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Nos últimos anos do século XVIII a Espanha ainda era um império colonial

imenso. Frente ao assédio das idéias laicas e republicanas que vinham da


França revolucionária, a Inquisição - havia muito tempo em estado de
dormência - tem um surto de vitalidade e decide mostrar suas garras.
Francisco de Goya y Lucientes testemunha tudo isso. Pintor da Corte e
glória da Espanha, Goya fazia retratos por encomenda de nobres,
mercadores e autoridades da Igreja, como frei Lorenzo Casamares, homem
implacável da Inquisição. Quando Casamares vê no ateliê de Goya o retrato
da jovem Inés, filha do comerciante Tomás Bilbatua, que fora presa e
acusada de heresia, os destinos dos três se entrecruzam numa história de
lealdades e traições, de amor, tortura e morte, mas também de guinadas
ideológicas e vinganças pessoais.
PARTE I

Lorenzo Casamares acaba de completar trinta e um anos. Nascido num


obscuro povoado de Múrcia, quarto filho de uma família de camponeses
pobres, passou a infância no campo, descalço mesmo no inverno,
apanhando espigas largadas no chão, colhendo frutas silvestres, juntando
bosta de cavalo com uma pazinha de madeira. Pescou com a mão nos
riachos, fez armadilhas para passarinhos com pedras planas sustentadas
por gravetos. Chegada a época da colheita, roubava figos e uvas. Duas ou
três vezes foi apanhado e espancado com galho de urtiga. Ele sabe, desde
que nasceu, como a vida pode ser dura nesta Terra.
Também sabe que há outra vida, a única que interessa. Desde os sete
anos, o padre da paróquia reparava na obstinação que demonstrava, muitas
vezes, na confissão obrigatória das sextas-feiras. Impressionado com sua
jovem inteligência, com a vivacidade do seu espírito, com sua intensa
curiosidade pelos mistérios da fé e seu fervor instintivo e profundo, o padre
encontrou um jeito de mandá-lo aos nove anos para um colégio, para ali
receber, sem pagamento, uma educação normal. Sua família aceitou com
alegria esse privilégio, na época muito raro. Significava uma boca a menos
para alimentar.
Brilhante, trabalhador, obcecado pelas questões religiosas,
extremamente piedoso mas também brincalhão e batalhador, o jovem
Lorenzo aprendeu rapidamente a ler e escrever, e em dois anos recuperou
seu atraso. Estudava à noite, escondido, à luz de uma vela, pedindo a Deus
que lhe desse forças para resistir à falta de sono.
Aos treze anos, além do idioma castelhano já conhecia bastante bem o
latim e tinha noções de grego. O estudo era a sua paixão. Ele lhe abria, dia
após dia, o mundo insuspeito do conhecimento, tanto em relação às coisas
humanas como às divinas. Encontrou no estudo, também, um território em
que podia sentir-se igual às crianças vindas de outros meios, filhos de
mercadores ou mesmo de fidalgos, arrogantes mas na maioria das vezes
sem grande brilho, simples de espírito, incapazes de aprender.
Essa igualdade diante da porta do saber lhe parecia propriamente a
obra de Deus.
Aos dezesseis anos, compunha versos em latim e recitava os Salmos de
cor. Popular entre os colegas, que comandava, Lorenzo também provocava
ciúmes entre eles. Em diversas ocasiões o acusaram de brutalidade, de
orgulho. E sempre conseguia se sair bem. Era o melhor em quase todas as
matérias.
Quando chegou o momento, entrou num seminário. A teologia o
fascinava. Nela, seu espírito encontrava um terreno de jogo sem limites.
Descobria, na companhia dos santos, anjos e arcanjos, especulações
inesperadas, hierarquias celestes, mundos infinitos ainda mais
perturbadores por serem invisíveis e impenetráveis.
Como a pureza da fé parecia ser a sua principal preocupação, foi
destinado aos dominicanos, uma ordem religiosa cuja vocação primordial
era a luta contra todas as formas de desvios
e heresias. Em latim, por causa da sua lendária ferocidade, um jogo de
palavras os chamava de domini canes, os cães do Senhor.
Lorenzo fez seu noviciado e logo a seguir, em 1779, participou de uma
viagem coletiva a Roma. O grupo de monges espanhóis foi recebido pelo
Santo Padre, em audiência particular, durante quase duas horas. O papa
lhes falou do verdadeiro reino, que ia defendendo à medida que descrevia,
e disse que a Espanha era o baluarte mais seguro da verdade eterna. Por
duas vezes chamou-os de soldados de Cristo. Essas palavras provocaram
uma forte impressão em Lorenzo que, na presença do primeiro dos
cristãos, do legado de Deus na Terra, pensava na sua infância de pés
descalços.
Aos vinte e quatro anos, um dos seus professores sugeriu seu ingresso
no organismo que chamavam de Santo Ofício. Em outras palavras: a
Inquisição.
Foi imediatamente aceito.

O primeiro papa que usou métodos inquisitoriais foi o impiedoso


Inocêncio IIi, em sua luta contra os albigenses, no começo do século XIII. A
Inquisição propriamente dita foi fundada por Gregorio IX, em 1231.
Confiada aos dominicanos, ela devia zelar, seguindo uma instrução mantida
em segredo, pela manutenção estrita do dogma católico e romano.
Na Espanha do final do século XVII, quando Lorenzo entra em seus
quadros, a Inquisição está envelhecida. A imagem dura, sombria e até
assustadora que tinha dois séculos antes pouco a pouco se abrandara e
enfraquecera. Em tese, a Espanha continua sendo uma monarquia católica
tradicional, poupada da Reforma protestante.
A confissão e a comunhão regulares são obrigatórias no mínimo uma
vez por ano e cada habitante precisa ter um certificado de comunhão
pascal, o que às vezes estimula, nas cidades, o surgimento de um mercado
negro.
Como antes, os membros da Inquisição podem entrar em qualquer
lugar sem aviso, até mesmo nos quartos dos estrangeiros. Procuram
brochuras, imagens, livros proibidos, impressos do outro lado das
fronteiras. Lorenzo aprendeu essa técnica ainda bem jovem. Sabe
encontrar os esconderijos mais usados.
A Espanha se esforça para resistir, ao menos oficialmente, à penetração
das idéias novas que vêm da Europa do norte, principalmente da França. As
obras julgadas perniciosas são oficialmente proibidas, com penas de multa
ou até de prisão. Voltaire, Hume, Rousseau e mesmo Montesquieu foram
banidos.
Apesar dessas precauções, alguma coisa, tanto no pensamento como
nos costumes, mudou. A palavra clara e surpreendente dos filósofos, que se
apresenta como uma nova lógica do espírito, um chamado ao progresso e à
razão contra toda e qualquer autoridade arbitrária, rompe a barreira dos
Pirineus nas sacolas dos contrabandistas.
Encontraram-se panfletos sediciosos relatando a queda da Bastilha em
abas de chapéus vendidos bem ao sul, em Cádiz. Ao longo das costas
espanholas, marinheiros jogam na água mensagens revolucionárias, como a
Declaração dos Direitos do Homem, lacradas em caixinhas de ferro. Essas
caixas se mantêm à superfície graças a um pedaço de cortiça amarrado
num barbante. Basta localizar e puxar - o que é feito à noite, com um
lampião.
Algumas dessas mensagens chegam até Barcelona e Madri. Lorenzo e
outros monges investigadores encontraram várias dentro de colchões,
embaixo de lajotas ou em vigas.
A inteligência se propaga como uma peste. É difícil de sufocar. Quase
incurável.
Muitos espanhóis haviam visitado Paris e Londres. Viram, ouviram,
leram. Mesmo em Madri, onde circulam jornais humildemente satíricos que
se chamam El Pensador ou El Censor, às vezes é possível comprar uma
autorização para ler livros do Índex. A curiosidade tem seu preço.
Toda uma parte da sociedade elegante, aristocratas, negociantes,
políticos, artistas, escritores, acompanha com interesse o movimento
europeu do intelecto, que lhes parece irresistível. São chamados de los
ilustrados, ou então (por ironia) los alumbrados, isto é, os ilustrados,
esclarecidos, iluminados. Entre eles, bastante discretos, há vários franco-
maçons. Nos casos mais graves, esses espíritos modernos são chamados de
afrancesados, ou seja, conquistados mentalmente pelo país vizinho, cujos
modos, assim como as idéias, são contagiosos.
Esses espíritos sabem que uma monarquia, por mais sólida que pareça,
precisa caminhar junto com o seu tempo. Mas não é fácil dizer isso,
sobretudo em voz alta.
Carlos III, que reinou durante quase trinta anos, morreu em 1788 com a
reputação de déspota esclarecido. Ele era um Bourbon e, para dar fim a
séculos de guerras incessantes, assinou com a França o que a história
chamou de Pacto de Família, que, aliás, valeu-lhe a custosa guerra dos Sete
Anos.
Pudico mas amante das artes, o rei deixou a evolução das mentalidades
progredir. Evitou apoiar-se muito abertamente na Igreja e na Inquisição.
Escolheu como domicílio um palácio real em estilo francês, de construção
recente, harmonioso, que domina o rio Manzanares, bem diferente das
sinistras fortalezas de outros tempos. Urbanista, desenvolveu e embelezou
Madri, que até então era uma capital acanhada, provinciana, quase uma
aldeia, sem proporção com o Império espanhol.

No final do século XVI esse império ainda é imenso. Uma frase célebre
passa de uma geração para outra: O sol nunca se põe nas terras do rei de
Espanha. Embora Flandres, Portugal, Áustria e a Itália espanhola tenham se
separado do império, a frase continua sendo verdadeira. No Século de
Ouro, duzentos anos antes, um quarto da população da Terra dependia,
mais ou menos diretamente, do poder espanhol, ou seja, do rei da Espanha.
Essa proporção já não é tão grande. Por outro lado, nos campos social e
econômico, apesar dos esforços de Carlos III, a Espanha perdeu terreno. Os
olhares se dirigem mais para a Inglaterra, para Berlim ou para a França. Os
mais audaciosos se voltam até para os jovens Estados Unidos da América,
cuja recente independência e cuja constituição republicana ameaçam
provocar ventos de revolta nos outros povos do Novo Mundo. As velhas
monarquias começam a ficar inquietas: e se a república atravessar o
Oceano, de oeste para leste?
É bastante comum, na Europa, falar-se de declínio da Espanha, coisa
que começou cento e cinqüenta anos antes. Mesmo em Madri, alguns já a
consideram atrasada, fora do jogo.
No entanto, nos mapas do mundo, ela está em toda parte.

Antes de entrar no Santo Ofício, Lorenzo Casamares, à semelhança de


outros espíritos aventureiros do seu tempo, sonhara em ir para longe, para
um daqueles territórios onde a fé cristã ainda parecia nova.
Na adolescência imaginava-se como missionário, a cavalo oir numa
piroga, brandindo a cruz de Jesus diante de tribos assombradas, como já
fizera antes, na América, outro dominicano que admirava, Bartolomeu de
Las Casas. Sonhava às vezes até com o próprio martírio, com a santidade
que se seguiria, com Deus abrindo-lhe os braços, com a glória eterna entre
os coros de serafins. Voltava a ler os textos, já antigos, de são João da Cruz,
de santa Teresa de Ávila. Conhecia as páginas de cor.
Não ignorava a menor passagem das existências fabulosas de são
Francisco Xavier, que pregara no Japão e morrera diante da China, e do
grande santo Inácio de Loyola, ilustre fundador da Companhia de Jesus,
hoje dissolvida.
Mas aqueles tempos não existem mais. A Espanha, tal como o resto da
cristandade, carece de santos e, em conseqüência, de milagres. A fé perdeu
sua chama e seu impulso.
Tornou-se administrativa. À medida que amadurece, Lorenzo constata e
admite o fato. Mas onde é o seu lugar? Qual o seu papel no grande desígnio
de Deus? Ainda não sabe.
Nos territórios mais longínquos da Coroa, como as ilhas Filipinas,
descobertas por Magalhães em 1521 (o mesmo ano em que Cortés se
apoderou de Tenochtlán, futuro México), as notícias e ordens levam em
média um ano para chegar da Espanha. Nesses lugares, os monges se
encarregam não só da vida religiosa como também da educação das
crianças e da organização da polícia. Agentes quase sempre muito eficazes
da colonização espanhola, esses religiosos souberam inspirar nos indígenas
um temor sagrado à distante mãe pátria, que praticamente divinizaram -
acreditando que Deus escolhera a Espanha, e não Roma ou a Palestina, para
evangelizar a Terra.
Também se apresentaram, ponto que fascinava Lorenzo, como
libertadores desses povos. Como fizeram outros religiosos no México e no
Peru, traziam, como afirmavam, a única palavra verdadeira e, pelo milagre
inconcebível da redenção (uma idéia muitas vezes difícil de explicar), a
promessa da salvação eterna. Ensinavam aos indígenas que eles eram ao
mesmo tempo - fato que desconheciam até então - pecadores de nascença e
salvos por Cristo. Em suma, diziam, livravam-nos de seus reis bárbaros, que
os sacrificavam com freqüência a deuses de pedra, e de suas crenças
supersticiosas.
Isso feito, era preciso instalarse e organizar-se para que as coisas
perdurassem. Tiveram que resistir até a outras crenças invasoras.
Hoje, forçados às vezes a defender-se, arvoram-se em única proteção
possível contra a abominável e fanática seita dos partidários de Maomé,
que começa a espalhar-se pela Ásia (onde existia antes da chegada dos
portugueses e espanhóis) e que só pode conduzir às torturas sem fim do
inferno.
Cartas secretas, que escapam até mesmo à vigilância real, garantem um
contato estreito entre os monges missionários dos territórios remotos e os
conventos espanhóis.
Entre dominicanos daqui e de acolá, por exemplo. Quando vez por outra
há atritos (na Colômbia, na Venezuela, no México), as autoridades da
Inquisição sabem imediatamente.
Elas são as guardiãs da autenticidade da fé. Nessa qualidade, os
religiosos têm a missão de informar ao rei, que também dispõe de seus
próprios informantes, e de aconselhá-lo quanto às medidas a tomar, quanto
às reformas, desejadas ou não.
Mas apenas isso. A chama ardente das primeiras conquistas se
extinguiu. A Igreja se instalou atrás das escrivaninhas. Assume às vezes
ares de uma polícia de província.
É por isso que Lorenzo, mesmo tentado pelas Filipinas, desistiu de ir. O
verdadeiro combate, disse, não deve ser procurado na extremidade dos
nossos membros. Ele é travado aqui, no nosso coração.

Nas reuniões freqüentes do Santo Ofício, Lorenzo Casamares é uma das


vozes mais ouvidas, e provavelmente a mais seguida.
Das suas origens camponesas, conserva maneiras rudes, às vezes
brutais, mas sabe ocultá-las sob uma aparência de humildade.
Fala baixo e tem as costas ligeiramente encurvadas. Embora se coloque
sem hesitar do lado dos ilustrados e se interesse com paixão pelo seu
tempo - é amigo do famoso Francisco Goya, pintor oficial da Corte, o mais
querido da Espanha, a quem encomendou recentemente um retrato -,
expressa-se sem busca de elegância, sem floreios de linguagem. Vai
diretamente aos fatos, sem a arte insinuante que se atribuía no passado aos
jesuítas, mestres da vontade indireta, ou seja, da dissimulação.
Quando o contradizem, às vezes perde a paciência, ergue a voz. Se
necessário, dá um soco na mesa. Mas isso é muito raro. Na maior parte do
tempo parece submisso, atencioso.
É um homem de rosto forte, com traços marcantes. Seu queixo é
determinado, seu olhar, pesado e denso. Pode quebrar nozes com os dedos
sem esforço. Só se barbeia duas vezes por semana, anda e come com
rapidez. Às vezes, quando está com muita pressa, enfia o hábito branco e
preto e o suspende com a mão para andar. Quem o conhece diz que se pode
falar com ele de qualquer coisa, até de assuntos escabrosos. É capaz de rir,
de repente, às gargalhadas, batendo no ombro das pessoas.
Costuma dizer: Sempre serei um camponês. Sob essa aparência um
tanto rude, sem dúvida lhe serve de máscara, Lorenzo disfarça um espírito
perspicaz, agudo, que parece adivinhar os argumentos dos seus
adversários, embora sempre espere, tamborilando com os dedos na mesa, o
momento oportuno para responder. Dizem que sua inteligência anda mais
rápido que ele e às vezes o deixa para trás, como se ao falar esquecesse
quem é, e dizem também que é muito convencido, mordaz, que se agarra às
próprias idéias como uma ave de rapina, que sua sinceridade é total.
Cultivou-se pacientemente nas bibliotecas dos diferentes conventos em
que viveu, mas também nas bibliotecas públicas, que não deixa de
freqüentar, e no convívio com os vendedores ambulantes. Nada lhe escapa.
Gosta de carregar livros ou panfletos proibidos debaixo do hábito e sentar-
se à beira do Manzanares para lê-los à sombra, lentamente, longe de todos.
A época em que vive o preocupa muito. Atento aos sobressaltos que
agitam a França e que, em conseqüência, sacodem o velho torpor europeu,
não sabe o que fazer.
Todo dia vê a miséria e a sujeira de Madri, que persistem apesar dos
trabalhos do último rei. Na capital do maior império do mundo, um
habitante em cada cinco é um mendigo. A Igreja espanhola possui riquezas
imensas, que só podem ser comparadas com as de certos aristocratas.
Assim como o rei não via o pôr-do-sol nas suas terras, é certo, por exemplo,
que os membros da famíliad'Alba, a mais antiga e mais rica da Espanha,
podem atravessar toda a península sem sair por um instante de suas
propriedades.
Teria Deus escolhido essas diferenças? Não disse Jesus que seria mais
fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no
reino dos céus?
As catedrais transbordam de obras-primas de ourivesaria que parecem
ter sido aspiradas como por obra de vampiros da terra seca que as rodeia.
Como tolerar que homens e mulheres desdentados e mutilados estendam a
mão à porta desses tesouros?
Amaria Deus o ouro? Tal como os ilustrados que costuma freqüentar,
Lorenzo recebeu com simpatia e até com entusiasmo os primeiros
movimentos de protesto contra o rei da França, Luís XVI, e sua esposa
austríaca, Maria Antonieta. Não se assustou, como tantos outros, ao ouvir
falar de um povo soberano, e se alegrou com a convocação dos estados
gerais, onde se encontrariam delegados de todas as classes sociais e de
todas as províncias da França.
Ouvia ali, finalmente, a voz do povo, esse povo esquecido e por tanto
tempo silencioso de que ele próprio provinha.
Quando esse mesmo povo se apoderou da fortaleza da Bastilha, em
Paris, no dia 4 de julho de 1789 e as primeiras cabeças cortadas foram
expostas na ponta de lanças ensangüentadas - informações que recebeu
com rapidez graças aos dominicanos franceses -, sua alegria sofreu um
baque.
Ao longo dos anos 1790 e 1791, ao ver que aquela revolução tão
próxima não exercia a menor influência sobre a Espanha - como ele
esperara a princípio - e que em Paris a tensão aumentava a cada semana
entre os delegados eleitos - homens de bem que trabalhavam com afinco
para redigir uma constituição - e que o poder real vacilava, suspirava e
pedia secretamente a ajuda de outros países europeus por não saber como
salvar as finanças públicas, ficou cheio de dúvidas.
Também via que, na França, os homens novos se opunham, às vezes
violentamente, ao clero tradicional e se apoderavam por simples decreto de
bens imensos da Igreja para oferecê-los, em nome dessa entidade soberana
que agora chamavam nação, a compradores particulares. Soube que igrejas
eram pilhadas, até mesmo destruídas.
Adivinhava à distância os avanços da anti-religião, sentia o clero francês
em perigo. Sua mente ficou conturbada.
No começo de 1791 pediu autorização a seu superior, o padre Gregorio
Altatorre, para sair de Madri e fazer um retiro de quinze dias no mosteiro
de El Paular, situado na solidão nevada da serra de Guadarrama, cem
quilômetros ao norte de Madri. Precisava refletir, disse, sozinho com Deus,
numa cela fria e silenciosa.
A autorização lhe foi concedida. Lorenzo partiu no final de fevereiro, em
lombo de mula, enrolado num cobertor de lã.
Uma jovem está sentada num tamborete alto. Seu rosto está
posicionado de maneira a receber diretamente a luz que vem de uma ampla
janela.
Tem dezessete ou dezoito anos. Seu rosto é límpido e alegre. Uma voz
severa de homem lhe pede para não se mexer, para ficar no seu lugar,
imóvel. Ela se esforça, mas sua atenção parece atraída por alguma coisa que
a intriga e diverte.
Em volta, um ateliê de pintura e gravura, vários homens trabalham.
Alguns preparam cores, esmagando e misturando, outros manipulam uma
pesada prensa de onde saem estampas ainda frescas, que são penduradas
para secar numa corda estendida no próprio ateliê. As paredes estão
cobertas de gravuras amarrotadas, cópias a carvão de mármores antigos,
esboços, modelos de letras, quadros em execução. Por toda parte buris,
tinteiros, frascos de ácido, tampas, pincéis, mata-borrões, raspadores,
punções: todos os apetrechos de um pintor-gravurista.
O que atrai o olhar da jovem é o retrato inacabado de um homem. Na
verdade, mais parece um estudo de hábito de monge, uma veste branca e
preta como a dos dominicanos.
A roupa está desabitada: não se vêem as mãos nem o rosto.
Posso dizer uma coisa?, pergunta a jovem. Sim, responde uma voz de
homem um pouco abafada, ou talvez contrariada.
Por que este retrato não tem rosto? Porque é um fantasma, responde a
voz. Não, disse a jovem, rindo, após um rápido olhar. Não, não é um
fantasma.
O homem que está pintando fica em silêncio por um momento. Chama-
se Francisco Goya Lucientes e está com quarenta e cinco anos. Corpulento,
de olhos pretos, cabelo desgrenhado, tem a cabeça redonda e o ar
rabugento geralmente atribuídos aos aragoneses. Está com uma paleta e
vários pincéis na mão. Um avental todo manchado de tinta protege seu
torso.
Tudo o que a jovem sabe dele é que é famoso. Na verdade, é o pintor da
Corte há quase dez anos. Antes trabalhava para uma fábrica de tapeçarias
destinadas às residências reais, como os palácios do Escorial e do Pardo.
Desenhava e pintava cenas da vida popular, piqueniques, casamentos,
jogos: imagens alegres e tranqüilizadoras de uma Espanha falsa, aquela que
o rei queria ter diante dos olhos.
Depois fez o retrato de um primeiro-ministro que se chamava
Floridablanca, um homem de baixa estatura e que sofria por isso. A jovem
pedira ao pai que lhe contasse a história: Goya se incluiu no quadro e foi
mostrar sua obra ao modelo, mas teve a astúcia de diminuir-se dez
centímetros para parecer mais baixo que o ministro, na época todo-
poderoso. Uma bajulação pictórica que lhe rendeu elogios e mais
encomendas. -
O retrato do monge sem rosto é de Lorenzo Casamares, que a jovem não
conhece. O inquisidor só veio uma vez ao ateliê, para fazer a encomenda,
escolher o formato e dar uma visão geral do seu corpo e da sua roupa.
Depois disso, desapareceu. Não veio à segunda sessão de pose. Dizem que
recentemente, por motivos desconhecidos, se afastou de Madri. Goya
pintou o hábito enquanto esperava por ele.
Perguntou à jovem: Você já viu um fantasma? Não disse, mas vi uma
feiticeira. De verdade? Sim, de verdade. E tinha rosto! Parecia com o quê?,
perguntou ele, sem parar de trabalhar, apenas ouvindo.
Era toda raquítica, alquebrada... Suja... e fedia!

Estranho, disse Goya entre os dentes. Por que estranho? Eu também


conheço uma feiticeira, disse, com os olhos pulando sem parar da modelo à
tela.
E como é ela? É jovem, sorridente, tagarela, impaciente e se perfuma
com jasmim.
Não é, não. É sim. E justamente agora, neste momento, estou
trabalhando no retrato dela.
Não sou uma feiticeira, diz a jovem, deixando de sorrir. E o que você
sabe sobre isso? Ele larga a paleta e anuncia, esfregando as mãos no
avental, os olhos ainda fixos no quadro, que a sessão está encerrada.
Acabou?, pergunta ela. Por hoje, sim. E quando vai ficar pronto? Isso,
quem decide sou eu. A jovem olha para o próprio rosto na tela. Como a
maioria dos modelos, custa a reconhecer-se, e pergunta se é pela cor do
cabelo, dos olhos. Quer saber se é assim mesmo. Goya lhe diz em poucas
palavras que nos olhamos num espelho vemo-nos ao contrário. Acabamos
familiarizados, afinal, com uma falsa imagem de nós mesmos. Daí a nossa
surpresa quando, pelos olhos de um pintor, de repente nos vemos como
somos, ou quase_
Ela faz um muxoxo, não muito convencida. Veste a capa e vai embora,
cumprimentando graciosamente todos os que estão lá. Terá de voltar.
Várias vezes, talvez.
Goya fica imóvel por um instante, olhando o seu quadro. Um fantasma,
sim. Um fantasma de graça e beleza, um fantasma de inocência, que um dia
veio do céu para colocar-se sob os seus olhos, suas mãos. Se os anjos
existem, ela é um deles. Que eles têm sexo, não resta a menor dúvida.
Jamais, entre todas as mulheres que posaram para ele, vira um rosto
parecido. De onde vem esse rosto? Como surgiu? E o que está tentando lhe
dizer?
Ela se chama Inês Bilbatua. Uma carruagem e um cocheiro estão à sua
espera para levá-la de volta para sua casa, ou melhor, para a casa do seu
pai. De origem basca, Tomás Bilbatua é um negociante, filho de outro
negociante. Vende tudo o que se pode vender, mas principalmente
produtos exóticos vindos da África, da América e das Índias. Passou quinze
anos de sua vida nos oceanos, criou entrepostos em toda parte, em
Veracruz, em Acapulco, em Orã, no Senegal, em Goa, em Manila, em
Campeche. É desses homens, bastante raros na Europa, que se interessam
pela Ásia, que sabem que três quartos do comércio mexicano, por exemplo,
não se fazem com a Europa, mas com a China, a Índia e o Japão, por
intermédio das Filipinas. E por essa rota, que atravessa o México de um
lado a outro, e depois o Atlântico, chegam as matérias preciosas, a seda, o
marfim, as esmeraldas, as especiarias, todos produtos que rendem bons
dividendos.
Na própria Espanha, mantém depósitos em Bilbao e Cádiz. Tem
correspondentes em Valença e Barcelona para todo o comércio
mediterrâneo. Fez contratos com centenas de comerciantes.
Também é armador, com participação em várias companhias
marítimas. Os bascos sempre foram exploradores dos mares. Afirmam com
orgulho que aportaram nas costas americanas muito antes de Cristóvão
Colombo, mas que nunca divulgaram o fato: não queriam revelar a
localização secreta dos seus locais de pesca.
Nos pátios e corredores da sua imensa mansão em Madri vêem-se peles
de crocodilo, papagaios vivos, sacos de gengibre, noz-moscada, sementes
de girassol, açafrão, pimenta verde, pimentas mexicanas que queimam a
garganta, vinte e quatro variedades de café e de chá, uma centena de sacos
de arroz, bananas, mangas e tomates, pirâmides de cocos, batatas raras
vindas do Peru, pilhas de objetos de cobre, de prata, jóias, cestas trançadas
da Amazônia e de outros lugares, punhais malaios, lanças marroquinas,
cofres revestidos de ouro fino, seda da China em bobinas, biombos
laqueados trazidos da costa de Coromandel, algodão indiano, tecidos
bordados, tapeçarias da Pérsia, charutos de Cuba, açúcares diversos, licores
estranhos.
Também há, guardadas em cofres, pedras preciosas ou semipreciosas.
Pintores de fortuna, e às vezes o próprio Goya, vão lá comprar lazurita e
lápis-lazúli, que trituram para obter um azul incomparável.
Dizem que seu pai, o velho Bilbatua, vendia carne humana, e que uma
parte da fortuna da família foi construída com o comércio de escravos. Nos
dois sentidos: o pai levava os negros comprados nas costas da África para
os países da América e às vezes seus barcos traziam índios do Novo Mundo,
que vendia na Europa como objetos de curiosidade.
Tomás Bilbatua, o pai de Inês, rejeita essas acusações com um simples
dar de ombros. Ele também se apresenta, em suas próprias palavras, como
um espírito moderno e esclarecido. Visitou três vezes os Estados Unidos da
América, que quinze anos antes haviam conquistado sua independência
com a ajuda das tropas francesas e, fato menos sabido, espanholas.
Foi recebido por Washington em pessoa na Filadélfia, numa casa
bastante modesta, sem proteção militar, onde uma simples empregada lhe
abriu a porta pedindo que esperasse dez minutos num pequeno salão.
Washington veio ao seu encontro. O
grande homem falou do seu povo, da sua luta, de suas esperanças. Disse
que a Espanha, à qual estava muito grato pela ajuda militar, mais cedo ou
mais tarde deveria abrir mão - e quanto antes melhor - de suas possessões
coloniais, que qualificou de anacrônicas. Para que proteger de um lado o
que se destrói do outro?, dizia.
Empregou diversas vezes a palavra liberdade e prometeu ao basco
facilitar seus negócios.
Bilbatua gostava de repetir o que o primeiro presidente americano lhe
dissera naquele dia: Não se pode falar de liberdade sem liberdade de
comércio.
Tomás Bilbatua é o representante espanhol dessa burguesia
aventureira que, a partir de suas raízes na Europa, vem conquistando o
resto do mundo. Às vezes lamenta estar muito só, reclama da rotina inerte
dos costumes espanhóis, da indolência do espírito, de uma ausência
mórbida de curiosidade pelo resto do mundo (jamais um rei da Espanha
atravessou o oceano para visitar, uma vez que fosse, as novas terras). Às
vezes diz: Eu devia ter nascido inglês.
Homem baixo, ativo, bastante magro, quase sempre sorridente, de olhos
vivos, costuma ouvir com paciência antes de fazer uma proposta, que seus
parceiros sabem muito bem que será para pegar ou largar. Tomás Bilbatua
é rico. Na verdade, muito rico. Segundo alguns amigos indiscretos, guarda
seu dinheiro num banco londrino, do qual é um dos sócios. Tem dois filhos
que o ajudam nos negócios e uns quarenta empregados, para falar só de
Madri.
A mansão que mandou construir é quase um palácio. As mercadorias se
acumulam no térreo e no pátio, às vezes até na frente da enorme porta. A
família mora no primeiro andar.
O mobiliário é heterogêneo. Vêem-se, dispostas de qualquer maneira
em vinte quartos, poltronas francesas, tapeçarias flamengas, várias mesas
compridas espanholas em madeira escura e meia dúzia dessas
escrivaninhas de pés curvos cheias de gavetas conhecidas como barguenos,
assim como cômodas italianas pintadas e lustres holandeses.
Os visitantes também se surpreendem, às vezes, ao descobrir num
corredor um armário chinês de laca preta, móveis da Indonésia em
palhinha trançada, uma mesa baixa síria com incrustações, vários espelhos
com molduras em madeira dourada esculpidas à mão por artesãos
iletrados de Bogotá ou de Recife, e até mesmo uma ou duas estátuas de
bronze vindas da África, que parecem provocar o olhar.
Bilbatua adora essa miscelânea, ao passo que sua esposa prefere os
móveis franceses, de formas arredondadas, tranqüilizadoras. Ele se sente à
vontade na sua desordem, seus olhos vão de um objeto para o outro,
objetos que contam a história da sua vida.
Costuma dizer que está sempre de viagem, mesmo na própria casa.
A variedade de formas e cores o atrai. Mesmo não tendo nenhuma
formação específica nesse campo, revela gosto pela arte, por aquilo que
chama de minhas belezas.
Quando viaja, sempre traz dois ou três quadros e alguns livros em seu
camarote. Diz que não pode conceber a vida sem os ornamentos que a
tornam mais bela, ou seja, melhor.
Sem esquecer que é antes de mais nada um homem de negócios: esses
objetos, recolhidos ao acaso pelo mundo, muitas vezes são vendidos. Com
grande lucro, naturalmente.
Tem muito orgulho, especialmente, de sua coleção de quadros. Da
escola espanhola possui um Ribera, dois Zurbarán e um pequeno
Velásquez. Também tem um Tiepolo, comprado diretamente do italiano
quando este veio trabalhar na Espanha a pedido de Carlos IV, dois ou três
Mengs, um pintor maneirista muito preciso cujo sucesso começa a declinar,
e sobretudo cinco belos Goya, começa a trabalhar duas paisagens com
personagens e três retratos, o dele, o da esposa e o de seu filho mais velho,
que se chama Angel.
Como presente de dezoito anos para sua filha Inês, que começa a
trabalhar com ele, cuidando sobretudo das sedas e essências perfumadas
vindas da Arábia e da Índia, ofertou o retrato que Goya está terminando. A
jovem talvez preferisse uma jóia, mas não disse nada. Aceitou posar
tranqüilamente, até que o próprio pintor desse o quadro por terminado.
Quando visita Bilbatua e vê suas obras antigas nas paredes, Goya diz às
vezes que gostaria de retomar esta ou aquela, corrigir um movimento,
matizar uma cor. Diz também que as pessoas vivas todo dia envelhecem um
pouco, mas que suas imagens pintadas permanecem as mesmas. Portanto,
essas imagens se tornam mentiras com bastante rapidez. Elas tentaram
fixar para sempre o que era apenas um momento da vida.
É melhor assim, diz Bilbatua. Quando olho para o meu retrato, sinto-me
mais jovem. Se ele envelhecesse junto comigo, poderia tomá-lo por um
espelho.
Outro benefício, muito desejado pela jovem e concedido pelo pai: ela foi
autorizada, pela primeira vez, a ir com os irmãos e alguns amigos à cidade.
Vai beber e comer em alguma taberna, ver de perto dançarinas, ladrões,
bêbados, cartomantes, e talvez coisa pior.
Sua mãe se preocupa com o projeto. Mas chegou a hora, diz o pai, de ela
ver o mundo tal como é.
Na Espanha, sobretudo em Madri, entre os espíritos que se consideram
esclarecidos também há alguns inquisidores. O poder real, depois da lenta
reconquista da península aos árabes, concluída em 1492, e da expulsão dos
judeus (obrigados a converter-se ao catolicismo romano ou a abandonar a
Espanha, sob pena de graves sanções), tolera agora o culto judaico em
certas sinagogas, desde que os adeptos comuniquem o fato oficialmente, e
até mesmo o culto protestante, outrora o mais detestado de todos,
celebrado por exemplo em Madri, na embaixada da Holanda.
A Inquisição, dita mui santa, por muito tempo guardiã implacável da
integridade do dogma, tribunal secreto cujos informantes podiam penetrar
na intimidade de qualquer família e perscrutar qualquer consciência, é, por
sua vez, por instantes, suspeita de heresia.
Palavra fatal, que antigamente levava à fogueira. O herege é aquele que
se separa, aquele que, no interior de um dogma proclamado que afirma
aceitar, decide dar sua contribuição pessoal à verdade. Admite tudo menos
um ponto preciso, que pode ser essencial ou minúsculo. Diz por exemplo,
como diziam antigamente os arianos, que Jesus não era realmente Deus, e
sim um homem. Estava simplesmente inspirado ou visitado por Deus. Caso
contrário, como a razão humana poderia admitir que um deus possa nascer
e morrer?
Outros, pelo contrário, disseram que Jesus era Deus - sem a menor
dúvida - e não um homem como os outros: fingia que comia e bebia, não ia
ao banheiro, não sentia desejo sexual, não havia de fato morrido na cruz
porque um de seus discípulos, assumindo sua aparência, fora crucificado
em seu lugar. E assim por diante.
Em ambos os casos, durante séculos, proclamar essas idéias significava
perigo de morte. Pois o herege convencido, para defender sua parcela de
verdade, está sempre tão disposto a morrer quanto a matar.
No âmago da inquisição espanhola, por volta de 1770 ou 1780, se
procurarmos bem, poderemos encontrar alguns elementos jansenistas.
Algumas vozes pedem reformas na disciplina externa da Igreja. A heresia
jansenista propriamente dita se desenvolvera na França um século antes.
Afirmava que o ser humano não pode negociar sua salvação com Deus,
como faziam os pagãos, que não pode comprar a vida eterna com atos
realizados em sua vida terrestre. A graça de Deus, todo-poderosa, designa,
desde o nascimento, aqueles de nós que serão salvos.
Essa idéia de uma predestinação se opõe ao princípio cristão do livre-
arbítrio, que afirma que podemos escolher a cada instante entre uma ação
boa e outra má, e que essa liberdade de escolha, fundamental, é nossa única
via de salvação. Não estamos predestinados ao paraíso nem ao seu oposto.
No dia do juízo final, todas as nossas ações serão pesadas na grande
balança divina.
Nossa vida humana determina nossa condição imortal e, por isso, o
homem é livre em seus atos a cada instante.
Lorenzo está perfeitamente a par de todos os desvios possíveis. Apesar
de sua linguagem descontraída, atém-se estritamente ao dogma. Fala com
eloqüência da liberdade do cristão, e mais simplesmente da liberdade, que
será o eixo de sua vida.
Um dia, depois da refeição do meio-dia, passeava pelo claustro com um
dominicano de sua idade, também membro da Inquisição, que questionava
discretamente o aspecto terrível e definitivo do grande juízo que nos
espera a todos. Falava de humildade, da confiança que é preciso ter em
Deus.
Não, respondeu Lorenzo com voz doce e firme. Deus não me escolheu e
não me rejeitou. Sou livre para me salvar e livre para me condenar.
Entregue por tradição à ordem dos dominicanos, a Inquisição espanhola
depende diretamente da Coroa. Não se submeteu servilmente aos
representantes oficiais de Deus na Terra, o papa e os bispos. Pôs a fé acima
da Igreja. Os inquisidores nunca esqueceram que o grande Felipe I, senhor
das terras espanholas durante a segunda parte do século XVI - o Século de
Ouro -, monarca meticuloso e intransigente quanto às questões espirituais,
assistiu pessoalmente a cinco autos de fé, com algumas execuções públicas
de hereges na fogueira, e reconheceu ter sentido grande prazer.
O fogo purifica o pensamento, pois o liberta da carne. No próprio Santo
Ofício, os velhos conservadores se declaram guardiães, defensores da
verdadeira fé, mas sua ação é limitada. Embora haja algumas dezenas de
prisioneiros nos calabouços, durante os últimos vinte anos um único
herege foi queimado em praça pública. Alguns dizem que esse um, ainda
por cima, era uma. Tratava-se de fato de uma pobre mulher, uma ilusa, uma
iluminada, uma beata chamada Maria Dolores López, que dizia ter contato
direto com a Virgem e que morreu sem saber por quê.
Outros deploram essa atitude branda, excessivamente marcada pela
perigosa indulgência dos tempos modernos. E evocam a todo momento a
severidade bíblica do Altíssimo.
Cristo, o Filho do Pai, veio pessoalmente trazer a espada, não a paz.
Um bom número de dominicanos é, secretamente, receptivo às idéias
subversivas dos filósofos. Em vez de se agarrarem ao passado, como se a
Espanha não tivesse outro futuro senão o atual estado de coisas, querem
tirá-la da crise, buscam uma atenuação das regras estritas que se aplicam
ao comportamento humano, um afrouxamento nos laços que unem a
religião à política e às leis sociais.
São mais flexíveis, mais abertos, mais inquietos, certamente, que os
nostálgicos da velha ordem. Alguns franco-maçons sopram em seus
ouvidos que chegou a hora, para o homem, de verse tal como é e de
responsabilizar-se pelo mundo, pelo bem de todos. Eles percebem que o
mundo antigo se rompe, aqui e ali vira de ponta-cabeça, e preferem não ir
parar sob os escombros.
Entre as duas tendências, Carlos VI , o novo rei, vacila. É piedoso por
convicção, por tradição familiar e por obrigação monárquica, mas nada
entende de teologia.
Será que a religião pode adaptar-se aos novos tempos? Deve fazer isso?
Ele não sabe, lê pouco, não conhece os argumentos a favor nem os
argumentos contra. Na maior parte do tempo, para ter certeza de não
cometer erros, nada faz. É uma técnica antiga. Já foi bastante provada.
Por razões mais tarde impossíveis de explicar, o irmão Lorenzo
prolongou por mais uma semana sua temporada no mosteiro.
Quando voltou a Madri, no fim de fevereiro, uma de suas primeiras
visitas foi a Goya, o pintor que freqüentava e que às vezes chamava de meu
amigo.
Goya ficou aliviado ao revê-lo. Já temia que o retrato apenas esboçado, o
retrato sem rosto, fosse abandonado pelo modelo, o que comprometeria a
possibilidade de pagamento. Pediu ao dominicano que voltasse
imediatamente à pose, o que Lorenzo, que dispunha de uma hora livre,
aceitou.
Depois de escolher o lugar, preparar uma paleta e deixar para outro dia
os trabalhos em curso, Goya começa a trabalhar. Primeiro observa
lentamente o rosto do inquisidor, percorre os contornos com a vista, fixa o
olhar nos seus olhos, como se procurasse um sentimento e talvez uma alma
por trás das formas. Na verdade, nunca fala dessas coisas, nunca lembra
suas intenções artísticas. Geralmente se apresenta como um artesão,
preocupado em fazer bem-feito. Diz: Procuro ver a curva dos pômulos, da
testa, a proporção do nariz, a cor exata dos olhos, os pontos de luz que se
refletem. E faço o possível para reproduzilos como os vejo.
Quando pega o carvão, e depois, rapidamente, os pincéis, fica em
silêncio. É o seu costume. Está com os olhos sombrios e muito abertos, as
sobrancelhas franzidas, um ar quase contrariado. A fama não lhe deu,
parece, nenhuma arrogância em relação aos críticos, nenhuma certeza,
nenhuma verdadeira confiança em si mesmo.
Trabalha. Lorenzo fica imóvel no lugar indicado. Apenas seus olhos vão
e vêm, vivos, curiosos, girando em torno do aposento.
Eles se fixam no retrato de Inês Bilbatua. Como ela mesma fizera dez
dias antes, o monge pergunta se pode falar.
Sim, diz Goya, mas o mínimo possível. Conheço esse rosto.
Qual?
Ali, aquela jovem. Eu a conheço. Onde foi que a vi? Não sei, diz Goya,
sem disposição para conversar. O retrato não está totalmente acabado.
Um pouco mais tarde, Lorenzo, que não consegue impedir que seus
olhos voltem à imagem de Inês, continua: Parece um dos seus anjos. Um de
Saragoça, talvez de outro lugar.
Sim, é verdade, diz suavemente Goya, sem virar-se. Pode parecer um
anjo.
Ela já lhe serviu de modelo antes? Não, nunca. É a primeira vez que a
pinto. Goya deixa que se instale um silêncio bastante prolongado,
concentrado nos contornos do rosto, dando as primeiras pinceladas de
cinza, de ocre-claro. Com as cores, procura encontrar a textura da pele, uma
pele rugosa, muito mal barbeada, sem sinais de pó-de-arroz. Nada se vê
ainda do rosto de Lorenzo. A matéria prepara a forma.
Depois de três ou quatro minutos em que só se ouvem os ruídos do
ateliê - o deslizar metálico da prensa, um assistente raspando a paleta que o
mestre acaba de largar, um cachorro grande que boceja -, o dominicano
volta à carga com um sorriso cordial:
Sou um homem de Igreja, desculpe-me se faço uma pergunta ingênua,
mas como vocês, pintores, agem com os modelos? Principalmente quando
se trata de mulheres.
Fazemos o que podemos, diz Goya. Por exemplo? Basta perguntar aos
pintores quando eles forem se confessar.
Nunca recebi um pintor em confissão. Aliás, é raro eu receber
confissões. Deixamos isso para os padres das paróquias.
Vocês vêem de perto essas mulheres, elas vêm às suas casas, vocês lhes
pedem que mostrem as pernas, o colo?
Quase sempre são elas que o sugerem. Para pintar uma deusa, por
exemplo, uma Vênus, ou mesmo uma Suzana no banho, como fazem, na
Itália? Como isso acontece?
As mulheres se despem na frente do artista?
É inevitável. Até mesmo na Espanha isso acontece. Velásquez, parece,
pintou uma mulher totalmente nua. Dizem que está na coleção de Godoy.
Você a viu?
Não. Nua de costas, parece, olhando-se no espelho. Como se faz nesse
caso? O pintor e a mulher se isolam?
Muitas vezes a cabeça é de uma e a bunda de outra. É possível?
Acontece. Mesmo assim, isso deve criar uma intimidade bem particular...
Goya, que não está gostando da conversa (todos lhe perguntam esse
tipo de coisa, mas nos lábios de um inquisidor as menores alusões parecem
ameaçadoras), indaga ao dominicano o que ele quer dizer, o que entende
por intimidade.
Lorenzo hesita, parece agora um pouco incomodado, reluta em
responder. Nesses momentos, deixa transparecer um relâmpago de
infância no rosto. Volta aos campos secos onde cresceu, às casas baixas e
escuras, às mulheres que, ainda jovens, vestem-se de preto da manhã até a
noite, parecendo querer se ocultar, e só mostram o rosto e as mãos.
O que escondem? Um tesouro? Uma vergonha? Sem que se possa saber
ao certo se essa ingenuidade é fingida, calculada, ou se realmente faz parte
do seu personagem, dá a entender que, de todo modo, passar horas e horas
frente a frente com uma mulher jovem, que não pode se mexer, nem falar...
Não ficamos sozinhos, diz Goya. Meus assistentes estão sempre comigo.
Sempre? Claro. Preciso deles. O tempo todo. Se tivesse que fazer tudo
sozinho...
Mesmo quando a mulher está nua, permanecem a seu lado?
Nunca pintei uma mulher nua. Se lhe pedissem, pintaria? Goya abaixa a
paleta e olha para Lorenzo sem entender, como se não reconhecesse aquele
homem, como se de repente o descobrisse. Um dominicano nunca iria lhe
propor que pintasse uma mulher nua. Inconcebível. Então, por que aquela
insistência? Será um interrogatório disfarçado? Alguém teria denunciado o
pintor aos investigadores da Inquisição? Ou será que o monge, de volta da
solidão na neve, está realmente obcecado pelas imagens que menciona?
Para encerrar uma conversa que o deixa embaraçado e até o assusta um
pouco, Goya diz que aquela jovem se chama Inês Bilbatua e é filha de um
dos seus melhores amigos, que lhe encomnendou o retrato para
comemorar o aniversário da moça.
E se não fosse? Como? Se não fosse filha de um amigo? Para fazer a
pergunta, Lorenzo, que até então mantinha as mãos abaixadas ao longo do
corpo, cruza os braços sobre o peito. Goya vê nesse gesto uma
oportunidade que vem a calhar. Boa oportunidade para mudar de assunto.
Pergunta se o dominicano quer que suas mãos apareçam no retrato.
Lorenzo parece um pouco desconcertado com a pergunta. Quem deve
decidir é Goya, diz. Cruza maquinalmente os braços. Se o pintor quiser
pintar suas mãos, não há problema.
Pergunto, explica Goya, porque as mãos são mais difíceis de pintar.
Nesse caso custa mais caro.
Muito mais caro? Goya pensa um instante, depois diz um preço para um
retrato sem mãos, um preço para um retrato com uma mão e outro para
duas mãos.
Lorenzo abre os braços e esconde as mãos nas pregas do hábito,
escolhendo assim o preço mais baixo. Em silêncio, volta à pose. Goya não
pára de observá-lo, dando espiadas rápidas e insistentes. Algumas vezes,
entre dois olhares, sua mão fica parada no ar, o pincel não chega a encostar
na tela, parece que os olhos querem verificar por si mesmos o que acabam
de ver.
O novo silêncio do artista deixa o inquisidor incomodado.
Evidentemente, é um homem que não sabe ficar imóvel, inativo. Precisa
mover-se e falar sem parar. Como pôde suportar três longas semanas de
meditação e prece na montanha?
Goya ouviu falar por cima do súbito retiro daquele religioso que era
visto com freqüência nas ruelas de Madri, em animadas conversas com os
passantes, mas evita perguntar alguma coisa sobre o assunto. Não se
interroga um inquisidor.
Este, em contrapartida, quer saber: Por que aceitou fazer meu retrato?
Por que não?, responde Goya prudentemente, os olhos grudados na tela.
Tive dúvidas no momento de encomendá-lo... Por quê? Não está a par
de sua reputação? Não. Está, claro. Então não sabe o que dizem a seu
respeito?
O que dizem? Que não é benevolente com os homens de Deus.
Principalmente em suas gravuras. Vejo algumas secando ali. Tenho certeza
de que, se me aproximasse, veria coisas de fazer estremecer um bom
cristão.
Goya se cala. Então era aí que ele queria chegar. E cala-se porque
Lorenzo tem razão. Os olhos de Goya, aos quarenta e cinco anos, vêem tudo
o que olhos humanos podem ver, e talvez mais. Dentre as gravuras
vendidas com o seu nome, em Madri e em outros lugares, algumas
apresentam os padres e monges de forma muitas vezes grotesca, quase
monstruosa, misturando-os com feiticeiras esqueléticas, criaturas saídas do
nada ou talvez até do inferno. Essas figuras satíricas, caricaturais, não
espantariam ninguém em outro país, na Holanda, na França ou na
Inglaterra. Na Espanha, embora os ilustrados as apreciem e às vezes as
comprem (mas sem pendurá-las nas paredes), elas provocam espanto na
maioria dos olhos. Chocam e ferem.
Alguns, entre os espíritos refinados, dizem que não é fácil olhar para
esses desenhos, que eles são horrendos, repugnantes, e que o artista, se
ainda pode ser chamado assim, anódino e convencional nos seus primeiros
passos, mas hábil e gracioso, acabou se perdendo, deixou-se invadir e
dominar por sua vulgaridade natural, que é o espelho de seu século.
Tornou-se rude e tortuoso, só vê o feio, sua alma se obscureceu.
Entre seus adversários mais decididos, que são também os mais
marcados pela religião, alguns dizem que o pintor oficial da Corte de
Espanha é um autêntico servidor de Satã, que vendeu a alma ao diabo, que
à noite participa de sabás imundos, onde encontra aquelas imagens sujas.
Lorenzo lhe diz numa voz quase amável: Você tem inimigos poderosos,
Francisco. Mais do que imagina.
Também tenho alguns amigos, diz Goya. Sim, sei em quem está
pensando. Mas seja prudente, acredite em mim. Não se arrisque em
demasia. Os amigos em que pensa podem abandoná-lo de repente, como
uma fruta podre cai da árvore. Ainda mais neste momento.
Por que `ainda mais neste momento? Veja o que está acontecendo na
França. O mundo balança, quem pode saber? Essas coisas têm que ser
previstas. Podemos perder nossos protetores humanos a qualquer hora, ao
passo que Deus não nos abandona jamais.
Goya, que visitou a Itália na juventude, ouviu falar dos pintores de
outros tempos. Sabe que o imperador Carlos V, quando posava para
Ticiano, às vezes se inclinava para apanhar do chão o pincel do pintor. Sabe
que a caravana desse mesmo Ticiano, quando ia a Roma a convite do papa,
ocupava mais de sete quilômetros de estrada.
Rafael andava nas ruas com uma escolta de cardeais que falavam em
voz baixa. Leonardo da Vinci morreu nos braços do rei da França, Francisco
I, Michelangelo era tão cheio de caprichos como um deus, a tal ponto que às
vezes o papa batia nele.
Houve uma época em que, mesmo na Espanha, dois séculos antes, um
homem como Velásquez era nomeado pintor do rei aos vinte e cinco anos e
permanecia nesse posto até a morte. Embora não ganhasse mais que um
barbeiro da corte, que prestígio! Quanta glória se unia ao seu nome!
Quando Velásquez voltou da sua viagem à Itália trouxe consigo, e para si,
uma obra importante de cada um dos mestres italianos da época.
Logo depois da Idade Média, pensava Goya, os pintores eram as estrelas
do mundo. Abriam os olhos dos figurões e do povo, contavam as lendas
indispensáveis, glorificavam os heróis e os santos, ensinavam as verdades
do além, mostravam a Terra mas também o inferno e o paraíso, eram ao
mesmo tempo cronistas e profetas, detentores de sentimentos elevados, de
idéias fortes, dos tormentos e esperanças dos povos.
Hoje em dia, tudo mudou. Tudo ficou menor, mais ameaçador. Francisco
Goya é bem pago, vive com conforto, mas sem fortuna e quase sem glória.
Nas suas cartas, por exemplo nas que envia com regularidade a seu amigo
Zapater, em Saragoça, reclama permanentemente da falta de dinheiro. Isso
se repete sempre, como um refrão.
No palácio real é considerado um bom executor, como aconteceria com
um ebanista ou tapeceiro. Não resta quase nada do brilho iluminado, quase
demiúrgico, dos venerados mestres de outrora. O pintor já não é alguém
que ousava abrir as portas do céu e transfigurar o firmamento. É aquele
que faz retratos por encomenda, tão fielmente quanto possível, e cobra
mais caro pelas mãos.
O rei Carlos IV, o tal amigo a quem Goya se referia, é grande e gordo, um
tanto barrigudo, gentil e até jovial algumas vezes, outras, fechado,
reservado, fugidio, quase tímido. Capaz de iras ferozes. Dizem que é pouco
inteligente e, no fundo, pouco interessado em ser rei. Orgulhoso de sua
força física, costuma lutar com os cavalariços, que sempre o deixam vencer.
Sem dispor do prodigioso nariz do pai, tem no meio do rosto avermelhado
um apêndice curvo e forte, marca de reconhecimento que os Bourbon, com
muita fidelidade, transmitem entre si.
As histórias de sucessão na Europa são, de um século para o outro, de
uma complexidade assustadora. As alianças entre famílias reais, destinadas
a unir os povos, só conseguiam dilacerálos, guerra após guerra. Nenhum
povo, na verdade, podia identificar-se diretamente com seu rei, reconhecer-
se nele. Carlos IV, por exemplo, era um Bourbon por descender em linha
direta de Luís XV. Mas, nascido em Nápoles, vinha do lado italiano e sua
mãe era espanhola. O próprio Luís XV, rei da França, tinha metade do
sangue espanhol, por causa de suamãe Ana d'Áustria, infanta da Espanha
apesar do nome, filha de Felipe III, e ele mesmo se casara, tal como seu pai
Luís XIII, com outra princesa espanhola, María Teresa.
Certos príncipes exigiam de seus povos que tivessem um sangue puro,
livre - na Espanha, por exemplo - de todo traço judeu ou muçulmano,
embora eles próprios fossem modelos de impureza. Muitas vezes se
casavam com parentes muito próximos. Felipe II desposara em quartas
núpcias a própria sobrinha.
Esse mesmo Felipe II, então senhor de um quarto do planeta, ocupava-
se pessoalmente de tudo. Era capaz de trabalhar, com a ajuda de um
simples secretário, em cem dossiês por dia. Burocrata do mundo, lia todos
eles, ficava a estudá-los até uma ou duas da manhã, seus olhos se fatigavam
na tarefa, acabaram fracos e ele precisando usar óculos, mas pelo menos
tentava, em seu pequeno gabinete, desempenhar seu ofício de rei.
Carlos IV, dois séculos mais tarde, dedica apenas duas ou três horas por
dia aos assuntos de Estado. Na maior parte do tempo isso consiste em
presidir a algum conselho em que sempre acaba adormecendo e em assinar
as decisões já tomadas por seus ministros, um dos quais, um certo Manuel
Godoy, provável amante da rainha, está prestes a tornar-se o verdadeiro
patrão de todas as Espanhas.
De manhã o rei vai à caça, à tarde o rei vai caçar. É o essencial da sua
vida, em todas as estações. Essas caçadas cotidianas com que se deleitam
tantos soberanos são evidentemente preparadas e realizadas nas terras da
Coroa, que são vastas. Na juventude, o rei podia perseguir a caça a pé, com
os cães, durante horas. Agora ele se cansa mais. Toda noite soltam os
animais que serão abatidos, em parte ou totalmente, no dia seguinte. A
caçada se realiza quase sempre às portas de Madri, a oeste, cruzando o
Manzanares, na região chamada Casa de Campo, ou então mais longe, para
os lados de Segóvia. Só o rei e seus amigos mais próximos, ou seus
convidados de prestígio, têm o direito de matar ali.
Os cervos e javalis são as presas favoritas. Às vezes, e isso há séculos,
capturam os animais em grandes redes, das quais estes não têm a menor
chance de escapar.
Outras vezes caçam a cavalo, com galgos, dependendo da abundância,
da estação e do humor do rei.
Também se abatem lebres, coelhos, esquilos e uma grande variedade de
pássaros, codornas, faisões e perdizes - estas particularmente apreciadas
pelos espanhóis, únicos no mundo que as comem em escabeche, ou seja,
fervidas e depois marinadas em vinagre, alho e cebola.
Três ou quatro homens ficam permanentemente ao lado do rei com os
fuzis carregados. Quando os batedores e os cães cercam a presa do dia,
esses homens vão passando seus fuzis ao monarca, que assim pode atirar
rapidamente, quase sem interrupção, e de imediato recarregam as armas.
Esse tipo de caçada não tem nada das investidas com armas brancas do
passado, quando os próprios reis, com a espada ou a lança, muitas vezes
tinham que lutar contra javalis feridos, perigosos, após longa perseguição.
Atualmente o rei quase sempre permanece em seu lugar e é a caça que
avança para ele, que vem morrer a seus pés. Parece uma pantomima do
poder.
Quando um cavalo quebra uma pata é abatido na hora. Os ajudantes
jogam o cadáver sobre as carcaças dos outros animais, deixadas no local
depois de descarnadas, para atrair os abutres. O rei se esconde atrás dos
arbustos para alvejá-los. Às vezes, quando não há mais nada ao alcance do
fuzil, abate pardais e até corvos. Isso o diverte.
O corvo é coriáceo. Também o dão aos pobres, para que os comam.

