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Erasmismo em Espanha

Tradução de parte do capítulo XIV, pp. 259-266, da obra de Friedrich Heer, The intelectual
history of Europe, Cleveland, WPC, 1966

Depois de 1517, a influência de Erasmo começou a dominar as


influências puramente espanholas. * ° No seu prefácio ao Novo
Testamento grego e na Paraclesis ad Philosophiae Christianae Studium
(1516), Erasmo já tinha proclamado que a Bíblia traduzida pertencia às
mãos de cada mulheres, cada camponês, tecelão e peregrino. Os teólogos
eram os inimigos do uso da Bíblia entre as pessoas. Mas o verdadeiro
teólogo pode ser um tecelão ou um trabalhador que ouve e segue a
palavra de Cristo no Evangelho.
Em 1517, Cisneros convidou Erasmo para Espanha. Ao contrário de
Máximo, o Grego, Erasmo evitou a tremenda tarefa: non placet Hispania,
confessou a Thomas More. Para ele, a Espanha era um mundo diferente,
estranha, terrível. O secreto anti-semitismo deste germânico pode ter sido
um fator na sua decisão. Como muitos europeus, considerava a Espanha
completamente judaizante. Apesar dessa recusa, um canonista de Sevilha
traduziu a Querela Pacis. Nesta obra, Erasmo condenou os reis cristãos
por iniciarem guerras a fim de fortalecer a autoridade vacilante sobre os
seus próprio povos. O livro não impressionou a Espanha. As mentes ainda
não estavam maduras o suficiente para esse apelo à paz.
Em 1522, Erasmo dedicou a sua paráfrase do Evangelho de acordo
com S. Mateus a Carlos v. Apesar de Lutero e de ser atacado em Roma e
Espanha, Erasmo defendeu com firmeza as suas velhas convicções: o
Evangelho é totalmente desconhecido das grandes massas, e portanto,
deve ser traduzido em todas as línguas nacionais. do alemão ao hindu, já
que muitas pessoas simples nem mesmo entendem o significado do
Credo.
Erasmo foi promovido por Gattinara, Chanceler de Carlos v, o Bispo
de Valência, Pedro Ruiz de la Mota, e Luis Nuñez Coronel, que foi uma luz
brilhante da escolástica em Paris. O Papa Adriano VI, esperava Erasmo,
faria a paz no mundo por meio de uma reforma da Igreja. Como cidadão
do mundo (assim se proclamará em carta a Zuínglio de 1532) Erasmo veio
à corte de Carlos v de Espanha com os seus escritos. E aqui tornou-se a
alma e o espírito de uma revolução religiosa que atingiu as universidades
e todos aqueles que ansiavam pela reforma da Igreja. Erasmo trouxe o
Evangelho e S. Paulo, e exerceu uma influência vitalizante e edificante. **
Um volume de ensaios seus selecionados foi impresso em latim com o
brasão do Arcebispo Fonseca, impresso por Eguia, o impressor
universitário de Alcala. O próprio Grande Inquisidor aprovou a tradução
espanhola do Enchiridion.
O país estava intelectual e espiritualmente sedento e faminto. Em
1523, como sucedera em séculos anteriores em que as três religiões
(cristã, judaica, islâmica) viviam lado a lado, a Espanha teve traduções da
Bíblia. Bíblias foram proibidas após a expulsão do Judeus, visto que foi
notado que muitos que se tornaram convertidos sob compulsão
ensinavam aos filhos a lei mosaica da Bíblia. #? Quem não estivesse um
mosteiro ficava sem ensino, religioso ou secular. O arcebispo Erasmiano
de Valência, Manrique, queria pregadores, pois todo o país tem carência
deles. Os sermões eram realizados em cidades apenas oito vezes por ano.
Seiscentas localidades na diocese de Valência não escutara um sermão
desde que foram cristianizados, e Valência era a região mais bem
ordenada. Catalunha, por exemplo, atraiu os pregadores de Valência. **

