Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
No final do século XVI esse império ainda é imenso. Uma frase célebre
passa de uma geração para outra: O sol nunca se põe nas terras do rei de
Espanha. Embora Flandres, Portugal, Áustria e a Itália espanhola tenham se
separado do império, a frase continua sendo verdadeira. No Século de
Ouro, duzentos anos antes, um quarto da população da Terra dependia,
mais ou menos diretamente, do poder espanhol, ou seja, do rei da Espanha.
Essa proporção já não é tão grande. Por outro lado, nos campos social e
econômico, apesar dos esforços de Carlos III, a Espanha perdeu terreno. Os
olhares se dirigem mais para a Inglaterra, para Berlim ou para a França. Os
mais audaciosos se voltam até para os jovens Estados Unidos da América,
cuja recente independência e cuja constituição republicana ameaçam
provocar ventos de revolta nos outros povos do Novo Mundo. As velhas
monarquias começam a ficar inquietas: e se a república atravessar o
Oceano, de oeste para leste?
É bastante comum, na Europa, falar-se de declínio da Espanha, coisa
que começou cento e cinqüenta anos antes. Mesmo em Madri, alguns já a
consideram atrasada, fora do jogo.
No entanto, nos mapas do mundo, ela está em toda parte.
Por outro lado, a surdez de Goya tornava difícil alguma conversa entre
eles. O pintor não queria envolver Anselmo, seu assistente-intérprete,
nessa confidência. Também conversavam sobre outras coisas. Às vezes
Bilbatua murmurava que os fantasmas são os donos do mundo. Goya,
quando entendia, aprovava balançando a cabeça. Sim, os fantasmas são
insistentes, tenazes, inflexíveis justamente porque não podemos vê-los.
Você vê os fantasmas?, perguntou um dia a Goya. Certamente vê,
porque depois os mostra.
Eu não sei de onde eles vêm, respondeu Goya. E não sei quem são.
Minha mão os vê, sim. De repente estão ali, sob os meus dedos. E não posso
enxotá-los. Não há nada a fazer. É como se essas caras de demônio ou esses
rostinhos de anjos ficassem escondidos na minha mão e saíssem de vez em
quando.
Era ele o que falava mais, como costumam fazer os surdos. Contava a
Tomás, por exemplo, seu encontro com a incomparável e única María
Cayetana, a duquesa de Alba em pessoa, a maior dama da Espanha, e
também a mais sedutora.
Estava apaixonado por ela, à sua maneira, havia mais de cinqüenta anos,
coisa que nunca confessou a Tomás, nem a ninguém. A duquesa lhe
encomendou vários retratos, pintados com mão precisa e terna, recebeu-o
no palácio e até mesmo o convidou à sua propriedade de Sanlucar, na
Andaluzia, lugar delicioso onde permaneceu longo tempo. Num dos
retratos, vemos a duquesa apontando para duas palavras ali inscritas pelo
pintor: solo Goya. Só Goya.
Teriam sido mais íntimos que isso, como se comentava? Goya jamais
disse nada a ninguém. E ela tampouco.
Em 1799, Goya publicou Los Caprichos, uma série de oitenta gravuras
em que, como ele mesmo escreveu, o sono da razão produz monstros. Na
capa do álbum, o artista se representou aos cinqüenta e três anos, com o
lábio inferior volumoso, o olho um pouco torto, os cabelos grisalhos, o
queixo caído, com um chapelão preto e um ar de desilusão e indiferença,
como que a dizer: eis como sou e eis o mundo que vejo, não posso fazer
nada. Um mundo em que há criaturas graciosas, dessas que são chamadas
de coajas, moças elegantes e muitas vezes fáceis, usando calçados finos
(sempre com um salto em pirâmide), os pés separados, às vezes levantando
a saia para mostrar a perna (indício certo de prostituição), mas também
aias partidas em quatro, monges disformes e sedutores, feiticeiras, galinhas
humanas sem plumas, espectros empestando o ar, bodes gigantescos,
tribunais infames, mortos saindo do túmulo.
Razão adormecida: lugar dos caprichos. Algumas dessas imagens
lembravam aquelas que estiveram, alguns anos antes, nas mãos dos
inquisidores, e que Lorenzo defendeu com denodo. Elas provocavam
surpresa, às vezes até escandalizavam. Os espíritos religiosos não viam ali o
menor sinal de piedade, muito pelo contrário. Padres e monges tinham
expressões de horror. Via-se um penitente diante do tribunal da Inquisição,
com o grande chapéu cônico na cabeça que era a marca dos acusados.
Imagem inventada, sonhada talvez, porque Goya jamais assistiu a uma
cena dessas.
Ele não escrevia um diário. Pouco falava do seu trabalho, das suas
intenções. Quando lhe perguntavam, como fez Bilbatua duas ou três vezes,
e não apenas a respeito dos fantasmas: Por que fez isso? De onde isso veio?,
limitava-se a fazer um gesto vago, indicando que não tinha a menor idéia, e
logo falava de outra coisa.
Ocasionalmente fingia não ter entendido a pergunta. Duas ou três vezes,
respondeu: Eu vi isso, sem explicar de onde vinha essa visão, da sua mão ou
dos seus olhos, de que lado da realidade do mundo. Eu vi.
A Espanha inteira estava incluída nesses caprichos: uma natureza
inexorável, um céu escuro do qual não se pode esperar nada, embora não
consigamos deixar de rezar, uma opressão antiga, inaceitável, mas
constantemente renovada, como se renascesse de si mesma, uma
resignação revoltada e subitamente furiosa, uma estranheza normal, a
presença da morte como membro da família, a certeza tranqüila de que a
razão não domina o mundo e a verdade suprema é certamente irracional,
demônios sentados ao lado do fogo, a passagem súbita de um sorriso de
mulher para os sonhos mais sombrios.
A Espanha inteira, e muito mais. Ele ganhava dinheiro. Muito dinheiro,
sobretudo graças aos retratos que lhe encomendavam sem parar. Toda a
alta sociedade se precipitava para desfilar diante dele, a condessa de
Villafranca, a marquesa de Santa Cruz, o industrial Pérez de Estala, e atores,
e cantoras. O filho de um modesto artesão dourador aragonês, agora artista
número um da Espanha, desfrutava de uma casa magnífica, com um belo
pátio, num bairro fino. Ele comprava livros, jóias, e também quadros, de
Tiepolo, de Corrège.
Os acontecimentos políticos, ou militares, não pareciam atingi-lo até
então. Ele se limitava a fazer seu trabalho, isolado num silêncio verdadeiro.
Quando a duquesa de Alba morreu de uma intoxicação alimentar, no dia
23 de julho de 1802, uma testemunha contou que Goya perambulou longo
tempo por Madri, sozinho, mudo, sem se dirigir nem responder a ninguém.
Mas não escreveu nada, não disse nada. Também sobre isso, guardou suas
emoções para si.
No começo de maio de 1808, quando o povo atacou os mamelucos de
Murat, e pagou caro no dia seguinte, Goya estava em Madri. Recebeu
informações diretas da revolta e da repressão. Na certa até viu imagens,
não podendo ouvir os sons. Que ficou abalado, não há dúvida. Contudo,
esperou seis anos para pintar as duas telas famosas, Dois de Mayo e Três de
Mayo. Pondo o acontecimento acima de si mesmo, inscreveu-o para sempre
em todas as memórias, embora houvesse recusado, no calor do momento, a
expor os dois quadros em público.
Quando Carlos IV, seu protetor, deixou a Espanha para ir a Baiona ouvir
que não era mais rei, Goya certamente teve alguma preocupação por sua
situação material.
Deveria partir também, diante dos problemas que se precipitavam?
Mas, para ir aonde? Decidiu ficar.
Napoleão não conhecia a Espanha e menos ainda os espanhóis. Talvez
confundisse o povo com os dois indivíduos, o rei Carlos IV e seu filho
Ferdinando, com quem esteve nos arredores de Baiona. Seja como for, não
os levou em consideração. Embalado pelo sucesso, brincando de
marionetes com os reis da Espanha - que, como diz também Chateaubriand,
a um gesto dele iam e se jogavam pela janela-, às vésperas de se casar com
a filha do imperador da Áustria - que escolheu entre outras princesas e sem
considerar a força dos povos, só a dos exércitos -, espírito rápido e cheio de
preocupações, prestou uma atenção apenas superficial, e no fundo irritada,
às recomendações enviadas por seu irmão, que sentia no ar uma revolta
geral em gestação e só queria, além do mais, voltar para Nápoles.
Na verdade, depois das execuções de maio ninguém havia ganhado a
Espanha, como Murat anunciou, e sim perdido. O país inteiro, até as ilhas
Baleares, preparava-se para resistir. Viu-se até o alcaide de uma aldeia,
Mostolés, situada a oeste de Madri, declarar a guerra diretamente a
Napoleão. Oficiais espanhóis, suspeitos de cumplicidade com os franceses,
foram assassinados por seus homens.
Tudo explodiu em Saragoça, a capital da província de Aragão, que se
levantou sob o comando de um grande chefe de guerra, o duque de Palafox,
que prometeu aos franceses, como na famosa fórmula, guerracuchillo
(guerra e cutelo). Os exércitos franceses sitiaram a cidade duas vezes. O
primeiro sítio, após uma resistência muito dura, foi levantado pelo próprio
José Bonaparte, que, diante do elevado número de mortos (dos dois lados),
retirou a maior parte das tropas. Ele não gostava daquela guerra e fazia
todo o possível para interrompê-la, para torná-la inócua.
A cidade teve alguns meses de trégua. Goya foi então visitá-la. Era a
cidade da sua juventude. Ele a conhecia bem, havia pintado afrescos ali, no
teto da catedral.
Horrorizado com o que viu (ruínas e mortos), começou a desenhar, em
cadernos de esboços, o que iria tornar-se, pouco a pouco, Os desastres da
guerra, o catálogo mais cru, mais exato, que um homem já concebeu e
realizou sobre a paixão pela atrocidade que nos habita.
Deixou a cidade antes do reinício das batalhas, passou rapidamente por
sua aldeia natal, Fuendetodos, e voltou a Madri.
O segundo sítio de Saragoça, que durou dois meses, é inesquecível para
a memória espanhola. É um episódio marcante da história das resistências
heróicas. Os soldados franceses acreditavam, como Napoleão dissera, que
seriam recebidos como libertadores, mas tiveram que lutar rua por rua,
casa por casa, atirando em mulheres e crianças. Uma certa Agustina
Zaragoza ficou famosa para sempre. Ela trazia os víveres para os
canhoneiros e, quando estes foram todos abatidos (seu amante, parece, era
um deles), encarregou-se sozinha da peça e continuou atirando. O general
Lannes escreveu a Napoleão que nunca houve uma resistência tão furiosa
de um povo em guerra. Viram-se doentes e feridos pulando pelas janelas de
um hospital em chamas para serem empalados nas baionetas francesas.
Viram-se loucos, libertos dos asilos, correndo pelas ruas e cantando
canções. Contaram-se cinqüenta e quatro mil mortos entre os habitantes da
cidade, que ao final se transformara num espetáculo de escombros e
cadáveres.
Palafox, ferido, ficou preso durante quatro anos (Goya pintaria seu
retrato eqüestre, mais tarde, mostrando ao longe uma cidade em chamas).
Enquanto várias delegações secretas chegavam à Inglaterra para pedir
uma ajuda direta, após a trágica queda de Saragoça, a guerra parecia
amainar por um tempo. Oficialmente, a França tinha vencido. Napoleão
veio pessoalmente a Madri, para confirmar a vitória com sua presença,
como um animal marca o seu território.
Ficou apenas um dia, o que por certo lhe pareceu suficiente. Ainda havia
escaramuças entre soldados franceses e grupos de resistentes espanhóis,
aqui e ali, até em Madri. A Inquisição foi abolida por decreto, em nome da
liberdade de pensamento, sob os aplausos dos ilustrados. Soldados
franceses irromperam à força no velho mosteiro. Um dos oficiais entrou na
capela sem saltar do cavalo, interrompeu um culto e, com um tiro de
pistola, matou um dos dominicanos que estava lendo o Evangelho do dia e
que, obedecendo a uma discreta indicação do padre Gregorio, se recusou a
interromper. O confessor quase não teve tempo de fazer o sinal da cruz
sobre o rosto do monge que estava morrendo ao pé do altar.
O oficial perguntou se era ele, Gregorio Altatorre, o responsável pelo
lugar. O inquisidor respondeu calmamente, em voz baixa, ajoelhado junto
ao monge morto, que ali o responsável era Deus, como em qualquer outro
lugar sagrado na Terra.
O oficial, sem descer do cavalo, disse que por ordem do imperador
Napoleão, e em virtude da Declaração dos Direitos do Homem, a Inquisição
estava abolida em todo o território espanhol e seu patrimônio confiscado
em benefício do povo. Depois, no mesmo dia, todos os dominicanos foram
conduzidos, a pé, para uma prisão em Madri, onde iriam esperar o
julgamento. Só levavam consigo, em sacos ou caixas, algumas roupas, um
barbeador e um par de sandálias. Todos os livros religiosos, todos os
símbolos sagrados estavam estritamente proibidos. Os objetos de culto
foram confiscados, exceto aqueles que, por precaução, haviam sido
emparedados nos subterrâneos do convento.
Os soldados fizeram pilhas de livros, que tentaram queimar. Mas os
livros não queimam bem, religiosos ou não. Por falta de tempo, acabaram
ficando ali, no meio do claustro, enegrecidos pelas chamas, deformados,
ainda fumegantes.
Os prisioneiros da Inquisição foram libertados. Eram pouco numerosos,
apenas quinze, aqueles que ainda esperavam o julgamento ou cumpriam
sua pena. Foram recebidos lá fora por parentes e amigos, que haviam
trazido cobertores, roupa quente, meias, tamancos, luvas e garrafões cheios
de água ou leite.
Inês foi uma das últimas a sair. Mais de quinze anos haviam passado
desde o dia em que um monge calvo levou uma intimação, escrita num
pergaminho, ao pátio da mansão.
Ninguém a esperava. Saiu sozinha e apavorada, caminhando com passos
curtos, sem saber para onde ir. Piscou ao rever a luz, tal como os outros
prisioneiros que se afastavam com suas famílias. Não conseguia entender
quem eram aqueles soldados, o motivo dos tiros que se ouviam ao longe,
daqueles cavalos que passavam a galope, dos homens armados que
berravam. Sua boca estava torta para um lado, sua pele, murcha e marcada
pela varíola, seu olhar parecia velado. Não tinha mais dentes. Seu cabelo
grisalho estava colado na pele e ela exalava um fedor de sujeira. Suas
pernas, magras, sujas, descobertas até os joelhos, mostravam marcas de
equimoses. Não era possível calcular sua idade.
Uma das mulheres que esperavam a libertação dos prisioneiros,
anunciada naquela mesma manhã por um pregoeiro público nas ruas da
capital, perguntou algo a Inês sobre um homem que estava procurando.
Inês não teve a menor reação diante do que a mulher dizia, como se não
houvesse entendido, ou ouvido, a pergunta. Olhou-a de relance e continuou
a andar lentamente, arrastando os pés. A mulher tomou-a por louca, o que
talvez fosse, e foi procurar em outro lugar.
Um pouco adiante, dois soldados franceses lhe perguntaram, vendo-a
perdida, se queria subir numa charrete que transportava objetos sacros -
hostiários, vasos, candelabros - e voltar assim a Madri. Como falavam em
francês, ela não entendeu. No entanto, em silêncio, como um personagem
mecânico, deixou-se levar até a charrete e instalou-se como pôde no meio
do butim, que os soldados cobriam com tapetes usados que acabavam de
apanhar na biblioteca do mosteiro e, pelas dúvidas, também levavam.
Percorreu assim o caminho até Madri, no mesmo passo, ou quase, que a
coluna de dominicanos escoltada por meia dúzia de cavaleiros.
Na entrada da cidade, tudo indicava uma batalha recente e furiosa. Uns
soldados que acabavam de entrar numa casa de onde haviam partido tiros
jogavam pelas janelas os corpos decapitados dos habitantes. Os cadáveres
se espatifavam no piso de pedra, assustando as aves errantes. Vagabundos
se precipitaram para fuçar nos bolsos e tirar seus calçados, sobretudo
botas, quando as usavam. Crianças, no meio da guerra, brincavam de
guerra.
Algumas fingiam estar mortalmente feridas e caíam ao lado dos mortos
de verdade, soltando um grito. Porcos e cachorros, procurando alimento,
descobriam o gosto da carne humana. Às vezes um pelotão francês passava
a cavalo, de sabre na mão, e todos os personagens vivos da rua sumiam por
um instante, para tornar a sair quando os soldados desapareciam.
Inês olhava tudo aquilo com indiferença, talvez ausente desse mundo
perturbado. Ou melhor, nem olhava, parecia não ver nada à sua volta. Os
tiros e os latidos dos cachorros não a assustavam. Quando chegou a Madri,
deslizou para fora da charrete. Depois, lentamente, pois tinha dificuldade
para movimentar as pernas, ainda meio paralisadas pelo longo cativeiro,
avançou passo a passo pelas ruas, com os olhos entrecerrados, como se o
seu corpo já conhecesse o caminho a seguir. Ninguém reparava nela. Podia
ser tomada por uma mendiga aparvalhada, exausta, ou por um espectro
vacilante saindo penosamente das sombras.
Depois de caminhar por meia hora, chegou à casa dos seus pais. Seu
corpo havia lembrado do lugar. Passou pelo portão agora arrebentado e
entrou no pátio, onde só havia escombros, como num campo de batalha:
louça quebrada, um burro morto, uma pele de jacaré rasgada, pedras,
palha. Passo a passo, chegou à escada principal e começou a subir os
degraus, com o olhar perdido e a boca entreaberta. Não havia o menor sinal
das tapeçarias de antes, que ela talvez recordasse vagamente, nem dos
quadros. Tudo havia sido arrancado das paredes. Seus pés pisavam em
pedaços de madeira e de gesso.
Como na parte sombria de um conto, Inês subiu lentamente até o
primeiro andar dessa casa, antes esplêndida, em que havia nascido, onde
crescera em meio a todas as riquezas do mundo, onde tinha sido amada,
mimada, festejada, servida, e que agora quase não reconhecia. Sua própria
razão, sufocada pouco a pouco por anos de solidão e de tristeza, não podia
estabelecer nenhuma relação entre a felicidade de antes e o desastre de
hoje. Talvez não pudesse sequer admitir a realidade da destruição.
Uma feiticeira má, a pior de todas, aquela que é conhecida como guerra,
tinha passado por ali poucos dias antes, num violento combate entre
resistentes espanhóis e soldados franceses, como acontecia com
freqüência, apesar da paz oficial e dos esforços do rei José. Nunca se soube
a identidade exata dos responsáveis por aquela pilhagem. Uns acusaram os
outros, e viceversa.
