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(DO LIVRO: CORPO-MÁQUINA, COMPANHIA DAS LETRAS, 2002)

O homem-máquina hoje

por Sergio Paulo Rouanet

Resumo

O período clássico relacionava-se coma a dualidade tradicional alma-corpo, ou


espírito-sensibilidade, colocando toda a ênfase no primeiro polo: era o espírito,
seja como razão divina, seja como razão humana, que constituía a fonte de toda
moral. A característica do Iluminismo em geral foi ter deslocado o acento para o
segundo polo. Em sua vertente majoritária, isso não implicou abolir o fundamento
ontológico das normas: apenas, as funções normativas antes atribuídas ao
espírito passaram a ser desempenhadas pela natureza. Mas havia uma vertente
minoritária, materialista, que por um lado substituiu o antigo dualismo por um
monismo radical, segundo o qual só havia uma substância, a matéria, e por outro
lado descartou a ideia da natureza como base para a distinção entre o bem e o
mal, pois ela passou a ser vista em termos puramente causais.

O médico Julien Offroy de la Mettrie (1709-1751) foi um dos pensadores que


foram mais longe nessa direção. Para ele, a natureza é a busca do prazer, e a
moral é uma inibição artificial. Longe de fundar-se na natureza, ela se opõe à
natureza. A virtude e o vício são criações artificiais, destinadas a permitir toda a
vida civilizada. Daí resulta uma separação de princípio entre a filosofia e a moral.
Esta cria as ilusões socialmente necessárias, e aquela sabe que a moral é um
tecido de ficções. A filosofia é capaz de descobrir a verdade – a vida social
repousa sobre quimeras – mais incapaz de servir de base para o melhoramento
dos homens, pois essa verdade não pode ser divulgada sem que a sociedade
seja destruída. A moral é útil mas falsa, a filosofia é verdadeira mas inútil.
Esse materialismo foi defendido por La Mettrie pelo desenvolvimento da ideia
cartesiana do animal-máquina. Enquanto membro do reino animal, o homem
devia ser visto como uma simples máquina, uma máquina “perpendicularmente
rastejante”, uma vasta engrenagem que nos leva a agir num ou noutro sentido
conforme leis mecânicas, e não segundo princípios fundados numa pretensa
substância espiritual, a alma.

O materialismo de La Mettrie desempenhou papel importante dentro da


Ilustração e além dela. Dentro da Ilustração, porque contribuiu para o grande
projeto das Luzes de desmoralizar as bases morais sobre as quais repousavam
as superestruturas políticas do antigo regime. E além da Ilustração, pela ênfase
sobre o corpo-máquina, cujos diferentes órgãos podem ser vistos como simples
peças de um mecanismo. As implicações dessa tese são consideráveis. Os
filósofos deístas do tempo de La Mettrie viam em Deus um grande relojoeiro. Se
é o organismo, agora, que é visto como um relógio, o relojoeiro é o próprio
homem, e como todo relojoeiro, o homem pode não somente substituir as peças
como construir com suas próprias mãos um novo relógio. Com isso, La Mettrie
sai do seu século e entra no nosso – o século do transplante de órgãos, da
clonagem, da engenharia genética. Em La Mettrie, a consequência dessa visão
maquinal do homem foi o niilismo ético. Mas não é essa, também, a filosofia
moral que parece ajustar-se melhor ao clima filosófico de nossa época, em que
a criação em laboratório do homem novo é defendida na linguagem nietzschiana
do Terceiro Reich?

A expressão homem-máquina, com que Adauto Novaes batizou o ciclo de


palestras, vem, como se sabe, do título de uma obra escrita pelo médico Julien
Offray de La Mettrie.
La Mettrie nasceu em 19 de dezembro de 1709, em Saint-Malo, na Bretanha.
Frequentou escolas jansenistas e estudou em Paris a partir de 1725, primeiro
filosofia, depois ciências naturais e finalmente medicina.

O meio médico do tempo de La Mettrie era deplorável, tendo evoluído pouco


depois que Molière o satirizara em várias de suas peças. Reinava uma
ignorância crassa, agravada pela separação entre os médicos e os cirurgiões,
assimilados aos barbeiros. Podemos ter uma ideia do nível intelectual da
profissão examinando os temas de tese propostos na faculdade: “Pode-se
diagnosticar o amor tomando o pulso do doente?”, “A devassidão pode
engendrar a calvície?”, “A mulher é mais lasciva que o homem?”, “As moças
bonitas são mais férteis que as outras?”. Um dos assuntos teria um futuro
promissor: “A mulher pode se transformar em homem?”.

Seja como for, depois de doutorar-se em medicina em Reims (1733) e de ter


passado algum tempo em Paris, La Mettrie não suportou durante muito tempo a
mediocridade ambiente e foi para Leiden, na Holanda, onde lecionava o grande
cientista Hermann Boerhaave, o médico mais célebre da Europa. Entusiasmou-
se com Boerhaave, traduziu-o, e escreveu vários trabalhos de medicina. Em
1735 voltou para Saint-Malo, casou-se e teve uma filha. Em 1742 deixou a família
e voltou a Paris. Tornou-se médico pessoal do duque de Grammont, que o
nomeou para seu regimento dos Guardas Franceses. Participou de três batalhas
da guerra de sucessão da Áustria, entre 1743 e 1745. Nos intervalos, ficou em
Paris, fez vários inimigos, e perdeu seu emprego quando Grammont morreu em
batalha. Foi quando publicou, em 1745, sua primeira obra filosófica, História
natural da alma, queimada pelo carrasco de Paris. Em 1746, apareceu A volúpia,
livro depois em parte retomado em A arte de gozar, em que defende a ideia de
que o homem tem como vocações essenciais o prazer, principalmente o prazer
dos sentidos, vocação que ele partilha com os animais, e a volúpia, algo de
especificamente humano, um prazer sublimado, que o homem desfruta depois
do prazer, gozando o gozo, por assim dizer, e mais prolongado que o prazer. No
mesmo ano de 1746, escreveu “A política do médico”, panfleto em que fulminava
a ignorância dos seus confrades, livro que também mereceu a consagração de
ser queimado pelo carrasco. Apesar disso, recebeu outra sinecura, inspetor
médico do hospital militar de Flandres.

Isso não o salvou da animosidade dos médicos e dos devotos. Sua situação
tornou-se perigosa e ele se asilou na Holanda, novamente em Leiden. Era um
país liberal, que tinha oferecido asilo a Descartes e a Bayle, e que publicava
livros proibidos em quase toda a Europa. Prosseguindo sua polêmica contra os
médicos charlatães, publicou em 1747 uma comédia, A faculdade vingada.

Em 1748, aparecia sua obra mais famosa, O homem-máquina. Nesse livro, La


Mettrie radicalizava Descartes, para quem os animais eram como máquinas, por
não terem alma. Levando essa ideia a extremos inimagináveis para o autor do
Discurso do método, La Mettrie afirmou que os homens eram em tudo próximos
dos animais, e portanto também não tinham alma, eram meras máquinas,
conjuntos de engrenagens puramente materiais, sem nenhuma substância
espiritual, como pretendia Descartes.

No mesmo ano, publicou O homem mais que máquina, em que reitera suas teses
sob o pretexto irônico de atacar a si mesmo. Essa sequência de heresias foi
demais, mesmo para a Holanda. Segundo Frederico, o Grande, La Mettrie
desagradou “os inimigos declarados da razão humana”, como os calvinistas,
luteranos e católicos, que, esquecidos por algum tempo de temas que os
dividiam, como a transubstanciação, o livre-arbítrio e a infalibilidade do papa, se
uniram para perseguir um filósofo que tinha o infortúnio adicional de ser francês,
numa época em que a França travava uma guerra bem-sucedida contra as
Províncias Unidas. Seu editor holandês teve que fazê-lo passar a fronteira
clandestinamente, para que não acabasse no cadafalso como um criminoso
comum.

Graças à mediação do seu conterrâneo Maupertuis, foi convidado por Frederico


II para instalar-se na Prússia. Conviveu com o Salomão do Norte em Potsdam,
em companhia de intelectuais como Voltaire e Maupertuis. Segundo se disse, La
Mettrie comportou-se em Potsdam como uma espécie de Hofnarr, de bobo da
corte, entretendo o rei com suas extravagâncias. Frederico fez dele seu médico
pessoal e nomeou-o para a Academia de Ciências de Berlim, onde o soberano
o apresentou como “vítima dos padres”.

Mas Frederico não era assim tão liberal. La Mettrie só pôde publicar o mais
sulfuroso dos seus panfletos, o “Discurso sobre a felicidade”, sob a camuflagem
de um prefácio a uma tradução francesa de Sêneca. Graças a esse artifício,
conseguiu enganar o rei e o impressor. Percebendo a fraude, o rei confiscou o
livro e obrigou La Mettrie a publicar suas obras filosóficas completas sem esse
texto. Para não comprometer sua reputação de tolerância, Frederico explicou ao
público europeu que se tratava apenas de um esboço, que tinha sido roubado,
que aparecera sem o consentimento do autor.

