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O homem-máquina hoje
Resumo
Isso não o salvou da animosidade dos médicos e dos devotos. Sua situação
tornou-se perigosa e ele se asilou na Holanda, novamente em Leiden. Era um
país liberal, que tinha oferecido asilo a Descartes e a Bayle, e que publicava
livros proibidos em quase toda a Europa. Prosseguindo sua polêmica contra os
médicos charlatães, publicou em 1747 uma comédia, A faculdade vingada.
No mesmo ano, publicou O homem mais que máquina, em que reitera suas teses
sob o pretexto irônico de atacar a si mesmo. Essa sequência de heresias foi
demais, mesmo para a Holanda. Segundo Frederico, o Grande, La Mettrie
desagradou “os inimigos declarados da razão humana”, como os calvinistas,
luteranos e católicos, que, esquecidos por algum tempo de temas que os
dividiam, como a transubstanciação, o livre-arbítrio e a infalibilidade do papa, se
uniram para perseguir um filósofo que tinha o infortúnio adicional de ser francês,
numa época em que a França travava uma guerra bem-sucedida contra as
Províncias Unidas. Seu editor holandês teve que fazê-lo passar a fronteira
clandestinamente, para que não acabasse no cadafalso como um criminoso
comum.
Mas Frederico não era assim tão liberal. La Mettrie só pôde publicar o mais
sulfuroso dos seus panfletos, o “Discurso sobre a felicidade”, sob a camuflagem
de um prefácio a uma tradução francesa de Sêneca. Graças a esse artifício,
conseguiu enganar o rei e o impressor. Percebendo a fraude, o rei confiscou o
livro e obrigou La Mettrie a publicar suas obras filosóficas completas sem esse
texto. Para não comprometer sua reputação de tolerância, Frederico explicou ao
público europeu que se tratava apenas de um esboço, que tinha sido roubado,
que aparecera sem o consentimento do autor.
É preciso que o homem se feche entre quatro muralhas para ser livre? Sim, é lá
que ele se delicia, com um copo numa das mãos e o biquinho do seio de Philis
na outra, nessa dupla e doce embriaguez, em que o homem é bastante feliz para
se esquecer. É lá que à mesa, com nossos amigos, cada um com sua cada uma,
devemos mandar aos diabos todos os preconceitos do universo.
Por que relembrar hoje esse filósofo relativamente esquecido? Porque de certo
modo está mais na ordem do dia que a maioria dos pensadores do século XVIII.
Para entender essa afirmação, convém recordar que a Ilustração gerou duas
linhagens espirituais.
Uma tem sua origem em pensadores como Diderot, Helvétius, Holbach. Para
eles, o homem é determinado pelo meio, e consequentemente a mudança das
relações sociais pode modificar suas condições de existência. Essa linhagem
prolongou-se nos séculos XIX e XX nos utilitaristas, como Jeremy Bentham, e
nos liberais, como Stuart Mill, para os quais um homem novo pode ser produzido
pela legislação e pela educação, bem como nos marxistas, para os quais ele
pode ser produzido pela revolução social.
Pois bem, temos a impressão de que a primeira linhagem, depois de ter sido
dominante durante dois séculos, está cedendo lugar à segunda. Permanecemos
filhos da Ilustração, mas não é mais a mesma Ilustração. O homem novo
continua sendo um ideal, mas agora ele deve ser fabricado no laboratório, em
vez de ser um produto social.
Mas uma polarização tão extrema entre os dois La Mettrie e os dois paradigmas
é inutilmente maniqueísta. Não se trata de uma coisa ou outra, mas de uma coisa
e outra. Como veremos a seguir, La Mettrie tem lados humanistas, e também
anti-humanistas. E o novo paradigma suscita um justo otimismo, mas também
uma inquietação legítima.
