uma forma mais veemente que Napoleão ou
César. Sei onde flameja a estrela fixa da certeza e do sucesso. Posso guiá-lo
aos tronos dos super-homens. Os homens que realmente acreditam em si
mesmos estão todos nos manicômios. A autoconfiança completa não é
meramente um pecado; é uma fraqueza.

2. Os modernos mestres da ciência muitíssimo se impressionam com a


necessidade de começar toda investigação com um fato. Os antigos mestres
da religião igualmente se impressionavam com essa necessidade. Começavam
com o fato do pecado — tão prático quanto as batatas. Alguns novos teólogos
questionam o pecado original, que é a única parte da teologia cristã que pode
ser realmente provada. Os maiores santos e céticos sempre tomaram o mal
positivo como ponto de partida de seus argumentos. Se é verdade (como
certamente o é) que um homem pode sentir uma felicidade requintada em
esfolar um gato, então o filósofo religioso só pode chegar a duas deduções:
negar a existência de Deus, como fazem todos os ateus; ou negar a união
plena entre Deus e o homem, como fazem todos os cristãos.

3. A imaginação não gera a insanidade; é a razão que o faz. Os matemáticos e os


bancários enlouquecem; mas raramente isso acontece com os artistas
criativos. Não estou, de forma alguma, atacando a lógica: só disse que o perigo
reside na lógica e não na imaginação. O que Dryden realmente disse foi: “Uma
grande mente está sempre próxima da loucura”; e isso é verdadeiro. É a pura
prontidão do intelecto que está sempre prestes a colapsar. E se os grandes
homens da lógica são muitas vezes maníacos, é igualmente verdadeiro que os
maníacos muitas vezes são grandes lógicos.

4. É o homem feliz que faz coisas sem sentido; o doente é fraco demais para o
ócio. São exatamente essas ações despreocupadas e desinteressadas que o
louco não pode compreender; pois (como o determinista) geralmente vê
causas demais em tudo. Leria uma conspiração nessas atividades vazias. Se
pudesse por um instante se tornar despreocupado, também se tornaria são.

5. De fato, o dito comum sobre a insanidade é enganador: o louco não é o


homem que perdeu sua razão, mas sim aquele que perdeu tudo exceto a
razão.

6. Podemos dizer em resumo que é a razão sem raiz, a razão no vazio. O homem
que começa a pensar sem os primeiros princípios apropriados enlouquece; ele
começa a pensar pelo lado errado. Nas próximas páginas precisamos
descobrir qual o lado certo. Mas podemos perguntar como conclusão: se é isso
que leva os homens à loucura, o que é que os mantém sãos? Ao fim deste livro
espero ter dado uma resposta definitiva — talvez muito definitiva para alguns.

7. O misticismo preserva a sua saúde. Enquanto há mistério, há saúde; quando o


mistério é destruído, surge a morbidez. O homem comum tem sido sempre são
porque tem sido sempre um místico. Ele permitiu o crepúsculo; teve sempre
um pé na terra e outro na terra das fadas. Ele sempre foi livre para duvidar de
seus deuses; mas, diferente do agnóstico moderno, também foi livre para neles
acreditar. Sempre se preocupou mais com a verdade do que com a
consistência. Se visse duas verdades que pareciam se contradizer, ele
aceitaria as duas verdades e junto com elas a contradição.

8. Assim ele sempre acreditou que existia o destino, mas também o livre-arbítrio;
que as crianças eram de fato o reino dos céus, mas que deveriam obedecer ao
reino da terra. Admirava a juventude porque era jovem e a velhice porque não
era. É exatamente esse equilíbrio de aparentes contradições que tem sido
responsável pela leveza do homem são. O lógico mórbido busca tornar tudo
lúcido, e só consegue tornar tudo misterioso. O místico permite que uma coisa
seja misteriosa, e tudo o mais se torna lúcido.
Capítulo 1 -

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