Depois da publicação do “Discurso sobre a felicidade”, que parecia destruir todos


os princípios da moral civilizada, La Mettrie foi considerado louco. Voltaire o
tratava assim, Maupertuis dizia que La Mettrie não sabia o que escrevia, e
Frederico fez-lhe o mais pérfido dos elogios, dizendo que “a doença, sabendo
com quem tinha que lidar, foi suficientemente astuta para atacar primeiro seu
cérebro, para mais seguramente poder confundi-lo”.

Louco ou não, La Mettrie era um bon vivant e um consumado epicurista. Como


disse o rei, desta vez sem perfídia, o filósofo “nascera com um fundo de alegria
natural e inesgotável; tinha um espírito rápido e uma imaginação tão fértil que
fez flores crescerem no campo da medicina”. Ele próprio se chamava grão-
mestre na arte da volúpia:

É preciso que o homem se feche entre quatro muralhas para ser livre? Sim, é lá
que ele se delicia, com um copo numa das mãos e o biquinho do seio de Philis
na outra, nessa dupla e doce embriaguez, em que o homem é bastante feliz para
se esquecer. É lá que à mesa, com nossos amigos, cada um com sua cada uma,
devemos mandar aos diabos todos os preconceitos do universo.

La Mettrie morreu em novembro de 1751, ao que parece vítima de sua gulodice,


comendo inteiro um patê de faisão com trufas. As línguas mais viperinas
disseram que ele não morreu propriamente de indigestão, e sim dos remédios
que ele próprio se receitara. Dizem também que ele voltou aos braços da Igreja
em seu leito de morte. Nunca se saberá se seus últimos pensamentos se
voltaram para a religião ou para Philis, mas é certo que, como Roland expirando
em Roncevaux, esse cosmopolita pensou também na “doulce France”, pedindo
para ser enterrado no jardim da embaixada francesa. O pedido não foi
atendido.[1]

Por que relembrar hoje esse filósofo relativamente esquecido? Porque de certo
modo está mais na ordem do dia que a maioria dos pensadores do século XVIII.

Para entender essa afirmação, convém recordar que a Ilustração gerou duas
linhagens espirituais.

Uma tem sua origem em pensadores como Diderot, Helvétius, Holbach. Para
eles, o homem é determinado pelo meio, e consequentemente a mudança das
relações sociais pode modificar suas condições de existência. Essa linhagem
prolongou-se nos séculos XIX e XX nos utilitaristas, como Jeremy Bentham, e
nos liberais, como Stuart Mill, para os quais um homem novo pode ser produzido
pela legislação e pela educação, bem como nos marxistas, para os quais ele
pode ser produzido pela revolução social.

A outra linhagem parte de La Mettrie. Ela acredita que o organismo determina o


essencial da vida do homem. É tão eudemonista quanto a primeira linhagem,
mas acha que a felicidade deve ser buscada no bom funcionamento do corpo, e
não na transformação social. A linhagem de La Mettrie prosseguiu no darwinismo
social, e no uso dos biopoderes, segundo Foucault, a tentativa de provocar a
docilidade social pela ação sobre os corpos.

Pois bem, temos a impressão de que a primeira linhagem, depois de ter sido
dominante durante dois séculos, está cedendo lugar à segunda. Permanecemos
filhos da Ilustração, mas não é mais a mesma Ilustração. O homem novo
continua sendo um ideal, mas agora ele deve ser fabricado no laboratório, em
vez de ser um produto social.

As opiniões se dividem quanto a essa mudança de paradigma. Para alguns é


algo de exaltante, para outros, é uma fonte de ameaças. Para uns, é a
culminação de um sonho imemorial, o sonho do humanismo absoluto,
definitivamente conquistado graças à possibilidade de auto-criação do homem;
para outros, é algo de demoníaco, a usurpação sacrílega de poderes reservados
a Deus.

É isso que dá atualidade a La Mettrie. Ele é o ancestral do materialismo


biologizante que ocupa o centro do debate contemporâneo. E também seu
pensamento é suscetível de duas leituras opostas, uma positiva e outra negativa.
Podemos construir a imagem de um La Mettrie humanista. E podemos vê-lo
como o precursor do anti-humanismo moderno. Essas duas imagens
correspondem exatamente às duas visões que se têm hoje com relação ao novo
paradigma. De certo modo, é ainda La Mettrie que até hoje continua sendo
aplaudido ou atacado, mesmo por aqueles que nunca ouviram falar nele. 


Mas uma polarização tão extrema entre os dois La Mettrie e os dois paradigmas
é inutilmente maniqueísta. Não se trata de uma coisa ou outra, mas de uma coisa
e outra. Como veremos a seguir, La Mettrie tem lados humanistas, e também
anti-humanistas. E o novo paradigma suscita um justo otimismo, mas também
uma inquietação legítima.

II

O lado humanista de La Mettrie exprime-se numa tomada de posição, ainda que


limitada, a favor da autonomia humana.

Apesar de sua aparente negação do livre-arbítrio, expressa na teoria de que as


ações humanas são condicionadas pela máquina orgânica, La Mettrie estava
convencido de que a natureza tinha constituído essa máquina como
independente, capaz de auto-regulação, suscetível de propor fins. O objeto do
homem é a felicidade, e para isso é preciso que ele tenha a liberdade de adotar
os melhores meios para ser feliz, segundo estratégias adequadas às
características específicas de cada “máquina”, variáveis de indivíduo para
indivíduo. O ideal eudemonista era comum a todos os filósofos da Ilustração, e
o jusnaturalismo norte-americano incluiu a pursuit of happiness entre os direitos
inalienáveis do homem, mas La Mettrie deu um passo adiante, fundando esse
direito na própria constituição orgânica do homem, movida pelo princípio do
prazer.

Ser autônomo significa libertar-se de todos os vínculos de subordinação,


sagrados ou humanos.

O homem não poderia ser livre se estivesse sujeito a uma vontade que lhe fosse
exterior. Na concepção religiosa tradicional, o homem era filho de Deus, sujeito
à heteronomia da lei divina. Se é uma máquina, uma máquina auto-regulável,
um relógio que dá corda a si mesmo, não necessita nem de maquinista nem de
relojoeiro. Com isso, o homem passa a ser dono do próprio destino. Do mesmo
modo como não precisa de Deus, o homem não precisa de uma alma espiritual.
Sua alma é um princípio de vida, que dirige as funções do corpo, mas é tão
material quanto o próprio corpo. Como não existe mais alma espiritual, o corpo
é revalorizado. É agora a única realidade do homem, cuja função mais alta, o
pensamento, passa a ser exercida por essa coisa pensante que é o cérebro, e
não por uma substância espiritual mais elevada. Donde a importância de cuidar
do corpo, de preservá-lo, de protegê-lo da doença e da morte. A alma é
dessacralizada, mas apenas para que o corpo possa recuperar toda a sua
dignidade. De modo geral, pode-se dizer que para La Mettrie a concepção de
um homem-máquina, sem Deus e sem alma, não se destina a degradar o
homem, e sim a exaltá-lo. Pois seu valor não está em supostos atributos
espirituais recebidos ao nascer, e sim no que ele faz com sua inteligência,
qualquer que seja sua origem. Uma alma material capaz de pensar é superior a
uma alma tola e estúpida, por mais divina que seja sua proveniência. Há um
certo paralelismo entre essa concepção e o combate iluminista contra a nobreza
hereditária: o homem vale pelo que faz, e não pelo que herdou. O valor do
homem está no que ele faz de si mesmo a partir de sua condição material, e não
na posse de uma grandeza inata que ele não fez nada para merecer.

Além da autonomia com relação ao divino, La Mettrie reivindica também alguma


autonomia no universo das relações humanas.

Bateu-se pela liberdade de expressão, pelo menos para os filósofos. Seria um


erro, para os governantes, reprimir os homens de letras, mesmo quando
defendem, como La Mettrie, uma visão materialista do mundo, primeiro porque
são pessoas dóceis, atentas ao bem público, modelos de humanidade, de
candura, de doçura, de probidade, pacíficos, inimigos da desordem e da
agitação, e segundo porque o povo ignorante jamais lerá suas obras. No melhor
estilo da Ilustração, La Mettrie chama de tiranos os perseguidores dos filósofos.
“Enrubescei, tiranos de uma razão sublime; semelhantes aos pólipos cortados
em uma infinidade de fragmentos, os escritos que condenais ao fogo saem, por
assim dizer, das cinzas, multiplicados ao infinito.”[2]

Combateu o preconceito, o préjugé, alvo principal da militância iluminista. Para


livrar-se dos preconceitos, o filósofo precisa fazer como Descartes, transformar
sua mente em uma tabula rasa, extirpando todas as noções irrefletidas, incutidas
desde a infância. La Mettrie se felicita por ter chegado a esse resultado.

Nenhum rastro de minha primeira educação: essa multidão de preconceitos,


sugados, por assim dizer, com o leite, cedo desapareceu à divina claridade da
filosofia. Essa substância mole e tenra, sobre a qual o lacre do erro tão bem se
gravara, hoje rasa, não conservou vestígios nem dos meus colegas, nem dos
meus professores. Tive a coragem de esquecer o que tivera a fraqueza de
aprender; tudo está riscado, tudo apagado, tudo extirpado até a raiz.[3]

A expressão “tive a coragem” é um termo de médico, um médico suficientemente


intrépido para arrancar de si mesmo um tumor, sem anestesia. Mas alude,
sobretudo, a um tema básico das Luzes: a audácia de libertar-se dos
preconceitos já é a prefiguração do sapere aude kantiano, “ousa fazer uso de
tua razão”.