II
O homem não poderia ser livre se estivesse sujeito a uma vontade que lhe fosse
exterior. Na concepção religiosa tradicional, o homem era filho de Deus, sujeito
à heteronomia da lei divina. Se é uma máquina, uma máquina auto-regulável,
um relógio que dá corda a si mesmo, não necessita nem de maquinista nem de
relojoeiro. Com isso, o homem passa a ser dono do próprio destino. Do mesmo
modo como não precisa de Deus, o homem não precisa de uma alma espiritual.
Sua alma é um princípio de vida, que dirige as funções do corpo, mas é tão
material quanto o próprio corpo. Como não existe mais alma espiritual, o corpo
é revalorizado. É agora a única realidade do homem, cuja função mais alta, o
pensamento, passa a ser exercida por essa coisa pensante que é o cérebro, e
não por uma substância espiritual mais elevada. Donde a importância de cuidar
do corpo, de preservá-lo, de protegê-lo da doença e da morte. A alma é
dessacralizada, mas apenas para que o corpo possa recuperar toda a sua
dignidade. De modo geral, pode-se dizer que para La Mettrie a concepção de
um homem-máquina, sem Deus e sem alma, não se destina a degradar o
homem, e sim a exaltá-lo. Pois seu valor não está em supostos atributos
espirituais recebidos ao nascer, e sim no que ele faz com sua inteligência,
qualquer que seja sua origem. Uma alma material capaz de pensar é superior a
uma alma tola e estúpida, por mais divina que seja sua proveniência. Há um
certo paralelismo entre essa concepção e o combate iluminista contra a nobreza
hereditária: o homem vale pelo que faz, e não pelo que herdou. O valor do
homem está no que ele faz de si mesmo a partir de sua condição material, e não
na posse de uma grandeza inata que ele não fez nada para merecer.
Esses preconceitos que La Mettrie tanto abominava não o deixaram em paz. Foi
perseguido por todos aqueles que ele chamava de “preconceitos ambulantes”,
os partidários da religião e do despotismo. Nisso ele não teve destino melhor que
o de Voltaire e de Rousseau, ambos vítimas de suas ideias. Há uma obra
divertidíssima, que é ao mesmo tempo um autodeboche e uma sátira contra a
perseguição que lhe foi movida pelos tolos e pelos devotos. Nesse texto, La
Mettrie relata a vida e a morte de si mesmo, que ele chama M. Machine. Note-
se que a gíria machin, derivado de machine, quer dizer “troço”, “fulano”, algo que
não nos ocorre imediatamente. O Sr. Máquina foi um pobre-diabo, bastante
doido, mas afinal era uma máquina, e uma máquina não faz o que quer, mas o
que tem que fazer. Não sabe em que retorta essa matéria pesada e grosseira se
organizou. Nasceu como um dos prodígios mecânicos de Vaucanson (autor de
autômatos famosos), como eles sem espírito, sem alma, sem razão, sem virtude,
sem discernimento, sem gosto, sem polidez e sem maneiras, pura máquina,
homem-máquina. Foi doutor em medicina, que honra para uma máquina! A maior
das loucuras do sr. Máquina foi ter achado que poderia destruir os preconceitos,
vendo-se como herói, o Hércules da república das letras. Mas, de novo, tem de
ser desculpado, porque, não tendo alma, prossegue com os giros e os
movimentos que lhe foram atribuídos desde sua origem. Ele age como máquina,
não é culpado. Copia, faz figuras, lisonjeia, dá cambalhotas à custa do seu
materialismo. Eis que ele morre. Está dormindo seu sono eterno às margens do
Aqueronte quando o barqueiro Plutão vem buscá-lo. Chegaram por um labirinto
tortuoso à forja dos ciclopes. Em frente dela havia uma sala onde ficavam os
charlatães e vários personagens da commedia dell’arte, como Scaramouche e
Pantalone, segregados de modo a que os outros súditos de Plutão pudessem
repousar com tranquilidade. Ele se apresenta, quando um dos seus desafetos,
que o sr. Máquina tinha acusado de vender títulos de doutor, o estrangula, e a
“alma” dele (pneuma, ar), não podendo sair pela traqueia, sai por trás. Com isso,
morre de vez, e sua pele é aproveitada para fabricar uma cornamusa, uma
espécie da gaita-de-foles. O autor se consola refletindo que, pelo menos
postumamente, o sr. Máquina havia contribuído para a alegria dos charlatães.[4]
Sob certos aspectos, La Mettrie partilhou o espírito filantrópico iluminista, que se
traduzia em causas como a libertação dos escravos ou a emancipação das
mulheres. Em La Mettrie a filantropia assumiu a forma de uma grande
indulgência com relação aos criminosos, que afinal não tinham culpa de terem
agido segundo os impulsos de sua máquina. É certo que o bem público exige a
punição dos transgressores — há que matar os cães raivosos e esmagar as
serpentes —, mas tais ações devem limitar-se ao que for estritamente necessário
para a proteção social. O ideal é agir preventivamente, atuando sobre os fatores
orgânicos que condicionam o crime.