Erasmismo espanhol
O Erasmismo espanhol estava ligado ao movimento dos Illuminati,
Alumbrados, perfectos e os rendidos. Todos preocupado com um
cristianismo dirigido para o interior, uma experiência pessoal da graça.
Deus era procurado nas próprias almas, na renúncia total do mundo e
coisas mundanas. Tauler e a devotio moderna foram apresentados a
Espanha ao mesmo tempo que Erasmo. Francisco d'Osuna, em seu Tercer
Abecedario ensinou que as cerimónias externas da igreja nada eram sem a
emoção interna do coração. Alacaraz ensinou: ‘O amor de Deus no homem
é Deus. #*
O perseguidor Melchior Cano veria mais tarde a essência dos
Iluminati nesta declaração. Em 1524 Francisco Ortiz pregou perante a
corte imperial em Burgos, que Cristo está tão completamente presente
nas almas dos justos quanto está no altar do Sacramento. Esta declaração
foi repetida pelo futuro pregador imperial Gil Lopez que, como Ortiz, foi
aluno de Francisco Hernandez. Neste período, os dois braços do
movimento de reforma religiosa - direita e esquerda - dificilmente eram
separáveis, embora os recogidos ortodoxos (os colecionados) tentassem
protegê-los dos heterodoxos dejados e perfectos (o sereno e o perfeito).
O principal livro lido por esses Illuminati não era Lutero (em 1525
três galeras venezianas carregadas com escritos de Lutero foram
confiscadas em Granada) mas o Enchiridion Militis Christiani que apareceu
em espanhol em 1524.4 ”
Erasmo escrevera o Enchiridion por causa da sua descoberta
entusiástica de São Paulo. Proclamou as exigências da consciência. Papas,
reis, prelados, todos seguem as massas na sua inclinação para o mal.
Apenas um pequeno rebanho é preparado para seguir a Cristo em pureza,
pobreza, simplicidade e só a eles é prometido o reino de Deus. Deste mdo,
ampliou a atitude pietista da devotio moderna em uma crítica ao
racionalismo religioso esclarecido da época. Ligou a exigência de um
cristianismo interior com o repúdio do mau clero que pervertia o povo por
meio de práticas supersticiosas, e que era em si mesmo, supersticioso e
tirânico. Esta crítica incendiou a Espanha. Maria Cazalla constantemente
citava o Enchiridion para provar que o culto da Igreja era apenas um
complexo cerimonial judaico. O efeito mais forte foi alcançado pela
declaração: Monachatus non est pietas. Se o monaquismo não era
piedade validada nem verdadeira espiritualidade encarnada, então toda a
Espanha e a estrutura da velha igreja era uma quimera.
Inácio de Loyola
É possível que Inácio de Loyola tenha abolido na sua congregação
coro, recitações e reclusão em suas ordens sob a influência de
Monachatus non est pietas. As alas direita e esquerda do movimento de
reforma ainda não estavam separadas nestes anos entre 1523 a 1532. O
jovem Inácio, como estudante em Alcalá, foi orientado para o Enchiridion
pelo seu confessor, Miona. Miona, que se tornou jesuíta vinte anos
depois, era nessa época amigo de Bernardino Tovar, o guia do Erasmismo
em Alcalá, onde o próprio Inácio foi considerado um alumbrado. Ele
formou um grupo apostólico leigo com estudantes pobres e distribuíram
esmolas. Grande parte do dinheiro pertencia a Diego de Eguia, cujo irmão
Miguel de Eguia, impressor de livros, era grande amigo de Erasmo. Em
1526 e 1527, Inácio e seus amigos foram proibidos pela Inquisição de
conduzir missões. Em Salamanca foi mais uma vez avisado, quando
reivindicou o Espírito Santo como o iniciador do seu esforço missionário. *
®
A evidência da influência de Erasmo neste movimento de reforma
inicial sobre Inácio é esmagadora. A indiferencia, um pré-requisito "para
encontrar Deus em todas as coisas" não estava longe do "entregar-se a
Deus dos dejados e recogidos. * ® Aproximou-se do espírito de Tauler
quando desejou entregar-se a Deus 'como se fosse um floco de neve a
tombar do céu'. A sua máxima 'Teu amor e graça são suficientes para mim'
concorda com o Enchiridion. Embora mais tarde Inácio rejeitasse
severamente Erasmo, como tantas vezes os filhos rejeitam os pais
espirituais, incluiu uma seleção dos melhores escritos de Erasmo nos
colégios e escolas de sua Ordem: Cícero, Virgílio, Demóstenes, Erasmo,
Melanchthon e Sturm eram os guias.51 Lentamente, hesitantemente, a
sua jovem congregação separou-se do misticismo e do radicalismo
eclesiástico e político da reforma inicial de Erasmo. E por muito tempo
recusou-se a participar da política de perseguição adotada em 1533.
De 1527 a 1532 o Erasmismo espanhol teve o seu auge ao serviço
da política mundial de Carlos v. Os Erasmistas na corte almejavam uma
reforma mundial através do imperador. Erasmo não compartilhava esses
sonhos. Almejava a paz por meio do equilíbrio de poder entre os príncipes
cristãos. A política imperial foi conduzida sob a fórmula un Monarca, un
Imperio, y una Espada (Uma monarquia, um império e uma Espada).
Voltava-se ao tempo medieval de Ludwig da Baviera. Mas os esforços do
imperador para induzir as ricas ordens espanholas a financiarem a guerra
contra os turcos foram em vão. O monaquismo espanhol respondeu com
uma acusação pública contra Erasmo em uma sessão das Cortes em
Valladolid em 1527 e exigiu uma investigação de todas as suas obras por
uma comissão teológica de monges. O imperador, o arcebispo, a
Inquisição, os Beneditinos, os Bernardinos, os Cistercienses e os
Jeronimitas eram a favor de Erasmo; as duas ordens mendicantes
(Dominicanos e Franciscanos) estavam contra. Erasmo foi criticado como
suposto autor de heresias e, especialmente, pela exigência de tolerância
religiosa. Depois deste ataque ser derrotado, um estado-maior de
Erasmistas (Valdés, Vergara, Virnes) iniciou um contra-ataque.6 * Entre
1527 e 1533 uma ampla corrente de pensamento Erasmiano inundou a
Espanha, guiada por uma pequena elite. Era dirigido a mulheres, que
constituíam o principal público de Erasmo, príncipes mercantes burgueses
e humanistas reformistas, mas também penetrou profundamente nas
camadas mais baixas da população.
O ano de 1527 em que Maquiavel e Castiglione morreram foi crucial
na luta em desenvolvimento sobre o Erasmismo. Foi o ano da conferência
de Valladolid contra Erasmo, mas igualmente importante, naquele mesmo
ano, as tropas imperiais saquearam Roma. O horror produzido na Cúria
conduziu inexoravelmente à ansiedade e estreiteza da Contra-Reforma.