Tudo fora roubado, os modelos em escala dos barcos, os lustres, os
móveis, os pêndulos, a baixela das cozinhas, até os azulejos de cerâmica em
quatro cores que vinham de Sevilha e os assoalhos franceses conhecidos
como estilo Versalhes.
Quando entrou na sala de jantar, onde só restava a mesa grande, por
certo intransportável, ela viu no chão pernas esticadas cujos sapatos
tinham sido roubados.
Aproximou-se, contornando a mesa, e olhou. Viu a cabeça dos mortos.
Tomás Bilbatua e seu filho Angel haviam sido espancados, com sabres ou
com os punhos. Por certo tentaram resistir. Não se mexiam mais. Tinham
sangue coagulado no peito e no pescoço.
Inês parou diante dos cadáveres, com os olhos ainda abertos.
Impossível saber se os reconheceu imediatamente. A alguma distância de
sua nova casa, Goya manteve um de seus antigos ateliês. Trabalha lá de
noite, quando está atrasado ou quando tem necessidade de solidão e
discrição. Seus assistentes já voltaram para casa. Está sozinho. Sente-se um
pouco rígido, um pouco hirto, porque está com uma cobertura diferente na
cabeça. Seis velas acesas haviam sido dispostas nas abas de um chapéu
comum, o que lhe permite trabalhar até tarde sem necessidade de um
assistente ao seu lado, segurando uma candeia.
Um cachorro dorme, deitado num saco. Goya resiste ao cansaço. Na
juventude correu pelas colinas rochosas que cercam Fuendetodos, jogou
bola, treinou com a capa diante dos touros (dizem até que pertenceu,
durante algum tempo, à cuadrilla de um matador). Durante muito tempo
fez caçadas, a pé e a cavalo. Aos sessenta e quatro anos, apesar da surdez, e
do inevitável peso do corpo, ainda é um homem forte, atarracado, capaz de
se manter firme sobre as pernas, em frente ao cavalete, durante horas.
Ele sabe, como todo mundo, que a cidade de Madri está novamente em
crise. Um pouco antes, um clarão havia iluminado sua janela. Mesmo sem
ouvir nada, foi até lá, para dar uma olhada na rua, sem largar a paleta e os
pincéis. Não viu nada. Uma explosão, certamente, ao longe. A gente se
acostuma.
As imagens de Saragoça o perseguem. Ele trabalhou num retrato de
Agustina Zaragoza. Nos seus cadernos e em folhas avulsas rabiscou
centenas de esboços. Talvez algum dia faça alguma coisa com eles: os
Desastres, a que retorna sem parar. Mas a quem mostrar isso? Aos
vencidos, aos vencedores? Nenhum mercador de estampas vai querer, por
enquanto. Riscos demais, dos dois lados. Recentemente foi sondado com
discrição: aceitaria fazer um retrato do rei José? Ainda não respondeu, mas
seria difícil recusar. Deixa as coisas se arrastarem um pouco.
Deixar a Espanha? Para ir aonde? Para a América? Inglaterra? Ele não é
muito conhecido fora da Espanha, e sabe disso. Precisaria levar todo o seu
material, algumas telas para dar uma idéia do que sabe fazer, cruzar
fronteiras vigiadas, refazer seu nome em algum lugar. Sente-se velho
demais para essa aventura. E, sem ouvidos, como aprender outra língua?
Seu cachorro se levanta e abre a boca. Goya percebe esse movimento.
Não ouve os latidos, mas vê o cachorro se encaminhando para a porta. Se
alguém grita, ou bate na porta, ele não ouve.
Chama o cachorro, que volta, deita-se de novo, depois se levanta e vai
para a porta outra vez, ainda latindo. Então Goya abre uma gaveta, pega
uma pistola, destrava, vai até a porta e a empurra com a mão esquerda.
Divisa ali uma forma humana, que a princípio não consegue identificar.
Abaixa a cabeça, com todas as velas. Vê uma mulher malvestida. Se ela diz
alguma coisa, não ouve.
Deixando a porta entreaberta, dá alguns passos, apanha uma moeda
numa caixinha de ferro e volta à porta. Entrega a moeda a Inês, que tomou
por uma mendiga, e que simplesmente se havia arrastado até aquele lugar
porque o conhecia desde que fora posar lá, no passado.
Ela olha a moeda, sem entender. Fala, mas não lhe respondem.
Goya, que não a reconheceu, pega sua mão, põe nela a moeda com
firmeza e torna a fechar a porta.
Volta para o trabalho, acalmando o cachorro no caminho. Mas o animal
não se acalma. Avança de novo até a porta e late. Irritado, Goya manda que
se cale. Inútil.
Dá uma meia-volta então para abrir a porta. Inês continua ali, na
penumbra. Diz a ela, com a voz e um gesto, que vá embora. Já lhe deu
dinheiro: o que quer mais?
Como ela não sai, o artista fala mais alto: vá embora! Ela então lhe diz,
tocando no próprio peito, que é Inês, Inês Bilbatua. Repete várias vezes seu
nome. Ele vê o movimento dos lábios e grita:
Não escuto nada! Sou surdo! Vá embora!
Ela também grita, diz que se chama Inês, Inês Bilbatua. Vendo que o
outro ainda não a entende, articula bem os sons, abre a boca deformada o
máximo que pode. Ele pede que repita o que acaba de dizer e se inclina
para iluminar sua boca com as velas.
Lê seus lábios, afinal entende e pergunta: Inês? Sim, diz ela, balançando
a cabeça várias vezes. Inês. Sou eu.
Com a mão, ele afasta o cabelo colado em uma parte do seu rosto,
depois observa de perto e a reconhece.
Então se afasta da porta para deixála entrar. Quando passa ao seu lado,
ela diz, com palavras desencontradas, que seu pai morreu, que seu irmão
morreu, que ela está com medo, que está sozinha. Goya não ouve uma
palavra. Fala também do seu bebê, pergunta onde está seu bebê. O cachorro
ainda late um pouco. Goya fecha a porta, e por fim consegue acalmá-lo. O
animal volta a se deitar, a contragosto.
Goya pergunta a Inês se ela o ouve bem, se entende o que ele diz. Basta
balançar a cabeça, sem falar nada, vai ser suficiente. Ela balança a cabeça.
Goya repete então que é inútil falar com ele, porque não ouve há muitos
anos. Ela tem que escrever tudo, numa folha de papel que ele lhe entrega
junto com um lápis.
Escreva. Aqui. Inês se senta diante da mesa que Goya desembaraça para
ela. Deixa o papel ao lado de uma vela, põe o lápis na sua mão direita.
Escrever? Ela bem que gostaria. Mas suas mãos estão rígidas, sem forças.
Não escreve há muito tempo.
Não há pressa, diz Goya. Escreva tudo o que quiser me dizer. Não há
outra saída, eu não ouço nada.
Enquanto a moça começa a traçar uns sinais trêmulos no papel, ele
pergunta se está com fome, ou com sede. Ela ergue os olhos, parando de
escrever, e o encara.
Goya repete a pergunta, e dessa vez obtém uma resposta: sim, está com
fome. Ela abaixa a cabeça para dizer que está com fome.
Goya tem sempre algum alimento por ali, presunto, queijo, azeitonas,
um naco de pão duro. Traz tudo isso, e até um copo de vinho. Inês não bebe
vinho há quinze anos.
Avança primeiro sobre o queijo, que come vorazmente.
Devagar, diz Goya, coma devagar. Ela não ouve e bebe a metade do copo
de vinho. Depois volta a escrever, mais rápido que antes. Entrega a folha a
Goya, que lê em voz alta:
Meu pai morreu, meu irmão morreu, onde está minha mãe? Onde está o
meu bebê?
Ele pergunta: Seu pai está morto? Ela abaixa a cabeça. Goya fica
espantado com a morte de Tomás. E triste. Não tem coragem de dizer a Inês
que sua mãe também está morta, tal como Álvaro, desaparecido no mar.
Não sabe o que perguntar: de onde ela veio, como é que seu pai e seu irmão
estão mortos. Parece frágil, sem forças, com a mente confusa. Escreve
algumas palavras, depois pára, come, acaba o copo de vinho, depois escreve
mais, quer água, dá a impressão de que beberia, comeria qualquer coisa.
Goya a aconselha a não engolir tão depressa o presunto e as azeitonas.
Lê o que ela acaba de escrever: ... eles me suspenderam três vezes, eu
confessei, então disseram que sou uma herege....
Olha para Goya e pergunta (mas ele não ouve) o que é uma herege. Ele
continua a fazer perguntas que Inês não responde, até que de repente se
apodera da folha de papel e escreve: Onde está o meu bebê?.
Ele pergunta: Que bebê? Ela responde, batendo na barriga: Meu bebê!
Você teve um bebê? Eu tenho um bebê. Calma, Inês, calma. Um bebê,
mesmo? Você teve um bebê na prisão?
Sim! Onde está o meu bebê? Quero ver meu bebê! Onde ele está?
O pintor está um pouco perdido. Sua surdez o atrapalha. Inês fala e age
com total incoerência. Ela continua avançando na comida, está esfomeada,
cospe os caroços de azeitona no chão e só fala do bebê. Pronuncia esta
palavra umas cinqüenta vezes. Goya lhe pergunta quem é o pai da criança.
Ela responde: um monge. Que monge?
Ela nunca soube o nome. Um monge. Ele pensa logo em Lorenzo, mas
este desapareceu há mais de quinze anos. Não pode ser o pai de um bebê.
Abre as janelas do ateliê e, debruçado para fora, chama em voz bem
alta:
Dolores! Dolores! Pouco depois aparece na rua uma mulher de uns
quarenta anos, cabelo grisalho, esfregando as mãos num avental. Levanta
os olhos para ele e pergunta, fazendo um gesto com as mãos, o que quer a
essa hora.
Ele a intima a subir logo, porque precisa dela. A mulher responde que
não pode, que está preparando a comida. Ele não ouve nada e diz, outra
vez, que suba logo.
Precisa dela. Ela repete que está cozinhando. O pintor fecha a janela.
Dolores volta resmungando para sua casa. Ela mora no térreo, num
quarto com uma pequena cozinha, junto com o marido, que é vendedor
ambulante de bombons, e os dois filhos.
Goya lhes dá algum dinheiro três vezes por ano, para que vigiem a porta
do seu ateliê quando ele está fora. Dolores passa uma vassoura de vez em
quando. Os dois se conhecem há muito tempo.
Goya volta para onde está Inês, ainda rabiscando. Pergunta o que
aconteceu com esse bebê, se era menino ou menina.
Menina, diz ela. Uma menininha. Mas logo depois a tiraram de mim.
Logo depois. Eles a levaram, não sei para onde. Ajude-me. Ajude-me.
Ela se agarra em seu corpo, precisa de ajuda, o cachorro late, Goya não
ouve nada, Inês diz que quer o bebê, só quer o seu bebê, depois toma outro
copo de vinho, levanta-se, torna a sentar e grita:
Ajude-me a encontrar o meu bebê! Dolores chega nesse momento. Entra
pela porta que ficou aberta. Goya lhe pede para ajudar a limpar um pouco o
rosto e o corpo de Inês. Que vá buscar toalha, sabão, água quente. As
mulheres sabem fazer isso. E algumas roupas também, qualquer coisa. De
lã.
Dolores sente pena, pergunta o que houve. Esta pobre mulher está
fedendo: é uma mendiga?, uma louca? Foram os soldados franceses, de
novo, que a pegaram e estupraram, como (diz ela) aconteceu com a metade
das mulheres de Madri? O que a deixou nesse estado?
Goya não ouve e não responde. Rápido, rápido, diz. É uma moça
conhecida, filha de um amigo que morreu. Pode se resfriar. Corre o perigo
de morrer. E um médico, também. Precisamos chamar um médico. Há
algum no bairro?
Inês continua perguntando a Goya sobre o seu bebê, sua filhinha que
roubaram e que ela quer ver de novo. Não lhe interessa mais nada. Seu
corpo come e bebe sozinho.
Ela não reclama, não pede nada para si mesma. Ah, sim, uma herege: ela
pergunta outra vez. O que é uma herege? E o bebê, onde está? Por que o
levaram? Para onde? Seu bebê, sua filhinha? Dolores, antes de sair para
buscar toalhas, pergunta a Goya que bebê é aquele. Não seria ele, por acaso,
o pai?
O pintor não ouve a pergunta. Pede a Dolores que o ajude a preparar
uma cama, um lugar onde Inês possa dormir, um sofá, um colchão de palha,
lençóis, um cobertor.
Dolores é uma boa mulher, sempre disposta a ajudar. Mas parece
desconcertada. O que fazer? Ela está com a panela no fogo, a comida vai
queimar. E o marido, que já não é fácil, que não é doce como os seus
bombons, está pior agora, que seus negócios não vão muito bem. E uma das
crianças está com cólicas.
Goya entende, mesmo sem ouvir, que ela está com problemas. Pega
duas ou três moedas e lhe dá. Tudo vai se ajeitar, tudo vai ficar bem. Sim,
sim, vamos fazer o que for preciso, não se preocupe, diz Dolores. E sai às
pressas, escada abaixo.
Goya pergunta a Inês se tudo o que ela acaba de dizer é verdade.
Sim, diz ela, baixando várias vezes a cabeça. Sim, é verdade.
Você está disposta a jurar? A jurar por Deus que é verdade?
Ela jura.
Tempos de incerteza, de confusão. Um motim estourava aqui, outro
acolá, depois amainava. Um governo espanhol se instalou em Sevilha. O rei
José, coroado Bonaparte, chamado pelos adversários de El rey intruso,
deixou Madri quando Wellington, que desembarcara em Portugal com
tropas inglesas, estava se aproximando. Voltou quando Wellington partiu,
fugindo do inverno.
Diversos rumores lutavam entre si, tal como os soldados. Toda a Europa
parecia depender do destino pessoal de Napoleão, o fenômeno. Ninguém
sabia exatamente, à noite, onde estariam na manhã seguinte a justiça, a
legitimidade, a ordem, o poder. Depois de Saragoça, os generais franceses
conquistaram Córdoba e Granada, mas no interior da Espanha era
impossível demarcar fronteiras nítidas entre as terras dominadas e as
rebeldes. Os espíritos esclarecidos ficavam alegres e depois desolados,
muitas vezes ao longo da mesma semana. Famílias se separavam, amigos se
combatiam. Alguns aplaudiam o fim da Inquisição, outros multiplicavam as
procissões desta ou daquela virgem.
O palácio real de Madri mudava de amo e de decoração. Uns retratos
eram retirados durante a noite, outros chegavam de manhã. Móveis
desciam para os porões. Os crucifixos e quadros da Paixão saíam, cortinas e
tecidos eram trocados. Seria preciso suprimir as águias espanholas e
substituí-las pelas de Napoleão? Discutia-se isso. Para que mudar?, dizia
alguém. Todos os reis se vêem como águias! Sim, respondia outro, mas nem
todos o são. E as águias também lutam entre si. Mais do que ninguém.
Quando José se instalou de vez - apesar dos seus temores, que não
desapareceram -, desde a alvorada havia no palácio gente com pedidos e
solicitações. Um reclamava a pensão perdida, outro, uma terra tomada. Os
franceses ocuparam todos os empregos, confiscaram os prédios em nome
do direito da guerra. Títulos espanhóis com doze séculos de antiguidade
evaporavam por decisão de um contínuo, corpos assassinados
desapareciam em fossas comuns. Era difícil saber, em certos casos, se
estavam mortos ou vivos.
Certa manhã, Goya mandou sua carruagem parar nas proximidades da
entrada principal. Apeou junto com o ex-aprendiz que lhe servia de
intérprete, Anselmo. Viu a multidão, que pressionava as grades, contida por
soldados franceses.
No interior do veículo estava Inês. Em quinze dias, tinha recuperado
alguma força. Corretamente vestida, lavada, penteada e alimentada com a
ajuda de Dolores, e também de Josefa, a mulher de Goya, a quem ele contara
toda a história, Inês parecia apresentável, aos trinta e três anos, embora
sua mente continuasse estranha e obcecada. Para acabar com aquela
história de bebê que ela repetia de maneira insuportável, Goya decidira
levá-la ao palácio e ver se algum funcionário, um arquivista, um secretário,
podia encontrar alguma pista do pai desconhecido, ausente, que talvez
confessasse onde escondia a criança.
Senão, tentaria falar com alguém da Inquisição. Tudo isso era muito
vago, e Goya não tinha certeza de nada. Entretanto, após todos aqueles
anos, ainda se sentia culpado, não da prisão de Inês, mas por ter, uma noite,
levado Lorenzo à casa dos Bilbatua. Duramente humilhado, talvez o
dominicano tivesse transferido sua vingança para Inês, antes de ser
expulso do Santo Ofício. Talvez tivesse encontrado um meio de deixála
esquecida quinze anos, antes de fugir.
Ao descer da carruagem viu a aglomeração, o tumulto, e pediu a Inês
para esperar ali com o cocheiro. Depois, contornando os prédios, dirigiu-se
com seu assistente à entrada lateral que usava antigamente para as sessões
de pose. Um suboficial espanhol que o conhecia bem era o encarregado da
vigilância. Os franceses não tinham homens, tanto na Espanha como em
outros lugares, para ocupar todos os cargos. A falta de pessoal: esta sempre
foi a queixa de Napoleão, como um homem cheio de caprichos a quem
faltasse amor, vinho e droga.
O suboficial de guarda cumprimentou Goya e o deixou entrar
imediatamente, com Anselmo. Os dois foram, percorrendo o palácio, até
uma antecâmara que o pintor conhecia.
Lá, sentado a uma mesa repleta de pedidos e de presentes
(principalmente garrafas de vinho), encontrou o camarista que conhecia de
antes, agora com os cabelos grisalhos e usando outro uniforme. Os dois
homens não se viam há algum tempo, desde que deixara de haver rei para
pintar.
O que posso fazer por você?, perguntou o velho. Diga rápido, talvez eu
não esteja mais aqui amanhã!
Goya precisou explicar primeiro que tinha perdido a audição, o que
deixou o velho camarista desolado. Mas como foi? Goya não tinha tempo
para contar. Disse, para abreviar a conversa, que precisava ver alguém do
Santo Ofício.
Mas eles foram presos!, disse o camarista.
Eu sei, respondeu Goya, depois que seu assistente traduziu brevemente
a resposta em gestos.
E até mataram alguns!, gritou o velho, que parecia quase feliz com essa
idéia.
Não todos, certo?, perguntou Goya, após a tradução. Não, alguns se
salvaram. Um ou dois se disfarçaram de mulher. Foi só trocar de vestido. Os
outros estão na cadeia, isso vai lhes fazer bem. Aguardam o julgamento. Eu
espero que lá em cima escutem suas orações. Mas, pessoalmente, duvido.
A conversa foi trabalhosa. Goya precisava virar-se para Anselmo a todo
instante para entender as respostas do camarista. Este consultou uns
papéis e afinal lhe disse em que prisão estavam os inquisidores sob
autoridade francesa.