Um dos estábulos do palácio do Escorial foi esvaziado e faxinado e Goya


instalou ali um ateliê provisório. Não é a primeira vez que isso acontece. Os
modelos reais não se deslocam. É preciso pintá-los em domicílio, quando
têm tempo, quando bem entendem. Depois o pintor termina
tranqüilamente a tela em seu ateliê. E eles pagam com atraso, com muito
atraso - quando pagam.
De modo geral, Goya, como todos os outros retratistas da família real,
trabalha num dos quartos do palácio, ou num salão afastado. Hoje está
pintando um quadro eqüestre. No amplo estábulo agora limpo vários
criados tentam controlar um cavalo castanho, acalmá-lo, fazê-lo apoiar uma
pata dianteira num tamborete.
Goya está ali, com o carvão na mão, escoltado por dois assistentes que
cuidam da sua caixa de tintas e de seus pincéis. Uma tela de grandes
dimensões está à sua frente, sobre um cavalete. Nela se vê o esboço da
silhueta de um cavalo.
Divertido com os esforços dos cavalariços, que além de tudo precisam
recolher com uma pá um montinho de bosta que caiu durante a luta com o
animal, Goya trabalha.
Observa, desenha, observa de novo. Seus olhos querem guardar na
memória a forma sempre em movimento daquele casco, daquela pata.
Pragueja entre os dentes, aproveitando para amaldiçoar alguns santos.
Ninguém jamais soube por quê, mas Goya tem dificuldades com os cavalos.
Ele os vê mal e os desenha mal. Completamente à vontade com os touros,
sente-se desajeitado diante de um cavalo e se irrita.
Este se chama Martial. Ninguém ignora que foi um presente de Manuel
Godoy à rainha.
Montada no cavalo adivinha-se a figura de uma mulher: apenas uns
traços, as costas, um vestido, o chapéu., A mulher é como um fantasma na
garupa do cavalo esboçado.
Toda a forma pictórica parte do vago, do impreciso. E se afirma pouco a
pouco, toque a toque, camada após camada. Conseguir um dégradé, por
exemplo, ou fazer com que se adivinhe a roséola sob o pó-de-arroz, é lento
e extremamente difícil. Goya ouviu dizer que os muçulmanos às vezes
chamam Deus de pintor das origens. Será que fez tudo isto em seis dias?
Todos os matizes da Terra? Não é de se estranhar que tenha se sentido um
pouco cansado na noite do sábado.
Um criado entra correndo e diz que precisa levar o belo Martial. O
cavalo já fez o suficiente por hoje. A rainha chega. Todos se agitam. Goya
pára de desenhar.
Está com a cara dos maus dias: nada saiu bem naquela manhã e ele sabe
disso melhor que ninguém. O animal inteiro precisa ser refeito. Caramba.
Por outra porta, três homens entram no estábulo empurrando um
andaime de madeira montado sobre três rodas. A uns dois metros de altura
foi instalada uma sela, com estribos, arção e rédeas. Uma pequena escada
de madeira leva até lá.
María Luisa entra, então, com duas ou três damas de companhia. Todos
se inclinam. Usando um uniforme escuro de coronel, com enfeites e
medalhas que chacoalham, ela caminha diretamente para Goya e lhe
pergunta como está de saúde. Chama-o de Francisco.
Estou bastante bem, Majestade. Nos retratos que fez da rainha, Goya
sempre alongou suas pernas e estreitou-lhe os quadris. Na verdade, sua
altura é medíocre, seu rosto ingrato. Tem pômulos quadrados, um queixo
forte, olhos pequenos e fundos. Já perdeu a maior parte dos dentes. Mas se
mostra gentil, pelo menos com Goya, a quem às vezes convida para
compartilhar um café-da-manhã. Princesa italiana, se expressa com
volubilidade, as mãos sempre em movimento.
Se está bastante bem, diz ela a Goya, não reclame. Não reclamo,
responde o pintor. Nesse momento ela vê o andaime e pergunta se aquele é
o garboso garanhão que vai cavalgar. Todos os que estão em volta riem ou
sorriem, por educação. A rainha, que parece estar de bom humor,
aproxima-se e dá uma palmada na estrutura de madeira, como faria com
Martial. E fala:
Aí, devagar... Calma... Depois, como se agora estivesse mais segura,
começa a subir a frágil escada com precaução, pedindo a ajuda de suas
damas. É a primeira vez na vida que vão pintá-la a cavalo. Os empregados
sustentam com firmeza a estrutura, obra dos marceneiros da Corte. Tudo
treme um pouco. Vê-se que a rainha calçou botas para a ocasião, de acordo
com sua indumentária. Botas com esporas.
Quando afinal se instala na sela, sentada de pernas abertas como um
homem, os pés enfiados nos estribos, Goya lhe entrega um chicote, que ela
empunha, e ajeita a roupa da soberana com as próprias mãos. Havia
adquirido o privilégio de dirigirse diretamente a ela, sem a mediação de
uma terceira pessoa.
Está bem sentada, Majestade? É claro que não, responde ela. Não tenha
medo. Balança um pouco, mas é sólido. Eu mesmo experimentei a sela.
O que faço com o chicote? Segure-o com a mão direita, por favor, as
rédeas na mão esquerda.
Ela se comporta como uma rainha obediente e faz exatamente o que
Goya diz. Este lhe indica a altura em que a mão que está com o chicote deve
ficar, recua alguns passos, pede para puxarem o andaime para baixo de
uma luz mais forte, o que faz a soberana oscilar. Depois arruma à sua
maneira as pregas do vestido e conserta a posição do pé no estribo.
A rainha resmunga. Na certa vai ter câimbras no braço por ficar com
aquele chicote no ar. E como pode sentir-se à vontade numa tal montaria?
Como quer que eu fique?, pergunta. Vossa Majestade tem várias
maneiras de sentar-se numa sela?
Naturalmente. Por exemplo? Quando cavalgo só para passear, por
prazer, fico mais ou menos assim, está vendo? Relaxada, bem sentada. Para
um desfile é diferente.
Assim mais arqueada. Para caçar, é outra coisa. Como é preciso ficar
muito tempo na sela, os estribos são mais compridos.
A cada instante ela muda de posição, e até de expressão facial. Não
demonstra a menor preocupação com a dignidade em relação às damas de
companhia e aos criados que a observam. Até parece gostar de fazê-los rir.
Goya lhe pergunta que imagem gostaria de transmitir de si mesma.
A imagem daquilo que sou. Jovem e bela. Novamente todos sufocam um
risinho de conveniência. Goya também ri, prudentemente, e em seguida fica
sério. Espera.
Podíamos ir a um desfile, diz ela. Um desfile de vitória. Pelo menos
assim eu conheceria um. E ainda combina com meus trajes.
Goya recua alguns passos, com os olhos fixos nela. Nada o distrai do seu
trabalho. Parece fascinado pelo rosto e pelo corpo de sua modelo, como
antes ficara por Inês e por Lorenzo. Não vê a feiúra nem a deselegância.
Não é essa a questão. Dir-se-ia que quer desencavar um segredo, ver o que
outros não viram e nem podem ver, tudo o que poderia sair dali como
quadro, como pintura. Some atrás da tela imensa, deixando seu rosto
aparecer às vezes para dar breves espiadas na rainha.
Ouve-se o roçar impaciente do chicote. Os pintores nunca sabem, com
os reis, de quanto tempo dispõem.
Em pouco tempo, a soberana se cansa. Boceja, a cabeça se inclina para a
frente, prestes a cair. Goya faz um sinal para uma dama de companhia, que
sobe a pequena escada, acorda delicadamente a ama e a recompõe.
Em volta do andaime, todas as mãos estão preparadas para o caso de
uma queda.
De repente as cabeças se viram. Ouvem-se latidos de cães e ruído de
passos. A porta se abre violentamente. Sete ou oito homens em trajes de
caça irrompem no lugar: botas enlameadas, folhas e gravetos no cabelo,
pele suada, mãos esfoladas. Trazem fuzis e punhais nas mãos. Dois
empregados seguram os cães no limiar da porta.
O rei está ali, alto, forte, e também manchado de lama. Dois homens o
seguem, levando nas costas, pendurados numa barra de ferro, os troféus do
dia: faisões, codornas, lebres e um javali cujo sangue pinga gota a gota pelo
chão. E também dois ou três abutres.
No aposento, todos se inclinam diante do rei. Dissimulando sua
irritação, Goya afasta a mão da tela por um instante e se inclina. Dá uma
olhada nas presas mortas.
Ele também é amante da caça, uma de suas raras distrações. Mas hoje
pensa em outra coisa, na rainha ali empoleirada, em Martial, que terá de ser
refeito, no tempo que voa, em outros trabalhos que o esperam.
O rei mostra os troféus de caça à rainha e lhe pergunta o que deseja
jantar.
Um abutre, responde ela imediatamente. Refere-se a um pássaro? E do
que mais? De um ministro, talvez? Ah, sim, boa idéia. Poderíamos jantar um
ministro.
Manuel Godoy, por exemplo, que você estima tanto. Poderíamos jantar
Godoy.
Todos ficam em silêncio e esperam com curiosidade a reação da rainha.
Sabe-se que Godoy, homem de muitas mulheres, tem ótimas relações com a
rainha. Em todos os assuntos, ela segue os conselhos dele.
Ele não tem nada de abutre, diz ela, abaixando a voz. Depende para
quem, responde o rei com uma risada. Então se aproxima de Goya e
pergunta, com estranha gentileza, se pode ficar alguns minutos ali para vê-
lo trabalhar. Não vai incomodar, não vai fazer nenhum comentário, quer
apenas ficar e observar.
Goya hesita alguns segundos antes de responder. Por fim, diz:
Se me permite, Majestade, prefiro que ninguém veja meu trabalho antes
que esteja terminado. Tantas coisas podem mudar...
O rei se volta para a rainha e pergunta: Se entendi bem, estou
incomodando? Sim, entendeu bem, responde a rainha. O rei não insiste.
Levanta os ombros e faz um sinal à sua comitiva para que se retire, levando
a caça abatida. Saem todos, com ruídos de botas e de metal, levando os cães
ainda sedentos.
A rainha, bem desperta por aquela intrusão, volta à pose. Procura o
equilíbrio, o que faz a engenhoca balançar. Vários braços se estendem para
ajudá-la.
.Quanto tempo vou ter que ficar aqui?, pergunta ao pintor. Enquanto eu
precisar da presença de Vossa Majestade. Goya respondeu em tom firme.
Agora trabalha em silêncio. A rainha também se cala.
Algumas gotas de sangue, respingadas da caça morta, brilham no chão.
Como em qualquer instituição, os membros do Santo Ofício se reúnem
regularmente em assembléia ordinária ou extraordinária, como é o caso
hoje. Essas assembléias, compostas apenas por dominicanos, são
presididas pelo padre Gregorio Altatorre, atualmente a mais elevada
autoridade da Inquisição em Madri. Homem sem idade, dono de uma
silhueta alta e um pouco encurvada, ele anda devagar, parece deslizar pelo
chão. Suas pálpebras pesadas, quase constantemente baixas, como se
quisessem controlar onde pisa, às vezes se levantam num olhar calmo e
atento, de um azul muito vivo, singular. Natural das Astúrias, ele veio do
norte, filho de uma família ilustre que participou do início da reconquista
contra os árabes e foi maltratada pela história (um pai morto em campo de
batalha, um irmão perdido no mar em frente às costas do Marrocos, uma
fortuna dissipada pouco a pouco). Faz todos os seus movimentos com
unção, e mesmo com contrição, procurando preservar uma frieza natural
que alguns tomam como indiferença. Parece flácido, envolto por um pouco
de gordura inútil, lento, ponderado, insondável, fugidio. Ninguém pode
prever suas reações e suas decisões. Ouve mais do que fala. Dizem que é
muito próximo do rei.
Nesse dia, sob sua presidência, quinze religiosos estão sentados em
volta de uma grande mesa, numa sala abobadada onde quatro braseiros
tentam sem muito sucesso amenizar o frio agudo de março. Madri fica a
oitocentos metros de altitude. Faz frio, sobretudo quando o vento desce das
montanhas. Como na maior parte dos prédios antigos, as janelas são
estreitas e o dia parece entrar a contragosto. Uma dezena de círios está
acesa.
Tudo começa com uma longa prece, em latim. A presença de Deus é
invocada.
Depois, umas gravuras passam de mão em mão. Para examiná-las de
perto, alguns monges põem lupas grossas de vidro diante dos olhos.
Lorenzo, quando as gravuras chegam a ele, é o único que dá apenas uma
olhada, como se já as conhecesse.
Essas gravuras são o assunto do dia. Lorenzo conhece perfeitamente os
seus colegas que se aferram ao passado e aqueles outros que, pelo
contrário, querem que alguns raios da luz dos filósofos por fim caiam na
Espanha. Conhece também os jansenistas, que aqui são apenas dois ou três
e que evitam meticulosamente assumir essa qualificação. Nada, em sua
atitude, o atrai. Para ele, como diz e repete, a liberdade da decisão humana
é completa. Embora Deus conheça previamente a nossa escolha, essa
escolha só depende de nós mesmos. Se, no último instante, mudarmos
repentinamente de idéia, surpreendendo a nós mesmos, essa mudança
também estava prevista por Deus, que é o senhor do tempo e dos destinos.
Quando lhe dizem que pode existir alguma contradição entre esse
determinismo divino (nossa escolha é conhecida por toda a eternidade) e a
liberdade humana, que se trata de um mistério e devemos aceitá-lo como
tal. Deus não precisa da nossa lógica. Não está submetido ao nosso tempo.
Com sua voz doce e lenta, o padre Gregorio pergunta se aquelas
imagens, que examina também, são vendidas nas livrarias da cidade. Sem
dúvida, responde alguém. Foi onde as confiscamos. Mas também se vêem
nas ruas. Os vendedores ambulantes as oferecem a todos os passantes.
Em Toledo também?, pergunta o padre Gregorio. Em Toledo também,
respondem, e em Salamanca, em Sevilha, no porto de Cádiz, em Barcelona.
Então, pergunta ele, também podem ser vendidas no exterior?
Já vi algumas em Roma, diz um dos monges. São encontradas até no
México!, diz outro. E em Havana. Em toda parte.
Não são proibidas? Algumas, sim. Depende de onde. Mas como
encontrálas? E como retirá-las do comércio? Seria preciso revistar todos os
bolsos! Os comerciantes as escondem no fundo das lojas. Só vendem para
clientes de confiança. E conheço até oficiais da polícia que as compram!
O inquisidor pergunta o nome do artista. Francisco Goya, dizem. Seu
rosto não demonstra surpresa. Então se dirige a Lorenzo perguntando,
numa voz quase inaudível: Não é aquele pintor a quem você encomendou
seu retrato?
É, meu pai, responde Lorenzo. Por que o escolheu? Pela mesma razão,
sem dúvida, que o rei e a rainha o escolheram. Ele é o pintor oficial da
Corte. Dizem que é o maior pintor da Espanha.
Maior que Murillo?
Quer dizer: o maior pintor vivo. Você gosta do trabalho dele? Gosto,
meu pai. Lorenzo se permite lembrar que Goya não é apenas pintor da
Corte. Várias grandes famílias espanholas, os Altamira, e até os Osuna,
recorreram a ele, em diversas ocasiões.
Padre Gregorio pergunta então a Lorenzo se conhece as imagens
daquelas gravuras que estão circulando nas mãos dos monges. Sim,
Lorenzo as conhece. Pôde admirar algumas delas, diz, no próprio ateliê de
Goya.
Você as admirou, realmente? Sim, meu pai. O desenho é admirável. O
inquisidor se debruça sobre as gravuras e as estuda com uma atenção
extrema. Algumas delas mostram jovens sorridentes com as pernas nuas e
os olhos às vezes ocultos por uma mantilha preta, outras mostram touros,
mendigos, inválidos, o cadáver de um homem que acaba de morrer no
garrote em plena via pública. Em quatro ou cinco gravuras, que Goya
retomará alguns anos depois para incluir na série Los Caprichos,
distinguem-se figuras estranhas que não parecem pertencer à Terra,
demônios beiçudos, súcubos, feiticeiras que saíram do coração da noite,
silhuetas incertas, atormentadas, às vezes assustadoras, freqüentemente
nojentas.
Os olhos azuis do inquisidor observam longamente as imagens. Não se
parecem com nada que tenha visto até então. Ele abaixa a cabeça, abatido.
Isto é bastante perturbador, diz afinal. Bastante perturbador.
É verdade, responde Lorenzo, numa voz calma, quase doce. Ninguém
fica insensível diante delas. Às vezes o coração se revolta. No entanto, essas
gravuras nos mostram o mundo, o nosso verdadeiro mundo. Tal como ele é.
Você acha? Certamente Com todos esses horrores? Todos esses
monstros? O mundo, meu pai, é feito do que vemos e do que imaginamos.
Não vemos os demônios, mas temos certeza de que eles estão aí, em torno
de nós.
Sem dúvida. Mas Goya os vê. E nos mostra o que vê. Um dos monges
mais idosos, um homem magro e seco, levanta-se então e se dirige ao
blasfemo quase aos gritos.
Como Lorenzo pode falar de verdadeiro mundo diante dessas imagens
repugnantes? É este o mundo em que vivemos? O nosso mundo?
É pura e simplesmente o mundo, diz Lorenzo. O mundo por inteiro. E
esse mundo não é nem o seu, nem o meu. É o mundo que Deus criou.
Mas o que está dizendo?, exclama o velho monge, elevando a voz de
repente. Você perdeu os olhos, perdeu a cabeça? Essa sujeira abominável
que está aí, nas suas mãos, é o mundo criado por Deus? Contenha-se! O que
vemos aí é uma descida ao reino de Satanás! Uma vergonha! A imagem de
uma humanidade degradada! Uma sociedade em que as mulheres se
vendem, os padres copulam com bodes! Pense bem! Se esse pintor vê
demônios, como você diz, então ele é um deles! É um agente das forças das
trevas, ajuda a aumentar seu império, é seu aliado, está preparando a sua
chegada!
Para Lorenzo, essa grave acusação é inconsistente. Diz isso com muita
simplicidade, a voz sempre calma.
Inconsistente?, grita outro religioso, tão veemente quanto o primeiro. E
por que será que esse Goya tem tanto sucesso? Por que os maiorais o
recebem? Por que lhe dão ouro a mancheias? E se for graças a um pacto
secreto com o diabo?
Um pacto?, pergunta o inquisidor, levantando uma das sobrancelhas.
Em outra época, esse homem seria jogado na fogueira! Ele deveria ser
expulso da Espanha a pontapés!
Você acha?, pergunta o padre Gregorio. E, no entanto, ele decorou
capelas, pintou anjos, representou milagres...
Capelas, sim, claro! Pintou anjos? Pode ser, mas quando uma mulher
piedosa entra numa dessas capelas e olha para cima, o que vê? O que são
esses anjos? Prostitutas!
Filhas do prazer, filhas das ruas que o pintor usou como modelos! Elas
estão lá em cima, todas sorridentes, nos tetos decorados das nossas igrejas!
E abrem as portas do paraíso, convidando-nos!
Entre os dominicanos ou os membros do clero secular nesse grupo que,
mais ou menos secretamente, são simpáticos às idéias modernas, alguns
sorriem, com a cabeça baixa, sem se atrever a dizer o que pensam dos
excessos das cabeças mais velhas. Só porque uma mulher leviana
emprestou seus traços a um anjo, servindo de modelo a um pintor, pode-se
afirmar que esse pintor nos obriga a curvar-nos diante do vício? Que a
porta do paraíso é a entrada de um bordel? Eles esperam que Lorenzo, que
consideram seu porta-voz, responda a essas imbecilidades ultrapassadas
em seu lugar, melhor do que eles mesmos fariam.
Lorenzo, de fato, diz ao monge que tinha levantado a voz: Irmão, você
está enganado. Posso garantir que Francisco Goya é um fiel servidor da
Igreja.
O padre Gregorio fixa nele os seus olhos claros, os únicos olhos claros
de toda a reunião, e pergunta: Como assim? Todos os rostos se viram em
direção a Lorenzo. Os dominicanos que estão ali o conhecem bem. Alguns o
apreciam, outros o detestam, todos o temem. Sabem que ele fez um retiro
de várias semanas, aparentemente enfrentando uma séria crise, em busca
da ajuda de Deus. No rústico convento de Paular, onde vivem no máximo
uns vinte monges montanheses, ocupados em fazer queijo e criar trutas,
nenhum espírito superior o influenciou. Não encontrou ninguém à sua
altura, com toda certeza.
Deus o terá visitado na sua cela gelada? É possível. Lorenzo é conhecido
por suas mortificações severas e sua fé obstinada. Usa um silício sob o
hábito e passa noites inteiras de joelhos, às vezes até sobre vidro triturado.
Não é impossível que Deus o tenha visitado e inspirado. É um homem para
quem a prece e a contemplação, mesmo sendo indispensáveis, não são
suficientes. Ele precisa de outra coisa, quer agir, ajudar os outros a fazer
melhor, a viver melhor.
Como andará hoje, em sua reflexão, em seus pensamentos? Todos se
perguntam isso, porque é um homem imprevisível. E é ele quem os
interroga, com uma voz tranqüila: Não dedicamos nossas existências a
Cristo para realizar sua obra na Terra?
Ninguém, mesmo entre os espíritos rudes, pode contestar essa
evidência. Ele continua:
Se queremos ajudar nossos semelhantes, aqueles e aquelas que
compartilham a nossa vida neste mundo, não temos a obrigação, primeiro,
de ver o mundo da maneira como ele é? Por que culpar o mensageiro que
põe a verdade sob os nossos olhos e a revela clara e corajosamente,
sabendo o risco que corre? Que responsabilidade tem pelas misérias e
crueldade que nos cercam? Ele é aquele que acende a lanterna, não o autor
do espetáculo! Vocês pensam que queimando os desenhos de Goya
queimarão também os demônios que se manifestam neles?
Fica em silêncio, adivinhando que todos, mesmo ali, sabem a resposta a
essa pergunta.
Até os velhos se calam.
Os olhares se dirigem agora para o inquisidor principal, que ouvia com
olhos baixos. Seus lábios mal se entreabrem quando responde.
Você julga que nos traz a luz, diz a Lorenzo, sem olhar para ele, mas
ainda é jovem e estas são perguntas que fazemos há muito tempo. Até hoje
não temos todas as respostas, ainda nos faltam muitas. Os bons cristãos,
por exemplo, aqueles que temem a Deus no fundo do coração: devemos
revelar a eles toda a extensão do mal? Mostrar-lhes todas as imagens?
Deixar que leiam todas as palavras? Vocês entendem o que quero dizer? O
reino de Satanás é imenso. Provavelmente não tem limites, isso sabemos
melhor do que ninguém, graças às confissões que recebemos. Devemos
exibir esse reino abominável aos olhos de todos, nos seus menores
detalhes? Não corremos o risco de infectar as almas simples e honestas,
desejosas de fazer o bem?
Como o inquisidor acaba de lembrar, em voz baixa e monótona, o
debate de fato é antigo. Não se pode ocultar nada a Deus, isto é uma
evidência, mas será preciso mostrar tudo aos homens? Estarão eles
preparados para olhar-se num espelho sem complacência? Não seria
melhor preservá-los das imagens de um mal que está ao seu alcance? Não
seria mais prudente iludi-los, mantê-los na ignorância do pecado que
podem cometer a cada instante?
Todas as autoridades morais sempre fizeram a mesma pergunta:
mostrar o mal não será torná-lo mais atraente, desejável? O pecado é o
fruto amargo do desejo: como a tentação poderia nos assaltar se o objeto
de desejo fosse invisível para nós?
Lorenzo conhece a fundo todas essas querelas, que se emaranham
desde a origem do cristianismo. Ele refletiu muito, sem dúvida, na solidão
da montanha onde o frio o mantinha acordado a noite inteira, tremendo
sob um fino cobertor de lã rústica.
Diz ao inquisidor, com o torso inclinado em sinal de respeito:
Meu pai, nós representamos Deus na Terra. Não temos a menor dúvida
disso. Refleti, com toda as forças do meu espírito, sobre o nosso dever,
sobre a nossa missão.
E digo o seguinte: se somos os representantes de Deus, os soldados de
Cristo na Terra, hoje devemos combater com firmeza essa pretensa
filosofia, falsa e sacrílega, que nos chega da França.
Todos o encaram com surpresa, tanto os espíritos antigos, entre os
quais aqueles que se manifestaram contra Goya, quanto os mais jovens,
próximos dos ilustrados, que ainda não disseram nada e que, justamente,
contavam com Lorenzo. O que aconteceu? Talvez não tenham entendido
bem. Por que aquela reviravolta súbita?
Ele insiste: Digo isto abertamente e com toda a sinceridade, por mais
que minhas palavras pareçam surpreendentes. Hoje devemos impedir a
passagem, por todos os meios, das ilusões satânicas criadas por essa
revolução feroz que é obra de mentes doentias. É este o nosso dever, Cristo
assim nos indica. Ele conta conosco.
Não temos o direito de equivocar-nos. A situação é ainda mais grave do
que na lamentável época dos huguenotes, quando boa parte da Europa
abandonou o único e verdadeiro caminho.
Fica em silêncio por um instante, como se estivesse revendo os
confrontos do passado. Padre Gregorio mantém a cabeça e os olhos baixos.
Está rezando, talvez. Suas sobrancelhas grisalhas estão ligeiramente
franzidas. Respira com dificuldade.
Um dos dominicanos idosos, que parece aprovar o que acaba de ouvir,
pergunta a Lorenzo como deveriam proceder. Já pensou nisso?
Como fazer?, diz. - Quer saber como fazer? Muito bem, o que sugere?
Condenar um grànde artista espanhol?
Exilá-lo? Destruir todo o seu trabalho? É a única arma que podemos
encontrar? Ouçam. Estou falando com toda a minha convicção. Pensemos
primeiro em nós mesmos e na nossa tarefa. O que fizemos por Cristo nos
últimos cinqüenta anos?
Ninguém responde, mas dessa vez o padre Gregorio levanta a cabeça.
Olha o homem que está falando, e que continua, elevando a voz: Quantos
hereges, quantos inimigos da fé mandamos para o grande juiz? Sete? Oito?
Vocês pensam que o número é assim tão limitado? Acham que os que
odeiam Cristo são mais escassos atualmente? Pensam que a nova Jerusalém
está às nossas portas? Afirmo que é o contrário. Nós nos afastamos do reino
de Deus. Basta ver o que se passa do outro lado dos Pirineus. As tropas dos
nossos adversários não param de aumentar, de se fortalecer. Nossa religião
é vilipendiada, mutilada, e nós ficamos de braços cruzados, semi-
adormecidos, satisfeitos com as nossas pequenas orações. Quando ando
pelas ruas de Madri, o que vejo? Vejo homens de trinta, quarenta anos que
nem sabem fazer corretamente o sinal da cruz. Encontrei mulheres,
mulheres jovens, que não conseguem dizer uma única oração sem errar!
Lorenzo mexe em algumas gravuras e acrescenta, sombrio, duro,
persuasivo:
Essas mulheres perdidas que vemos aí, que circulam nas nossas
tabernas, nos nossos parques, essas enviadas do mundo de baixo, o que
são? A encarnação do mal.
Basta olhar para elas. Despudoradas, lascivas... Então vamos expulsá-
las! Fazê-las desaparecer! Elas, e não o artista que nos ajuda a vê-las!
Entre os monges sentados ao redor da mesa, a surpresa diminui. Para
alguns, certamente é um alívio. A contradição que pensavam ver, na atitude
de Lorenzo pouco a pouco se dissolve. Sua palavra é hábil, mas franca. Sua
convicção, firmemente expressa, não pode ser questionada. Ela é até
fortalecida pelo retiro que ele mesmo se impôs, quando as dúvidas o
assaltaram. Seus companheiros começam a entender como, por qual viés
do espírito, a súbita severidade de Lorenzo pode se conjugar sinceramente
com seu gosto pelas letras e seu interesse pela arte.
O padre Gregorio, que busca definições, confirmações, e quer ter certeza
de não estar enganado, pergunta então a Lorenzo se aquele seu discurso
significa que ele é partidário de uma severidade maior.
Sim, responde Lorenzo. Sem a menor dúvida. Temos que voltar aos
velhos costumes, do tempo em que Deus era justificadamente temido na
nossa terra e contribuía para a radiosa grandeza da Igreja. Hoje, as almas
estão abandonadas. Não têm direção. Os profetas enlouqueceram. Cortam a
cabeça daqueles que não os seguem. E
mesmo aqui, na terra da Espanha, quantas vezes ouvi dizer, e vocês
também, na certa, que a infinita misericórdia de Deus se aplica
indistintamente aos pecados dos homens, que o Senhor é mais indulgente
que no passado?
Um erro, evidentemente, diz o inquisidor principal. Um erro total, que
leva a negar o pecado. Mas se perdemos o pecado, meu pai, perdemos o
nosso guia mais precioso no duro caminho da salvação! Todos nós sabemos
disso! Precisamos do pecado! É o nosso inimigo mais útil! Não podemos
vedar os ouvidos com os tampões de mel dos filósofos! Vocês sabem que
risco corre a nossa santa instituição? O de ficar simplesmente sem função.
Se não fizermos nada, se persistirmos na nossa preguiça, em breve não
existiremos mais.
Algumas cabeças agora balançam em torno da mesa, aprovando
Lorenzo.
É uma batalha difícil, diz o padre Gregorio. Eu sei, meu pai. Você
aceitaria participar dela?
Com alegria. E se Deus me der força e sabedoria, ficarei muito orgulhoso
de conduzi-la.
A partir dos dias seguintes, após diversas consultas (sem dúvida tendo
confabulado com o rei), o inquisidor deu uma missão precisa a Lorenzo. Ele
não devia girar o leme bruscamente, mas sim modificar a rota da
instituição pouco a pouco.
Lorenzo se pôs a trabalhar imediatamente. Examinou os arquivos,
interrogou, rezou, chegou a fazer uma curta viagem a Saragoça para ficar
duas horas em silêncio diante da Virgem del Pilar, uma das virgens
milagrosas mais célebres da cristandade, e que para ele estava acima das
outras.
Na volta, convocou discretamente uns trinta informantes. Eram
chamados os familiares do Santo Ofício, ou seja, pequenos funcionários que
ficam sempre à disposição, prontos para tudo, ou quase.
Ele os instruiu. O essencial, primeiro, era devolver à fé católica o seu
vigor e a sua pureza de outros tempos. Lorenzo aceitava que a ambição era
elevada. Mas não admitia que fosse inatingível. Acreditava na vontade dos
homens - e antes de tudo na própria. Com o objetivo declarado de
fortalecer a fé, toda e qualquer questão de fidelidade ao dogma, portanto de
rigor moral, deveria se adequar às suas decisões e à compreensão do
combate que estava travando.
Para salvar a fé, para purificá-la e elevála, era importante, em primeiro
lugar, descobrir as transgressões. Durante mais de dois séculos as
autoridades religiosas perseguiram com sucesso, em todos os territórios
hispânicos, todo sinal de desvios, judaicos ou muçulmanos principalmente.
Diversas vezes, no passado, a Inquisição descobriu e puniu pequenos
grupos de supostos cristãos que se reuniam clandestinamente, aqui ou
acolá, para praticar os cultos proibidos.
Depois, a partir dos anos 1720, essa vigilância se atenuou. Mas os cultos
secretos continuaram. Lorenzo estava convencido disso. E era por aí que
deviam começar a luta. Tinham que investigar minuciosamente todos os
indícios que pudessem conduzir os agentes da fé, na Espanha, à pista dos
inimigos de Deus.
Fiquem sempre alerta, disse Lorenzo aos seus informantes, uma massa
de homens anônimos, modestamente vestidos de cinza, encurvados e
silenciosos. Muitas vezes um detalhe pode nos abrir os olhos. Vou dar
alguns exemplos.
Primeiro fez o sinal da cruz com três dedos e explicou toda a falsidade
maligna daquele gesto, uma evocação sarcástica da Santíssima Trindade,
que não pode ser contada com os dedos. O sinal da cruz, como Deus manda,
é feito com toda a mão.
cuidado também, disse, com aqueles que se persignam da direita para a
esquerda. Esse erro é um claro sinal de heresia. Cuidado, nas conversas,
com os que afirmam que a matéria é feita de elementos minúsculos,
chamados átomos, pois essa divagação é incompatível com o dogma da
eucaristia. O corpo de Cristo está presente em cada hóstia, e contudo não é
material. Portanto, não é composto de átomos, como tampouco a hóstia.
Cuidado também com aqueles que sugerem que uma vida semelhante à
nossa seria possível em outros planetas. Não, a Terra está no centro do
mundo criado. Foi na Terra que Deus pôs o homem, feito à sua imagem. A
Terra, então, é a rainha dos astros, a única que conhece a consciência, o
pecado e a redenção.
Os homens de cinza ouviam, aprovando com a cabeça. A maioria tomava
notas numas cadernetas. Alguns escreviam lentamente e não conseguiam
acompanhá-lo.
Fiquem atentos, em todo lugar e a toda hora. E espichem as orelhas.
Vocês estão passando perto de um cemitério e vêem que há um enterro.
Entrem, para fazer uma prece junto com os outros. Se virem que esse
túmulo, ou algum outro vizinho, está voltado para o leste, anotem.
Descubram o nome do morto e da família, pois aquilo pode ser um sinal de
que o corpo enterrado é de um mouro disfarçado, com a cabeça na direção
de Meca.
Esperou os lápis dos informantes terminarem de anotar esse ponto,
depois continuou:
É inverno, está fazendo frio, vocês passam na frente de uma casa, num
sábado, levantam a vista e notam que não sai fumaça da chaminé.
Informem-se, perguntem quem mora lá. Talvez se trate de judeus
disfarçados, que se abstêm de toda atividade no dia do sabá.
Tirou de um móvel um livro, em meio a outros livros, e o abriu com um
surpreendente gesto de nojo, pois na lombada desse livro estava escrito A
Bíblia Sagrada, em grandes letras douradas, e mostrou que sob essa
encadernação se ocultavam obras do próprio Voltaire, o emissário em
exercício do diabo, traduzidas ao castelhano por mãos criminosas. Um livro
confiscado pelo Santo Ofício, explicou, de uma família de Segóvia que tem
um bispo entre seus membros.
E acrescentou: Se alguém disser a vocês que a Santa Virgem Maria é
mãe de Jesus, mas não é mãe de Deus, saibam que se trata de um herege,
pois Jesus é Deus.
Se ouvirem alguém dizer o templo em vez de a igreja, tenham certeza de
que é um judeu oculto ou, pior ainda, um huguenote. Se virem, na rua ou no
campo, um homem escondendo o pênis ao urinar, anotem seu nome:
provavelmente é circuncidado e não quer mostrá-lo. Da mesma maneira, se
alguém recusa um convite para jantar numa noite de lua cheia, pode tratar-
se de um discípulo de Satã, que nessa noite vai se encontrar com outros
demônios. Anotem seu nome e o endereço. Sobretudo se for mulher.
Forneceu outros indícios e recomendou que não poupassem esforços.
Que informassem os nomes dos suspeitos aos seus funcionários, na sede do
Santo Ofício, e que não tivessem medo de nada. A Inquisição se
encarregaria de todos os detalhes do processo. Eles eram apenas auxiliares
da justiça. Não deviam considerar-se acusadores.
O julgamento, nessas matérias, cabia aos homens de Deus.
Os homens de cinza fizeram algumas perguntas práticas, que ele
respondeu brevemente. Mais uma vez, pediu-lhes zelo e sigilo. Deu sua
bênção a todos, que a receberam fazendo o sinal da cruz, e disse que
podiam retirar-se.
Quando saíram da sua cela, viram que se ajoelhava para rezar.