Esses preconceitos que La Mettrie tanto abominava não o deixaram em paz. Foi
perseguido por todos aqueles que ele chamava de “preconceitos ambulantes”,
os partidários da religião e do despotismo. Nisso ele não teve destino melhor que
o de Voltaire e de Rousseau, ambos vítimas de suas ideias. Há uma obra
divertidíssima, que é ao mesmo tempo um autodeboche e uma sátira contra a
perseguição que lhe foi movida pelos tolos e pelos devotos. Nesse texto, La
Mettrie relata a vida e a morte de si mesmo, que ele chama M. Machine. Note-
se que a gíria machin, derivado de machine, quer dizer “troço”, “fulano”, algo que
não nos ocorre imediatamente. O Sr. Máquina foi um pobre-diabo, bastante
doido, mas afinal era uma máquina, e uma máquina não faz o que quer, mas o
que tem que fazer. Não sabe em que retorta essa matéria pesada e grosseira se
organizou. Nasceu como um dos prodígios mecânicos de Vaucanson (autor de
autômatos famosos), como eles sem espírito, sem alma, sem razão, sem virtude,
sem discernimento, sem gosto, sem polidez e sem maneiras, pura máquina,
homem-máquina. Foi doutor em medicina, que honra para uma máquina! A maior
das loucuras do sr. Máquina foi ter achado que poderia destruir os preconceitos,
vendo-se como herói, o Hércules da república das letras. Mas, de novo, tem de
ser desculpado, porque, não tendo alma, prossegue com os giros e os
movimentos que lhe foram atribuídos desde sua origem. Ele age como máquina,
não é culpado. Copia, faz figuras, lisonjeia, dá cambalhotas à custa do seu
materialismo. Eis que ele morre. Está dormindo seu sono eterno às margens do
Aqueronte quando o barqueiro Plutão vem buscá-lo. Chegaram por um labirinto
tortuoso à forja dos ciclopes. Em frente dela havia uma sala onde ficavam os
charlatães e vários personagens da commedia dell’arte, como Scaramouche e
Pantalone, segregados de modo a que os outros súditos de Plutão pudessem
repousar com tranquilidade. Ele se apresenta, quando um dos seus desafetos,
que o sr. Máquina tinha acusado de vender títulos de doutor, o estrangula, e a
“alma” dele (pneuma, ar), não podendo sair pela traqueia, sai por trás. Com isso,
morre de vez, e sua pele é aproveitada para fabricar uma cornamusa, uma
espécie da gaita-de-foles. O autor se consola refletindo que, pelo menos
postumamente, o sr. Máquina havia contribuído para a alegria dos charlatães.[4]
Sob certos aspectos, La Mettrie partilhou o espírito filantrópico iluminista, que se
traduzia em causas como a libertação dos escravos ou a emancipação das
mulheres. Em La Mettrie a filantropia assumiu a forma de uma grande
indulgência com relação aos criminosos, que afinal não tinham culpa de terem
agido segundo os impulsos de sua máquina. É certo que o bem público exige a
punição dos transgressores — há que matar os cães raivosos e esmagar as
serpentes —, mas tais ações devem limitar-se ao que for estritamente necessário
para a proteção social. O ideal é agir preventivamente, atuando sobre os fatores
orgânicos que condicionam o crime.
Enfim, nunca La Mettrie foi mais homem da Ilustração que em sua defesa do
direito ao prazer. Nisso, seu pensamento pode ser considerado uma variante da
filosofia libertina do século XVIII. Na época, isso não era necessariamente um
insulto. A palavra não tinha mais o sentido exclusivo de livre-pensador, como no
século XVII, nem o sentido exclusivo de devasso, como nos séculos XIX e XX,
mas significava, na época das Luzes, a unidade das duas coisas, o homem culto,
sem preconceitos filosóficos ou religiosos, e o epicurista delicado, apreciador do
bom vinho e das mulheres amáveis. Como libertino, nesse sentido integral, La
Mettrie não era muito diferente de Diderot, que se bateu contra o obscurantismo
e escreveu uma obra erótica, As jóias indiscretas, nem de Mirabeau, tribuno da
Revolução e autor de vários livros de pornografia explícita. O libertino era aliado
dos filósofos, quando não era ele próprio um filósofo, e a esse título contribuiu
decisivamente para a desmoralização das bases morais do Antigo Regime.
Nesse sentido, um livro como Discurso sobre a felicidade é um texto libertino
típico, contendo toda uma visão emancipatória da sociedade. Ao mesmo tempo,
é uma obra inovadora, porque La Mettrie tenta enraizar a aspiração ao prazer na
constituição somática do homem. Nisso o livro contém traços
surpreendentemente modernos.

A impressão de modernidade vem do fato de que esse aspecto do pensamento


de La Mettrie se parece de modo desconcertante com a visão freudiana da
relação entre o indivíduo e a sociedade, e de modo mais desconcertante ainda
com algumas tentativas recentes de construir com base nessa descrição uma
utopia libertária. Como se sabe, para Freud o indivíduo é dotado de pulsões
eróticas e agressivas que precisam ser suprimidas para tornar possível a vida
em sociedade. Há para isso dois mecanismos, a repressão objetiva e seu
equivalente interiorizado. O controle externo se dá pela força — leis, polícias,
tribunais — e a interna pelo superego, que representa pais e outras autoridades
externas. O superego opera pela produção da culpa: quanto mais o indivíduo
obedece ao superego, mais se sente culpado, porque o superego é alimentado
com toda a energia retirada do impulso proibido. As pulsões sexuais são assim
suprimidas, em parte pela sublimação, em parte pelo recalque. Freud achava
que além do recalque necessário, exigido por qualquer tipo de organização
social, havia também um sobre-recalque, imposto apenas aos estratos mais
pobres da população. Com isso, a dialética indivíduo-civilização se historiciza, o
que permite a autores marxistas darem um passo além de Freud. Para Reich, o
recalque não é inerente a qualquer ordem social, e sim a uma ordem social
específica, a baseada na injustiça, na distribuição assimétrica do excedente. É
só com o princípio de realidade imposto pelo capitalismo que a repressão da
sexualidade genital é necessária. No momento em que os controles fossem
suprimidos, os indivíduos teriam um ego mais forte e mais capaz de lutar por
uma sociedade justa. Marcuse afirma que, na vigência de outro princípio de
realidade, não haveria mais necessidade de represar a libido: ela se autolimitaria.
Em suma, esses autores acham que o controle interno deixou de ser condição
necessária para manter a vida social.

É em grande parte a posição de La Mettrie. O prazer é próprio a todos os animais,


e a volúpia é o prazer mais refinado, próprio do homem. É insensato proibir esse
prazer, porque pelo menos para aqueles que sabem conduzir racionalmente sua
vida ele é algo de inocente, que em nada danifica a vida social. Daí que La
Mettrie é contra Sêneca, contra os estóicos, que reprimem tudo, contra os
cristãos, que vêem no sexo um pecado, contra todos aqueles para quem o
homem só é homem quando deixa de sê-lo. Em termos freudianos, La Mettrie
está pura e simplesmente advogando o desrecalque. Para que a sociedade se
preserve, basta que as leis funcionem, que o aparato policial e judiciário do
Estado seja eficaz. A repressão interna não é necessária. Os remorsos podem
ser extirpados.

O remorso não é assim senão uma reminiscência desagradável, um antigo


hábito de sentir, que retoma seu predomínio. Se quiserem, é um traço que se
renova, e por conseguinte um velho preconceito que as volúpias e as paixões
não adormeceram de todo, e desperta de novo cedo ou tarde. O homem traz em
si mesmo o maior dos seus inimigos. Esse inimigo o segue por toda parte, e
como Boileau diz da tristeza, segundo Horácio, o inimigo monta na garupa e
galopa com ele.[5]

Por isso é preciso expulsar esse demônio que o homem tem dentro de si, que
não impede o crime e só faz “sobrecarregar máquinas lamentáveis e mal
reguladas (…) Já que os remorsos são um vão remédio para nossos males, que
eles perturbam mesmo as águas mais claras, sem clarear as mais sombrias,
devemos destruí-los; que não haja mais ervas daninhas misturadas ao bom grão
da vida, e que esse cruel veneno seja expulso para sempre”.[6] O que La Mettrie
está propondo, assim, através da apologia de um hedonismo sem limites, é nada
menos que a supressão da culpa, como instrumento de controle social interno.
Dado que ao mesmo tempo ele exalta, como bom iluminista, a importância da
razão, que ele identifica com a natureza, pode-se deduzir que será a própria
razão que vai regulamentar a vida social do homem, e assim nosso filósofo se
encontra com Freud, para quem a regulamentação pelo recalque é um
mecanismo infantil, e deve passar a ser feita pela razão. E, como nisso Freud é
inteiramente iluminista, podemos dizer que também por essa via La Mettrie
reafirma sua filiação às Luzes, cuja palavra de ordem é o ideal kantiano da
Mündigkeit, a chegada do homem à condição adulta, pela qual o próprio
indivíduo se autodetermina, sem direção alheia. “A minoridade é a incapacidade
de servir-se de sua razão sem ajuda de outrem.”[7] É o ideal de Freud, para
quem “o infantilismo deve ser vencido (…)O homem não pode ficar eternamente
criança.”[8] E é o ideal de La Mettrie: “Filósofos, ousai dizer a verdade, e que a
infância não seja a idade eterna do homem”.[9]

Em suma, La Mettrie defende, à sua moda, o ideal de autonomia da Ilustração.