Agora tudo passa pelos franceses, entende? Não tem escapatória. Mas o
que houve com esses franceses, pode me dizer?
Hein? Você entende alguma coisa? Há quatro ou cinco anos
eles juravam que iam matar todos os tiranos da Terra, o que daria
bastante trabalho, e só juravam pela sua República, queriam instaurá-la em
toda a Terra, mandavam guilhotinas até para as Antilhas, e hoje, veja só! Só
falam do pequeno corso! Ah, e ele não é nada preguiçoso, não mesmo!
Tínhamos um rei que não fazia nada, e agora vem esse imperador que se
encarrega de tudo! Até de trocar o nome das ruas!
Como a maioria dos surdos, Goya ficava exasperado com esses
parlatórios que não entendia e que seu assistente não podia traduzir,
porque o camarista falava rápido demais.
Com um gesto, pediu-lhe para falar lentamente, ou se calar, e fez então
duas ou três perguntas. O camarista contou que o pequeno cabo corso, que
se metia em tudo, acabava de nomear um novo comissário, ou encarregado
de negócios, não sabia muito bem, que tinha acabado de chegar da França.
Um comissário especialmente para esses assuntos, parecia. Todos os
documentos deviam estar nas suas mãos.
Posso vê-lo?, perguntou Goya. Não pergunte isto a mim. Mas onde está
ele? No palácio da justiça, evidentemente. Aliás, é possível que o julgamento
já tenha começado.
Goya agradeceu ao ancião, que naquela manhã, infelizmente, só
encontrara um surdo para conversar. Voltou para junto de Inês na
carruagem e disse ao cocheiro que os levasse ao palácio da justiça, o mais
rápido possível.
Mais um dia de trabalho perdido, pensou. E estou com dois retratos
atrasados.
Chegaram ao palácio da justiça vinte minutos depois, e Goya precisou
negociar bastante até conseguir um passe de entrada, para ele e para
Anselmo. Sua fama lhe foi útil, assim como sua bolsa. Inês ficou outra vez na
carruagem, sob a vigilância do cocheiro. Goya disse a ela que iria ver os
dominicanos e pediria notícias do bebê. Algum deles saberia algo, com
certeza. Mas poderia levar algum tempo. Uma hora ou duas, talvez.
Na verdade, ele não sabia o que fazer. Tentava tranqüilizar Inês, que se
agarrava a ele, só tinha a ele no mundo, mas receava não poder entrar em
contato com os monges presos, destituídos, que nesse mesmo momento
iam ser julgados. E se os encontrasse, o que diriam? E se essa história de
bebê fosse uma fantasia?
Para entrar, foi ajudado por um fato novo: a justiça agora era pública.
Podia haver espectadores, homens, mulheres da rua. Como nesse dia se
julgariam inquisidores, o salão estava lotado, e o público, provavelmente
coalhado de espiões, parecia composto majoritariamente de ilustrados e
afrancesados que vieram assistir à derrocada do poder inquisitorial, por
tanto tempo incomunicável.
Os franco-maçons madrilenos, que por fim ousavam aparecer
abertamente, exibiam seus emblemas triangulares, a régua, a colher de
pedreiro, o olho aberto para os segredos do mundo, e cumprimentavam-se
uns aos outros, muito sérios, com gestos singulares.
Pendurados nas paredes ou em tapeçarias, diversos símbolos se
contrapunham: águias espanholas contra abelhas imperiais, vestígios da
monarquia contra imagens republicanas trazidas recentemente da França,
barretes frígios e feixes de lictor para lembrar a Antiguidade, porque os
historiadores sabiam que a Espanha fora romanizada antes da França e
certos imperadores louvados por todos, como Trajano, haviam sido
ibéricos, como se chamavam na época os espanhóis.
Por fim, para aumentar a confusão emblemática, um retrato de
Napoleão uniformizado dominava a sala, rodeada de bandeiras tricolores,
logo abaixo de uma alegoria da Justiça em mármore branco, com a balança
e a faixa.
Sob a vigilância de soldados franceses - ou talvez espanhóis, mas com
uniformes franceses -, vinte e cinco inquisidores, aqueles que tinham sido
levados a pé para Madri, esperavam sua sorte, sentados em bancos. O padre
Gregorio, aparentemente muito fraco - talvez tivesse sofrido um ataque -,
estava deitado numa maca de madeira, com os olhos entrecerrados, a boca
fechada.
À sua frente, embaixo de uma bandeirola em que se liam em letras
tricolores as três palavras-força da magia dos novos tempos, LIBERDADE,
IGUALDADE e FRATERNIDADE, havia seis juízes cujas idades não passavam
dos quarenta anos. Três deles eram franceses e três espanhóis, escolhidos
entre os espíritos que se declaravam modernos e liberados. Ao contrário
dos inquisidores, pareciam vigorosos, decididos, com a mente clara,
seguros de si mesmos.
Entre os juízes e os acusados ia e vinha aquele que tinha a função de
promotor, o comissário vindo da França, com poderes especiais. Esse
homem era Lorenzo.
Quando Goya entrou na sala, com Anselmo abrindo o caminho entre a
massa de espectadores, reconheceu-o assim que ficou próximo o suficiente
para distinguir os rostos.
Permaneceu imóvel por um instante, tomado por uma espécie de
estupor, de incredulidade. Apesar de algumas rugas formadas pelo tempo,
apesar do cabelo comprido que lhe caía nas costas, apesar de sua roupa
brilhante, seu xale de três cores, sua calça branca, suas botas reluzentes
que faziam barulho de couro novo quando caminhava na frente dos
acusados, apesar da espada batendo em sua coxa, era mesmo ele. Lorenzo.
Todo aquele aparato teatral não conseguia disfarçar, para os olhos
experientes de Goya, o olhar sombrio e pesado, os ombros fortes, as mãos
rústicas. Estava com quarenta e sete ou quarenta e oito anos.
Enquanto falava, Lorenzo desfilava com segurança no meio do salão.
Seu corpo parecia estar mais erguido, mais firme. Goya não podia entender
suas palavras, não as ouvia, mas adivinhava que eram fortes e claras.
Assombrado demais para fazer alguma pergunta ao assistente, ficou
parado, sacudido pelos espectadores, com o olhar grudado em Lorenzo,
naquele rosto que tinha pintado e que o fogo destruíra em praça pública.
Ele falava das idéias da Revolução Francesa, e falava com ardor.
Elas me abriram os olhos, dizia, como deveriam abrir todos os olhos do
mundo, até dos cegos. Por quê? Porque são humanas, para começar. Não
surgem de uma lenda, de alguma autoridade nebulosa. Não nos foram
impostas por nenhum concelho sectário. Elas vêm do povo, são obra dos
representantes do povo, que as conceberam e votaram as leis que delas
decorrem.
Goya se inclinou para dizer algumas palavras a Anselmo, apontando
para o orador. O assistente observou Lorenzo com mais atenção e também
o reconheceu. Olhou para Goya e baixou a cabeça, igualmente atônito.
Lorenzo falava em espanhol, deixando escapar às vezes alguma palavra
francesa, e recebia com naturalidade os aplausos que vez por outra surgiam
do público e dos jovens juízes.
Anselmo tentou traduzir para Goya algumas de suas frases, mas era um
discurso abstrato, difícil de expressar com gestos. Goya murmurou que não
era preciso.
Essas leis, clamava Lorenzo, transcritas, graças a Napoleão Bonaparte,
no Code civil (diz estas duas palavras em francês, depois as repete em
espanhol), sem o qual toda a vida social é hoje inconcebível, têm uma dupla
qualidade: são irresistíveis e são universais. Irresistíveis, porque foram
estabelecidas por homens e para os homens. Universais, porque são lógicas
e justas (aplausos). Portanto, devem impor-se por si mesmas a todos os
homens. Naturalmente, elas ferem inúmeros interesses, velhos egoísmos,
hábitos de dominação brutal que não podem ser destruídos por decreto,
por mais legítimo que seja. Devem, por ora, ser defendidas e sustentadas
pelas forças armadas da Revolução, cujo braço armado, o braço vencedor, é
Napoleão Bonaparte. Mas um dia hão de triunfar sem esforço em toda a
superfície da Terra, sem a ajuda dos canhões e dos sabres. Tomar-se-ão
uma evidência para o mundo. Todos os homens, onde quer que estejam,
nascem livres, e todos possuem os mesmos direitos naturais. A liberdade é
o primeiro dos direitos (apontou para a bandeirola, acima dos juízes) e a
Revolução não terá piedade daqueles que tentarem destruí-la. Isso mesmo.
Como proclamou Saint-Just, que pagou suas idéias com a vida, não haverá
liberdade para os inimigos da liberdade.
Mais aplausos e gritos de aprovação, outra vez. Os próprios juízes
batiam palmas. Goya perguntou em voz baixa ao assistente de que estava
falando Lorenzo, para provocar tais reações. Anselmo, um homem
rechonchudo, de estatura baixa, que na maior parte do tempo passava
despercebido, fez um gesto, levantando os ombros, como se dissesse: ah,
nada de especial.
Lorenzo deu alguns passos em direção ao antigo inquisidor principal de
Madri. Deitado na maca, certamente já muito idoso, com as pálpebras
pesadas e baixas, o padre Gregorio Altatorre dava a impressão de não
acompanhar o debate, parecendo esperar a sua sorte com resignação, como
se já tivesse ultrapassado as fronteiras do outro mundo.
Lorenzo, que naturalmente estava a par da abolição oficial do Santo
Ofício, parou diante dele, encarou-o em silêncio por um instante e disse,
insistindo quase ironicamente na palavra padre:
Padre Gregorio, não tenho nada, pessoalmente, contra o senhor.
Acredite.
O padre Gregorio ergueu lentamente as pálpebras, como se aquilo lhe
exigisse um esforço prolongado e contínuo. O azul muito claro dos seus
olhos apareceu, uma fenda estreita, e se deteve em Lorenzo, que se
lembrava muito bem desse olhar tranqüilo. Os dois homens ficaram um
momento em silêncio, um diante do outro, e depois o novo promotor
continuou:
No entanto, o senhor deve entender que é, para nós, a encarnação do
obscurantismo mais espesso, mais nefasto. O senhor foi um apóstolo
infatigável do sectarismo e do fanatismo. Na sua condição de inquisidor foi
por muito tempo instrumento da mais dura opressão, pois era ao mesmo
tempo coaçáo do corpo e ditadura do espírito.
O senhor é, a meu ver, o que há de pior na Espanha e, junto com os seus
cúmplices, será julgado como merece, conforme seus atos.
Apanhou na mesa uma folha de papel e leu: Detenções e
encarceramentos arbitrários, interrogatórios forjados, falsificados e
dirigidos, extorsão de confissões sob tortura, penas prolongadas nas piores
condições, causando numerosos falecimentos.
Largou a folha e perguntou ao ancião: O senhor tem alguma coisa a
dizer em sua defesa? O padre Gregorio levou alguns segundos antes de
balançar debilmente a cabeça. Não, não tinha nada a dizer.
Depois, tornou a fechar os olhos. Lorenzo voltou-se para os juízes e
disse que podiam iniciar a votação. Eles receberam papéis com os nomes de
todos os acusados.
Deviam escrever seu veredicto na frente de cada nome.
Isso levou mais de uma hora. Os juízes se levantavam às vezes para
trocar impressões com seus colegas. Lorenzo estava sentado e consultava
suas anotações. Fazia questão de demonstrar ostensivamente que não
influía nos votos, embora todos se perguntassem, na sala, o que ele teria
recomendado aos juízes nos corredores, antes do início da sessão.
Goya pediu ao seu assistente que fosse rapidamente tranqüilizar Inês.
Como tinha previsto, aquilo levaria tempo. Ela precisava esperar no veículo
com paciência.
Um elemento novo acabava de entrar, inesperadamente, na história.
Aquilo podia mudar tudo.
Um jovem reconheceu Goya e pediu que lhe conseguissem um lugar
sentado, o que foi feito. O pintor lamentou não ter levado nenhum caderno
de esboços.
Um dos monges mais idosos sentiu-se mal. Foi preciso ajudá-lo a sair da
sala. Voltou dez minutos depois, muito pálido. Uma de suas mãos tremia.
Por fim, os seis juízes entregaram suas decisões. Um deles as reuniu, fez
a contagem dos votos e comunicou o resultado aos outros cinco. Todos
aprovaram. A sentença foi transmitida a um escrivão, que fez a leitura em
nome da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Dois dominicanos, dos mais idosos (um deles era o que havia passado
mal), foram perdoados. Estavam livres para continuar a vida como e onde
quisessem. Outros seis, que representavam, como Lorenzo sabia (ele estava
bem situado para isso), a tendência menos dura, mais esclarecida do Santo
Ofício, receberam penas de prisão bastante leves. Outros, mais
conservadores, tiveram penas mais duras. Cinco inquisidores, por fim,
foram condenados à morte. O padre Gregorio era um destes.
A sala aplaudiu pela última vez, enquanto os juízes se retiravam. Alguns
jovens, espanhóis, precipitaram-se para dar parabéns a Lorenzo. A
sentença lhes parecia exemplar.
Quatro soldados levantaram a maca do padre Gregorio e o retiraram da
sala, pedindo à multidão para abrir caminho. Alguns espectadores
cuspiram em sua cara, sem que ele abrisse os olhos, mas a maioria ficou
silenciosa durante sua passagem. Os monges, tanto os condenados à morte
como os outros, continuavam em silêncio.
Rezavam, de cabeça baixa.
As pessoas deixaram a sala. Goya viu que Anselmo voltara e lhe fazia
sinais de que tudo estava bem, Inês continuava na carruagem, esperando lá
fora. Ela tinha adormecido. Melhor, pensou Goya.
Preparou-se para seguir os monges condenados, perguntando se teria
alguma chance de falar com um deles sobre Inês e o bebê. Talvez fosse
melhor se dirigir diretamente a Lorenzo. Mas ele estava fora da Espanha há
tanto tempo: o que poderia saber?
Quando a sala já estava quase vazia, Goya se levantou do banco onde lhe
permitiram ficar. Nesse momento, o próprio Lorenzo ia saindo, com um
maço de papéis sob o braço, na companhia de um secretário.
De repente viu o pintor e gritou: Goya! Entregou os papéis ao secretário
e caminhou em direção ao pintor, de braços abertos.
Quando saiu da Espanha, em 1793, Lorenzo não levou nada, ou quase
nada. A idéia de voltar para a aldeia de sua família lhe parecia insuportável.
Partiu com uma quantia - talvez em parte roubada, nunca se soube - que lhe
permitiria sobreviver durante algumas semanas e com a idéia vaga, ainda
hesitante, de que a única direção a tomar seria a da França.
Foi o que fez, quase sempre a pé, andando noite e dia, vivendo às vezes
da caridade, em asilos, e dormindo várias noites com ovelhas e cabras.
Atravessou os Pirineus na escuridão, por trilhas que lhe indicaram. Depois
continuou até Paris. Voltando à sua formação original, a de camponês, às
vezes ficava vários dias em algum lugar ajudando nos trabalhos do campo,
em troca de uma sopa e uns tostões. Ouvia o que se dizia, começava a
entender o francês, até mesmo a falar um pouco, pois sua mente ainda era
ágil e, sobretudo, curiosa.
Quando chegou a Paris, dois meses antes do começo do Terror, teve
sorte. Num solar do bairro de Saint-Germain que fora abandonado pelos
proprietários, nobres emigrados, os empregados, ao se verem sem salário,
tinham aberto um restaurante um ano antes. Era uma nova moda, nascida
da necessidade. Os trabalhadores, gente do povo, mulheres e homens,
usavam habilmente os tetos altos do prédio nobre, as luminárias, as
cozinhas, e até alguns móveis marchetados (tinham vendido boa parte aos
holandeses, para investir em pratos e talheres), para atrair essa nova
freguesia de mercadores de armas e negociantes de todo tipo que, graças à
inflação, à guerra e à desordem no comércio, assumiam o papel de
senhores do futuro e inauguravam, nas madeiras trabalhadas e nas
douraduras dos aristocratas fugidos, os almoços e jantares de negócios.
Lorenzo, sem um tostão no bolso, por acaso passou por esse solar num
dia agitado, em que estava sendo preparada uma refeição improvisada para
cinqüenta comensais e o restaurante precisava de braços. Um maitre
d'hôtel interceptou Lorenzo na rua e propôs empregá-lo na hora. Ele estava
com fome, e aceitou. Foi encarregado, na cozinha, de descascar e cortar
legumes, coisa que sabia fazer desde jovem. Também sangrou e esfolou
coelhos. Depois comeu, e foi dormir num sótão.
No dia seguinte, por estarem bastante satisfeitos com ele, os donos do
estabelecimento, um homem e uma mulher, propuseram que ficasse mais
alguns dias. Aceitou, sem revelar sua identidade. Disse simplesmente que
tivera que sair da Espanha por motivos políticos, o que foi bem-visto.
Quanto à sua alimentação e seu catre, não fez nenhuma reclamação.
Deram-lhe uniforme, sapatos, meias e dois dias depois estava servindo
as mesas. Aproveitava toda oportunidade para aprender palavras em
francês, que escrevia em pedacinhos de papel para colar depois nas
paredes do seu quarto. Assim ficariam sempre diante dos seus olhos. Uma
noite, ouvindo uma conversa sobre religião, sobre aqueles malditos padres
que atiçavam a guerra em Vendée (muito embora a guerra tivesse seu lado
bom para os fornecedores), ousou fazer um comentário. Disse que vinha de
uma terra onde a autoridade religiosa havia exagerado tanto as suas
exigências que o país inteiro sofria e estava à deriva.
Todos concordaram, ofereceram-lhe uma taça de vinho da Champagne,
que saboreou pela primeira vez na vida, e a partir do dia seguinte recebia
seu primeiro salário.
Nas semanas que se seguiram, Lorenzo, que não perdera seu espírito
agudo nem sua paixão pelo saber, conheceu, dia a dia, a Revolução
Francesa. Convivendo com trabalhadores nas cozinhas, e muitas vezes nas
baiúcas da vizinhança, onde ia tomar um gole nos raros momentos de
descanso, aprendeu a conhecer o povo, viu seu entusiasmo, suas
esperanças, suas dúvidas, seus temores de uma volta ao passado. Falou
com eles, ouviu-os, entendeu a força oculta dos humildes. E viu que formas
de existência até então inimagináveis se abriam diante deles. Viu também
seu orgulho por terem o direito de escolher seus representantes, fazer suas
reivindicações, participar de reuniões, escrever nos jornais.