A taberna de dona Julia, uma mulher corpulenta, de uns quarenta anos,


dona de um belo rosto sempre arrebatado pelo calor das fornalhas, atraía
uma freguesia ao mesmo tempo popular e seleta, numa ruela do centro de
Madri próxima à Plaza Mayor. Encontravam-se ali guitarristas e dançarinas,
que às vezes subiam nas mesas batendo os calcanhares, escritores de
bolsos vazios borboleteando, na esperança de um copo de vinho, em torno
de um matador taciturno cujos dedos alisavam um charuto longo e fino, até
alguns políticos, cercados de guardacostas e muitas vezes acompanhados
de visitantes estrangeiros, torcendo o nariz ao chegar, sentindo o cheiro de
azeite frito, e todo um povo indistinto de operários, pequenos
comerciantes, empregados domésticos, aias à procura de uma alma jovem
para desencaminhar, carregadores, meninas da vida e, é claro, ladrões.
Pendurados nas vigas, presuntos, chouriços, réstias de alho e pimentões
vermelhos secos. Numa ampla lareira, vários espetos em plena atividade e
ajudantes enluvados.
Morcela fritando sobre um tripé. Serragem no piso. Nas paredes, chifres
de touro e imagens de corrida.
Dona Julia, mulher de perfil reto, com o cabelo sempre preso num
coque, reinava sobre essa massa barulhenta que às vezes se crispava, ou se
calava com a entrada de uma conhecida atriz cercada de homens com ar
orgulhoso, sobre essa multidão compacta que aplaudia, interpelava, de
repente se inflamava por razões obscuras ou se entristecia com o anúncio
da morte, na rua, de um mendigo conhecido, depois cantava em coro algum
sucesso do dia.
Várias guitarras lutavam para serem ouvidas no caos das vozes roucas,
das risadas breves das garotas, dos latidos de uns cachorros.
Inês Bilbatua festejou seus dezoito anos nessa taberna em companhia
de seus dois irmãos Angel e Álvaro, que ela chamava de seus anjos da
guarda, ambos mais velhos que ela, e de quatro ou cinco amigos, todos da
sua idade e do seu meio.
Marcava assim sua entrada no mundo, aquele mundo que seu pai
chamava de verdadeiro. Enquanto comia, às vezes até com os dedos, as
diversas carnes que os criados traziam aos borbotões para a mesa (parecia
que aquela sucessão de pratos não teria mais fim), ela olhava com avidez
em torno de si, perguntando o nome deste, daquela, e tomava vinho tinto.
Bebeu até do vinho de Valdepefias, que jorrava de um odre de couro que
seu irmão Álvaro lhe ensinou a segurar com as duas mãos, como um
homem, a certa distância do rosto. O jato de vinho rosado escorreu pelo seu
pescoço e lhe manchou o vestido, mas nessa noite ela não se preocupava
com isso.
Atravessava rindo o último obstáculo que ainda separava sua infância
da sua vida.
Seu pai teria colocado discretamente dois ou três homens na sala
enfumaçada, para o caso de que algum tumulto pusesse sua filha em
perigo? É possível, Nunca se soube.
De todo modo, os homens de Lorenzo estavam lá. Dois dos familiares
que ele havia instruído alguns dias antes realizavam sua tarefa cotidiana,
opaca como sempre, despercebidos, conversando em voz baixa, canecas de
vinho nas mãos, enquanto seus olhos deslizavam de um lado para o outro.
Eles repararam logo na mesa de Inês, e também no apetite que
provocava, à sua volta, a avalanche de pratos que dona Julia servia -
experimentando com a ponta dos dedos, no caminho, um pedaço de
cordeiro saindo do forno, um pimentão. Era uma família rica, sem dúvida.
Dona Julia já conhecia os dois irmãos. E lhes dava do melhor.
Quando estava voltando para a caixa, um dos homens de Lorenzo
levantou-se displicentemente e se aproximou dela. Fez uma ou duas
perguntas em voz baixa, que ninguém no salão pôde ouvir. Ela respondeu
de imediato. Quando o homem voltou à sua mesa, anotou qualquer coisa
numa caderneta. O outro não lhe perguntou nada.
Alguns dias depois, um dominicano calvo, montado numa prudente
mula, entrou no pátio da grande residência de Tomás Bilbatua, avançando
entre as riquezas do mundo ali acumuladas, e pediu para ver o mercador.
Rapidamente avisado, Tomás foi ao encontro do monge, cuja visita o
intrigava, e se apresentou.
O senhor tem uma filha chamada Inês?, perguntou o dominicano, sem
descer da mula.
Sim. Por quê? Tenho instruções de dar isto a ela. Do Santo Ofício. O
monge lhe estendeu um pergaminho enrolado. Para minha filha? Sim. Eu
mesmo entregarei.
O monge hesitou. Pensava que devia entregar a convocação em mãos,
como era costume.
Tomás arrancou-lhe o pergaminho das mãos, desenrolou-o e leu. Depois
leu outra vez, sem dizer uma palavra.
O monge, que de todo modo não conseguiria, do alto da sua mula,
recuperar o documento, disse a Tomás que poderia deixá-lo com ele, mas
isso exigiria a mais profunda discrição.
Naturalmente, respondeu Tomás. Levou o pergaminho para o primeiro
andar. Dois de seus empregados lhe fizeram perguntas no trajeto, que ele
não ouviu. Inês estava no quarto onde costumava trabalhar. Ajudada por
duas funcionárias, cadastrava e arrumava peças de tecidos que haviam
chegado recentemente da China e da Índia.
Com um gesto, Tomás fez as duas moças saírem, depois fechou a porta
atrás de si e disse a Inês que ela acabara de receber uma intimação do
Santo Ofício, ou seja, da Inquisição.
A menina pareceu surpresa, não sabendo exatamente, devido à sua
idade, a história e o papel exatos dessa organização, que as crianças às
vezes mencionavam como um fantasma sombrio e turvo que no passado
havia aterrorizado as pessoas. Um lobisomem, uma besta voraz, insaciável,
quase lendária, um monstro que não era visto há muito tempo.
O que eles querem?, perguntou ao pai. Nunca dizem. Querem ver você.
Tome, leia. Deu-lhe o pergaminho, e ela leu a mensagem. Era bem curta e
formal. O pai, agora pálido, perguntou:
Sabe por que está sendo convocada? Não. Você não tem nenhuma idéia
do que possam querer? Nenhuma idéia.
No outro dia, quando você saiu com seus irmãos, foram à taberna de
dona Julia?
Sim. Venha. Pegou a filha pela mão e levou-a para outro aposento. Ao
passar pelo corredor, parou, abriu uma janela e chamou Angel e Álvaro,
ocupados no pátio.
Pediu que subissem logo.
Chamou também María Isabel, a mãe. Toda a família se reuniu de portas
fechadas num dos salões da casa. Tomás leu a convocação em voz alta.
María Isabel se sentou, com a respiração alterada, os olhos fixos. Os dois
irmãos ficaram em silêncio, com os braços pendentes, aparentemente
menos preocupados.
Tomás disse à filha: Lembre-se. Faça um esforço. Foi a primeira vez que
você saiu, aquela noite. Não praguejou em voz alta, diante de todos?
- Praguejei? Mas eu nem sei praguejar! Disse em voz alta alguma coisa
que possa ser considerada um sacrilégio?
Não. Absolutamente. Não se comportou de maneira indecente? Eu? Os
dois irmãos confirmaram. Só haviam conversado sobre a comida, o vinho, o
frio, um pouco sobre a noiva de Álvaro, que não pudera ir naquela noite
porque sua mãe estava doente, e comentaram as últimas futricas de Madri,
e também da França. Sem dúvida tinham falado, pois todo mundo falava
disso, sobre as guerras das monarquias européias contra a Revolução
(alguns pensavam que a França iria invadir a Espanha para libertá-la) e
também sobre os controles marítimos que os barcos ingleses exerciam em
toda parte, principalmente na área de Gibraltar, que afetavam o comércio.
Sim, falaram de tudo um pouco. E cantaram também, junto com todos os
outros.
Nenhuma palavra contra a religião? Nenhuma. Tentem lembrar, os três.
Pode ser grave. Pensem que havia, bem perto de vocês, ouvidos muito
atentos, que não perdiam nem uma das suas palavras. Então? Pode ser um
detalhe, um gesto... Não cantaram em francês?
Não Para se divertir, fazer palhaçada, não imitaram os gestos da missa?
Da confissão? Da comunhão?
Eles pensaram, tentando reviver todos os instantes de uma noitada
alegre, talvez um pouco agitada (um dos seus companheiros de mesa se
embriagou, Inês manchou o vestido), mas decente. Ninguém por perto
deles fizera comentário.
Angel disse então: Talvez queiram que ela testemunhe contra outra
pessoa. Fazem isso, às vezes.
Contra quem?, perguntou a mãe. Não sei de nada. E eles, é claro, nunca
dizem. Não, disse Inês. Não tenho nada a falar contra ninguém. Nunca falo
dos outros.
Vou até lá, ver do que se trata. Seja como for, não pode ser coisa séria. É
melhor ir de uma vez.
Seu pai concordou e levou-a de carruagem até o lugar aonde foi
convocada, fora de Madri. Avançaram a pé, em silêncio, até um grande
mosteiro cinza, de janelas estreitas e com barras de ferro.
Tomás bateu na porta. Esperaram quase um minuto. A jovem, com sua
longa capa de lã e um capuz, sorria para o pai, cuja preocupação percebia
claramente.
Ouviram o ruído de várias trancas sendo destravadas. Uma abertura
quadrada apareceu na madeira grossa da porta. Uma sirueta imprecisa se
desenhava no interior, atrás de três barras de ferro. Inês abriu o
pergaminho e o mostrou pela abertura.
A porta se abriu quase de imediato. Inês disse algumas palavras ao pai,
garantindo-lhe que não demoraria muito, que voltaria logo. Ele não
respondeu nada. Então, beijou-o e entrou. A pesada porta se fechou
lentamente atrás dela. Tomás Bilbatua perdeu sua filha de vista. Ouviu seus
passos delicados se afastando, lá dentro, ao longo de um corredor. E as
trancas voltando aos seus lugares.
Regressou à carruagem virando-se várias vezes para trás. O cocheiro
perguntou se queria voltar para casa. Ele disse que preferia esperar.
Dois monges, cujos traços quase não consegue distinguir, levam Inês
para um quarto sem janelas, cheio de sombras. O corpo do crucificado em
marfim é a única mancha clara, numa das paredes. Há quatro círios acesos.
Em uma hora, sua vida acaba de ser alterada. Não havia prenúncio
disso. Ei-la a penetrar num universo quase fabuloso, objeto de mil relatos,
com que muitas vezes a ameaçavam por bobagens, brincadeiras de criança.
Entra num território que até então era apenas uma fantasia distante e que
agora se torna realidade. O mundo então é assim. Ela está ali, ela, Inês, na
sede da Inquisição, não resta a menor dúvida. Não se trata de uma peça,
nem de um sonho. Os círios são círios verdadeiros, ela pode ouvir os
monges respirando.
Por que está aqui? O que querem dela? Não tem idéia. Por enquanto,
está mais curiosa que assustada. Olha em torno de si para não esquecer
nenhum detalhe dos corredores que acaba de percorrer, desse quarto onde
pedem educadamente que se sente num tamborete. Coisa que ela faz,
ajeitando a capa de lã em volta do corpo, pois está com frio.
Um terceiro monge entra por outra porta e senta-se diante de uma
mesinha, mais afastado. Põe ali um maço de papéis, um tinteiro e dez penas
de ganso. Com a ponta do polegar, verifica se estão com as pontas bem
aguçadas. É um homem de baixa estatura, um tanto cheio de corpo, sério.
Tira uns óculos do bolso, enxuga-os numa aba do hábito, verifica a limpeza
das lentes. Depois os coloca no nariz. Arruma os papéis, molha a ponta de
uma pena.
À frente de Inês há outra mesa, maior, e quatro cadeiras de palha,
idênticas. Quatro monges, que tiveram o cuidado de esconder seus rostos
com capuzes pretos, entram e ocupam seus lugares em silêncio. Inês
observa esses personagens como se estivesse assistindo a um desfile de
carnaval. Um dos monges encapuzados, o segundo a partir da direita, tira
umas páginas do bolso e as consulta por um bom tempo. Os outros
aguardam. Um deles tosse. Esse procedimento, conhecido como primeiro
interrogatório, fora reintroduzido por Lorenzo algumas semanas antes. O
próprio Lorenzo poderia ser um dos encapuzados. Não é possível ter
certeza, pois ele certamente tem muito o que fazer, passando de um
interrogatório para outro. Seja como for, não é ele quem fala.
O monge que está folheando os papéis ergue a cabeça e tira o capuz,
revelando um rosto grave, mas sem a menor hostilidade, e olha para Inês
durante cinco ou seis segundos. Chega a sorrir um pouco. Depois levanta a
mão direita, mostrando um punho magro e branco, e traça o sinal da cruz
pronunciando a fórmula habitual: In nomine patris, et flui et spíritus sanctí.
Todos fazem o sinal da cruz. A princípio Inês parece não saber como
deve agir, depois decide imitá-los. Ao final, quando todos dizem amém, ela
faz o mesmo, com um leve atraso.
Fique de joelhos, diz o monge que aparentemente dirige a cena.
Ela obedece, sem demonstrar emoção. O monge lhe pede então, sem
brutalidade, que recite o Pater noster. Ela começa rapidamente a oração,
mas em espanhol. Não, minha filha, diz o dominicano, é melhor que seja em
latim. A jovem será capaz?
Sim, e prova: Pater noster qui es in coelis, sanctificetur nomen tuum,
adveniat...
Surge uma mão branca de dentro do hábito, e o monge diz: Bem, bem, é
suficiente, sente-se. Ela se levanta e obedece. O capuz sombrio se debruça
sobre os papéis, e a mesma voz (agora ela não vê mais o rosto) pergunta se
aquela jovem ali sentada é Inês Bilbatua, filha de Tomás Bilbatua e de María
Isabel, sua esposa.
Sim, diz Inês sou eu. O escrivão de óculos anota a resposta. A pena de
ganso range por alguns instantes sobre o papel, depois fica imóvel, à
espera. O dominicano que a interroga, de voz bastante agradável, explica
que quer apenas fazer algumas perguntas. Tudo o que exige, para cada uma
delas, é uma resposta sincera.
Está bem, diz Inês. Você acaba de completar dezoito anos. Exato. Você
mora com seus pais. Sim. Responda agora o seguinte: na última quarta-
feira, à noite - estamos falando do dia 6 deste mês -, você jantou no
estabelecimento dirigido por dona Julia.
Sim, de fato, diz ela, surpresa. Nessa ocasião, você estava com seus dois
irmãos, Angel e Álvaro Bilbatua, e quatro amigos, uma mulher e três
homens, um pouco mais velhos que você.
Sim. Tenho aqui os seus nomes, mas isso por enquanto não importa.
Agora, responda: o que serviram nessa refeição?
De comida? Sim, de comida. O que levaram à sua mesa? Inês parece
extremamente surpresa com a pergunta. Pede confirmação: Querem saber
o que nós comemos? Exatamente. O que serviram e o que vocês comeram.
Diga-nos.
Ela faz um esforço para se lembrar, diz que os criados trouxeram, e ela
comeu, como os outros, um pouco de tudo, frango, sardinhas, cordeiro ao
forno, grão-de-bico, pimentões. O escrivão anota tudo.
E o que mais?
Batatas, azeitonas... E?
Foi só isso, acho. Não serviram porco? Sim, de fato, mas eu não comi.
Por quê? Não como nunca, não gosto de porco. Foi a única razão? A única
razão de quê? Você não comeu porco exclusivamente porque não gosta?
Sim, é claro. Está disposta a jurar pela santa cruz que está dizendo a
verdade?
A respeito da carne de porco? Sim. Naturalmente, estou disposta. A mão
branca pega em algum lugar um outro crucifixo, menor que o que está
pendurado na parede, e o entrega a Inês. A voz diz:
Vamos ouvir. Inês estende o braço por cima da mesa, em direção ao
crucifixo, dizendo:
Juro pelo sagrado corpo de Jesus que digo a verdade. Depois põe a mão
de novo embaixo da capa. A voz agradável que sai do capuz, agora
abaixado, pergunta: Se nós lhe dermos a oportunidade de provar, diante de
Deus e dos homens, a veracidade do que acaba de dizer, imagino que não
fará objeções?
Inês não entende bem o que significa essa frase complicada. Contudo,
como é profundamente sincera, diz que está disposta, não faz objeção ao
que lhe propõem. Ficaria até satisfeita, diz, de poder ajudar aquelas
pessoas.
Muito bem, diz a voz. Venha por aqui. Todos se levantam.
Tomás está esperando há mais de quatro horas. Não pára de dar voltas
em torno da carruagem e de bater os pés no chão, lutando contra o frio. O
cocheiro se encostou no corpo do cavalo, em busca do seu calor. Sai fumaça
da boca dos homens e das narinas do animal.
Angel, o irmão, chega a galope, pergunta se há alguma notícia do
mosteiro. Nada, diz Tomás.
Angel desmonta e corre até a porta do edifício. Bate com o punho, por
um bom tempo. A mesma abertura quadrada aparece na porta, sem que se
possa ver quem se oculta atrás dela. Angel diz, em voz bem alta, que sua
irmã está lá dentro há horas, ele quer saber o que se passa. Seu nome é...
Não deixam que termine. A portinhola se fecha com um golpe seco. A
tranca desliza. Uma mão a trava pelo lado de dentro.
Angel olha para o pai. Este acaba de montar no cavalo em que seu filho
chegara. Depois de fazê-lo dar meia volta, aperta os flancos com os
calcanhares. Como viera na carruagem, não estava de esporas. O cavalo
tarda alguns segundos para reagir.
Aonde você vai?, grita Angel. Já se afastando, o pai responde: Espere aí!
Angel volta lentamente para a carruagem. Também está começando a
sentir frio. Bate os pés no chão.
Inês agora tem de provar que disse a verdade. Tiraram as suas roupas
de cidade, sua capa, sapatos e meias. Está com uma espécie de túnica azul
de prisioneira, grande demais para ela, bastante puída. Guiada por dois
monges encapuzados, entra numa sala em abóbada, ainda mais escura que
aquela onde a interrogaram.
Lá estão dois homens plácidos, de rostos descobertos, braços fortes e
cabeludos, que não são monges. Pelo menos não usam hábito. À sua frente,
uma corda pendurada do teto.
O escrivão vem atrás, com seu material, e se instala como pode,
soprando nos dedos. Trouxe consigo a mesinha. Depois retrocede um
instante pelo corredor e volta com o tinteiro e as penas de ganso. Verifica
tudo. A mesa não está firme, isso o irrita. Dobra então uma folha de papel
em oito e a mete embaixo de um dos pés.
Melhora, mas não fica perfeita.
Para Inês, o tempo da surpresa e da curiosidade já passou. Ela agora
treme de frio, e também de medo. A Inquisição. Sim, ela está mesmo aqui.
Não se trata mais de histórias, de lendas. Aqui a verdade se revela no
sofrimento. Inês ainda não pode acreditar.
Os dois monges que a escoltam arrancam bruscamente sua bata rústica.
De repente está nua. Sua pele branca parece frágil. Sem gritar, ela põe as
mãos na frente do corpo, sobre a barriga, sobre o sexo. Curva as costas,
aperta as pernas.
Os cinco homens à sua volta a observam, mas com olhos que parecem
distraídos, distantes. Devem ter recebido instruções, sabem amortecer o
olhar. Se esse corpo nu de moça nunca visto por homem algum os
surpreende, agrada ou atrai, nada demonstram. Fazem apenas o seu
trabalho.
Um dos interrogadores pergunta a Inês, mais uma vez, se ela disse a
verdade e se está disposta a provar isso. Ela abaixa a cabeça.
Sim, murmura. Então vamos ver, diz o monge. Faz um sinal aos dois
assistentes e estes, com destreza, sem esforço, põem os braços de Inês atrás
das costas e, com a ponta da corda, amarram os seus pulsos. As duas mãos
atadas ficam assim no nível dos rins.
Vamos ver, repete o monge. No meio da sala, a corda passa por uma
polia presa na abóbada. O monge faz um gesto para os dois homens
encarregados, que deveriam ser chamados, mais adequadamente, de
carrascos. Eles puxam a corda, a princípio com suavidade. As mãos de Inês
sobem ao longo das costas, ela sente dor, protesta, mas as pontas dos seus
pés ainda tocam no chão. Ouve mais uma pergunta e responde:
Eu jurei pelo corpo de Cristo!, diz ela. Pelo corpo de Cristo! Juro que não
menti! Por que mentiria? Para esconder o quê? Por quê? Digam-me!
Os dois homens, obedecendo a outro sinal dos monges, puxam mais a
corda. O corpo de Inês se curva, como um arco. Seus pés perderam contato
com o chão. Ela tem dificuldade para respirar, começa a chorar.
O escrivão, indiferente, vez por outra molha a ponta da pena e escreve
sem parar.
Você respondeu, diz a voz do monge, a mesma voz que a interrogava na
outra sala, que não comeu porco porque não gosta.
Sim! Não temos certeza de que seja verdade. Mas é! É verdade! Não
gosto de porco! Não como nunca! Pensamos que há outro motivo. Que
outro motivo? Qual?
A verdadeira razão para você não comer porco não é essa que diz.
E qual é? Você na verdade é uma judaizante. Uma o quê? O monge,
sempre encapuzado, repete a palavra, que ela não conhece, e depois leva
algum tempo explicando-lhe do que se trata.
É totalmente possível, diz ele, e infelizmente acontece com muita
freqüência, que seres humanos, cuja fraqueza natural é conhecida, se
aferrem com ferocidade aos próprios erros, por mais que os bons pastores
tenham tentado mil vezes levá-los para o caminho da verdadeira luz. Sim, a
escuridão é forte, é sedutora, atrai com uma força incrível, e conhecemos
indivíduos - diz o monge - que insistem clandestinamente no seu falso
caminho, continuam se prosternando várias vezes por dia em direção a
Meca para murmurar suas preces absurdas, ou praticam em segredo os
rituais judaicos.
Satanás está por trás dessas transgressões, de todos esses crimes. E
cada um dos nossos erros o deixa feliz.
Você quer deixar Satanás feliz?, indaga o monge. Inês não responde a
essa pergunta, que talvez não tenha entendido. O que tem a ver Satanás
com tudo isso? Ela está sofrendo horrivelmente. Todos os músculos, todos
os tendões das suas costas parecem prestes a se rasgar. Quando o monge,
numa voz calma e regular, repete que ela pratica secretamente os rituais da
religião judaica e que, por sorte, uma vez alguém notou num lugar público
que ela se abstinha de comer porco, Inês só pode gritar: Não! Não é
verdade! Não! Não é verdade!.
O monge insiste, duas, três vezes. Ela persiste. O corpo nu da jovem
parece quase partido em dois. Sua cabeça cai para a frente e sua voz fica
abafada.
Vamos, diz o interrogador, confesse logo o que tem para confessar.
Confesse.
Mas o quê?, pergunta ela, ainda numa voz que quase não se ouve. O que
quer que eu confesse? O quê?
A verdade, só isso. Mas me diga qual é a verdade! Você a conhece Não!
Não, eu não sei! Não entendo! Diga logo o que vocês querem que eu diga!
Tomás Bilbatua, que nada sabe do que está acontecendo atrás das
grossas paredes do Santo Ofício, está inquieto. A idéia de um jantar na
taberna de dona Julia fora dele. Agora teme que sua filha, que tem a língua
afiada, haja cometido alguma imprudência naquela noite, bebido demais ou
ofendido a Igreja ou algum santo. Os espanhóis são dotados de um
verdadeiro gênio para a blasfêmia. Ninguém os iguala ao jogar as coisas
sagradas na lama da vida cotidiana.
Na taberna, Inês entrou em contato com homens e mulheres de
palavras fortes que não hesitam em cagar para Deus, para a Sua santíssima
mãe e para a maior parte dos apóstolos. Inês, com a cabeça tomada pelo
vinho, pode ter-se deixado influenciar e os imitado. Ela é bem capaz.
Tomás também se sente responsável, quase culpado. Deveria ter ouvido
a sua esposa, María Isabel, que queria comemorar o aniversário em casa.
Como um certo número de madrilenos bem informados, Tomás sabe
que um certo Lorenzo Casamares tomou o poder, por assim dizer, no Santo
Ofício. Em que circunstâncias? Ele não sabe. Para agir como? Os rumores
sem rosto - que vêm de alguns dominicanos esclarecidos - falam de um
forte endurecimento, de uma severidade inédita. O irmão Lorenzo teria
convencido seus colegas, em particular o inquisidor geral, da necessidade
dessa mudança.
Todos acusam a Revolução Francesa. A Inquisição é uma proteção de
origem divina. Ela reforça os diques da Espanha. Para alguns, é o caminho
certo, o único possível.
Para outros, menos numerosos, é um erro grave, uma oportunidade
perdida. Mas os que lamentam esse endurecimento ficam em silêncio. Não
chegam ao ponto de desejar que a Igreja se coloque do lado da guilhotina.
Tomás Bilbatua nunca viu Lorenzo. Mas sabe que Goya, de quem é
cliente fiel, certamente o conhece bem, porque está pintando seu retrato.
Então se dirige ao ateliê do pintor a todo galope. Lá o encontra em pleno
trabalho, como de costume. Goya nota a sua agitação, pergunta o motivo.
Tomás, que está com pressa, aponta para o retrato de Lorenzo e diz:
Preciso falar com este homem. Por quê? Casamares... é ele mesmo? Sim.
Bilbatua explica em poucas frases o que aconteceu desde aquela manhã, a
intimação, Inês aprisionada, as trancas, o silêncio. E, várias horas depois,
nenhuma notícia. Esse Lorenzo Casamares, pelo que dizem, tem muita
influência nos meandros do Santo Ofício. Se alguém pode fazer alguma
coisa por Inês, é ele.
E você, Francisco, você o conhece. Vá vê-lo. Ou leve-me até ele. Agora
mesmo.
Goya tenta primeiro acalmá-lo. Não é possível que a Inquisição se
apodere de Inês e não a devolva. Não chegamos a esse ponto, diz ao amigo,
fique tranqüilo, ela vai voltar, tenha paciência.
Mas Bilbatua não fica tranqüilo, muito pelo contrário. E não quer ser
paciente. Alguma coisa lhe diz, em surdina, que sua filha está em perigo,
que cada segundo é importante. Goya precisa levá-lo até Lorenzo.
Mas eu mal o conheço!, diz Goya. Veio aqui três ou quatro vezes, apenas.
Como quer que eu apareça lá? Para dizer o quê? Eles nunca vão me ouvir!
Seria muito incômodo? O quê? Ir lá? Sim. Responda. Francamente, sim,
um pouco. Prefiro não ter nada a ver com eles. Não quero lhes dever coisa
nenhuma.
E, acima de tudo, não quero pedir-lhes nenhum favor.
Não se trata de um favor! Só quero saber se posso fazer alguma coisa
pela minha filha! Você pode entender isso, não?
Goya certamente pode entender. Mas muitas vezes vacila no momento
da ação. Ele é assim. Seu olho e sua mão vêem e mostram as profundezas e
os negrumes do mundo, mas nem por isso se decide, mesmo diante da
angústia de um amigo. Um ferrolho interno o deixa imóvel, paralisado. Sua
insolência se limita à chapa de cobre, à tela.
Então enxuga as mãos, dá umas voltas, diz que uns amigos estão à sua
espera para ir caçar. Bilbatua responde que, seja como for, essa caçada
poderia esperar. Goya lhe oferece um copo de vinho, o outro recusa. Depois
diz que talvez tenha oportunidade de falar sobre esse assunto com o rei, ou
com a rainha, na próxima sessão de pose. Mas provavelmente demore
algumas semanas. Bilbatua não pode, não quer esperar. Sua filha está lá,
naquela masmorra. O que querem com ela? O que lhe estão fazendo neste
momento?
O mercador pára várias vezes diante do retrato de Lorenzo. De repente
pergunta a Goya:
Já está terminado? Está secando. Ele já pagou? Não. Ainda não. Você
confia nele? Em relação a quê? Ao pagamento? Sim. Tem certeza de que ele
dispõe de recursos para pagar?
Goya não responde. Apruma um pouco as costas. Pode-se esperar que
um dominicano não pague? O pintor lhe fez um desconto (o que não diz a
Bilbatua). A quantia deve ser entregue integralmente quando Lorenzo vier
escolher a moldura e buscar o quadro, dentro de dois ou três dias. Sim,
confia nele, diz.
Bilbatua pergunta: Quanto vai lhe dar por isso?
Uns dez dias depois, em meados de abril, Lorenzo foi ao ateliê de Goya.
Parou em frente ao retrato terminado - Goya o avisara num bilhete - e
olhou-o por longo tempo antes de dizer, em sua voz baixa e doce:
É estranho. Se eu encontrasse este homem na rua, não o reconheceria.
Eu, sim, diz Goya. Nós nunca nos vemos como somos, continuou o
monge. Supondo que eu seja assim.
Este homem, perguntou o pintor, se o encontrasse na rua ou em outro
lugar, o que pensaria dele? Gostaria dele?
É difícil dizer. Eu deteria meus passos para cumprimentálo, sem dúvida.
Responderia, se ele se dirigisse a mim. Procuraria atendê-lo. E creio, sim,
que sentiria confiança. Não posso dizer se gostaria dele.
Ficou um instante em silêncio, fixando os olhos nos seus olhos pintados,
e depois disse:
Mas gosto da sua imagem. Disso tenho certeza. Gosto da maneira como
está pintado.
Melhor assim, diz Goya. Só se nota, só se vê o rosto, que parece sair do
hábito como se nascesse de dentro dele. A carne com vida no meio do
tecido. Gosto deste branco, deste preto, desta simplicidade. Os olhos e a
boca são os únicos ornamentos, obra de Deus, e a roupa é obra dos homens.
Um trabalho maravilhoso, realmente.
Obrigado. Quer que lhe mostre algumas molduras? Sim. Mas sem
volutas, sem madeira dourada, se possível. Uma coisa simples, sólida.
Muito bem. Goya foi buscar pedaços de molduras num canto do ateliê,
como amostras. Enquanto procurava, Lorenzo ficou parado alguns minutos
em frente à tela, como se estivesse diante de um espelho inesperado. Talvez
pensasse nos iconoclastas, aqueles hereges cristãos que decidiram, há
muitos anos, destruir todas as imagens que houvesse nos locais de culto, a
pretexto de que era ímpio dar a Deus uma aparência indignamente
humana. Mas o próprio Deus se fez homem!, responderam os doutores da
Igreja. Foi Ele quem nos deu o exemplo! E, de todo modo, não há nada de
vergonhoso em representar o homem, criado à imagem de Deus!
Argumentos que não pareceram suficientes para convencer os
destruidores. Mais uma vez, foi preciso tomar as armas e exterminar os
transgressores.
Lorenzo meteu a mão num bolso, certamente para pegar dinheiro, e
disse sorrindo:
As mãos, afinal, não eram necessárias. Sem falar da economia que fiz
Estava tirando um saquinho preto quando Goya voltou trazendo dois
tipos de molduras e lhe disse: Não, não é preciso. O quadro já foi pago.
Como? Alguém lhe presenteou o quadro. Quem? Você? Não quer que eu lhe
pague? Não, não, não eu, outra pessoa.
Já recebi o dinheiro. Escolha uma moldura e em quatro dias mando lhe
entregar. A moldura também está paga.
O que significa isso? Quem pagou? Ah, alguém que tem condições de
fazer isso. Um amigo. Seu nome é Tomás Bilbatua. Certamente já ouviu falar
dele. Um negociante.
Lorenzo ficou um instante em silêncio. Bilbatua?, perguntou. Olhou em
volta, como se procurasse o retrato da jovem que havia notado na sua
última visita. O retrato não estava mais lá. Na certa o haviam retirado. Goya
disse ainda que o mercador tinha a intenção de colaborar na restauração da
igreja de São Tomé, que bem estava precisando.
É a igreja do seu santo padroeiro, ele é muito devotado. Já me pediu
para pintar afrescos nas paredes e no teto. Cenas da vida de São Tomé, o
que eu quiser. Não recusei, como pode imaginar.
Lorenzo, pego de surpresa, refletia. O nome de Bilbatua não lhe era
desconhecido. Toda Madri, ou quase, ouvira falar dele, como se ouve falar
dos ricos. E, por certo, entre as dúzias de interrogatórios realizados desde
que tomara as rédeas da situação, havia reparado no nome de Inês. Mesmo
sem ter participado do seu primeiro interrogatório, por estar ocupadíssimo
com outras coisas, certamente se lembrava dela, ainda que de maneira um
pouco vaga.
Perguntou a Goya: O que esse negociante espera de mim em troca?
Pouca coisa. Goya foi um instante ao quarto vizinho e voltou trazendo o
retrato de Inês.
Mostrou-o a Lorenzo, perguntando se ele se lembrava daquele rosto.
Lorenzo não o tinha esquecido. Abaixou a cabeça, ainda com o saquinho
na mão. Ela se chama Inês Bilbatua, informou Goya. Sim, sim aquele nome
não lhe era desconhecido.
Foi intimada pelo Santo Ofício, há vários dias, continuou Goya, que
falava rápido, parecendo querer se livrar de alguma coisa. Compareceu no
mesmo dia, e desde então sua família não tem notícias.
O que ela fez?, perguntou Lorenzo. Não sei. Ninguém sabe de nada. Só
tem dezoito anos. Justamente, os pais querem saber de que está sendo
acusada.
Eles não têm motivo para se preocupar, disse Lorenzo. Convocamos um
grande número de pessoas há algumas semanas. E, necessariamente, isso
leva tempo. É normal.
O meu amigo Tomás quer convidá-lo para ir uma noite à sua casa.
Comigo. Para jantar, simplesmente. Assim poderão falar sobre a filha, é
claro. E também sobre os trabalhos da igreja. Na noite que preferir. O mais
cedo possível, evidentemente.
Por que não? Lorenzo estava calmo, relaxado. O que Goya acabava de
dizer não parecia incomodá-lo nem um pouco. Deu uma olhada no interior
do saquinho preto e tornou a guardá-lo no bolso, dizendo numa voz
tranqüila:
Não posso aceitar que esse mercador que eu não conheço pague o meu
retrato. Isso está fora de cogitação. Devolva o dinheiro a ele, diga-me
quanto é e eu lhe mandarei a soma. Não trouxe o suficiente hoje. Mas se ele
realmente quer contribuir para a restauração da igreja, seja bem-vindo. Sua
generosidade será muito apreciada. Diga-lhe isso. Poderíamos jantar em
sua casa alguma noite da próxima semana.
Antes, não? Não. Não posso. Avançou lentamente até a porta,
acrescentando: Não se preocupe. Você vai receber o seu pagamento. Ainda
não escolheu a moldura, diz Goya. Oh, você faz isso melhor do que eu.
Inês está sozinha numa cela estreita. Com sua túnica azul, meias furadas
nos pés e as costas envoltas num xale de lã, está sentada numa cama de
madeira, com as pernas balançando e o olhar perdido. Faz quase um mês
que está presa ali. Na parede há um crucifixo, imagem universal da dor e da
morte. No chão, uma moringa de água, um copinho de cerâmica, um balde
com tampa, um pouco de palha. Numa mesa minúscula, alguns livros
religiosos.
Ela ouve o ferrolho sendo puxado, vê a porta se abrir. Entra um monge,
com o rosto descoberto. Fecha a porta atrás de si e pergunta à jovem se ela
é Inês Bilbatua.
Inês baixa a cabeça. Sim, é ela mesma. Não precisa ter medo, diz
Lorenzo, que está frente a frente com ela pela primeira vez. Vim ver se
posso ajudá-la, de
alguma maneira.
Pode sim, diz ela. É claro que pode. Com certeza. Ele sorri. Nada nesse
homem demonstra hostilidade, nem mesmo dureza. Desde que entrou na
sede do Santo Ofício é a primeira vez que Inês vê um rosto sorridente,
atencioso, um indivíduo que parece interessar-se por ela e querer ajudá-la.
Ele conquista sua confiança na mesma hora.
O que posso fazer por você?, pergunta. Gostaria de voltar para a minha
casa. Entendo, diz ele. Entendo muito bem. E certamente voltará.
Quando? Não sou eu quem decide isso. Sinto muito, mas aqui temos
regras muito precisas.
Mas eu confessei!, diz ela. Eu confessei! Fiz o que me pediram!
Justamente, diz Lorenzo. O quê, justamente? O que quer dizer? Que é
pecado? Qual pecado? Quando se confessa uma coisa que não é verdadeira,
isso é pecado?
Lorenzo parece não entender exatamente o que ela quer dizer. Pede que
seja mais clara. Ela se esforça: Quando se confessa uma mentira, algo que
não é verdade, é pecado?
Por exemplo? O que você confessou? Tudo o que eles quiseram! Mas, o
quê? Nem sei mais! Já passou muito tempo... Doía tanto... Nem sei o que
disse... Era alguma coisa sobre carne de porco...
Então, você acha que mentiu? Tenho certeza. Encantador, tranqüilo e
persuasivo com a maior parte dos homens, Lorenzo não se sente muito à
vontade com as mulheres, que conhece pouco. Acha que são complicadas,
escorregadias. Certamente as teme. No colégio, elas eram apresentadas
como as portas do pecado, a perdição do homem.
Os textos antigos diziam claramente: foi Eva quem se deixou tentar
antes pelo diabo e arrastou Adão para o exílio, a infelicidade e amor. O
homem justo deve desconfiar da mulher, são Paulo é rigoroso a esse
respeito: aqueles que são casados devem conviver com suas esposas como
se elas não existissem.
Os verdadeiros servidores de Cristo são os que se tornaram eunucos
por amor a Ele.
No entanto, Lorenzo é um homem da terra, robusto, com sangue forte e
músculos marcados. O desejo do corpo feminino, essa fonte obscura de
alegria, persegue-o desde a infância como um mistério. Como outros
religiosos da sua idade, sofre de ereções noturnas, que alivia com água fria.
É vítima também de poluções involuntárias, que precisa confessar, bastante
envergonhado (seu confessor é o próprio padre Gregorio, que o ouve em
silêncio, não lhe dá nenhum conselho e se limita a aplicar-lhe, sem
comentários, alguns rosários como penitência). Já lhe aconteceu, tanto
quanto com outros seminaristas, ter imagens de voluptuosidade ao
contemplar uma estátua da Virgem santa, ou, numa pintura, os seios nus,
cortados pela espada do algoz, de uma santa martirizada. Imagens
blasfemas, ofensivas, difíceis de apagar.
Quando tinha vinte anos, passando por Saragoça, onde ninguém o
conhecia, esgueirou-se certa noite do convento onde se hospedava, como
um assassino correndo para cometer seu crime, vestiu umas roupas pobres
que comprou de segunda mão e se encaminhou para um bairro de
devassidão, fora das muralhas, às margens do Ebro. Lá encontrou umas
garotas de vestidos coloridos, fazendo sons de beijos escondidas nas
sombras. Uma delas pegou-o pelo braço e o puxou. Ele se deixou levar. A
mulher o levou, cantarolando, até uma charrete e subiu. Ele a seguiu,
encontrando-a em cima do que pensou ser uma pilha de sacos ásperos.
Havia um cachorro, que a garota enxotou. Tudo estava muito escuro. Ele
ouviu as águas do rio, bastante próximo. Não via sequer o rosto da mulher
que já ia tirando os farrapos que vestia, sem parar de cantar.
Que idade tinha? Com quê, com quem se parecia seu rosto? Ele nunca
soube. Entregou sem discutir o dinheiro que ela pedia, deixou-a fazer seu
ofício e em quatro minutos perdeu o que na sua aldeia chamavam de flor.
Depois a garota mandouo embora, assim que se recuperou do seu espasmo.
Teve que encontrar sozinho o caminho de volta, resistindo ao assédio das
outras garotas.
Ao voltar para o convento, jogou fora as roupas de pecador, vestiu o
hábito e acordou um monge no meio da noite para se confessar logo. A
idéia de que Deus poderia chamá-lo naquele momento, em estado de
pecado mortal, era insuportável para ele. Apesar da absolvição que recebeu
dos lábios de um velhote sonolento, dormiu mal.
Mais tarde, quando se lembrava dessa fraqueza de uma noite, que
atribuía, para se justificar ante os próprios olhos, à vontade de saber, a uma
necessidade de informação, sentia uma espécie de abatimento, quase
repugnância. Nada daquilo se parecia, na sua memória, com as
voluptuosidades que havia sonhado, aquelas que eram descritas, por
exemplo, nos manuais dos confessores, como o do célebre padre Sánchez.
Nada evocava as graças femininas, a embriaguez da carne, os abismos
inebriantes do prazer, todas essas metáforas que o perseguiam com
obstinação e crueldade.
Lembrava dos seus pés na lama, uma charrete balançando, o cheiro da
mulher e o do cachorro. No entanto, uma força inexplicável sempre o
levava de volta àquela triste noite, nas muralhas de Saragoça, perto das
margens do Ebro. Uma voz lhe dizia - sua própria voz - que ele só
conhecera a simulação do amor, que tudo ainda estava por descobrir, por
experimentar.
E essa voz lhe fala com insistência nesse mesmo momento, ali, na cela
de Inês. Ele repara na base do seu pescoço quando ela se inclina em sua
direção, adivinhando seu corpo todo branco sob a túnica azul. Mais pálida
que no retrato pintado por Goya, menos sorridente, menos resplandecente
- mas ainda um anjo, sem dúvida. Um anjo que repete, com uma espécie de
ansiedade:
É pecado? Ele sabe que não pode ficar sem dizer nada. Não foi ele quem
instruiu esse caso, não foi ele quem organizou a vigilância na taberna de
dona Julia.
Dera apenas as instruções gerais. Outros se encarregaram dos detalhes.
Mas não revela nada disso à jovem que lhe está fazendo súplicas. Para
quê? Ele não tem nada por que censurar, nem em relação aos seus irmãos,
nem em relação a Deus.
Agiu pelo bem de todos. E não pode se permitir nenhuma medida de
favorecimento.
Inês lhe diz, várias vezes, que quer voltar para casa agora, que não fez
nada, que não gosta de carne de porco, que desconhece completamente os
rituais judaicos, que confessou o que quiseram para não sofrer mais.
Posso transmitir uma mensagem à sua família, diz ele. Ah, sim! O que
quer que lhes diga? Que eu os amo. Por favor, diga que eu os amo, meu pai,
minha mãe, meus irmãos, que amo a todos, que não fiz nada de errado, que
quero vê-los logo...
Vou dizer isso a eles. Não quero que pensem que eu possa ter feito
alguma coisa errada. Diga exatamente isso. Exatamente isso. Que sou a filha
deles. Que vou voltar para casa. Que devem me esperar.
Fecha os olhos e junta as mãos para dizer: O tempo todo, dez, vinte
vezes por dia, cem vezes, eu fecho os olhos e rezo. Rezo pedindo ao Senhor
que me traga a minha mãe, meu pai, meus irmãos, ali, à minha frente,
quando eu abrir os olhos...
Quer que eu reze com você? Sim. Ah, sim, obrigada. Então se joga aos
pés de Lorenzo e os prende entre os braços. O religioso está embaraçado
com aquele corpo e não sabe o que fazer. Segura a cabeça de Inês com as
duas mãos e lhe pede que se levante. Ela continua a apertar as pernas do
monge entre seus braços. Seu xale de lã escorregou para o chão. Talvez
tenha, por um momento, perdido a razão.
Lorenzo, suavemente, acaricia o cabelo de Inês, dizendolhe que não
chore, que tudo vai se ajeitar, que ele cuidará disso. Frases banais, sem o
menor efeito, mas ele não encontra outras, nunca se viu numa situação
semelhante.
Inês ergue os olhos em sua direção. Ele vê lágrimas. Pela primeira vez
na vida, vê uma jovem chorar ao seu lado. Ela está perturbada, não
consegue se acalmar, nem raciocinar. É inútil tentar falar com ela: não
ouviria nada. Brutalmente, uma imagem sacode Lorenzo, a imagem de uma
mulher muito maquiada que o arrasta pela noite em direção ao som de um
rio, cantarolando uma canção de amor. Afasta essa imagem, ela volta,
afasta-a de novo. Inês chora e se lamuria, apertada contra ele.
Com voz não muito firme, Lorenzo começa a rezar: Gloria in excelsis
Deo... São palavras que ela conhece. Ela continua: ... et in terra pax
hominibus... Glória a Deus nas alturas. E paz na terra aos homens... ... bonae
voluntatis, dizem juntos. Paz na terra aos homens de boa vontade. Paz na
terra. As mãos de Lorenzo descem até os ombros de Inês e os apertam.
Puxa a jovem para si, ela não resiste e até se senta no seu colo. Não está
mais sozinha. Agora se aperta contra ele, procurando um apoio, e passa os
braços em volta do seu pescoço, por baixo da grande gola branca do hábito.
Continuam a oração a duas vozes, por mais algum tempo.
Alguns dias mais tarde, Lorenzo foi chamado a Sevilha para uma
reunião de organização interna e também de política externa. Um ano
antes, em junho de 1791, o rei da França havia tentado sair do seu país
numa berlinda, com a mulher austríaca e os filhos, todos disfarçados.
Reconhecidos em Varennes, foram detidos numa pousada e levados a Paris,
onde entraram entre duas fileiras de soldados com a culatra dos fuzis
apontando para o chão, em sinal de desonra.
Um rei tinha tentado abandonar seu povo, e esse povo o trazia de volta.
Para os observadores mais experientes, a coroa francesa, na cabeça de
um monarca indeciso e pouco lúcido, estava condenada a cair, mais cedo ou
mais tarde. Só podia ser salva pela rápida invasão de uma coalizão européia
que demorava a aparecer e da qual o rei da Espanha, Carlos IV, inutilmente
pressionado por Luís XVI, hesitava em participar.
O clero francês, profundamente dividido (os padres tinham que prestar
juramento à constituição civil do clero para poder exercer seu ministério),
via alguns dos seus membros cruzarem as fronteiras, como os nobres
emigrados, e procurar um abrigo, um refúgio, nos países católicos vizinhos,
principalmente a Espanha. O que fazer com eles? Como recebê-los? Era a
estas perguntas, entre outras, que a reunião de Sevilha devia responder.
Lorenzo ficou lá mais tempo do que o previsto e voltou a Madri no final
de junho.
Outra semana passou até que, afinal, por intermédio de Goya, Lorenzo
aceitou o convite de Tomás Bilbatua, que ainda estava sem notícias da filha.
A visita foi marcada para o dia 6 de julho.
Por volta das oito e meia da noite, quando ainda havia luz, Goya e
Lorenzo cruzaram juntos a porta de entrada. Recebidos por um mordomo,
percorreram o pátio do comércio, ainda em atividade, e se dirigiram para a
escada principal onde os empregados já acendiam as tochas.
Bilbatua e seus dois filhos os esperavam ali, ao pé dos degraus. O
comerciante inclinou-se diante do representante do Santo Ofício e disse
que aquela visita era uma grande honra. Lorenzo, que parecia calmo e dono
de si, respondeu com algumas palavras simples e esperadas. O prazer era
todo dele, lamentava não ter podido vir antes, coisas assim.
Bilbatua cumprimentou Goya amistosamente, deu-lhe até um abraço,
bem à espanhola, e os cinco homens subiram a escada. No alto, María Isabel
os esperava, muito bem vestida e enfeitada com jóias. Como ia receber um
religioso, estava pouco maquiada, escolhera um vestido fechado e escondia
o cabelo com uma grossa mantilha preta.
Tomás apresentou-a ao dominicano e ela lhe deu boas-vindas. Lorenzo
agradeceu inclinando-se ligeiramente, sem tocar em sua mão.
Por aqui, por favor, disse. Tudo parecia transcorrer como uma noitada
comum. Avançaram por uma galeria comprida, no primeiro andar, parando
no corredor para admirar o modelo reduzido de um galeão ou alguma
estátua de santo em madeira dourada, proveniente de um país da América,
na qual se reconhecia a mão poderosa, livre das escolas européias, de um
artista dos planaltos do México ou das florestas da Costa Rica. Tapeçarias
flamengas mostravam em profusão produtos vindos de todos os
continentes explorados até então. Viam-se ali, pendurados nas paredes, os
mais preciosos reflexos dos mostruários e armazéns do mercador. A Terra
era uma cornucópia de abundância inesgotável, deixada graciosamente ao
alcance dos homens. Todos os bens do mundo pareciam acessíveis,
oferecidos pela mão imensa de uma natureza generosa, a princípio
selvagem e afinal dominada.
Pararam diante de um retrato de corpo inteiro do dono da casa, em que
Goya o havia representado com a mão direita apoiada num globo e um
papel enrolado na esquerda, contra um fundo representando o mar sulcado
de navios. Lorenzo admirou a obra do artista.
É mais que um homem, disse sorrindo, é uma vida. Goya pareceu gostar
da frase. Lorenzo, sentindo-se à vontade, acrescentou que o mercador, pelo
menos, tivera meios para mandar pintar suas mãos.
Eu precisei ocultar as minhas, disse. Felizmente uso hábito. Pude
esconder as mãos nas mangas.
Avançaram alguns metros pela galeria, passaram por outros modelos
reduzidos de navios minuciosamente construídos, inclusive com
tripulações em miniatura na ponte e nos aparelhos, e se detiveram em
frente do retrato recente de Inês, inútil presente de aniversário, que
Lorenzo tinha visto no ateliê do pintor.
O sorriso sumiu dos lábios do dominicano, que observou longamente o
retrato cintilante. Toda a juventude, toda a esperança do mundo estavam
representadas nele.
O sorriso da jovem iluminava toda a galeria. O pai, a mãe e os irmãos
ficaram em silêncio, observando a reação do monge.
Lamento muito, disse Tomás, com a voz subitamente fraca, que minha
filha não possa jantar conosco esta noite.
Lorenzo abaixou a cabeça. Parecia compartilhar a dor de Tomás, que
também lamentava a ausência da jovem. Mas limitou-se a dizer: Trabalho
maravilhoso, Goya. Realmente maravilhoso. E continuou a caminhar
lentamente. Goya, durante alguns segundos, ficou parado no lugar, com os
olhos erguidos na direção do seu jovem fantasma. Depois voltou a mover-
se, também lentamente.
No fim da galeria, antes de entrar na sala de refeições, Tomás indicou
uma mesinha a Lorenzo e fez um gesto pedindo que se aproximasse dali.
Dois criados levantaram um pano bordado, revelando um cofre de ferro em
cima do tampo.
O próprio Tomás manipulou as fechaduras, abriu o cofre, levantou um
quadrado de veludo vermelho e fez surgir, como num conto de fadas, duas
pilhas de peças de ouro e prata, cuidadosamente arrumadas e firmadas no
lugar por suportes de madeira.
Lorenzo não demonstrou surpresa, apesar da enormidade da soma que
brilhava à sua frente. Evitou inclinar o corpo. Seu olhar permaneceu calmo.
A propósito, disse a Tomás, espero que o nosso amigo Goya já lhe tenha
dito que não posso aceitar que pague pelo meu retrato.
Sim, ele me disse.
Agradeço a sua intenção, mas esse gesto seria, a meu ver, totalmente
contrário aos nossos costumes.
Entendo, irmão Lorenzo, diz Bilbatua. Entendo muito bem. Na sua
posição não se deve levantar nenhum tipo de suspeitas. Agi como um tolo,
desculpe-me. Peço simplesmente
que aceite esta contribuição para a restauração da igreja que tem o meu
nome.
Agradeço em nome do apóstolo, responde Lorenzo. Os criados
repuseram o veludo no lugar e fecharam o cofre, enquanto Bilbatua e sua
mulher mostravam o caminho para a sala de jantar. Um magnífico lustre
holandês, enorme, de cobre brilhante, iluminava o aposento com umas
vinte velas. Algumas bacias e jarras de prata polida, dispostas sobre os
móveis, refletiam as luzes.
Maria Isabel distribuiu os convidados em torno da mesa e todos ficaram
de pé por alguns minutos enquanto Lorenzo recitava o benedictus, como
era devido.
Quando a oração terminou, todos se benzeram, ocuparam seus lugares -
Lorenzo sentado à direita de María Isabel, Goya à sua esquerda - e a
refeição começou com um Porto envelhecido. Bilbatua explicou que deixava
um barril de excelente Porto nos porões de certos navios seus
exclusivamente para que o vinho desse uma ou duas voltas ao mundo. O
movimento constante do barco o beneficiava, desenvolvia seus aromas.
Todos ergueram as taças, aspiraram o aroma do vinho e brindaram à
restauração da igreja de São Tomé. Não havia perigo. Tudo cheirava a bons
modos, urbanidade, quase prazer de estarem juntos. O irmão Lorenzo,
enquanto os criados traziam azeitonas, presunto, peixe salgado, amêndoas
e algumas curiosidades exóticas, foi o primeiro a falar de Inês.
Imagino, disse, que estão preocupados com sua filha e esperam notícias
dela.
Sim, é claro, respondeu María Isabel. Só pensamos nela. Ela nunca saiu
da nossa casa, por assim dizer. Sempre morou conosco. E estamos sem
nenhumanotícia.
O senhor a viu?, perguntou Tomás. Sim, várias vezes. E como está ela?,
quis saber a mãe. O que faz? Está muito bem, disse o monge após um rápido
gole de Porto. Ela está calma, bem de saúde e lhes manda todo o seu
carinho. Fala muito da família.
O que aconteceu?, perguntou Álvaro. O que ela fez? Nós queremos
saber!
Sim, apoiou a mãe. Não entendemos do que ela é acusada. Ninguém nos
informou. Quando vamos poder vê-la?
Não posso dizer exatamente. Primeiro ela tem que enfrentar o processo.
Um instante de silêncio se abateu sobre a mesa. Até os criados pareciam
conter a respiração. Bilbatua perguntou ao dominicano: Um processo? Por
que um processo? Processo em relação a quê?
Em relação ao que ela confessou, respondeu calmamente Lorenzo.
O silêncio tornou-se ainda mais tenso, sensível. Após um gesto de
Tomás, os criados se retiraram nas pontas dos pés, fechando a porta atrás
de si.
O que ela confessou?, perguntou a mãe. Vocês não desconfiam? Não.
Ninguém aqui tem a menor idéia, diz Tomás. Apesar de termos espremido
os miolos.
Lorenzo pareceu refletir alguns instantes antes de dizer:
Ela confessou que pratica rituais judaicos às escondidas. Viram-se
olhares admirados em volta da mesa, e a mãe afirmou: Isso é impossível.
Mesmo? Absolutamente impossível. Rituais judaicos? Inês? Nós somos uma
velha família cristã!
Lorenzo, como se já esperasse todas essas perguntas, essas reações,
esses protestos, voltou-se então para Tomás e disse: Não vacile em me
corrigir se eu estiver enganado, mas os irmãos que cuidam dos nossos
arquivos me disseram que o bisavô da sua avó, que ainda não se chamava
Bilbatua, converteu-se do judaísmo ao cristianismo quando deixou
Amsterdã com toda a família para se estabelecer na Espanha. Foi, se bem
me lembro, durante o reinado de Felipe V, em 1639.. Vocês têm, portanto,
um antepassado judeu na família.
Todos ficaram em silêncio, atônitos, enquanto ele perguntava a Tomás,
levando uma azeitona à boca: Verdade ou mentira? Verdade, acho,
respondeu Tomás num murmúrio. `Possível, em todo caso. Já ouvi dizer.
Mas julgava ser o único a saber.
Você não era o único, pois sua filha confessou. O que ela confessou,
exatamente? Que continua a praticar rituais judaicos, que são proibidos,
como sabem.
Que os pratica em segredo. Imagino que tenha ouvido falar da sua
origem longínqua.
Mas quem lhe contou isso? Ela não disse. Este é um dos pontos que o
processo tentará esclarecer. O mal estava, talvez, no sangue. Desde o
nascimento.
Mas de que rituais se trata?, perguntou de repente María Isabel. Esta
noite estou ouvindo falar disso péla primeira vez!
Dirigindo-se ao marido, quis saber: Era do seu lado ou do meu? Do meu
lado, diz Tomás. E nossa filha sabia? Aparentemente, sim, diz Lorenzo. Mas
como podia saber, continuou a mãe, muito agitada, de uma coisa que teria
acontecido com a nossa família há mais de um século e eu mesma ignorava?
Como não falaria comigo? É impossível!
Não é impossível, minha senhora, é isso mesmo. Sua filha não é o único
caso estranho que temos para analisar. Eu mesmo examinei de perto todos
os detalhes. O interrogatório foi realizado segundo as normas. Entretanto,
nem todos os aspectos foram esclarecidos. Repito: não temos certeza de
que ela estivesse a par da conversão do seu antepassado. É possível que
tenha conhecido alguém que a influenciou e que tenha se convertido.
Ao judaísmo? Sabemos de outros casos, ainda mais surpreendentes. Por
isso precisamos abrir um processo, que vai continuar a investigação e
decidirá a sorte da sua filha. E repito o que disse: ela confessou que
praticava rituais judaicos, como não comer porco e coisas assim.
Mas Inês não gosta de porco!, gritou Angel. Ela não come nunca!
Isto é o que dizia a vocês e aos amigos. É claro que estava mentindo.
Mas onde pode ter aprendido esses rituais?, perguntou Bilbatua. Quem
lhe ensinou, quem a afastou da nossa fé? Minha esposa já disse: ela nunca
saía daqui!
Sua casa é ampla, aberta a todos, dezenas de pessoas trabalham aqui,
circulam estrangeiros diariamente. Os venenos do mundo inteiro passam
por aqui.
Minha filha, disse então Tomás não podia confessar uma coisa que
desconhecia.
Lorenzo concorda. Ela devia saber alguma coisa, de uma maneira ou de
outra. É difícil acreditar que o conhecimento e a prática de rituais proibidos
possam ser transmitidos por simples filiação, por herança distante. O
sangue, que se saiba, não traz as heranças de tão longe.
por todos esses motivos, acrescentou, temos que prosseguir, procurar
cúmplices. No final, não deve ser nada muito grave, mas Deus, ponham-se
em nosso lugar, Deus não nos perdoaria se ignorássemos uma pista que,
com um pouco de sorte, certamente nos levará a descobrir uma rede de
inimigos da fé.
Álvaro inclinou-se de repente por cima da mesa e perguntou a Lorenzo:
Minha irmã sofreu um interrogatório? Sim, realmente, respondeu de
imediato o monge. Como todos os suspeitos.
Um manto de temor caiu agora sobre a mesa. As palavras que acabavam
de ouvir traziam à memória os relatos sombrios do passado O
interrogatório, uma palavra que só se pronunciava em voz baixa. María
Isabel pegou o guardanapo, torceu-o violentamente entre as mãos e
perguntou a Lorenzo: Vocês torturaram a minha filha?
Angel estendeu o braço para acalmar a mãe, que parecia a ponto de
desmaiar, enquanto Lorenzo corrigia: Ela foi interrogada. Só uma vez. Da
maneira comum. Aquilo significava que o interrogatório de Inês fora
limitado a métodos que não podiam provocar a morte, nem causar uma
efusao de sangue, nem quebrar um membro. Goya, que se sentia pouco à
vontade desde que entraram na sala de jantar, pediu mais detalhes. De que
se tratava?
A polé? Borzeguins? Um esquartejamento?
Não, uma simples suspensão, diz Lorenzo. Durante alguns minutos. A
confissão veio bem rápido.
Em certos casos, uma suspensão muito prolongada podia cortar a
respiração do suspeito e levar à morte por asfixia. Os velhos arquivos
continham alguns exemplos, que Lorenzo conhecia. Não fez a menor alusão
a eles.
Bilbatua perguntou: O senhor assistiu? Não. Não é minha função. Mas eu
pensava, insistiu Tomás, todos pensavam que esse tipo de interrogatório
havia sido abandonado há muito tempo!
E foi, diz Lorenzo, mas a situação atual da Igreja nos obriga a usá-los.
Por quê?, perguntou Álvaro. Porque diante da maré de erros sangrentos
que vêm da França e do contágio que nos ameaça e já nos invade, mais do
que nunca devemos buscar e afirmar a verdade.
María Isabel pôs o guardanapo na mesa e perguntou numa voz
subitamente rouca:
O senhor pensa que minha filha ameaça a Igreja? É possível. Ela ou seus
cúmplices. Não podemos descartar nada. Se vocês são bons cristãos, devem
entender.
Explique-me, diz Álvaro, eu gostaria de saber. Vocês consideram que
esses métodos levam à verdade?
Certamente. Mas como se pode ter certeza? O interrogatório é a prova
decisiva da verdade. Não conhecemos outra.
Diga-nos por quê, pediu Goya. É muito simples.
Desde sua volta do mosteiro onde tomara a sua decisão, o espírito de
Lorenzo se havia fechado e ampliado ao mesmo tempo. Fechado porque
extinguiu a curiosidade profana, eliminando todas as tentações liberais,
filosóficas, científicas, vindas da França ou de outros lugares, para se
aferrar à fé católica tradicional, de maneira rigorosa, quase exasperada.
Ampliado, porque no interior dessa fé, que podia parecer um grilhão,
encontrava matizes novos, caminhos até então invisíveis, idéias, imagens
que às vezes chegavam a surpreendê-lo.
Assim, nessa noite, ainda sem desconfiar que sua carreira inquisitorial,
que se anunciava tão brilhante, estava prestes a ser destruída, sustentou
com eloqüência, com ardor, que o interrogatório era a prova decisiva da
verdade. Por quê? Porque os inocentes jamais confessam. Deus, explicou,
mediante o interrogatório (que os espíritos levianos chamam de tortura)
dá a eles a força de resistir até o limite do sofrimento. Por isso, o
interrogatório é um dom de Deus.
Aqueles que têm a alma completamente inocente, disse, não são
afetados pelo interrogatório. Resistem com facilidade. A dor é a chave da
alma, todos nós devemos entender isso, caso contrário iremos pelo
caminho errado. Jesus é a verdade suprema, todos sabemos. E a verdade e a
vida. Ora, quando o vemos cravado na cruz, que imagem Ele nos oferece? A
de um homem que sofre. Mas que sofre na verdade.
Todos ouviam era silêncio, pensando que talvez o monge houvesse
perdido a razão, para defender dessa maneira a tortura. E de fato podia
causar essa impressão. Mas o seu discurso se mantinha coerente e firme.
Consideremos então o caso, disse, daqueles que não são inocentes, da
sua filha por exemplo. O interrogatório os faz expor, confessar seus
pecados, seus erros, e essa confissão lhes dá imediatamente, posso afirmar
porque já o constatei, um extraordinário sentimento de paz, de
tranqüilidade interna. O interrogatório fortifica o coração, eleva o espírito,
é um presente de Deus e nós devemos estar gratos, sejamos culpados ou
não. Vejam bem: àqueles que são culpados e confessam, o interrogatório
proporciona um alívio, porque nada é mais pesado que o pecado; dos que
são inocentes e não confessam, salva a vida.
Os petiscos ainda estavam servidos na mesa. Lorenzo era o único que
havia tocado em alguma coisa. Com um evidente mal-estar, Goya, após esse
elogio retórico do interrogatório, que parecia implacável, tentou relaxar a
atmosfera da sala de jantar.
Isso não se sustenta, disse a Lorenzo. O interrogatório não prova
absolutamente nada. Se me machucassem, eu confessaria qualquer coisa!
Até que sou o sultão da Turquia!
Não, respondeu Lorenzo, você não confessaria isso. Claro que sim! Eu
me conheço. Para evitar o sofrimento confessaria qualquer coisa!
Impossível. Por quê? Goya, responda-me: no fundo do seu coração,
apesar de tudo o que dizem de você, tenho certeza de que teme a Deus. Será
que me engano?
Não, é verdade, temo a Deus, como todo o mundo. Pois bem, o temor a
Deus, em caso de um interrogatório, mesmo nas circunstâncias particulares
em que você se encontraria, não lhe permitiria fazer uma confissão
mentirosa. A graça de Deus estaria com você.
E se a dor me transtornar a cabeça, a ponto de não saber mais o que
digo?
Goya, ouça e acredite em mim. Nós temos experiência com essas coisas.
Se você é inocente, Deus lhe dará forças para resistir à dor até o fim.
Após outro silêncio, em que todos ouviram María Isabel chorando
suavemente no guardanapo, Bilbatua perguntou: O senhor tem certeza
absoluta do que está dizendo? Sim, tenho certeza, senão não diria. Nunca
teve dúvidas? Tive, é claro. Eu também duvidei, como é normal.
E me questionei inúmeras vezes. Mas depois de certo tempo as dúvidas
se afastaram de mim e toda a luz se fez. Não duvido mais. Cristo me
transmitiu essa certeza, como fez com são Tomé. Ela jamais vai me
abandonar.
Perdoe-me, irmão Lorenzo por perguntar isto, diz então Bilbatua, mas o
senhor mesmo, em pessoa, foi interrogado dessa maneira?
Eu? Sim, o senhor. Alguma vez o interrogaram? Não, nunca. Ainda não
teve oportunidade? Não. Bilbatua respirava rápido e pensava. Pegou um
pedaço de presunto e o engoliu com uma mordida só. Goya, que o vigiava, e
o conhecia bem, viu um brilho nos seus olhos que nunca tinha notado, que
não surgira em nenhum momento enquanto trabalhava no seu retrato. Um
brilho sombrio porém resplandecente, fixo, selvagem.
Quis dizer alguma coisa ao amigo, mas este já estava falando de novo.
Dizia a Lorenzo, numa voz fria, quase abafada: Se o senhor fosse submetido
a um interrogatório e lhe pedissem para confessar alguma coisa grotesca,
completamente inverossímil, não sei bem o quê... por exemplo, que o
senhor é um macaco! Que tem aparência de homem, mas na realidade é um
macaco disfarçado! Tem certeza de que Deus lhe daria forças para negar?
Sob tortura, sob o efeito da dor, da dor viva,
o senhor não diria: sim, sim, admito, confesso que sou um macaco?
Enquanto Lorenzo fitava Bilbatua com uma espécie de incredulidade,
não encontrando palavras para responder, Goya gritou, fazendo um esforço
para rir: Eu confessaria! Confessaria logo! Você, sim, não duvido. Mas e o
senhor, irmão Lorenzo? É ao senhor que faço esta pergunta.
Maria Isabel, que sem dúvida conhecia aquele brilho negro e feroz no
olhar do marido - um homem normalmente gentil, sorridente, fino -, tentou
acalmá-lo. Bateu na mesa dizendo:
Tomás... Tomás...
Mas Tomás não ouvia. Continuava encarando Lorenzo, esperando uma
resposta. Lorenzo mantinha os olhos na mesa. Parecia contemplar o copo
de vinho do Porto que ainda estava na sua mão.
Goya tentou outra vez diminuir a tensão. Perguntou a Bilbatua que jogo
estranho era aquele, assim de repente. Aquela pergunta parecia fora do
senso comum.
Ninguém pensaria em pedir ao irmão Lorenzo para confessar que é um
macaco. Sim, mas eu penso, disse Tomás. E levantou-se devagar, encostou a
cadeira e dirigiu-se para a porta. María Isabel tentou chamá-lo: em vão.
Tomás saiu sem responder.
Sua mulher pediu a Álvaro e a Angel que fossem buscar o pai. Os dois
filhos permaneceram em seus lugares.
Lorenzo, que erguera os olhos, observava cada um dos personagens,
particularmente Goya, que julgou ler uma reprimenda no seu olhar, como
se tivesse atraído o dominicano para uma armadilha.
Vários minutos passaram em meio a um embaraço geral. María Isabel,
aparentemente confusa, ofereceu umas anchovas a Lorenzo dizendo que
estavam deliciosas. Este nem olhou. Não se deu sequer ao trabalho de
recusar. Ela pediu mais notícias de Inês. O dominicano respondeu com
poucas palavras. Sim, estava bem, muito bem. Ele começava a parecer
preocupado. María Isabel tocou um sino para chamar um criado, mas
ninguém apareceu. Então perguntou a Goya em que estava trabalhando no
momento.
Surpreso, o pintor vacilou antes de responder e balbuciou alguma coisa.
Álvaro se levantou, saiu, ficou ausente alguns instantes e depois tornou a
sentar-se, sem dizer uma palavra.
Nesse momento Tomás Bilbatua reapareceu na sala de jantar. Trazia
um papel na mão, onde acabava de escrever algumas linhas. Entregou-o a
Lorenzo, dizendo: Tome. Leia e assine. O que é? Sua confissão. Como? Vou
lê-la. Depois o senhor assinará. Bilbatua levantou o papel diante dos olhos e
leu: Eu, Lorenzo Casamares, reconheço e confesso que, apesar da minha
aparência humana, na realidade sou fruto do cruzamento de pai chimpanzé
com mãe orangotango. Acrescento que fiz tudo o que pude para ingressar
nos quadros do Santo Ofício com o objetivo de comprometê-lo e derrubá-lo.
Aqui está, assine.
E lhe estendeu uma pena e o tinteiro. Assine. Enquanto María Isabel,
silenciada pela emoção, olhava em torno de si como se visse demônios aos
berros entrando pelas janelas, Goya se levantou perguntando a Bilbatua se
estava bêbado, se tinha perdido a razão.
Não se meta nisto, Francisco, disse o mercador, que continuava
mostrando a folha para o dominicano. É um assunto meu.
O irmão Lorenzo levantou-se lentamente, de sobrancelhas franzidas,
como se estivesse tentando entender um fato estranho e inqualificável. O
que fazer? Não havia nada nos livros de conselhos aos confessores que
pudesse ajudá-lo. Não se lembrava de nenhuma referência, nenhum
precedente. Bilbatua sabia, evidentemente, que não podia fazer uma
insolência daquelas com um membro da Inquisição. Então tinha
enlouquecido, como Goya parecia acreditar? E se estava louco, louco de
aflição, por exemplo, depois da inexplicável prisão da sua filha, como
Lorenzo devia agir com ele?
Vai assinar ou não?, perguntou Tomás. Ouça... Não ouço nada. Vai
assinar? Tomás Bilbatua, como quer que eu assine isso? Não vou assinar
nunca, você sabe muito bem! Pare com este jogo, eu lhe peço, em nome de
Cristo!
Cristo não tem nada a ver conosco, esta noite. Ele está ausente, digamos.
Não veio. Eu o convidei, mas uns problemas o mantiveram em outro lugar.
E me pediu que lhe avisasse.
Mas o que está dizendo?, perguntou Goya. Tomás, cale-se!, diz María
Isabel, com a voz entrecortada, estranhamente rouca. Cale-se!
Então, não vai assinar? Não, não vou assinar! É óbvio que não! Bilbatua
fez um sinal para seus dois filhos, que saíram da sala como se já soubessem
o que deviam fazer. Entraram três criados, por duas portas. Tomás ordenou
que fechassem os postigos das janelas e puxassem as cortinas, coisa que
fizeram. Lorenzo dirigiu-se então a Goya, dizendo:
Francisco, leve-me embora daqui. Venha, disse Goya. O pintor quis
conduzir o monge para a porta principal, mas os criados, obedecendo a um
gesto de Tomás, barraram o caminho.
Abram esta porta!, gritou o pintor. Os criados não pareciam ter ouvido.
Goya se atirou sobre eles, tentando passar à força, com Lorenzo nos seus
calcanhares.
Os criados, jovens e vigorosos - dois deles de origem africana -, logo os
repeliram. O pintor golpeou-os com os punhos, gritando: Deixem-nos sair!
E ele deixou minha filha sair?, perguntou Tomás, falando mais alto que
Goya. Deu ouvidos quando ela suplicava que a libertasse?
Angel e Álvaro voltaram à sala nesse instante, trazendo uma corda
bastante comprida. Goya lutava em vão com os criados enquanto Lorenzo,
com os lábios apertados, aguardava. Bilbatua fez um gesto para seus
homens, que dominaram Goya e o tiraram da sala. Lorenzo quis sair
também. Foi impedido. Pela primeira vez alguém punha as mãos nele, no
seu hábito sagrado, e isso o deixava estupefato. O dominicano costumava
dizer, como todo religioso, que seu hábito era uma armadura incomparável
contra as ofensas e as maldades do mundo. E eis que agora ele o
abandonava, agora o traía. Duas mãos o seguraram e o puxaram para trás,
mãos de pele negra, obedecendo a ordens que não eram as suas.
Desçam o lustre, diz Bilbatua. Angel e outro homem pularam para cima
da mesa e, usando ganchos de ferro, tiraram o lustre holandês e o largaram
brutalmente sobre a mesa, no meio dos pratos, copos e talheres. A metade
das velas se apagou. Álvaro jogou a corda por cima do suporte do lustre,
fixado no teto, e fez um nó deslizante.
Ouvia-se a voz de Goya, que continuava gritando loucamente, fora da
sala, esmurrando a porta fechada. Lorenzo, forçado a admitir que não se
tratava de uma simples intimidação, tentou lutar, libertar-se. Os criados
africanos o dominaram energicamente.
Bilbatua perguntou outra vez ao monge: Está decidido a assinar esta
confissão? Lorenzo negou com a cabeça, ainda lutando. Então, disse Tomás
veremos se Deus lhe dará forças para resistir ao interrogatório. Vamos ver
qual é a verdade.
Fez um gesto para seus dois filhos. María Isabel, nesse momento, saiu
da sala por outra porta. Com lágrimas nos olhos, correu até um pequeno
oratório, ajoelhou-se diante de uma imagem da Virgem, com a respiração
entrecortada, e começou a rezar a toda velocidade, sem saber muito bem o
que dizia. Talvez quisesse desviar a atenção dos olhares lá de cima, para
evitar que a maldição divina caísse sobre a casa.
Na sala de jantar, enquanto os dois irmãos e os criados amarravam as
mãos de Lorenzo nas costas e o colocavam em cima da mesa, entre os
pratos quebrados, Bilbatua não parava de falar da graça divina e das
virtudes do sofrimento.
O senhor vai ver, dizia como ficará aliviado quando disser a verdade...
Num estado de tanta tranqüilidade... A dor é um dom de Jesus, receba-a
com gratidão...
Obedecendo a um sinal do pai, os dois filhos começaram a levantar o
corpo de Lorenzo, puxando juntos a corda. Os pés do monge se separaram
da mesa, derrubando um copo de Porto, que manchou a toalha. As
primeiras dores dilaceraram seus ombros, de um lado e do outro da nuca.
Lorenzo mordeu os lábios para não gritar, e conseguiu. Tomás Bilbatua se
postou à sua frente para vê-lo bem e falar com ele. O senhor não tem nada a
temer, repetia. Deus está do seu lado, Ele o ajuda, agradeça-lhe. E o senhor
deve saber, acrescentava, que este é apenas o interrogatório comum, o mais
suave.
Álvaro e Angel, que não tiravam os olhos do pai e seguiam as suas
ordens, puxaram um pouco mais a corda. O corpo de Lorenzo flutuava
acima da mesa devastada, da toalha amarrotada, manchada, do lustre de
cobre cujas velas ainda ardiam. A dor tornava-se atroz. Tomava conta dos
músculos das costas, dos braços, das mãos, de toda a cabeça. Durante
alguns minutos, Lorenzo conseguiu não gritar, mesmo sentindo a carne se
separar dos ossos. Depois, como Bilbatua havia previsto, implorou
clemência.
Pare, disse, pare. Tomás perguntou se ele estava disposto a admitir a
verdade e assinam o documento. Lorenzo, com a cabeça estilhaçada pela
dor, não tinha mais forças para dizer que não.
Farei o que quiser, respondeu com a voz entrecortada. Um minuto
depois, os homens o ajudaram a sentar numa cadeira, Estava ofegando e
respirava com dificuldade.
Bilbatua, por segurança, mandouo copiar toda a declaração e depois
assiná-la. Assim, tudo ficaria escrito do próprio punho. Angel lhe ofereceu
um copo d'água, que o monge bebeu num gole.
Tomás pôs a pena nas suas mãos e perguntou: Prefere que eu leia o
texto? Lorenzo balançou debilmente a cabeça. Podia ler sozinho. Começou
então a escrever, lentamente, e sua mão tinha as marcas vermelhas da
corda e ainda tremia um pouco.
Enquanto ele escrevia, Tomás disse: Queimarei este papel no mesmo
instante em que minha filha entrar pela porta desta casa. Dou .minha
palavra. E ninguém jamais pôs minha palavra em dúvida. Mas o senhor
deve entender uma coisa: não posso esperar muito tempo. Entendeu bem?
Não vou esperar muito tempo.
Lorenzo escreveu todo o texto, atestando assim que na verdade era um
macaco, e assinou no lugar que Tomás lhe indicou..
Quando terminou, enquanto os criados tiravam a corda, tornavam a
acender as velas do lustre e o recolocavam no lugar, Tomás propôs que o
monge terminasse a refeição para a qual foi convidado, em que quase nem
tocara. Lorenzo não respondeu. Tomás perguntoulhe então se ele preferia
voltar para o seu mosteiro. Lorenzo assentiu com a cabeça.
Abriram os ferrolhos da enorme porta e Lorenzo, com o andar um
pouco trôpego, saiu da sala.
No corredor, quando passou pelo retrato de Inês sem levantar os olhos,
Tomás chamou-o:
Irmão Lorenzo! O dominicano parou, sem conseguir imaginar o que
mais podiam querer dele. Tomás apontou para o cofre, em cima da
mesinha, e disse: Está esquecendo isto. Lorenzo hesitou um instante, com
os olhos fixos no cofre de ferro.
Se quiser, meus homens podem transportá-lo até o mosteiro. É bastante
pesado
Lorenzo não respondeu. Tomás deu ordens aos criados, que se
afastaram e regressaram instantes depois, trazendo uma grande correia de
couro. Um dos homens, o mais robusto, amarrou-a nas costas. Ali fixaram o
cofre, em cujo interior ouvia-se o barulho do ouro e da prata.
O outro homem pegou uma lanterna. Eles vão se revezar ao longo da
estrada, diz Bilbatua. E estão armados, para o caso de algum encontro
desagradável. Não tenha medo.
Lorenzo começou a descer a escada, seguido pelos dois criados. Não
olhou para trás.
No alto dos degraus estava Tomás Bilbatua, com o documento na mão.
Em voz alta, desejou boa-noite ao convidado e repetiu que aquele papel
seria destruído no mesmo instante em que Inês entrasse pela porta da casa.
Lorenzo saiu sem olhar para trás uma única vez. Na rua, Goya, que o
trouxera na carruagem, estava à sua espera para levá-lo de volta. Quando o
viu, aproximou-se e perguntou como estava. Convidou-o para subir na sua
caleça. Lorenzo ignorou-o e começou a caminhar pela rua, lentamente.
Goya o seguiu, disse que o mosteiro era longe, que sua carruagem e seu
cavalo estavam ali, à disposição do monge. Afirmou que estava
desconsolado, que não podia ter previsto uma cena daquelas, que Bilbatua
estava completamente louco. Disse tudo o que lhe ocorreu dizer, pois
previa que as conseqüências daquele episódio poderiam ser terríveis, até
mesmo para ele.
Lorenzo não respondeu, nem sequer o fitava. Goya parecia ter perdido,
para ele, todo e qualquer tipo de existência. Afastou-se, um pouco
encurvado.
Os dois criados o seguiam. O primeiro avançava dobrado sob o peso do
cofre. O segundo, empunhando a lanterna, encerrava a comitiva.
A vela da lanterna desenhava um círculo de luz. Goya seguiu-o com os
olhos por alguns momentos. Depois, a luz desapareceu no negrume da
noite.
Na manhã seguinte, Lorenzo entrou na cela de Inês. Ela já o esperava,
sabendo que na véspera (ele tinha avisado) havia estado com seus pais, na
casa deles. Impaciente, assim que o viu perguntou notícias do pai, da mãe,
dos irmãos.
Estão bem, disse Lorenzo. O jantar correu bem? Boa comida? Sim, muito
boa, respondeu Lorenzo. De que falaram? De mim? Claro. Só de você. E
então?
Lorenzo, que decidira não dizer nada a Inês, respondeu que estava tudo
bem, que seus pais a amavam muito e que, naturalmente, estavam
preocupados com ela. Mas ele os havia tranqüilizado.
Eu também os amo, disse ela. Muito. Meu pai é um homem
extraordinário. Adoro trabalhar com ele. Conhece o mundo inteiro, tem
amigos em todos os países da Terra e se interessa por tudo. Ele sempre me
surpreende.
Entendo perfeitamente, diz Lorenzo. O que o senhor resolveu? Vou
poder voltar logo para casa? Lorenzo, naturalmente, já esperava essa
pergunta. Mas não sabia como responder. Durante a noite inteira, sem
dormir, com as costas ainda doloridas, tentando recuperar seu espírito frio
e eficaz, ele se perguntara: o que fazer?
A libertação de Inês não dependia dele. A jovem teria que ser julgada
pelo Santo Ofício, isso estava fora de questão. Era impossível evitar, ainda
mais porque ele próprio fora o iniciador desse novo procedimento.
O processo podia levar meses, e Bilbatua havia ameaçado, mais de uma
vez, que não ia esperar muito.
Não seria possível escapar do processo? Sim, certamente, mesmo no
caso de um suspeito que tivesse confessado seus crimes e erros. Na
Inquisição ocorreram alguns casos excepcionais, na verdade muito raros,
no passado. Mas, após uma investigação, seria preciso, além de apoios
muito poderosos, a aprovação do inquisidor geral (um arcebispo) e do
conselho superior do Santo Ofício. Que argumentos Lorenzo podia
empregar? Como dizer que queria abrir mão de tudo aquilo que ele mesmo
tinha defendido? Como esconder dos seus superiores a humilhação da
véspera, o suplício, a confissão absurda? Como reagiria o padre Gregorio ao
saber disso?
Todas estas perguntas o perseguiam. Atrás delas, outra interrogação,
para a qual não via resposta: o que Bilbatua podia fazer? E o que faria?
Pensou em procurar Goya imediatamente e pedir-lhe que se informasse das
intenções do comerciante. Mas Goya o havia traído. Ao chamá-lo para
jantar na casa dos Bilbatua, ele o atraíra para uma armadilha ignóbil e
mesquinha. Intencionalmente, sem dúvida. Lorenzo não podia perdoá-lo.
Bilbatua iria divulgar sua confissão? De que maneira? Será que a
mostraria primeiro ao padre Gregorio? E, nesse caso, Lorenzo não deveria
tomar a iniciativa e confessar tudo ao seu superior direto, espontânea,
confidencialmente, contando com a sua indulgência?
E como seria recebida essa confissão ridícula? Alguém a consideraria
autêntica, sincera? Lorenzo confiava secretamente nesse argumento. As
pessoas de bom senso certamente veriam que se tratava de uma coisa
bizarra, uma brincadeira sórdida, um disparate. Talvez devesse preparar o
caminho, dizer por exemplo: numa noitada com amigos inventamos um
jogo, um concurso de confissões inadmissíveis. Eu disse que era um
macaco, um macaco bastardo ainda por cima. E ganhei o primeiro prêmio.
Aquilo não se sustentava, obviamente. Ninguém iria acreditar que um
homem na posição de Lorenzo se divertiria parodiando os ritos da
Inquisição num jantar entre amigos. Além do mais, a cena tivera
testemunhas, os membros da família Bilbatua, os criados, e Goya.
Não sei quando tudo isso vai terminar, disse a Inês. O mais cedo
possível, espero.
Quero ir embora daqui. E eu quero que você saia. Quero que se
reencontre com a sua família. Se estivesse ao meu alcance, eu a soltaria
hoje mesmo. Acredite.
Apagaria tudo a seu respeito.
Tenho certeza de que pode me ajudar. Sim, vou fazer tudo o que puder,
prometo. Mas se alguém pode ajudá-la, esse é Deus. Ele está acima de todos
os desejos, de todos os obstáculos. Vamos rezar juntos?
Sim... Os dois se ajoelharam lado a lado ao longo do catre, com os rostos
erguidos em direção à cruz, e começaram a rezar, como já tinham feito
várias vezes.
Quando pronunciaram as primeiras frases, a cabeça da menina tombou
sobre o ombro de Lorenzo. Um instante depois, ela se encostava em seu
corpo.
Lorenzo não fez nada para impedir, muito pelo contrário. Tampouco a
afastou. Gostava do contato de sua pele, do cabelo de Inês, aquela doçura
em suas costas ainda machucadas. Inclinou também a cabeça, até tocar na
dela. Um pouco mais tarde, descruzou as mãos e lentamente passou uma
delas em volta da cintura da jovem. Sentiu um breve estremecimento, que
logo se acalmou. As reações de um corpo feminino lhe eram desconhecidas.
Só podiam surpreendê-lo, ou assustá-lo. Como a carne que sentia através
do tecido não parecia querer se afastar, nem se negar, ele a aproximou de
si, com a mão. A carne se abandonou, e até se apertou mais contra ele.
Continuando a rezar, com os olhos fixos no Cristo crucificado, Lorenzo,
muito lúcido, deixou-se arrastar para um abismo imprevisível, delicioso,
cujas profundezas lhe eram invisíveis.
Guardou o cofre num quarto fechado do mosteiro e esperou mais de
uma semana antes de pedir para falar com o padre Gregorio. Agora estão
em companhia de outro monge, que tem o cargo de tesoureiro e conta as
pilhas de moedas arrumadas no cofre. Começou há mais de uma hora.
Conta, torna a contar e escreve as quantias a lápis numa folha de papel
(para poder apagar sem deixar sinais). O padre Gregorio e Lorenzo
esperam pacientemente. O inquisidor principal pede ao outro que repita o
nome do doador, que não conhece. Por fim, o monge tesoureiro anuncia o
total, que é considerável.
É suficiente para restaurar a igreja?, pergunta Gregorio. Mais do que
suficiente, padre. Muito bem. Então podemos começar os trabalhos.
Enquanto isso, guardem tudo com muito cuidado.
E está para se levantar quando Lorenzo lhe diz:
Em contrapartida, há um pedido. Isso é muito comum, diz o padre
Gregorio, voltando à posição anterior. De que se trata, esta vez?
Esse mercador gostaria de reaver sua filha. Filha? Ela está conosco? Sim,
padre. E qual é a situação dela? É acusada? Sim. Qual é a acusação? Prática
clandestina de rituais judaicos. Ah...
Ela tem antepassados judeus longínquos. Qual a idade dela? Dezoito
anos.
O inquisidor reflete alguns segundos e torna a perguntar: Como você
reagiu a esse pedido? Disse que intercederia por ela. Com que argumentos?
Sua juventude, seu desconhecimento da vida, a leveza do delito. Tudo o que
nós sabemos, de fato, é que ela se recusa a comer porco, alegando que não
gosta da carne.
Obtivemos sua confissão? Sím, meu pai. Pelo interrogatório? Pelo
interrogatório comum, sim, meu pai. Toda essa conversa tem como ruído
de fundo o tilintar das moedas de ouro que o padre tesoureiro está
guardando lentamente no cofre. Os olhos do inquisidor principal vão dessa
cascata de riqueza ao rosto sombrio de Lorenzo, que aguarda.
Afinal, diz: Aceitamos esta magnífica doação com um agradecimento
muito humilde, em nome de Jesus e do seu apóstolo, que duvidou da
ressurreição do Senhor antes de tocar nas suas chagas ainda abertas. A
dúvida só é delito quando se transforma em teimosia e obstinação, ou seja,
orgulho.
Do contrário, pode ser uma etapa útil, e até mesmo necessária, no duro
caminho da verdade.
Lorenzo ouve essas boas palavras ciente de que são proferidas, segundo
as técnicas que lhe ensinaram, para ocultar o surdo trabalho de reflexão
que se dá, enquanto fala, no espírito ágil e agudo do diretor. Este acrescenta
que o nome de Tomás Bilbatua será gravado em letras de ouro no interior
da igreja, registrando seu ato de generosidade para sempre.
E a filha?, pergunta Lorenzo. O inquisidor reflete mais alguns segundos
antes de responder:
Quanto à filha, eu mesmo vou rezar pedindo a Nosso Senhor que
interceda em seu favor.
Não podemos dispensá-la? Isso contrariaria todos os nossos princípios,
irmão Lorenzo, você sabe muito bem. E seria ainda mais nefasto porque
esses princípios foram reforçados, recentemente, por sua iniciativa. Se
libertássemos agora essa jovem, que confessou seus erros, isto significaria
pura e simplesmente que nós erramos, que o interrogatório inquisitorial
perdeu sua aliança divina com a verdade. E todos os nossos inimigos se
aproveitariam disso no ato. Tenho certeza de que entende o que estou
dizendo.
Sim, meu pai. O inquisidor observa atentamente Lorenzo, de cabeça
baixa diante dele. Depois põe a mão em seu ombro. Desde que conhece
Lorenzo sente estima por ele, e mesmo admiração. Apesar das diferenças
de origem e de caráter, ou talvez por causa delas, às vezes se sente próximo
dele, desse camponês. Quase se poderia falar de afeto.
Com seu jeito mais discreto, mais reservado, certamente mais brando,
mais flexível, compartilha das fortes convicções do outro e gostaria de vê-
las triunfar - sem ter certeza absoluta de que constituem a via desejada por
Deus, porque nisso concorda com o apóstolo Tomé. Está tocado pelo brio
de Lorenzo, por seu entusiasmo, sua capacidade de trabalho, por essa
mistura surpreendente, e rara, de organização e fervor, embora às vezes
adivinhe, por trás da força aparente e da dedicação do monge, uma
fragilidade secreta, uma aflição mascarada, um tremor indefinível, uma
necessidade de apoio, de conforto, uma angústia próxima. Lorenzo é o filho
que o padre Gregorio gostaria de ter tido.
Ouça, diz ele. Vou lhe dizer uma coisa que já sabe, mas que é bom ter
sempre em mente. Os homens são falíveis. Os indivíduos, você, eu. Somos
vítimas do erro.
Mesmo, e principalmente, quando acreditamos estar com a razão. Não
vou dizer que é o diabo quem nos tenta. Não. O diabo está em nós mesmos.
Chama-se certeza. A certeza pessoal, individual. Está me entendendo,
não?
Sim, meu pai, estou. E no entanto temos necessidade da certeza, porque
sem ela nada podemos. Uma certeza íntima e inabalável que chamamos de
fé. Para superar essa contradição, para lutar contra os perigos da certeza
individual, que nos espreita a todos, é que precisamos da Igreja. Foi para
isso que a estabelecemos.
Nós criamos a nossa mãe. Todos os homens precisam de uma
consciência coletiva, quer no campo da religião, quer no da política.
Precisam de uma consciência que una as contribuições inestimáveis da
tradição com as idéias de hoje, as reflexões mais contemporâneas, como as
de irmãos da sua qualidade, que nos são enviados por Deus. Você me
entende, naturalmente?
Sim, meu pai.
É bem simples, de fato. Todos nós somos falíveis, mas a Igreja sempre
tem razão.
Lorenzo abaixa a cabeça. Submete-se. Naquele dia, pelo menos, seria
inútil ir mais adiante. Capturado na sua própria armadilha, não tem como
insistir.
O irmão tesoureiro acabou de arrumar o tesouro no cofre.
Cumprimenta respeitosamente o padre Gregorio e sai levando o cofre sob o
braço direito, apoiado no quadril.
Tem dificuldade,para caminhar assim.
Depois da sua saída, Lorenzo encara o inquisidor como se estivesse a
ponto de lhe dizer algo, de repente. Poderá esperar um laivo de
compreensão, de caridade, por trás dessas bochechas trêmulas, desses
olhos azuis? A confissão está na ponta da sua língua. Talvez seja a solução:
dizer tudo. Tudo? Não, não conseguiria.
Mesmo que confessasse a idéia louca de Bilbatua, o suplício sofrido e a
confissão extorquida, como falar de Inês e das rezas em comum, quase toda
noite, na cela?
Como contar isso?
Os olhos azuis o observam com limpidez. Estarão adivinhando algum
problema secreto, um pedido de ajuda, palavras que querem sair e são
reprimidas por alguma razão?
É possível. Mas não se fala desses problemas, só às vezes, no
confessionário, de onde nada sai. O inquisidor levanta a mão direita e faz
um gesto de bênção. Lorenzo se persigna. Quando o outro termina de
murmurar a fórmula trinitária (in nomine patris, et filií...), Lorenzo diz o
que deve dizer: Amen. Depois os homens se separam e saem.