Essa autonomia é negada quando a vontade humana se subordina à vontade
arbitrária de um ser transcendente. É negada quando a alma é valorizada em
relação ao corpo, e se nega aos homens o direito de vencer a doença e desafiar
a morte, sob a alegação de que a vida humana está nas mãos de Deus. É negada
quando o poder secular nos impede de pensar e de publicar. É negada quando
nossa consciência é tutelada pelo preconceito, pelo préjugé, que obscurece
nossa razão. É negada quando indivíduos que não têm culpa de terem seguido
suas inclinações são punidos pelos juízes e pelos carrascos. É negada quando
obedecemos a uma normatividade que não foi escolhida por nós, e que se
baseia, como diz Freud, em velhas vivências infantis, hoje fósseis. Somos
máquinas, sim, dotados de peças exclusivamente materiais, mas é nossa
natureza material que exige que nossas necessidades sejam satisfeitas, tanto as
de caráter físico como as de caráter cultural, em vez de sermos oprimidos por
instituições que afirmam hipocritamente que o homem é “mais que uma
máquina”, que é dotado de um princípio transcendente, apenas para melhor
submetê-lo às instituições que detêm o monopólio da religião. Somos máquinas,
mas máquinas programadas pela natureza para o exercício da liberdade.[10]

III

Mas o lado problemático de La Mettrie é igualmente insofismável, e foi sob esse


aspecto que ele foi visto por seus contemporâneos e em grande parte pela
posteridade.

Foi o caso de Voltaire, que chamou La Mettrie de “intemperante”, disse que ele
era inconsequente, podendo escrever amanhã o contrário do que disse hoje, e
deu a entender que ele era louco ou um bufão.[11] Diderot vai mais longe. Faz a
apologia de Sêneca e por consequência ataca o Discurso sobre a felicidade, que,
como indica o título pelo qual é mais conhecido — O anti-Sêneca —, se propõe
justamente refutar o filósofo romano, defensor daquele ascetismo que La Mettrie
detestava. Para Diderot, La Mettrie é um autor sem julgamento, que nada sabe
de Sêneca, que não escreve em seu livro uma única boa linha que não tenha
tirado de outros autores, de quem se reconhece a frivolidade de espírito no que
ele diz e a corrupção de coração no que não ousa dizer, que afirma que o homem
é perverso por natureza, que tranquiliza o celerado no crime, o corrupto no vício,
cujos princípios, levados ao extremo, derrubariam a legislação, dispensariam os
pais de educar seus filhos, internariam no hospício o homem que luta contra suas
inclinações desregradas, em suma, era um ser dissoluto, impudente, histriônico,
adulador, feito para a vida das cortes e para o favor dos grandes. “Morreu como
devia morrer”, conclui Diderot, “vítima de sua intemperança e de sua loucura;
matou-se por ignorância da arte que professava.[12] E, no entanto, Diderot se
inspirou em La Mettrie, em suas especulações sobre o caráter dinâmico da vida,
nisso prenunciando o transformismo, e se apóia nele em um dos seus diálogos,
“O sonho de d’Alembert”.[13]

Qual a razão da violência de Diderot contra La Mettrie? Se a filosofia dos dois


era igualmente materialista, sua ética era diametralmente oposta, e havia o risco
de que o público concluísse, da semelhança de suas filosofias, que suas opiniões
morais fossem também semelhantes. O risco existia, mas teria sido uma
extrapolação injusta. La Mettrie era hedonista e individualista, considerando o
prazer o objetivo último do homem, enquanto Diderot tinha da felicidade uma
concepção altruísta, achando que ela consistia numa vida ativa, voltada para o
bem público e para a utilidade social.

Hoje podemos não sentir a mesma aversão por La Mettrie, mas temos de admitir
que, apesar de sua defesa da autonomia, seu humanismo permanece muito
relativo. É que, se a concepção organicista e mecanicista do homem-máquina
permite fundar a autodeterminação humana em face do divino, ela é insuficiente
para pensar uma liberdade concreta dentro do social. A tirania e o preconceito,
para nosso autor, devem ser combatidos, mas somente na medida em que
impedem o trabalho dos filósofos. O prazer é reconhecido como a principal mola
do homem, mas só uma pequena minoria pode ser autorizada a seguir suas
inclinações naturais. Enfim, a lógica de uma concepção para a qual a biologia é
tudo e as influências do meio são praticamente nulas bloqueia qualquer hipótese
de uma ação capaz de modificar esse estado de coisas, seja pela educação,
seja pela transformação social, mesmo de caráter reformista.

Dessa objeção de princípio decorrem três objeções específicas: La Mettrie foi


culpado de reducionismo teórico, de niilismo moral e de autoritarismo político.

Primeiro, La Mettrie contribuiu mais que quaisquer outros filósofos para


reconduzir o homem à sua condição mais ínfima, chamando-o de “lama
organizada”. Para isso, levou às últimas consequências a afirmação de
Descartes de que os animais eram simples máquinas, por serem privados de
uma substância espiritual capaz de dirigir seu organismo. Os homens tinham
esse princípio imaterial, uma alma implantada por Deus, e nisso se distinguiam
dos animais. La Mettrie considerou a hipótese da alma uma complicação
supérflua. Os homens não se distinguiam dos animais em praticamente nada,
nem em sua anatomia, que era semelhante à dos primatas superiores (na época,
os orangotangos eram chamados “homens selvagens”), nem em seu
comportamento, sob inúmeros aspectos até mais desprezível que o dos animais.
A própria linguagem não era um fator de diferenciação, porque não estava
excluído que os animais pudessem um dia aprender a falar pela imitação dos
homens. De resto, afirma La Mettrie, isso já aconteceu, segundo depoimento do
príncipe Maurício de Nassau, que jurou ter mantido no Brasil uma conversa
perfeitamente racional com um papagaio.[14] Como a ave falava em tupi-
guarani, é bastante provável que o príncipe tenha sido enganado pelos
intérpretes, e que, em vez de ser o autor de uma observação científica, Maurício
de Nassau tenha sido o inventor involuntário da primeira anedota de papagaio
de nossa história. O comentário não é meu, e sim de Afonso Arinos, que
conhecia bem esse episódio. De qualquer modo, La Mettrie acreditava na
veracidade da narrativa, e é o que importa.

Nosso filósofo concluiu da virtual identidade de natureza entre homens e animais


que, se Descartes tinha razão em dizer que os animais eram máquinas, bastava
dar um passo para afirmar que também os homens eram apenas máquinas.
Nosso corpo é um conjunto de molas e engrenagens, e o que chamamos alma
é um princípio também material, localizado no cérebro, que movimenta nosso
organismo e nos habilita a pensar. A ideia de uma alma imortal vem da nossa
vaidade, do orgulho de nos sentirmos superiores ao resto da criação. O
pensamento é uma simples função da matéria organizada. A experiência
demonstra que a matéria comanda tudo, que só o corpo existe. A prova é que,
com a doença, o mais belo gênio se torna estúpido. Uma obstrução no baço teria
transformado Platão num idiota.

Segundo, as consequências morais desse determinismo são devastadoras. A


educação tem um lugar entre os determinantes do comportamento humano, mas
é um lugar modesto. Em última instância, o vício e a virtude dependem do estado
dos nossos órgãos. Com isso, desaparece todo fundamento estável para a
moralidade e rompe-se todo vínculo entre a legislação positiva e a ética. É uma
ruptura não somente com a religião e a metafísica clássica como também com a
maioria dos filósofos da própria Ilustração. O período clássico relacionava-se
com a dualidade tradicional alma-corpo, ou espírito-sensibilidade, colocando
toda a ênfase no primeiro polo: era o espírito, seja como razão divina, seja como
razão humana, que constituía a fonte de toda moral. A característica da
Ilustração em geral foi ter deslocado o acento para o segundo polo. Em sua
vertente majoritária, isso não implicou abolir o fundamento ontológico das
normas: apenas, as funções normativas antes atribuídas ao espírito passaram a
ser desempenhadas pela natureza. La Mettrie levou mais longe a subversão da
metafísica. Por um lado, substituiu o antigo dualismo por um monismo radical,
segundo o qual só havia uma substância, a matéria, e por outro lado descartou
a ideia da natureza como base para a distinção entre o bem e o mal, pois ela
passou a ser vista em termos puramente causais.[15] Somos o nosso corpo,
nosso corpo é matéria, e essa matéria determina nosso comportamento,
levando-nos a praticar tanto o que chamamos bem como o que chamamos mal,
sem que sejamos responsáveis por uma ou outra coisa. Por exemplo, Henrique
III mandou matar o duque de Guise porque fazia frio em Blois, e o rei, que
normalmente era doce e tímido, ficava feroz quando sentia frio. Como aplicar,
nesse caso, um conceito como o de culpa ou de crime? A ordem social quer que
os assassinos sejam enforcados, e o filósofo, como bom cidadão, é o primeiro a
concordar com isso, mas não se pode dizer que eles sejam culpados, porque
não poderiam agir diferentemente. É sua “máquina” que os impele
necessariamente a certa direção. A moral antiga e a cristã diziam que só o
homem virtuoso podia ser feliz. É um disparate, porque todo homem que pode
seguir as inclinações que lhe são ditadas por seu organismo deve ser
considerado feliz. “Parricida, incestuoso, ladrão, celerado, infame, e justo objeto
da execração dos homens de bem, serás feliz apesar de tudo. Bebe, come,
dorme, ronca, sonha; e se pensas às vezes, que seja entre dois vinhos […]
refocila, como os porcos, e serás feliz à maneira deles.”[16]