Começou a ler livros revolucionários, resumos das obras de Rousseau,
de Voltaire. Passava noites inteiras lendo. Idéias que na Espanha, em Madri,
vira apenas se esboçar, mais ou menos secretamente, aqui o
surpreenderam e inflamaram. Percebeu logo a força dessa independência,
dessa autonomia do espírito humano, que a partir de então não dependeria
mais de nenhuma outra autoridade senão a própria, de nenhuma tradição
imposta, de nenhuma religião, de nenhuma crença. Entendeu a força da
razão individual e viu todas as promessas que esta trazia. Folheou uma
coleção de L'Ami du peuple, o jornal de Marat, que um dos seus colegas do
restaurante conservava reverentemente. Em pouco tempo seu espírito se
abriu. Viu surgir uma luz viva que, em Madri, não suspeitava existir. Até
mesmo a decapitação do rei, que à distância o havia horrorizado, parecia
agora um ato menor no meio do enorme movimento popular que o
arrebatava, como aos outros.
Um dos maitres do restaurante levou-o um dia ao clube dos Cordeliers,
onde ouviu Camille Desmoulins e Danton. Este o impressionou por sua
expressão e por seu discurso, que lhe davam uma autoridade imediata.
Andou, como todo mundo, sobre as estátuas de santos que juncavam o chão
daquele antigo convento. Ficou surpreso, também, com a intervenção
direta da multidão, seus gritos, seus cantos, seus punhos levantados, suas
exigências. Jamais teria imaginado, na Espanha, e muito menos no interior
do Santo Ofício, que um dia o povo poderia se expressar assim, em público,
de peito aberto, e falar de igual para igual com os chefes do momento.
Certo dia, ao amanhecer, depois de uma noite em claro, Lorenzo perdeu
a fé. Foi como uma espécie de revelação, que caiu como um raio. Viu as
brumas sem forma em que tinha vivido até então, e entendeu sua origem,
sua utilidade, seu artifício e sua vaidade. Percebeu num átimo a distinção
entre o mito e o discurso sensato.
Teve a certeza de que o homem ia do nada para o nada e que todo o seu
destino, toda a sua dignidade, toda a sua força dependiam do que pudesse
ver e realizar nessa breve passagem, justamente, e não na ilusão, gloriosa
mas pérfida, de uma vida eterna.
Portanto, era aqui mesmo na Terra que devia agir. Passar da salvação à
felicidade.
A partir do mês de outubro, como seu francês melhorava rapidamente e
o Terror, que a princípio lhe parecia necessário, estendia sua sombra por
todo o país, começou a mandar para os jornais artigos que assinava como
El Campesino ou El Murciano, ou também como Um inquisidor
arrependido. Nesses textos, geralmente assumia o papel de pobre
camponês espanhol que, num país sombrio e oprimido, sonhava com a
revolução. Às vezes, quando assinava como ex-inquisidor, enveredava por
considerações religiosas ou teológicas, campo que dominava, e
desmantelava as pirâmides de crenças com habilidade e erudição.
Em dezembro, aventurou-se a tomar a palavra nos Cordeliers, falando
com vigor de coisas que conhecia, da triste coroa espanhola, de um império
colonial que não tinha mais justificativa e que estava em decomposição, do
empobrecimento irreversível da Espanha e dos métodos da Inquisição,
evitando cuidadosamente dizer que ele mesmo os havia tornado mais
duros.
Foi aplaudido. Três dias depois, falou de novo, dessa vez sobre os povos
conquistados e submetidos, forçados a aceitar a fé cristã sob a ameaça de
canhões. Fouché, que estava presente, reparou nele e o chamou para
conversar. Lorenzo então lhe contou sua vida, disse quem era e como,
graças às convulsões recentes, há alguns meses sentia-se um homem novo,
disposto a agir, a empurrar o mundo para a frente. Disse que fora expulso
da Inquisição, o que era um ponto a seu favor, mas sem explicar o motivo.
Falou simplesmente de uma discordância profunda, irreversível, com a
direção do Santo Ofício. Foi elogiado por essa ruptura.
Fouché, que o apreciava, aconselhou que tivesse prudência, o que
permitiu a Lorenzo atravessar sem preocupações os primeiros meses de
1794, que foram os mais duros, os mais perigosos do Terror. Como muitos
outros, entre janeiro e julho, apareceu pouco, viajou para as províncias,
chegou a se alistar numa companhia de granadeiros, lutou na Lorena
durante três meses, foi ferido no braço, voltou a Paris numa carroça.
Quase curado, quando foi declarada a guerra contra a Espanha saiu do
hospital com um diploma republicano e se fez de desentendido. Não queria
se envolver nessa guerra, nem mesmo de longe.
Fouché lhe conseguiu um emprego logo, modesto, mas remunerado, de
secretário na área de Relações Exteriores. Lorenzo se demitiu do
restaurante - aonde voltaria muitas vezes como cliente, alguns anos mais
tarde - e atravessou discretamente, sem problemas, o período das
execuções de Danton, e depois de Robespierre e seus homens. Com um ano
em Paris, não tivera tempo de estabelecer relações com eles, de maneira
que não foi perturbado.
Conheceu o abade Gregorio, que trabalhava no projeto de lei graças ao
qual a escravidão, pela primeira vez na história do mundo, seria
oficialmente suprimida -
por pouco tempo, na verdade, porque Bonaparte iria restabelecê-la
pouco depois nas Antilhas. Os dois homens, cuja formação religiosa os
aproximava, sentiam simpatia mútua. O abade Gregorio era um admirador
de Bartolomeu de Las Casas, o dominicano andaluz que se atrevera, já no
começo da conquista do Novo Mundo, a tomar a defesa dos índios. Estava
trabalhando no seu Elogio. Lorenzo, que concordava com ele, forneceu-lhe
detalhes sobre as particularidades dos dominicanos espanhóis.
Durante o período do Diretório, foi se aproximando paulatinamente do
verdadeiro poder. Embora ainda falasse francês com sotaque espanhol,
escrevia corretamente o idioma. Havia conseguido uns instrutores, jovens
estudantes que o ajudaram a penetrar nas sutilezas da gramática. Copiava
páginas inteiras de Diderot e de Rousseau.
Nos períodos difíceis que atravessou - como aconteceu em 1794 -, dava
aulas de espanhol, traduzia romances picarescos e peças de Lope de Vega,
às quais dava um ar e um tom revolucionários.
Na época do Diretório, continuou defendendo com vigor, nos jornais, as
mesmas idéias revolucionárias, apesar da derrocada dos extremistas. Dizia
que a Revolução havia cometido excessos lamentáveis, mas que, a pretexto
dos erros e ambições de alguns, não se deviam negar os princípios
inalteráveis que em breve, amanhã mesmo, trariam a felicidade aos povos.
Bastava simplesmente admitir que, se as situações de urgência exigiam
medidas de exceção, a confiança depositada nas mãos do povo, e só do
povo, por melhor que fosse o príncipe, também implicava perigos.
Viu com alegria que a França e a Espanha assinavam um tratado de paz,
após uma guerra inútil.
Fouché recomendou-o a Barras, um dos organizadores do golpe de
Estado de i8 Brumário, que abria as portas do poder absoluto para o
general Bonaparte. Lorenzo se encontrou brevemente com o primeiro-
cônsul, que estava informado do seu passado de inquisidor e o inseriu
como conselheiro das ordens monásticas nas negociações que levaram à
Concordata. Lorenzo teve oportunidade até de se encontrar brevemente
com o papa, que lhe disse algumas palavras. Teve o cuidado de não lembrar
que tinha sido membro do Santo Ofício espanhol, mas aparentemente o
papa sabia.
Nessa época, por conselho de Barras, que pensava que um dos maiores
erros de Robespierre fora ficar solteiro e até, na certa, nunca ter se deitado
com uma mulher, Lorenzo se casou com a filha de um burguês de Reims,
comerciante de tecidos e fornecedor de polainas para a infantaria de
campanha. Loura, com dentes irregulares, um pouco insossa mas afável, ela
lhe trouxe um belo dote e lhe ensinou boas maneiras. Barras não lhe disse
que essa mulher tinha sido sua amante, como algumas dezenas de outras.
Lorenzo suspeitou, mas pouco lhe importava.
Foi morar com ela num apartamento perto das TuIherias e contratou
três empregados domésticos. Sabendo ocultar seu gosto pela autoridade
sob uma aparência de suavidade, e até mesmo de benevolência, recebeu
convidados, fez amigos, conquistou a reputação de homem brilhante, culto,
afável, e no entanto brusco, às vezes irônico, que soube superar uma
infância pobre, na Espanha, e várias circunstâncias difíceis, para tornar-se
um homem dos novos tempos e adquirir o que se chamava de uma situação
invejável.
Assim, ao longo dos primeiros anos do Império, firmou sua reputação,
trabalhou duro e cumpriu com talento duas missões ofíciosas junto ao
Vaticano, que lhe renderam elogios, por escrito, de Napoleão em pessoa.
Por intermédio de um comerciante de Toulouse, conseguiu enviar
dinheiro para a sua família, em Múrcia, ocultando cuidadosamente seu
endereço. Na maior parte do tempo, dizia chamar-se Laurent.
Quando começaram, em 18o8, as dificuldades na Espanha que levariam
ao encontro de Baiona e à nomeação de José, foi consultado em diversas
ocasiões. A princípio, em 1795 e 1796, após o final da guerra com a França,
ele sonhara ver na Espanha uma república irmã, em que o poder, depois de
eleições, iria naturalmente para os ilustrados. Ao mesmo tempo, via com
lucidez os obstáculos que se contrapunham a essa república repentina e
artificial, num país ainda sombrio e velho. Acabou se convencendo também
de que a Espanha, como outros países europeus, devia continuar sendo
uma monarquia, ao menos por enquanto. Guardou seus ideais republicanos
numa gaveta, ficando porém, no fundo, sinceramente fiel a eles.
Não era cego: via perfeitamente que o novo homem forte, apesar de sua
origem revolucionária, só visava, como sistema político, ao poder
estritamente pessoal - o que se confirmou após a coroação imperial de
1804.
Acompanhou com assombro e admiração, como todo mundo, o início
fulgurante do novo Império. Participou do cortejo de Napoleão em Baiona e
deu seu parecer quando foi consultado. Teve a oportunidade de estar com
Carlos iv e seu filho Ferdinando, separadamente. Os dois homens, que não o
conheciam, ficaram surpresos com a excelência do seu espanhol e com seus
conhecimentos da culinária e dos costumes da península.
Disseram que o imperador sabia escolher seus colaboradores, e isso foi
comentado.
Quando surgiu a proposta de nomear José Bonaparte como rei da
Espanha, pediram sua opinião. Ele respondeu que, nas atuais
circunstâncias, tendo em vista a evidente fraqueza dos dois postulantes
espanhóis ao trono, pai e filho, que se dilaceravam publicamente, a escolha
de um ou de outro provocaria certamente uma guerra civil, que seria longa
e mortífera e obrigaria a França a fazer uma intervenção maciça.
Por isso, disse, a escolha de um homem como José Bonaparte, que tinha
a experiência do poder real e que, não pertencendo a nenhuma facção,
certamente saberia ser imparcial, parecia uma idéia feliz.
Declarou-se até disposto a ajudar o novo soberano, se fosse o caso.
Como era persuasivo, foi escutado até pelo próprio imperador, que o
recebeu durante mais de uma hora com seus principais conselheiros.
Depois, Napoleão ainda o reteve por uns dez minutos, fazendo-lhe algumas
perguntas precisas, a sós: qual era a diferença exata entre o interrogatório
comum e o extraordinário, que proporção de confissões verossímeis podia
ser admitida segundo os casos, que influência a Inquisição ainda tinha na
Espanha, que relações o Santo Ofício mantinha com a Coroa, com o papado,
quais eram suas redes de correspondência e assim por diante.
Lorenzo respondeu da melhor maneira que pôde. Napoleão, que disse
tê-lo reconhecido, embora só o tivesse visto de relance durante as
negociações sobre a Concordata, agradeceu e pôs a mão em seu ombro
quando se despediu. Para o pequeno campônio de Múrcia, ex-empregado
de um restaurante parisiense, foi sem dúvida um momento excepcional,
que provavelmente lhe recordou aquele encontro coletivo, mais de vinte
anos antes, em Roma, com um papa que o havia chamado de soldado de
Cristo.
Alguns meses mais tarde, sem ter solicitado o cargo, Lorenzo Casamares
estava de novo em Madri, com o vago título de Conselheiro Especial para
Assuntos Espanhóis, um tratamento de luxo e poderes cuja extensão ele
mesmo não conseguia avaliar.
Lorenzo e Goya avançam lado a lado por um corredor do palácio da
justiça. O assistente-intérprete, Anselmo, tenta se insinuar entre os dois,
para não ficar atrás.
Lorenzo parece sinceramente feliz por reencontrar Goya, que agora
trata com intimidade. Este acaba de contar como perdeu a audição, quinze
anos antes, em Cádiz.
Fala dos ruídos que ouvia, das dores de cabeça, das suas alucinações, do
poço de silêncio em que vive há mais de quinze anos. Também fala do seu
trabalho, mas pouco. Lorenzo conta que conheceu o pintor David, em Paris,
mas não tinha dinheiro suficiente, muito pelo contrário, para lhe
encomendar um retrato. Goya ouvira falar de David, que como ele passou
sem esforço de um regime para o outro, mas o conhece pouco, como
conhece pouco outros pintores famosos, vivos ou mortos.
As obras pictóricas originais viajavam pouco. Goya só vira de perto
alguns pintores italianos, na juventude. Só tinha alguma idéia de
Rembrandt, por exemplo, ou de Poussin, por reproduções em gravuras,
muitas vezes medíocres.
Tantas coisas mudaram na nossa vida, e em tão pouco tempo, disse
Lorenzo, levando-o para um grande aposento que lhe servia de escritório.
Que estranha é a vida, como o mundo nos leva e nos traz... Sente-se,
Francisco... Quem poderia pensar que um dia eu voltaria aqui, à minha casa,
para defender os princípios da Revolução Francesa?
Goya sentou-se na poltrona que lhe foi oferecida. Seus olhos vão de
Lorenzo ao seu assistente, que fica em pé. Lorenzo fala bastante da sua
antiga admiração por ele, que não diminuiu, e da sua amizade. Ele é o maior
artista espanhol depois de Velásquez, afirmação que Goya nega com as
duas mãos. Lorenzo insiste: Sim, sim, o maior. Nem se discute. E não apenas
o maior: o único.
De repente, pergunta: Sabe que eu lhe devo dinheiro? A mim?,
perguntou Goya, dando uma espiada no assistente.
Sim, claro. Mas por quê? Nunca lhe paguei o meu retrato. Ele foi
queimado, diz Goya. Sim, eu soube. Mas isso não importa. Fiquei devendo.
Goya rejeita também essa idéia, agitando as mãos. O assunto está
esquecido.
De todo modo, diz Lorenzo com um sorriso, hoje eu não poderia
pendurar esse retrato em lugar nenhum.
Goya também faz um esforço para sorrir. Esse homem de olhos
sombrios que está à sua frente, muito à vontade em sua nova indumentária,
de pernas cruzadas, com a mão esquerda em cima de uma pilha de papéis,
balançando volta e meia seu cabelo comprido, o pintor conhece bem.
Atraente, convincente, mas perigoso. Ele sabe disso.
Você veio ver o julgamento por curiosidade?, perguntou o novo
Conselheiro para Assuntos Espanhóis.
Não, respondeu Goya movendo a cabeça. Já sabia que eu estava aqui?
Não. Eu não ouço mais nada. Vivo isolado, poucas pessoas falam comigo.
Queria alguma coisa? Sim, diz Goya. Um favor que eu possa lhe fazer?
Talvez. A conversa é bastante lenta. As idas e vindas levam seu tempo.
Pode falar. Não tenho muita disponibilidade, como pode imaginar, mas
estou feliz por reencontrá-lo. Farei tudo o que puder por você. Prometo.
Goya toma coragem e afinal decide explicar a Lorenzo a verdadeira
razão da sua presença. Está atrás de informações sobre uma pessoa.
Que pessoa? Lembra-se daquele rico mercador em cuja casa jantamos
juntos, uma noite, que forçou você a confessar que... Lembra-se dele?
Como poderia esquecer?, pergunta Lorenzo sem perder o sorriso. Foi
você quem me levou lá, fiquei com rancor por muito tempo. Como se
chamava ele?
Bilbatua. Tomás Bilbatua. Ah, sim, um basco. Com todos aqueles
quadros... E então? O que foi dele?
Morreu. Você não vai acreditar, Francisco, mas isso me entristece.
Morreu há muito tempo?
Há poucas semanas. Ele tinha uma filha.
Uma filha, certo, diz Lorenzo, sempre dono de si. Uma filha jovem,
bastante bonita, lembro bem dela. Ela estava nas nossas masmorras, a
coitada. Foi por sua causa que ele quis me ver naquela noite, não é mesmo?
Sim. E então? Ela está só, precisa de ajuda. Que venha me ver. Quando
quiser. Ela está aqui, diz Goya. Onde? Na minha carruagem. Lá fora. Fui eu
que a protegi quando ela saiu.
Quando saiu? Não faz muito tempo. Eles a mantiveram presa até agora?
Sim. Que vergonha. Então vá buscá-la! Vá buscá-la agora mesmo!
Goya não esperava aquela súbita generosidade, que parecia sincera, e
até precipitada. Pede a Anselmo que vá buscar Inês. O assistente sai. O
diálogo fica então mais difícil. Lorenzo começa a gritar, tentando dizer
alguma coisa a Goya, mas este levanta a mão e interrompe: Não, não grite,
não faça isso. De todo modo, não escuto nada. Olhe para mim e fale devagar,
articulando bem.
Assim?, perguntou Lorenzo, encarando o pintor que observa seus
lábios.
Sim, assim, muito bem. Eu devo tudo àquele homem. A quem? Àquele
basco. O comerciante. Eu lhe devo tudo., A ele?
Sim, a ele. Foi por causa dele que me excluíram da Ordem, que eu fugi,
que fui para a França. E que vi tudo claro, de repente.
Em poucas frases Lorenzo conta a Goya dezesseis anos da sua vida, tudo
o que viu, tudo o que fez, como perdeu brutalmente a fé que o sustentava
desde a infância, como entendeu a que ponto estivera errado até então.
Arregaça uma das mangas de sua vestimenta para mostrar a marca da
ferida e diz: Olhe, até derramei sangue pela Revolução. Fui batizado pela
segunda vez! E me casei! Sim, eu, que fiz voto de celibato, casado, e com
uma francesa! Vou apresentá-la a você! E temos três filhos, que vão chegar
aqui um dia desses. Você vai conhecê-los. Olhe, tenho uma idéia, você vai
pintar o nosso retrato, um belo retrato de família, combinado? E dessa vez,
incluindo as minhas, terá dez mãos para pintar! Dez! Posso me dar esse
luxo, acredite!
Lorenzo fala muito, diz que esteve com Napoleão, que seu olhar é
inesquecível (isto todos os europeus repetem, mesmo os que nunca o
viram), que seu irmão José é um homem notável, devotado, honesto,
amante da arte (tem o sonho de construir um grande museu público em
Madri, tendo o Louvre como modelo), um homem simples, com quem é um
prazer trabalhar, um homem que a pobre Espanha deveria receber com
alegria e gratidão, em vez de alvejá-lo pelas costas.