Enfim, nunca La Mettrie foi mais homem da Ilustração que em sua defesa do
direito ao prazer. Nisso, seu pensamento pode ser considerado uma variante da
filosofia libertina do século XVIII. Na época, isso não era necessariamente um
insulto. A palavra não tinha mais o sentido exclusivo de livre-pensador, como no
século XVII, nem o sentido exclusivo de devasso, como nos séculos XIX e XX,
mas significava, na época das Luzes, a unidade das duas coisas, o homem culto,
sem preconceitos filosóficos ou religiosos, e o epicurista delicado, apreciador do
bom vinho e das mulheres amáveis. Como libertino, nesse sentido integral, La
Mettrie não era muito diferente de Diderot, que se bateu contra o obscurantismo
e escreveu uma obra erótica, As jóias indiscretas, nem de Mirabeau, tribuno da
Revolução e autor de vários livros de pornografia explícita. O libertino era aliado
dos filósofos, quando não era ele próprio um filósofo, e a esse título contribuiu
decisivamente para a desmoralização das bases morais do Antigo Regime.
Nesse sentido, um livro como Discurso sobre a felicidade é um texto libertino
típico, contendo toda uma visão emancipatória da sociedade. Ao mesmo tempo,
é uma obra inovadora, porque La Mettrie tenta enraizar a aspiração ao prazer na
constituição somática do homem. Nisso o livro contém traços
surpreendentemente modernos.
Por isso é preciso expulsar esse demônio que o homem tem dentro de si, que
não impede o crime e só faz “sobrecarregar máquinas lamentáveis e mal
reguladas (…) Já que os remorsos são um vão remédio para nossos males, que
eles perturbam mesmo as águas mais claras, sem clarear as mais sombrias,
devemos destruí-los; que não haja mais ervas daninhas misturadas ao bom grão
da vida, e que esse cruel veneno seja expulso para sempre”.[6] O que La Mettrie
está propondo, assim, através da apologia de um hedonismo sem limites, é nada
menos que a supressão da culpa, como instrumento de controle social interno.