Bilbatua esperou quatro semanas. Depois, decidiu dirigirse ao próprio


rei, coisa que Lorenzo não tinha previsto. Para conseguir uma audiência,
enviou para Carlos IV um soberbo fuzil com incrustações de ouro e de prata
que, fabricado na Itália por um príncipe marroquino, passou pelas mãos de
um corsário e acabou sendo comprado pelo mercador no meio de um lote
de mercadorias.
O rei apreciou o presente e recebeu Bilbatua, em companhia de María
Isabel, no começo de outubro, quando se confirmou a queda do rei da
França e a Europa entrava em guerra para extirpar o quanto antes a
Revolução.
O negociante explicou o assunto o mais rápido que pôde (sabia que só
dispunha de meia hora) e mostrou ao rei, e a Godoy, que passou dez
minutos com eles, a folha de papel escrita e assinada por Lorenzo. O rei leu
e caiu na gargalhada. Depois leu o texto, em voz alta, para Godoy, que tinha
outros assuntos na cabeça e não gostava de enveredar pelos sinuosos
caminhos da Inquisição.
Ele realmente escreveu isto?, perguntou o rei a Tomás. Sim, senhor.
Tinha bebido? Estava ébrio? Não, senhor. Estava num estado
completamente normal, porque foi no começo do jantar. Eu simplesmente
queria provar que, submetido ao suplício, até mesmo um homem da Igreja
como ele pode confessar qualquer extravagância.
Cruzamento entre um paichimpanzé e uma mãe orangotango, Ou seja,
um bastardo?
Sim, senhor. Nem sequer um macaco de raça pura?, gritou o rei sem
parar de rir, mostrando o texto à sua esposa. Ele? Um dominicano?
Sim, um membro eminente do Santo Ofício, senhor. E você o submeteu
ao interrogatório? Foi isso? Sim, senhor. Ao interrogatório que chamam de
comum. Durou poucos minutos. Suspenso pelos punhos, com as mãos atrás
das costas. Ele sustentava que a dor leva necessariamente à verdade. Que
os inocentes jamais confessam, porque a graça de Deus está com eles. E
veja só o que confessou.
Foi na sua casa? Sim, senhor. Mas o senhor sabe que não tem o direito
de fazer isso! Sim, eu sei. E pode ser punido. Sim, eu sei. Mas só me permiti
fazer essa afronta, pela qual estou disposto a pedir desculpas e a fazer
penitência, por uma razão muito simples. Vossa Majestade tem à sua frente,
senhor, um pai e uma mãe desesperados. Eles nos tiraram a nossa filha há
vários meses.
A Inquisição? Sim, senhor. E a submeteram ao interrogatório. Ela
também confessou o que quiseram.
Maria Isabel deixou-se cair aos pés do monarca, que como de costume
estava voltando de uma caçada. Os criados, ajoelhados no chão, tiravam
suas botas enlameadas.
Ela conseguiu pegar uma das mãos reais e dizer:
Majestade, eu imploro, use a sua autoridade, devolva-nos, a nossa filha.
Sim, sim, não se preocupem, verei o que posso fazer. Ainda tentaram
falar, contar, comover. Ainda disseram que Inês tinha dezoito anos, que era
impossível que tivesse cometido o delito de que era acusada. Mas os
problemas de Inês e de Lorenzo já haviam saído da cabeça do rei. Ele nem
perguntou de que delito, de que heresia se tratava. Com a mente distante,
repetiu sua promessa, devolveu o documento e despediu-se porque era
hora de comer.
Enquanto saíam do palácio real, Tomás disse à esposa,
confidencialmente, que nada poderiam esperar dele.
Evidentemente, aquele homem não gostava de problemas. Evitava ao
máximo envolver-se em assuntos complexos, que no entanto são o pão de
cada dia dos monarcas. Os conflitos entre as razões de Estado e a simples
justiça, ou com mais razão a moral, passavam bem longe da sua cabeça.
Enxotava esses problemas como moscas irritantes, e os ignorava. Os
complexos procedimentos da Inquisição lhe pareciam impenetráveis, como
mistérios de outra época. Ele era rei para não reinar, atitude que explicava
o poder recentemente adquirido por Manuel Godoy, que aceitava se
encarregar de tudo e até parecia complicar voluntariamente a própria vida.
Casado, também mantinha publicamente uma amante e não abria mão de
uma ou outra aventura passageira. Também diziam que era amante da
rainha, boato que nunca foi provado, mas que, se tinha algum fundamento,
não devia facilitar muito a sua vida de primeiro-ministro.
Nos dias e semanas seguintes, ainda sem notícias da filha, Tomás
Bilbatua e sua esposa pensaram em viajar para Roma e implorar uma
audiência com o Santo Padre.
Como lhes disseram que jamais seriam recebidos para um assunto tão
pessoal, desistiram da viagem.
Em compensação, após uma série de negociações que incluíram o bispo
de Madri, que conhecia Tomás, em novembro chegou às mãos do padre
Gregorio o original da confissão de Lorenzo, com as necessárias
explicações.
Este, ao contrário do rei, leu-a sem rir, várias vezes. Reconheceu a
assinatura, mandou chamar Lorenzo, recebeu-o a sós e perguntou o
significado daquele texto.
Lorenzo foi obrigado a admitir que se tratava de uma confissão, que
realmente ele havia escrito e assinado.
Mas por quê?, perguntou o diretor. Porque fui torturado. Torturado?
Você?
Sim. Ou melhor, submetido ao interrogatório. Foi assim que eles se
expressaram.
Quando? Em que lugar? Na casa de um negociante que me convidou
para jantar. Aconteceu na sala de jantar da sua casa. Eu não desconfiei. Fui
atraído para uma armadilha bem montada.
São as mesmas pessoas que deram o dinheiro para a reforma da igreja?
Sim, meu pai. E Goya estava com eles. O pintor. Aquele a quem você
encomendou seu retrato? Ele mesmo. Então eles o convidaram para jantar,
torturaram-no e você escreveu e assinou este texto?
Lorenzo caiu de joelhos diante do inquisidor principal e implorou
perdão. Estava quase chorando. Escondia os olhos com uma das mãos.
Sou um homem fraco, disse. Eu me julgava forte, mas sou fraco. Sou
mais fraco que uma criança. Nas primeiras dores, cedi. Fizeram-me assinar
qualquer coisa.
Foi por isso que me pediu a libertação da filha deles? Sim, meu pai... Se a
tivéssemos libertado, não teriam divulgado a sua confissão?
Pelo menos foi o que disseram... Sabe que o rei a teve nas mãos? Não.
Não sabia. Parece que riu muito. Mas não fez nada, como de costume.
Eu lhe peço desculpas, meu pai, assim como a Deus. A Deus,
principalmente. O diretor baixou os olhos e impôs o silêncio que era sua
marca. Em poucos minutos seu espírito havia recebido um amontoado de
informações em meio às quais não era fácil situar-se. Era como se, num
pesadelo, tentasse desvendar um emaranhado sem fim, ou ler um livro com
as páginas coladas umas nas outras mas que tivesse que ler mesmo assim.
Justamente Lorenzo. O homem em quem tinha depositado sua
confiança, em quem via seu sucessor, envolvido agora nessa história
idiota... O que fazer? Sem dúvida, graças a Bilbatua, toda Madri ia saber.
Talvez já circulassem cópias da confissão nas barracas, nas redações dos
jornais, nos ministérios, nas tabernas.
Você tem consciência do que fez? Sim, meu pai. Do mal que inflingiu ao
Santo Ofício? E à religião? Sim... Tem alguma outra coisa a me dizer?
Lorenzo levantou os olhos sombrios e encontrou o olhar azul do confessor.
A que, a qual segredo ele fazia alusão? Seria uma referência a Inês, às
orações em comum? A pergunta fora feita por acaso? Era intencional?
Em seus encontros com Inês, Lorenzo havia tomado todas as
precauções possíveis. Será que os muros do mosteiro tinham ouvidos?
Olhos?
O inquisidor insistiu: Deseja que eu o ouça em confissão? O que
significava: quer que eu o escute como um estranho, sem que suas
eventuais confidências exerçam alguma influência sobre a minha decisão,
sobre a minha conduta?
Lorenzo hesitou alguns instantes antes de responder: Não, meu pai, eu
agradeço. Já lhe disse tudo. Muito bem. O diretor levantou-se e anunciou:
Volte para a sua cela. Não saia mais do mosteiro. Dentro de alguns dias lhe
informarei minha decisão.
Lorenzo obedeceu e se retirou.
Fazia vários meses que Francisco Goya vinha sentindo um zumbido nos
ouvidos. Às vezes esses ruídos ficavam muito agudos e doíam, fazendo-o
apertar a cabeça com as duas mãos. Chegava a gritar. Aquilo podia durar
um minuto ou dois, e depois os chiados diminuíam e desapareciam.
Voltavam a intervalos irregulares, não havia como prever. Podia ter três ou
quatro crises no mesmo dia, e depois passar uma semana inteira sem
nenhuma outra.
Consultou vários médicos, entre os quais o que atendia a Corte, e ouviu
diferentes opiniões. Essas crises eram atribuídas, na maior parte das vezes,
ao uso excessivo de ácidos quando imprimia suas gravuras. Respirar os
vapores afetava os ouvidos e o nariz, e certamente também a garganta. Mas
Goya só sentia dor nos ouvidos.
Outros falavam, como sempre, de febres, ou também de inflamação, de
irritação. Ninguém pôde dizer com exatidão do que sofria.
Depois da desagradável noite na casa de Bilbatua, o pintor se manteve
prudentemente afastado, tanto do negociante, que o havia mandado
embora, quanto do dominicano, que certamente o tomava por traidor.
Pelos murmúrios do palácio real, soube que Bilbatua fora mostrar a
confissão de Lorenzo ao soberano, mas essa iniciativa não teve resultados.
Inês continuava presa no mosteiro da Inquisição. Sua sorte ainda estava
nas mãos do Santo Ofício.
Quanto a Lorenzo e às suas relações com a Inquisição, Goya nada sabia e
não procurava se informar. Por inadvertência, estivera presente numa
noitada muito embaraçosa.
Sua habitual prudência havia aumentado. Não falava com ninguém
sobre o que presenciara naquela noite.
Seus assistentes, que o viam preocupado, perguntavam por quê. Ele não
respondia. Meus ouvidos, dizia.
Mandou transportar a tela como retrato eqüestre da rainha María Luisa
para o seu ateliê. Assim, pôde retocar à vontade o traje, a paisagem e até o
pêlo do cavalo - na verdade, com a ajuda de um de seus aprendizes bastante
dotado para peles. Quando considerou que o quadro estava terminado,
convocou seu moldureiro favorito.
Juntos, escolheram uma peça em madeira dourada, digna do modelo.
O moldureiro controlava seus operários, que batiam os últimos pregos.
Goya parecia satisfeito com a moldura. De todo modo, se a rainha e seus
decoradores não gostassem, poderiam trocá-la.
O moldureiro, enquanto o trabalho estava sendo terminado, examinou
por fim o próprio quadro, que não havia olhado de verdade até então.
Piscou os olhos, recuou, tornou a se aproximar. Afinal, disse que nunca
tinha visto a rainha de perto, em pessoa, e que parecia... ele hesitava, não
sabia como dizer. Desajeitada? Pesada?
Masculina?
O que importa, disse Goya é o quadro. Você gosta? Pelo menos o acha
bem pintado?
Bem pintado, sim. Sem a menor dúvida. Você pinta cada vez melhor,
todos sabem. Mas isso não faz da rainha uma bela mulher.
Eu pinto o que vejo. Sei. Mas sendo ela, poderia vê-la diferente. O que
quer dizer? Que deveria adulá-la? É o que os pintores normalmente fazem.
Os outros, pode ser. Eu, não. O moldureiro examinou outra vez a silhueta
maciça da rainha, com seu uniforme de coronel, cavalgando o belo Martial
como se estivesse num desfile. Perguntou:
A rainha já viu? O retrato? Sim. Isto aqui. Não. Apenas os esboços
iniciais. E só: deu uma olhada. Faça o que quiser, mas eu, no seu lugar,
pensaria um pouco mais antes de mostrar a ela.
Está tão feia assim? Você não percebe? Não. Não mesmo. Acredite. O
que vejo é o retrato. A rainha está ali, é ela, todos vão reconhecê-la, não? Se
a embelezar, a coisa vira uma mentira. E a mentira não pode ser bem
pintada. Entende?
O moldureiro respondeu que não entendia muito bem, mas que, de todo
modo, o problema não era seu. E começou a contar a história de um
príncipe austríaco que era baixo, corcunda e caolho. Esse príncipe arrasou
um pintor que tinha ousado representá-lo tal como era, num retrato oficial.
O príncipe encomendou outro retrato, e dessa vez o pintor disfarçou
habilmente a corcunda e o representou da altura de um cavalo, atirando
com o arco ou empunhando um fuzil (o moldureiro não se lembrava bem)
de tal maneira que parecia fechar um olho – o olho que lhe faltava - para
mirar. O príncipe ficou então plenamente satisfeito.
Eu também usei esse tipo de truque, disse Goya. Mas já passei da idade.
Contudo, embora não demonstrasse nada ao moldureiro, estava um
pouco inquieto, sentindo espasmos no estômago. Beliscou um pedaço de
pão seco e duas azeitonas, perguntando: Acha mesmo que eu deveria
esperar um pouco? Se você esperar um ano, disse o moldureiro brincando,
um ano ou dois, ela ficará mais velha no espelho e se achará mais jovem no
seu retrato. Já seria alguma coisa.
Não posso esperar tanto tempo, você sabe muito bem. Além do mais,
veja bem: eu realcei as bochechas com vermelho, afinei o queixo, aumentei
os olhos e, sobretudo, pintei-a de boca fechada.
Por quê? Porque ela quase não tem mais dentes. Quando sorri, a boca é
toda preta. Mandou fabricar um aparelho para colar nas gengivas, mas cai a
toda hora.
Você aumentou os olhos?, perguntou o moldureiro. Sim, observe aqui.
Levantei um pouco as pálpebras. Ninguém vai perceber.
Os dois estavam nessa discussão técnica quando bateram na porta do
ateliê. Um dos assistentes foi abrir. Um pequeno grupo de homens estava lá
fora, dois dominicanos de preto e branco e, atrás deles, três homens de
cinza e marrom que demonstravam claramente, como se exalassem um
mau cheiro, que eram familiares.
Goya, subitamente inquieto, aproximou-se deles perguntando o que
desejavam.
O senhor é Francisco Goya y Lucientes?, perguntou um monge.

Seu criado. Soubemos que pintou um retrato de Lorenzo Casamares.


Exatamente. Está terminado. Podemos vê-lo? Claro. Por aqui. Levou-os para
outro aposento menor, que servia de depósito, e mostrou o retrato, no
chão. Desde a última visita de Lorenzo, várias semanas antes, o quadro, já
emoldurado, estava ali. Goya evitara mandar algum recado ao mosteiro
para não reavivar o caso Bilbatua. Para dizer alguma coisa, informou aos
monges (os familiares tinham ficado ao lado da porta) que a moldura fora
escolhida de comum acordo.
Espero que agrade ao irmão Lorenzo, acrescentou. Não é este o
problema, diz um dos monges. Por quê? Ele não está mais conosco. Como
assim? Não é mais um irmão, não é mais um dos nossos. Ele se desonrou, e
agora está fugindo.
Fugindo? Sim. Há cinco dias. E viemos confiscar seu retrato. Aqui está a
ordem do Santo Ofício.
Sim, sim, claro, diz Goya, sem sequer olhar para o papel que lhe
entregavam.
Podemos então levar? O quadro? Naturalmente. Os monges fizeram um
sinal e os familiares foram apanhar o retrato. O moldureiro, seus operários
e os assistentes de Goya observavam toda a cena com curiosidade.
Um dos monges, aquele que parecia dirigir o pelotão, segurou Goya pelo
braço, arrastou-o para um lado e disse em seu ouvido: Se por acaso ele
entrar em contato, por favor avise-nos de imediato.
Sim, sim, conte comigo. Os três homens de cinza e marrom
atravessaram lentamente o ateliê, levando, na horizontal, o retrato de
Lorenzo Casamares. Goya quis perguntar os motivos e as circunstâncias
dessa desgraça, dessa fuga repentina. O que se sabia? De que maneira?
Desconfiava que aquela decisão tinha a ver com a confissão arrancada
na casa dos Bilbatua, em sua presença. Por ora, parecia que o Santo Ofício
não tinha intenção de chamá-lo. Porque iria se envolver no que não lhe diz
respeito?
Portanto, não disse nada. Alguma coisa parecida com um instinto
sugeria prudência, mesuras e silêncio. Certamente seria melhor, por
enquanto, simplesmente obedecer sem perguntar coisa nenhuma.
Quando o quadro passou pela porta, o olhar pintado - magnificamente
pintado - de Lorenzo fixou-se nele por um instante. Então você vai embora,
pensou Goya. Para onde? Não podia saber.
Mesmo assim disse aos monges, antes de fechar a porta: A propósito, o
retrato ainda não foi pago. Um dos monges apontou para o rosto de
Lorenzo, na tela, e respondeu sem rir:
Nós lembraremos isso a ele, se o encontrarmos.

Janeiro de 1793. O retrato da rainha María Luisa foi levado ao palácio


real. Está terminado, coberto por um pano num dos salões, à espera da
inspeção real.
Carlos IV e sua mulher chegam, acompanhados do séquito habitual,
cumprimentam Goya distraidamente e sentam-se nas cadeiras preparadas
para eles. Seu filho Ferdinando não veio. Manuel Godoy também está
ausente. Tinha coisas a resolver fora de Madri.
Quando estão todos sentados, Goya faz um sinal e seus assistentes
deixam cair o pano. A obra aparece, envernizada e emoldurada. Todos
olham.
Goya busca alguma reação nos rostos dos soberanos, mas não vê nada,
nem satisfação, nem desagrado. Nem sequer um gesto de surpresa, um
movimento com a cabeça, alguma careta. Nenhum sorriso. Parece que estão
diante de uma tela branca, não vêem nada.
Ficam silenciosos, imóveis, durante quarenta ou cinqüenta segundos. O
próprio Goya, que está em pé ao lado da tela, não sabe o que dizer, o que
fazer. Não tem coragem de perguntar nada. Espera.
A rainha se levanta primeiro, sem dizer uma palavra, e o rei a imita logo
depois. Saem do salão sem sequer olhar para o pintor, arrastando todos os
outros atrás de si. O som dos seus passos se distancia. Uma porta se fecha.
Nada mais.
Goya fica sozinho com seus dois assistentes. Está perplexo, até mesmo
inquieto. É a primeira vez que se defronta com uma reação como aquela.
Terão gostado do quadro?
Ou será que, pelo contrário, ele acaba de perder seu cargo e sua pensão?
É difícil dar um sentido a certos silêncios.
Pergunta aos assistentes o que pensar disso. Eles não têm a menor
idéia. Erguem os ombros. A sorte deles também está em jogo. Se Goya
perder as encomendas da Corte terá que reduzir drasticamente o seu
pessoal. Eles sabem disso.
Sentam-se, desanimados, na ponta do tablado onde o quadro está
exposto. A imagem eqüestre da rainha, cavalgando Martial, domina a cena.
Poderiam ter dito alguma coisa, murmura um dos assistentes.
Todo esse trabalho para nada, acrescenta o outro. O que fazemos
agora?, pergunta Goya. Deixamos o quadro aqui ou o levamos?
Eles não sabem responder. Ficam ali, de mãos abanando. Talvez seja
necessário dar uns retoques, diz um assistente. E Goya responde: Faça isso
você. Não eu. Nesse momento uma porta se abre, aparece um camarista e
diz a Goya que o rei quer vê-lo imediatamente, nos seus aposentos
privados.
Goya se levanta, olha para os seus homens, que parecem desejar-lhe boa
sorte, e segue o camarista. Através dos corredores, é conduzido até uma
pequena porta, que o ajudante abre para deixá-lo entrar.
Agora se encontra no escritório particular do rei, e está sozinho. Nunca
havia entrado nesse aposento, que é um dos centros do mundo. É daqui,
desta escrivaninha Luís XV, que partem, a princípio, as instruções que serão
acatadas por povos distantes e submetidos, cujos nomes o rei nem conhece.
É nesse tinteiro que o rei molha sua pena para decidir destinos longínquos.
Goya observa o quarto vazio.
Que destinos, que decisões? Pode-se perguntar. Embora às vezes receba
o embaixador dos Estados Unidos, ele não sabe quase nada sobre esse novo
país. Estranha indiferença, quando se recorda que seu pai, Carlos III,
enviara tropas, junto com os franceses, para apoiar Washington e os
insurgentes.
Uma porta lateral se abre e o rei aparece. O camarista torna a fechar a
porta e desaparece. O rei faz um gesto na direção de uma banqueta forrada
de tapeçaria, pedindo a Goya que se sente.
Goya hesita, depois obedece. Ele não pode ver que, atrás da porta, três
ou quatro cortesãos estão em volta do camarista, tentando ouvir o que vai
ser dito.
O rei vai até uma escrivaninha e tira um estojo de violino.
Goya, surpreso, acompanha a cena com os olhos. O rei empunha o
violino, afina-o um pouco, prende o instrumento embaixo do queixo,
respira fundo e, em pé, começa a tocar.
Goya, sentado na banqueta, observa o rei da Espanha tocando violino
para ele.
Nesse mesmo instante, um cavaleiro todo empoeirado, com a barba
crescida e a roupa rasgada em vários lugares, pula da montaria e se dirige
quase correndo para o palácio real. Mostra um papel aos guardas.
Permitem que entre sem delongas. Ao entrar, faz um gesto pedindo para
cuidarem do seu cavalo, que está extenuado.
Sobe aos pulos a escada principal, pergunta o caminho. Precisa ver o rei,
traz uma mensagem, uma mensagem urgente. Está há seis dias na estrada,
quase sem dormir.
É levado aos aposentos privados, o camarista bate na porta do
escritório.
Mais tarde!, diz a voz do rei, lá dentro. O homem é obrigado a esperar.
Está sem fôlego e cheira a suor.
No interior, o rei continua tocando. Toca durante cinco ou seis minutos,
ante os olhos estupefatos do pintor. Depois pergunta: Gostou? Muito,
senhor, responde Goya. Está falando sinceramente, pelo menos? Com toda a
sinceridade. Eu estava muito emocionado. Ainda estou.
Novas batidas na porta. O rei grita outra vez: Mais tarde!, e pergunta a
Goya, com um ligeiro sorriso: Sabe quem compôs esta peça? Não,
majestade. Não sei. Haendel, talvez? Ou Mozart? Não, não. Fui eu. Vossa
majestade? Sím, eu. Na semana passada. Parabéns, majestade. Achei
extraordinário, realmente. Bem cadenciado, bem... e realmente bem tocado,
embora eu não seja lá um juiz muito bom.
Bem tocado, Mas sei, diz o rei. Mas tem alguma coisa, não é? Algo que
poderia... Bem, é preciso ver o que um virtuoso faria com isso.
Mais batidas na porta, e dessa vez o rei grita: Sim, entre! Entre! A porta
é aberta e o mensageiro entra no quarto. Diante do rei, pousa um joelho no
solo e diz:
Majestade, venho de Paris... Guilhotinaram o rei da França. O homem
entrega ao rei Carlos uma carta lacrada, sem dúvida da embaixada
espanhola na França. O rei, ainda com o violino na mão, está chocado
demais para pegar a carta. Não sabe o que dizer:
O rei da França? Sim, Majestade. Foi julgado e cortaram sua cabeça em
público. Há seis dias.
Meu primo Luís?, indaga o soberano. O mensageiro se levanta e sai.
Entrega a carta ao camarista, que a repassará ao rei. Mas o essencial foi
dito. O rei, que parece tomado por uma ligeira comoção, guarda o violino no
estojo. Depois fecha o estojo e o guarda na escrivaninha.
Agora vai até a porta, certamente para falar com a rainha ou um
ministro. Os cortesãos curiosos que estavam agrupados no umbral se
afastam para deixar passar o soberano, que avança entre eles a passos
lentos, como se estivesse numa espécie de
sonho. O camarista lhe entrega, quando passa, a carta lacrada. O rei a
apanha maquinalmente e a leva consigo.
Antes de desaparecer, como se de repente lembrasse de alguma coisa,
vira-se para Goya e diz:
A rainha e eu gostamos muito do quadro. Você é realmente um grande
artista.
Depois de empregar o tempo necessário para fazer uma boa reflexão, e
pedir a ajuda de Deus, o inquisidor principal decidiu afastar Lorenzo não só
do Santo Ofício, mas da ordem dos dominicanos. Não o fez com alegria no
coração, porque a presença de Lorenzo lhe era preciosa. De certa maneira,
dera a ele plenos poderes em Madri, na nova cruzada da Inquisição contra o
declínio moral da Espanha. O grotesco fracasso do seu protegido também
podia ser o seu fracasso. Além do mais, tinha que tomar medidas firmes,
sem se deixar levar pelo sentimento, pela indulgência.
Chegou a pensar, durante alguns dias, em pedir a Roma uma medida de
excomunhão, que teria expulsado Lorenzo da própria Igreja, impedindo-o
para sempre de dar e, sobretudo, receber sacramentos. Depois desistiu. É
inútil, deve ter pensado. Lorenzo não era homem de se converter ao islã ou
a nenhuma outra crença. Continuaria sendo, no fundo de si mesmo, cristão.
Por que privá-lo do único consolo que lhe restava?
Convocou Lorenzo para uma última entrevista e falou da imagem
deplorável da Inquisição e da Ordem que ele dera, particularmente ante os
olhos do rei, concluindo que ele devia abandonar o hábito branco e preto.
Lorenzo perguntou se poderia sair da Espanha e instalarse, na
qualidade de dominicano e de pregador, em alguma terra longínqua onde
seu erro não o houvesse precedido.
O padre Gregorio recusou. Disse que havia perdido toda a confiança
nele, que não podia mais entregar-lhe uma missão nem nenhuma outra
coisa.
Vamos aguardar as medidas disciplinares necessárias, disse, e depois
você deixará este mosteiro para sempre. O hábito dos dominicanos lhe será
proibido, e sugiro que mude de nome. Daqui por diante, o que fizer da sua
vida só pertence a você. Volte para a cela e não saia até a chegada dos
papéis. Não quero, principalmente, que seja visto na cidade.
Lorenzo baixou a cabeça e obedeceu. Contou a Inês, mas com meias-
palavras. Só pôde vê-la uma vez, durante alguns instantes. Disse que ia
partir, fazer uma viagem longa e imprevisível. Aonde iria? Ainda não sabia.
Ela implorou que a levasse. Seria impossível passar pela porta da cela,
pelos muros do mosteiro, respondeu. Devia esperar pacientemente o seu
julgamento. Até lá, não poderia mais vê-la, nem falar com ela. Também
estava sendo vigiado, nos próximos dias ficaria recluso.
Mas como vou poder viver sem você?, dizia ela. O que faço aqui,
sozinha? Ele não sabia responder.
No dia seguinte, Lorenzo conseguiu fugir no meio da noite. Mais tarde, o
padre tesoureiro disse que antes de ir ele tinha roubado alguns escudos do
cofre de Bilbatua, mas isso nunca foi provado. Sem fazer barulho, juntou
pedaços de lenha no pátio do mosteiro, construiu em silêncio uma espécie
de andaime, subiu o muro e pulou.
Nesse ponto, o muro tinha mais de quatro metros de altura. Lorenzo
machucou o tornozelo esquerdo ao tocar no chão e se afastou mancando.
Por isso foi declarado fugitivo, como os monges disseram a Goia quando
foram buscar o retrato. Por causa da sua fuga, um ato de desobediência
flagrante, que nada podia justificar, foi decidido que seria queimado em
efígie.
Isso aconteceu num canto da Plaza Mayor, no centro de Madri. Nada de
grandioso: alguns soldados tocando tambor ao lado de um pequeno
estrado, trinta ou quarenta curiosos. Dois dominicanos, os mesmos que
estiveram na casa de Goya, subiram o estrado com a tela, cuja moldura
haviam retirado. Um deles desenrolou um pergaminho e leu um texto
bastante pomposo, redigido num castelhano antigo. Assim como a imagem
deste homem, um pecador miserável, renegado e ímpio, irá se dissolver e
desaparecer na fumaça, dizia mais ou menos o texto, que sua lembrança
também possa ser apagada e desaparecer para sempre da memória dos
homens. A partir desse dia, quem pronunciar seu nome ou evocar sua
pessoa será condenado às chamas da eterna danação. Que Deus, a quem
nada escapa, possa persegui-lo e castigá-lo em qualquer lugar em que se
encontre.
In nomine patrís, et filíi et spiritus sancti. Amen, responderam os
espectadores. O monge mais jovem encostou uma tocha acesa no retrato.
Bastaram alguns segundos para as chamas passarem para a tela.
O padre Gregorio não compareceu ao evento. Não queria dar, com a sua
presença, muita importância à coisa. Uma simples rotina, no fundo. Um
acidente sem importância.
O essencial era não dizer por que a imagem estava sendo queimada.
Em compensação, envolto numa capa escura, com um enorme chapéu
na cabeça, Goya estava lá, no meio do grupo de curiosos. Como sempre que
andava pelas ruas da cidade, levara um caderno de esboços, onde rabiscava
sua matéria-prima.
Nesse dia deixou o caderno no bolso. Ficou ali, vendo uma das suas
obras entregue às chamas. E pensava: pelo menos não pintei as mãos, é
sempre assim.
Uma dor violenta lhe atravessou o ouvido direito. Pôs a mão na orelha,
quis gritar. A dor passou rapidamente.
Os tambores batiam. O quadro ardia diante de todos, enquanto os dois
dominicanos cantavam alguma coisa em latim, certamente uma maldição.
Em poucos minutos tudo estava acabado. O rosto de Lorenzo foi consumido
pelas chamas no final. Goya viu queimar primeiro o queixo, depois os
lábios, os pômulos, a base do nariz. Lembrava de todas as pinceladas que
dera, as hesitações, os retoques. Por fim, viu arderem os olhos sombrios,
mas mesmo assim vivos, que tanto esforço lhe custaram, e que se
extinguiam ao fogo.
Quando os monges terminaram as orações, os curiosos se retiraram, já
falando de outra coisa. Goya ficou mais um pouco, vendo os soldados
limparem o estrado para desmontá-lo, e depois saiu lentamente pela praça,
com uma das mãos no ouvido.
No mesmo momento, longe de Madri, Lorenzo seguia a pé por um
caminho de terra, vestido como um camponês. Levava uma sacola
amarrada nas costas e se apoiava num bastão grosso, porque ainda estava
mancando. Parecia não sentir o vento frio. Havia amarrado um pano em
volta do tornozelo dolorido.
Dirigia-se aos Pirineus.
PARTE II