Mas isso ainda vai acontecer, ele tem certeza. Basta ver Ferdinando
durante cinco minutos para saber que essa metade de homem traz consigo
a infelicidade, a ignorância, a crueldade e a dor antiga. É um rei para se
jogar no fundo do poço do esquecimento, junto com tantos outros. Um rei
para se pisar em cima, para esmagar como uma barata, como uma lesma
venenosa, um aborto, um tirano de nascença. A liberdade é uma chance que
não se pode perder, porque não surge de novo tão cedo, diz Lorenzo, que
tem cem belas frases como aquela na ponta da língua.
Eles não trocam uma palavra sobre o julgamento que acaba de
acontecer, aquele tribunal sem dúvida improvisado, aquele veredicto já
previsto, sobre o velho mandado para a morte. Goya é prudente nessas
questões, como de costume. Nunca se sabe.
Batem na porta. Entre!, diz Lorenzo em voz alta. O assistente regressa e
faz Inês entrar, pálida e fraca, com o cabelo lavado e penteado, pouco à
vontade num vestido que Josefa lhe emprestou, um tanto grande para ela.
Quando vê Lorenzo, ela o reconhece, olha-o fixamente e de repente fica
como que petrificada, reduzida ao silêncio. Mas o oposto não é verdadeiro:
Lorenzo a encara com gentileza, com interesse, mas sem parecer
reconhecê-la. Inclina ligeiramente a cabeça e o tronco, como homem cortês
que é, diz seu nome, acrescenta que acaba de saber da morte de Tomás
Bilbatua e que está consternado. Um homem que conheceu há muito
tempo. E também pergunta:
O que posso fazer por você? Inês, que ficara imóvel por alguns instantes,
de repente se anima, atravessa os quatro ou cinco metros que a separam de
Lorenzo, joga-se aos pés dele, segura suas mãos e as beija, várias vezes.
Ele fica embaraçado, faz esforços para se libertar, pede a ela que pare,
que se acalme. Mas Inês segura com firmeza suas mãos, que aperta e
continua beijando.
Por favor, diz ele, por favor... O que foi? O que posso fazer por você?
Diga-me!
Ela lhe diz: O que aconteceu com a nossa filha?
Ele pede que repita a pergunta, o que ela faz de outra maneira:
Nossa filhinha? Onde está? Lorenzo olha para Goya, pedindo alguma
ajuda, alguma explicação. Goya adverte: Desde que ela voltou, não pára de
falar de um bebê.
Um bebê? Sim, de uma filhinha, que lhe teriam tirado.
Recentemente? Não sei. Lorenzo se volta para Inês e lhe pergunta em
voz suave quanto tempo ficou nas prisões do Santo Ofício. Ela responde,
após um silêncio, que não faz idéia. O tempo passou, e pronto. Foi muito
tempo. Demais. E muito sombrio, exceto a missa uma vez por semana ou
um passeio silencioso pelo claustro, quando fazia bom tempo.
E pensa que teve um filho na prisão? Sim, tive um bebê. Uma filhinha.
Na prisão? E a tiraram de mim. Quero saber onde está. Minha filhinha.
Nossa filhinha.
Nossa filhinha? Sim. O nosso bebê. Goya, que não ouve a conversa, pede
ajuda a Anselmo. Este lhe explica, fazendo alguns gestos (muito claros) com
as mãos e alguns movimentos de lábios, que Lorenzo seria o pai do bebê de
Inês. Pelo que ela diz.
Lorenzo, justamente, pergunta a Inês: Você pensa que eu sou o pai do
seu bebê? Sim, responde ela com determinação. Sim, o senhor. E o que a faz
pensar isso? O senhor foi o único homem que conheci.
Lorenzo abaixa lentamente a cabeça. Uma tristeza repentina aparece no
seu rosto, ele fica em silêncio. Fica um bom tempo olhando para Inês, que o
encara respirando rápido. Depois fala, com uma voz sem brilho,
esforçando-se para não magoá-la:
Eu saí da Espanha há mais de dezesseis anos. Como poderia ser pai de
um bebê? Aqui?
É o nosso bebê, repete ela. Nossa filhinha. Sua e minha. Ele estende a
mão e acaricia suavemente seu cabelo, murmurando: Sim, sim, claro. Nosso
bebê. Diga-me onde está. Eu vou ver isso. Claro, Inês, claro. Vou resolver
agora mesmo.
Caminha para a porta, abre-a e faz um gesto. Seu secretário aparece
quase instantaneamente. Lorenzo murmura algumas palavras que ninguém
ouve. O secretário se retira.
Lorenzo fica um instante no vão da porta entreaberta e, de longe, sorri
para Inês. E também lhe diz: Tudo vai se ajeitar. Num instante. Ela não
consegue tirar os olhos de Lorenzo. Está hipnotizada, parece uma daquelas
santas em estado de êxtase que se vêem nas velhas pinturas, o olhar fixo, as
mãos juntas. Reencontrá-lo é um verdadeiro milagre, parece pensar. Agora
tudo vai melhorar, tudo vai melhorar. Ela ri. Os anos de miséria se
acabaram. Os anos de solidão e de sombras. Os anos duros.
Quantos anos, exatamente? Ela não tem idéia. Não pôde contá-los. Foi
muito tempo. Por fim o encontrou, ele está aí, isso é bom. Não está usando o
mesmo hábito, seu cabelo está mais comprido, mas nada disso importa, é
ele mesmo.
Aparecem dois homens de uniforme, trazidos pelo secretário. Estão
armados. Lorenzo fala com eles em voz baixa, por um instante. Depois vai
até a escrivaninha, rabisca algumas linhas numa folha de papel, assina -
sempre seguido pelo olhar de Inês, que não desgruda dele - e volta para
entregar a folha ao secretário.
Depois se dirige a Inês e lhe explica, com um meio sorriso,
tranqüilizador:
Agora você vai com esses dois homens, eles irão ajudá-la a encontrar
sua filhinha. Está entendendo? Eles vão ajudá-la. Vá com eles, faça o que
disserem e tudo vai dar certo...
Sim, tudo vai dar certo, repete Inês. Tudo vai acabar bem, você vai ver.
Vá com eles. Deixe que eles a guiem.
Sim. Ela tenta segurar a mão de Lorenzo para beijá-la de novo, mas ele a
retira no ato.
Caminha então até os dois homens armados, que estão à sua espera. O
secretário diz algumas palavras nos seus ouvidos. Eles seguram Inês, cada
um por um braço, e ela os acompanha sem resistir. Antes de desaparecer,
vira-se para Lorenzo e sorri. Está radiante. Depois é levada.
O secretário fecha a porta. Lorenzo volta a sentar-se na poltrona, em
frente a Goya. Está com ar abatido, consternado.
Que pena, diz. O quê?, pergunta Goya. Disse: que pena. Francisco, nós
éramos mesmo uns bárbaros. Não há outra palavra. Bárbaros. O modo
como tratamos essa mulher. E todos os outros. Tanto, que ficaram loucos.
Como?, perguntou Goya. Quero dizer que nós os enlouquecemos. A
única arma que lhes restava, a única maneira que tinham de agüentar, de
continuar existindo, era perder a razão. Percebe?
Goya pergunta se ele pensa realmente que Inês perdeu a cabeça.
É evidente, diz. Essa história da carochinha, um bebê na prisão, um filho
comigo, que moro na França há tanto tempo, e depois aqueles olhos
alucinados, aquela maneira de me beijar as mãos. Eu me vi outra vez como
era antigamente, Francisco. Deveras. Posso até dizer que me senti culpado.
Ela inventou tudo?, quer saber Goya. Inventar não é a palavra. Nem sei
como dizer. Isso tudo lhe entrou na cabeça, não me pergunte como. Ela
certamente está convencida do que diz. Mas por que um bebê? Por que eu?
O que quer que responda? Em outra época eu diria: simples, é o demônio.
Mas agora o diabo está morto. Não se pode mais saber.
Posso dizer uma coisa?, pergunta então Anselmo, o assistente.
Naturalmente. Talvez ela não esteja louca. Louca de verdade. Conheci
uma pessoa assim. Um homem de Segóvia, um tintureiro. Ele caiu do
cavalo, um dia, e sua vida parou ali.
Como assim? Ele não envelhecia mais, estava sempre no mesmo dia. O
que significa isto: que ele não envelhecia mais? Não tinha rugas? Seu cabelo
não ficava branco?
Claro que sim. Como todo mundo. Mas ele não percebia. Vivia todo dia o
mesmo dia. Mas quanto ao resto não era louco.
E o que isso tem a ver com esta pobre mulher?, pergunta Lorenzo.
Suponhamos que hajam tirado um bebê dela, diz o assistente. Eu não
sei, mas é bem possível. Sua vida parou ali. Nesse dia. Mas isso foi há muito
tempo. E ela continua procurando o bebê.
Lorenzo olhou para Goya, que fez um gesto indicando que não
entendera direito. Depois, pensativo, observa que, de todo modo, casos
como esse devem ser muito raros.
Muito raros, sim, diz Anselmo, mas existem. A prova: eu conheço um.
Tenho quase certeza de que ela imaginou tudo, diz Lorenzo,
levantando-se e indicando assim que tinha coisas sérias à sua espera e que
essa história, que não lhe diz grande coisa, já o havia atrasado.
E acompanha Goya e seu assistente até a porta. Pede ao pintor que lhe
dê o seu endereço. Assim que tiver um tempinho, está prometido: vai
procurá-lo, marcar um horário para fazer um retrato de família. Está
esperando a chegada de sua esposa a qualquer hora. Um retrato com as
crianças. Goya pinta tão bem as crianças.
Antes de se despedir, ainda o tranqüiliza: não se preocupe com Inês. Vai
ser muito bem tratada. Ele vai cuidar mesmo dela.
Aguardando a execução, o padre Gregorio e os outros condenados à
morte foram levados para uma prisão situada sob o antigo palácio real, não
distante da Plaza Mayor.
O rei da França, Francisco I, estivera ali no século xvI, durante seu
cativeiro, só que nos andares superiores, bem mobiliados e confortáveis. O
ex-inquisidor geral e os outros monges foram relegados aos subterrâneos,
junto com as pulgas e os ratos. Ali esperavam a morte, em data ainda
incerta.
Apenas dez dias depois de seu encontro com Inês, Lorenzo estava lá,
graças a um passe que ele mesmo tinha feito e assinado, sem falar com
ninguém. Pediu que o levassem à cela do padre Gregorio, onde o encontrou,
de olhos baixos, com o hábito de dominicano todo rasgado, deitado num
colchão de palha estendido no chão. O guarda fechou a porta da cela e os
deixou a sós, obedecendo a um gesto de Lorenzo. Este se aproximou. O
velho Gregorio, que parecia esquecido pelo tempo, levantou as pálpebras, e
Lorenzo reconheceu o azul pálido dos seus olhos, mais uma vez fixos nele.
Transcorreram alguns segundos em silêncio, até que os lábios do velho
confessor se entreabriram e ele perguntou:
Agora? Não, disse simplesmente Lorenzo. Outro silêncio. A pergunta
seguinte parecia ser: por que então está aqui? Mas o velho monge não a fez.
A resposta viria sozinha, sem necessidade de nenhuma pergunta.
Esperou. Curiosamente, era Lorenzo, o homem do poder, que parecia
incomodado. Levara vários dias para decidir dar aquele passo e ali, diante
do seu antigo mestre imobilizado pela doença, diante desse olhar azul que
parecia considerar todas as calamidades possíveis neste mundo como
simples peripécias diante da eternidade, não sabia o que dizer. Permanecia
viva alguma coisa da sua união secreta, do antigo afeto entre eles, por mais
que um dos dois houvesse, poucos dias antes, decidido friamente mandar
um velhote para o nada onde acreditava - pelo menos era o que dizia e
ensinava no passado - que encontraria outra vida, radiante e eterna.
Por fim, disse a Gregorio que não viera oficialmente. Gregorio levantou
as pálpebras. Isso ele já havia entendido. Quero lhe fazer uma pergunta
pessoal. Sim?, perguntou o velho ainda deitado. Antigamente, se uma
prisioneira desse à luz um filho nas prisões do Santo Ofício, o que acontecia
com ele?
Com quem? 'Com o bebê. Por que me faz essa pergunta?
Lorenzo, com certa dificuldade para se expressar, puxou um banco e
sentou-se ao lado do colchão de palha. Deu a entender que aquilo não tinha
importância, que era uma pergunta como outra qualquer.
Então, disse o padre Gregorio, por que fazê-la? Parecia dizer: por que
você fez esse esforço, por que perdeu todo esse tempo vindo aqui para me
fazer uma pergunta sem importância?
Lorenzo ficou constrangido. De repente, diante desse homem que não
podia se mover, que morreria em breve, mas que muitas vezes lhe dera
exemplos de inteligência, de precisão e de domínio do espírito, sentiu
constrangimento, quase vergonha. O velho monge poderia soltar-lhe cem
acusações na cara, tratá-lo de assassino, maldizê-lo, manter silêncio em
sinal de desprezo.
Pelo contrário: falava com uma aparente indiferença, uma ligeira frieza.
Lorenzo decidiu ser simples e franco: Responda, disse, se puder. O
senhor deve saber a resposta.
Essa resposta, imagino, é importante para você?
Sim.
Seria seu o filho?, perguntou Gregorio. Responda-me, disse Lorenzo. O
velho fez um esforço para girar a cabeça, captou o olhar de Lorenzo e lhe
perguntou: Se eu responder, você pode salvar o que me resta de vida?
Lorenzo, que certamente já esperava um pedido desse tipo, mas não podia
saber em que disposição de espírito encontraria seu antigo diretor
(coragem intratável, frieza persistente ou, ao contrário, como parecia ser o
caso, uma pequena fraqueza de último momento), esperou quatro ou cinco
segundos antes de responder:
Sim. Você me promete? Prometo. Um sorriso furtivo parecia a ponto de
surgir no canto dos lábios do monge quando ele falou: Posso confiar... num
macaco? Lorenzo pensou a princípio que era uma armadilha se abatendo
sobre ele, uma espécie de vingança verbal, como se o velho o tivesse levado
até ali só para fazer essa impertinência cruel. 1 1e voltava às sutis
disposições das dialéticas do passado, em que o haviam introduzido, e que
lhe foram muito úteis na sua carreira política. Mas se fosse um jogo, um
confronto, ele havia Perdido. Sabia disso. Esteve prestes a levantar-se do
banco e sair da cela no ato.
Mas ficou. Decidiu responder ao esboço de sorriso com um sorriso
verdadeiro. E disse:
Sim. Pode confiar. Antigamente, disse o padre Gregorio, você teria
jurado Pela Cruz. Em nome do que pode jurar hoje?
De coisa alguma, disse Lorenzo. Quer dizer: de nada que lhe inspire
confiança. Posso simplesmente dar a minha palavra. Fazer uma promessa.
O que é sagrado para você, hoje? Sagrado? Sim. Intocável, indiscutível. O
quê? Lorenzo pensou um instante antes de responder: A liberdade de um
homem, sem dúvida. Ou seja? A liberdade de escolher o seu pensamento, as
suas crenças. De dispor da própria vida, do próprio corpo.
Você estaria disposto a jurar por esses valores? A dá-los cofio garantia
da sua palavra?
Sem pensar duas vezes. O velho monge voltou a cabeça à posição inicial
e perguntou:
Essa criança, eu não me lembro mais, era menino ou menina?
Menina. Neste caso, disse o velho Gregorio fechando os olhos, sem
dúvida a teríamos enviado ao convento de Santa Lúcia.
Perto de Cáceres? Não conheço outro.
Quatro semanas se passaram até Lorenzo, cheio de compromissos, ter
condições de tirar uns dias de folga. Todo mundo em Madri parecia
precisar dele. Ao mesmo tempo espanhol e francês, homem do passado e
dos novos tempos, sorridente e severo, volúvel e secreto, ele era o homem
da situação. Via com freqüência o rei José, que estimava, e o animava a
prosseguir, apesar das inúmeras escaramuças nas províncias, muitas vezes
sangrentas, entre franceses e espanhóis.
Quando pensou em criar um museu em Madri, José Bonaparte pediu a
Lorenzo que fosse com ele visitar as galerias reais para fazer uma seleção.
Também havia necessidade de um retrato oficial do novo rei e,
naturalmente, Lorenzo só podia recomendar Goya.
Apesar de ter bons conhecimentos, e um gosto peculiar, em matéria de
pintura, José só conhecia a obra de Goya por referências. Decidiram então
fazer uma visita às coleções reais - também com a idéia, lá no fundo, de
levar para a França um certo número daqueles quadros, e lá constituir
outro museu. Afinal de contas, diziam os cortesãos mais confiantes na
dinastia, a Espanha deve muito a Napoleão e à França, que derramou o
sangue dos seus soldados para libertá-la da tirania. É na_ tural que, em
troca, fique com algumas peças de um tesouro artístico ao qual ninguém
tem acesso.
Que o povo aproveite, pelo menos. O povo francês.
Napoleão havia agido da mesma maneira na Itália, quando era apenas o
general Bonaparte. Na Itália e em toda parte. Os libertadores de países
oprimidos são também seus predadores. Eu te dou os direitos do homem,
mas fico com teu patrimônio.
Trouxeram umas quarenta telas do Escorial, outras quinze de Aranjuez.
Elas foram penduradas provisoriamente, com boa proteção, em várias salas
do palácio real de Madri, ao lado das obras que já havia lá.
Participaram dessa visita, além do rei e Lorenzo, alguns ministros, dois
historiadores de arte afrancesados e um pequeno grupo de amigos
privilegiados. Passaram rapidamente pelas obras menores, pararam diante
de vários Velásquez, cuja mestria José admirava, embora o tratasse, com
um sorriso, de pintor de anões. Viram também vários El Greco, Ribera,
Murillo, e pararam um bom tempo diante de O jardim das delícias, de
Hieronymus Bosch, que os espanhóis chamam de El Bosco. José Bonaparte
não o conhecia. Parecia espantado com aquela profusão colorida, caótica.
O que é isto?, perguntou. Lorenzo respondeu com prazer. Aquele
quadro se encontrava na Espanha há mais de dois séculos, assim como
outras obras do mesmo pintor.
O rei Felipe II, na sua época, gostava muito dele, tanto que adquirira
mais de vinte telas.
Desse pintor? Sim, senhor. Mas, o que é isto? O que representa? É uma
obra de imaginação, disse Lorenzo, difícil de interpretar. Reconheço que é
bastante estranho. Mas; sabe, ele era flamengo. Os flamengos são todos um
pouco estranhos.
É verdade, admitiu José, examinando o quadro mais de perto. Tudo isto
é bastante bem pintado, não posso negar. Mas o que é? Uma alucinação?
Não é o meu tipo de delícias, erro, em todo caso. uma alegoria? Demônios
que invadiram o paraíso? Obra de um louco? Ou apenas uma galeria de
monstros?