Alfonso Valdés
O geral dos Franciscanos, Quiñones, disse ao imperador que se caso
se continuasse a comportar de forma tão inadequada para com o Papa,
não poderia mais ser chamado de Imperador, mas certamente um capitão
de Luther's. Isso era perigoso, escreveu Alfonso de Valdés no seu Dialogo
de las Cosas Ocurridas en Roma ( imp. 1529) em defesa do Imperador e
como prova de que o saque da cidade foi um ato de Deus. * 3 Era uma
grande acusação contra o papado belicista e contra a avareza de Roma
onde tudo tinha um preço, desde a Comunhão à Extrema Unção. Com
ironia sóbria Valdés descreveu as atrocidades da soldadesca imperial em
Roma. Mas o que faziam eles em comparação com os escândalos dos
cardeais mercenários e as atrocidades da Cúria? Seria tão assim ruim
Roma ser saqueada e as suas relíquias roubadas? A maioria delas tinham
sido saqueadas em todo o mundo. 'Eu mesmo vi o prepúcio de Cristo em
Roma, Burgos, Antuérpia; só em França existem mais de 500 dentes do
Menino Jesus. O leite da mãe de Deus, as penas do Espírito Santo são
preservadas em muitos lugares. '
O saque de Roma Deus abrira os olhos da cristandade para ver
como estava mergulhada em superstições. Através de Valdés, falava o
Erasmo do Encomion Moriae, e na Peregrinatio religionis de Valdés,
Calvino encontrou a inspiração para o tratado sobre as relíquias. Essa
rejeição do mundo arcaico, da sua magia cósmica sacramental, estava
enraizada na devotio moderna dos Países Baixos.
Agora, tornava-se politicamente virulenta à escala mundial por meio
dos Humanistas espanhóis. Nessa grande acusação contra o “paganismo
católico”, Valdés procurou provar que os antigos deuses pagãos eram
representados na contemporaneidade do Catolicismo pelos santos. Assim,
Marte era São Tiago e São Jorge; Neptuno era Santelmo; Baco era São
Martinho, Vénus era Madalena; o sacrifício do touro dionisíaco tornou-se
nas corridas de touros em homenagem a São Bartolomeu.