O ano de 1793, que começou com a execução do rei da França, no mês


de janeiro, seria decisivo para a sorte da Europa. Cercada, isolada,
dilacerada pelas resistências internas, a França revolucionária parecia
perdida.
A morte pública do rei acabava de destruir brutalmente a imagem
sagrada da realeza, tirando-a do céu, onde alegava ter sua origem. A
guilhotina cortava o mundo em dois: o antes e o depois. Um rei era agora
um indivíduo comum, que os representantes do povo podiam julgar e
condenar como qualquer outro malfeitor. Sua cabeça caía, e a vida
continuava.
Levando ao extremo a lógica revolucionária, que anunciava o
nascimento de um novo mundo, o governo francês decidiu também abolir o
antigo calendário, baseado na data fictícia do nascimento de Cristo, para
dar início a uma nova era em 1792. Trocaram o nome dos dias, dos meses, a
semana bíblica tornou-se uma década e os franceses, por decreto,
começaram uma nova contagem a partir do ano I da República.
A monarquia tradicional havia claramente desaparecido. Outros tempos
se abriam.
Para resistir às invasões estrangeiras, naquele ano a Convenção
nacional decretou a pátria em perigo e ordenou uma convocação militar em
massa. Um Exército jovem e popular foi constituído em poucos meses, num
impulso novo que as guerras do Antigo Regime, decididas pelos príncipes
para defender seus próprios interesses, jamais conheceram. O Exército
tornava-se patriótico, defendia espontaneamente o território dos seus
antepassados, os soldados inventavam novas canções em que se diziam
dispostos a morrer. Nos campos de batalha provavam isso.
A França, nesse mesmo ano, não satisfeita em resistir à coalizão dos reis
europeus, declarou guerra à Espanha, com a intenção declarada de libertar
esse país irmão da tirania que o governava há séculos. A Espanha, bem
protegida pelos Pirineus, fez algumas incursões no território francês e
tomou várias aldeias, que foram reconquistadas. Tudo terminou com a paz
de Bâle, em 1795. De fato, desde o começo da Revolução Francesa, Carlos
IV, profundamente pacífico, havia-se recusado a
ajudar seu primo Luís XVI, como se quisesse manter-se afastado da
Europa.
A convocação em massa e os consideráveis recrutamentos, somados à
perseguição sistemática aos emblemas religiosos e à queima de igrejas, aos
maus-tratos dispensados aos religiosos considerados refratários, que se
recusavam a assinar a constituição civil do clero e viviam muitas vezes na
clandestinidade, levaram muitas províncias do oeste da França a se
revoltar. Explodiu uma verdadeira guerra, que ficou conhecida como a
guerra de Vendée.
Aos olhos dos observadores europeus, atacada no exterior e dilacerada
no interior, surpreendida, desorganizada, a França podia ser vencida e
desmantelada rapidamente. Seguindo os velhos costumes da guerra, nas
antecâmaras já se dividiam os despojos. Entretanto, o arrojo dos jovens
generais ao renovar as práticas militares habituais, o ardor das tropas, um
entusiasmo patriótico, exaltado pela idéia de nação, que os velhos tempos
raramente conheceram, e nunca com tanto vigor, além de uma absoluta
severidade dos governantes, permitiram que a França resistisse, e até
mesmo vencesse.
A mais célebre das medidas adotadas pelo Comitê de Saúde Pública,
que, em situação de emergência, havia assumido poderes plenos, foi a que
se chamou oficialmente de Terror, decretado a partir de setembro de 1793.
Todo suspeito podia ser detido, julgado por um tribunal sumário e
mandado para o cadafalso. A ex-rainha Maria Antonieta, filha de Maria
Teresa da Áustria, foi uma das vítimas.
Esse Terror durou nove meses. Embora o número de mortes tenha sido
limitado (menos de três mil), muito inferior ao das vítimas, alguns anos
mais tarde, da contra-Revolução, esse terror oficial, institucional, abalou os
espíritos para sempre. Na história do mundo nada havia sido semelhante.
Deputados eleitos chegavam a considerar o terror, ou seja, a violência e a
morte, como princípio e método de governo, o que supunha um controle
autoritário e impiedoso da justiça. Havia bons motivos para descrer, e por
longo tempo, do governo do povo pelo povo, da democracia. Na Espanha,
assim como em todos os países europeus, e mesmo fora da Europa, a
guilhotina que certos franceses ousavam usar na lapela, como um
ameaçador brochinho de ouro - tornou-se um símbolo temível dos novos
tempos. Ocupando o lugar da cruz de Cristo, esse novo instrumento de
suplício se identificava com a Revolução. Era o seu símbolo e o seu altar.
A França vivia em estado de alerta. Os deputados, enquanto
desenvolviam um intenso trabalho legislativo na Convenção, mandavam
instalar catres de campanha nos corredores da assembléia. Quando se
sentiam esgotados jogavam-se ali de roupa e tudo, para ter algumas horas
de repouso. Comissários da República percorriam incansavelmente as
províncias, lutavam contra a reação e discursavam para as tropas,
enquanto uma nova classe de fabricantes e comerciantes, que ainda não
eram chamados de burgueses, fazia fortuna com os suprimentos do
Exército e pouco a pouco se aproximava do poder.
Mas o preço de tudo isso era elevado: ordens autoritárias de todo tipo,
penúria, restrições, inflação, delações, vigilância policial incessante. E a
revolução, impulsionada por um vento furioso, irresistível, devorava seus
próprios filhos, e até mesmo seus próprios líderes. Marat foi assassinado a
facadas nesse mesmo ano, em sua banheira, por uma jovem chamada
Charlotte Corday. Danton, Camille Desmoulins, Hébert, líderes de
multidões, foram enviados nos anos seguintes à guilhotina, que eles
mesmos haviam alimentado. Depois de uma tentativa malsucedida, em
junho, de instaurar um culto ao Ser supremo durante uma cerimônia que
pretendiam grandiosa e que foi ridícula, Robespierre, Saint-Just e seus
amigos tiveram a mesma sorte no / mês de julho. A França, aliviada da
ameaça externa, agora se livrava daqueles que a haviam aterrorizado e
salvado.
Nos anos seguintes, período que é chamado de Diretório, o Terror foi
abolido e a França, que já respirava, voltou a uma vida aparentemente mais
regular, mais calma.
O maior problema, como sempre acontece depois de uma crise grave,
era reconciliar as diversas frações da sociedade, que tinham acabado de se
dilacerar durante cinco anos. A nobreza, em grande parte emigrada,
sonhava retornar, reconquistar seus privilégios e até mesmo, em alguns
casos, apagando a história, recolocar um rei no trono. Outros, que tinham
participado da Primeira República, não admitiam o menor recuo e faziam
questão de preservar as conquistas, pelo menos legislativas, da Revolução.
Os burgueses enriquecidos, que adquiriram os bens do clero postos à venda
pelas sucessivas assembléias, não queriam ouvir falar de restituí-los.
Constituíam uma classe poderosa, organizada, apoiada pelos melhores
juristas. Não estavam mais dispostos a obedecer em silêncio.
O próprio clero, dividido, desejava, em sua maioria, um acordo entre o
Estado e a Igreja, baseado em concessões recíprocas. Quanto ao povo, após
anos de desordens, sustos e batalhas, só queria, como todos os povos, viver
em paz.
Nesses anos, um jovem general corso de cabeleira longa e lisa chamado
Napoleão Bonaparte, que aparecera com a Revolução, começou a tornar-se
conhecido. Já se distinguira em 1793 como simples capitão de artilharia no
sítio de Toulon, contra os ingleses. Em 1794, participou da primeira
campanha na Itália, como general-de-brigada.
Após um curto período de desgraça, reprimiu duramente em Paris um
levante monarquista. Em 1796, já nomeado general-em-chefe, em poucas
semanas libertou a Itália da ocupação austríaca.
Toda a Europa só falava dele. Enviado a uma expedição ao Egito, em
1798 (sem dúvida para afastá-lo da França), regressou rapidamente
quando sua frota foi destruída em Aboukir. Entendeu que no Oriente seus
sucessos não tinham nada de definitivo, e que seus homens cansados não o
seguiriam até a Ásia, aonde tencionava ir, para chegar mais longe que
Alexandre.
Escolhei]. Paris. Voltando à capital francesa, foi cúmplice de um rápido
golpe de Estado e membro, com o título de Primeiro Cônsul, de um
triunvirato encarregado de governar o país. Depois, foi cônsul vitalício. O
povo via nele um vencedor nato, um herói exemplar surgido do povo por
um processo legal, e também o único homem capaz de reconciliar os
franceses. Por outro lado, após prolongadas e difíceis negociações, assinou
com o papa Pio VI, em 1801, uma Concordata que permaneceria válida
durante mais de um século.
Naqueles primeiros anos do século XIX, a França recuperava um
equilíbrio e uma alegria de viver que parecia ter perdido. O escritor
Chateaubriand, ao voltar da Inglaterra em 1800, após sete anos de exílio,
escreveu que esperava encontrar ruínas sangrentas e trágicas, mas tudo o
que via eram bailes populares. As pessoas dançavam, inauguravam-se
teatros eróticos, as mulheres mostravam os decotes, e o romantismo
sombrio, amante de noites e de tempestades, era gestado no segredo das
festas.
A Napoleão Bonaparte, o grande senhor dessa euforia, restava apenas
ser coroado imperador. A dignidade imperial lhe foi concedida pelo Senado,
que não podia fazer outra coisa, e ele coroou a si mesmo na igreja de Notre-
Dame de Paris, na presença do papa, que viajou especialmente para a
ocasião, em maio de 1804.
Entre a tomada da Bastilha e a coroação de Napoleão, menos de quinze
anos se passaram. Poucas vezes a história dos povos tinha visto aceleração
como essa. Todas as repercussões desses acontecimentos foram sentidas
na Espanha, que continuava majoritariamente fiel ao rei, embora ele
próprio não parecesse decidido a sair da sua apatia. A situação econômica
do país melhorava lentamente, boas estradas -ligavam as províncias, abria-
se o canal de Aragão, portos como Barcelona e Cádiz (cidade que tinha
suplantado Sevilha, muito afastada do mar) cresciam para receber um
tráfego marítimo cada vez mais denso e navios de maior tonelagem. O rei,
na ausência de todo movimento insurrecional, não via por que se sacrificar
diante das modas revolucionárias e atenuar a rigidez da monarquia.
Chegou a fazer uma aliança com o governo francês do Diretório, o que
deixou a Espanha, ipsofacto, no campo dos inimigos da Inglaterra, rival
irredutível da França.
Napoleão, coroado imperador, queria usar esse tratado para fazer a
Espanha entrar na guerra ao seu lado, em 1804, e reforçar o bloco
continental, cuja intenção era fechar os portos europeus ao comércio
inglês.
Contudo, a frota franco-espanhola foi destruída em 1805 pela esquadra
inglesa comandada pelo almirante Nelson, na batalha de Trafalgar, que
aniquilou os planos de Napoleão por esses lados. Era a hora de punir
Portugal, que se recusara a juntar-se ao bloco, desmembrando o país: um
terço para a França, um terço para a Espanha - que recuperaria assim
territórios perdidos no século XVII - e um terço para o todo-poderoso,
riquíssimo e habilíssimo Manuel Godoy, que tinha nas mãos o poder, ou
seja, o casal real, desde 1792, e que, com a partilha de Portugal, tornar-se-ia
príncipe do Algarve.
No entanto, como nos romances noírs, também chamados góticos, que
faziam sucesso na época (os revolucionários franceses eram grandes
leitores desses livros), uma conspiração se tramava nas sombras, obra do
próprio filho de Carlos IV, Ferdinando. Espírito limitado e violento, aos
vinte e três anos propôs-se, empurrado pelos conservadores mais
intransigentes, a tomar o poder com um golpe de força e assassinar Godoy,
mesmo se para isso precisasse matar seu pai e sua mãe, com veneno, que é
o assassino dos reis.
A conspiração foi descoberta. Um bilhete misterioso, ao que parece,
alertou Carlos IV, que um dia entrou de repente nos aposentos do filho e
encontrou papéis comprometedores.
Escreveu imediatamente a Napoleão, que a essa altura era o seu ídolo,
ao qual chamava de senhor meu irmão, contando o horrível complô que
acabava de descobrir.
E mandou prender seu filho em casa, esse filho que o povo de Madri,
por conhecê-lo pouco, começava a chamar de El deseado, o desejado.
Em virtude de acordos anteriores, tropas francesas, na verdade mais
numerosas que o previsto, entraram na Espanha. A princípio, sob as ordens
do capitão Murat, deviam chegar até Portugal. Ocuparam as cidades de
Pamplona e Barcelona, sem manifestar a menor intenção de abandoná-las
algum dia.
O rei e a rainha ficaram receosos, quiseram fugir, por Cádiz, para as
Américas (pela primeira vez um soberano espanhol iria atravessar o
Atlântico). Godoy e sua Amante Josefa, Todos participariam da viagem.
Toda a aventura acabou, quase como uma farsa, em Aranjuez, ao sul de
Madri. Partidários de Ferdinando se sublevaram e prenderam Godoy, que
tentou se esconder num tapete enrolado ou sob uma pilha de esteiras,
dependendo da versão. Carlos IV se apressou a destituí-lo, mas era tarde
demais. Ferdinando, libertado por seus partidários, obrigou o pai a abdicar
em seu favor e adotou o nome de Ferdinando VI.
Isso ocorreu no dia 19 de março de 1808. Carlos IV não era mais rei da
Espanha.
Quatro dias depois, Murat entrou com seu exército em Madri. Muito
concentrado em ver o efeito que seus uniformes extravagantes produziam
nos madrilenos, o arrogante cavalheiro desprezou os sentimentos destes.
Julgou ser bem-vindo, mas não o era. Em contrapartida, os habitantes
dispensaram uma florida recepção ao deseado quando este chegou a Madri.
Estenderam capas aos seus pés. Mas, assim que Ferdinando VI assumiu o
poder, recebeu uma carta de Napoleão solicitando a honra de sua presença
em um encontro, que devia acontecer num castelo perto de Baiona.
Um encontro com Napoleão, então no auge do poder, não podia ser
recusado. Apesar dos conselhos que recebeu, apesar da resistência dos
habitantes de Vitória que chegaram a ponto de cortar os arreios da sua
atrelagem para impedi-lo de prosseguir, Ferdinando, convencido por Murat
e tranqüilizado pelos emissários franceses, atravessou o Bidassoa no dia 20
de abril, jogando-se ele mesmo na armadilha francesa. Continuou até
Baiona.
Por outro canal, Napoleão havia convidado para esse mesmo encontro o
rei deposto, Carlos IV, e a rainha, com seu inseparável Godoy. Carlos IV
considerava Napoleão seu amigo, seu aliado, e certamente tinha razão. De
fato, durante esse encontro, Napoleão, que se mostrou rápido e preciso,
disse claramente a Ferdinando que devia devolver o trono da Espanha ao
legítimo rei, isto é, ao seu pai, sob pena de ser acusado de traição e julgado.
Ferdinando respondeu que os espanhóis queriam a ele e não ao pai, e
que tinham acabado de demonstrar isso claramente. O tom subiu. Segundo
alguns, Carlos deu uma chicotada no filho, algo difícil de acreditar, e sua
mãe (parece) o chamou de bastardo. Napoleão então mandou Ferdinando
se retirar, e um pouco mais tarde este assinou, diante das ameaças, sua
abdicação.
Napoleão decidiu - o que era relativamente fácil, dada a qualidade de
seus interlocutores - afirmar e demonstrar que podia ser o salvador da
Espanha. Ele, e mais ninguém no mundo inteiro. Fez Carlos IV entender que
um reino da importância da Espanha não podia ser confiado nem a
Ferdinando, que havia provado sua cruel duplicidade, nem ao pai, que
mostrara sua fraqueza ao abdicar e perdera a popularidade.
Carlos admitiu isso, o que pode parecer extraordinário. E assinou
pessoalmente, no dia 5 de maio, o tratado que ficouconhecido como
Tratado de Baiona. A Espanha não teria mais rei.
Diante desse vazio real que ele mesmo tinha provocado
deliberadamente, Napoleão fez uma declaração que ficou famosa, na qual,
entre outras coisas, proclamava aos espanhóis: Sua nação periclitava: eu vi
suas mazelas, vou trazer-lhes o remédio. Quero que os seus descendentes
mais longínquos se lembrem de mim e digam: Ele foi o regenerador da
nossa pátria.
E acrescentava, dirigindo-se ao próprio círculo, aos seus generais, que
se encarregavam de repetir imediatamente suas palavras, que a campanha
seria de uma facilidade pueril, que eles nem precisariam lutar, porque os
espanhóis detestavam aqueles soberanos, que nem sequer eram espanhóis,
e só esperavam uma oportunidade para romper as correntes que os
prendiam, enquanto os soldados franceses seriam recebidos de braços
abertos, com flores e beijos das moças, como libertadores, como irmãos.
E talvez julgasse ser essa de fato a verdade.
Quanto a Ferdinando, fingiu que se submetia. Enquanto isso, em Madri,
algo havia acontecido. No primeiro dia do mês, o esplendoroso Murat e seu
Estado-Maior foram vaiados pela multidão ao sair da missa. Os madrilenos
acabavam de saber que, por ordem de Carlos IV, - mas todos viam
claramente, por trás, a mão opressiva de Napoleão, que acabava de cometer
seu primeiro erro decisivo -, os dois jovens irmãos de Ferdinando e seu tio
também seriam levados a Baiona. Assim, segundo os desejos de Napoleão,
não restaria um único Bourbon na península.
A partir de incidentes até hoje obscuros, no dia 2 de maio o povo de
Madri se sublevou contra a ocupação francesa. A batalha nas ruas durou o
dia todo e a noite toda. Murat contra-atacou e, já no dia seguinte, organizou
a repressão, que seguiu o triste padrão: tribunais de exceção e execuções.
Todo espanhol surpreendido de armas na mão, ainda que fosse uma faca de
açougue, seria fuzilado. Foram mais de quatrocentos os que encontraram a
morte, em diversos pontos da capital. Murat, que do ponto de vista militar
se considerava vencedor, escreveu, com um orgulho estúpido, que aquela
jornada fatal dera a Espanha ao Imperador.
Quando as notícias chegaram a Baiona, Carlos IV, ainda submetido a
Napoleão, explodiu e acusou seu filho Ferdinando de todas as desgraças do
país. O filho respondeu, inflamado: nova briga.
O que fazer? Napoleão meditou, mas pode-se supor que sua decisão já
estava tomada, uma decisão que iria lamentar mais tarde, quando falou, já
prisioneiro em Santa Helena, da infeliz guerra da Espanha... uma verdadeira
praga... que marcou o começo da sua queda.
Na verdade, como escreveu Chateaubriand, a essa altura Napoleão se
havia apoderado de Napoleão: Nele não existia nada mais que ele.
Anunciou em Baiona que em sua declarada intenção de salvar a Espanha,
que aliás não esperava outra coisa, ele não podia assumir pessoalmente a
direção efetiva do país. Ocupações demais, viagens demais, guerras demais.
Mas seu irmão José, um ano mais velho que ele, rei de Nápoles desde 1806,
certamente aceitaria o trono, caso o povo espanhol manifestasse esse
desejo. Uma delegação espanhola que nada tinha de espontânea chegou
inopinadamente de Madri, declarando que José seria bem-vindo ao trono
de Carlos IV.
Tudo foi acertado na hora. No dia 2 de maio, Napoleão escreveu ao
irmão que uma coroa estava à sua espera, e não das menores (pois não se
tratava só da Espanha, mas de todos os territórios hispânicos da América).
Você receberá esta carta no dia 19, escreveu. Deve partir no dia 20. José
obedeceu e deixou Nápoles no dia 20 de maio ou, segundo alguns, no dia
21.
Assim que entrou na Espanha, um pouco a contragosto, foi tomado por
tristes pressentimentos. Aquela coroa inesperada já lhe pesava como um
fardo incômodo.
Levava a Madri, onde chegou no dia 20 de junho, o projeto de uma nova
constituição, de tendência liberal, e reformas sociais. Ninguém foi recebê-lo
nas ruas, que ficaram desertas. Uma das raras cartas de congratulações que
lhe chegaram foi escrita pelo próprio Ferdinando, que por ora se humilhava
diante dos novos senhores.
Alguns espanhóis afrancesados receberam José como um libertador;
outros, mais numerosos, como um usurpador, um mero fantoche. Uma
assembléia de notáveis, cuidadosamente escolhidos, votou a constituição,
mas o povo, depois das execuções de 3 de maio, não podia aceitar um rei
francês, por mais que Napoleão o tivesse chamado, na sua proclamação, de
outro eu mesmo.
Na verdade, José não era uma escolha tão má. Homem de bela
aparência, sério, calmo, interessado nas artes, estava propenso a fazer bem
as coisas. Gostava de passear sem escolta por Madri, falar com o povo.
Apreciava tanto o vinho que rapidamente foi apelidado por seus inimigos
de José Garrafas, José ou Pede Botellas, o que parece imerecido. Ele tinha
uma idéia clara e precisa da sua situação, que sabia ser arbitrária, artificial.
Sem ilusões, escreveu ao irmão que, apesar dos sorrisos complacentes dos
seus colaboradores, o povo espanhol, furioso, detestava essa ocupação
militar, e ele desejava voltar para Nápoles o mais rápido possível.
Algumas semanas depois começava a verdadeira guerra da Espanha.
Nesses quinze agitados anos em que a Europa parecia vacilar entre dois
mundos, Goya sobreviveu. Durante uma viagem à Andaluzia, perdeu
definitivamente a audição. Só ouvia um rumor vago e desagradável, sem
conseguir entender as palavras, mesmo que fossem gritadas. Seu humor se
ressentiu disso. Os surdos costumam dizer que é mais duro ser privado de
som que de imagem, o que é bem possível. Eles podem ver os outros
falando, sorrindo e se entendendo, e ficam de fora, excluídos por uma
misteriosa decisão do destino.
Goya, pouco a pouco, aprendeu a ler nos lábios de sua mulher Josefa, do
seu filho Javier, dos seus próximos. Foi iniciar-se na linguagem dos surdos-
mudos. Um antigo aprendiz que se tornara seu assistente, chamado
Anselmo, que também sabia essa linguagem, às vezes o acompanhava e
traduzia para ele o essencial do que era dito.
Outras vezes, como acontece com todos os surdos, alguém lhe escrevia
frases curtas em pedaços de papel.
A surdez profunda não parece ter afetado a sua obra. Alguns sustentam
que até contribuiu para ela, fazendo-o procurar no fundo de si mesmo, no
silêncio, imagens que ninguém antes tinha visto.
Sua glória cresceu, mas ao lado de sua atividade pública, de suas obras
por encomenda, dos retratos que lhe pediam, Goya desenvolveu uma
pesquisa mais pessoal, mais secreta, tanto em suas gravuras como nas
pinturas, um trabalho que preferia não mostrar e que, no essencial, foi
conhecido muito mais tarde, depois da sua morte.
Tentou repetidas vezes obter notícias de Inês, sem sucesso. Depois da
fuga de Lorenzo, um manto negro caiu sobre a sede da Inquisição. Era
impossível ali entrar, dar uma simples espiada. Tomás Bilbatua, por seu
lado, multiplicou as tentativas de libertar a filha, sempre em vão. Tudo o
que se pôde saber, de maneira formal, foi que ela tinha sido julgada e
condenada. No entanto, em decorrência da sua juventude, das influências
que deve ter sofrido e de sua declarada intenção de reabilitar-se, foi
decidido que sua vida seria poupada e que não passaria pela vergonha e
pela dor de um auto de fé em praça pública.
Essa indulgência era inútil. Não se mandava ninguém para a fogueira
fazia muito tempo, e além do mais, após a fuga de Lorenzo, a Inquisição
madrilena desistiu de acirrar sua luta e voltou à doce rotina. Foi declarado
oficialmente que Inês ficaria mais algum tempo nas dependências do Santo
Ofício, para cumprir sua penitência e assim lavar definitivamente todo e
qualquer resto de sacrilégio.
Quanto tempo? Isso não foi informado. Até que ela tivesse um
comportamento irrepreensível, até que pudesse ir e vir sem perigo para a
fé.
Depois disso, seria libertada. Tomás lutava em vão. Pouco a pouco, foi
desanimando. Quando lhe pediam notícias de Inês, respondia: Eu perdi a
minha filha. Sua esposa María Isabel parou de comer e morreu de fraqueza
em 1796. Nos últimos meses de vida, segundo os criados, ela amaldiçoava
Deus e toda noite cuspia na cruz.
Um de seus filhos, Álvaro, partiu para a América e desapareceu num
naufrágio na rota da China, entre o México e as Filipinas. Seu corpo nunca
foi encontrado.
Perdi minha esposa, minha filha e meu filho, dizia Tomás. Só lhe restava
Angel, seu outro filho, que fazia o possível para ajudá-lo.
Tomás emagrecia. Sua saúde piorava, suas costas se encurvavam, ele
tossia e cuspia muito. Para caminhar, precisava de uma bengala. A partir de
1798, privado de energia, com o espírito empobrecido, sem iniciativa, viu
seus negócios declinarem. Apesar da volta da sociedade francesa à
tranqüilidade, a guerra permanente que a França e a Inglaterra travavam
em todos os mares perturbava o comércio. As terras hispânicas na América
se sublevavam: lá também só se falava agora de nações e de independência.
Era preciso abrir novas vias, corromper almirantes, negociar com chefes de
Estado ou de província que nunca se sabia se ainda estariam no mesmo
lugar na próxima viagem: Tomás não se sentia mais capaz de fazer todas
essas coisas.
Para piorar, aos sessenta e dois anos, enfraquecido, perdeu seus desejos
e seu instinto, sua habilidade comercial. Uma filha presa, um filho perdido,
ele mesmo viúvo: às vezes se perguntava por quê, por quem ainda lutava. O
mundo novo lhe parecia duro, estranho, incompreensível. Começou a falar
dos velhos tempos, logo ele, que tinha aberto tantos caminhos
desconhecidos. Ficou à margem da estrada.
Seus sócios ingleses o abandonaram de repente. Com essa separação,
que não havia previsto, perdeu parte dos seus fundos. Concorrentes mais
jovens, na Espanha e também na Itália e na Holanda, ocupavam seu espaço.
Ele deixava que levassem seus entrepostos, seus fornecedores. Em casa,
andava de quarto em quarto, de cabeça baixa, sem olhar para os quadros
que antes eram o seu orgulho. Vendeu alguns para pagar dívidas.
Às vezes parava súa carruagem na porta da igreja de São Tomás,
restaurada graças a ele, e entrava um pouco. Via seu nome escrito na pedra,
como doador, depois se ajoelhava diante da imagem do apóstolo que tinha
duvidado do seu mestre, e fazia perguntas em silêncio, sem nunca rezar.
Essas perguntas sem resposta desapareciam logo. Uma ou duas vezes,
adormeceu no banco que lhe era reservado e seu cocheiro teve que vir
acordá-lo.
Voltou a ver Goya diversas vezes. Quando estavam sozinhos, nunca
falavam da estranha noite em que um dominicano foi interrogado até
confessar que era um macaco.
O rei havia deixado o assunto morrer, como de costume, e, com Lorenzo
banido pela Inquisição, Tomás nunca foi incomodado. Mas a história do
macaco, que Madri tinha esquecido, não os fazia rir.