Dado que ao mesmo tempo ele exalta, como bom iluminista, a importância da
razão, que ele identifica com a natureza, pode-se deduzir que será a própria
razão que vai regulamentar a vida social do homem, e assim nosso filósofo se
encontra com Freud, para quem a regulamentação pelo recalque é um
mecanismo infantil, e deve passar a ser feita pela razão. E, como nisso Freud é
inteiramente iluminista, podemos dizer que também por essa via La Mettrie
reafirma sua filiação às Luzes, cuja palavra de ordem é o ideal kantiano da
Mündigkeit, a chegada do homem à condição adulta, pela qual o próprio
indivíduo se autodetermina, sem direção alheia. “A minoridade é a incapacidade
de servir-se de sua razão sem ajuda de outrem.”[7] É o ideal de Freud, para
quem “o infantilismo deve ser vencido (…)O homem não pode ficar eternamente
criança.”[8] E é o ideal de La Mettrie: “Filósofos, ousai dizer a verdade, e que a
infância não seja a idade eterna do homem”.[9]
III
Foi o caso de Voltaire, que chamou La Mettrie de “intemperante”, disse que ele
era inconsequente, podendo escrever amanhã o contrário do que disse hoje, e
deu a entender que ele era louco ou um bufão.[11] Diderot vai mais longe. Faz a
apologia de Sêneca e por consequência ataca o Discurso sobre a felicidade, que,
como indica o título pelo qual é mais conhecido — O anti-Sêneca —, se propõe
justamente refutar o filósofo romano, defensor daquele ascetismo que La Mettrie
detestava. Para Diderot, La Mettrie é um autor sem julgamento, que nada sabe
de Sêneca, que não escreve em seu livro uma única boa linha que não tenha
tirado de outros autores, de quem se reconhece a frivolidade de espírito no que
ele diz e a corrupção de coração no que não ousa dizer, que afirma que o homem
é perverso por natureza, que tranquiliza o celerado no crime, o corrupto no vício,
cujos princípios, levados ao extremo, derrubariam a legislação, dispensariam os
pais de educar seus filhos, internariam no hospício o homem que luta contra suas
inclinações desregradas, em suma, era um ser dissoluto, impudente, histriônico,
adulador, feito para a vida das cortes e para o favor dos grandes. “Morreu como
devia morrer”, conclui Diderot, “vítima de sua intemperança e de sua loucura;
matou-se por ignorância da arte que professava.[12] E, no entanto, Diderot se
inspirou em La Mettrie, em suas especulações sobre o caráter dinâmico da vida,
nisso prenunciando o transformismo, e se apóia nele em um dos seus diálogos,
“O sonho de d’Alembert”.[13]
Hoje podemos não sentir a mesma aversão por La Mettrie, mas temos de admitir
que, apesar de sua defesa da autonomia, seu humanismo permanece muito
relativo. É que, se a concepção organicista e mecanicista do homem-máquina
permite fundar a autodeterminação humana em face do divino, ela é insuficiente
para pensar uma liberdade concreta dentro do social. A tirania e o preconceito,
para nosso autor, devem ser combatidos, mas somente na medida em que
impedem o trabalho dos filósofos. O prazer é reconhecido como a principal mola
do homem, mas só uma pequena minoria pode ser autorizada a seguir suas
inclinações naturais. Enfim, a lógica de uma concepção para a qual a biologia é
tudo e as influências do meio são praticamente nulas bloqueia qualquer hipótese
de uma ação capaz de modificar esse estado de coisas, seja pela educação,
seja pela transformação social, mesmo de caráter reformista.
A metáfora da medicina foi assim uma parte essencial das Luzes. Graças a ela,
passou-se a ver na doença uma desordem na máquina humana, e no
cristianismo uma infecção, um mal de caráter epidêmico, que se propagava pelo
contágio. Em 1798, o médico Johann Karl Osterhausen parodiou Kant, dizendo
que a Auflklärung médica era a emergência do homem de sua dependência, de
sua minoridade no tocante a assuntos relacionados com seu bem-estar
físico.[18] Marx salienta essa vertente médica nas Lumières. Segundo Marx,
foram os médicos que, com base em Descartes, fundaram o materialismo
mecanicista do século XVIII. Eles se apropriaram da vertente “física” de
Descartes, que vê o corpo como uma máquina, em contraste com a vertente
metafísica, a partir da qual uma alma é acrescentada por Deus a essa máquina.