Este diálogo ainda manuscrito circulou por toda a Espanha, e


Fernando Colón fez com que fosse copiado em 1528 para a sua biblioteca
em Sevilha. Quando o núncio papal Bartolomeo Castiglione, o famoso
autor de Cortigiano, pediu que fosse destruído o Grande Inquisidor
Manrique declarou que nele nada encontrava de ruim. Na verdade,
algumas das páginas eram muito edificantes! Manrique afirmou que
escrever contra a falta de moral do papa e do clero não era razão
suficiente para instituir um julgamento por heresia. Isto era a Espanha
imperial, Erasmiana, de 1528.
Valdés compôs então a sua obra principal, o Dialogo de Mercurio y
Caron. Era uma grande expressão utópica da sabedoria perplexa de um
homem cristão da iluminação, não muito diferente da Utopia de More.
Um cardeal, um bispo, uma freira, e um conselheiro do rei francês, estão
sentados na barca de Caronte na sua jornada para o inferno. Apenas um
homem simples do povo e um franciscano encontram o caminho para o
céu. As almas destinadas ao inferno não entendem por que foram
condenadas. Então não realizaram mil serviços para a Igreja, indulgências
compradas, etc.? Mercúrio fala-lhes das jornadas que empreendeu
através da cristandade, mergulhada em desejo de poder, luxo, mentiras e
belicosidade, e pergunta: Não tendes vergonha de vos chamardes cristãos,
já que vivem pior do que os maometanos ou as feras? Não sabem o que é
a verdadeira vida cristã. Perseguem como tolos e criminosos cada
punhado de leigos simples que permitem que Deus os ilumine ou comece
uma vida de imitação prática de Cristo em constante oração interior! Na
redação final Valdés excluiu uma injúria contra a castidade (monachatus
non est pietas!) e retrata vários personagens nobres sacerdotais.
Baseando-se no livro sobre o principado de Erasmo, Valdés projeta uma
nova imagem do bom rei cristão.
O bom rei Polidoro, (Diálogo de Mercúrio y Caron) como todos os
personagens positivos de Valdés, atravessara um purgatório de pecados e
expiações até a graça o preencher. A transformação interna do rei trouxe
a reforma do Estado e, com a permissão do Papa, também reformou a
Igreja. O rei estava vinculado ao povo através do contrato social. Quando
falhou nas suas obrigações, o povo ficou libertado. O rei deveria ser
educado segundo linhas cristãs e a nobreza obrigada a que os filhos
aprendessem o comércio e as artes liberais. Novas cidades industriosas
surgiriam, e os infiéis se converteriam voluntariamente ao cristianismo. Os
conselhos de Polidoro ao filho mantiveram as ideias importantes do
Erasmismo sobre a paz. Devido à pressão das relações políticas da época,
Valdés não se atreveu a condenar, aberta e completamente, a guerra
contra os infiéis; limitou-se à defesa e apontou que um "terrível veneno se
esconde" por trás da guerra contra os infiéis, que desintegra a sociedade e
o próprio estado.
Maquiavel tinha a Espanha em vista quando descreveu Cesare
Borgia (Borja) e Fernando de Aragão como o tipo dos déspotas modernos
do estado nacional. Como disse Ortega y Gasset, o livro O Príncipe foi o
acrescento intelectual de um Italiano aos feitos de dois espanhóis. Os
historiadores tendem a apresentar os políticos e pensadores espanhóis
como adversários do maquiavelismo, mas isso apenas faz sentido se
permanecermos cientes da sutileza da interconexão. A prática, e até
mesmo a ideologia do maquiavelismo e do sistema totalitário do
absolutismo moderno, foram apresentados ao mundo pela Espanha.
Talvez não seja por acaso que os ditadores sul-americanos do século XIX