Por outro lado, a surdez de Goya tornava difícil alguma conversa entre
eles. O pintor não queria envolver Anselmo, seu assistente-intérprete,
nessa confidência. Também conversavam sobre outras coisas. Às vezes
Bilbatua murmurava que os fantasmas são os donos do mundo. Goya,
quando entendia, aprovava balançando a cabeça. Sim, os fantasmas são
insistentes, tenazes, inflexíveis justamente porque não podemos vê-los.
Você vê os fantasmas?, perguntou um dia a Goya. Certamente vê,
porque depois os mostra.
Eu não sei de onde eles vêm, respondeu Goya. E não sei quem são.
Minha mão os vê, sim. De repente estão ali, sob os meus dedos. E não posso
enxotá-los. Não há nada a fazer. É como se essas caras de demônio ou esses
rostinhos de anjos ficassem escondidos na minha mão e saíssem de vez em
quando.
Era ele o que falava mais, como costumam fazer os surdos. Contava a
Tomás, por exemplo, seu encontro com a incomparável e única María
Cayetana, a duquesa de Alba em pessoa, a maior dama da Espanha, e
também a mais sedutora.
Estava apaixonado por ela, à sua maneira, havia mais de cinqüenta anos,
coisa que nunca confessou a Tomás, nem a ninguém. A duquesa lhe
encomendou vários retratos, pintados com mão precisa e terna, recebeu-o
no palácio e até mesmo o convidou à sua propriedade de Sanlucar, na
Andaluzia, lugar delicioso onde permaneceu longo tempo. Num dos
retratos, vemos a duquesa apontando para duas palavras ali inscritas pelo
pintor: solo Goya. Só Goya.
Teriam sido mais íntimos que isso, como se comentava? Goya jamais
disse nada a ninguém. E ela tampouco.
Em 1799, Goya publicou Los Caprichos, uma série de oitenta gravuras
em que, como ele mesmo escreveu, o sono da razão produz monstros. Na
capa do álbum, o artista se representou aos cinqüenta e três anos, com o
lábio inferior volumoso, o olho um pouco torto, os cabelos grisalhos, o
queixo caído, com um chapelão preto e um ar de desilusão e indiferença,
como que a dizer: eis como sou e eis o mundo que vejo, não posso fazer
nada. Um mundo em que há criaturas graciosas, dessas que são chamadas
de coajas, moças elegantes e muitas vezes fáceis, usando calçados finos
(sempre com um salto em pirâmide), os pés separados, às vezes levantando
a saia para mostrar a perna (indício certo de prostituição), mas também
aias partidas em quatro, monges disformes e sedutores, feiticeiras, galinhas
humanas sem plumas, espectros empestando o ar, bodes gigantescos,
tribunais infames, mortos saindo do túmulo.
Razão adormecida: lugar dos caprichos. Algumas dessas imagens
lembravam aquelas que estiveram, alguns anos antes, nas mãos dos
inquisidores, e que Lorenzo defendeu com denodo. Elas provocavam
surpresa, às vezes até escandalizavam. Os espíritos religiosos não viam ali o
menor sinal de piedade, muito pelo contrário. Padres e monges tinham
expressões de horror. Via-se um penitente diante do tribunal da Inquisição,
com o grande chapéu cônico na cabeça que era a marca dos acusados.
Imagem inventada, sonhada talvez, porque Goya jamais assistiu a uma
cena dessas.
Ele não escrevia um diário. Pouco falava do seu trabalho, das suas
intenções. Quando lhe perguntavam, como fez Bilbatua duas ou três vezes,
e não apenas a respeito dos fantasmas: Por que fez isso? De onde isso veio?,
limitava-se a fazer um gesto vago, indicando que não tinha a menor idéia, e
logo falava de outra coisa.
Ocasionalmente fingia não ter entendido a pergunta. Duas ou três vezes,
respondeu: Eu vi isso, sem explicar de onde vinha essa visão, da sua mão ou
dos seus olhos, de que lado da realidade do mundo. Eu vi.
A Espanha inteira estava incluída nesses caprichos: uma natureza
inexorável, um céu escuro do qual não se pode esperar nada, embora não
consigamos deixar de rezar, uma opressão antiga, inaceitável, mas
constantemente renovada, como se renascesse de si mesma, uma
resignação revoltada e subitamente furiosa, uma estranheza normal, a
presença da morte como membro da família, a certeza tranqüila de que a
razão não domina o mundo e a verdade suprema é certamente irracional,
demônios sentados ao lado do fogo, a passagem súbita de um sorriso de
mulher para os sonhos mais sombrios.
A Espanha inteira, e muito mais. Ele ganhava dinheiro. Muito dinheiro,
sobretudo graças aos retratos que lhe encomendavam sem parar. Toda a
alta sociedade se precipitava para desfilar diante dele, a condessa de
Villafranca, a marquesa de Santa Cruz, o industrial Pérez de Estala, e atores,
e cantoras. O filho de um modesto artesão dourador aragonês, agora artista
número um da Espanha, desfrutava de uma casa magnífica, com um belo
pátio, num bairro fino. Ele comprava livros, jóias, e também quadros, de
Tiepolo, de Corrège.
Os acontecimentos políticos, ou militares, não pareciam atingi-lo até
então. Ele se limitava a fazer seu trabalho, isolado num silêncio verdadeiro.
Quando a duquesa de Alba morreu de uma intoxicação alimentar, no dia
23 de julho de 1802, uma testemunha contou que Goya perambulou longo
tempo por Madri, sozinho, mudo, sem se dirigir nem responder a ninguém.
Mas não escreveu nada, não disse nada. Também sobre isso, guardou suas
emoções para si.
No começo de maio de 1808, quando o povo atacou os mamelucos de
Murat, e pagou caro no dia seguinte, Goya estava em Madri. Recebeu
informações diretas da revolta e da repressão. Na certa até viu imagens,
não podendo ouvir os sons. Que ficou abalado, não há dúvida. Contudo,
esperou seis anos para pintar as duas telas famosas, Dois de Mayo e Três de
Mayo. Pondo o acontecimento acima de si mesmo, inscreveu-o para sempre
em todas as memórias, embora houvesse recusado, no calor do momento, a
expor os dois quadros em público.
Quando Carlos IV, seu protetor, deixou a Espanha para ir a Baiona ouvir
que não era mais rei, Goya certamente teve alguma preocupação por sua
situação material.
Deveria partir também, diante dos problemas que se precipitavam?
Mas, para ir aonde? Decidiu ficar.
Napoleão não conhecia a Espanha e menos ainda os espanhóis. Talvez
confundisse o povo com os dois indivíduos, o rei Carlos IV e seu filho
Ferdinando, com quem esteve nos arredores de Baiona. Seja como for, não
os levou em consideração. Embalado pelo sucesso, brincando de
marionetes com os reis da Espanha - que, como diz também Chateaubriand,
a um gesto dele iam e se jogavam pela janela-, às vésperas de se casar com
a filha do imperador da Áustria - que escolheu entre outras princesas e sem
considerar a força dos povos, só a dos exércitos -, espírito rápido e cheio de
preocupações, prestou uma atenção apenas superficial, e no fundo irritada,
às recomendações enviadas por seu irmão, que sentia no ar uma revolta
geral em gestação e só queria, além do mais, voltar para Nápoles.
Na verdade, depois das execuções de maio ninguém havia ganhado a
Espanha, como Murat anunciou, e sim perdido. O país inteiro, até as ilhas
Baleares, preparava-se para resistir. Viu-se até o alcaide de uma aldeia,
Mostolés, situada a oeste de Madri, declarar a guerra diretamente a
Napoleão. Oficiais espanhóis, suspeitos de cumplicidade com os franceses,
foram assassinados por seus homens.
Tudo explodiu em Saragoça, a capital da província de Aragão, que se
levantou sob o comando de um grande chefe de guerra, o duque de Palafox,
que prometeu aos franceses, como na famosa fórmula, guerracuchillo
(guerra e cutelo). Os exércitos franceses sitiaram a cidade duas vezes. O
primeiro sítio, após uma resistência muito dura, foi levantado pelo próprio
José Bonaparte, que, diante do elevado número de mortos (dos dois lados),
retirou a maior parte das tropas. Ele não gostava daquela guerra e fazia
todo o possível para interrompê-la, para torná-la inócua.
A cidade teve alguns meses de trégua. Goya foi então visitá-la. Era a
cidade da sua juventude. Ele a conhecia bem, havia pintado afrescos ali, no
teto da catedral.
Horrorizado com o que viu (ruínas e mortos), começou a desenhar, em
cadernos de esboços, o que iria tornar-se, pouco a pouco, Os desastres da
guerra, o catálogo mais cru, mais exato, que um homem já concebeu e
realizou sobre a paixão pela atrocidade que nos habita.
Deixou a cidade antes do reinício das batalhas, passou rapidamente por
sua aldeia natal, Fuendetodos, e voltou a Madri.
O segundo sítio de Saragoça, que durou dois meses, é inesquecível para
a memória espanhola. É um episódio marcante da história das resistências
heróicas. Os soldados franceses acreditavam, como Napoleão dissera, que
seriam recebidos como libertadores, mas tiveram que lutar rua por rua,
casa por casa, atirando em mulheres e crianças. Uma certa Agustina
Zaragoza ficou famosa para sempre. Ela trazia os víveres para os
canhoneiros e, quando estes foram todos abatidos (seu amante, parece, era
um deles), encarregou-se sozinha da peça e continuou atirando. O general
Lannes escreveu a Napoleão que nunca houve uma resistência tão furiosa
de um povo em guerra. Viram-se doentes e feridos pulando pelas janelas de
um hospital em chamas para serem empalados nas baionetas francesas.
Viram-se loucos, libertos dos asilos, correndo pelas ruas e cantando
canções. Contaram-se cinqüenta e quatro mil mortos entre os habitantes da
cidade, que ao final se transformara num espetáculo de escombros e
cadáveres.
Palafox, ferido, ficou preso durante quatro anos (Goya pintaria seu
retrato eqüestre, mais tarde, mostrando ao longe uma cidade em chamas).
Enquanto várias delegações secretas chegavam à Inglaterra para pedir
uma ajuda direta, após a trágica queda de Saragoça, a guerra parecia
amainar por um tempo. Oficialmente, a França tinha vencido. Napoleão
veio pessoalmente a Madri, para confirmar a vitória com sua presença,
como um animal marca o seu território.
Ficou apenas um dia, o que por certo lhe pareceu suficiente. Ainda havia
escaramuças entre soldados franceses e grupos de resistentes espanhóis,
aqui e ali, até em Madri. A Inquisição foi abolida por decreto, em nome da
liberdade de pensamento, sob os aplausos dos ilustrados. Soldados
franceses irromperam à força no velho mosteiro. Um dos oficiais entrou na
capela sem saltar do cavalo, interrompeu um culto e, com um tiro de
pistola, matou um dos dominicanos que estava lendo o Evangelho do dia e
que, obedecendo a uma discreta indicação do padre Gregorio, se recusou a
interromper. O confessor quase não teve tempo de fazer o sinal da cruz
sobre o rosto do monge que estava morrendo ao pé do altar.
O oficial perguntou se era ele, Gregorio Altatorre, o responsável pelo
lugar. O inquisidor respondeu calmamente, em voz baixa, ajoelhado junto
ao monge morto, que ali o responsável era Deus, como em qualquer outro
lugar sagrado na Terra.
O oficial, sem descer do cavalo, disse que por ordem do imperador
Napoleão, e em virtude da Declaração dos Direitos do Homem, a Inquisição
estava abolida em todo o território espanhol e seu patrimônio confiscado
em benefício do povo. Depois, no mesmo dia, todos os dominicanos foram
conduzidos, a pé, para uma prisão em Madri, onde iriam esperar o
julgamento. Só levavam consigo, em sacos ou caixas, algumas roupas, um
barbeador e um par de sandálias. Todos os livros religiosos, todos os
símbolos sagrados estavam estritamente proibidos. Os objetos de culto
foram confiscados, exceto aqueles que, por precaução, haviam sido
emparedados nos subterrâneos do convento.
Os soldados fizeram pilhas de livros, que tentaram queimar. Mas os
livros não queimam bem, religiosos ou não. Por falta de tempo, acabaram
ficando ali, no meio do claustro, enegrecidos pelas chamas, deformados,
ainda fumegantes.
Os prisioneiros da Inquisição foram libertados. Eram pouco numerosos,
apenas quinze, aqueles que ainda esperavam o julgamento ou cumpriam
sua pena. Foram recebidos lá fora por parentes e amigos, que haviam
trazido cobertores, roupa quente, meias, tamancos, luvas e garrafões cheios
de água ou leite.
Inês foi uma das últimas a sair. Mais de quinze anos haviam passado
desde o dia em que um monge calvo levou uma intimação, escrita num
pergaminho, ao pátio da mansão.
Ninguém a esperava. Saiu sozinha e apavorada, caminhando com passos
curtos, sem saber para onde ir. Piscou ao rever a luz, tal como os outros
prisioneiros que se afastavam com suas famílias. Não conseguia entender
quem eram aqueles soldados, o motivo dos tiros que se ouviam ao longe,
daqueles cavalos que passavam a galope, dos homens armados que
berravam. Sua boca estava torta para um lado, sua pele, murcha e marcada
pela varíola, seu olhar parecia velado. Não tinha mais dentes. Seu cabelo
grisalho estava colado na pele e ela exalava um fedor de sujeira. Suas
pernas, magras, sujas, descobertas até os joelhos, mostravam marcas de
equimoses. Não era possível calcular sua idade.
Uma das mulheres que esperavam a libertação dos prisioneiros,
anunciada naquela mesma manhã por um pregoeiro público nas ruas da
capital, perguntou algo a Inês sobre um homem que estava procurando.
Inês não teve a menor reação diante do que a mulher dizia, como se não
houvesse entendido, ou ouvido, a pergunta. Olhou-a de relance e continuou
a andar lentamente, arrastando os pés. A mulher tomou-a por louca, o que
talvez fosse, e foi procurar em outro lugar.
Um pouco adiante, dois soldados franceses lhe perguntaram, vendo-a
perdida, se queria subir numa charrete que transportava objetos sacros -
hostiários, vasos, candelabros - e voltar assim a Madri. Como falavam em
francês, ela não entendeu. No entanto, em silêncio, como um personagem
mecânico, deixou-se levar até a charrete e instalou-se como pôde no meio
do butim, que os soldados cobriam com tapetes usados que acabavam de
apanhar na biblioteca do mosteiro e, pelas dúvidas, também levavam.
Percorreu assim o caminho até Madri, no mesmo passo, ou quase, que a
coluna de dominicanos escoltada por meia dúzia de cavaleiros.
Na entrada da cidade, tudo indicava uma batalha recente e furiosa. Uns
soldados que acabavam de entrar numa casa de onde haviam partido tiros
jogavam pelas janelas os corpos decapitados dos habitantes. Os cadáveres
se espatifavam no piso de pedra, assustando as aves errantes. Vagabundos
se precipitaram para fuçar nos bolsos e tirar seus calçados, sobretudo
botas, quando as usavam. Crianças, no meio da guerra, brincavam de
guerra.
Algumas fingiam estar mortalmente feridas e caíam ao lado dos mortos
de verdade, soltando um grito. Porcos e cachorros, procurando alimento,
descobriam o gosto da carne humana. Às vezes um pelotão francês passava
a cavalo, de sabre na mão, e todos os personagens vivos da rua sumiam por
um instante, para tornar a sair quando os soldados desapareciam.
Inês olhava tudo aquilo com indiferença, talvez ausente desse mundo
perturbado. Ou melhor, nem olhava, parecia não ver nada à sua volta. Os
tiros e os latidos dos cachorros não a assustavam. Quando chegou a Madri,
deslizou para fora da charrete. Depois, lentamente, pois tinha dificuldade
para movimentar as pernas, ainda meio paralisadas pelo longo cativeiro,
avançou passo a passo pelas ruas, com os olhos entrecerrados, como se o
seu corpo já conhecesse o caminho a seguir. Ninguém reparava nela. Podia
ser tomada por uma mendiga aparvalhada, exausta, ou por um espectro
vacilante saindo penosamente das sombras.
Depois de caminhar por meia hora, chegou à casa dos seus pais. Seu
corpo havia lembrado do lugar. Passou pelo portão agora arrebentado e
entrou no pátio, onde só havia escombros, como num campo de batalha:
louça quebrada, um burro morto, uma pele de jacaré rasgada, pedras,
palha. Passo a passo, chegou à escada principal e começou a subir os
degraus, com o olhar perdido e a boca entreaberta. Não havia o menor sinal
das tapeçarias de antes, que ela talvez recordasse vagamente, nem dos
quadros. Tudo havia sido arrancado das paredes. Seus pés pisavam em
pedaços de madeira e de gesso.
Como na parte sombria de um conto, Inês subiu lentamente até o
primeiro andar dessa casa, antes esplêndida, em que havia nascido, onde
crescera em meio a todas as riquezas do mundo, onde tinha sido amada,
mimada, festejada, servida, e que agora quase não reconhecia. Sua própria
razão, sufocada pouco a pouco por anos de solidão e de tristeza, não podia
estabelecer nenhuma relação entre a felicidade de antes e o desastre de
hoje. Talvez não pudesse sequer admitir a realidade da destruição.
Uma feiticeira má, a pior de todas, aquela que é conhecida como guerra,
tinha passado por ali poucos dias antes, num violento combate entre
resistentes espanhóis e soldados franceses, como acontecia com
freqüência, apesar da paz oficial e dos esforços do rei José. Nunca se soube
a identidade exata dos responsáveis por aquela pilhagem. Uns acusaram os
outros, e viceversa.
Tudo fora roubado, os modelos em escala dos barcos, os lustres, os
móveis, os pêndulos, a baixela das cozinhas, até os azulejos de cerâmica em
quatro cores que vinham de Sevilha e os assoalhos franceses conhecidos
como estilo Versalhes.
Quando entrou na sala de jantar, onde só restava a mesa grande, por
certo intransportável, ela viu no chão pernas esticadas cujos sapatos
tinham sido roubados.
Aproximou-se, contornando a mesa, e olhou. Viu a cabeça dos mortos.
Tomás Bilbatua e seu filho Angel haviam sido espancados, com sabres ou
com os punhos. Por certo tentaram resistir. Não se mexiam mais. Tinham
sangue coagulado no peito e no pescoço.
Inês parou diante dos cadáveres, com os olhos ainda abertos.
Impossível saber se os reconheceu imediatamente. A alguma distância de
sua nova casa, Goya manteve um de seus antigos ateliês. Trabalha lá de
noite, quando está atrasado ou quando tem necessidade de solidão e
discrição. Seus assistentes já voltaram para casa. Está sozinho. Sente-se um
pouco rígido, um pouco hirto, porque está com uma cobertura diferente na
cabeça. Seis velas acesas haviam sido dispostas nas abas de um chapéu
comum, o que lhe permite trabalhar até tarde sem necessidade de um
assistente ao seu lado, segurando uma candeia.
Um cachorro dorme, deitado num saco. Goya resiste ao cansaço. Na
juventude correu pelas colinas rochosas que cercam Fuendetodos, jogou
bola, treinou com a capa diante dos touros (dizem até que pertenceu,
durante algum tempo, à cuadrilla de um matador). Durante muito tempo
fez caçadas, a pé e a cavalo. Aos sessenta e quatro anos, apesar da surdez, e
do inevitável peso do corpo, ainda é um homem forte, atarracado, capaz de
se manter firme sobre as pernas, em frente ao cavalete, durante horas.
Ele sabe, como todo mundo, que a cidade de Madri está novamente em
crise. Um pouco antes, um clarão havia iluminado sua janela. Mesmo sem
ouvir nada, foi até lá, para dar uma olhada na rua, sem largar a paleta e os
pincéis. Não viu nada. Uma explosão, certamente, ao longe. A gente se
acostuma.
As imagens de Saragoça o perseguem. Ele trabalhou num retrato de
Agustina Zaragoza. Nos seus cadernos e em folhas avulsas rabiscou
centenas de esboços. Talvez algum dia faça alguma coisa com eles: os
Desastres, a que retorna sem parar. Mas a quem mostrar isso? Aos
vencidos, aos vencedores? Nenhum mercador de estampas vai querer, por
enquanto. Riscos demais, dos dois lados. Recentemente foi sondado com
discrição: aceitaria fazer um retrato do rei José? Ainda não respondeu, mas
seria difícil recusar. Deixa as coisas se arrastarem um pouco.
Deixar a Espanha? Para ir aonde? Para a América? Inglaterra? Ele não é
muito conhecido fora da Espanha, e sabe disso. Precisaria levar todo o seu
material, algumas telas para dar uma idéia do que sabe fazer, cruzar
fronteiras vigiadas, refazer seu nome em algum lugar. Sente-se velho
demais para essa aventura. E, sem ouvidos, como aprender outra língua?
Seu cachorro se levanta e abre a boca. Goya percebe esse movimento.
Não ouve os latidos, mas vê o cachorro se encaminhando para a porta. Se
alguém grita, ou bate na porta, ele não ouve.
Chama o cachorro, que volta, deita-se de novo, depois se levanta e vai
para a porta outra vez, ainda latindo. Então Goya abre uma gaveta, pega
uma pistola, destrava, vai até a porta e a empurra com a mão esquerda.
Divisa ali uma forma humana, que a princípio não consegue identificar.
Abaixa a cabeça, com todas as velas. Vê uma mulher malvestida. Se ela diz
alguma coisa, não ouve.
Deixando a porta entreaberta, dá alguns passos, apanha uma moeda
numa caixinha de ferro e volta à porta. Entrega a moeda a Inês, que tomou
por uma mendiga, e que simplesmente se havia arrastado até aquele lugar
porque o conhecia desde que fora posar lá, no passado.
Ela olha a moeda, sem entender. Fala, mas não lhe respondem.
Goya, que não a reconheceu, pega sua mão, põe nela a moeda com
firmeza e torna a fechar a porta.
Volta para o trabalho, acalmando o cachorro no caminho. Mas o animal
não se acalma. Avança de novo até a porta e late. Irritado, Goya manda que
se cale. Inútil.
Dá uma meia-volta então para abrir a porta. Inês continua ali, na
penumbra. Diz a ela, com a voz e um gesto, que vá embora. Já lhe deu
dinheiro: o que quer mais?
Como ela não sai, o artista fala mais alto: vá embora! Ela então lhe diz,
tocando no próprio peito, que é Inês, Inês Bilbatua. Repete várias vezes seu
nome. Ele vê o movimento dos lábios e grita:
Não escuto nada! Sou surdo! Vá embora!
Ela também grita, diz que se chama Inês, Inês Bilbatua. Vendo que o
outro ainda não a entende, articula bem os sons, abre a boca deformada o
máximo que pode. Ele pede que repita o que acaba de dizer e se inclina
para iluminar sua boca com as velas.
Lê seus lábios, afinal entende e pergunta: Inês? Sim, diz ela, balançando
a cabeça várias vezes. Inês. Sou eu.
Com a mão, ele afasta o cabelo colado em uma parte do seu rosto,
depois observa de perto e a reconhece.
Então se afasta da porta para deixála entrar. Quando passa ao seu lado,
ela diz, com palavras desencontradas, que seu pai morreu, que seu irmão
morreu, que ela está com medo, que está sozinha. Goya não ouve uma
palavra. Fala também do seu bebê, pergunta onde está seu bebê. O cachorro
ainda late um pouco. Goya fecha a porta, e por fim consegue acalmá-lo. O
animal volta a se deitar, a contragosto.
Goya pergunta a Inês se ela o ouve bem, se entende o que ele diz. Basta
balançar a cabeça, sem falar nada, vai ser suficiente. Ela balança a cabeça.
Goya repete então que é inútil falar com ele, porque não ouve há muitos
anos. Ela tem que escrever tudo, numa folha de papel que ele lhe entrega
junto com um lápis.
Escreva. Aqui. Inês se senta diante da mesa que Goya desembaraça para
ela. Deixa o papel ao lado de uma vela, põe o lápis na sua mão direita.
Escrever? Ela bem que gostaria. Mas suas mãos estão rígidas, sem forças.
Não escreve há muito tempo.
Não há pressa, diz Goya. Escreva tudo o que quiser me dizer. Não há
outra saída, eu não ouço nada.
Enquanto a moça começa a traçar uns sinais trêmulos no papel, ele
pergunta se está com fome, ou com sede. Ela ergue os olhos, parando de
escrever, e o encara.
Goya repete a pergunta, e dessa vez obtém uma resposta: sim, está com
fome. Ela abaixa a cabeça para dizer que está com fome.
Goya tem sempre algum alimento por ali, presunto, queijo, azeitonas,
um naco de pão duro. Traz tudo isso, e até um copo de vinho. Inês não bebe
vinho há quinze anos.
Avança primeiro sobre o queijo, que come vorazmente.
Devagar, diz Goya, coma devagar. Ela não ouve e bebe a metade do copo
de vinho. Depois volta a escrever, mais rápido que antes. Entrega a folha a
Goya, que lê em voz alta:
Meu pai morreu, meu irmão morreu, onde está minha mãe? Onde está o
meu bebê?
Ele pergunta: Seu pai está morto? Ela abaixa a cabeça. Goya fica
espantado com a morte de Tomás. E triste. Não tem coragem de dizer a Inês
que sua mãe também está morta, tal como Álvaro, desaparecido no mar.
Não sabe o que perguntar: de onde ela veio, como é que seu pai e seu irmão
estão mortos. Parece frágil, sem forças, com a mente confusa. Escreve
algumas palavras, depois pára, come, acaba o copo de vinho, depois escreve
mais, quer água, dá a impressão de que beberia, comeria qualquer coisa.
Goya a aconselha a não engolir tão depressa o presunto e as azeitonas.
Lê o que ela acaba de escrever: ... eles me suspenderam três vezes, eu
confessei, então disseram que sou uma herege....
Olha para Goya e pergunta (mas ele não ouve) o que é uma herege. Ele
continua a fazer perguntas que Inês não responde, até que de repente se
apodera da folha de papel e escreve: Onde está o meu bebê?.
Ele pergunta: Que bebê? Ela responde, batendo na barriga: Meu bebê!
Você teve um bebê? Eu tenho um bebê. Calma, Inês, calma. Um bebê,
mesmo? Você teve um bebê na prisão?
Sim! Onde está o meu bebê? Quero ver meu bebê! Onde ele está?
O pintor está um pouco perdido. Sua surdez o atrapalha. Inês fala e age
com total incoerência. Ela continua avançando na comida, está esfomeada,
cospe os caroços de azeitona no chão e só fala do bebê. Pronuncia esta
palavra umas cinqüenta vezes. Goya lhe pergunta quem é o pai da criança.
Ela responde: um monge. Que monge?
Ela nunca soube o nome. Um monge. Ele pensa logo em Lorenzo, mas
este desapareceu há mais de quinze anos. Não pode ser o pai de um bebê.
Abre as janelas do ateliê e, debruçado para fora, chama em voz bem
alta:
Dolores! Dolores! Pouco depois aparece na rua uma mulher de uns
quarenta anos, cabelo grisalho, esfregando as mãos num avental. Levanta
os olhos para ele e pergunta, fazendo um gesto com as mãos, o que quer a
essa hora.
Ele a intima a subir logo, porque precisa dela. A mulher responde que
não pode, que está preparando a comida. Ele não ouve nada e diz, outra
vez, que suba logo.
Precisa dela. Ela repete que está cozinhando. O pintor fecha a janela.
Dolores volta resmungando para sua casa. Ela mora no térreo, num
quarto com uma pequena cozinha, junto com o marido, que é vendedor
ambulante de bombons, e os dois filhos.
Goya lhes dá algum dinheiro três vezes por ano, para que vigiem a porta
do seu ateliê quando ele está fora. Dolores passa uma vassoura de vez em
quando. Os dois se conhecem há muito tempo.
Goya volta para onde está Inês, ainda rabiscando. Pergunta o que
aconteceu com esse bebê, se era menino ou menina.
Menina, diz ela. Uma menininha. Mas logo depois a tiraram de mim.
Logo depois. Eles a levaram, não sei para onde. Ajude-me. Ajude-me.
Ela se agarra em seu corpo, precisa de ajuda, o cachorro late, Goya não
ouve nada, Inês diz que quer o bebê, só quer o seu bebê, depois toma outro
copo de vinho, levanta-se, torna a sentar e grita:
Ajude-me a encontrar o meu bebê! Dolores chega nesse momento. Entra
pela porta que ficou aberta. Goya lhe pede para ajudar a limpar um pouco o
rosto e o corpo de Inês. Que vá buscar toalha, sabão, água quente. As
mulheres sabem fazer isso. E algumas roupas também, qualquer coisa. De
lã.
Dolores sente pena, pergunta o que houve. Esta pobre mulher está
fedendo: é uma mendiga?, uma louca? Foram os soldados franceses, de
novo, que a pegaram e estupraram, como (diz ela) aconteceu com a metade
das mulheres de Madri? O que a deixou nesse estado?
Goya não ouve e não responde. Rápido, rápido, diz. É uma moça
conhecida, filha de um amigo que morreu. Pode se resfriar. Corre o perigo
de morrer. E um médico, também. Precisamos chamar um médico. Há
algum no bairro?
Inês continua perguntando a Goya sobre o seu bebê, sua filhinha que
roubaram e que ela quer ver de novo. Não lhe interessa mais nada. Seu
corpo come e bebe sozinho.
Ela não reclama, não pede nada para si mesma. Ah, sim, uma herege: ela
pergunta outra vez. O que é uma herege? E o bebê, onde está? Por que o
levaram? Para onde? Seu bebê, sua filhinha? Dolores, antes de sair para
buscar toalhas, pergunta a Goya que bebê é aquele. Não seria ele, por acaso,
o pai?
O pintor não ouve a pergunta. Pede a Dolores que o ajude a preparar
uma cama, um lugar onde Inês possa dormir, um sofá, um colchão de palha,
lençóis, um cobertor.
Dolores é uma boa mulher, sempre disposta a ajudar. Mas parece
desconcertada. O que fazer? Ela está com a panela no fogo, a comida vai
queimar. E o marido, que já não é fácil, que não é doce como os seus
bombons, está pior agora, que seus negócios não vão muito bem. E uma das
crianças está com cólicas.
Goya entende, mesmo sem ouvir, que ela está com problemas. Pega
duas ou três moedas e lhe dá. Tudo vai se ajeitar, tudo vai ficar bem. Sim,
sim, vamos fazer o que for preciso, não se preocupe, diz Dolores. E sai às
pressas, escada abaixo.
Goya pergunta a Inês se tudo o que ela acaba de dizer é verdade.
Sim, diz ela, baixando várias vezes a cabeça. Sim, é verdade.
Você está disposta a jurar? A jurar por Deus que é verdade?
Ela jura.
Tempos de incerteza, de confusão. Um motim estourava aqui, outro
acolá, depois amainava. Um governo espanhol se instalou em Sevilha. O rei
José, coroado Bonaparte, chamado pelos adversários de El rey intruso,
deixou Madri quando Wellington, que desembarcara em Portugal com
tropas inglesas, estava se aproximando. Voltou quando Wellington partiu,
fugindo do inverno.
Diversos rumores lutavam entre si, tal como os soldados. Toda a Europa
parecia depender do destino pessoal de Napoleão, o fenômeno. Ninguém
sabia exatamente, à noite, onde estariam na manhã seguinte a justiça, a
legitimidade, a ordem, o poder. Depois de Saragoça, os generais franceses
conquistaram Córdoba e Granada, mas no interior da Espanha era
impossível demarcar fronteiras nítidas entre as terras dominadas e as
rebeldes. Os espíritos esclarecidos ficavam alegres e depois desolados,
muitas vezes ao longo da mesma semana. Famílias se separavam, amigos se
combatiam. Alguns aplaudiam o fim da Inquisição, outros multiplicavam as
procissões desta ou daquela virgem.
O palácio real de Madri mudava de amo e de decoração. Uns retratos
eram retirados durante a noite, outros chegavam de manhã. Móveis
desciam para os porões. Os crucifixos e quadros da Paixão saíam, cortinas e
tecidos eram trocados. Seria preciso suprimir as águias espanholas e
substituí-las pelas de Napoleão? Discutia-se isso. Para que mudar?, dizia
alguém. Todos os reis se vêem como águias! Sim, respondia outro, mas nem
todos o são. E as águias também lutam entre si. Mais do que ninguém.
Quando José se instalou de vez - apesar dos seus temores, que não
desapareceram -, desde a alvorada havia no palácio gente com pedidos e
solicitações. Um reclamava a pensão perdida, outro, uma terra tomada. Os
franceses ocuparam todos os empregos, confiscaram os prédios em nome
do direito da guerra. Títulos espanhóis com doze séculos de antiguidade
evaporavam por decisão de um contínuo, corpos assassinados
desapareciam em fossas comuns. Era difícil saber, em certos casos, se
estavam mortos ou vivos.
Certa manhã, Goya mandou sua carruagem parar nas proximidades da
entrada principal. Apeou junto com o ex-aprendiz que lhe servia de
intérprete, Anselmo. Viu a multidão, que pressionava as grades, contida por
soldados franceses.
No interior do veículo estava Inês. Em quinze dias, tinha recuperado
alguma força. Corretamente vestida, lavada, penteada e alimentada com a
ajuda de Dolores, e também de Josefa, a mulher de Goya, a quem ele contara
toda a história, Inês parecia apresentável, aos trinta e três anos, embora
sua mente continuasse estranha e obcecada. Para acabar com aquela
história de bebê que ela repetia de maneira insuportável, Goya decidira
levá-la ao palácio e ver se algum funcionário, um arquivista, um secretário,
podia encontrar alguma pista do pai desconhecido, ausente, que talvez
confessasse onde escondia a criança.
Senão, tentaria falar com alguém da Inquisição. Tudo isso era muito
vago, e Goya não tinha certeza de nada. Entretanto, após todos aqueles
anos, ainda se sentia culpado, não da prisão de Inês, mas por ter, uma noite,
levado Lorenzo à casa dos Bilbatua. Duramente humilhado, talvez o
dominicano tivesse transferido sua vingança para Inês, antes de ser
expulso do Santo Ofício. Talvez tivesse encontrado um meio de deixála
esquecida quinze anos, antes de fugir.
Ao descer da carruagem viu a aglomeração, o tumulto, e pediu a Inês
para esperar ali com o cocheiro. Depois, contornando os prédios, dirigiu-se
com seu assistente à entrada lateral que usava antigamente para as sessões
de pose. Um suboficial espanhol que o conhecia bem era o encarregado da
vigilância. Os franceses não tinham homens, tanto na Espanha como em
outros lugares, para ocupar todos os cargos. A falta de pessoal: esta sempre
foi a queixa de Napoleão, como um homem cheio de caprichos a quem
faltasse amor, vinho e droga.
O suboficial de guarda cumprimentou Goya e o deixou entrar
imediatamente, com Anselmo. Os dois foram, percorrendo o palácio, até
uma antecâmara que o pintor conhecia.
Lá, sentado a uma mesa repleta de pedidos e de presentes
(principalmente garrafas de vinho), encontrou o camarista que conhecia de
antes, agora com os cabelos grisalhos e usando outro uniforme. Os dois
homens não se viam há algum tempo, desde que deixara de haver rei para
pintar.
O que posso fazer por você?, perguntou o velho. Diga rápido, talvez eu
não esteja mais aqui amanhã!
Goya precisou explicar primeiro que tinha perdido a audição, o que
deixou o velho camarista desolado. Mas como foi? Goya não tinha tempo
para contar. Disse, para abreviar a conversa, que precisava ver alguém do
Santo Ofício.
Mas eles foram presos!, disse o camarista.
Eu sei, respondeu Goya, depois que seu assistente traduziu brevemente
a resposta em gestos.
E até mataram alguns!, gritou o velho, que parecia quase feliz com essa
idéia.
Não todos, certo?, perguntou Goya, após a tradução. Não, alguns se
salvaram. Um ou dois se disfarçaram de mulher. Foi só trocar de vestido. Os
outros estão na cadeia, isso vai lhes fazer bem. Aguardam o julgamento. Eu
espero que lá em cima escutem suas orações. Mas, pessoalmente, duvido.
A conversa foi trabalhosa. Goya precisava virar-se para Anselmo a todo
instante para entender as respostas do camarista. Este consultou uns
papéis e afinal lhe disse em que prisão estavam os inquisidores sob
autoridade francesa.
Agora tudo passa pelos franceses, entende? Não tem escapatória. Mas o
que houve com esses franceses, pode me dizer?
Hein? Você entende alguma coisa? Há quatro ou cinco anos
eles juravam que iam matar todos os tiranos da Terra, o que daria
bastante trabalho, e só juravam pela sua República, queriam instaurá-la em
toda a Terra, mandavam guilhotinas até para as Antilhas, e hoje, veja só! Só
falam do pequeno corso! Ah, e ele não é nada preguiçoso, não mesmo!
Tínhamos um rei que não fazia nada, e agora vem esse imperador que se
encarrega de tudo! Até de trocar o nome das ruas!
Como a maioria dos surdos, Goya ficava exasperado com esses
parlatórios que não entendia e que seu assistente não podia traduzir,
porque o camarista falava rápido demais.
Com um gesto, pediu-lhe para falar lentamente, ou se calar, e fez então
duas ou três perguntas. O camarista contou que o pequeno cabo corso, que
se metia em tudo, acabava de nomear um novo comissário, ou encarregado
de negócios, não sabia muito bem, que tinha acabado de chegar da França.
Um comissário especialmente para esses assuntos, parecia. Todos os
documentos deviam estar nas suas mãos.
Posso vê-lo?, perguntou Goya. Não pergunte isto a mim. Mas onde está
ele? No palácio da justiça, evidentemente. Aliás, é possível que o julgamento
já tenha começado.
Goya agradeceu ao ancião, que naquela manhã, infelizmente, só
encontrara um surdo para conversar. Voltou para junto de Inês na
carruagem e disse ao cocheiro que os levasse ao palácio da justiça, o mais
rápido possível.
Mais um dia de trabalho perdido, pensou. E estou com dois retratos
atrasados.
Chegaram ao palácio da justiça vinte minutos depois, e Goya precisou
negociar bastante até conseguir um passe de entrada, para ele e para
Anselmo. Sua fama lhe foi útil, assim como sua bolsa. Inês ficou outra vez na
carruagem, sob a vigilância do cocheiro. Goya disse a ela que iria ver os
dominicanos e pediria notícias do bebê. Algum deles saberia algo, com
certeza. Mas poderia levar algum tempo. Uma hora ou duas, talvez.
Na verdade, ele não sabia o que fazer. Tentava tranqüilizar Inês, que se
agarrava a ele, só tinha a ele no mundo, mas receava não poder entrar em
contato com os monges presos, destituídos, que nesse mesmo momento
iam ser julgados. E se os encontrasse, o que diriam? E se essa história de
bebê fosse uma fantasia?
Para entrar, foi ajudado por um fato novo: a justiça agora era pública.
Podia haver espectadores, homens, mulheres da rua. Como nesse dia se
julgariam inquisidores, o salão estava lotado, e o público, provavelmente
coalhado de espiões, parecia composto majoritariamente de ilustrados e
afrancesados que vieram assistir à derrocada do poder inquisitorial, por
tanto tempo incomunicável.
Os franco-maçons madrilenos, que por fim ousavam aparecer
abertamente, exibiam seus emblemas triangulares, a régua, a colher de
pedreiro, o olho aberto para os segredos do mundo, e cumprimentavam-se
uns aos outros, muito sérios, com gestos singulares.
Pendurados nas paredes ou em tapeçarias, diversos símbolos se
contrapunham: águias espanholas contra abelhas imperiais, vestígios da
monarquia contra imagens republicanas trazidas recentemente da França,
barretes frígios e feixes de lictor para lembrar a Antiguidade, porque os
historiadores sabiam que a Espanha fora romanizada antes da França e
certos imperadores louvados por todos, como Trajano, haviam sido
ibéricos, como se chamavam na época os espanhóis.
Por fim, para aumentar a confusão emblemática, um retrato de
Napoleão uniformizado dominava a sala, rodeada de bandeiras tricolores,
logo abaixo de uma alegoria da Justiça em mármore branco, com a balança
e a faixa.
Sob a vigilância de soldados franceses - ou talvez espanhóis, mas com
uniformes franceses -, vinte e cinco inquisidores, aqueles que tinham sido
levados a pé para Madri, esperavam sua sorte, sentados em bancos. O padre
Gregorio, aparentemente muito fraco - talvez tivesse sofrido um ataque -,
estava deitado numa maca de madeira, com os olhos entrecerrados, a boca
fechada.
À sua frente, embaixo de uma bandeirola em que se liam em letras
tricolores as três palavras-força da magia dos novos tempos, LIBERDADE,
IGUALDADE e FRATERNIDADE, havia seis juízes cujas idades não passavam
dos quarenta anos. Três deles eram franceses e três espanhóis, escolhidos
entre os espíritos que se declaravam modernos e liberados. Ao contrário
dos inquisidores, pareciam vigorosos, decididos, com a mente clara,
seguros de si mesmos.
Entre os juízes e os acusados ia e vinha aquele que tinha a função de
promotor, o comissário vindo da França, com poderes especiais. Esse
homem era Lorenzo.
Quando Goya entrou na sala, com Anselmo abrindo o caminho entre a
massa de espectadores, reconheceu-o assim que ficou próximo o suficiente
para distinguir os rostos.
Permaneceu imóvel por um instante, tomado por uma espécie de
estupor, de incredulidade. Apesar de algumas rugas formadas pelo tempo,
apesar do cabelo comprido que lhe caía nas costas, apesar de sua roupa
brilhante, seu xale de três cores, sua calça branca, suas botas reluzentes
que faziam barulho de couro novo quando caminhava na frente dos
acusados, apesar da espada batendo em sua coxa, era mesmo ele. Lorenzo.
Todo aquele aparato teatral não conseguia disfarçar, para os olhos
experientes de Goya, o olhar sombrio e pesado, os ombros fortes, as mãos
rústicas. Estava com quarenta e sete ou quarenta e oito anos.
Enquanto falava, Lorenzo desfilava com segurança no meio do salão.
Seu corpo parecia estar mais erguido, mais firme. Goya não podia entender
suas palavras, não as ouvia, mas adivinhava que eram fortes e claras.
Assombrado demais para fazer alguma pergunta ao assistente, ficou
parado, sacudido pelos espectadores, com o olhar grudado em Lorenzo,
naquele rosto que tinha pintado e que o fogo destruíra em praça pública.
Ele falava das idéias da Revolução Francesa, e falava com ardor.
Elas me abriram os olhos, dizia, como deveriam abrir todos os olhos do
mundo, até dos cegos. Por quê? Porque são humanas, para começar. Não
surgem de uma lenda, de alguma autoridade nebulosa. Não nos foram
impostas por nenhum concelho sectário. Elas vêm do povo, são obra dos
representantes do povo, que as conceberam e votaram as leis que delas
decorrem.
Goya se inclinou para dizer algumas palavras a Anselmo, apontando
para o orador. O assistente observou Lorenzo com mais atenção e também
o reconheceu. Olhou para Goya e baixou a cabeça, igualmente atônito.
Lorenzo falava em espanhol, deixando escapar às vezes alguma palavra
francesa, e recebia com naturalidade os aplausos que vez por outra surgiam
do público e dos jovens juízes.
Anselmo tentou traduzir para Goya algumas de suas frases, mas era um
discurso abstrato, difícil de expressar com gestos. Goya murmurou que não
era preciso.
Essas leis, clamava Lorenzo, transcritas, graças a Napoleão Bonaparte,
no Code civil (diz estas duas palavras em francês, depois as repete em
espanhol), sem o qual toda a vida social é hoje inconcebível, têm uma dupla
qualidade: são irresistíveis e são universais. Irresistíveis, porque foram
estabelecidas por homens e para os homens. Universais, porque são lógicas
e justas (aplausos). Portanto, devem impor-se por si mesmas a todos os
homens. Naturalmente, elas ferem inúmeros interesses, velhos egoísmos,
hábitos de dominação brutal que não podem ser destruídos por decreto,
por mais legítimo que seja. Devem, por ora, ser defendidas e sustentadas
pelas forças armadas da Revolução, cujo braço armado, o braço vencedor, é
Napoleão Bonaparte. Mas um dia hão de triunfar sem esforço em toda a
superfície da Terra, sem a ajuda dos canhões e dos sabres. Tomar-se-ão
uma evidência para o mundo. Todos os homens, onde quer que estejam,
nascem livres, e todos possuem os mesmos direitos naturais. A liberdade é
o primeiro dos direitos (apontou para a bandeirola, acima dos juízes) e a
Revolução não terá piedade daqueles que tentarem destruí-la. Isso mesmo.
Como proclamou Saint-Just, que pagou suas idéias com a vida, não haverá
liberdade para os inimigos da liberdade.
Mais aplausos e gritos de aprovação, outra vez. Os próprios juízes
batiam palmas. Goya perguntou em voz baixa ao assistente de que estava
falando Lorenzo, para provocar tais reações. Anselmo, um homem
rechonchudo, de estatura baixa, que na maior parte do tempo passava
despercebido, fez um gesto, levantando os ombros, como se dissesse: ah,
nada de especial.
Lorenzo deu alguns passos em direção ao antigo inquisidor principal de
Madri. Deitado na maca, certamente já muito idoso, com as pálpebras
pesadas e baixas, o padre Gregorio Altatorre dava a impressão de não
acompanhar o debate, parecendo esperar a sua sorte com resignação, como
se já tivesse ultrapassado as fronteiras do outro mundo.
Lorenzo, que naturalmente estava a par da abolição oficial do Santo
Ofício, parou diante dele, encarou-o em silêncio por um instante e disse,
insistindo quase ironicamente na palavra padre:
Padre Gregorio, não tenho nada, pessoalmente, contra o senhor.
Acredite.
O padre Gregorio ergueu lentamente as pálpebras, como se aquilo lhe
exigisse um esforço prolongado e contínuo. O azul muito claro dos seus
olhos apareceu, uma fenda estreita, e se deteve em Lorenzo, que se
lembrava muito bem desse olhar tranqüilo. Os dois homens ficaram um
momento em silêncio, um diante do outro, e depois o novo promotor
continuou:
No entanto, o senhor deve entender que é, para nós, a encarnação do
obscurantismo mais espesso, mais nefasto. O senhor foi um apóstolo
infatigável do sectarismo e do fanatismo. Na sua condição de inquisidor foi
por muito tempo instrumento da mais dura opressão, pois era ao mesmo
tempo coaçáo do corpo e ditadura do espírito.
O senhor é, a meu ver, o que há de pior na Espanha e, junto com os seus
cúmplices, será julgado como merece, conforme seus atos.
Apanhou na mesa uma folha de papel e leu: Detenções e
encarceramentos arbitrários, interrogatórios forjados, falsificados e
dirigidos, extorsão de confissões sob tortura, penas prolongadas nas piores
condições, causando numerosos falecimentos.
Largou a folha e perguntou ao ancião: O senhor tem alguma coisa a
dizer em sua defesa? O padre Gregorio levou alguns segundos antes de
balançar debilmente a cabeça. Não, não tinha nada a dizer.
Depois, tornou a fechar os olhos. Lorenzo voltou-se para os juízes e
disse que podiam iniciar a votação. Eles receberam papéis com os nomes de
todos os acusados.
Deviam escrever seu veredicto na frente de cada nome.
Isso levou mais de uma hora. Os juízes se levantavam às vezes para
trocar impressões com seus colegas. Lorenzo estava sentado e consultava
suas anotações. Fazia questão de demonstrar ostensivamente que não
influía nos votos, embora todos se perguntassem, na sala, o que ele teria
recomendado aos juízes nos corredores, antes do início da sessão.
Goya pediu ao seu assistente que fosse rapidamente tranqüilizar Inês.
Como tinha previsto, aquilo levaria tempo. Ela precisava esperar no veículo
com paciência.
Um elemento novo acabava de entrar, inesperadamente, na história.
Aquilo podia mudar tudo.
Um jovem reconheceu Goya e pediu que lhe conseguissem um lugar
sentado, o que foi feito. O pintor lamentou não ter levado nenhum caderno
de esboços.
Um dos monges mais idosos sentiu-se mal. Foi preciso ajudá-lo a sair da
sala. Voltou dez minutos depois, muito pálido. Uma de suas mãos tremia.
Por fim, os seis juízes entregaram suas decisões. Um deles as reuniu, fez
a contagem dos votos e comunicou o resultado aos outros cinco. Todos
aprovaram. A sentença foi transmitida a um escrivão, que fez a leitura em
nome da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Dois dominicanos, dos mais idosos (um deles era o que havia passado
mal), foram perdoados. Estavam livres para continuar a vida como e onde
quisessem. Outros seis, que representavam, como Lorenzo sabia (ele estava
bem situado para isso), a tendência menos dura, mais esclarecida do Santo
Ofício, receberam penas de prisão bastante leves. Outros, mais
conservadores, tiveram penas mais duras. Cinco inquisidores, por fim,
foram condenados à morte. O padre Gregorio era um destes.
A sala aplaudiu pela última vez, enquanto os juízes se retiravam. Alguns
jovens, espanhóis, precipitaram-se para dar parabéns a Lorenzo. A
sentença lhes parecia exemplar.
Quatro soldados levantaram a maca do padre Gregorio e o retiraram da
sala, pedindo à multidão para abrir caminho. Alguns espectadores
cuspiram em sua cara, sem que ele abrisse os olhos, mas a maioria ficou
silenciosa durante sua passagem. Os monges, tanto os condenados à morte
como os outros, continuavam em silêncio.
Rezavam, de cabeça baixa.
As pessoas deixaram a sala. Goya viu que Anselmo voltara e lhe fazia
sinais de que tudo estava bem, Inês continuava na carruagem, esperando lá
fora. Ela tinha adormecido. Melhor, pensou Goya.
Preparou-se para seguir os monges condenados, perguntando se teria
alguma chance de falar com um deles sobre Inês e o bebê. Talvez fosse
melhor se dirigir diretamente a Lorenzo. Mas ele estava fora da Espanha há
tanto tempo: o que poderia saber?
Quando a sala já estava quase vazia, Goya se levantou do banco onde lhe
permitiram ficar. Nesse momento, o próprio Lorenzo ia saindo, com um
maço de papéis sob o braço, na companhia de um secretário.
De repente viu o pintor e gritou: Goya! Entregou os papéis ao secretário
e caminhou em direção ao pintor, de braços abertos.
Quando saiu da Espanha, em 1793, Lorenzo não levou nada, ou quase
nada. A idéia de voltar para a aldeia de sua família lhe parecia insuportável.
Partiu com uma quantia - talvez em parte roubada, nunca se soube - que lhe
permitiria sobreviver durante algumas semanas e com a idéia vaga, ainda
hesitante, de que a única direção a tomar seria a da França.
Foi o que fez, quase sempre a pé, andando noite e dia, vivendo às vezes
da caridade, em asilos, e dormindo várias noites com ovelhas e cabras.
Atravessou os Pirineus na escuridão, por trilhas que lhe indicaram. Depois
continuou até Paris. Voltando à sua formação original, a de camponês, às
vezes ficava vários dias em algum lugar ajudando nos trabalhos do campo,
em troca de uma sopa e uns tostões. Ouvia o que se dizia, começava a
entender o francês, até mesmo a falar um pouco, pois sua mente ainda era
ágil e, sobretudo, curiosa.
Quando chegou a Paris, dois meses antes do começo do Terror, teve
sorte. Num solar do bairro de Saint-Germain que fora abandonado pelos
proprietários, nobres emigrados, os empregados, ao se verem sem salário,
tinham aberto um restaurante um ano antes. Era uma nova moda, nascida
da necessidade. Os trabalhadores, gente do povo, mulheres e homens,
usavam habilmente os tetos altos do prédio nobre, as luminárias, as
cozinhas, e até alguns móveis marchetados (tinham vendido boa parte aos
holandeses, para investir em pratos e talheres), para atrair essa nova
freguesia de mercadores de armas e negociantes de todo tipo que, graças à
inflação, à guerra e à desordem no comércio, assumiam o papel de
senhores do futuro e inauguravam, nas madeiras trabalhadas e nas
douraduras dos aristocratas fugidos, os almoços e jantares de negócios.
Lorenzo, sem um tostão no bolso, por acaso passou por esse solar num
dia agitado, em que estava sendo preparada uma refeição improvisada para
cinqüenta comensais e o restaurante precisava de braços. Um maitre
d'hôtel interceptou Lorenzo na rua e propôs empregá-lo na hora. Ele estava
com fome, e aceitou. Foi encarregado, na cozinha, de descascar e cortar
legumes, coisa que sabia fazer desde jovem. Também sangrou e esfolou
coelhos. Depois comeu, e foi dormir num sótão.
No dia seguinte, por estarem bastante satisfeitos com ele, os donos do
estabelecimento, um homem e uma mulher, propuseram que ficasse mais
alguns dias. Aceitou, sem revelar sua identidade. Disse simplesmente que
tivera que sair da Espanha por motivos políticos, o que foi bem-visto.
Quanto à sua alimentação e seu catre, não fez nenhuma reclamação.
Deram-lhe uniforme, sapatos, meias e dois dias depois estava servindo
as mesas. Aproveitava toda oportunidade para aprender palavras em
francês, que escrevia em pedacinhos de papel para colar depois nas
paredes do seu quarto. Assim ficariam sempre diante dos seus olhos. Uma
noite, ouvindo uma conversa sobre religião, sobre aqueles malditos padres
que atiçavam a guerra em Vendée (muito embora a guerra tivesse seu lado
bom para os fornecedores), ousou fazer um comentário. Disse que vinha de
uma terra onde a autoridade religiosa havia exagerado tanto as suas
exigências que o país inteiro sofria e estava à deriva.
Todos concordaram, ofereceram-lhe uma taça de vinho da Champagne,
que saboreou pela primeira vez na vida, e a partir do dia seguinte recebia
seu primeiro salário.
Nas semanas que se seguiram, Lorenzo, que não perdera seu espírito
agudo nem sua paixão pelo saber, conheceu, dia a dia, a Revolução
Francesa. Convivendo com trabalhadores nas cozinhas, e muitas vezes nas
baiúcas da vizinhança, onde ia tomar um gole nos raros momentos de
descanso, aprendeu a conhecer o povo, viu seu entusiasmo, suas
esperanças, suas dúvidas, seus temores de uma volta ao passado. Falou
com eles, ouviu-os, entendeu a força oculta dos humildes. E viu que formas
de existência até então inimagináveis se abriam diante deles. Viu também
seu orgulho por terem o direito de escolher seus representantes, fazer suas
reivindicações, participar de reuniões, escrever nos jornais.
Começou a ler livros revolucionários, resumos das obras de Rousseau,
de Voltaire. Passava noites inteiras lendo. Idéias que na Espanha, em Madri,
vira apenas se esboçar, mais ou menos secretamente, aqui o
surpreenderam e inflamaram. Percebeu logo a força dessa independência,
dessa autonomia do espírito humano, que a partir de então não dependeria
mais de nenhuma outra autoridade senão a própria, de nenhuma tradição
imposta, de nenhuma religião, de nenhuma crença. Entendeu a força da
razão individual e viu todas as promessas que esta trazia. Folheou uma
coleção de L'Ami du peuple, o jornal de Marat, que um dos seus colegas do
restaurante conservava reverentemente. Em pouco tempo seu espírito se
abriu. Viu surgir uma luz viva que, em Madri, não suspeitava existir. Até
mesmo a decapitação do rei, que à distância o havia horrorizado, parecia
agora um ato menor no meio do enorme movimento popular que o
arrebatava, como aos outros.
Um dos maitres do restaurante levou-o um dia ao clube dos Cordeliers,
onde ouviu Camille Desmoulins e Danton. Este o impressionou por sua
expressão e por seu discurso, que lhe davam uma autoridade imediata.
Andou, como todo mundo, sobre as estátuas de santos que juncavam o chão
daquele antigo convento. Ficou surpreso, também, com a intervenção
direta da multidão, seus gritos, seus cantos, seus punhos levantados, suas
exigências. Jamais teria imaginado, na Espanha, e muito menos no interior
do Santo Ofício, que um dia o povo poderia se expressar assim, em público,
de peito aberto, e falar de igual para igual com os chefes do momento.
Certo dia, ao amanhecer, depois de uma noite em claro, Lorenzo perdeu
a fé. Foi como uma espécie de revelação, que caiu como um raio. Viu as
brumas sem forma em que tinha vivido até então, e entendeu sua origem,
sua utilidade, seu artifício e sua vaidade. Percebeu num átimo a distinção
entre o mito e o discurso sensato.
Teve a certeza de que o homem ia do nada para o nada e que todo o seu
destino, toda a sua dignidade, toda a sua força dependiam do que pudesse
ver e realizar nessa breve passagem, justamente, e não na ilusão, gloriosa
mas pérfida, de uma vida eterna.
Portanto, era aqui mesmo na Terra que devia agir. Passar da salvação à
felicidade.
A partir do mês de outubro, como seu francês melhorava rapidamente e
o Terror, que a princípio lhe parecia necessário, estendia sua sombra por
todo o país, começou a mandar para os jornais artigos que assinava como
El Campesino ou El Murciano, ou também como Um inquisidor
arrependido. Nesses textos, geralmente assumia o papel de pobre
camponês espanhol que, num país sombrio e oprimido, sonhava com a
revolução. Às vezes, quando assinava como ex-inquisidor, enveredava por
considerações religiosas ou teológicas, campo que dominava, e
desmantelava as pirâmides de crenças com habilidade e erudição.
Em dezembro, aventurou-se a tomar a palavra nos Cordeliers, falando
com vigor de coisas que conhecia, da triste coroa espanhola, de um império
colonial que não tinha mais justificativa e que estava em decomposição, do
empobrecimento irreversível da Espanha e dos métodos da Inquisição,
evitando cuidadosamente dizer que ele mesmo os havia tornado mais
duros.
Foi aplaudido. Três dias depois, falou de novo, dessa vez sobre os povos
conquistados e submetidos, forçados a aceitar a fé cristã sob a ameaça de
canhões. Fouché, que estava presente, reparou nele e o chamou para
conversar. Lorenzo então lhe contou sua vida, disse quem era e como,
graças às convulsões recentes, há alguns meses sentia-se um homem novo,
disposto a agir, a empurrar o mundo para a frente. Disse que fora expulso
da Inquisição, o que era um ponto a seu favor, mas sem explicar o motivo.
Falou simplesmente de uma discordância profunda, irreversível, com a
direção do Santo Ofício. Foi elogiado por essa ruptura.
Fouché, que o apreciava, aconselhou que tivesse prudência, o que
permitiu a Lorenzo atravessar sem preocupações os primeiros meses de
1794, que foram os mais duros, os mais perigosos do Terror. Como muitos
outros, entre janeiro e julho, apareceu pouco, viajou para as províncias,
chegou a se alistar numa companhia de granadeiros, lutou na Lorena
durante três meses, foi ferido no braço, voltou a Paris numa carroça.
Quase curado, quando foi declarada a guerra contra a Espanha saiu do
hospital com um diploma republicano e se fez de desentendido. Não queria
se envolver nessa guerra, nem mesmo de longe.
Fouché lhe conseguiu um emprego logo, modesto, mas remunerado, de
secretário na área de Relações Exteriores. Lorenzo se demitiu do
restaurante - aonde voltaria muitas vezes como cliente, alguns anos mais
tarde - e atravessou discretamente, sem problemas, o período das
execuções de Danton, e depois de Robespierre e seus homens. Com um ano
em Paris, não tivera tempo de estabelecer relações com eles, de maneira
que não foi perturbado.
Conheceu o abade Gregorio, que trabalhava no projeto de lei graças ao
qual a escravidão, pela primeira vez na história do mundo, seria
oficialmente suprimida -
por pouco tempo, na verdade, porque Bonaparte iria restabelecê-la
pouco depois nas Antilhas. Os dois homens, cuja formação religiosa os
aproximava, sentiam simpatia mútua. O abade Gregorio era um admirador
de Bartolomeu de Las Casas, o dominicano andaluz que se atrevera, já no
começo da conquista do Novo Mundo, a tomar a defesa dos índios. Estava
trabalhando no seu Elogio. Lorenzo, que concordava com ele, forneceu-lhe
detalhes sobre as particularidades dos dominicanos espanhóis.
Durante o período do Diretório, foi se aproximando paulatinamente do
verdadeiro poder. Embora ainda falasse francês com sotaque espanhol,
escrevia corretamente o idioma. Havia conseguido uns instrutores, jovens
estudantes que o ajudaram a penetrar nas sutilezas da gramática. Copiava
páginas inteiras de Diderot e de Rousseau.
Nos períodos difíceis que atravessou - como aconteceu em 1794 -, dava
aulas de espanhol, traduzia romances picarescos e peças de Lope de Vega,
às quais dava um ar e um tom revolucionários.
Na época do Diretório, continuou defendendo com vigor, nos jornais, as
mesmas idéias revolucionárias, apesar da derrocada dos extremistas. Dizia
que a Revolução havia cometido excessos lamentáveis, mas que, a pretexto
dos erros e ambições de alguns, não se deviam negar os princípios
inalteráveis que em breve, amanhã mesmo, trariam a felicidade aos povos.
Bastava simplesmente admitir que, se as situações de urgência exigiam
medidas de exceção, a confiança depositada nas mãos do povo, e só do
povo, por melhor que fosse o príncipe, também implicava perigos.
Viu com alegria que a França e a Espanha assinavam um tratado de paz,
após uma guerra inútil.
Fouché recomendou-o a Barras, um dos organizadores do golpe de
Estado de i8 Brumário, que abria as portas do poder absoluto para o
general Bonaparte. Lorenzo se encontrou brevemente com o primeiro-
cônsul, que estava informado do seu passado de inquisidor e o inseriu
como conselheiro das ordens monásticas nas negociações que levaram à
Concordata. Lorenzo teve oportunidade até de se encontrar brevemente
com o papa, que lhe disse algumas palavras. Teve o cuidado de não lembrar
que tinha sido membro do Santo Ofício espanhol, mas aparentemente o
papa sabia.
Nessa época, por conselho de Barras, que pensava que um dos maiores
erros de Robespierre fora ficar solteiro e até, na certa, nunca ter se deitado
com uma mulher, Lorenzo se casou com a filha de um burguês de Reims,
comerciante de tecidos e fornecedor de polainas para a infantaria de
campanha. Loura, com dentes irregulares, um pouco insossa mas afável, ela
lhe trouxe um belo dote e lhe ensinou boas maneiras. Barras não lhe disse
que essa mulher tinha sido sua amante, como algumas dezenas de outras.
Lorenzo suspeitou, mas pouco lhe importava.
Foi morar com ela num apartamento perto das TuIherias e contratou
três empregados domésticos. Sabendo ocultar seu gosto pela autoridade
sob uma aparência de suavidade, e até mesmo de benevolência, recebeu
convidados, fez amigos, conquistou a reputação de homem brilhante, culto,
afável, e no entanto brusco, às vezes irônico, que soube superar uma
infância pobre, na Espanha, e várias circunstâncias difíceis, para tornar-se
um homem dos novos tempos e adquirir o que se chamava de uma situação
invejável.
Assim, ao longo dos primeiros anos do Império, firmou sua reputação,
trabalhou duro e cumpriu com talento duas missões ofíciosas junto ao
Vaticano, que lhe renderam elogios, por escrito, de Napoleão em pessoa.
Por intermédio de um comerciante de Toulouse, conseguiu enviar
dinheiro para a sua família, em Múrcia, ocultando cuidadosamente seu
endereço. Na maior parte do tempo, dizia chamar-se Laurent.
Quando começaram, em 18o8, as dificuldades na Espanha que levariam
ao encontro de Baiona e à nomeação de José, foi consultado em diversas
ocasiões. A princípio, em 1795 e 1796, após o final da guerra com a França,
ele sonhara ver na Espanha uma república irmã, em que o poder, depois de
eleições, iria naturalmente para os ilustrados. Ao mesmo tempo, via com
lucidez os obstáculos que se contrapunham a essa república repentina e
artificial, num país ainda sombrio e velho. Acabou se convencendo também
de que a Espanha, como outros países europeus, devia continuar sendo
uma monarquia, ao menos por enquanto. Guardou seus ideais republicanos
numa gaveta, ficando porém, no fundo, sinceramente fiel a eles.
Não era cego: via perfeitamente que o novo homem forte, apesar de sua
origem revolucionária, só visava, como sistema político, ao poder
estritamente pessoal - o que se confirmou após a coroação imperial de
1804.
Acompanhou com assombro e admiração, como todo mundo, o início
fulgurante do novo Império. Participou do cortejo de Napoleão em Baiona e
deu seu parecer quando foi consultado. Teve a oportunidade de estar com
Carlos iv e seu filho Ferdinando, separadamente. Os dois homens, que não o
conheciam, ficaram surpresos com a excelência do seu espanhol e com seus
conhecimentos da culinária e dos costumes da península.
Disseram que o imperador sabia escolher seus colaboradores, e isso foi
comentado.
Quando surgiu a proposta de nomear José Bonaparte como rei da
Espanha, pediram sua opinião. Ele respondeu que, nas atuais
circunstâncias, tendo em vista a evidente fraqueza dos dois postulantes
espanhóis ao trono, pai e filho, que se dilaceravam publicamente, a escolha
de um ou de outro provocaria certamente uma guerra civil, que seria longa
e mortífera e obrigaria a França a fazer uma intervenção maciça.
Por isso, disse, a escolha de um homem como José Bonaparte, que tinha
a experiência do poder real e que, não pertencendo a nenhuma facção,
certamente saberia ser imparcial, parecia uma idéia feliz.
Declarou-se até disposto a ajudar o novo soberano, se fosse o caso.
Como era persuasivo, foi escutado até pelo próprio imperador, que o
recebeu durante mais de uma hora com seus principais conselheiros.
Depois, Napoleão ainda o reteve por uns dez minutos, fazendo-lhe algumas
perguntas precisas, a sós: qual era a diferença exata entre o interrogatório
comum e o extraordinário, que proporção de confissões verossímeis podia
ser admitida segundo os casos, que influência a Inquisição ainda tinha na
Espanha, que relações o Santo Ofício mantinha com a Coroa, com o papado,
quais eram suas redes de correspondência e assim por diante.
Lorenzo respondeu da melhor maneira que pôde. Napoleão, que disse
tê-lo reconhecido, embora só o tivesse visto de relance durante as
negociações sobre a Concordata, agradeceu e pôs a mão em seu ombro
quando se despediu. Para o pequeno campônio de Múrcia, ex-empregado
de um restaurante parisiense, foi sem dúvida um momento excepcional,
que provavelmente lhe recordou aquele encontro coletivo, mais de vinte
anos antes, em Roma, com um papa que o havia chamado de soldado de
Cristo.
Alguns meses mais tarde, sem ter solicitado o cargo, Lorenzo Casamares
estava de novo em Madri, com o vago título de Conselheiro Especial para
Assuntos Espanhóis, um tratamento de luxo e poderes cuja extensão ele
mesmo não conseguia avaliar.
Lorenzo e Goya avançam lado a lado por um corredor do palácio da
justiça. O assistente-intérprete, Anselmo, tenta se insinuar entre os dois,
para não ficar atrás.
Lorenzo parece sinceramente feliz por reencontrar Goya, que agora
trata com intimidade. Este acaba de contar como perdeu a audição, quinze
anos antes, em Cádiz.
Fala dos ruídos que ouvia, das dores de cabeça, das suas alucinações, do
poço de silêncio em que vive há mais de quinze anos. Também fala do seu
trabalho, mas pouco. Lorenzo conta que conheceu o pintor David, em Paris,
mas não tinha dinheiro suficiente, muito pelo contrário, para lhe
encomendar um retrato. Goya ouvira falar de David, que como ele passou
sem esforço de um regime para o outro, mas o conhece pouco, como
conhece pouco outros pintores famosos, vivos ou mortos.
As obras pictóricas originais viajavam pouco. Goya só vira de perto
alguns pintores italianos, na juventude. Só tinha alguma idéia de
Rembrandt, por exemplo, ou de Poussin, por reproduções em gravuras,
muitas vezes medíocres.
Tantas coisas mudaram na nossa vida, e em tão pouco tempo, disse
Lorenzo, levando-o para um grande aposento que lhe servia de escritório.
Que estranha é a vida, como o mundo nos leva e nos traz... Sente-se,
Francisco... Quem poderia pensar que um dia eu voltaria aqui, à minha casa,
para defender os princípios da Revolução Francesa?
Goya sentou-se na poltrona que lhe foi oferecida. Seus olhos vão de
Lorenzo ao seu assistente, que fica em pé. Lorenzo fala bastante da sua
antiga admiração por ele, que não diminuiu, e da sua amizade. Ele é o maior
artista espanhol depois de Velásquez, afirmação que Goya nega com as
duas mãos. Lorenzo insiste: Sim, sim, o maior. Nem se discute. E não apenas
o maior: o único.
De repente, pergunta: Sabe que eu lhe devo dinheiro? A mim?,
perguntou Goya, dando uma espiada no assistente.
Sim, claro. Mas por quê? Nunca lhe paguei o meu retrato. Ele foi
queimado, diz Goya. Sim, eu soube. Mas isso não importa. Fiquei devendo.
Goya rejeita também essa idéia, agitando as mãos. O assunto está
esquecido.
De todo modo, diz Lorenzo com um sorriso, hoje eu não poderia
pendurar esse retrato em lugar nenhum.
Goya também faz um esforço para sorrir. Esse homem de olhos
sombrios que está à sua frente, muito à vontade em sua nova indumentária,
de pernas cruzadas, com a mão esquerda em cima de uma pilha de papéis,
balançando volta e meia seu cabelo comprido, o pintor conhece bem.
Atraente, convincente, mas perigoso. Ele sabe disso.
Você veio ver o julgamento por curiosidade?, perguntou o novo
Conselheiro para Assuntos Espanhóis.
Não, respondeu Goya movendo a cabeça. Já sabia que eu estava aqui?
Não. Eu não ouço mais nada. Vivo isolado, poucas pessoas falam comigo.
Queria alguma coisa? Sim, diz Goya. Um favor que eu possa lhe fazer?
Talvez. A conversa é bastante lenta. As idas e vindas levam seu tempo.
Pode falar. Não tenho muita disponibilidade, como pode imaginar, mas
estou feliz por reencontrá-lo. Farei tudo o que puder por você. Prometo.
Goya toma coragem e afinal decide explicar a Lorenzo a verdadeira
razão da sua presença. Está atrás de informações sobre uma pessoa.
Que pessoa? Lembra-se daquele rico mercador em cuja casa jantamos
juntos, uma noite, que forçou você a confessar que... Lembra-se dele?
Como poderia esquecer?, pergunta Lorenzo sem perder o sorriso. Foi
você quem me levou lá, fiquei com rancor por muito tempo. Como se
chamava ele?
Bilbatua. Tomás Bilbatua. Ah, sim, um basco. Com todos aqueles
quadros... E então? O que foi dele?
Morreu. Você não vai acreditar, Francisco, mas isso me entristece.
Morreu há muito tempo?
Há poucas semanas. Ele tinha uma filha.
Uma filha, certo, diz Lorenzo, sempre dono de si. Uma filha jovem,
bastante bonita, lembro bem dela. Ela estava nas nossas masmorras, a
coitada. Foi por sua causa que ele quis me ver naquela noite, não é mesmo?
Sim. E então? Ela está só, precisa de ajuda. Que venha me ver. Quando
quiser. Ela está aqui, diz Goya. Onde? Na minha carruagem. Lá fora. Fui eu
que a protegi quando ela saiu.
Quando saiu? Não faz muito tempo. Eles a mantiveram presa até agora?
Sim. Que vergonha. Então vá buscá-la! Vá buscá-la agora mesmo!
Goya não esperava aquela súbita generosidade, que parecia sincera, e
até precipitada. Pede a Anselmo que vá buscar Inês. O assistente sai. O
diálogo fica então mais difícil. Lorenzo começa a gritar, tentando dizer
alguma coisa a Goya, mas este levanta a mão e interrompe: Não, não grite,
não faça isso. De todo modo, não escuto nada. Olhe para mim e fale devagar,
articulando bem.
Assim?, perguntou Lorenzo, encarando o pintor que observa seus
lábios.
Sim, assim, muito bem. Eu devo tudo àquele homem. A quem? Àquele
basco. O comerciante. Eu lhe devo tudo., A ele?
Sim, a ele. Foi por causa dele que me excluíram da Ordem, que eu fugi,
que fui para a França. E que vi tudo claro, de repente.
Em poucas frases Lorenzo conta a Goya dezesseis anos da sua vida, tudo
o que viu, tudo o que fez, como perdeu brutalmente a fé que o sustentava
desde a infância, como entendeu a que ponto estivera errado até então.
Arregaça uma das mangas de sua vestimenta para mostrar a marca da
ferida e diz: Olhe, até derramei sangue pela Revolução. Fui batizado pela
segunda vez! E me casei! Sim, eu, que fiz voto de celibato, casado, e com
uma francesa! Vou apresentá-la a você! E temos três filhos, que vão chegar
aqui um dia desses. Você vai conhecê-los. Olhe, tenho uma idéia, você vai
pintar o nosso retrato, um belo retrato de família, combinado? E dessa vez,
incluindo as minhas, terá dez mãos para pintar! Dez! Posso me dar esse
luxo, acredite!
Lorenzo fala muito, diz que esteve com Napoleão, que seu olhar é
inesquecível (isto todos os europeus repetem, mesmo os que nunca o
viram), que seu irmão José é um homem notável, devotado, honesto,
amante da arte (tem o sonho de construir um grande museu público em
Madri, tendo o Louvre como modelo), um homem simples, com quem é um
prazer trabalhar, um homem que a pobre Espanha deveria receber com
alegria e gratidão, em vez de alvejá-lo pelas costas.
Mas isso ainda vai acontecer, ele tem certeza. Basta ver Ferdinando
durante cinco minutos para saber que essa metade de homem traz consigo