Terceiro, se os contemporâneos de La Mettrie se chocaram com as


consequências morais de seu determinismo, ficamos mais consternados com as
consequências políticas. É que as premissas de La Mettrie o levaram a posições
escandalosamente antidemocráticas, o que para nós é uma aberração, mas era
um pecado venial para a Ilustração. Para ele, os médicos estão entre os filósofos
mais sábios, e são eles, e não o povo, que devem desempenhar um papel
decisivo na direção do Estado.[17] De modo geral, a Ilustração reservou para os
médicos um lugar de destaque. A medicina, para os filósofos, era uma ponte
entre a teoria e a prática, constituindo ao mesmo tempo o modelo de uma nova
filosofia e a prova de sua eficácia. Bacon, na New Atlantis, havia considerado a
saúde algo de fundamental para o Estado perfeito. Para Descartes, a saúde era
o primeiro dos bens. Se quisermos tornar o homem mais sábio, disse ele,
devemos recorrer à medicina. O grande ídolo de Locke era o médico Thomas
Sydenham, um dos primeiros a reconhecer a importância da experiência na
medicina. Sydenham fazia medicina segundo princípios filosóficos, e Locke fazia
filosofia segundo princípios médicos. Muitos filósofos foram médicos, como o
naturalista Daubenton, o fisiocrata Quesnay e o cavaleiro de Jaucourt, que
estudou em Leiden sob a direção do grande Boerhaave, como La Mettrie. Diderot
traduziu o Medicinal dictionary, de Robert James. Mais de vinte médicos
trabalharam na Encyclopédie, como Théophile Bourdeu e Théodor Tronchin.
Voltaire, que também assistira a aulas de Boerhaave em Leiden e disse que lera
mais livros de medicina que Dom Quixote lera livros de cavalaria, fez campanha
pela vacinação e conhecia os médicos de perto, na qualidade de eterno
valetudinário.

A metáfora da medicina foi assim uma parte essencial das Luzes. Graças a ela,
passou-se a ver na doença uma desordem na máquina humana, e no
cristianismo uma infecção, um mal de caráter epidêmico, que se propagava pelo
contágio. Em 1798, o médico Johann Karl Osterhausen parodiou Kant, dizendo
que a Auflklärung médica era a emergência do homem de sua dependência, de
sua minoridade no tocante a assuntos relacionados com seu bem-estar
físico.[18] Marx salienta essa vertente médica nas Lumières. Segundo Marx,
foram os médicos que, com base em Descartes, fundaram o materialismo
mecanicista do século XVIII. Eles se apropriaram da vertente “física” de
Descartes, que vê o corpo como uma máquina, em contraste com a vertente
metafísica, a partir da qual uma alma é acrescentada por Deus a essa máquina.
“O materialismo mecanicista francês aderiu à física de Descartes, em contraste
com sua metafísica. Seus adeptos eram antimetafísicos de profissão, isto é,
físicos. Essa escola começa com o médico Leroy, atinge seu ponto culminante
com o médico Cabanis, e seu centro é o médico La Mettrie.”[19] Mas foi com La
Mettrie que essa exaltação da medicina foi levada ao extremo. A filosofia é “o
cadinho onde se evapora tudo o que é alheio à natureza, e o médico tem o dom
de desenrolar com suas mãos hábeis o carretel das coisas mais emaranhadas,
como desembaralha as doenças mais complicadas”.[20] Sim, a melhor filosofia
é a dos médicos.[21]
Esses homens excepcionais são necessários à política, diz La Mettrie. A
afirmação é surpreendente, porque La Mettrie havia separado radicalmente a
esfera da ciência, cujo objeto é a verdade, e sabia que a verdade do homem é o
prazer, e a esfera da moral, da política, da legislação, cujo objeto é a manutenção
da ordem social, e repousa numa teia de ficções socialmente necessárias. Daí
que a ciência seja verdadeira mas sem impacto social, e o mundo das normas
tenha eficácia coletiva mas seja falso. Com esse argumento, La Mettrie queria
assegurar que os filósofos não fossem inquietados em seu trabalho, porque nada
do que eles pudessem descobrir poderia causar nenhum dano à ordem pública.
Mas essa humildade era apenas aparente. Se tudo depende do organismo, o
mau funcionamento dos órgãos pode gerar graves lesões individuais e sociais,
e por isso a política deve fazer apelo aos especialistas. São os filósofos, ou
médicos, termos que La Mettrie usa quase sempre como sinônimos. Em
qualquer Estado bem organizado, os médicos é que deveriam assessorar o
príncipe em sua tarefa de induzir nos súditos as reações apropriadas, porque
são eles que conhecem as molas orgânicas que movimentam os governados, e
conhecem o segredo da fabricação dos mitos necessários ao bom governo. Com
efeito, a filosofia “estende suas asas sobre tudo, comunica a tudo sua força e
seu vigor […] Como é ela que trata do corpo em medicina, é ela que trata, embora
em outro sentido, das leis, do espírito, do coração, da alma etc.; é ela que dirige
a arte de pensar e isso quer ensine verdades, quer ensine erros”.[22] Cabe aos
filósofos julgar da justiça e da injustiça das leis, pesando-as na balança do
interesse social. Eles estão acima do povo, ignorante e incapaz de ter acesso ao
saber. O povo é um troupeau d’imbéciles mortels,[23] mas será tanto mais fácil
de conduzir, quanto mais o espírito humano adquirir força e luzes. Por
conseguinte, assim como se aprende em nossas escolas de equitação a colocar
freios num cavalo fogoso e a montá-lo, do mesmo modo se aprende na escola
dos filósofos a arte de tornar os homens dóceis e de pôr-lhes um freio, quando
não for possível conduzi-los pelas luzes naturais da razão.[24]

Por isso o Estado só pode ser dirigido por reis-filósofos, como Julião e Frederico,
ou por filósofos capazes de conduzir os reis segundo os princípios da ciência. O
paradoxo de um filósofo político e apolítico ao mesmo tempo, protegido por seu
apolitismo das perseguições do poder e participante por sua ciência de todas as
decisões que afetam o bem público, se esclarece se levarmos em conta o caráter
puramente tático dessas formulações. Como filósofo-médico, La Mettrie queria
ganhar nos dois tabuleiros. Sendo apolítico, o filósofo não deve ser inquietado
em seu trabalho científico, por mais heterodoxas que sejam as suas opiniões.
Mas como só ele sabe separar a verdade do erro, mesmo no que diz respeito às
ficções capazes de anestesiar o povo, sua participação na política é
indispensável. Voltaremos mais tarde a esse “paradoxo”.

La Mettrie não estava sozinho entre os filósofos da Ilustração nem em sua


advocacia do poder absoluto dos reis, nem no papel atribuído aos filósofos como
conselheiros dos príncipes, nem em seu desprezo pela canaille. Onde ele inova
é em seu cientificismo. Não é qualquer filosofia que é útil ao Estado, e sim a
voltada para as ciências da natureza: a física, a química, a mecânica, a
anatomia, a fisiologia. Os filósofos são necessários, sim, mas só “os médicos
esclarecidos, e os que merecem mais confiança são os versados na mecânica e
na física do corpo humano, deixando a alma aos ignorantes”.[25]

IV

Há alguns anos, todas essas ideias teriam parecido irremediavelmente


obsoletas. E isso porque o paradigma era o liberal-utilitarista-socialista, baseado
na convicção de que para o bem ou para o mal a sociedade tinha sempre a
primeira e a última palavra. Como vimos, tem-se a impressão de que o
paradigma mudou. Agora deixou de ser absurdo ou provinciano falar num
determinismo do corpo. O homem-genoma assumiu a sucessão do homem-
máquina: nos dois casos é a biologia o fator determinante, e não a sociedade.

