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RESENHA: “ORTODOXIA”, C. K. CHESTERTON

Por Eliel Vieira

Resumindo tudo o que eu teria a dizer sobre este livro em poucas palavras, Ortodoxia é um
livro único. Mas não tome “único” aqui apenas como aquele recurso lingüístico comumente usado por
escritores cujo sinônimo mais próximo seria “ótimo”. Não! Ortodoxia é de fato ótimo, porém ainda
assim é “único” – apenas Ortodoxia é do jeito que ele é.

Desde os primeiros séculos os cristãos sentem-se impelidos a responder a aqueles que levantam
objeções à sua fé. Os pais apostólicos também eram chamados de pais apologistas. Após sofrer ataques
racionais por todos os lados possíveis a partir do Iluminismo, os cristãos em resposta começaram a
deixar a defesa de sua fé cada vez mais sofisticada e abrangente.

Atualmente existem vários livros de defesa da fé disponíveis. No Brasil, onde apenas uma
micro parcela dos livros de apologética traduzidos, existem dezenas de livros nesta área disponíveis. O
problema é que após lermos três ou quatro destes livros percebemos que são todos, em suma, muito
iguais entre si. Quando muito temos apenas elaborações mais requintadas dos mesmos argumentos
escritos por Tomás de Aquino no século XIII. Ortodoxia, apesar de não ter sido concebido
originalmente como um livro de apologética (Chesterton chega a dizer que a “apologética” dava-lhe
preguiça), em minha opinião Ortodoxia é a maior defesa da fé cristã já escrita.

Ao pensar na relação de Chesterton com a defesa da fé, me lembrei de um ditado indiano muito
interessante contado certa vez por Ravi Zacharias1. Ele diz que existem duas maneiras de se colocar a
mão no nariz: a primeira é a simples e usual, flexionando seu braço e levando sua mão até ele; a outra
é a complicada, dando uma volta por traz da cabeça com uma das mãos e tocando o nariz pelo outro
lado. A moral deste ditado é que as pessoas as vezes preferem o caminho mais complicado ao simples.
De acordo com Chesterton, Ortodoxia é sua autobiografia, conta a história de sua peregrinação em
relação à ortodoxia cristã – não pelo caminho mais curto e usual, mas pelo caminho mais longo.

1
STROBEL, Lee. Em Defesa da Fé. São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 202.

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Nas palavras do autor, logo na introdução da obra: “Não consigo imaginar como este livro pode
conseguir não ser egoísta; e, para dizer a verdade, não consigo absolutamente imaginar como ele
pode conseguir não ser chato. A chatice, todavia, me livra da acusação que mais lamento; a acusação
de ser superficial. (...) Pois se este livro é uma brincadeira, ele é uma brincadeira contra mim mesmo.
Eu sou o homem que com a máxima ousadia descobriu o que já fora descoberto antes. (...) Ele relata
as minhas obtusas aventuras em busca do óbvio. Ninguém pode considerar o meu caso mais ridículo
do que eu mesmo o considero; nenhum leitor pode aqui acusar-me de tentar fazê-lo de bobo; o bobo
desta história sou eu, e nenhum rebelde pode roubar-me o trono. (...) Tentei fundar uma heresia só
minha; e, quando lhe de o último acabamento descobri que era a ortodoxia”2.

A capacidade de Chesterton de escrever coisas sérias na forma de piadas sem deixar a seriedade
da questão de lado é impressionante. Fazendo uso (principalmente) do paradoxo, Chesterton nos deixa
boquiabertos com suas idéias, e não raro arranca de nós um pequeno sorriso enquanto lemos os
capítulos de Ortodoxia. Ficamos ainda mais absurdados sobre Ortodoxia quando descobrimos como
esta obra foi composta. Diz-se que Chesterton ditava os textos a uma assistente de forma ininterrupta, e
que ele raramente fazia revisões do que escreveu.

Chesterton influenciou não poucos brilhantes do último século. Ghandi e Lutherking o liam
avidamente; C. S. Lewis o considerava seu pai espiritual e também é citado por vários escritores
cristãos mais contemporâneos. Philip Yancey, por exemplo, disse que se ele estivesse numa situação
de ter que escolher apenas um livro para levar para uma ilha deserta na qual ele permaneceria pelo
resto da vida, à parte da Bíblia, provavelmente sua escolha seria Ortodoxia3.

Não vou detalhar muito menos resumir nenhuma argumentação, crítica ou conclusão desta
obra. Cometerei um crime se fizer um mau resumo e se, a julgar pelo mau resumo, você decidir não ler
esta obra. Posso adiantar aqueles pontos que são cutucados pela vara curta de Chesterton nessa obra:
ateísmo, materialismo, calvinismo, algumas posições políticas e, principalmente, a teologia liberal.
Chesterton os critica, mas não como um ortodoxo que sempre esteve firme e restrito à sua posição e
que considera as demais posições heresias, mas como alguém, como ele disse, que vasculhou todas as
áreas, pensou, questionou, criticou e, por fim, encontrou a ortodoxia.