a infelicidade, a ignorância, a crueldade e a dor antiga. É um rei para se
jogar no fundo do poço do esquecimento, junto com tantos outros. Um rei
para se pisar em cima, para esmagar como uma barata, como uma lesma
venenosa, um aborto, um tirano de nascença. A liberdade é uma chance que
não se pode perder, porque não surge de novo tão cedo, diz Lorenzo, que
tem cem belas frases como aquela na ponta da língua.
Eles não trocam uma palavra sobre o julgamento que acaba de
acontecer, aquele tribunal sem dúvida improvisado, aquele veredicto já
previsto, sobre o velho mandado para a morte. Goya é prudente nessas
questões, como de costume. Nunca se sabe.
Batem na porta. Entre!, diz Lorenzo em voz alta. O assistente regressa e
faz Inês entrar, pálida e fraca, com o cabelo lavado e penteado, pouco à
vontade num vestido que Josefa lhe emprestou, um tanto grande para ela.
Quando vê Lorenzo, ela o reconhece, olha-o fixamente e de repente fica
como que petrificada, reduzida ao silêncio. Mas o oposto não é verdadeiro:
Lorenzo a encara com gentileza, com interesse, mas sem parecer
reconhecê-la. Inclina ligeiramente a cabeça e o tronco, como homem cortês
que é, diz seu nome, acrescenta que acaba de saber da morte de Tomás
Bilbatua e que está consternado. Um homem que conheceu há muito
tempo. E também pergunta:
O que posso fazer por você? Inês, que ficara imóvel por alguns instantes,
de repente se anima, atravessa os quatro ou cinco metros que a separam de
Lorenzo, joga-se aos pés dele, segura suas mãos e as beija, várias vezes.
Ele fica embaraçado, faz esforços para se libertar, pede a ela que pare,
que se acalme. Mas Inês segura com firmeza suas mãos, que aperta e
continua beijando.
Por favor, diz ele, por favor... O que foi? O que posso fazer por você?
Diga-me!
Ela lhe diz: O que aconteceu com a nossa filha?
Ele pede que repita a pergunta, o que ela faz de outra maneira:
Nossa filhinha? Onde está? Lorenzo olha para Goya, pedindo alguma
ajuda, alguma explicação. Goya adverte: Desde que ela voltou, não pára de
falar de um bebê.
Um bebê? Sim, de uma filhinha, que lhe teriam tirado.
Recentemente? Não sei. Lorenzo se volta para Inês e lhe pergunta em
voz suave quanto tempo ficou nas prisões do Santo Ofício. Ela responde,
após um silêncio, que não faz idéia. O tempo passou, e pronto. Foi muito
tempo. Demais. E muito sombrio, exceto a missa uma vez por semana ou
um passeio silencioso pelo claustro, quando fazia bom tempo.
E pensa que teve um filho na prisão? Sim, tive um bebê. Uma filhinha.
Na prisão? E a tiraram de mim. Quero saber onde está. Minha filhinha.
Nossa filhinha.
Nossa filhinha? Sim. O nosso bebê. Goya, que não ouve a conversa, pede
ajuda a Anselmo. Este lhe explica, fazendo alguns gestos (muito claros) com
as mãos e alguns movimentos de lábios, que Lorenzo seria o pai do bebê de
Inês. Pelo que ela diz.
Lorenzo, justamente, pergunta a Inês: Você pensa que eu sou o pai do
seu bebê? Sim, responde ela com determinação. Sim, o senhor. E o que a faz
pensar isso? O senhor foi o único homem que conheci.
Lorenzo abaixa lentamente a cabeça. Uma tristeza repentina aparece no
seu rosto, ele fica em silêncio. Fica um bom tempo olhando para Inês, que o
encara respirando rápido. Depois fala, com uma voz sem brilho,
esforçando-se para não magoá-la:
Eu saí da Espanha há mais de dezesseis anos. Como poderia ser pai de
um bebê? Aqui?
É o nosso bebê, repete ela. Nossa filhinha. Sua e minha. Ele estende a
mão e acaricia suavemente seu cabelo, murmurando: Sim, sim, claro. Nosso
bebê. Diga-me onde está. Eu vou ver isso. Claro, Inês, claro. Vou resolver
agora mesmo.
Caminha para a porta, abre-a e faz um gesto. Seu secretário aparece
quase instantaneamente. Lorenzo murmura algumas palavras que ninguém
ouve. O secretário se retira.
Lorenzo fica um instante no vão da porta entreaberta e, de longe, sorri
para Inês. E também lhe diz: Tudo vai se ajeitar. Num instante. Ela não
consegue tirar os olhos de Lorenzo. Está hipnotizada, parece uma daquelas
santas em estado de êxtase que se vêem nas velhas pinturas, o olhar fixo, as
mãos juntas. Reencontrá-lo é um verdadeiro milagre, parece pensar. Agora
tudo vai melhorar, tudo vai melhorar. Ela ri. Os anos de miséria se
acabaram. Os anos de solidão e de sombras. Os anos duros.
Quantos anos, exatamente? Ela não tem idéia. Não pôde contá-los. Foi
muito tempo. Por fim o encontrou, ele está aí, isso é bom. Não está usando o
mesmo hábito, seu cabelo está mais comprido, mas nada disso importa, é
ele mesmo.
Aparecem dois homens de uniforme, trazidos pelo secretário. Estão
armados. Lorenzo fala com eles em voz baixa, por um instante. Depois vai
até a escrivaninha, rabisca algumas linhas numa folha de papel, assina -
sempre seguido pelo olhar de Inês, que não desgruda dele - e volta para
entregar a folha ao secretário.
Depois se dirige a Inês e lhe explica, com um meio sorriso,
tranqüilizador:
Agora você vai com esses dois homens, eles irão ajudá-la a encontrar
sua filhinha. Está entendendo? Eles vão ajudá-la. Vá com eles, faça o que
disserem e tudo vai dar certo...
Sim, tudo vai dar certo, repete Inês. Tudo vai acabar bem, você vai ver.
Vá com eles. Deixe que eles a guiem.
Sim. Ela tenta segurar a mão de Lorenzo para beijá-la de novo, mas ele a
retira no ato.
Caminha então até os dois homens armados, que estão à sua espera. O
secretário diz algumas palavras nos seus ouvidos. Eles seguram Inês, cada
um por um braço, e ela os acompanha sem resistir. Antes de desaparecer,
vira-se para Lorenzo e sorri. Está radiante. Depois é levada.
O secretário fecha a porta. Lorenzo volta a sentar-se na poltrona, em
frente a Goya. Está com ar abatido, consternado.
Que pena, diz. O quê?, pergunta Goya. Disse: que pena. Francisco, nós
éramos mesmo uns bárbaros. Não há outra palavra. Bárbaros. O modo
como tratamos essa mulher. E todos os outros. Tanto, que ficaram loucos.
Como?, perguntou Goya. Quero dizer que nós os enlouquecemos. A
única arma que lhes restava, a única maneira que tinham de agüentar, de
continuar existindo, era perder a razão. Percebe?
Goya pergunta se ele pensa realmente que Inês perdeu a cabeça.
É evidente, diz. Essa história da carochinha, um bebê na prisão, um filho
comigo, que moro na França há tanto tempo, e depois aqueles olhos
alucinados, aquela maneira de me beijar as mãos. Eu me vi outra vez como
era antigamente, Francisco. Deveras. Posso até dizer que me senti culpado.
Ela inventou tudo?, quer saber Goya. Inventar não é a palavra. Nem sei
como dizer. Isso tudo lhe entrou na cabeça, não me pergunte como. Ela
certamente está convencida do que diz. Mas por que um bebê? Por que eu?
O que quer que responda? Em outra época eu diria: simples, é o demônio.
Mas agora o diabo está morto. Não se pode mais saber.
Posso dizer uma coisa?, pergunta então Anselmo, o assistente.
Naturalmente. Talvez ela não esteja louca. Louca de verdade. Conheci
uma pessoa assim. Um homem de Segóvia, um tintureiro. Ele caiu do
cavalo, um dia, e sua vida parou ali.
Como assim? Ele não envelhecia mais, estava sempre no mesmo dia. O
que significa isto: que ele não envelhecia mais? Não tinha rugas? Seu cabelo
não ficava branco?
Claro que sim. Como todo mundo. Mas ele não percebia. Vivia todo dia o
mesmo dia. Mas quanto ao resto não era louco.
E o que isso tem a ver com esta pobre mulher?, pergunta Lorenzo.
Suponhamos que hajam tirado um bebê dela, diz o assistente. Eu não
sei, mas é bem possível. Sua vida parou ali. Nesse dia. Mas isso foi há muito
tempo. E ela continua procurando o bebê.
Lorenzo olhou para Goya, que fez um gesto indicando que não
entendera direito. Depois, pensativo, observa que, de todo modo, casos
como esse devem ser muito raros.
Muito raros, sim, diz Anselmo, mas existem. A prova: eu conheço um.
Tenho quase certeza de que ela imaginou tudo, diz Lorenzo,
levantando-se e indicando assim que tinha coisas sérias à sua espera e que
essa história, que não lhe diz grande coisa, já o havia atrasado.
E acompanha Goya e seu assistente até a porta. Pede ao pintor que lhe
dê o seu endereço. Assim que tiver um tempinho, está prometido: vai
procurá-lo, marcar um horário para fazer um retrato de família. Está
esperando a chegada de sua esposa a qualquer hora. Um retrato com as
crianças. Goya pinta tão bem as crianças.
Antes de se despedir, ainda o tranqüiliza: não se preocupe com Inês. Vai
ser muito bem tratada. Ele vai cuidar mesmo dela.
Aguardando a execução, o padre Gregorio e os outros condenados à
morte foram levados para uma prisão situada sob o antigo palácio real, não
distante da Plaza Mayor.
O rei da França, Francisco I, estivera ali no século xvI, durante seu
cativeiro, só que nos andares superiores, bem mobiliados e confortáveis. O
ex-inquisidor geral e os outros monges foram relegados aos subterrâneos,
junto com as pulgas e os ratos. Ali esperavam a morte, em data ainda
incerta.
Apenas dez dias depois de seu encontro com Inês, Lorenzo estava lá,
graças a um passe que ele mesmo tinha feito e assinado, sem falar com
ninguém. Pediu que o levassem à cela do padre Gregorio, onde o encontrou,
de olhos baixos, com o hábito de dominicano todo rasgado, deitado num
colchão de palha estendido no chão. O guarda fechou a porta da cela e os
deixou a sós, obedecendo a um gesto de Lorenzo. Este se aproximou. O
velho Gregorio, que parecia esquecido pelo tempo, levantou as pálpebras, e
Lorenzo reconheceu o azul pálido dos seus olhos, mais uma vez fixos nele.
Transcorreram alguns segundos em silêncio, até que os lábios do velho
confessor se entreabriram e ele perguntou:
Agora? Não, disse simplesmente Lorenzo. Outro silêncio. A pergunta
seguinte parecia ser: por que então está aqui? Mas o velho monge não a fez.
A resposta viria sozinha, sem necessidade de nenhuma pergunta.
Esperou. Curiosamente, era Lorenzo, o homem do poder, que parecia
incomodado. Levara vários dias para decidir dar aquele passo e ali, diante
do seu antigo mestre imobilizado pela doença, diante desse olhar azul que
parecia considerar todas as calamidades possíveis neste mundo como
simples peripécias diante da eternidade, não sabia o que dizer. Permanecia
viva alguma coisa da sua união secreta, do antigo afeto entre eles, por mais
que um dos dois houvesse, poucos dias antes, decidido friamente mandar
um velhote para o nada onde acreditava - pelo menos era o que dizia e
ensinava no passado - que encontraria outra vida, radiante e eterna.
Por fim, disse a Gregorio que não viera oficialmente. Gregorio levantou
as pálpebras. Isso ele já havia entendido. Quero lhe fazer uma pergunta
pessoal. Sim?, perguntou o velho ainda deitado. Antigamente, se uma
prisioneira desse à luz um filho nas prisões do Santo Ofício, o que acontecia
com ele?
Com quem? 'Com o bebê. Por que me faz essa pergunta?
Lorenzo, com certa dificuldade para se expressar, puxou um banco e
sentou-se ao lado do colchão de palha. Deu a entender que aquilo não tinha
importância, que era uma pergunta como outra qualquer.
Então, disse o padre Gregorio, por que fazê-la? Parecia dizer: por que
você fez esse esforço, por que perdeu todo esse tempo vindo aqui para me
fazer uma pergunta sem importância?
Lorenzo ficou constrangido. De repente, diante desse homem que não
podia se mover, que morreria em breve, mas que muitas vezes lhe dera
exemplos de inteligência, de precisão e de domínio do espírito, sentiu
constrangimento, quase vergonha. O velho monge poderia soltar-lhe cem
acusações na cara, tratá-lo de assassino, maldizê-lo, manter silêncio em
sinal de desprezo.
Pelo contrário: falava com uma aparente indiferença, uma ligeira frieza.
Lorenzo decidiu ser simples e franco: Responda, disse, se puder. O
senhor deve saber a resposta.
Essa resposta, imagino, é importante para você?
Sim.
Seria seu o filho?, perguntou Gregorio. Responda-me, disse Lorenzo. O
velho fez um esforço para girar a cabeça, captou o olhar de Lorenzo e lhe
perguntou: Se eu responder, você pode salvar o que me resta de vida?
Lorenzo, que certamente já esperava um pedido desse tipo, mas não podia
saber em que disposição de espírito encontraria seu antigo diretor
(coragem intratável, frieza persistente ou, ao contrário, como parecia ser o
caso, uma pequena fraqueza de último momento), esperou quatro ou cinco
segundos antes de responder:
Sim. Você me promete? Prometo. Um sorriso furtivo parecia a ponto de
surgir no canto dos lábios do monge quando ele falou: Posso confiar... num
macaco? Lorenzo pensou a princípio que era uma armadilha se abatendo
sobre ele, uma espécie de vingança verbal, como se o velho o tivesse levado
até ali só para fazer essa impertinência cruel. 1 1e voltava às sutis
disposições das dialéticas do passado, em que o haviam introduzido, e que
lhe foram muito úteis na sua carreira política. Mas se fosse um jogo, um
confronto, ele havia Perdido. Sabia disso. Esteve prestes a levantar-se do
banco e sair da cela no ato.
Mas ficou. Decidiu responder ao esboço de sorriso com um sorriso
verdadeiro. E disse:
Sim. Pode confiar. Antigamente, disse o padre Gregorio, você teria
jurado Pela Cruz. Em nome do que pode jurar hoje?
De coisa alguma, disse Lorenzo. Quer dizer: de nada que lhe inspire
confiança. Posso simplesmente dar a minha palavra. Fazer uma promessa.
O que é sagrado para você, hoje? Sagrado? Sim. Intocável, indiscutível. O
quê? Lorenzo pensou um instante antes de responder: A liberdade de um
homem, sem dúvida. Ou seja? A liberdade de escolher o seu pensamento, as
suas crenças. De dispor da própria vida, do próprio corpo.
Você estaria disposto a jurar por esses valores? A dá-los cofio garantia
da sua palavra?
Sem pensar duas vezes. O velho monge voltou a cabeça à posição inicial
e perguntou:
Essa criança, eu não me lembro mais, era menino ou menina?
Menina. Neste caso, disse o velho Gregorio fechando os olhos, sem
dúvida a teríamos enviado ao convento de Santa Lúcia.
Perto de Cáceres? Não conheço outro.
Quatro semanas se passaram até Lorenzo, cheio de compromissos, ter
condições de tirar uns dias de folga. Todo mundo em Madri parecia
precisar dele. Ao mesmo tempo espanhol e francês, homem do passado e
dos novos tempos, sorridente e severo, volúvel e secreto, ele era o homem
da situação. Via com freqüência o rei José, que estimava, e o animava a
prosseguir, apesar das inúmeras escaramuças nas províncias, muitas vezes
sangrentas, entre franceses e espanhóis.
Quando pensou em criar um museu em Madri, José Bonaparte pediu a
Lorenzo que fosse com ele visitar as galerias reais para fazer uma seleção.
Também havia necessidade de um retrato oficial do novo rei e,
naturalmente, Lorenzo só podia recomendar Goya.
Apesar de ter bons conhecimentos, e um gosto peculiar, em matéria de
pintura, José só conhecia a obra de Goya por referências. Decidiram então
fazer uma visita às coleções reais - também com a idéia, lá no fundo, de
levar para a França um certo número daqueles quadros, e lá constituir
outro museu. Afinal de contas, diziam os cortesãos mais confiantes na
dinastia, a Espanha deve muito a Napoleão e à França, que derramou o
sangue dos seus soldados para libertá-la da tirania. É na_ tural que, em
troca, fique com algumas peças de um tesouro artístico ao qual ninguém
tem acesso.
Que o povo aproveite, pelo menos. O povo francês.
Napoleão havia agido da mesma maneira na Itália, quando era apenas o
general Bonaparte. Na Itália e em toda parte. Os libertadores de países
oprimidos são também seus predadores. Eu te dou os direitos do homem,
mas fico com teu patrimônio.
Trouxeram umas quarenta telas do Escorial, outras quinze de Aranjuez.
Elas foram penduradas provisoriamente, com boa proteção, em várias salas
do palácio real de Madri, ao lado das obras que já havia lá.
Participaram dessa visita, além do rei e Lorenzo, alguns ministros, dois
historiadores de arte afrancesados e um pequeno grupo de amigos
privilegiados. Passaram rapidamente pelas obras menores, pararam diante
de vários Velásquez, cuja mestria José admirava, embora o tratasse, com
um sorriso, de pintor de anões. Viram também vários El Greco, Ribera,
Murillo, e pararam um bom tempo diante de O jardim das delícias, de
Hieronymus Bosch, que os espanhóis chamam de El Bosco. José Bonaparte
não o conhecia. Parecia espantado com aquela profusão colorida, caótica.
O que é isto?, perguntou. Lorenzo respondeu com prazer. Aquele
quadro se encontrava na Espanha há mais de dois séculos, assim como
outras obras do mesmo pintor.
O rei Felipe II, na sua época, gostava muito dele, tanto que adquirira
mais de vinte telas.
Desse pintor? Sim, senhor. Mas, o que é isto? O que representa? É uma
obra de imaginação, disse Lorenzo, difícil de interpretar. Reconheço que é
bastante estranho. Mas; sabe, ele era flamengo. Os flamengos são todos um
pouco estranhos.
É verdade, admitiu José, examinando o quadro mais de perto. Tudo isto
é bastante bem pintado, não posso negar. Mas o que é? Uma alucinação?
Não é o meu tipo de delícias, erro, em todo caso. uma alegoria? Demônios
que invadiram o paraíso? Obra de um louco? Ou apenas uma galeria de
monstros?
Um pouco de tudo isso, na certa, disse Lorenzo prudentemente.
Atrás deles, um ministro se inclinava para dizer no ouvido do seu
vizinho:
Já temos bastantes monstros em casa para precisar do monstros dos
outros.
E o vizinho concordou. O rei José disse que aquele não era o tipo de
pintura que o emocionava. Uma multidão de personagens numa paisagem
desconhecida. Atitudes inexplicáveis, como num sonho preciso A pintura
não é feita para ser decifrada, como um enigma ou um aforismo. O inferno,
certo, mas isso, bem, todos os pintores o mostraram. Basta ser um pouco
cruel.
E me surpreenderia se o meu irmão gostasse disso, acrescentou.
De fato, ele desejava ter a presença do irmão na inauguração do museu
de Madri, dentro de quatro ou cinco anos. Sentia-se capaz de conseguir. As
primeiras maquetes do prédio ficariam prontas em poucas semanas. O local
estava definido. Era só iniciar os trabalhos - e fazer os espanhóis aceitarem
que uma parte das obras, em troca, tomaria o caminho de Paris.
A posse de obras de arte é um privilégio como todos os outros, dizia o
rei José, e esse privilégio também deve acabar. Não é admissível que o
espetáculo das belezas mais raras seja reservado para alguns monarcas
degenerados, suas famílias imbecis e alguns cortesãos absolutamente
incultos. O povo, em cujo seio essas obras-primas nasceram, deve desfrutar
delas como bem entender.
Afastaram-se de Bosch, que ficaria na Espanha, e chegaram a Goya.
Ah, disse José, é este aqui. Sim, senhor, respondeu Lorenzo. O novo rei
olhou primeiro um retrato do antigo rei Carlos IV, de corpo inteiro, usando
traje de caça, e depois o quadro eqüestre da rainha María Luisa.
Reconheceu-os com facilidade. Perguntou que sortilégios a rainha havia
usado, tendo aquele rosto, para colecionar tantos amantes. Um dos
ministros lhe disse que certamente esse número era muito exagerado. A
calúnia anda rápido, sobretudo quando se trata de rainhas.
Diziam a mesma coisa da rainha da França, Maria Antonieta, e até
mesmo que ela era lésbica, uma bacante desenfreada, que organizava
orgias em Versalhes. Afinal de contas, tudo aquilo não passava de boatos.
Mas e Godoy? Godoy, sim, sem dúvida, disse um dos ministros. Mas ele
tinha bons motivos.
E bons atributos, espero, disse José, pegando um copo de vinho numa
bandeja que um criado mantinha sempre ao alcance da sua mão.
Passaram para o retrato de grupo, em que toda a família real posava
como se estivesse numa parada. O próprio Goya aparecia num canto, em
discreta homenagem a Velásquez, que se havia representado em As
meninas, um quadro que Goya considerava superior a tudo, ou a quase
tudo.
São sempre iguais, disse José. Uma galeria de balofos, meu irmão tem
razão. Nada de vivo. Tudo isto é gordura enfeitada. Barrigas ocas. Ah, ali
está Ferdinando.
Sim, já é ele mesmo aqui. Suas sobrancelhas grossas, esse queixo
birrento. Alguém que nunca vai enxergar muito longe. Ele me felicitou
recentemente, mas eu desconfio.
Esse homenzinho seria bem capaz de matar a própria mãe.
Aparentemente, tentou, disse um dos ministros. José indicou um
personagem no quadro, uma jovem com a cabeça inclinada sobre o ombro
esquerdo, de tal maneira que não se via seu rosto.
E perguntou: E esta, quem é? É a esposa de Ferdinando. E por que não a
vemos? Porque, respondeu Lorenzo, quando Goya pintou este quadro, já lá
se vão quase dez anos, ainda não se sabia com que princesa o jovem
Ferdinando iria se casar. Então o pintor se conformou com o vestido e os
braços. O rosto chegaria mais tarde.
Ele fez bem, disse José. Nesse nível, ninguém se casa com um rosto.
José se afastou do quadro, voltou, examinou de perto a técnica, as mãos,
a perfeição dos tecidos. Tudo lhe pareceu adequadamente executado.
Mas, de todo modo, observou, esse pintor não tem muita indulgência
com seus modelos.
Ele pinta o que vê, disse Lorenzo. Nada lhe escapa, nem as verrugas,
nem as marcas da pele. Veja esses olhos tacanhos, essas carnes flácidas. E
ainda quer que ele pinte o meu retrato oficial? Aquele que todos irão ver?
Que vão mandar cópias para toda parte?
Majestade, disse um dos ministros, como agora o senhor é rei da
Espanha, pensamos que seria normal, e hábil, que esse retrato fosse feito
por um pintor espanhol.
E na Espanha, todos concordam, ele é o melhor, disse Lorenzo.
Era o pintor oficial da Corte? Sim, senhor.
E depois de ter pintado tantas vezes essas pessoas, acha que aceitaria
pintar a mim?
Os ministros, um pouco embaraçados com a pergunta, não sabiam o que
responder. Hesitaram, trocando olhares.
Eu não queria ter que lhe ordenar, disse José. Ele seria capaz, para se
vingar, de me massacrar com seus pincéis.
Permita-me, interveio Lorenzo. Eu o conheço um pouco, sei que tipo de
homem ele é. Creio que posso afirmar que aceitará.
Por dinheiro? Por dinheiro, não há dúvida. Está sempre precisando. Mas
também. porque certamente se interessará por seu rosto.
Se interessará por meu rosto? Tenho quase certeza, disse Lorenzo.
Interessar como os rostos de todos esses cretinos que estão aí? Eu vou
completar sua galeria de moluscos?
Não foi o que eu quis dizer, senhor. Desculpe-me. Creio simplesmente
que, para ele, é uma chance, uma oportunidade única, e que poderia se
apaixonar pelo rosto de um Bonaparte. Com sua permissão, posso consultá-
lo, ver o que pensa.
Sim, muito bem. E depois venha me contar. Continuaram a visita às
diferentes salas. Viram alguns Rubens, alguns Tiepolo, um Rafael, vários
Giordano, alguns apóstolos de El Greco, que José achou estranhos mas
atraentes, primitivos italianos que ele mesmo havia mandado trazer de
Nápoles, seu antigo reino. Ficou um bom tempo diante de uma imensa
Degola de São João Batista, de um pintor polonês chamado Strobel. Não
conseguia se afastar da figura de Salomé.
Interessou-se também por outro pintor flamengo, chamado Patinir, do
qual nunca ouvira falar. Escolheu algumas obras, de preferência de tema
não religioso, e pediu que as pendurassem no escritório dos seus aposentos
particulares, à espera do museu.
Um dos ministros lhe avisou então que a jornada estava avançada,
assuntos importantes e urgentes esperavam.
Então julga que a pintura não é importante?, perguntoulhe José.
O ministro acusou o golpe e se afastou. O rei José voltou às obras de
Goya e as observou mais um pouco com um olhar severo antes de
murmurar, numa espécie de suspiro: Se não pode ser de outro jeito... Disse
a Lorenzo que concordava em posar. Quantas vezes?, quis saber. Lorenzo
não sabia responder.
Acho que às vezes ele capta na hora, disse, mas parece que com certos
rostos precisa de mais tempo.
Quando o grupo já estava se retirando, Lorenzo aproximou-se do rei e
perguntou, em voz baixa, se seria possível dispor de alguns dias de folga.
Para fazer o quê?, perguntou José. Visitar a minha família em Múrcia.
Não os vejo há quase vinte anos.
Concedido, disse o rei. Mas não fique lá muito tempo, e volte rápido.
Preciso de você aqui.
Antes de deixar Madri, Lorenzo passou pela casa de Goya para falar do
projeto do retrato real. O pintor não ficou muito surpreso: já haviam
comentado com ele.
Por praxe, fez-se de rogado, pediu uma grande quantia. Sua confiança
nesse rei corso que vinha de Nápoles era, sem dúvida, bastante limitada.
Sua expectativa, quando falava do assunto com amigos, era de que o
reinado seria breve, sobretudo porque costumava ser difícil concluir
favoravelmente as campanhas espanholas.
Mas, por outro lado, eram conhecidas na história - entre os imperadores
romanos, por exemplo, ou os otomanos - longas dinastias nascidas de um
general indisciplinado ou de um primeiro-ministro assassino. No fundo,
diziam para si mesmos, talvez sem o saber influenciados pelas idéias
francesas, todas as monarquias por acaso não começam com um golpe de
força de um usurpador? Quem poderia prever, a essa altura, a queda
iminente da Águia? Napoleão dominava a Europa do Atlântico ao Vístula.
Instalara membros da sua família, como uma confraria de insetos, em
todos os tronos disponíveis. Todos os recursos, todas as informações, todas
as decisões passavam por ele. Em seus encontros com Alexandre, o tsar da
Rússia, sempre o beijava e chamava de irmão. O tsar lhe demonstrava
amizade, levava-o pelo braço. Os ministros das velhas monarquias faziam
fila na sua porta. Só a Inglaterra resistia, há oito anos. Em cada batalha,
sempre o atraía para os mares. Mas como poderia ela sozinha invadir a
Europa?
Goya aproveitou a visita para pedir notícias de Inês. Ela está bem disse
Lorenzo, mandei-a para um lugar onde é cuidada por amigos, que me
asseguram que já se sente melhor.
E como, perguntoulhe Goya em seguida, pode-se ser republicano, e
republicano convicto, enquanto se serve docilmente a um imperador? Goya
fez essa pergunta com aparente inocência, como se quisesse, surdo e
ignorante, penetrar nos segredos do mundo.
Napoleão é um imperador, certo, respondeu Lorenzo, repetindo sua
lição de uma outra maneira. Mas, antes de mais nada, é um imperador
nascido do povo e escolhido pelo povo. Ele não foi imposto pela força, pela
astúcia, pela traição ou pelo assassinato. Os franceses o chamaram para
ocupar o trono. Eles o escolheram por plebiscito. Além do mais, agora não
se trata mais somente da França. Ele deu existência à Polônia, está
libertando a Espanha de três séculos de tirania extenuante.
Em toda parte, quando aparece, é recebido com entusiasmo. De que
podem acusá-lo? Sem a menor dúvida, ele é a conseqüência natural, é o
filho da Revolução, cujas idéias retomou para eleválas ao patamar das leis
universais.
E nada, dizia Lorenzo, voltando a sua obsessão favorita, nada é mais
importante que as leis, as concebidas pelos representantes do povo e
defendidas pela espada de um grande soldado.
Goya, que só captava metade desse discurso, apesar das gesticulações e
dos esforços de articulação do seu visitante, dizia: Sim, concordo, ele é
popular, ou pelo menos procura ser, mas sabemos muito bem que aqui em
Madri, e certamente em outras cidades, pagaram gente para aplaudi-lo, no
único dia em que apareceu.
E se ele também fosse um tirano, um tirano diferente, maquiado de
republicano?
Já pensei nisso, naturalmente, respondeu Lorenzo. Pensei muitas vezes
nisso, e ainda penso. Ele se divorciou, tornou a se casar, sonha ter um filho,
é evidente que pensa em fundar uma dinastia. O fato de ser ambicioso não é
segredo para ninguém. Mas é preciso escolher: ou a lama seca do passado,
com soberanos fracos que transmitem de pai para filho uma coroa pesada
demais para eles, que lhes aperta o cérebro, e se esquecem do povo no
caminho, ou então o soprar dos novos tempos, a energia das coisas que se
movem, os séculos que se abrem de par em par, com o perigo do
despotismo, é preciso admitir, mas um despotismo passageiro, do qual o
povo poderá se livrar quando quiser, como fez com os tiranos hereditários.
É isso o que conta, dizia Lorenzo a Goya, com certa imprudência, pois
não estavam sós no aposento e suas palavras podiam ser levadas até o
círculo do rei. O que importa é que o povo sabe que ele é forte, que é mais
forte que todos os seus senhores. E para que possa afirmar e manifestar sua
força em caso de necessidade precisa ter leis que não possam ser
derrubadas.
Goya permanecia cético e rabugento. Respondia sim, respondia não. Na
maior parte do tempo, respondia: Quién sabe?. Tomava cuidado para não
dizer a Lorenzo o que lhe queimava a língua: você passou de um extremo a
outro. Você acha que mudou, mas vejo que é exatamente o mesmo.
E aquela coroação, na presença do papa, o que tinha de republicano?
Lorenzo lhe respondeu que o papa aceitara estar lá por motivos que só
diziam respeito a ele, motivos políticos, evidentemente. Para não deixar
que o poder material se imponha sozinho, sem a presença da Igreja. E
depois, no último instante, Napoleão lhe tirou a coroa imperial das mãos e a
pôs ele mesmo na própria cabeça.
Um gesto perfeitamente claro, explicava Lorenzo. Um gesto que
significa: eu não sou designado por Deus e não sou o filho do meu pai.
Venho do povo, foi ele quem me pôs no lugar em que estou, considerando
apenas meu mérito. Pego a coroa nas mãos para botá-la na cabeça, mas
estas são as mãos do povo.
Na verdade, Goya não gostava dessas discussões, fossem com Lorenzo
ou com qualquer outro. No silêncio em que vivia, as palavras não o
atingiam, mal as entendia, pareciam imprecisas, desconfiava delas. Preferia
seus carvões, seus buris, mais afiados, mais precisos. Ele olhava, desenhava,
gravava, pintava, mostrava o que via e deixava para os outros a discussão
sobre o que era conveniente fazer.
A Europa inteira discutia, numa conversa sem fim. Mas quando se fala
não se olha. Os tagarelas nunca vêem nada. Em torno do pintor afirmavam
isso, prediziam aquilo.
E o futuro, como de costume, viria cheio de surpresas.
De Madri a Cáceres, eram quatro dias a cavalo, cinco em berlinda, desde
que se tenha bons animais de troca. Lorenzo, embora fosse um ginete
medíocre, escolheu o cavalo, para ir mais rápido e ser menos notado. De
todo modo, iria para o oeste, na direção de Portugal, onde destacamentos
do Exército inglês haviam desembarcado, e a região de Cáceres era pouco
segura. Precisava de uma escolta.
Para ocultar o verdadeiro objetivo da sua viagem, e passar tão
despercebido quanto possível, decidiu, para não viajar cercado de
uniformes franceses, dispensar uma escolta oficial. Foi incógnito a quatro
ou cinco tabernas da cidade e encontrou alguns dos familiares que no
passado lhe haviam servido de informantes: homens já envelhecidos, de
cabelo branco, mas que sempre lhe podiam ser úteis em suas novas
funções. Aprendera na França que os homens das sombras passam com
muita facilidade de um regime para outro. A luz revolucionária substitui as
trevas tirânicas, mas as sombras continuam sendo sombras. Às vezes ficam
até mais espessas. A permanência no poder depende do segredo, do
invisível. Todo governo em atividade precisa de um serviço secreto, que às
vezes se divide e se multiplica por dois, por três, por quatro, cada novo
serviço vigiando os outros. Os homens e mulheres que os integram têm
técnicas, hábitos, fontes de informação, endereços que seria absurdo não
usar = como lhe dissera Danton - simplesmente porque se cortou a cabeça
de um rei.
Encarregou então aqueles homens grisalhos, que em momento algum
demonstraram tê-lo reconhecido, de conseguir para ele uma escolta eficaz
e discreta, para acompanhá-lo até Cáceres e protegê-lo caso fosse
necessário. Não se tratava de um deslocamento oficial. Em uma época
conturbada como aquela, uma escolta desse tipo, composta por dez homens
de identidades obscuras, aos quais devia fornecer armas e uniformes
espanhóis que poderiam indicar sua adesão a qualquer dos lados (de fato,
uma parte do Exército se havia aliado, à força, ao novo rei, sem tempo para
trocar de uniforme), custava caro. Lorenzo teve que apelar para os fundos
secretos a que tinha acesso, e para isso redigiu um documento falso que ele
mesmo assinou.
A viagem foi rápida: três dias e meio. Em duas ocasiões tiveram que
fazer um desvio para evitar bandos armados de composição incerta.
Dormiam em hospedarias, levantavam antes do dia nascer, comiam sobre
suas montarias.
Quando chegaram a Santa Lúcia, a meia hora de Cáceres, Lorenzo
mandou os homens pararem e pediu-lhes que o aguardassem. Entrou
sozinho no convento, que três semanas antes havia sido brutalmente
visitado por um esquadrão francês, que roubou objetos sagrados e quem
sabe também estuprou algumas freiras.
Agora se apresentou como representante oficial do novo rei da Espanha
e pediu para falar com a madre superiora, que a princípio mostrou-se
muito desconfiada. Ele precisou levantar a voz, e mesmo proferir algumas
ameaças, para que ela atendesse o seu pedido. Foi ajudado pelo fato de ser
espanhol e por ter tido a habilidade de fazer o sinal da cruz na entrada no
convento e pousar um joelho no chão quando atravessou a capela. Freiras
escondidas viram tudo e contaram à superiora, até então reticente. A
genuflexão foi o que a decidiu, mais do que as ameaças. Ela o recebeu.
O pedido de Lorenzo era simples. Queria saber o nome e ver o rosto das
meninas abandonadas ou órfãs que o convento tinha recebido nos últimos
quinze ou dezesseis anos. A madre superiora lhe perguntou o motivo.
Lorenzo se recusou a dizer, lembrando que vinha por ordem do rei, em
missão confidencial. Deu sua palavra, pelas dúvidas, de que nenhum mal
seria feito a essa jovem.
A superiora confiou nele e obedeceu. Era uma mulher de uns sessenta
anos, bastante corpulenta e com uma voz rouca.
Perguntou com simplicidade, antes de ir fazer as pesquisas necessárias,
o que ele pensava da situação, se os conventos espanhóis seriam pilhados e
fechados, como se dizia em toda parte.
Lorenzo tranqüilizou-a da melhor maneira que pôde. Ninguém pensava
em fechar as igrejas, nem os conventos, disse.
Nem na Espanha, nem em nenhum outro lugar. A época do terror anti-
religioso já passara. O imperador Napoleão tinha assinado uma concordata
com o papa e continuava a respeitá-la. Ele sempre diz que o povo precisa de
uma religião.
E tem razão, diz a superiora. Sem religião, estaríamos todos perdidos.
Lorenzo preferiu calar-se. Uma hora mais tarde, no escritório da madre
superiora, estava frente a frente com dez garotas de diversas idades, a
maior parte delas noviças, como se via pelos hábitos. Uma freira de óculos
se havia instalado diante de quatro amarrados de registros, que só ela
parecia capaz de entender.
Lorenzo descartou de entrada duas meninas, que mal pareciam ter dez
anos. Não podiam ser quem ele procurava. Demorou mais tempo diante de
outra, observou-a longamente, perguntou sua idade. A noviça não sabia.
Lorenzo olhou para a superiora, que perguntou à arquivista: Em que
ano Encarnación nos foi confiada? A freira de óculos, sentada diante de
uma mesa grande, virou algumas páginas grossas, procurou com o dedo e
por fim disse:
Encarnación... Ela deve ter doze anos... Talvez treze... Não, respondeu
simplesmente Lorenzo, balançando a cabeça.
Se o senhor nos dissesse o motivo dessa busca, disse então a superiora,
isso com certeza nos ajudaria.
Não posso dizer o motivo, respondeu Lorenzo, porque não o sei. Estou
aqui em missão, não esqueça, preciso seguir a pista de alguém, e é só o que
sei. A pista de uma garota que teria vindo de Madri, nascida, na certa, em
1793.
Tenho uma aqui, disse a arquivista, com o dedo pousado numa página
do registro. Uma chamada Rosário. Eu me lembro, uma história e tanto.
Que história?, perguntou Lorenzo aproximando-se da mesa.
Foi encontrada numa praia agarrada nos pêlos de um cachorro grande.
Toda a sua família havia morrido num naufrágio, aparentemente. Ela tinha
sete ou oito meses.
Supõe-se que vinha de algum país da África.
Não, diz Lorenzo outra vez. Não é desta que se trata. Estou procurando
uma garota trazida de Madri, nascida provavelmente em 1793. Não há
nenhuma?
Ele certamente desejava que não encontrasse nenhuma. Estava
começando talvez a ficar mais tranqüilo, quando a freira arquivista, que
acabava de virar uma página, de repente gritou, com o dedo em riste:
Ah, sim! Há uma que poderia corresponder! Qual delas?, perguntou a
madre superiora. 1793, Madri... Mandada pelo Santo Ofício... Levantou a
cabeça, olhou para Lorenzo por cima dos óculos e perguntou:
Seria possível? Mandada pelo Santo Ofício? Sim, respondeu Lorenzo.
Seria possível. A madre superiora se aproximou dos registros, perguntando
à outra freira: Qual delas seria? Tinha apenas três ou quatro dias, eu me
lembro, estava muito fraca. Respirava com dificuldade, bem rápido. Sua
mãe era uma herege. Foi o que nos disseram na época. Está escrito aqui.
Ela está com vocês?, perguntou Lorenzo. Ah, não, diz a arquivista. Fugiu
quando tinha onze anos. Isto também está escrito. Olhe. Fugiu para o
campo num dia de procissão. Não havia como encontrála de novo.
E onde está agora?
Ah, só Deus pode responder. Ela fez questão de nunca dar notícias.
Sim, também me lembro dela, diz então a superiora. Um verdadeiro
diabinho.
Que alívio, murmurou a arquivista. Lorenzo perguntou se sabiam o
nome do pai. A madre superiora olhou para outro lado, hesitando em
responder. Não exatamente, disse à meia-voz. E o que ela queria dizer com
isso?, insistiu Lorenzo.
Ah, sabe, adiantou a madre superiora, nunca passou de um rumor.
O que diz esse rumor? Não tenha medo, fale comigo. O rumor dizia... Ela
hesitou outra vez, virou-se para a arquivista que continuava com o nariz
enfiado nos registros, e acabou confessando, enquanto se persignava num
gesto amplo:
.. dizia que o pai dela era uma pessoa muito importante do Santo Ofício...
Na Inquisição de Madri? Sim, exatamente. Sabem o nome dele? As duas
freiras se entreolharam e a madre superiora disse, com a voz cortada,
tossindo um pouco: Não. Acho que não. Não. A arquivista confirmou: O
senhor sabe, nós, aqui, estamos longe de tudo. Só sabemos as sobras do que
se conta em Madri. Neste caso, por exemplo, nunca nos disseram o nome. É
segredo para todo mundo.
Vocês a batizaram?, perguntou Lorenzo. Ah, sim, respondeu a madre
superiora. Imediatamente. Era tão novinha... Recém-nascida. Nessa idade, o
senhor sabe, é difícil que sobrevivam.
Mas aquela menina, disse a arquivista, pode-se dizer que se agarrava à
vida! Ainda a vejo avançando nos mamilos da ama-de-leite! Uma
verdadeira sanguessuga!
Que nome lhe deram?, perguntou Lorenzo. A arquivista voltou a
consultar o grande livro e informou a Lorenzo que a menina que ele estava
procurando se chamava Alicia.
A menos que tenha trocado de nome, disse a superiora. Ela seria bem
capaz disso.
Apesar das revoltas, das emboscadas, das represálias, apesar da
incerteza geral quanto às opiniões políticas de uns e de outros, os jardins
públicos de Madri, no final da tarde, ainda atraíam as meninas e seus
clientes. Perto da rua de Alcalá, nos jardins do Retiro que o rei Carlos III
havia ampliado e cultivado, como os do Pardo, a partir das cinco ou seis da
tarde as carruagens chegavam lentamente, quase com indolência, e os
olhares masculinos surgiam das portinholas, procurando uma silhueta
familiar, ou, ao contrário, nova.
As meninas também chegavam, sozinhas ou em pequenos grupos,
geralmente acompanhadas por uma aia, elegantes, caminhando como se
estivessem numa passarela, usando uma capa no inverno, um xale na
primavera, um avental no verão e uma mantilha no outono. Apesar da
guerra, apesar do sítio de Saragoça e de outros combates, a moda
parisiense se espalhava rapidamente pela Espanha. O busto dos vestidos
subia, os colos apareciam, o cabelo era puxado para trás, liberando a testa,
mas os acessórios continuavam sendo espanhóis, como uma linha de
resistência infranqueável.
O complexo jogo de olhares, de chamados, de aproximações, de
discussões que queriam parecer inocentes, triviais, começava com a
chegada das meninas, que todos chamavam, há muito tempo, de majas.
Algumas delas se conheciam, cumprimentavam-se de longe, trocavam
beijos na esquina de uma alameda, mostravam um ou outro detalhe de seus
trajes, de suas jóias e conversavam umas com as outras às risadas.
Apesar do riso, olhavam furtivamente para a direita e a esquerda
tentando atrair um olhar, captar um sinal. Quando uma delas tinha essa
sorte, afastava-se das outras languidamente, como se dissesse: desculpem,
é só um minutinho, já volto, e caminhava sem nenhuma pressa até a
portinhola de uma carruagem. A aia se levantava do banco onde quase
sempre ficava sentada com uma bengala nos joelhos, acompanhava a
garota dando passinhos curtos e a ajudava a negociar. Então a portinhola se
abria, a garota subia e ia embora. Ou então voltava para o grupo e para a
conversa.
Nos dois casos, a aia tornava a sentar-se no banco. Outras jovens faziam
seu trajeto sem dar uma palavra, de olhos baixos, sem reparar em ninguém,
brincando de alma solitária e, por que não, melancólica. Toda a atitude de
seu corpo parecia pedir um consolo, ou uma companhia, alguém para
dividir suas mágoas, ao menos por alguns instantes. Algumas pareciam
estar com pressa, andavam rápido, como se fossem para algum lugar, como
se estivessem atrasadas, como se houvessem enveredado pelos jardins só
para chegar mais rápido, e não tinham tempo a perder. Pouco depois
passavam no outro sentido, e assim até de noite, a menos que um
admirador, em algum ponto dos jardins, viesse interromper suas idas e
voltas.
De vez em quando uma delas parava, apoiava o pé num banco e
levantava a saia para ajeitar a meia. Via-se então aparecer, e depois
desaparecer, uma perna fina e redonda em cuja superfície corria uma mão
branca, uma perna à venda, antes que o vestido desça de novo.
Manobra antiga, linguagem sem palavras. Nos dias de chuva, elas
usavam guarda-chuvas, um dos últimos acessórios da moda, e no verão,
com muito sol, sombrinhas.
Cruzavam, às vezes parando junto a eles, com vendedores de água, de
melõés, de uvas, de frutas secas, mendigos, inválidos, militares de folga,
algumas vezes até com agentes de polícia, que a tudo olhavam sem nada
ver.
Os homens, em geral, vinham em carruagens, para não serem
reconhecidos. Alguns, que sem dúvida não eram casados, iam e voltavam a
cavalo, ou a pé, falando sobre seus negócios, suas famílias e,
principalmente, sobre a situação da Espanha: um passado imenso e um
futuro breve demais, diziam sempre.
E cumprimentavam os oficiais franceses, que vinham apenas por
curiosidade.
Nem todos os que passeavam nos jardins eram meninas de vida alegre
ou homens galantes. Senhoras de idade vinham também aproveitar o ar da
noite e tagarelar. Violonistas faziam seus números, apresentavam as
últimas canções. Homens graves, sentados frente a frente nos bancos,
jogavam baralho ou dominó, indiferentes às idas e vindas.
Às vezes, alguns ciganos se insinuavam entre as árvores e paravam um
estranho para ler-lhe a sorte. Os agentes os viam e expulsavam
rapidamente. Outros homens abriam os jornais para ler as notícias da
atualidade. Algumas crianças brincavam, com uma bola ou um arco,
vigiadas por babás. Um matador passava, com umas mulheres e a escolta
dos seus peones, um chapéu de aba larga na cabeça, acompanhado por
todos os olhares.
E Goya ia lá pelo menos duas ou três vezes por semana, com sua
caderneta de esboços. Ele conhecia esse mundo há quarenta anos e nunca
se cansava. Sentado, seguia um personagem com o olhar, trocava-o por
outro, desenhava, rasgava uma página, jogava fora, e recomeçava. Havia
desse modo desenhado, em quarenta anos, alguns milhares de silhuetas
efêmeras, que às vezes lhe serviam para composições mais elaboradas, mas
que em sua maioria empilhava num canto e não olhava mais.
Prisioneiro da sua surdez, não ouvindo o barulho dos veículos, nem o
riso das meninas, nem os cavalos, nem os cachorros, nem o trovão que se
aproximava, ele deixava seu olho e sua mão realizarem a tarefa. Aos
sessenta e quatro anos, não podia duvidar que tinha nascido para isso.
Um dia, ao longo do outono de 1811, uma imagem o impressionou tão
brutalmente que Goya ficou alguns segundos sem se mover. Viu uma jovem
andando por uma alameda, em companhia de sua aia, na direção de uma
carruagem parada que parecia estar à sua espera. Algumas vezes, de fato,
os encontros eram marcados de véspera ou até mesmo vários dias antes.
A mulher, de estampa juvenil, avançava escondendo o rosto com um
leque. A portinhola da carruagem se abriu, a mão de um homem se
estendeu para fora: coisa bastante comum. No entanto, no momento em
que a garota abaixou o leque e virou-se para dizer alguma coisa à aia, Goya,
que estava a quatro ou cinco metros dela, ficou paralisado.
Acabava de ver Inês Bilbatua. Acabava de vislumbrar ali, a alguns
passos de distância, não o rosto pálido e alquebrado de Inês, como o vira
alguns meses antes, mas seu rosto jovem, sorridente e radiante, seu rosto
de anjo.
Não podia haver dúvida. Era ela. Nos últimos tempos ele já deveria ter
se acostumado à volta de certos fantasmas, primeiro o fantasma de Inês
destruída, saindo da prisão com o espírito arrasado, totalmente
dependente dele. Depois reencontrara Lorenzo, metamorfoseado, ativo,
seguro de si, autoritário, tão real como o conhecera no passado. E agora via
seu anjo favorito voltando, com passo firme, postura leve, por uma das
alamedas do jardim.
Goya recuperou o domínio de si, largou a caderneta e o lápis e já se
encaminhava para a carruagem quando a mão de um homem depositou
uma sacola na da aia, e a portinhola se fechou de novo. Era tarde demais. O
cocheiro já apressava o cavalo, a carruagem se afastava rapidamente. Goya
sabia que seria inútil chamar, gritar. Se alguém lhe respondesse, ele não
ouviria.
Parou ao lado da aia e lhe perguntou, apontando para o veículo, quem
era aquela garota. A velha respondeu alguma coisa que ele não ouviu.
Sempre a mesma história: tinha de explicar todo dia que era surdo,
completamente surdo, e que para falar com ele era preciso articular e olhá-
lo de frente. Mas a velha, sem dentes, não podia articular. Nenhuma palavra
se formava em seus lábios.
Perguntou de novo, mostrando a carruagem, ao longe: A garota, aquela
lá, quem é? A velha olhava-o com desconfiança. Talvez fosse um possível
cliente, mas também um parente, um pai infeliz, um policial à paisana,
quem sabe?
Afinal decidiu que era um cliente. Disse o nome da garota e garantiu que
era muito carinhosa, muito complacente, que amava o amor (coisa rara nos
nossos dias, afirmou), e sobretudo que era uma novata de verdade, ainda
inocente, uma recém-chegada, não como as outras, mas bem novinha, bem
fresca.
Goya não entendeu uma palavra daqueles resmungos e repetiu,
gritando:
Quem é ela? Como se chama? A aia lhe repetiu o nome, que ele não
entendeu, porque a boca sem dentes impedia a compreensão.
Deu alguns passos, pegou um lápis e o entregou à velha dizendo:
Escreva o nome dela. Aqui.
A velha não sabia escrever. Disse isso, mas ele não ouviu. Ficou ali,
gritando e gesticulando diante da velha desdentada. Os passantes, as outras
meninas, paravam ou se viravam para ver. De repente Goya julgou
discernir um nome se formando nos lábios da velha. Perguntou: Emilia? Ela
fez que não com a cabeça, e repetiu o nome. O pintor perguntou:
Alicia? Dessa vez tinha entendido. Ela abaixou a cabeça. Alicia, sim.
Então perguntou se ela voltaria. Não, hoje não. Não devia voltar hoje.
Ele entendeu. E perguntou: Amanhã? Ela abaixou a cabeça. Sim, amanhã
voltaria, amanhã estaria lá. Com certeza.
E acrescentou, mas ele não ouviu: Amanhã, o senhor poderá tê-la.
Voltou no dia seguinte e no outro, em vão. A aia lhe disse que ela estava
muito ocupada. Todos a queriam, segundo ela. Ah, com essa menina, dizia
de Alicia, não precisava se preocupar. Não mesmo. Os homens vinham a ela
como as formigas vão ao mel.
Muito impressionado com aquela semelhança, convencido de que essa
Alicia apenas vislumbrada era a filha de Inês, achando que não podia ser de
outra maneira, Goya averiguou (pelo velho camarista) o endereço
residencial de Lorenzo e foi vê-lo num domingo à tarde, pensando que teria
uma boa chance de encontrá-lo em casa.
Não estava enganado. Lorenzo, que ocupava um apartamento de dois
andares em frente ao palácio real, acabava de fazer a refeição do meio-dia
com sua mulher Henriette e seus três filhos, que se haviam reunido a ele
em Madri. Goya se fez anunciar. Foi recebido imediatamente.
Lorenzo apertou-o nos braços como fizera em seu primeiro reencontro,
no dia do julgamento dos inquisidores. Apresentou sua mulher Henriette,
uma loura gordinha e sorridente que já ia para os seus quarenta anos, e
seus três filhos, duas meninas e um menino, que não pareciam
particularmente felizes por morar em Madri.
Goya seguiu os costumes, cumprimentou a mãe e as crianças, que já
encarava como possíveis modelos, tomou um café, aceitou um charuto, mas
não se atrevia afalar de Inês e Alicia. A conversa, que a audição de Goya
sempre tornava muito difícil e lenta, durante dez minutos, girou em torno
do projeto de museu. Goya participava de um comitê encarregado de
selecionar os quadros que se pretendia enviar para a França. Lorenzo, que
nisso continuava sendo muito espanhol, e nesse aspecto se opunha à
maioria dos cortesãos, aconselhou Goya a escolher obras menores, para
não privar a Espanha de grandes imagens do seu passado, das Meninas, da
Rendição de Breda. Goya prometeu que assim procederia.
Pediu notícias dos inquisidores. As penas foram aplicadas, respondeu
Lorenzo. A maioria deles se encontrava na prisão, na província. Os
condenados à morte tinham sido executados.
O velho também?, perguntou Goya. Aquele que era o diretor, em Madri?
Não, ele não, respondeu Lorenzo. Em todo caso, ainda não. Parece que
está muito fraco para lhe passarem o garrote. Suas costas não ficariam
retas contra o poste.
Na verdade, graças a diversas manobras cujo detalhe não é conhecido,
em troca sem dúvida de outros favores, como acontece com freqüência,
Lorenzo conseguira o adiamento,
da execução do padre Gregorio. Era então fiel à sua palavra, mas,
evidentemente, mantinha a coisa em segredo. Em público, como
procurador, tinha arrasado o velho inquisidor, apresentando-o como a
própria ilustração do mal.
Não podia revelar que depois, às escondidas, salvara a sua vida.
Por outro lado, esperava, dado o seu estado de depressão geral, que o
velhote morresse por si mesmo bem rapidamente, eliminando assim todo
assunto comprometedor.
Aproveitando um instante em que Henriette havia saído para dar
ordens na cozinha, Goya disse a Lorenzo que tinha uma notícia
surpreendente.
Que me diz respeito? Sim, talvez. Mas... Goya fez um gesto em direção à
porta que dava para a cozinha, com as crianças em volta da mesa.
Não se preocupe, tranqüilizou-o Lorenzo. Elas ainda não falam
castelhano.
É a respeito de Inês, advertiu Goya. Venha por aqui. Disse às crianças
que voltaria logo e levou o pintor para um aposento vizinho, um escritório.
Sem sequer sentar-se, perguntou:
Então, o que há com Inês? Eu vi a filha. O bebê? Não, a filha. Tem
dezessete ou dezoito anos. Eu a vi. Falou com ela? Ela lhe disse que era filha
de Inês? Goya pediu-lhe para repetir a pergunta, que não havia entendido, e
respondeu:
Não, não, não falei com ela, só a reconheci. É exatamente como a mãe
nessa idade. Eu a reconheci. Tenho certeza. Exatamente a mesma.
Henriette, a mulher de Lorenzo, abriu então a porta para perguntar
sorrindo o que os dois homens estavam tramando.
Nada em absoluto, respondeu Lorenzo, em francês. É sobre esse museu
de que lhe falei. A lista dos quadros. Temos que terminá-la hoje mesmo.
Usou Goya como testemunha do que dizia. O pintor, que não tinha
ouvido nada, fez que sim com a cabeça olhando para Henriette.
Não sejam tão tagarelas, advertiu ela, o café está na mesa, nós os
esperamos.
Já vamos, disse Lorenzo. Ela saiu, fechando a porta atrás de si. Lorenzo
logo perguntou a Goya: Tem certeza do que está dizendo? Se alguém pode
ter certeza, sou eu. Minha memória visual nunca me enganou. Ontem à
noite procurei nos meus velhos esboços, encontrei Inês com essa idade,
veja.
Tirou do bolso uma caderneta velha e mostrou imagens rápidas de Inês,
no passado, croquis preparatórios do retrato que pintou dela, de frente, de
perfil. Em dois ou três desses esboços, a jovem Inês tinha asas de anjo.
Parecia observar a Terra, lá do alto, com um sorriso bondoso diante do
espetáculo desesperante deste mundo.
Lorenzo observou distraidamente, de forma rápida, os estudos de Inês -
uns vinte, pelo menos. Ele também a reconhecia, sem dúvida.
Goya acrescentou que seu assistente provavelmente tinha razão. Inês
falava de um bebê porque sua vida tinha parado anos antes, no día em que
lhe tiraram o bebê recém-nascido, na prisão. Não podia imaginar que esse
bebê, essa menininha, tinha crescido, amadurecido.
Explicou a Lorenzo, mostrando com um lápis em seus velhos desenhos,
que as arcadas das sobrancelhas, os pômulos, o nariz, o queixo eram
exatamente os mesmos nas duas mulheres. Ele não tinha certeza quanto à
cor dos olhos. Talvez os da filha fossem mais escuros que os da mãe, que
permaneciam claros na sua memória. Quanto ao cabelo, o da filha estava
preso sob um chapéu. Ele só pôde vislumbrar de relance. Preto,
aparentemente.
Onde você viu essa garota? Onde a vi? Sim. Aqui, em Madri. Mas onde,
em
Madri? Nos jardins, com as outras. O que ela estava fazendo nos jardins?
O mesmo que as outras. Lorenzodurante alguns segundos, ficou em
silêncio. Entendia sem dificuldade o que Goya estava sugerindo. Essa garota
estava então nos jardins. Era lá que se podia vê-la, falar com ela, escolhê-la.
Nos jardins. Era carne para qualquer um.
O mesmo que as outras. Uma imagem e alguns cheiros lhe vieram de
repente à memória. Eram de uma noite em Saragoça, perto do rio, de uma
garota que o havia abordado.
Tanto tempo havia passado depois disso, talvez vinte anos.
Henriette bateu à porta e avisou que o café estava esfriando. Sim, sim,
estamos indo!, disse Lorenzo, levantando a voz. E se debruçou sobre Goya
perguntando, como se na verdade não lhe interessasse muito:
Por acaso você sabe o nome dela? O nome? Goya ignorava
completamente a viagem de Lorenzo ao convento de Santa Lúcia, seu
encontro com as religiosas, suas perguntas. Lorenzo não lhe contara nada.
Missão secreta.
Ela se chama Alicia, acho. Perguntei à aia. Foi o nome que ela me deu.
Alicia? Sim, foi o que entendi. Lorenzo não disse nada por alguns
instantes. Fitava Goya pensando em outra coisa. Afinal, perguntou: E o que
você quer que eu faça? Que me diga onde está Inês. Por quê? Quero
encontrar a filha e levá-la até ela. Isso é a única coisa que pede. A única
coisa que poderia ajudá-la.
Lorenzo lhe disse que não se preocupasse. Ele o entendia, iria cuidar de
tudo, em primeiro lugar de encontrar a garota. Que sorte, murmurou Goya.
Os dois homens não disseram uma palavra sobre o fato de que Lorenzo
poderia ser, como disse Inês quando o reviu, o pai de Alicia. Os dois
pensavam nisso, necessariamente. Mas por ora, num acordo silencioso,
decidiram não tocar no assunto.
Venha, disse Lorenzo levantando-se, vamos tomar esse café.
Lorenzo foi ver Goya de novo dois dias depois. Queria saber em que
alameda dos jardins o pintor vira aquela que podia ser a filha de Inês, essa
Alicia cujo nome coincidia (mas sobre isso ele não disse uma palavra) com
o nome que fora inscrito, dezessete anos antes, nos registros do convento
de Santa Lúcia: mandada de Madri por ordem do Santo Ofício. E o rumor:
filha de um dignitário da Ordem. Lorenzo não pensava em outra coisa
senão nessa fraqueza do passado, cujos efeitos enfrentava hoje. Lembrava-
se de Inês, de sua doçura, sua angústia, sua solidão,
de como a oração os havia aproximado, ela e ele, na cela escura e fria, de
como ela se sentara no seu colo, em cima do hábito de monge, buscando
proteção, e ele a tomara nos braços, sem encontrar resistência, para tirar
desajeitadamente sua virgindade.
Recordava também, na época não tinha a menor experiência nessas
coisas, que ela o estreitara firmemente entre os braços, não queria se
separar dele, dizendo que aquela dor não era nada em comparação com as
outras, que ela até gostava, procurava essa dor, e se jogava nos seus braços
quando ele entrava na cela, todas as vezes, e se oferecia logo, pedia que não
a deixasse sozinha, que voltasse rápido, rápido, para a reza da noite. Aquilo
durou algumas semanas antes da noite vergonhosa na casa dos Bilbatua, da
condenação e da fuga. Quando abandonou o convento, ainda se lembrava,
chegara a pensar em levar Inês. Mas para onde? Para que tipo de vida?
Desde que a reencontrou e ela se jogou aos seus pés dizendo que era o
único homem que conheceu (ele não duvidava disso), Lorenzo se sentia
dilacerado. Cheio de piedade, queria sinceramente fazer alguma coisa por
ela, ajudá-la, devolver-lhe uma parte, ainda que ínfima, do que tinha
perdido por sua culpa.
Ele pensava: a culpa é minha. Não que a tivesse detido e interrogado
pessoalmente. Outros haviam se ocupado disso. Mas fora ele, na época, a
dar início à nova ofensiva do Santo Ofício, aquela vigilância intensificada,
maníaca, na esperança de uma possível salvação da Espanha com o
aumento da velha severidade. Esperança estúpida, como dizia agora.
Quando falava da barbárie desses métodos do passado, estava sendo
sincero. Ele reconhecia que tinha se desviado, distanciado, que aquele
refiro de inverno num mosteiro nas montanhas, onde pensava que Deus
não se negaria a inspirá-lo, só o conduzira ao erro e à mais amarga
injustiça. Lembrava-se muito bem de como era seguro de si mesmo,
arrogante, intratável e convincente em meio a tantas divagações.
Quando estava sozinho, às vezes batia na cabeça e pensava: como pude
me enganar assim, dar as costas, teimosamente, para a evidência? Como
pude acreditar em Deus, na sua mãe virgem, nessa história sinistra de
pecado original e redenção, como pude me ajoelhar diante de uma imagem
e rezar? Como pude, sobretudo dentro de uma religião que pregava a
caridade e o amor aos outros, agir como um policial de antolhos na vista e
mãos brutais?
Como pude pensar que poderia persuadir as almas pela força?
Por outro lado, hoje ele era um homem público, um homem ativo,
responsável em parte pelo futuro do seu país. Não podia destruir esse
personagem por causa de uma simples história de amores clandestinos e
de criança rejeitada, sobretudo porque não sabia, na época, quando deixou
Inês, que ela estivesse grávida. O homem novo lutava dentro de si contra o
homem antigo, que ele renegava e detestava. Mas na realidade os dois eram
o mesmo homem. Com a mesma habilidade, o mesmo ardor ativo que
antigamente empregava para defender a integridade indispensável da fé,
defendia hoje as conquistas da Revolução, que julgava e proclamava
inestimáveis, incomparáveis.
Desta maneira, defendia a si mesmo, defendia seu personagem, era ao
mesmo tempo seu acusador e também seu próprio advogado.
E, nesse processo íntimo de si contra si mesmo, a posição social que
havia conquistado por seus méritos, seu cargo, sua família, sua relação com
o novo rei, os dez minutos de diálogo com o imperador, seus projetos, a
importância que os outros lhe davam, seu futuro que se anunciava
luminoso (porque, como previam os comentários sobre ele, não seria um
dia nomeado primeiro-ministro do reino espanhol?), tudo o levava a
sacrificar Inês e, se fosse preciso, livrar-se, de maneira decente, dessa filha
que Goya dizia ter reconhecido.
A rigor, ele podia admitir, o menos publicamente possível, que no
passado, sob más influências, tinha dormido com uma das prisioneiras da
Inquisição, mas hoje não podia reconhecer-se como pai de uma prostituta.
Uma filha que se tornara prostituta por sua culpa. Era impossível pendurar
isso na janela como a roupa suja.
Por isso alugou uma carruagem anônima e, sem dizer a ninguém, nem a
Goya, rumou um dia, às seis da tarde, para os jardins do Pardo. A seu
pedido, o cocheiro deu três ou quatro voltas pelas alamedas. Lorenzo
olhava sem se mostrar, afastando um pouco a cortina da portinhola. E a viu,
não na alameda que Goya havia mencionado, mas em outro lugar.
Ele a viu e a reconheceu, tão instantaneamente quanto Goya. Após
algumas manobras complicadas, o cocheiro, que Lorenzo orientava do
interior, parou a carruagem perto de Alicia. Pela portinhola, como vira
outros homens fazendo, ofereceu uma sacola em sua direção. A aia viu
primeiro e avisou à jovem. Esta, sorridente, com o rosto meio escondido
pelo leque com que brincava, foi até a carruagem, pegou a sacola, sopesou-
a, trocou um olhar com a aia. O peso sem dúvida lhe pareceu suficiente.
Entregou-a à aia, que se aproximara com seus passos curtos, e subiu no
veículo, cuja portinhola Lorenzo acabava de abrir.
Sentou-se à sua frente. Ele deu ordens ao cocheiro para avançar, a
passo, através dos jardins, e em primeiro lugar olhou-a fixamente. Seu
rosto, de fato, era quase idêntico ao da jovem Inês, mas com certa
insolência no sorriso e, nos olhos mais escuros, um laivo de vício alegre,
como se esse trabalho, com o sucesso que começava a fazer, fosse uma
verdadeira vingança contra as virtuosas autoridades que quase a deixaram
morrer antes de viver.
Um pouco incomodada com o olhar de Lorenzo, que absorvia todos os
detalhes do seu rosto, do seu penteado desfeito pelas trepidações da
carruagem, do seu decote coberto com renda preta, ela recuou e se
protegeu no fundo do assento, meio encoberta pela sombra.
Não, não, disse Lorenzo, fique na luz, quero vê-la.
Ela obedeceu e se endireitou. Ele a observou durante alguns segundos e
perguntou:
Você se chama Alicia? Sim, disse ela. Mas, se não gostar desse nome,
escolha outro. Para mim, dá no mesmo.
Não, gosto desse nome. Alicia. Gosto dele. De onde você é, Alicia?
Você é o primeiro que me pergunta isso. Que diferença faz?
Eu gosto de saber. Não sei de onde sou. De Madri, acho. Daqui. Onde
você nasceu? Num orfanato - disse ela. Lorenzo começou a rir de repente, o
que pareceu surpreendê-la. Perguntou:
Eu disse alguma coisa engraçada? Sim, de certa maneira O quê? O que
foi que eu disse? Ninguém pode nascer num orfanato. Nunca. As crianças
vão para um orfanato quando não se conhecem os pais, quando eles
morreram, ou quando os bebês são abandonados, mas de todo modo
depois de nascerem. Você conheceu seus pais?
Não, respondeu. Mas sabe quem foram? Sim. Meu pai era um cardeal,
disse ela com segurança, quase com orgulho, olhando nos olhos de Lorenzo.
Um cardeal? Sim! Quem lhe disse isso? As freiras diziam. E também as
outras meninas. Todas aquelas idiotas.
O orfanato era dirigido por freiras?
Naturalmente. Tem certeza de que não era um convento? Pode ser,
disse ela, olhando para fora e mostrando assim que começava a se enfadar,
a desperdiçar seu tempo. Para quê isso pode interessar?
Até que idade você ficou lá?
Até que me mandaram embora. Por quê?
Vendo que ela começava a mentir, Lorenzo decidiu concluir o
interrogatório. Mas ainda perguntou: E sua mãe? Você a conheceu? Não.
Sabe quem ela era? Sim, uma herege. Foram as freiras também que lhe
disseram isso? Ela não respondeu. Deu uma espiada pela portinhola, como
se não houvesse entendido, como se estivesse arrependida por ter entrado
lá.
Você sabe o que é uma herege?, perguntou Lorenzo. Não, mas é uma
coisa proibida, e recebe castigo. Agora não mais.
É?
Com um golpe seco, ela fechou completamente a cortina, que Lorenzo
deixara entreaberta para deixar entrar um raio de luz, e disse: Bem, e
então, fazemos aqui? Na carruagem? Eu não me incomodo. Mesmo
andando, para mim dá no mesmo.
Já começava a levantar rapidamente a saia quando Lorenzo lhe disse:
Não. Não, o quê? Aqui não? Onde, então? Em lugar nenhum. Só queria
conversar um pouco. Sobre o quê?
Sobre você. Por exemplo?, perguntou ela, desconfiada. Quando saiu do
orfanato, o que fez? Trabalhei numa granja durante dois anos. Dois homens
me estupraram.
Fui embora.
E depois? Ela lhe apontou um dedo estendido dizendo: Você não vai
receber seu dinheiro de volta, sabe disso? Não o quero de volta. Só vim
conversar um pouco com você.
Quer que eu lhe diga coisas sujas? Dessas coisas que não se dizem?
Posso fazer isso, se você quiser.
Não, não, nem pense nisso. Minha filha, dizia ele para si mesmo. Sem
dúvida, minha filha, sentada aí, diante de mim. Oferecendo-se, toda
maquiada. À venda. Capaz de falar porcarias. Fugida de um convento com
onze anos, estuprada por camponeses aos treze ou quatorze. E ele não se
sentia envergonhado, nem incomodado. Interessado, até fascinado por ela,
como se derepente Inês houvesse mudado de idade, de caráter e estivesse à
sua frente num outro tempo, numa outra vida. Ele mesmo sentia-se um
homem duplo, desde a juventude, um ser complexo, desconcertante, que
não conseguia controlar, nem mesmo conhecer, e agora tinha à sua frente a
mesma mulher, que o olhava como um estranho mas que só existia por sua
causa.
Ela lhe perguntou, fingindo medo, e abaixando a saia: Você não é da
polícia? Não. De verdade, mesmo? De verdade. Porque eu não gosto de
policiais, principalmente à paisana. E eles também não gostam de mim.
Uma vez arranhei um
deles. Ainda está com a cicatriz, bem debaixo do olho. Sempre que pode,
ele me mete na cadeia.
Ele deu sua palavra de que não era da polícia. Então? O que quer de
mim? O que estamos esperando? Tenho uma proposta a lhe fazer. Sim. O
quê? Sair da Espanha. Agora a indiferença caiu do seu rosto como uma
máscara de papel. Ela estava surpresa de verdade, e assustada.
Sério?, perguntou ela. Muito sério. Para ir aonde? Aonde você quiser.
França, Itália. Grécia. Mas o melhor seria ir para a América.
Por quê? Porque é mais longe. Quer que eu vá embora da Espanha? Sim.
Com você? Não. Cada vez mais assustada, ela lhe pergunta se está em
perigo sem saber, se alguém a odiava a ponto de querer se livrar dela. Essas
coisas acontecem. Ele diz que não.
Então por que quer que eu vá embora? Pelo menos poderia me dizer?
Não, não posso. Mas se você aceitar, e isto é a única coisa que estou
autorizado a lhe dizer, vai ter dinheiro suficiente para passar o resto da
vida sem fazer nada.
Vou poder me casar? Terá a vida que quiser. Será totalmente livre. Livre
e rica. Você vai poder se casar, ter crianças. Desde que deixe a Espanha
imediatamente.
Ela de repente perguntou: É por causa do meu pai, o cardeal? Lorenzo
pensou dois ou três segundos antes de responder: Não creio. Para dizer a
verdade, não conheço o verdadeiro motivo. Fui enviado a você, isso é tudo.
Quem o enviou? Não estou autorizado a dizer. De repente ela pegou a
maçaneta da portinhola e quis abrila. Lorenzo segurou seu braço para
impedir. Ela gritava que queria sair dali, rápido. Ele tentava acalmá-la, dizia
que não havia nada a temer. Ainda queria falar com ela, mas a garota se
recusava, não queria ouvir mais nada.
Não me toque! Deixe-me sair! Tudo isso para acabar num bordel
miserável! Pastando com os animais! Deixe-me sair daqui, já disse!
Mordeu a mão de Lorenzo com toda a força dos seus jovens dentes. Ele
reprimiu um grito. Alicia conseguiu entreabrir a portinhola e berrar.
Transeuntes se aproximaram, outras garotas, a aia. Tudo o que Lorenzo
queria evitar.
Então a soltou, e ela prendeu um pé na saia quando desceu da
carruagem. Caiu de joelhos, ainda gritando, pedindo socorro. Lorenzo disse
ao cocheiro para sair dali o mais rápido possível. Ouvia atrás de si os
pesados insultos de Alicia, seus gritos, que alarmavam os jardins.
Gotas de sangue pingavam da sua mão. Ele secou-as com o lenço.
Os interesses da França começavam a desandar. Por motivos mil vezes
explicados mas jamais compreendidos, Napoleão decidira invadir a Rússia.
Para isso formou o que chamou de Grande Exército, que parecia irresistível,
e escolheu a Polônia
como base de retaguarda. Após duras batalhas, entrou em Moscou e se
instalou no Kremlin. Por pouco tempo. A resistência russa incendiou a
cidade, então construída em madeira, e fustigou os invasores, dia e noite.
Tiveram que bater em retirada diante de um inimigo combativo, mais
patriota do que o imperador poderia imaginar, e que recebia a ajuda de um
general desconhecido dos franceses, particularmente temível, chamado
Inverno.
Ao mesmo tempo, na Espanha, a guerra contra os franceses, estimulada
pela presença ativa de tropas inglesas em Portugal, exacerbava-se e
ampliava-se a cada dia.
E recebia até um nome novo, que teria um longo futuro por diante: a
guerrílla. Como escreveram numerosas testemunhas, era o país inteiro, até
mesmo a terra, as árvores, que parecia lutar, com facas, com forcados, com
estacas. Guerra cuchillo, como anunciara Palafox.
Essa resistência natural do povo marcava um fim próximo para as
velhas batalhas com tropas em formação, nas quais quem ficava com o
terreno declarava-se oficialmente vencedor e impunha suas condições de
paz. Não era mais assim. Os estudos de estratégia e tática ministrados nas
escolas militares não serviam mais de nada. As tropas regulares,
organizadas, buscavam em vão o inimigo, que se ocultava o tempo todo e se
infiltrava nas aldeias e cidades para atacar em pequenos grupos, pela
retaguarda, pelos flancos, muitas vezes à noite e com facas.
Exasperadas, as tropas de ocupação reagiam, como é tristemente
habitual, com capturas de reféns e execuções sumárias, muitas vezes
precedidas de torturas. Pelotões de fuzilamento, membros cortados,
degolas, empalamentos, estupros, incêndios de casas, de aldeias: desastres
que Goya desenhava sem parar - fosse porque os via, pois se deslocava de
Madri a Saragoça, fosse porque lhe contavam -, mas que não podia ou não
ousava publicar. Com exceção de algumas pessoas mais íntimas, essas
imagens só foram conhecidas muito depois de sua morte.

