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Hyperaspistes (1526)
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* [É interessante lembrar, neste contexto, que os teólogos
luteranos, incluindo Harnack, desde o século XVI tem sido
particularmente gentis com Marcião.
podes ver a revolta a surgir em todos os lugares porque os teus
livros são escritos em alemão.
O primeiro volume do Hyperaspistes termina com uma
grave descrição de como a revolução de Lutero lançara a
confusão em todas as condições sociais, políticas e intelectuais.
O segundo volume continha a defesa de Erasmo da humanidade
e do género humano. Mundo, história e natureza em conjunto
formam um cosmos divinamente criado, não um caos dividido
por terríveis tempestades causadas por um Deus furioso com a
rebelião humana. Novamente Erasmo começou pela arrogância
de Lutero. 3* Aponta que Lutero tinha descartou tudo o que
havia sido passado de pai para filho durante mais de mil anos e
todos os valiosos testemunhos de pensadores cristãos e sábios
pagãos. Lutero era um terrível simplificador, determinado a
pegar os cristãos nas pontas de um falso dilema e nos pontos
exagerados de sua doutrina. A sua tese, 'Se a vontade é livre, não
pode haver graça', era um absurdo. A graça auxilia e apoia o livre
arbítrio. Mais uma vez, Erasmo apresentou o Deus de Lutero
como um tirano perverso e cruel que apanhava amigos e
inimigos com garras insuportáveis e conduzia ambos ao
desespero. Estabelecia leis impossíveis e exigia tributos
impossíveis. Era um pai que brincava cruelmente com seus filhos.
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* Erasmus chama de Trotz, significativamente, a única palavra
alemã a ser encontrada em todo o tratado.
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Esta passagem captou o significado do ressentimento de Lutero
contra o seu pai biológico- em Eisleben - e seu pai espiritual - em
Roma - e os sistemas autoritários de Aristóteles e São Tomás!
clássicos e cristãos antigos da cultura. Apelou ao bom senso dos
homens. Indivíduos e humanidade como um todo, não são
absolutamente ímpios e perversos. A esplêndida defesa de
Erasmo baseava-se em uma proposição fundamental do
iluminismo cristão: "Foram deixados no homem sinais de tudo o
que é nobre e digno; ele tem inclinação para tudo o que é certo e
adequado, apesar do facto de que na maioria das pessoas há
uma tendência maior para o oposto. ' ‘Nem existe no homem
qualquer rejeição malvada de Deus, como existe no diabo; há
nele, sim, mais fraqueza do que malícia. Erasmo afirmou que
Lutero ignorou as diferenças de temperamento, hábitos,
ambiente, experiência e tentação ao condenar toda a
humanidade. Para Lutero, o homem inteiro (totus homo) era
totalmente mau, e esse mal havia sido criado por Deus. Mostrou
como Lutero necessariamente acreditava em Deus como a fonte
e origem de todo o mal. E negou isso categoricamente: Deus é
um bom artista, um bom Deus (bonus artifex, bonus deus), um
monarca iluminado que nunca força ninguém a fazer qualquer
coisa, mas convida-nos a fazer, permitindo-nos a maior
liberdade. Rejeitou violentamente o dogma luterano de que o
homem é incapaz de fazer o bem por sua própria vontade, tal
com um machado nada pode fazer sem um carpinteiro ou a
argila sem um oleiro.
A defesa do homem culminava em uma defesa da história
mundial. Lutero recusou-se a reconhecer qualquer virtude em
indivíduos e nações de tempos pré-cristãos e chamou ateu a
Erasmo só porque este afirmava que muitos pagãos fizeram
coisas admiráveis. Algum pagão alguma vez foi tão criminoso
para atribuir à humanidade as coisas de que Lutero a acusou?
Erasmo passou a mostrar enfaticamente que mesmo os
seres humanos não regenerados são bons, mesmo que apenas
de forma limitada. Nunca são absolutamente tão maus quanto as
criaturas retratadas pelo maniqueu Lutero. ‘Uma coisa não é
ímpia simplesmente porque é imperfeita. '(Nec statim impium
est, quod est imperfectum). Os judeus tinham a Lei, que era uma
coisa boa; os gregos, homens de génio, tinham grandes dons
naturais; mesmo Pilatos não fora mau mas sim fraco, e o próprio
Judas poderia ter mudado de vontade e agido bem, se quisesse.
Citando muitos exemplos da história antiga, da Bíblia e da
atualidade, Erasmo mostrou como as decisões livres são
possíveis na história humana e negou que a história é obra do
diabo, ou que o homem, como mercenário do diabo, apenas ode
desempenhar um papel do mal.
Erasmo apreciara muito o jovem Lutero, mas havia uma
lacuna intransponível que o separava dele e dos fanáticos, da
Alemanha do leste, do anseio popular pela salvação do mundo
humanista ocidental. A graça, segundo Lutero, galgou as
margens e rebentou os diques como uma torrente furiosa. O
indivíduo estava sozinho com o seu Deus, com o espírito de Deus
ofuscando-o, convocando-o para renovar a face da terra. Lutero
plantara a semente e colhera o redemoinho. Em sua experiência
extática de Deus, não havia teologia, nem metafísica, nem ética,
nem cultura, nem estado, nem igreja, nem história, nem
humanidade em busca de salvação e significado.