ainda personificavam a raposa e o leão de Maquiavel, em moldes clássicos
sem misturas; e não foram os cientistas políticos aristotélicos-escolásticos
de Espanha que criaram o verdadeiro anti-Maquiavel, como tantas vezes
se presume, mas sim os Erasmianos, os primeiros a ousar introduzir
categorias puramente cristãs no pensamento político.
As ideias de Erasmo sobre paz e tolerância acabaram por ser a
catástrofe dos Erasmistas. O mundo queria guerra. Isso ficou claro quando
a corte imperial chegou a Itália em 1529, para a coroação do imperador
pelo Papa. Quando Carlos v desembarcou em Génova, Juan Gines de
Sepulveda saudou-o com um discurso contra os Erasmianos, censurando a
"opinião sacrílega" que a "tolerância cristã" proibia lutar contra os infiéis
com a espada.
Na verdade, Erasmo declarou-se por muito tempo contra todas as
guerras, mesmo as guerras contra os infiéis, embora finalmente tenha
cedido e reconhecido um direito condicional de guerra contra os infiéis na
sua Consultatio de Bello Turcico.
Sepúlveda vinha da escola dos aristotélicos italianos. O estado tinha
o direito de usar todos os meios naturais para os objetivos do bem
comum. Não havia espaço para entusiastas e entusiasmos como os de
Erasmo sobre a paz e sobre o poder político do intelectual e a
transformação espiritual do indivíduo.
A figura crucial na luta sobre a herança erasmiana foi o próprio
imperador Carlos V. As questões da política e administração colonial sobre
que teve de decidir, alteraram a história subsequente do mundo, e a sua
falha em estabelecer uma autoridade responsável nas colónias fez parte
do fracasso mais amplo da sua vida.5 * Carlos v, como o último
borgonhês, foi um produto daquela atmosfera única no "outono da Idade
Média". **
Na corte dos Duques de Borgonha, o muito velho, o extático e o
ousadamente novo misturavam-se de uma forma notável. Havia um
espírito sem precedentes de autoconfiança. Os homens da corte de Carlos
o Temerário acreditavam que as terras da Borgonha eram as melhores
terras da Europa, terras de promissão. C´est en ce monde une paradis
terrestre, cantou Molinet. Este paraíso terrestre não era glorificado em
vão. As heranças celta, grega e romana tinham criado o centro
intelectualmente mais radiante nesta região que se estende desde os
Países Baixos ao Mar Mediterrâneo.
Carlos, o Temerário, que até fisicamente, se assemelhava aos
antepassados portugueses tinha o caráter e o espírito dos grandes
governantes esclarecidos do Mundo dos Três Anéis, combinados com a
herança arcaica do norte. A região da Borgonha era uma mistura de
elementos estranhos e esse padrão de governo criou o modelo para o
domínio de Espanha. Carlos, o Temerário, desenvolveu um cerimonial de
corte pomposo e estritamente formal que visava superar a ansiedade e a
preocupação através da rigidez da forma.
Carlos v introduziu-o em Espanha. A Ordem do Tosão de Ouro, a
ideia da cruzada, e a suposição do papel de salvador do Cristianismo, era o
programa. Este foi também o programa de Carlos V e da Espanha. A
cultura borgonhesa, sobrecarregada por muitos subsolos e
superestruturas diferentes, era melancólica. Essa melancolia era ‘terrível
em Hugo van der
Goes, elegíaca em Gerard David, doentia em Lucas van Leyden, titânica em
Peter Breughel”.1 Uma melancolia geral pairava sobre a literatura. Mas
essa mesma melancolia foi fecunda na devotio moderna, na Imitação de
Cristo, em Erasmo e Carlos v que eram de facto conterrâneos, e em Filipe
II.2