“O materialismo mecanicista francês aderiu à física de Descartes, em contraste
com sua metafísica. Seus adeptos eram antimetafísicos de profissão, isto é,
físicos. Essa escola começa com o médico Leroy, atinge seu ponto culminante
com o médico Cabanis, e seu centro é o médico La Mettrie.”[19] Mas foi com La
Mettrie que essa exaltação da medicina foi levada ao extremo. A filosofia é “o
cadinho onde se evapora tudo o que é alheio à natureza, e o médico tem o dom
de desenrolar com suas mãos hábeis o carretel das coisas mais emaranhadas,
como desembaralha as doenças mais complicadas”.[20] Sim, a melhor filosofia
é a dos médicos.[21]
Esses homens excepcionais são necessários à política, diz La Mettrie. A
afirmação é surpreendente, porque La Mettrie havia separado radicalmente a
esfera da ciência, cujo objeto é a verdade, e sabia que a verdade do homem é o
prazer, e a esfera da moral, da política, da legislação, cujo objeto é a manutenção
da ordem social, e repousa numa teia de ficções socialmente necessárias. Daí
que a ciência seja verdadeira mas sem impacto social, e o mundo das normas
tenha eficácia coletiva mas seja falso. Com esse argumento, La Mettrie queria
assegurar que os filósofos não fossem inquietados em seu trabalho, porque nada
do que eles pudessem descobrir poderia causar nenhum dano à ordem pública.
Mas essa humildade era apenas aparente. Se tudo depende do organismo, o
mau funcionamento dos órgãos pode gerar graves lesões individuais e sociais,
e por isso a política deve fazer apelo aos especialistas. São os filósofos, ou
médicos, termos que La Mettrie usa quase sempre como sinônimos. Em
qualquer Estado bem organizado, os médicos é que deveriam assessorar o
príncipe em sua tarefa de induzir nos súditos as reações apropriadas, porque
são eles que conhecem as molas orgânicas que movimentam os governados, e
conhecem o segredo da fabricação dos mitos necessários ao bom governo. Com
efeito, a filosofia “estende suas asas sobre tudo, comunica a tudo sua força e
seu vigor […] Como é ela que trata do corpo em medicina, é ela que trata, embora
em outro sentido, das leis, do espírito, do coração, da alma etc.; é ela que dirige
a arte de pensar e isso quer ensine verdades, quer ensine erros”.[22] Cabe aos
filósofos julgar da justiça e da injustiça das leis, pesando-as na balança do
interesse social. Eles estão acima do povo, ignorante e incapaz de ter acesso ao
saber. O povo é um troupeau d’imbéciles mortels,[23] mas será tanto mais fácil
de conduzir, quanto mais o espírito humano adquirir força e luzes. Por
conseguinte, assim como se aprende em nossas escolas de equitação a colocar
freios num cavalo fogoso e a montá-lo, do mesmo modo se aprende na escola
dos filósofos a arte de tornar os homens dóceis e de pôr-lhes um freio, quando
não for possível conduzi-los pelas luzes naturais da razão.[24]
Por isso o Estado só pode ser dirigido por reis-filósofos, como Julião e Frederico,
ou por filósofos capazes de conduzir os reis segundo os princípios da ciência. O
paradoxo de um filósofo político e apolítico ao mesmo tempo, protegido por seu
apolitismo das perseguições do poder e participante por sua ciência de todas as
decisões que afetam o bem público, se esclarece se levarmos em conta o caráter
puramente tático dessas formulações. Como filósofo-médico, La Mettrie queria
ganhar nos dois tabuleiros. Sendo apolítico, o filósofo não deve ser inquietado
em seu trabalho científico, por mais heterodoxas que sejam as suas opiniões.
Mas como só ele sabe separar a verdade do erro, mesmo no que diz respeito às
ficções capazes de anestesiar o povo, sua participação na política é
indispensável. Voltaremos mais tarde a esse “paradoxo”.
IV
O mais curioso é que não foi somente o pensamento de La Mettrie que ressurgiu,
foi também sua ambiguidade. O novo paradigma tem aspectos luminosos e
sombrios, exatamente como a filosofia de La Mettrie. Nos dois casos há uma
coexistência às vezes simbiótica de humanismo e de anti-humanismo, e nos dois
casos ficamos ocasionalmente sem saber onde acaba um e onde começa o
outro.