Um pouco de tudo isso, na certa, disse Lorenzo prudentemente.
Atrás deles, um ministro se inclinava para dizer no ouvido do seu
vizinho:
Já temos bastantes monstros em casa para precisar do monstros dos
outros.
E o vizinho concordou. O rei José disse que aquele não era o tipo de
pintura que o emocionava. Uma multidão de personagens numa paisagem
desconhecida. Atitudes inexplicáveis, como num sonho preciso A pintura
não é feita para ser decifrada, como um enigma ou um aforismo. O inferno,
certo, mas isso, bem, todos os pintores o mostraram. Basta ser um pouco
cruel.
E me surpreenderia se o meu irmão gostasse disso, acrescentou.
De fato, ele desejava ter a presença do irmão na inauguração do museu
de Madri, dentro de quatro ou cinco anos. Sentia-se capaz de conseguir. As
primeiras maquetes do prédio ficariam prontas em poucas semanas. O local
estava definido. Era só iniciar os trabalhos - e fazer os espanhóis aceitarem
que uma parte das obras, em troca, tomaria o caminho de Paris.
A posse de obras de arte é um privilégio como todos os outros, dizia o
rei José, e esse privilégio também deve acabar. Não é admissível que o
espetáculo das belezas mais raras seja reservado para alguns monarcas
degenerados, suas famílias imbecis e alguns cortesãos absolutamente
incultos. O povo, em cujo seio essas obras-primas nasceram, deve desfrutar
delas como bem entender.
Afastaram-se de Bosch, que ficaria na Espanha, e chegaram a Goya.
Ah, disse José, é este aqui. Sim, senhor, respondeu Lorenzo. O novo rei
olhou primeiro um retrato do antigo rei Carlos IV, de corpo inteiro, usando
traje de caça, e depois o quadro eqüestre da rainha María Luisa.
Reconheceu-os com facilidade. Perguntou que sortilégios a rainha havia
usado, tendo aquele rosto, para colecionar tantos amantes. Um dos
ministros lhe disse que certamente esse número era muito exagerado. A
calúnia anda rápido, sobretudo quando se trata de rainhas.
Diziam a mesma coisa da rainha da França, Maria Antonieta, e até
mesmo que ela era lésbica, uma bacante desenfreada, que organizava
orgias em Versalhes. Afinal de contas, tudo aquilo não passava de boatos.
Mas e Godoy? Godoy, sim, sem dúvida, disse um dos ministros. Mas ele
tinha bons motivos.
E bons atributos, espero, disse José, pegando um copo de vinho numa
bandeja que um criado mantinha sempre ao alcance da sua mão.
Passaram para o retrato de grupo, em que toda a família real posava
como se estivesse numa parada. O próprio Goya aparecia num canto, em
discreta homenagem a Velásquez, que se havia representado em As
meninas, um quadro que Goya considerava superior a tudo, ou a quase
tudo.
São sempre iguais, disse José. Uma galeria de balofos, meu irmão tem
razão. Nada de vivo. Tudo isto é gordura enfeitada. Barrigas ocas. Ah, ali
está Ferdinando.
Sim, já é ele mesmo aqui. Suas sobrancelhas grossas, esse queixo
birrento. Alguém que nunca vai enxergar muito longe. Ele me felicitou
recentemente, mas eu desconfio.
Esse homenzinho seria bem capaz de matar a própria mãe.
Aparentemente, tentou, disse um dos ministros. José indicou um
personagem no quadro, uma jovem com a cabeça inclinada sobre o ombro
esquerdo, de tal maneira que não se via seu rosto.
E perguntou: E esta, quem é? É a esposa de Ferdinando. E por que não a
vemos? Porque, respondeu Lorenzo, quando Goya pintou este quadro, já lá
se vão quase dez anos, ainda não se sabia com que princesa o jovem
Ferdinando iria se casar. Então o pintor se conformou com o vestido e os
braços. O rosto chegaria mais tarde.
Ele fez bem, disse José. Nesse nível, ninguém se casa com um rosto.
José se afastou do quadro, voltou, examinou de perto a técnica, as mãos,
a perfeição dos tecidos. Tudo lhe pareceu adequadamente executado.
Mas, de todo modo, observou, esse pintor não tem muita indulgência
com seus modelos.
Ele pinta o que vê, disse Lorenzo. Nada lhe escapa, nem as verrugas,
nem as marcas da pele. Veja esses olhos tacanhos, essas carnes flácidas. E
ainda quer que ele pinte o meu retrato oficial? Aquele que todos irão ver?
Que vão mandar cópias para toda parte?
Majestade, disse um dos ministros, como agora o senhor é rei da
Espanha, pensamos que seria normal, e hábil, que esse retrato fosse feito
por um pintor espanhol.
E na Espanha, todos concordam, ele é o melhor, disse Lorenzo.
Era o pintor oficial da Corte? Sim, senhor.
E depois de ter pintado tantas vezes essas pessoas, acha que aceitaria
pintar a mim?
Os ministros, um pouco embaraçados com a pergunta, não sabiam o que
responder. Hesitaram, trocando olhares.
Eu não queria ter que lhe ordenar, disse José. Ele seria capaz, para se
vingar, de me massacrar com seus pincéis.
Permita-me, interveio Lorenzo. Eu o conheço um pouco, sei que tipo de
homem ele é. Creio que posso afirmar que aceitará.
Por dinheiro? Por dinheiro, não há dúvida. Está sempre precisando. Mas
também. porque certamente se interessará por seu rosto.
Se interessará por meu rosto? Tenho quase certeza, disse Lorenzo.
Interessar como os rostos de todos esses cretinos que estão aí? Eu vou
completar sua galeria de moluscos?
Não foi o que eu quis dizer, senhor. Desculpe-me. Creio simplesmente
que, para ele, é uma chance, uma oportunidade única, e que poderia se
apaixonar pelo rosto de um Bonaparte. Com sua permissão, posso consultá-
lo, ver o que pensa.
Sim, muito bem. E depois venha me contar. Continuaram a visita às
diferentes salas. Viram alguns Rubens, alguns Tiepolo, um Rafael, vários
Giordano, alguns apóstolos de El Greco, que José achou estranhos mas
atraentes, primitivos italianos que ele mesmo havia mandado trazer de
Nápoles, seu antigo reino. Ficou um bom tempo diante de uma imensa
Degola de São João Batista, de um pintor polonês chamado Strobel. Não
conseguia se afastar da figura de Salomé.
Interessou-se também por outro pintor flamengo, chamado Patinir, do
qual nunca ouvira falar. Escolheu algumas obras, de preferência de tema
não religioso, e pediu que as pendurassem no escritório dos seus aposentos
particulares, à espera do museu.
Um dos ministros lhe avisou então que a jornada estava avançada,
assuntos importantes e urgentes esperavam.
Então julga que a pintura não é importante?, perguntoulhe José.
O ministro acusou o golpe e se afastou. O rei José voltou às obras de
Goya e as observou mais um pouco com um olhar severo antes de
murmurar, numa espécie de suspiro: Se não pode ser de outro jeito... Disse
a Lorenzo que concordava em posar. Quantas vezes?, quis saber. Lorenzo
não sabia responder.
Acho que às vezes ele capta na hora, disse, mas parece que com certos
rostos precisa de mais tempo.
Quando o grupo já estava se retirando, Lorenzo aproximou-se do rei e
perguntou, em voz baixa, se seria possível dispor de alguns dias de folga.
Para fazer o quê?, perguntou José. Visitar a minha família em Múrcia.
Não os vejo há quase vinte anos.
Concedido, disse o rei. Mas não fique lá muito tempo, e volte rápido.
Preciso de você aqui.
Antes de deixar Madri, Lorenzo passou pela casa de Goya para falar do
projeto do retrato real. O pintor não ficou muito surpreso: já haviam
comentado com ele.
Por praxe, fez-se de rogado, pediu uma grande quantia. Sua confiança
nesse rei corso que vinha de Nápoles era, sem dúvida, bastante limitada.
Sua expectativa, quando falava do assunto com amigos, era de que o
reinado seria breve, sobretudo porque costumava ser difícil concluir
favoravelmente as campanhas espanholas.
Mas, por outro lado, eram conhecidas na história - entre os imperadores
romanos, por exemplo, ou os otomanos - longas dinastias nascidas de um
general indisciplinado ou de um primeiro-ministro assassino. No fundo,
diziam para si mesmos, talvez sem o saber influenciados pelas idéias
francesas, todas as monarquias por acaso não começam com um golpe de
força de um usurpador? Quem poderia prever, a essa altura, a queda
iminente da Águia? Napoleão dominava a Europa do Atlântico ao Vístula.
Instalara membros da sua família, como uma confraria de insetos, em
todos os tronos disponíveis. Todos os recursos, todas as informações, todas
as decisões passavam por ele. Em seus encontros com Alexandre, o tsar da
Rússia, sempre o beijava e chamava de irmão. O tsar lhe demonstrava
amizade, levava-o pelo braço. Os ministros das velhas monarquias faziam
fila na sua porta. Só a Inglaterra resistia, há oito anos. Em cada batalha,
sempre o atraía para os mares. Mas como poderia ela sozinha invadir a
Europa?
Goya aproveitou a visita para pedir notícias de Inês. Ela está bem disse
Lorenzo, mandei-a para um lugar onde é cuidada por amigos, que me
asseguram que já se sente melhor.
E como, perguntoulhe Goya em seguida, pode-se ser republicano, e
republicano convicto, enquanto se serve docilmente a um imperador? Goya
fez essa pergunta com aparente inocência, como se quisesse, surdo e
ignorante, penetrar nos segredos do mundo.
Napoleão é um imperador, certo, respondeu Lorenzo, repetindo sua
lição de uma outra maneira. Mas, antes de mais nada, é um imperador
nascido do povo e escolhido pelo povo. Ele não foi imposto pela força, pela
astúcia, pela traição ou pelo assassinato. Os franceses o chamaram para
ocupar o trono. Eles o escolheram por plebiscito. Além do mais, agora não
se trata mais somente da França. Ele deu existência à Polônia, está
libertando a Espanha de três séculos de tirania extenuante.
Em toda parte, quando aparece, é recebido com entusiasmo. De que
podem acusá-lo? Sem a menor dúvida, ele é a conseqüência natural, é o
filho da Revolução, cujas idéias retomou para eleválas ao patamar das leis
universais.
E nada, dizia Lorenzo, voltando a sua obsessão favorita, nada é mais
importante que as leis, as concebidas pelos representantes do povo e
defendidas pela espada de um grande soldado.
Goya, que só captava metade desse discurso, apesar das gesticulações e
dos esforços de articulação do seu visitante, dizia: Sim, concordo, ele é
popular, ou pelo menos procura ser, mas sabemos muito bem que aqui em
Madri, e certamente em outras cidades, pagaram gente para aplaudi-lo, no
único dia em que apareceu.
E se ele também fosse um tirano, um tirano diferente, maquiado de
republicano?
Já pensei nisso, naturalmente, respondeu Lorenzo. Pensei muitas vezes
nisso, e ainda penso. Ele se divorciou, tornou a se casar, sonha ter um filho,
é evidente que pensa em fundar uma dinastia. O fato de ser ambicioso não é
segredo para ninguém. Mas é preciso escolher: ou a lama seca do passado,
com soberanos fracos que transmitem de pai para filho uma coroa pesada
demais para eles, que lhes aperta o cérebro, e se esquecem do povo no
caminho, ou então o soprar dos novos tempos, a energia das coisas que se
movem, os séculos que se abrem de par em par, com o perigo do
despotismo, é preciso admitir, mas um despotismo passageiro, do qual o
povo poderá se livrar quando quiser, como fez com os tiranos hereditários.
É isso o que conta, dizia Lorenzo a Goya, com certa imprudência, pois
não estavam sós no aposento e suas palavras podiam ser levadas até o
círculo do rei. O que importa é que o povo sabe que ele é forte, que é mais
forte que todos os seus senhores. E para que possa afirmar e manifestar sua
força em caso de necessidade precisa ter leis que não possam ser
derrubadas.
Goya permanecia cético e rabugento. Respondia sim, respondia não. Na
maior parte do tempo, respondia: Quién sabe?. Tomava cuidado para não
dizer a Lorenzo o que lhe queimava a língua: você passou de um extremo a
outro. Você acha que mudou, mas vejo que é exatamente o mesmo.
E aquela coroação, na presença do papa, o que tinha de republicano?
Lorenzo lhe respondeu que o papa aceitara estar lá por motivos que só
diziam respeito a ele, motivos políticos, evidentemente. Para não deixar
que o poder material se imponha sozinho, sem a presença da Igreja. E
depois, no último instante, Napoleão lhe tirou a coroa imperial das mãos e a
pôs ele mesmo na própria cabeça.
Um gesto perfeitamente claro, explicava Lorenzo. Um gesto que
significa: eu não sou designado por Deus e não sou o filho do meu pai.
Venho do povo, foi ele quem me pôs no lugar em que estou, considerando
apenas meu mérito. Pego a coroa nas mãos para botá-la na cabeça, mas
estas são as mãos do povo.
Na verdade, Goya não gostava dessas discussões, fossem com Lorenzo
ou com qualquer outro. No silêncio em que vivia, as palavras não o
atingiam, mal as entendia, pareciam imprecisas, desconfiava delas. Preferia
seus carvões, seus buris, mais afiados, mais precisos. Ele olhava, desenhava,
gravava, pintava, mostrava o que via e deixava para os outros a discussão
sobre o que era conveniente fazer.
A Europa inteira discutia, numa conversa sem fim. Mas quando se fala
não se olha. Os tagarelas nunca vêem nada. Em torno do pintor afirmavam
isso, prediziam aquilo.
E o futuro, como de costume, viria cheio de surpresas.
De Madri a Cáceres, eram quatro dias a cavalo, cinco em berlinda, desde
que se tenha bons animais de troca. Lorenzo, embora fosse um ginete
medíocre, escolheu o cavalo, para ir mais rápido e ser menos notado. De
todo modo, iria para o oeste, na direção de Portugal, onde destacamentos
do Exército inglês haviam desembarcado, e a região de Cáceres era pouco
segura. Precisava de uma escolta.
Para ocultar o verdadeiro objetivo da sua viagem, e passar tão
despercebido quanto possível, decidiu, para não viajar cercado de
uniformes franceses, dispensar uma escolta oficial. Foi incógnito a quatro
ou cinco tabernas da cidade e encontrou alguns dos familiares que no
passado lhe haviam servido de informantes: homens já envelhecidos, de
cabelo branco, mas que sempre lhe podiam ser úteis em suas novas
funções. Aprendera na França que os homens das sombras passam com
muita facilidade de um regime para outro. A luz revolucionária substitui as
trevas tirânicas, mas as sombras continuam sendo sombras. Às vezes ficam
até mais espessas. A permanência no poder depende do segredo, do
invisível. Todo governo em atividade precisa de um serviço secreto, que às
vezes se divide e se multiplica por dois, por três, por quatro, cada novo
serviço vigiando os outros. Os homens e mulheres que os integram têm
técnicas, hábitos, fontes de informação, endereços que seria absurdo não
usar = como lhe dissera Danton - simplesmente porque se cortou a cabeça
de um rei.
Encarregou então aqueles homens grisalhos, que em momento algum
demonstraram tê-lo reconhecido, de conseguir para ele uma escolta eficaz
e discreta, para acompanhá-lo até Cáceres e protegê-lo caso fosse
necessário. Não se tratava de um deslocamento oficial. Em uma época
conturbada como aquela, uma escolta desse tipo, composta por dez homens
de identidades obscuras, aos quais devia fornecer armas e uniformes
espanhóis que poderiam indicar sua adesão a qualquer dos lados (de fato,
uma parte do Exército se havia aliado, à força, ao novo rei, sem tempo para
trocar de uniforme), custava caro. Lorenzo teve que apelar para os fundos
secretos a que tinha acesso, e para isso redigiu um documento falso que ele
mesmo assinou.
A viagem foi rápida: três dias e meio. Em duas ocasiões tiveram que
fazer um desvio para evitar bandos armados de composição incerta.
Dormiam em hospedarias, levantavam antes do dia nascer, comiam sobre
suas montarias.
Quando chegaram a Santa Lúcia, a meia hora de Cáceres, Lorenzo
mandou os homens pararem e pediu-lhes que o aguardassem. Entrou
sozinho no convento, que três semanas antes havia sido brutalmente
visitado por um esquadrão francês, que roubou objetos sagrados e quem
sabe também estuprou algumas freiras.
Agora se apresentou como representante oficial do novo rei da Espanha
e pediu para falar com a madre superiora, que a princípio mostrou-se
muito desconfiada. Ele precisou levantar a voz, e mesmo proferir algumas
ameaças, para que ela atendesse o seu pedido. Foi ajudado pelo fato de ser
espanhol e por ter tido a habilidade de fazer o sinal da cruz na entrada no
convento e pousar um joelho no chão quando atravessou a capela. Freiras
escondidas viram tudo e contaram à superiora, até então reticente. A
genuflexão foi o que a decidiu, mais do que as ameaças. Ela o recebeu.
O pedido de Lorenzo era simples. Queria saber o nome e ver o rosto das
meninas abandonadas ou órfãs que o convento tinha recebido nos últimos
quinze ou dezesseis anos. A madre superiora lhe perguntou o motivo.
Lorenzo se recusou a dizer, lembrando que vinha por ordem do rei, em
missão confidencial. Deu sua palavra, pelas dúvidas, de que nenhum mal
seria feito a essa jovem.
A superiora confiou nele e obedeceu. Era uma mulher de uns sessenta
anos, bastante corpulenta e com uma voz rouca.
Perguntou com simplicidade, antes de ir fazer as pesquisas necessárias,
o que ele pensava da situação, se os conventos espanhóis seriam pilhados e
fechados, como se dizia em toda parte.
Lorenzo tranqüilizou-a da melhor maneira que pôde. Ninguém pensava
em fechar as igrejas, nem os conventos, disse.
Nem na Espanha, nem em nenhum outro lugar. A época do terror anti-
religioso já passara. O imperador Napoleão tinha assinado uma concordata
com o papa e continuava a respeitá-la. Ele sempre diz que o povo precisa de
uma religião.
E tem razão, diz a superiora. Sem religião, estaríamos todos perdidos.
Lorenzo preferiu calar-se. Uma hora mais tarde, no escritório da madre
superiora, estava frente a frente com dez garotas de diversas idades, a
maior parte delas noviças, como se via pelos hábitos. Uma freira de óculos
se havia instalado diante de quatro amarrados de registros, que só ela
parecia capaz de entender.
Lorenzo descartou de entrada duas meninas, que mal pareciam ter dez
anos. Não podiam ser quem ele procurava. Demorou mais tempo diante de
outra, observou-a longamente, perguntou sua idade. A noviça não sabia.