Bartolomeu de Las Casas


Que a Coroa não tenha desistido da luta pela humanização da
encomienda e para o estabelecimento legal dos índios, deve-se a
Bartolomé de Las Casas, (1474-1566). O que Erasmo, Valdés e Vives
pregaram, este simples leigo viveu. Experimentou a obrigação do
Evangelho enquanto vivia na sua encomienda. Transformou-se pela
experiência do espírito de Deus, e pretendia mudar o mundo. Em 1515,
voltou a Espanha para representar a causa dos Índios no tribunal de Carlos
v. Cisneros nomeou-o procurador-geral dos índios; tornou-se dominicano
em 1523 na esperança de ganhar algum apoio nesta luta. Cruzou o oceano
sete vezes para obter decretos do Imperador e do Papa adequados para
os Índios. Foi ele quem, a fim de proteger os índios fracos, defendeu a
importação de negros para o trabalho escravo.
A Espanha não pode esquecê-lo, e a Destruccion de las Indias foi
logo traduzida em muitas línguas. Este retrato implacável de um regime
colonial cruel levou a críticas históricas anti-espanholas por holandeses,
ingleses e franceses.*°
Inabalável apesar dos fracassos, Las Casas começou a irradiar uma
influência benevolente de uma forma única. Os índios eram vistos por

1
J. Huizinga, ‘Aus der Vorgeschichte des
niederlandischen Nationalbewussteins’, Int Banne
der Geschichte, pp. 213 ff.
2
A governanta portuguesa de Filipe II, Leonor de Mascarenhas, por exemplo, fez traduzir as Confissões
de Santo Agostinho. Uma brisa da reforma religiosa-humanística feminina também penetrou a corte
espanhola, como sucedeu com Margarida de Navarra e as cortes italianas de Nápoles e Gonzaga. Teresa
de Ávila residia com a família Mascarenhas.
muitos teólogos e juristas como bárbaros e servos, moral e humanamente
inferiores. Las Casas negou e lutou incansavelmente para melhorar a sua
sorte. O Conselho das Índias, a entidade legislativa espanhola para os
índios (e que decretou as Leyes Nuevas de 1542), ®1 o novo direito natural
e a política e a ética colonial de Vitória, Soto e Suarez, resultaram do
trabalho deste homem. Las Casas levou as ideias erasmianas de paz,
liberdade e tolerância para o Novo Mundo, as mesmas ideias que estavam
a ser destruídas no Velho Mundo.® *

O clima espiritual da Espanha mudou completamente.

O clima espiritual da Espanha mudou completamente quando Carlos


v voltou à Espanha em 1533; já não havia Erasmistas na sua corte. A
Espanha castelhana eliminou implacavelmente a outra Espanha,
europeizante e humanista. "Castela destruiu Espanha." O período de
abertura que começara em 1480 com o convite a estudiosos estrangeiros
e com o movimento de reforma em torno de Cisneros, já fora limitado
pela expulsão dos judeus em 1492 e a censura régia da imprensa dez anos
depois. Por volta de 1530 tudo Estava estreito e duro novamente. O
governo apoia vigorosamente pressionou o subsolo intelectual e popular.
* Rodrigo Manrique, o filho do famoso Grande Inquisidor, queixou-se
comoventemente do escurecimento em Espanha, onde todas as pessoas
educadas e eruditas eram aterrorizadas, declaradas hereges, perseguidas
como judias… O nosso país é um país de inveja, arrogância e barbárie.3

3
M. Bataillon, Erasme et l’Espagne p. 52; S. de
Madariaga, ‘Envy is the cancer of the Spanish
character’, Christopher Columbus, p. 169.

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