O que poderia um leitor imparcial de La Mettrie, que fosse ao mesmo tempo um
observador atento do novo clima intelectual, dizer da relação de congruência
entre os aspectos positivos e problemáticos do novo paradigma e os aspectos
positivos e problemáticos do pensamento de La Mettrie?
Do lado positivo, há um novo impulso dado à velha ideia da autonomia, que como
vimos foi uma parte importante do pensamento de La Mettrie. Consolida-se a
autonomia com relação ao divino, porque mais do que nunca o homem sente-se
senhor do seu destino e do seu corpo, capaz de libertar-se de todas as
fatalidades que antes eram atribuídas à vontade de Deus, como certas
características somáticas, a predisposição para determinadas doenças e até a
duração da vida. E consolida-se a autonomia no campo das relações humanas,
num movimento circular pelo qual a ciência pode cooperar para a autonomia (por
exemplo, ajudando a destruir preconceitos racistas pela demonstração de que
de modo geral as disposições genéticas variam de indivíduo para indivíduo, e
não entre etnias ou culturas), e a autonomia fortalece a ciência, já que esta exige
uma moldura institucional que preserve a liberdade de investigação e um Estado
leigo capaz de levar adiante o secularismo moderno, evitando que o
obscurantismo religioso interfira com os rumos da pesquisa.
Assim como toda máquina que se preza passa por um rigoroso controle de
qualidade, está próximo o dia em que todos os corpos humanos passarão por
uma inspeção severa, desde o nascimento. Advoga-se, por exemplo, o uso do
teste de DNA para fazer diagnósticos precoces, revelando predisposições para
certas doenças muito antes que elas se manifestem. Nada demais, se o efeito
desses testes não fosse restringir a capacidade de auto-realização dos
indivíduos. No filme Gattaca, de Andrew Niccol, uma criança nasce pelo método
arcaico das relações sexuais dos pais, em vez de nascer pelo método
cientificamente mais perfeito da fertilização in vitro, que permite afastar a maioria
das doenças. O bebê é testado ao nascer e descobre-se que vai desenvolver
mais tarde uma severa cardiopatia e que tem uma esperança de vida de no
máximo trinta anos. Com isso, o rapaz perde a chance de ser o que ele mais
queria ser, astronauta. Ficção à parte, é mais que provável que com isso certas
pessoas não consigam empregos nem possam fazer seguros de saúde, pois
suas predisposições genéticas podem ser “acessadas” por qualquer um em
bancos de dados de DNA.
Quanto ao niilismo, ele está implícito numa filosofia moral, como a de La Mettrie,
para o qual não existe nenhum fundamento objetivo para as normas. Esse
fundamento não pode ser a natureza, como achava Rousseau, porque a
natureza não tem nenhuma força normativa; não pode ser a razão, como julgava
Kant, porque a razão se limita a organizar e disciplinar as impulsões dos
sentidos; e não pode ser a própria sociedade, como supunham os utilitaristas
(D’Alembert, Holbach, Helvétius), porque ela se limita a produzir ficções úteis,
sem nenhuma validade à luz da razão. Para La Mettrie, o comportamento dos
homens é bom ou mau segundo nossas inclinações, por sua vez determinadas
por nossos órgãos, sem que sejamos responsáveis nem por nossas virtudes nem
por nossos defeitos. Ora, essa posição é pelo menos implicitamente a que
prevalece no novo paradigma. Existe um gene para cada uma de nossas
predisposições, desde o homossexualismo até a agressividade, e portanto
tendemos a agir num ou noutro sentido conforme esse gene figure ou não em
nosso patrimônio genético.