O mais curioso é que não foi somente o pensamento de La Mettrie que ressurgiu,
foi também sua ambiguidade. O novo paradigma tem aspectos luminosos e
sombrios, exatamente como a filosofia de La Mettrie. Nos dois casos há uma
coexistência às vezes simbiótica de humanismo e de anti-humanismo, e nos dois
casos ficamos ocasionalmente sem saber onde acaba um e onde começa o
outro.
O que poderia um leitor imparcial de La Mettrie, que fosse ao mesmo tempo um
observador atento do novo clima intelectual, dizer da relação de congruência
entre os aspectos positivos e problemáticos do novo paradigma e os aspectos
positivos e problemáticos do pensamento de La Mettrie?

Do lado positivo, há um novo impulso dado à velha ideia da autonomia, que como
vimos foi uma parte importante do pensamento de La Mettrie. Consolida-se a
autonomia com relação ao divino, porque mais do que nunca o homem sente-se
senhor do seu destino e do seu corpo, capaz de libertar-se de todas as
fatalidades que antes eram atribuídas à vontade de Deus, como certas
características somáticas, a predisposição para determinadas doenças e até a
duração da vida. E consolida-se a autonomia no campo das relações humanas,
num movimento circular pelo qual a ciência pode cooperar para a autonomia (por
exemplo, ajudando a destruir preconceitos racistas pela demonstração de que
de modo geral as disposições genéticas variam de indivíduo para indivíduo, e
não entre etnias ou culturas), e a autonomia fortalece a ciência, já que esta exige
uma moldura institucional que preserve a liberdade de investigação e um Estado
leigo capaz de levar adiante o secularismo moderno, evitando que o
obscurantismo religioso interfira com os rumos da pesquisa.

Do lado negativo, destacamos entre os traços anti-humanistas de La Mettrie o


reducionismo teórico, que leva à assimilação absoluta do humano à matéria e ao
mundo animal; o niilismo moral, que destrói todo fundamento objetivo para a
ética; e o autoritarismo político, que resulta numa visão do mundo radicalmente
antidemocrática.

Todos esses traços estão presentes no novo paradigma.

Quanto ao reducionismo, vimos que La Mettrie substituíra o dualismo cartesiano


por um monismo materialista, segundo o qual só havia no homem uma
substância, e a alma nada mais era que uma função da matéria organizada.
Destacamos entre os efeitos positivos desse movimento a valorização do corpo.
Mas, de outro ponto de vista, o corpo foi profanado, já que deixou de ser visto
como um sacrário que continha uma coisa infinitamente preciosa, a alma. Com
isso, abriu-se o caminho para a banalização do corpo, sua instrumentalização,
sua mercantilização. O novo paradigma herda essa atitude. É uma forma
moderna de gnose, de depreciação do corpo. Ele não vale nada, ou vale, mas
como valor de troca. Não tem valor, mas tem preço. É posto no mercado. Os
órgãos podem ser vendidos, os processos que levam à modificação genética
podem ser patenteados.


Como para La Mettrie, o corpo é uma simples máquina, e as máquinas podem


ser consertadas. Trata-se agora de aperfeiçoar o corpo, como antes se queria
aperfeiçoar a alma. Não se trata mais da imitação de Cristo, mas da imitação de
Schwarzenegger. Não se aconselham mais exercícios espirituais, como os
recomendados por santo Inácio, mas exercícios em academias de musculação.
Está a nosso alcance produzir pessoas mais fortes e mais belas. Nada contra,
se houvesse consenso sobre os padrões estéticos considerados desejáveis.
Estamos próximos da realização de uma das mais antigas utopias da
humanidade, a utopia médica da saúde perfeita. Nada a objetar, se não fosse
uma pequena dificuldade: esse programa supõe um acordo mínimo quanto ao
que seria normal. Mas, como foi lembrado pelo prof. Marcos Palatnik,
especialista em genética e em bioética, o conceito de normalidade e de patologia
varia culturalmente. Por exemplo, um médico de Gana, nascido com sete dedos,
disse que se tivesse nascido numa determinada aldeia, situada de um lado do
rio, seria morto no momento do parto, porque se supunha que essa anomalia
trouxesse má sorte, e se tivesse nascido do outro lado, seria festejado como uma
pessoa favorecida pelos deuses. Outro exemplo: a miopia é considerada normal
em culturas agrícolas e grave em culturas caçadoras. Há o risco de que os dois
objetivos, o médico e o estético, se confundam. Por exemplo, uma firma
americana desenvolveu um hormônio de crescimento para crianças com
deficiência de hipófise, o que é inteiramente legítimo. O problema é que o mesmo
hormônio continuou sendo usado, sem aviso aos interessados, para que as
crianças ficassem mais altas. Ora, estatura baixa não é doença.

Assim como toda máquina que se preza passa por um rigoroso controle de
qualidade, está próximo o dia em que todos os corpos humanos passarão por
uma inspeção severa, desde o nascimento. Advoga-se, por exemplo, o uso do
teste de DNA para fazer diagnósticos precoces, revelando predisposições para
certas doenças muito antes que elas se manifestem. Nada demais, se o efeito
desses testes não fosse restringir a capacidade de auto-realização dos
indivíduos. No filme Gattaca, de Andrew Niccol, uma criança nasce pelo método
arcaico das relações sexuais dos pais, em vez de nascer pelo método
cientificamente mais perfeito da fertilização in vitro, que permite afastar a maioria
das doenças. O bebê é testado ao nascer e descobre-se que vai desenvolver
mais tarde uma severa cardiopatia e que tem uma esperança de vida de no
máximo trinta anos. Com isso, o rapaz perde a chance de ser o que ele mais
queria ser, astronauta. Ficção à parte, é mais que provável que com isso certas
pessoas não consigam empregos nem possam fazer seguros de saúde, pois
suas predisposições genéticas podem ser “acessadas” por qualquer um em
bancos de dados de DNA.

Em outra manifestação de reducionismo, La Mettrie havia praticamente apagado


as fronteiras entre o homem e o restante do animal. Nem do ponto de vista
anatômico-fisiológico, nem do ponto de vista da capacidade de comunicação,
nem do ponto de vista moral, nosso filósofo notou grandes diferenças entre o ser
humano e os animais. Nisso, La Mettrie foi precursor do antiantropocentrismo
moderno, saudado por Freud quando disse que o homem havia experimentado
três grandes feridas narcísicas em sua história: a primeira quando Copérnico
demonstrou que a Terra não ocupava o centro do universo, a segunda, quando
Darwin afirmou que o homem não tinha nenhum lugar privilegiado no mundo
animal, e a terceira, quando a psicanálise provou que o ego não era soberano
no psiquismo humano.[26] Não há dúvida de que La Mettrie deve no mínimo ser
colocado ao lado de Darwin como produtor da segunda ferida narcísica.

De qualquer forma, a tese da continuidade entre o homem e o mundo animal


está sendo cabalmente confirmada pela moderna biologia. As semelhanças
genéticas são extraordinárias. O genoma de mosca drosófila tem cerca de 15 mil
genes, ao passo que o genoma humano só tem o dobro de genes. O genoma
dos primatas superiores é semelhante ao humano em mais de 90%. Não se
comprovou ainda a tese de La Mettrie de que os papagaios podem manter com
seres humanos uma conversa racional, mas comprovou-se que a comunicação
é possível com gorilas que aprenderam a linguagem dos surdos-mudos.
É com base nessa continuidade de natureza na escala dos seres vivos que se
realizam as experiências transgênicas. Uma das mais controvertidas é a soja
geneticamente modificada, com utilização de genes de amendoim. Surgiram
animais fantásticos, como bagres com genes de truta, ou porcos com genes de
galinha, com quartos dianteiros avantajados, razão pela qual o animal foi
chamado, carinhosamente, Arnie, em homenagem ao ator Schwarzenegger. Há
todo um bestiário que teria fascinado Borges. Fala-se num animal chamado
Geep, misto de goat e de sheep. Mas há também experiências transgênicas
envolvendo seres humanos. Há uma vaca que produz várias vezes mais leite
que a média, porque foi implantado num touro um hormônio de crescimento
humano, que se propagou às suas descendentes. Porcos foram geneticamente
modificados para que possam fornecer órgãos para transplantes, sem risco de
rejeição. Qualquer dia a revista Superinteressante publicará uma reportagem
sensacional provando que os deuses do Olimpo eram na verdade biólogos que,
cruzando genes humanos com os de peixe, bode e cavalo, produziram,
respectivamente, sereias, faunos e centauros.

La Mettrie teria visto em todas essas conquistas da ciência moderna simples


confirmações de suas teorias sobre o continuum existente entre animais e
plantas, e entre o animal-máquina de Descartes e seu homem-máquina. A
continuidade obviamente existe. A questão é saber se com essa absorção total
do humano no reino animal não se perde algo, a capacidade dos homens de
interagirem entre si, como seres livres e moralmente responsáveis. Nesse caso,
não seria o reducionismo um sinônimo de desumanização?