Lorenzo olhou para a superiora, que perguntou à arquivista: Em que
ano Encarnación nos foi confiada? A freira de óculos, sentada diante de
uma mesa grande, virou algumas páginas grossas, procurou com o dedo e
por fim disse:
Encarnación... Ela deve ter doze anos... Talvez treze... Não, respondeu
simplesmente Lorenzo, balançando a cabeça.
Se o senhor nos dissesse o motivo dessa busca, disse então a superiora,
isso com certeza nos ajudaria.
Não posso dizer o motivo, respondeu Lorenzo, porque não o sei. Estou
aqui em missão, não esqueça, preciso seguir a pista de alguém, e é só o que
sei. A pista de uma garota que teria vindo de Madri, nascida, na certa, em
1793.
Tenho uma aqui, disse a arquivista, com o dedo pousado numa página
do registro. Uma chamada Rosário. Eu me lembro, uma história e tanto.
Que história?, perguntou Lorenzo aproximando-se da mesa.
Foi encontrada numa praia agarrada nos pêlos de um cachorro grande.
Toda a sua família havia morrido num naufrágio, aparentemente. Ela tinha
sete ou oito meses.
Supõe-se que vinha de algum país da África.
Não, diz Lorenzo outra vez. Não é desta que se trata. Estou procurando
uma garota trazida de Madri, nascida provavelmente em 1793. Não há
nenhuma?
Ele certamente desejava que não encontrasse nenhuma. Estava
começando talvez a ficar mais tranqüilo, quando a freira arquivista, que
acabava de virar uma página, de repente gritou, com o dedo em riste:
Ah, sim! Há uma que poderia corresponder! Qual delas?, perguntou a
madre superiora. 1793, Madri... Mandada pelo Santo Ofício... Levantou a
cabeça, olhou para Lorenzo por cima dos óculos e perguntou:
Seria possível? Mandada pelo Santo Ofício? Sim, respondeu Lorenzo.
Seria possível. A madre superiora se aproximou dos registros, perguntando
à outra freira: Qual delas seria? Tinha apenas três ou quatro dias, eu me
lembro, estava muito fraca. Respirava com dificuldade, bem rápido. Sua
mãe era uma herege. Foi o que nos disseram na época. Está escrito aqui.
Ela está com vocês?, perguntou Lorenzo. Ah, não, diz a arquivista. Fugiu
quando tinha onze anos. Isto também está escrito. Olhe. Fugiu para o
campo num dia de procissão. Não havia como encontrála de novo.
E onde está agora?
Ah, só Deus pode responder. Ela fez questão de nunca dar notícias.
Sim, também me lembro dela, diz então a superiora. Um verdadeiro
diabinho.
Que alívio, murmurou a arquivista. Lorenzo perguntou se sabiam o
nome do pai. A madre superiora olhou para outro lado, hesitando em
responder. Não exatamente, disse à meia-voz. E o que ela queria dizer com
isso?, insistiu Lorenzo.
Ah, sabe, adiantou a madre superiora, nunca passou de um rumor.
O que diz esse rumor? Não tenha medo, fale comigo. O rumor dizia... Ela
hesitou outra vez, virou-se para a arquivista que continuava com o nariz
enfiado nos registros, e acabou confessando, enquanto se persignava num
gesto amplo:
.. dizia que o pai dela era uma pessoa muito importante do Santo Ofício...
Na Inquisição de Madri? Sim, exatamente. Sabem o nome dele? As duas
freiras se entreolharam e a madre superiora disse, com a voz cortada,
tossindo um pouco: Não. Acho que não. Não. A arquivista confirmou: O
senhor sabe, nós, aqui, estamos longe de tudo. Só sabemos as sobras do que
se conta em Madri. Neste caso, por exemplo, nunca nos disseram o nome. É
segredo para todo mundo.
Vocês a batizaram?, perguntou Lorenzo. Ah, sim, respondeu a madre
superiora. Imediatamente. Era tão novinha... Recém-nascida. Nessa idade, o
senhor sabe, é difícil que sobrevivam.
Mas aquela menina, disse a arquivista, pode-se dizer que se agarrava à
vida! Ainda a vejo avançando nos mamilos da ama-de-leite! Uma
verdadeira sanguessuga!
Que nome lhe deram?, perguntou Lorenzo. A arquivista voltou a
consultar o grande livro e informou a Lorenzo que a menina que ele estava
procurando se chamava Alicia.
A menos que tenha trocado de nome, disse a superiora. Ela seria bem
capaz disso.
Apesar das revoltas, das emboscadas, das represálias, apesar da
incerteza geral quanto às opiniões políticas de uns e de outros, os jardins
públicos de Madri, no final da tarde, ainda atraíam as meninas e seus
clientes. Perto da rua de Alcalá, nos jardins do Retiro que o rei Carlos III
havia ampliado e cultivado, como os do Pardo, a partir das cinco ou seis da
tarde as carruagens chegavam lentamente, quase com indolência, e os
olhares masculinos surgiam das portinholas, procurando uma silhueta
familiar, ou, ao contrário, nova.
As meninas também chegavam, sozinhas ou em pequenos grupos,
geralmente acompanhadas por uma aia, elegantes, caminhando como se
estivessem numa passarela, usando uma capa no inverno, um xale na
primavera, um avental no verão e uma mantilha no outono. Apesar da
guerra, apesar do sítio de Saragoça e de outros combates, a moda
parisiense se espalhava rapidamente pela Espanha. O busto dos vestidos
subia, os colos apareciam, o cabelo era puxado para trás, liberando a testa,
mas os acessórios continuavam sendo espanhóis, como uma linha de
resistência infranqueável.
O complexo jogo de olhares, de chamados, de aproximações, de
discussões que queriam parecer inocentes, triviais, começava com a
chegada das meninas, que todos chamavam, há muito tempo, de majas.
Algumas delas se conheciam, cumprimentavam-se de longe, trocavam
beijos na esquina de uma alameda, mostravam um ou outro detalhe de seus
trajes, de suas jóias e conversavam umas com as outras às risadas.
Apesar do riso, olhavam furtivamente para a direita e a esquerda
tentando atrair um olhar, captar um sinal. Quando uma delas tinha essa
sorte, afastava-se das outras languidamente, como se dissesse: desculpem,
é só um minutinho, já volto, e caminhava sem nenhuma pressa até a
portinhola de uma carruagem. A aia se levantava do banco onde quase
sempre ficava sentada com uma bengala nos joelhos, acompanhava a
garota dando passinhos curtos e a ajudava a negociar. Então a portinhola se
abria, a garota subia e ia embora. Ou então voltava para o grupo e para a
conversa.
Nos dois casos, a aia tornava a sentar-se no banco. Outras jovens faziam
seu trajeto sem dar uma palavra, de olhos baixos, sem reparar em ninguém,
brincando de alma solitária e, por que não, melancólica. Toda a atitude de
seu corpo parecia pedir um consolo, ou uma companhia, alguém para
dividir suas mágoas, ao menos por alguns instantes. Algumas pareciam
estar com pressa, andavam rápido, como se fossem para algum lugar, como
se estivessem atrasadas, como se houvessem enveredado pelos jardins só
para chegar mais rápido, e não tinham tempo a perder. Pouco depois
passavam no outro sentido, e assim até de noite, a menos que um
admirador, em algum ponto dos jardins, viesse interromper suas idas e
voltas.
De vez em quando uma delas parava, apoiava o pé num banco e
levantava a saia para ajeitar a meia. Via-se então aparecer, e depois
desaparecer, uma perna fina e redonda em cuja superfície corria uma mão
branca, uma perna à venda, antes que o vestido desça de novo.
Manobra antiga, linguagem sem palavras. Nos dias de chuva, elas
usavam guarda-chuvas, um dos últimos acessórios da moda, e no verão,
com muito sol, sombrinhas.
Cruzavam, às vezes parando junto a eles, com vendedores de água, de
melõés, de uvas, de frutas secas, mendigos, inválidos, militares de folga,
algumas vezes até com agentes de polícia, que a tudo olhavam sem nada
ver.
Os homens, em geral, vinham em carruagens, para não serem
reconhecidos. Alguns, que sem dúvida não eram casados, iam e voltavam a
cavalo, ou a pé, falando sobre seus negócios, suas famílias e,
principalmente, sobre a situação da Espanha: um passado imenso e um
futuro breve demais, diziam sempre.
E cumprimentavam os oficiais franceses, que vinham apenas por
curiosidade.
Nem todos os que passeavam nos jardins eram meninas de vida alegre
ou homens galantes. Senhoras de idade vinham também aproveitar o ar da
noite e tagarelar. Violonistas faziam seus números, apresentavam as
últimas canções. Homens graves, sentados frente a frente nos bancos,
jogavam baralho ou dominó, indiferentes às idas e vindas.
Às vezes, alguns ciganos se insinuavam entre as árvores e paravam um
estranho para ler-lhe a sorte. Os agentes os viam e expulsavam
rapidamente. Outros homens abriam os jornais para ler as notícias da
atualidade. Algumas crianças brincavam, com uma bola ou um arco,
vigiadas por babás. Um matador passava, com umas mulheres e a escolta
dos seus peones, um chapéu de aba larga na cabeça, acompanhado por
todos os olhares.
E Goya ia lá pelo menos duas ou três vezes por semana, com sua
caderneta de esboços. Ele conhecia esse mundo há quarenta anos e nunca
se cansava. Sentado, seguia um personagem com o olhar, trocava-o por
outro, desenhava, rasgava uma página, jogava fora, e recomeçava. Havia
desse modo desenhado, em quarenta anos, alguns milhares de silhuetas
efêmeras, que às vezes lhe serviam para composições mais elaboradas, mas
que em sua maioria empilhava num canto e não olhava mais.
Prisioneiro da sua surdez, não ouvindo o barulho dos veículos, nem o
riso das meninas, nem os cavalos, nem os cachorros, nem o trovão que se
aproximava, ele deixava seu olho e sua mão realizarem a tarefa. Aos
sessenta e quatro anos, não podia duvidar que tinha nascido para isso.
Um dia, ao longo do outono de 1811, uma imagem o impressionou tão
brutalmente que Goya ficou alguns segundos sem se mover. Viu uma jovem
andando por uma alameda, em companhia de sua aia, na direção de uma
carruagem parada que parecia estar à sua espera. Algumas vezes, de fato,
os encontros eram marcados de véspera ou até mesmo vários dias antes.
A mulher, de estampa juvenil, avançava escondendo o rosto com um
leque. A portinhola da carruagem se abriu, a mão de um homem se
estendeu para fora: coisa bastante comum. No entanto, no momento em
que a garota abaixou o leque e virou-se para dizer alguma coisa à aia, Goya,
que estava a quatro ou cinco metros dela, ficou paralisado.
Acabava de ver Inês Bilbatua. Acabava de vislumbrar ali, a alguns
passos de distância, não o rosto pálido e alquebrado de Inês, como o vira
alguns meses antes, mas seu rosto jovem, sorridente e radiante, seu rosto
de anjo.
Não podia haver dúvida. Era ela. Nos últimos tempos ele já deveria ter
se acostumado à volta de certos fantasmas, primeiro o fantasma de Inês
destruída, saindo da prisão com o espírito arrasado, totalmente
dependente dele. Depois reencontrara Lorenzo, metamorfoseado, ativo,
seguro de si, autoritário, tão real como o conhecera no passado. E agora via
seu anjo favorito voltando, com passo firme, postura leve, por uma das
alamedas do jardim.
Goya recuperou o domínio de si, largou a caderneta e o lápis e já se
encaminhava para a carruagem quando a mão de um homem depositou
uma sacola na da aia, e a portinhola se fechou de novo. Era tarde demais. O
cocheiro já apressava o cavalo, a carruagem se afastava rapidamente. Goya
sabia que seria inútil chamar, gritar. Se alguém lhe respondesse, ele não
ouviria.
Parou ao lado da aia e lhe perguntou, apontando para o veículo, quem
era aquela garota. A velha respondeu alguma coisa que ele não ouviu.
Sempre a mesma história: tinha de explicar todo dia que era surdo,
completamente surdo, e que para falar com ele era preciso articular e olhá-
lo de frente. Mas a velha, sem dentes, não podia articular. Nenhuma palavra
se formava em seus lábios.
Perguntou de novo, mostrando a carruagem, ao longe: A garota, aquela
lá, quem é? A velha olhava-o com desconfiança. Talvez fosse um possível
cliente, mas também um parente, um pai infeliz, um policial à paisana,
quem sabe?
Afinal decidiu que era um cliente. Disse o nome da garota e garantiu que
era muito carinhosa, muito complacente, que amava o amor (coisa rara nos
nossos dias, afirmou), e sobretudo que era uma novata de verdade, ainda
inocente, uma recém-chegada, não como as outras, mas bem novinha, bem
fresca.
Goya não entendeu uma palavra daqueles resmungos e repetiu,
gritando:
Quem é ela? Como se chama? A aia lhe repetiu o nome, que ele não
entendeu, porque a boca sem dentes impedia a compreensão.
Deu alguns passos, pegou um lápis e o entregou à velha dizendo:
Escreva o nome dela. Aqui.
A velha não sabia escrever. Disse isso, mas ele não ouviu. Ficou ali,
gritando e gesticulando diante da velha desdentada. Os passantes, as outras
meninas, paravam ou se viravam para ver. De repente Goya julgou
discernir um nome se formando nos lábios da velha. Perguntou: Emilia? Ela
fez que não com a cabeça, e repetiu o nome. O pintor perguntou:
Alicia? Dessa vez tinha entendido. Ela abaixou a cabeça. Alicia, sim.
Então perguntou se ela voltaria. Não, hoje não. Não devia voltar hoje.
Ele entendeu. E perguntou: Amanhã? Ela abaixou a cabeça. Sim, amanhã
voltaria, amanhã estaria lá. Com certeza.
E acrescentou, mas ele não ouviu: Amanhã, o senhor poderá tê-la.
Voltou no dia seguinte e no outro, em vão. A aia lhe disse que ela estava
muito ocupada. Todos a queriam, segundo ela. Ah, com essa menina, dizia
de Alicia, não precisava se preocupar. Não mesmo. Os homens vinham a ela
como as formigas vão ao mel.
Muito impressionado com aquela semelhança, convencido de que essa
Alicia apenas vislumbrada era a filha de Inês, achando que não podia ser de
outra maneira, Goya averiguou (pelo velho camarista) o endereço
residencial de Lorenzo e foi vê-lo num domingo à tarde, pensando que teria
uma boa chance de encontrá-lo em casa.
Não estava enganado. Lorenzo, que ocupava um apartamento de dois
andares em frente ao palácio real, acabava de fazer a refeição do meio-dia
com sua mulher Henriette e seus três filhos, que se haviam reunido a ele
em Madri. Goya se fez anunciar. Foi recebido imediatamente.
Lorenzo apertou-o nos braços como fizera em seu primeiro reencontro,
no dia do julgamento dos inquisidores. Apresentou sua mulher Henriette,
uma loura gordinha e sorridente que já ia para os seus quarenta anos, e
seus três filhos, duas meninas e um menino, que não pareciam
particularmente felizes por morar em Madri.
Goya seguiu os costumes, cumprimentou a mãe e as crianças, que já
encarava como possíveis modelos, tomou um café, aceitou um charuto, mas
não se atrevia afalar de Inês e Alicia. A conversa, que a audição de Goya
sempre tornava muito difícil e lenta, durante dez minutos, girou em torno
do projeto de museu. Goya participava de um comitê encarregado de
selecionar os quadros que se pretendia enviar para a França. Lorenzo, que
nisso continuava sendo muito espanhol, e nesse aspecto se opunha à
maioria dos cortesãos, aconselhou Goya a escolher obras menores, para
não privar a Espanha de grandes imagens do seu passado, das Meninas, da
Rendição de Breda. Goya prometeu que assim procederia.
Pediu notícias dos inquisidores. As penas foram aplicadas, respondeu
Lorenzo. A maioria deles se encontrava na prisão, na província. Os
condenados à morte tinham sido executados.
O velho também?, perguntou Goya. Aquele que era o diretor, em Madri?
Não, ele não, respondeu Lorenzo. Em todo caso, ainda não. Parece que
está muito fraco para lhe passarem o garrote. Suas costas não ficariam
retas contra o poste.
Na verdade, graças a diversas manobras cujo detalhe não é conhecido,
em troca sem dúvida de outros favores, como acontece com freqüência,
Lorenzo conseguira o adiamento,
da execução do padre Gregorio. Era então fiel à sua palavra, mas,
evidentemente, mantinha a coisa em segredo. Em público, como
procurador, tinha arrasado o velho inquisidor, apresentando-o como a
própria ilustração do mal.
Não podia revelar que depois, às escondidas, salvara a sua vida.
Por outro lado, esperava, dado o seu estado de depressão geral, que o
velhote morresse por si mesmo bem rapidamente, eliminando assim todo
assunto comprometedor.
Aproveitando um instante em que Henriette havia saído para dar
ordens na cozinha, Goya disse a Lorenzo que tinha uma notícia
surpreendente.
Que me diz respeito? Sim, talvez. Mas... Goya fez um gesto em direção à
porta que dava para a cozinha, com as crianças em volta da mesa.
Não se preocupe, tranqüilizou-o Lorenzo. Elas ainda não falam
castelhano.
É a respeito de Inês, advertiu Goya. Venha por aqui. Disse às crianças
que voltaria logo e levou o pintor para um aposento vizinho, um escritório.
Sem sequer sentar-se, perguntou:
Então, o que há com Inês? Eu vi a filha. O bebê? Não, a filha. Tem
dezessete ou dezoito anos. Eu a vi. Falou com ela? Ela lhe disse que era filha
de Inês? Goya pediu-lhe para repetir a pergunta, que não havia entendido, e
respondeu:
Não, não, não falei com ela, só a reconheci. É exatamente como a mãe
nessa idade. Eu a reconheci. Tenho certeza. Exatamente a mesma.
Henriette, a mulher de Lorenzo, abriu então a porta para perguntar
sorrindo o que os dois homens estavam tramando.
Nada em absoluto, respondeu Lorenzo, em francês. É sobre esse museu
de que lhe falei. A lista dos quadros. Temos que terminá-la hoje mesmo.
Usou Goya como testemunha do que dizia. O pintor, que não tinha
ouvido nada, fez que sim com a cabeça olhando para Henriette.
Não sejam tão tagarelas, advertiu ela, o café está na mesa, nós os
esperamos.
Já vamos, disse Lorenzo. Ela saiu, fechando a porta atrás de si. Lorenzo
logo perguntou a Goya: Tem certeza do que está dizendo? Se alguém pode
ter certeza, sou eu. Minha memória visual nunca me enganou. Ontem à
noite procurei nos meus velhos esboços, encontrei Inês com essa idade,
veja.
Tirou do bolso uma caderneta velha e mostrou imagens rápidas de Inês,
no passado, croquis preparatórios do retrato que pintou dela, de frente, de
perfil. Em dois ou três desses esboços, a jovem Inês tinha asas de anjo.