O ideal platônico dos reis-filósofos parece ter sido reformulado hoje exatamente
nos termos propostos por La Mettrie: a redefinição dos filósofos como cientistas
naturais, e dos cientistas naturais como médicos, isto é, especialistas do corpo
humano. Nessa utopia biológica que já se desenha no horizonte, o poder seria
exercido pelos que sabem manipular geneticamente o vil troupeau de que falava
La Mettrie, isto é, não pelos que sabem conduzir os homens pela fabricação de
ficções úteis, como dizia nosso filósofo, com um cinismo ainda inocente, mas
pela reprogramação genética dos homens, para torná-los mais dóceis e menos
violentos.
Por que não posso eu modelar os homens como uma excelente massa, fazer
com que eles se voltem para a segurança, o benefício e a beleza da pátria! Como
eles seriam nobres, doces, desinteressados, generosos, compassivos, sem
inveja, sem outra ambição além de serem úteis, contentes com tudo, sem
excetuar a fortuna e o sucesso dos seus inimigos! Mas não haveria inimigos na
sociedade que eu imagino; ela formaria uma só família, na qual cada um viveria
numa volúpia serena e virtuosa, e seus dias seriam puros e plácidos,
semelhantes a esses córregos cuja onda clara e filtrada por pedras porosas, que
a tornam ainda mais bela, se espalha na planície, seguindo um curso tão natural
e um declive tão suave, que parece verdadeiramente irrigá-la com prazer.[29]
Esses Adões virtuosos não se parecem com o Golem, mas nem por isso deixa
de haver uma relação de subordinação entre criador e criatura.
No fundo, as deficiências do novo paradigma, que nos levam a pintar com tintas
tão sombrias o seu lado anti-humanista, vêm do fato de que ele permanece
demasiadamente preso à segunda linhagem da Ilustração, a que privilegia a
dimensão biológica do humano. É a opção de La Mettrie, que, apesar de ter
prosseguido à sua maneira o combate da Ilustração a favor da autonomia,
conduziu sua luta numa perspectiva essencialmente biológica.
Por outro lado, a valorização moderna do corpo guarda analogias suspeitas com
a eugenia do Terceiro Reich, com seu culto dos belos corpos, com sua apologia
da nudez, com sua exaltação do esporte, euforia que culminou nos Jogos
Olímpicos de 1936. A linhagem de La Mettrie é politicamente controvertida,
porque no limite redunda em inocentar a sociedade, afirmando que o crime e a
pobreza estão em última ou mesmo em primeira análise radicados em nossa
herança genética. Ora, não ganharíamos nada em substituir o determinismo
econômico, típico da primeira linhagem, pelo determinismo genômico, forma
contemporânea do determinismo maquinal, de La Mettrie. Se é verdade que os
genes determinam em grande parte o nosso comportamento, é também verdade
que por sua vez a realidade exterior age sobre nosso genoma, produzindo
mutações genéticas. De resto, por mais que a ciência demonstre que há um gene
do câncer, não conseguiu até hoje descobrir um gene do capitalismo, e é o
capitalismo que torna possível a indústria do cigarro, que transforma em
realidade a propensão genética ao câncer.
Penso que o cruzamento das duas linhagens poderia ser visualizado mais
claramente se voltássemos ao conceito-chave da Ilustração, o de autonomia, tão
frequentemente mencionado nesta palestra. A Ilustração nos legou duas formas
de autonomia, e não apenas uma. Por um lado, há a autonomia do homem como
indivíduo socializado e, por outro, a autonomia do homem como ser genérico. A
primeira é a autonomia de Espártaco, do homem que se emancipa socialmente,
quebrando todos os grilhões. A segunda é a autonomia prometeica do
homem-Deus, que leva às últimas consequências o processo de
dessacralização, transformando-se em criador de si mesmo, em agente de uma
interminável auto-poíesis.
Notas
[1] Ver, entre outros, dr. Raymond Boissier, La Mettrie; médecin, pamphlétaire et
philosophe. Paris: Les Belles Lettres, 1931.
[7] Kant, “Beantwortung der Frage: was ist die Aufklärung?”, in Schriften. Leipzig:
Insel Verlag, 1921, vol. I, p. 165.