Quanto ao niilismo, ele está implícito numa filosofia moral, como a de La Mettrie,
para o qual não existe nenhum fundamento objetivo para as normas. Esse
fundamento não pode ser a natureza, como achava Rousseau, porque a
natureza não tem nenhuma força normativa; não pode ser a razão, como julgava
Kant, porque a razão se limita a organizar e disciplinar as impulsões dos
sentidos; e não pode ser a própria sociedade, como supunham os utilitaristas
(D’Alembert, Holbach, Helvétius), porque ela se limita a produzir ficções úteis,
sem nenhuma validade à luz da razão. Para La Mettrie, o comportamento dos
homens é bom ou mau segundo nossas inclinações, por sua vez determinadas
por nossos órgãos, sem que sejamos responsáveis nem por nossas virtudes nem
por nossos defeitos. Ora, essa posição é pelo menos implicitamente a que
prevalece no novo paradigma. Existe um gene para cada uma de nossas
predisposições, desde o homossexualismo até a agressividade, e portanto
tendemos a agir num ou noutro sentido conforme esse gene figure ou não em
nosso patrimônio genético.

Certas posições contemporâneas com relação ao crime parecem ter saído


diretamente de La Mettrie. Vimos que para ele o crime é tão pouco voluntário
quanto a virtude. Os criminosos não podem se impedir de fazer o que fazem,
porque sua vontade é condicionada por seu organismo. Com isso, abre-se outra
linha de continuidade com o presente. Se o crime é algo de condicionado
biologicamente, é possível programar as pessoas para não desenvolverem essa
predisposição. Verificou-se que os criminosos têm um baixo índice de
serotonina. Não seria o caso de intervir nas pessoas para que apresentem um
índice mais elevado, com isso reduzindo sua predisposição para o crime? Que
eu saiba, não há ainda experiências nesse tipo de engenharia genética. Mas já
foram desenvolvidas técnicas de identificação de criminosos através de bancos
de dados de DNA. Na Alemanha, o Parlamento acaba de aprovar um projeto
prevendo a coleta de dados genéticos de todos os homens. Na Inglaterra já
existe um cadastro de criminosos, e há um projeto para cadastrar todos os 60
milhões de habitantes do país. Dada a escalada incontrolável da violência em
todos os países, é difícil ser contra esse tipo de identificação, que, com a ajuda
de materiais como esperma, cabelos, unhas etc., permitem testes de DNA que
levam facilmente à localização do criminoso. É um mundo orwelliano, com um
big brother científico capaz de ter acesso imediato a toda a nossa biografia a
partir de um fragmento de pele, mas talvez seja o preço a pagar por nossa
incapacidade de agir sobre as causas sociais do crime. Mais arrepiantes são as
consequências morais da tentativa de eliminar o crime por meio de uma
intervenção genética, porque a definição do que é criminoso varia de cultura a
cultura e de época em época. O adultério e a blasfêmia seriam crimes? E o crime
político, cujas fronteiras com o crime comum são notoriamente fluidas, seria
também suscetível de ser “operado”? E se descobríssemos um dia o gene da
feitiçaria, teríamos o direito de modificar geneticamente um bebê para que mais
tarde ele não se transformasse num pequeno bruxo, como Harry Potter?

Quanto ao autoritarismo, enfim, La Mettrie parece ter antecipado nos mínimos


detalhes a tecnocracia e a logocracia modernas. Num Estado racional, as
decisões não devem ser tomadas pelo povo soberano de Rousseau, e sim pelo
médico-filósofo de La Mettrie. Podemos agora compreender melhor o aparente
paradoxo formulado por La Mettrie há 250 anos, expresso no estatuto ambíguo
do cientista como político e apolítico ao mesmo tempo. A contradição
desaparece se considerarmos que os cientistas realmente não concebem sua
ação como política, porque eles intervêm como detentores de um saber,
objetivamente, respeitando todos os padrões de neutralidade exigidos pela
ciência. Mais radicalmente, não é uma ação política, porque visa precisamente
a expulsar a política, com sua irracionalidade e sua contingência, da esfera das
decisões humanas, que num mundo cada vez mais complexo precisam recorrer
a critérios cada vez mais científicos.

O ideal platônico dos reis-filósofos parece ter sido reformulado hoje exatamente
nos termos propostos por La Mettrie: a redefinição dos filósofos como cientistas
naturais, e dos cientistas naturais como médicos, isto é, especialistas do corpo
humano. Nessa utopia biológica que já se desenha no horizonte, o poder seria
exercido pelos que sabem manipular geneticamente o vil troupeau de que falava
La Mettrie, isto é, não pelos que sabem conduzir os homens pela fabricação de
ficções úteis, como dizia nosso filósofo, com um cinismo ainda inocente, mas
pela reprogramação genética dos homens, para torná-los mais dóceis e menos
violentos.

Nesse Estado científico, as relações interpessoais correm o risco de transformar-


se em relações comparáveis às que caracterizam o trabalho escravo.

Assim, a criação de identidades humanas baseadas no DNA pode resultar numa


nova forma de estratificação social, em que uma “elite genética”, composta das
pessoas mais saudáveis e mais inteligentes, subjuga a casta inferior, composta
das pessoas biologicamente desfavorecidas, predestinadas por seu nascimento
a uma condição servil.
A escravidão está na lógica do vínculo que se estabelece entre o sujeito e o
produto da manipulação genética.

A lenda e a literatura fantástica já tematizaram há muito tempo essa


possibilidade. Desde a Idade Média somos assombrados pelo pesadelo do
Golem, monstro de barro criado por um rabino de Praga. O Golem era um servo
infatigável, que atendia a todas as ordens do seu criador, até que por um
descuido do rabino o homúnculo se revoltou, destruindo tudo em sua fúria. No
século XIX, Mary Shelley imaginou a figura de um monstro produzido a partir de
fragmentos de cadáver por um estudante de química, Victor Frankenstein. Como
no caso do Golem, o monstro acabou voltando-se contra o seu criador. No filme
Metropolis, de Fritz Lang, um cientista cria um autômato, sob a forma de uma
figura feminina cuja função é pregar aos operários uma violência destrutiva. O
cinema de hoje põe constantemente em cena homens artificiais, androides ou
“replicantes”, como no filme Blade runner, de Ridley Scott. Em todos esses
exemplos há uma relação assimétrica entre criador e criatura, que poderia ser
assimilada à escravidão.

A assimilação não é evidentemente literal, porque esses “escravos”, por


definição, não são verdadeiros seres humanos. Mas a metáfora começa a tornar-
se realidade quando passamos da produção de homens artificiais para a
produção artificial do homem. É o caso, por exemplo, da clonagem. A iminência
da clonagem humana, que hoje é uma simples questão de tempo, dá uma terrível
atualidade ao tema da escravidão genética.

Num sentido muito metafórico, a “clonagem” já é antiga, constando


simplesmente da projeção de traços humanos para a formação de seres supra-
sensíveis. Para Feuerbach, por exemplo, Deus é um “clone” do homem, como
projeção de carências humanas. Para Lukács, as forças sociais que ameaçam a
classe operária são na verdade objetivações fantasmagóricas dela própria, pelas
quais os produtos da atividade proletária se transformam em entidades
objetivadas. Mas é uma “clonagem” figurada, em que os clones são duplos
imaginários do homem considerado como espécie.
Muito diferente é o que chamamos tecnicamente de clones, a produção de um
indivíduo geneticamente idêntico a outro indivíduo. A mera ideia dessa
duplicação produz aquela sensação que Freud chamava de unheimlich,
“inquietante estranheza”. O que dá seu caráter apavorante a um filme como Os
meninos do Brasil não é somente o fato de que os clones foram produzidos a
partir das células de Adolf Hitler, e sim o fato em si da clonagem. Continuaríamos
angustiados mesmo que o protótipo do qual foram gerados os clones fosse a
madre Teresa.

Em parte, nossa aversão tem algo de irracional, procedente das características


de uma espécie que ao longo dos milênios foi desenvolvendo o sentimento da
individualidade, do caráter único e irrepetível da pessoa humana.

Mas também é possível combater a clonagem com argumentos racionais. Não


me refiro tanto a objeções técnicas, como a de que se trata de um processo
ainda arriscado, já que vários embriões de ovelha foram sacrificados antes que
se pudesse chegar a Dolly. Penso mais em reflexões como a de Habermas, para
quem a clonagem equivale a uma verdadeira “escravidão genética”, em que uma
pessoa se arroga o direito de determinar o programa genético de outra, privando-
a de parte de sua liberdade e destruindo com isso a simetria que deve existir
entre todos os seres humanos como sujeitos morais, com direitos e obrigações
recíprocas. Sem dúvida, todos nós herdamos algumas predisposições genéticas,
mas a clonagem implica substituir um patrimônio genético aleatório, pelo qual
não podemos responsabilizar moral ou juridicamente nenhuma pessoa
específica, por um programa decidido expressamente pelo “clonante”. Vale a
pena ler a esse respeito os comentários de Habermas:

Nenhuma pessoa pode dispor sobre outra, controlando suas possibilidades de


ação, de tal modo que a pessoa dependente seja roubada de uma parte
essencial de sua liberdade. Essa condição é violada quando alguém decide
sobre o programa genético de outrem […] Isso distingue o caso do homem
intencionalmente clonado do caso dos gêmeos. O problema não está na
semelhança das partes originárias de uma célula, mas na arrogância e na
subjugação. Com essa técnica, cria-se uma competência decisória comparável
à que se dá na escravidão. A escravidão é uma relação jurídica, e significa que
um homem dispõe sobre outro como sua propriedade. Por isso é incompatível
com os conceitos constitucionais atualmente vigentes de direitos humanos e de
dignidade humana […] O clone se assemelha ao escravo na medida em que
pode transferir a outras pessoas uma parte da responsabilidade com que de
outro modo ele próprio deveria arcar.[27]

Em geral, essas preocupações seriam alheias a La Mettrie.