Parecia observar a Terra, lá do alto, com um sorriso bondoso diante do
espetáculo desesperante deste mundo.
Lorenzo observou distraidamente, de forma rápida, os estudos de Inês -
uns vinte, pelo menos. Ele também a reconhecia, sem dúvida.
Goya acrescentou que seu assistente provavelmente tinha razão. Inês
falava de um bebê porque sua vida tinha parado anos antes, no día em que
lhe tiraram o bebê recém-nascido, na prisão. Não podia imaginar que esse
bebê, essa menininha, tinha crescido, amadurecido.
Explicou a Lorenzo, mostrando com um lápis em seus velhos desenhos,
que as arcadas das sobrancelhas, os pômulos, o nariz, o queixo eram
exatamente os mesmos nas duas mulheres. Ele não tinha certeza quanto à
cor dos olhos. Talvez os da filha fossem mais escuros que os da mãe, que
permaneciam claros na sua memória. Quanto ao cabelo, o da filha estava
preso sob um chapéu. Ele só pôde vislumbrar de relance. Preto,
aparentemente.
Onde você viu essa garota? Onde a vi? Sim. Aqui, em Madri. Mas onde,
em
Madri? Nos jardins, com as outras. O que ela estava fazendo nos jardins?
O mesmo que as outras. Lorenzodurante alguns segundos, ficou em
silêncio. Entendia sem dificuldade o que Goya estava sugerindo. Essa garota
estava então nos jardins. Era lá que se podia vê-la, falar com ela, escolhê-la.
Nos jardins. Era carne para qualquer um.
O mesmo que as outras. Uma imagem e alguns cheiros lhe vieram de
repente à memória. Eram de uma noite em Saragoça, perto do rio, de uma
garota que o havia abordado.
Tanto tempo havia passado depois disso, talvez vinte anos.
Henriette bateu à porta e avisou que o café estava esfriando. Sim, sim,
estamos indo!, disse Lorenzo, levantando a voz. E se debruçou sobre Goya
perguntando, como se na verdade não lhe interessasse muito:
Por acaso você sabe o nome dela? O nome? Goya ignorava
completamente a viagem de Lorenzo ao convento de Santa Lúcia, seu
encontro com as religiosas, suas perguntas. Lorenzo não lhe contara nada.
Missão secreta.
Ela se chama Alicia, acho. Perguntei à aia. Foi o nome que ela me deu.
Alicia? Sim, foi o que entendi. Lorenzo não disse nada por alguns
instantes. Fitava Goya pensando em outra coisa. Afinal, perguntou: E o que
você quer que eu faça? Que me diga onde está Inês. Por quê? Quero
encontrar a filha e levá-la até ela. Isso é a única coisa que pede. A única
coisa que poderia ajudá-la.
Lorenzo lhe disse que não se preocupasse. Ele o entendia, iria cuidar de
tudo, em primeiro lugar de encontrar a garota. Que sorte, murmurou Goya.
Os dois homens não disseram uma palavra sobre o fato de que Lorenzo
poderia ser, como disse Inês quando o reviu, o pai de Alicia. Os dois
pensavam nisso, necessariamente. Mas por ora, num acordo silencioso,
decidiram não tocar no assunto.
Venha, disse Lorenzo levantando-se, vamos tomar esse café.
Lorenzo foi ver Goya de novo dois dias depois. Queria saber em que
alameda dos jardins o pintor vira aquela que podia ser a filha de Inês, essa
Alicia cujo nome coincidia (mas sobre isso ele não disse uma palavra) com
o nome que fora inscrito, dezessete anos antes, nos registros do convento
de Santa Lúcia: mandada de Madri por ordem do Santo Ofício. E o rumor:
filha de um dignitário da Ordem. Lorenzo não pensava em outra coisa
senão nessa fraqueza do passado, cujos efeitos enfrentava hoje. Lembrava-
se de Inês, de sua doçura, sua angústia, sua solidão,
de como a oração os havia aproximado, ela e ele, na cela escura e fria, de
como ela se sentara no seu colo, em cima do hábito de monge, buscando
proteção, e ele a tomara nos braços, sem encontrar resistência, para tirar
desajeitadamente sua virgindade.
Recordava também, na época não tinha a menor experiência nessas
coisas, que ela o estreitara firmemente entre os braços, não queria se
separar dele, dizendo que aquela dor não era nada em comparação com as
outras, que ela até gostava, procurava essa dor, e se jogava nos seus braços
quando ele entrava na cela, todas as vezes, e se oferecia logo, pedia que não
a deixasse sozinha, que voltasse rápido, rápido, para a reza da noite. Aquilo
durou algumas semanas antes da noite vergonhosa na casa dos Bilbatua, da
condenação e da fuga. Quando abandonou o convento, ainda se lembrava,
chegara a pensar em levar Inês. Mas para onde? Para que tipo de vida?
Desde que a reencontrou e ela se jogou aos seus pés dizendo que era o
único homem que conheceu (ele não duvidava disso), Lorenzo se sentia
dilacerado. Cheio de piedade, queria sinceramente fazer alguma coisa por
ela, ajudá-la, devolver-lhe uma parte, ainda que ínfima, do que tinha
perdido por sua culpa.
Ele pensava: a culpa é minha. Não que a tivesse detido e interrogado
pessoalmente. Outros haviam se ocupado disso. Mas fora ele, na época, a
dar início à nova ofensiva do Santo Ofício, aquela vigilância intensificada,
maníaca, na esperança de uma possível salvação da Espanha com o
aumento da velha severidade. Esperança estúpida, como dizia agora.
Quando falava da barbárie desses métodos do passado, estava sendo
sincero. Ele reconhecia que tinha se desviado, distanciado, que aquele
refiro de inverno num mosteiro nas montanhas, onde pensava que Deus
não se negaria a inspirá-lo, só o conduzira ao erro e à mais amarga
injustiça. Lembrava-se muito bem de como era seguro de si mesmo,
arrogante, intratável e convincente em meio a tantas divagações.
Quando estava sozinho, às vezes batia na cabeça e pensava: como pude
me enganar assim, dar as costas, teimosamente, para a evidência? Como
pude acreditar em Deus, na sua mãe virgem, nessa história sinistra de
pecado original e redenção, como pude me ajoelhar diante de uma imagem
e rezar? Como pude, sobretudo dentro de uma religião que pregava a
caridade e o amor aos outros, agir como um policial de antolhos na vista e
mãos brutais?
Como pude pensar que poderia persuadir as almas pela força?
Por outro lado, hoje ele era um homem público, um homem ativo,
responsável em parte pelo futuro do seu país. Não podia destruir esse
personagem por causa de uma simples história de amores clandestinos e
de criança rejeitada, sobretudo porque não sabia, na época, quando deixou
Inês, que ela estivesse grávida. O homem novo lutava dentro de si contra o
homem antigo, que ele renegava e detestava. Mas na realidade os dois eram
o mesmo homem. Com a mesma habilidade, o mesmo ardor ativo que
antigamente empregava para defender a integridade indispensável da fé,
defendia hoje as conquistas da Revolução, que julgava e proclamava
inestimáveis, incomparáveis.
Desta maneira, defendia a si mesmo, defendia seu personagem, era ao
mesmo tempo seu acusador e também seu próprio advogado.
E, nesse processo íntimo de si contra si mesmo, a posição social que
havia conquistado por seus méritos, seu cargo, sua família, sua relação com
o novo rei, os dez minutos de diálogo com o imperador, seus projetos, a
importância que os outros lhe davam, seu futuro que se anunciava
luminoso (porque, como previam os comentários sobre ele, não seria um
dia nomeado primeiro-ministro do reino espanhol?), tudo o levava a
sacrificar Inês e, se fosse preciso, livrar-se, de maneira decente, dessa filha
que Goya dizia ter reconhecido.
A rigor, ele podia admitir, o menos publicamente possível, que no
passado, sob más influências, tinha dormido com uma das prisioneiras da
Inquisição, mas hoje não podia reconhecer-se como pai de uma prostituta.
Uma filha que se tornara prostituta por sua culpa. Era impossível pendurar
isso na janela como a roupa suja.
Por isso alugou uma carruagem anônima e, sem dizer a ninguém, nem a
Goya, rumou um dia, às seis da tarde, para os jardins do Pardo. A seu
pedido, o cocheiro deu três ou quatro voltas pelas alamedas. Lorenzo
olhava sem se mostrar, afastando um pouco a cortina da portinhola. E a viu,
não na alameda que Goya havia mencionado, mas em outro lugar.
Ele a viu e a reconheceu, tão instantaneamente quanto Goya. Após
algumas manobras complicadas, o cocheiro, que Lorenzo orientava do
interior, parou a carruagem perto de Alicia. Pela portinhola, como vira
outros homens fazendo, ofereceu uma sacola em sua direção. A aia viu
primeiro e avisou à jovem. Esta, sorridente, com o rosto meio escondido
pelo leque com que brincava, foi até a carruagem, pegou a sacola, sopesou-
a, trocou um olhar com a aia. O peso sem dúvida lhe pareceu suficiente.
Entregou-a à aia, que se aproximara com seus passos curtos, e subiu no
veículo, cuja portinhola Lorenzo acabava de abrir.
Sentou-se à sua frente. Ele deu ordens ao cocheiro para avançar, a
passo, através dos jardins, e em primeiro lugar olhou-a fixamente. Seu
rosto, de fato, era quase idêntico ao da jovem Inês, mas com certa
insolência no sorriso e, nos olhos mais escuros, um laivo de vício alegre,
como se esse trabalho, com o sucesso que começava a fazer, fosse uma
verdadeira vingança contra as virtuosas autoridades que quase a deixaram
morrer antes de viver.
Um pouco incomodada com o olhar de Lorenzo, que absorvia todos os
detalhes do seu rosto, do seu penteado desfeito pelas trepidações da
carruagem, do seu decote coberto com renda preta, ela recuou e se
protegeu no fundo do assento, meio encoberta pela sombra.
Não, não, disse Lorenzo, fique na luz, quero vê-la.
Ela obedeceu e se endireitou. Ele a observou durante alguns segundos e
perguntou:
Você se chama Alicia? Sim, disse ela. Mas, se não gostar desse nome,
escolha outro. Para mim, dá no mesmo.
Não, gosto desse nome. Alicia. Gosto dele. De onde você é, Alicia?
Você é o primeiro que me pergunta isso. Que diferença faz?
Eu gosto de saber. Não sei de onde sou. De Madri, acho. Daqui. Onde
você nasceu? Num orfanato - disse ela. Lorenzo começou a rir de repente, o
que pareceu surpreendê-la. Perguntou:
Eu disse alguma coisa engraçada? Sim, de certa maneira O quê? O que
foi que eu disse? Ninguém pode nascer num orfanato. Nunca. As crianças
vão para um orfanato quando não se conhecem os pais, quando eles
morreram, ou quando os bebês são abandonados, mas de todo modo
depois de nascerem. Você conheceu seus pais?
Não, respondeu. Mas sabe quem foram? Sim. Meu pai era um cardeal,
disse ela com segurança, quase com orgulho, olhando nos olhos de Lorenzo.
Um cardeal? Sim! Quem lhe disse isso? As freiras diziam. E também as
outras meninas. Todas aquelas idiotas.
O orfanato era dirigido por freiras?
Naturalmente. Tem certeza de que não era um convento? Pode ser,
disse ela, olhando para fora e mostrando assim que começava a se enfadar,
a desperdiçar seu tempo. Para quê isso pode interessar?
Até que idade você ficou lá?
Até que me mandaram embora. Por quê?
Vendo que ela começava a mentir, Lorenzo decidiu concluir o
interrogatório. Mas ainda perguntou: E sua mãe? Você a conheceu? Não.
Sabe quem ela era? Sim, uma herege. Foram as freiras também que lhe
disseram isso? Ela não respondeu. Deu uma espiada pela portinhola, como
se não houvesse entendido, como se estivesse arrependida por ter entrado
lá.
Você sabe o que é uma herege?, perguntou Lorenzo. Não, mas é uma
coisa proibida, e recebe castigo. Agora não mais.
É?
Com um golpe seco, ela fechou completamente a cortina, que Lorenzo
deixara entreaberta para deixar entrar um raio de luz, e disse: Bem, e
então, fazemos aqui? Na carruagem? Eu não me incomodo. Mesmo
andando, para mim dá no mesmo.
Já começava a levantar rapidamente a saia quando Lorenzo lhe disse:
Não. Não, o quê? Aqui não? Onde, então? Em lugar nenhum. Só queria
conversar um pouco. Sobre o quê?
Sobre você. Por exemplo?, perguntou ela, desconfiada. Quando saiu do
orfanato, o que fez? Trabalhei numa granja durante dois anos. Dois homens
me estupraram.
Fui embora.
E depois? Ela lhe apontou um dedo estendido dizendo: Você não vai
receber seu dinheiro de volta, sabe disso? Não o quero de volta. Só vim
conversar um pouco com você.
Quer que eu lhe diga coisas sujas? Dessas coisas que não se dizem?
Posso fazer isso, se você quiser.
Não, não, nem pense nisso. Minha filha, dizia ele para si mesmo. Sem
dúvida, minha filha, sentada aí, diante de mim. Oferecendo-se, toda
maquiada. À venda. Capaz de falar porcarias. Fugida de um convento com
onze anos, estuprada por camponeses aos treze ou quatorze. E ele não se
sentia envergonhado, nem incomodado. Interessado, até fascinado por ela,
como se derepente Inês houvesse mudado de idade, de caráter e estivesse à
sua frente num outro tempo, numa outra vida. Ele mesmo sentia-se um
homem duplo, desde a juventude, um ser complexo, desconcertante, que
não conseguia controlar, nem mesmo conhecer, e agora tinha à sua frente a
mesma mulher, que o olhava como um estranho mas que só existia por sua
causa.
Ela lhe perguntou, fingindo medo, e abaixando a saia: Você não é da
polícia? Não. De verdade, mesmo? De verdade. Porque eu não gosto de
policiais, principalmente à paisana. E eles também não gostam de mim.
Uma vez arranhei um
deles. Ainda está com a cicatriz, bem debaixo do olho. Sempre que pode,
ele me mete na cadeia.
Ele deu sua palavra de que não era da polícia. Então? O que quer de
mim? O que estamos esperando? Tenho uma proposta a lhe fazer. Sim. O
quê? Sair da Espanha. Agora a indiferença caiu do seu rosto como uma
máscara de papel. Ela estava surpresa de verdade, e assustada.
Sério?, perguntou ela. Muito sério. Para ir aonde? Aonde você quiser.
França, Itália. Grécia. Mas o melhor seria ir para a América.
Por quê? Porque é mais longe. Quer que eu vá embora da Espanha? Sim.
Com você? Não. Cada vez mais assustada, ela lhe pergunta se está em
perigo sem saber, se alguém a odiava a ponto de querer se livrar dela. Essas
coisas acontecem. Ele diz que não.
Então por que quer que eu vá embora? Pelo menos poderia me dizer?
Não, não posso. Mas se você aceitar, e isto é a única coisa que estou
autorizado a lhe dizer, vai ter dinheiro suficiente para passar o resto da
vida sem fazer nada.
Vou poder me casar? Terá a vida que quiser. Será totalmente livre. Livre
e rica. Você vai poder se casar, ter crianças. Desde que deixe a Espanha
imediatamente.
Ela de repente perguntou: É por causa do meu pai, o cardeal? Lorenzo
pensou dois ou três segundos antes de responder: Não creio. Para dizer a
verdade, não conheço o verdadeiro motivo. Fui enviado a você, isso é tudo.
Quem o enviou? Não estou autorizado a dizer. De repente ela pegou a
maçaneta da portinhola e quis abrila. Lorenzo segurou seu braço para
impedir. Ela gritava que queria sair dali, rápido. Ele tentava acalmá-la, dizia
que não havia nada a temer. Ainda queria falar com ela, mas a garota se
recusava, não queria ouvir mais nada.
Não me toque! Deixe-me sair! Tudo isso para acabar num bordel
miserável! Pastando com os animais! Deixe-me sair daqui, já disse!
Mordeu a mão de Lorenzo com toda a força dos seus jovens dentes. Ele
reprimiu um grito. Alicia conseguiu entreabrir a portinhola e berrar.
Transeuntes se aproximaram, outras garotas, a aia. Tudo o que Lorenzo
queria evitar.
Então a soltou, e ela prendeu um pé na saia quando desceu da
carruagem. Caiu de joelhos, ainda gritando, pedindo socorro. Lorenzo disse
ao cocheiro para sair dali o mais rápido possível. Ouvia atrás de si os
pesados insultos de Alicia, seus gritos, que alarmavam os jardins.
Gotas de sangue pingavam da sua mão. Ele secou-as com o lenço.
Os interesses da França começavam a desandar. Por motivos mil vezes
explicados mas jamais compreendidos, Napoleão decidira invadir a Rússia.
Para isso formou o que chamou de Grande Exército, que parecia irresistível,
e escolheu a Polônia
como base de retaguarda. Após duras batalhas, entrou em Moscou e se
instalou no Kremlin. Por pouco tempo. A resistência russa incendiou a
cidade, então construída em madeira, e fustigou os invasores, dia e noite.
Tiveram que bater em retirada diante de um inimigo combativo, mais
patriota do que o imperador poderia imaginar, e que recebia a ajuda de um
general desconhecido dos franceses, particularmente temível, chamado
Inverno.
Ao mesmo tempo, na Espanha, a guerra contra os franceses, estimulada
pela presença ativa de tropas inglesas em Portugal, exacerbava-se e
ampliava-se a cada dia.
E recebia até um nome novo, que teria um longo futuro por diante: a
guerrílla. Como escreveram numerosas testemunhas, era o país inteiro, até
mesmo a terra, as árvores, que parecia lutar, com facas, com forcados, com
estacas. Guerra cuchillo, como anunciara Palafox.
Essa resistência natural do povo marcava um fim próximo para as
velhas batalhas com tropas em formação, nas quais quem ficava com o
terreno declarava-se oficialmente vencedor e impunha suas condições de
paz. Não era mais assim. Os estudos de estratégia e tática ministrados nas
escolas militares não serviam mais de nada. As tropas regulares,
organizadas, buscavam em vão o inimigo, que se ocultava o tempo todo e se
infiltrava nas aldeias e cidades para atacar em pequenos grupos, pela
retaguarda, pelos flancos, muitas vezes à noite e com facas.
Exasperadas, as tropas de ocupação reagiam, como é tristemente
habitual, com capturas de reféns e execuções sumárias, muitas vezes
precedidas de torturas. Pelotões de fuzilamento, membros cortados,
degolas, empalamentos, estupros, incêndios de casas, de aldeias: desastres
que Goya desenhava sem parar - fosse porque os via, pois se deslocava de
Madri a Saragoça, fosse porque lhe contavam -, mas que não podia ou não
ousava publicar. Com exceção de algumas pessoas mais íntimas, essas
imagens só foram conhecidas muito depois de sua morte.
FIM