Eu não recomendo este livro a qualquer cristão; apesar de evitar o uso de um vocabulário
robusto, Chesterton lida neste livro com assuntos que não comuns à vida cristã cotidiana, além do
autor fazer uso constante do paradoxo para apontar as incoerências das criticas a fé. Quem não foi ao
2
CHESTERTON, C. K. Ortodoxia. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 20-22.
3
Ibid. p. 7.

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menos introduzido a estas questões mais “complicadas”, vai se sentir lendo algo em um idioma
completamente desconhecido. Recomendo este livro a todos os que estão ligados de alguma forma à
apologética. Certamente a carapuça das críticas de Chesterton vai se encaixar em sua cabeça, como se
encaixou na minha algumas vezes. Também o recomendo aos meus amigos ateus, mas com pesar, pois
seria interessante ver as reações faciais ante argumentações tão brilhantes que expõem o, antes oculto,
óbvio.

Para terminar esta resenha vou deixar logo abaixo um trecho de Ortodoxia. Sim, eu disse que
não ia deixar resumo algum, de argumentação alguma, mas não resisti. Para evitar cortar seu
pensamento e deixá-lo incompleto, digitei o trecho a seguir, um pouco longo:

A imaginação não gera a insanidade. O que gera a insanidade é exatamente a razão. Os


poetas não enlouquecem; mas os jogadores de xadrez sim. (...) Como se verá, não estou
aqui, em nenhum sentido, atacando a lógica: só afirmo que esse perigo está na lógica, não
na imaginação.

Em todas as partes vemos que os homens não enlouquecem sonhando. Os críticos são
muito mais loucos que os poetas. Homero é completo e bastante calmo; os críticos é que o
rasgam em trapos extravagantes. Shakespeare é exatamente Shakespeare; apenas alguns
de seus críticos é que descobriram que ele era alguma outra pessoa. E embora João, o
evangelista, tenha visto monstros estranhos em sua visão, ele não viu nenhuma criatura
tão louca como um de seus comentários. O fato geral é simples. A poesia mantém a
sanidade porque flutua facilmente num mar infinito; a razão procura atravessar o mar
infinito, e assim torná-lo finito. O resultado é a exaustão mental, como a exaustão física
do Sr. Holbein.

Aceitar tudo é um exercício, entender tudo é uma tentação. O poeta apenas deseja a
exaltação e a expansão, um mundo em que ele possa se expandir. O poeta apenas pede
para pôr a cabeça nos céus. O lógico é que procura pôr os céus dentro de sua cabeça. E é
a cabeça que se estilhaça. (...)

A última coisa que se pode dizer de um lunático é que suas ações são sem causa (...),
pois o louco (como o determinista) em geral vê causa demais em tudo. (...) Se você
discutir com um louco, é extremamente provável que leve a pior; pois sob muitos
aspectos a mente dele se move muito mais rápido por não se atrapalhar com coisas que
costumam acompanhar o bom juízo. Ele não é embaraçado pelo senso de humor ou pela
caridade, ou pelas tolas certezas da experiência. Ele é muito mais lógico por perder certos
afetos da sanidade. De fato, a explicação comum para a insanidade nesse respeito é

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enganadora. O louco não é um homem que perdeu a razão. O louco é um homem que
perdeu tudo exceto a razão.

A explicação oferecida por um louco é sempre exaustiva e muitas vezes, num sentido
puramente racional, é satisfatória. Ou, para falar com mais rigor, a explicação insana, se
não for conclusiva, é pelo menos incontestável. (...) Se um homem disser, por exemplo,
que os homens estão conspirando contra ele, você não pode discutir esse ponto, a não ser
dizendo que todos os homens negam que são conspiradores; o que é exatamente o que os
conspiradores fariam. A explicação dele dá conta dos fatos tanto quanto a sua. Ou se um
homem disser que ele é, de direito, o rei da Inglaterra, não é uma resposta completa dizer
que as autoridades existentes o chamariam de louco; pois, se ele fosse o rei da Inglaterra,
essa poderia ser a maneira mais sábia de agir para as autoridades existentes. Ou se um
homem disser que ele é Jesus Cristo, não é uma resposta dizer-lhe que o mundo nega a
sua divindade; pois o mundo negou a Cristo.4

Enfim, é um excelente livro que, no mínimo, nos faz refletir, faz-nos enxergar o óbvio e arranca
de nós algumas risadas (às vezes rimos de nós mesmos). Livro altamente recomendado!

4
Ibid. p. 30-35.

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