Ele não se teria horrorizado com a produção de homens artificiais, porque


sonhava com a perspectiva de criar Galateias à sua imagem e semelhança. Os
médicos eram novos Pigmaliões: graças à sua arte, “fazem mais que se criassem
novamente os homens”.[28] La Mettrie vê-se como um demiurgo, modelando o
homem novo segundo os princípios da filosofia hedonista. Como o cientista de
hoje quer produzir um homem sem o gene da violência, La Mettrie quer produzir
seres humanos que não se façam mal uns aos outros.

Por que não posso eu modelar os homens como uma excelente massa, fazer
com que eles se voltem para a segurança, o benefício e a beleza da pátria! Como
eles seriam nobres, doces, desinteressados, generosos, compassivos, sem
inveja, sem outra ambição além de serem úteis, contentes com tudo, sem
excetuar a fortuna e o sucesso dos seus inimigos! Mas não haveria inimigos na
sociedade que eu imagino; ela formaria uma só família, na qual cada um viveria
numa volúpia serena e virtuosa, e seus dias seriam puros e plácidos,
semelhantes a esses córregos cuja onda clara e filtrada por pedras porosas, que
a tornam ainda mais bela, se espalha na planície, seguindo um curso tão natural
e um declive tão suave, que parece verdadeiramente irrigá-la com prazer.[29]

Esses Adões virtuosos não se parecem com o Golem, mas nem por isso deixa
de haver uma relação de subordinação entre criador e criatura.

Quanto à clonagem, La Mettrie não veria nada de dramático na questão. Como


máquina, o homem pode ser objeto de produção em série, como qualquer outra
máquina. Uma simples máquina pode ser replicada por outras máquinas. É por
isso que, na fantasia do Sr. Máquina nos infernos, ele fica ao lado da forja dos
ciclopes, os operários metalúrgicos da Antiguidade. Depois do desmantelamento
do Sr. Máquina os ciclopes sempre poderão produzir uma cópia igual,
aproveitando as partes remanescentes da máquina original. Mas significaria isso
escravizar o “clone” do Sr. Máquina? Não necessariamente, poderia responder
La Mettrie, porque se esse clone fosse em tudo a réplica do Sr. Máquina,
herdaria também a capacidade de auto-regulação do seu modelo, e portanto a
competência para orientar-se no mundo de modo próprio, até mesmo insurgindo-
se contra as ideias do Sr. Máquina.

No fundo, as deficiências do novo paradigma, que nos levam a pintar com tintas
tão sombrias o seu lado anti-humanista, vêm do fato de que ele permanece
demasiadamente preso à segunda linhagem da Ilustração, a que privilegia a
dimensão biológica do humano. É a opção de La Mettrie, que, apesar de ter
prosseguido à sua maneira o combate da Ilustração a favor da autonomia,
conduziu sua luta numa perspectiva essencialmente biológica.

E se as duas linhagens se cruzassem? Seria uma experiência “transgênica”


bastante salutar.

O pensamento de esquerda sofre tradicionalmente de uma deformação


angelista, o pressuposto de que todos os males do homem vêm da sociedade, o
que ignora o fato de que o homem tem também uma biologia. É por isso que o
marxismo é um materialismo, sim, mas um materialismo histórico. Talvez a
injeção de uma dose saudável de biologia, no estilo de La Mettrie, pudesse dar
uma dimensão mais robusta a esse materialismo, depurando-o de sua herança
religiosa angelista, de uma contaminação gnóstica, uma gnose anti-physis que
só valoriza o lado não somático do ser humano.

Por outro lado, a valorização moderna do corpo guarda analogias suspeitas com
a eugenia do Terceiro Reich, com seu culto dos belos corpos, com sua apologia
da nudez, com sua exaltação do esporte, euforia que culminou nos Jogos
Olímpicos de 1936. A linhagem de La Mettrie é politicamente controvertida,
porque no limite redunda em inocentar a sociedade, afirmando que o crime e a
pobreza estão em última ou mesmo em primeira análise radicados em nossa
herança genética. Ora, não ganharíamos nada em substituir o determinismo
econômico, típico da primeira linhagem, pelo determinismo genômico, forma
contemporânea do determinismo maquinal, de La Mettrie. Se é verdade que os
genes determinam em grande parte o nosso comportamento, é também verdade
que por sua vez a realidade exterior age sobre nosso genoma, produzindo
mutações genéticas. De resto, por mais que a ciência demonstre que há um gene
do câncer, não conseguiu até hoje descobrir um gene do capitalismo, e é o
capitalismo que torna possível a indústria do cigarro, que transforma em
realidade a propensão genética ao câncer.

Penso que o cruzamento das duas linhagens poderia ser visualizado mais
claramente se voltássemos ao conceito-chave da Ilustração, o de autonomia, tão
frequentemente mencionado nesta palestra. A Ilustração nos legou duas formas
de autonomia, e não apenas uma. Por um lado, há a autonomia do homem como
indivíduo socializado e, por outro, a autonomia do homem como ser genérico. A
primeira é a autonomia de Espártaco, do homem que se emancipa socialmente,
quebrando todos os grilhões. A segunda é a autonomia prometeica do
homem-Deus, que leva às últimas consequências o processo de
dessacralização, transformando-se em criador de si mesmo, em agente de uma
interminável auto-poíesis.

Nenhuma das duas linhagens tem o monopólio de uma ou outra forma de


autonomia. Cada linhagem comporta as duas variedades, mas de modo geral
pode-se dizer que a primeira linhagem, a social, dá maior ênfase à autonomia do
indivíduo, e a segunda, a biologizante, à autonomia da espécie.

O erro da primeira linhagem está em ter subestimado o substrato somático da


autonomia. O erro da segunda linhagem está em haver sobrevalorizado esse
substrato, como fica perfeitamente claro em La Mettrie, que por ignorar a ação
no nível das estruturas sociais privou-se dos meios de dar condições concretas
de funcionamento à sua própria visão hedonista, baseada na emancipação do
corpo.

São grandes os riscos de que as duas vertentes da autonomia possam divergir.


A espécie seria autônoma, mas as sociedades seriam organizadas
hierarquicamente, com a autonomia assegurada apenas para uma elite
socioeconômica e tecnocientífica. Segundo esse modelo, a espécie teria a
autonomia necessária para produzir o homem novo, mas a autonomia política
estaria em mãos do rabino Judah ben Loew, criador do Golem, e do estudante
Victor Frankenstein, criador de um monstro anônimo.

No entanto, as duas autonomias podem coincidir. Nada impede que uma


humanidade que se tornou científica e tecnologicamente autônoma se organize
socialmente de modo a assegurar a autonomia para todos os indivíduos: homens
livres numa humanidade prometeica. Seria a reconciliação das duas linhagens,
sobre o pano de fundo de um saber integrado, capaz de aceitar a herança
biológica do homem, mas que a visse como um dado e não como um
destino.
No entanto, reconciliação não significa nivelamento. A democracia terá
sempre a última palavra. Ao fim e ao cabo, a autonomia não pode estar investida
nem no rabino nem no estudante, nem numa oligarquia econômica nem numa
elite de cientistas, mas no povo soberano. Contra a ditadura do gene, é preciso
proclamar a supremacia do dêmos. Depende de nós, agindo politicamente, ou
que não haja nenhum homem-máquina, ou que ele seja tão amável quanto o
homem de lata do Mágico de Oz, que acaba ganhando um coração no final da
jornada. É o homem como autor do seu destino, suficientemente corajoso para
rejeitar qualquer apelo a um pai transcendente, suficientemente humanista para
não transformar a pedagogia em arte de amestrar, e suficientemente
democrático para não substituir a política pela biologia.

Em parte, La Mettrie concordaria com isso. Afinal, apesar de sua ênfase


biológica, ele também se bateu pela autonomia individual e nunca negou que
dentro de certos limites a educação pudesse modificar a máquina humana. Além
disso, com certeza detestaria a ideia de uma reprogramação genética que
mudasse as condições sob as quais se processam a alimentação e a
sexualidade do homem. Na dúvida, ele preferiria continuar tomando seu vinho e
acariciando o seio de Philis.

Notas
[1] Ver, entre outros, dr. Raymond Boissier, La Mettrie; médecin, pamphlétaire et
philosophe. Paris: Les Belles Lettres, 1931.

[2] La Mettrie, Discours préliminaire, in Oeuvres philosophiques. Paris: Fayard,


1984, vol. I, p. 46.

[3] La Mettrie, Système &Epicure, ibid., p. 375.

[4] La Mettrie, Epitre à Mlle. A. C. R, ibid., vol. n, pp. 215-23.

[5] La Mettrie, Discours sur le bonheur, ibid., p. 257.

[6] La Mettrie, ibid., p. 159.

[7] Kant, “Beantwortung der Frage: was ist die Aufklärung?”, in Schriften. Leipzig:
Insel Verlag, 1921, vol. I, p. 165.

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