Em 1841, devastada, a Espanha enfrentou, além de tudo o mais, uma


fome duríssima. Os miseráveis comiam sapos, vermes, insetos. Ferviam
folhas e ervas, como nos relatos de outros tempos. O rei José fez o possível
para enfrentar essa penúria, mas sem grande sucesso. Mandou distribuir
pão, ele mesmo foi aos bairros mais esfaimados. Em vão. Sua popularidade,
que fora real, diminuía a cada mês. O público não se levantava mais para
aplaudi-lo quando ele ia ao teatro. Seu projeto de museu fracassava. Viam-
se cada vez menos rostos célebres nas recepções que dava no palácio.
Lorenzo certamente sentia que os ventos estavam mudando, como a
maioria dos afrancesados, mas a glória de Napoleão era ainda tão luminosa,
tão milagrosa, que ninguém podia imaginar sua queda iminente. Como
tantos outros, Lorenzo pensava que o Imperador, considerado invencível
em terra, mandaria para a Espanha, quando quisesse, uma expedição
decisiva, que atacaria firme e forte. Com toda certeza tinha planos secretos,
reservas de homens. Um homem como ele prevê tudo.
Lorenzo também, apesar de suas preocupações pessoais, continuava
trabalhando quinze ou dezesseis horas por dia, ajudando o rei em todas as
suas ações, em todos os seus conselhos, ensejando encontros,
controvérsias, solicitando pareceres, colaborações, redigindo declarações,
propondo dois decretos por dia. Seu vago título de conselheiro para
Assuntos Espanhóis lhe permitia intervir, mais ou menos oficialmente, em
todos os setores. Sabendo que era espanhol, amontoavam-se à sua porta
pessoas com pedidos e solicitações. E ele fazia o que podia. Estava
obcecado com o exemplo do Imperador, de quem se dizia (uma lenda entre
várias outras) que só dormia três horas por noite. Queria ser digno dele.
A situação da Espanha lhe recordava a da França em 1793, quando toda
esperança de vitória contra a Europa coligada parecia destruída. E embora
o povo espanhol, tal como ele o via, parecesse se aferrar ao passado e se
obstinar numa luta absurda contra a França, não havia dúvida de que,
também aqui, abririam os olhos e a razão moderna afinal se imporia. Nada
podia embaçar a sua convicção fundamental, sempre clara e inteira,
totalmente dirigida ao bem público. Ele fizera a boa escolha, quanto a isso
não tinha a menor dúvida. Defendia essa escolha com ardor, até mesmo
com crueldade. Mas essa passagem pela brutalidade, pela inflexibilidade,
pelo que às vezes chamava de rigor, era indispensável para que houvesse
algum progresso, alguma marcha para o futuro melhor que ele entrevia e
descrevia, tanto nos seus textos como nos discursos.
Esse futuro se baseava na aplicação de três princípios, que antes, em
Paris, ele chamava, brincando, de a santíssima trindade republicana.
Primeiro a liberdade, que era para ele o Deus, Pai, princípio formador não
só de toda ação humana, mas da própria responsabilidade dessa ação.
Estranhamente - mas isso não o surpreendia -, encontrava nesse princípio
uma evocação do dogma cristão da liberdade de escolha que os jansenistas
haviam contestado e que no passado ele defendia com grande convicção.
Essa liberdade republicana vinha de longe, dizia. Era mesmo a origem
da iniciativa, mas também da culpa. Ela permitia entender o progresso, a
possibilidade constante de fazer a melhor escolha possível em vez de
repetir formas antigas, e também de reconhecer o erro e castigá-lo quando
preciso. Ele podia falar extensamente sobre isso.
A igualdade era o Filho de Deus, era Jesus, que se fez o igual do homem.
Ele era a igualdade ao mesmo tempo das condições e dos direitos, porque
Jesus comia como todos os homens, sentia fome, sentia medo, era julgado,
torturado, morria, mas era também a igualdade das oportunidades, não
oportunidades de salvação, como cantavam as velharias dos catecismos,
que situavam na morte a realização dos nossos desejos, mas simplesmente
oportunidades de vida, de bem-estar e até mesmo de felicidade nesta vida,
a única que teremos.
A fraternidade, por fim, procedia dos dois outros princípios, como o
Espírito Santo procedia do Pai e do Filho. Como imaginar uma liberdade
real, limitada pela lei, e uma igualdade verdadeira de direitos e
oportunidades, garantida pela própria lei, sem ver de imediato todos os
furos, todas as brechas que certamente surgiriam no edifício ideal? Ele
podia enumerar essas brechas: desigualdade dos dons e dos defeitos,
corrupção, ambição, vícios diversos, desejo de dominar e necessidade de
sofrer. Também dizia - alguns anos antes - que a fraternidade é um esforço
de lucidez para escapar das armadilhas da ingenuidade. É o nosso último
recurso.
Assim, quando o Pai e o Filho não puderem fazer nada por nós, ainda
resta o Espírito Santo.
Extremamente ocupado, naquele ano que sentia ser decisivo, mandou
dizer a Goya que por ora não tinha tempo para posar. Propôs que
começasse com Henriette e as três crianças, mas Goya lhe respondeu que
preferia esperar, pois precisava de pelo menos uma pose da família reunida
para decidir a composição. Esperariam, então. Enquanto esperava, Goya
continuava pintando retratos quase em série, como o de uma atriz famosa,
Antonia Zarate, ou do matador Romero José, e vários outros.
Procurou Lorenzo em fevereiro de 1812 e lhe perguntou, mais uma vez,
onde estava Inês. Lorenzo disse que tinha visto a tal garota, aquela Alicia, e
que ela sem dúvida oferecia uma certa semelhança com Inês, mas daí a
dizer que fosse filha...
É a filha!, gritou Goya. Tenho certeza! A natureza não pode criar, por
acaso, duas figuras tão parecidas! É impossível! Só pode vir do sangue! Eu
passei a vida inteira observando rostos, homens, mulheres, crianças, e sei
do que estou falando! É a filha dela!
E então?, perguntou Lorenzo, que enquanto falava assinava papéis em
sua mesa de trabalho, lia anotações e dizia ao seu secretário para pedir
paciência aos que vinham fazer pedidos.
E então, o quê?, disse Goya, que viera com seu assistente. Quer mesmo
que elas se encontrem? E por que não? Quer mesmo levar essa garota até a
mãe e dizer: aqui está, é ela, eu encontrei a sua filha e ela é uma puta? É isso
que você quer?
Elas são da mesma carne! Do mesmo sangue! E então? É isso motivo
suficiente? Discutiram algum tempo sobre o assunto. Nenhum dos dois
queria ouvir os argumentos do outro. Goya desejava, acima de tudo,
encontrar Inês, saber onde ela estava. Lorenzo, impaciente, ocupado com
outros problemas; acabou confessando que se havia confirmado o que ele
suspeitava: Inês tinha perdido a razão.
Mas onde ela está?
Em boas mãos, não se preocupe. Mas onde? Onde? Eu preciso falar com
ela! Por quê? Por quê? Você disse: por quê? Sim. Lorenzo continuou,
levantando a voz. Fazia tempo que queria dizer a Goya que ele parecia
completamente obcecado com o rosto dessa garota, dessa Alicia, no qual
reconhecia o rosto de Inês no passado. Por que essa obsessão? Por que
voltar sempre a essa semelhança? E perguntou a Goya, num momento de
cólera: Ela foi sua amante?
Quem? Essa garota, essa putinha, você dormiu com ela? Você lhe pagou?
Ela? Sim, ela! Você a vê regularmente? O que ela faz com você? O que ela
lhe fala? Hein? Você a ama, talvez, será possível?
Não. O tom se acalmou. Goya sentou-se numa cadeira e, ele que nunca
falava dessas coisas, do seu trabalho, da sua inspiração, dessa vez deixou
escapar algumas confidências. Lembrando de uma conversa antiga, no dia
em que, observando discretamente o retrato de Inês,, Lorenzo, então
monge e homem de fé, fez umas estranhas perguntas sobre as relações dos
pintores com suas modelos, Goya pediu que ele interrompesse por alguns
minutos o que estava fazendo e o ouvisse.
Lorenzo concordou. Despachou secamente seu secretário, que lhe trazia
uma pilha de correspondência urgente. Pegou uma cadeira, sentou-se em
frente a Goya e este lhe disse:
Ouça. Entre Inês e mim, entre a filha dela e mim não há nada de carnal,
entende? Nada de sexual. Nem hoje, nem no passado. Jamais. Minha
obsessão, como você diz, não tem nada a ver com isso. É outra coisa, mais
difícil de explicar.
Diga. Esse rosto, esse rosto está presente em toda a minha vida. Aparece
o tempo todo, sem que eu o chame. De manhã, quando acordo, eu o vejo,
como se estivesse me esperando em cima da minha cama. À noite, sonho
com ele. Durante o dia, muitas vezes o vejo, ali, à minha frente, na rua, em
casa, em qualquer lugar. Na floresta, às vezes, quando vou caçar. Nos
momentos em que menos espero. Está ali, olha para mim e sorri. É assim.
Não posso fazer nada. Eu o desenho, pinto, ponho no corpo de um anjo, de
uma deusa, em qualquer outro lugar, e nada muda. Está sempre aí. Você me
entende?
Lorenzo balançou a cabeça e lhe fez um sinal para continuar, se
desejasse.
No dia em que pensei que ia morrer, em Cádiz, quando subitamente
parei de ouvir, quando meus ouvidos estouraram, vi esse rosto debruçado
sobre mim. Esses olhos, essa boca. Não sei o que quer me dizer, por que me
persegue, mas não tem jeito, ele está aí. Já estou tão acostumado com sua
presença que não poderia mais viver sem ele. Preciso dele.
Lorenzo lhe perguntou se esse era o único rosto que lhe aparecia assim.
Não, diz Goya, houve outros. O de uma mulher que você não conheceu,
que se chamava María Cayetana.
A duquesa de Alba?, perguntou Lorenzo. Sim, ela. Ela não era tão
sorridente, nem tão indulgente. Seu olhar era mais forte, um olhar que
transpassava as pessoas, que não perdoava nada e ao mesmo tempo
entendia, apoiava. Vinha de cima e parava no nível do outro. Era como uma
graça. Um dos olhares mais belos que já encontrei.
Você não pode imaginar como o olhar pode ajudar os pintores. Os olhos.
E não apenas os olhos das duquesas. Às vezes um mendigo me fita na rua e
eu volto rápido para casa e tento recuperar aquela chama percebida nos
seus olhos. E também suas mãos doentes, seus dentes apodrecidos, seu
corpo entortado. Pode acontecer a mesma coisa com um cachorro. Mas
quando estava pintando o rei, o Bourbon, não tinha onde me apoiar. Tudo
ali era mole. Um olhar que parecia água suja, olhos de cabra morta. Se você
soubesse como penei!
Contou que também podia trabalhar com a imaginação, inventar rostos,
era bastante hábil nisso. Ao envelhecer - disse -, como ia perdendo a visão,
entrava para dentro de si, onde imagens cada vez mais sombrias, cada vez
mais elásticas, vagas e extravagantes estavam à sua espera. Encontrava
esses modelos na sua intimidade profunda, de onde os copiava. Aquele
gigante terrível que acabava de terminar, por exemplo, e que chamavam de
O Colosso, tocando nas nuvens, dando as costas para fujões apavorados,
levantando os braços para lutar contra um adversário do seu tamanho, mas
que não se vê, de onde saía? O que representava? Um símbolo, uma
alegoria? Certamente não. Em todo caso, não para ele. Vinha daquele
subterrâneo desconhecido, silencioso, onde agora se aventurava mais
freqüentemente que antes. Também dizia, quando lhe perguntavam de
onde surgira tal ou qual imagem, tal ou qual monstro: Eu o vi. Ou então,
quando insistiam no assunto: Eu não olho, eu vejo.
No entanto, mesmo com sua idade, mesmo com sua experiência, rostos
do passado, como os de Inês Bilbatua e de María Cayetana, sempre o
ajudavam enormemente, por mais que ao longo do trabalho ele os
alterasse, por mais que os transfigurasse. Eles viviam ignorados, invisíveis,
em algumas de suas obras, antigas ou recentes.
Ele mesmo às vezes os esquecia, não os via mais, porém sabia que
estavam ali.
Também explicou que desde que começara a fazer retratos (grande
parte de sua atividade), pintava a maior parte do tempo como um artesão,
quase por rotina. Começava desenhando a carvão a forma do corpo, os
ombros, para depois esboçar o rosto. Quando começava a definir esse rosto,
a montá-lo, fazia como todos os pintores, tal como lhe haviam ensinado,
começava pela base do nariz, depois passava para a linha da boca, em
seguida ao traço das sobrancelhas. Procurava o equilíbrio e a precisão das
formas, como faria com um melão ou uma moringa. A maioria dos rostos
que se apresentavam à sua frente não lhe diziam nada. Ele fazia o seu
trabalho da melhor forma possível, sem descuidar de nenhum aspecto,
recebia o dinheiro, passava para outro.
Muitas vezes, ao primeiro golpe de vista, um rosto o impressionava,
sem que soubesse dizer por quê. Não era mais um objeto, diante de si havia
um pedaço de vida.
Então, não buscava mais a exatidão das formas e das proporções, nem
sequer a semelhança, era a própria vida que buscava. Queria com todas as
forças o impossível, queria pôr a vida na tela.
E vou lhe dizer, Lorenzo, acrescentou ao final, ou quase, desse longo
discurso, tive essa impressão quando o vi pela primeira vez, quando
ficamos frente a frente.
Tive a sensação de que você estava vivo. E tentei pôr essa vida, essa
vida que você tinha então, no meu quadro. Por isso fui ver quando o
queimaram. Para saber se, na hora que o fogo o atingisse, sua imagem iria
gritar.
E ouviu alguma coisa?, perguntou Lorenzo. Não, disse Goya, mas eu já
começava a ter problemas de audição.
Ficou em silêncio por um breve instante, depois disse: Agora entende
por que me apeguei tanto a Inês? Sim, acho que sim, respondeu Lorenzo.
Por que sou obcecado por ela? É simples: porque devo muito a ela. Porque
ela me acompanhou boa parte da minha vida. E por este motivo, se você
ainda tem um pouco de amizade por mim, um pouco de sentimento por ela,
precisa me dizer onde ela está.
Lorenzo abaixou ligeiramente a cabeça para mostrar que havia
entendido, que estava convencido, que não era preciso insistir, que ele
aceitava.
Ela estava realmente como uma louca, disse. Nós a pusemos num
hospital dirigido por freiras. Ela gritava, batia em todo mundo, dizia que
não estava doente, que não tinha nada, e toda noite pedia o seu bebê.
E então?
Então, tivemos que interná-la. Num asilo? Sim. Eu desconfiava. Diga-me
onde, rápido. Em que asilo? Lorenzo não se lembrava: tantas coisas na
cabeça.
Foi preciso chamar o secretário, que também não sabia. Até
encontrarem o nome de quem se encarregara do caso, um subalterno, e
procurarem nos papéis, já era tarde.
A noite caía.
Goya voltou para casa e não disse nada à sua mulher Josefa, tão doente'
que já se temia pela sua vida. Era inútil preocupá-la à toa.
Deixou sua visita para o dia seguinte.

Goya já visitou asilos de loucos, diversas vezes, em Saragoça e em


Madri. Fez alguns esboços e pintou quadros, não na tradição alegórica (o
mundo é uma nave governada por loucos), mas de maneira objetiva,
realista. Como de costume, pinta o que vê, lá ou em qualquer outro lugar.
Num desses quadros, olhando bem, à direita, nas sombras, podem-se
distinguir os corpos de dois homens copulando. Ele viu, ele pintou.
Hoje não está ali para pintar, nem para fazer esboços. Está ali para
encontrar Inês e tirá-la daquele lugar. Conseguiu entrar no gabinete do
diretor, um homenzinho seco, volúvel, muito agitado, que neste momento
faz a barba. O barbeiro, homem de testa larga e sorriso amplo, é sem dúvida
um dos internos. O diretor, olhos entrecerrados, oferece seu pescoço: belo
sinal de confiança.
Sem abrir a boca, toda coberta de sabão, o diretor levanta uma pálpebra
e com um gesto pergunta a Goya o que ele quer e quem é. O pintor, que
como sempre estava acompanhado por Anselmo, diz que se chama Goya,
Francisco Goya. O diretor entreabre os dois olhos, dá uma espiada no
visitante, levanta as sobrancelhas: esse nome não lhe diz nada. Goya pensa
que ele não ouviu, que talvez também seja surdo, e repete: Francisco Goya
Nova levantada de sobrancelhas, como que a perguntar: e daí?
Sou o pintor do rei, diz Goya, sem especificar de que rei se trata, porque
de todo modo é o pintor de todos os reis.
Ao ouvir a palavra rei, o diretor tira a toalha, enxuga rapidamente o
rosto (não está totalmente barbeado, mas tem pressa) e, deixando o
barbeiro plantado com a navalha na mão, grita:
O rei! O rei! O que está me contando com esse seu rei? Sabe quantos reis
tenho aqui, neste momento? Hein? Tem uma idéia? Dez? Quinze? Eu perdi a
conta, senhor!
Pelo menos vinte e cinco ou trinta! Tenho até dois Napoleões! E um
deles é árabe!
Anselmo tenta traduzir as frases rápidas do diretor. Para aludir a
Napoleão, cobre a cabeça, usando as mãos, com um chapéu imaginário.
Goya, aparentemente, não entende nada. O que Napoleão tem a ver com
essa discussão que mal começou?
O diretor observa as gesticulações do assistente e pergunta, apontando
para Goya:
Ele é surdo? Sim, diz Anselmo. Completamente. Homem feliz!, grita o
diretor, esfregando as mãos em que acaba de passar um creme.
Por quê?, interroga o assistente. Por quê? Quer mesmo saber por quê?
Porque poderia ser cego! Pintor do rei e cego!
Isso o faz gargalhar ruidosamente, mas ninguém o acompanha. Passa
creme nos pômulos e no pescoço. Depois se perfuma, dizendo que bem está
precisando, no meio de todos esses cheiros. O barbeiro permanece imóvel.
Largue essa navalha, idiota!, diz o diretor. Não, lave-a primeiro! Quantas
vezes preciso falar? E volte para junto dos outros! Vá!
O barbeiro faz o que pode, gira em círculos, procura uma toalha, joga a
água da bacia no lugar errado, é novamente repreendido, procura algum
pano em volta de si.
O diretor veste a jaqueta, olha-se no espelho, faz uma careta ao
perceber as áreas mal barbeadas, por fim se volta para Goya e pergunta o
que ele quer.
Goya trouxera o nome de Inês escrito num pedaço de papel. Mostra-o.
Sim?, pergunta o diretor. Quero vê-la, diz Goya. Conheço-a de há muito.
Inês Bilbatua. Fui amigo do seu pai. Ela é um pouco estranha, mas não é
louca. Quero tirá-la daqui.
Ela não é louca, hein? Não. Há dois tipos de visitantes aqui, diz o diretor
sentando-se gravemente atrás da sua escrivaninha e levantando o
indicador direito.
Os que nos mandam pessoas da família que não são loucas, mas que
estão dispostos a jurar que sim, porque preferem que fiquem trancadas, e
os que querem fazer os loucos saírem, jurando que não o são.
Goya só entendeu a palavra família e se apressa a dizer: Ela não é da
minha família. Amiga, então? Alguém que estimo muito. Eu me ofereço
como seu protetor,garante.
Garante? Sim.
O diretor olha Goya com atenção, depois se vira para o assistente e
pergunta:
Quanto ele está disposto a dar para levá-la? Anselmo faz o seu trabalho
de tradutor (falar de dinheiro, com as mãos, é mais fácil) e Goya, que
conhece muito bem as artimanhas das negociações monetárias, sabendo
portanto que é sempre imprudente sugerir a primeira cifra, pergunta ao
diretor que quantia seria do seu agrado.
Este, que está com pressa, e adivinha ali uma bela oportunidade para
fazer entrar um bom dinheiro em caixa, diz a primeira cifra.
Mil, por exemplo. Goya ouve a tradução do assistente e depois diz, de
rosto fechado:
Cem. Quanto? Cem. Dando um pulo, o diretor fica em pé, como se
houvesse fogo embaixo da cadeira.
Cem? Mas o que quer dizer cem? Por que não dez? Será que as pessoas
percebem, pelo menos? Será que estão acordadas, será que sabem em que
época vivem? Há revoluções e lutas em toda parte, alianças e contra-
alianças, todo mundo é destripado ou pendurado, o planeta não sabe mais
onde está, as coroas passam de uma cabeça para outra como se fosse uma
brincadeira de crianças, e agora os ingleses se aliaram aos portugueses
contra os franceses, e um rei francês, bem, não exatamente francês, um rei
corso tem que defender a Espanha, uma Espanha que não se interessa por
ele, e os russos que já estão, parece, na Polônia e na Alemanha, e por que
não os turcos em Paris logo, logo?
E eu estou aqui, diz o homenzinho nervoso, dando voltas em torno da
mesa como um inseto em torno de uma lâmpada, estou aqui, sou o
responsável por este hospital, eu o dirijo, preciso fazer tudo sem ter nada,
zelar por tudo, dar de comer, cuidar deles, e eu não recebo nada, nada,
entende? Nada há quatro meses, minhas reservas estão esgotadas,
completamente esgotadas, e esse homem tem a coragem de me dizer cem!
O que eu posso fazer com cem? Hein? O que posso fazer? Quinhentos!
Preciso pelo menos de quinhentos!
Duzentos, diz Goya. Fechado, diz o diretor. Pergunta a um secretário
onde se encontra essa mulher, essa Inês, como era mesmo? Inês Bilbatua,
diz o assistente de Goya. O secretário não sabe, tem que procurar nos
cadastros, isso vai levar algum tempo porque os registros acumularam um
atraso nos últimos meses, pois há muita procura e falta pessoal, mas
felizmente o barbeiro conhece Inês. Justamente está, com ele, no pavilhão 4.
Antes de sair do gabinete, o diretor pergunta a Goya, por intermédio do
assistente:
Pela mesma tarifa, ele não gostaria de levar alguma outra pessoa?
Não. Ninguém. Seguem juntos, Goya, Anselmo e o interno barbeiro,
guiados pelo diretor, que não pára de falar, por escadas e corredores.
Passando por cima de corpos, atravessam um pátio onde há homens e
mulheres acorrentados em anéis fixos nas paredes, enquanto outros
internos jogam baralho tranqüilamente, fumam, bebem vinho. Alguns
tossem, falam sem parar e até gritam, porém Goya não ouve nada. Mas
lembra bem dos sons dos asilos, as vozes estranhas, os ruídos que se
repetem, dos chamados, as campainhas, os gemidos insistentes, o ranger de
correntes. Ele conhece esses lugares, isolados do mundo e no entanto parte
dele.
No interior desses muros, atrás dessas portas com correntes, estão
trancados aqueles e aquelas que as autoridades em exercício separaram do
resto do mundo, julgando que não são mais dignos porque perderam, para
sua desgraça, o que os outros chamam de razão, essa razão que, lá fora,
provoca uma enorme barafunda de guerras e massacres, cabeças cortadas e
cravadas em árvores, crianças estupradas, sangue nos rios, todas essas
coisas que são as marcas identificadoras do equilíbrio e do bom-senso.
No entanto, como sempre diz aos amigos, Goya viu nesses asilos
imagens humanas que não pôde encontrar em nenhuma outra parte,
imagens da verdade, que sempre foram preciosas para ele. Velásquez
pintava anões, Murillo, virgens, Zurbarán, santos imersos no êxtase. Ele, às
vezes, pintava loucos.
Chegam ao pavilhão 4. Um guarda, que conhece mais ou menos a
identidade dos internos, abre uma porta e chama Inês. Lá dentro não se vê
grande coisa.
Estou aqui!, diz a voz de Inês. Já vou! Goya não ouve, mas seu assistente
lhe dá a entender que vão ver Inês, que ela está ali. E, de fato, logo depois a
vêem.
Ela aparece sob a luz, corretamente vestida e calçada (os asilos
recebiam roupas de caridade, como os hospitais, muitas vezes coletadas em
cidades ou aldeias destruídas).
Está sorridente, e está grávida. Gravidez avançada. Goya olha para seu
assistente com algo nos olhos que parece desespero. Anselmo abre os
braços: não está entendendo nada.
O diretor, no entanto, não demonstra a menor surpresa. Ele se aproxima
de Inês dizendo, severo: Não, não, por favor! Inês! Quantas vezes já
dissemos! É proibido ficar aqui com bebês! Proibido! Você não entende?
O diretor se inclina, enfia a mão resolutamente sob o vestido de Inês,
procura um pouco, retira um monte de panos que ela enfiara lá e entrega
ao guarda. Depois diz que ela está livre, que pode sair quando quiser. Tudo
foi acertado.
Mas não é óbvio que Inês queira sair dali. Ela se levanta, insegura, com
as mãos na barriga lisa, enquanto duas outras mulheres lutam aos berros
para se apoderar do bebê de pano.
Inês olha para todos e chega a sorrir para o barbeiro que está ali, que
ela conhece.
Goya se aproxima e fala suavemente com ela, que parece não
reconhecê-lo.
Sou eu, diz, Francisco... Você veio à minha casa, lembra? Francisco, o
pintor...
Não, ela não se lembra de nada. Olha o rosto de Goya como se fosse um
desconhecido. Os meses que passou nesse asilo, após os anos de prisão,
destruíram o que restava da sua memória. Perdeu o contato com as
pessoas, com as coisas, não sabe quem é nem onde está. O diretor repete
que ela está livre, que já pode ir embora. Um dos guardas lhe entrega uma
pequena trouxa que contém todas as suas coisas: um pente, um lenço, uma
maçã, um pedaço de sabão preto. Ela não entende o que o diretor lhe diz. A
palavra livre não tem mais sentido. Torna a sentar-se num banquinho e
olha em volta.
Não está melhor, diz o diretor a Goya, mostrando Inês. Mas também,
quantos são lá dentro? Vinte? Vinte e cinco? Num único aposento! E isso é
cada vez mais comum!
Não adianta eu me esgoelar, não serve para nada! Um sujeito veio se
internar aqui, ano passado, só para poder berrar, dez vezes por dia: `Morte
a Napoleão!'.
Eu sempre suspeitei que ele fingia, que só vinha aqui para se aliviar,
dizer o que realmente pensa. Por fim, os nossos dois Napoleões o pegaram
de jeito e bateram tão forte que ele acabou no hospital. Acho que morreu lá.
Inês continua imóvel. Goya, então, tem uma idéia. Chega bem perto dela
e diz:
Inês, encontrei sua filha... Está ouvindo?, pergunta o diretor, que quer
mesmo que ela vá embora, para garantir a posse do dinheiro. Encontraram
a sua filha!
Você pode ir embora!
Minha filha?, indaga Inês. Sim, repete Goya, sua filha, eu a encontrei!
Minha filhinha? Meu bebê? Sim... Vamos, venha agora... Venha comigo,
vamos...
Inês olha para o diretor. Parece apavorada. O diretor a tranqüiliza com
gestos e palavras. Põe a mão no seu ombro e a acompanha até o corredor.
Ela se deixa levar, apanhando a sua trouxa no caminho. Segura o braço de
Goya, acompanha seu passo.
O secretário corre atrás deles com um papel que precisa ser assinado, é
obrigatório. Goya assina sem nem sequer ler.
Outros internos aparecem, saindo da mesma cela. São alienados, fecham
os olhos para a realidade. Alguns gritam que querem sair também. Acham
que estão autorizados, pensam que as portas foram abertas e que todos vão
embora.
Mas o diretor levanta a voz, grita, ordena que parem e, como eles
hesitam, como não obedecem direito, empurra-os com as mãos. Pede ajuda
ao guarda, este chama outro guarda, que vem correndo. Os dois homens
fazem os chicotes estalarem, seguram a porta com todas as forças. O
barbeiro lhes dá um empurrão e se tranca com os outros, no último
instante.
Goya conhecia os hábitos das garotas de Madri há muito tempo. Sabia
que à noite, quando os jardins fechavam, elas continuavam o seu trabalho
entre quatro paredes, ou seja, nas tabernas.
Quando saiu do asilo, primeiro levou Inês ao seu ateliê, para comer e
descansar um pouco. Nos dias seguintes, enquanto Dolores, a mulher do
térreo, cuidava de Inês, que não parava de perguntar onde estava seu bebê,
a filhinha que lhe haviam prometido, Goya procurava Alicia. Foi impossível
localizá-la nos jardins do Pardo. Desde o seu encontro com Lorenzo, que a
deixara assustada, ela sentia que podia estar envolvida em alguma trama
misteriosa, como às vezes se conta entre as garotas, uma dessas tramas em
que estão gravemente implicados personagens importantes, cujos nomes
não se conhecem. Dessas histórias que sempre acabam mal. Ela também
evitava voltar aos lugares onde passara com Lorenzo em sua carruagem.
Goya falava dela, depois a descrevia, mostrava esboços que fizera de
cabeça. Alguém lhe disse, rindo: Ah, a filha do cardeal!. Ele pensou que
havia entendido errado.
Acabou encontrando-a no fundo de uma das tabernas que ele
freqüentava, no centro popular de Madri, e que não era a de dona Julia,
onde Inês havia comemorado seu aniversário há tanto tempo (dona Julia
morrera dos pulmões em 1809), mas uma outra baiúca, mais sombria,
menos acolhedora, mais rude, chamada El Trabuco.
Viu-a de longe, ainda no umbral da porta, reconheceu-a
instantaneamente, ainda perturbado pela semelhança entre as duas
mulheres, e regressou rapidamente ao seu ateliê, sem entrar na taberna,
por volta das cinco da tarde. Levou algum tempo para acordar Inês que,
cansada, tinha adormecido na sua ausência.
Disse a ela que ia levá-la ao encontro da filha, que a tinha visto, ela
estava à sua espera. Mandou chamar seu cocheiro, a carruagem, pediu a
Anselmo para acompanhá-los e partiram os três. Inês, muito agitada, não
parava de dizer que ia ver o seu bebê, o seu bebê. Goya apertava sua mão,
dizendo: Sim, sim.... Quando chegaram ao centro da vida noturna, a algumas
centenas de metros da Plaza Mayor, o veículo diminuiu a marcha e parou. A
rua, estreita, estava bloqueada por sete ou oito soldados franceses, com
baionetas no cano das armas, que dispersavam energicamente os curiosos.
O que houve?, perguntou Goya pondo a cabeça para fora. Se alguém
respondeu, ele não ouviu. A carruagem estava parada. Pediu a Anselmo que
fosse saber notícias, esperou um minuto ou dois, ficou impaciente, saiu
também. Via em torno de si uma agitação fora do normal, mulheres que
corriam, portas abrindo e fechando, cavalos que empinavam, soldados
abrindo a boca para gritar ordens. E ele não ouvia nada disso, como
sempre.
O assistente voltou e lhe disse, com gestos, que policiais espanhóis e
soldados franceses percorriam o bairro interrogando pessoas e exigindo
documentos de identidade, mas ninguém sabia por quê. De todo modo, não
se podia passar. Todas as ruas pareciam bloqueadas por homens armados.
Para piorar, chovia um pouco.
Eu preciso ir ao Trabuco, disse Goya. Sem a carruagem passaremos com
mais facilidade. Vamos, conheço um caminho.
Disse ao cocheiro que permanecesse ali e abriu a portinhola para
recomendar a Inês que o esperasse, sem se mexer, sem sair do lugar.
Vou buscar a sua filha, disse ele. Sua filha. Ela está logo ali, ao lado. Vou
buscá-la. Não saia da carruagem, eu já volto. Inês olhou para ele sem
responder.
Era impossível saber se havia entendido ou não. Goya disse ao cocheiro
para ficar atento a ela, não deixála sair.
Depois saiu, fazendo sinal ao seu assistente para segui-lo. Entrou numa
casa que conhecia, onde morava um dos seus fornecedores. No porão dessa
casa havia um corredor subterrâneo que conduzia a outro porão, um pouco
mais adiante. Ele esperava, subindo pelo outro imóvel, sair além da
barreira que os soldados formavam.
Seu cálculo estava certo. Dez minutos depois já estava do outro lado e
fez sinais para Anselmo se apressar.
Nesse meio tempo, um freguês do Trabuco, um armazeneiro corpulento
de uns cinqüenta anos, entrava na taberna para se encontrar com sua
prostituta habitual, que conhecia há anos, uma tal Rosário, que não
freqüentava há mais de um ano porque ela acabava de ter um filho. Essa
criança, um menino de seis ou sete meses, estava no seu colo quando o
armazeneiro entrou na taberna.
Como todas as garotas, Rosário tinha uma aia, que só a largava quando
um cliente separava as duas por meia hora ou, mais raramente, por toda
uma noite. Essa aia, que tinha ouvido um tumulto lá fora, apitos, ruído de
ferraduras, ficou à espreita. Foi a primeira a ver o armazeneiro e entendeu
logo que ele vinha atrás de Rosário. Procurou-a com os olhos desde que
cruzou a porta. Rapidamente, tirou a criança das mãos de Rosário, para não
dar ao homem uma impressão que o pudesse dissuadir, desanimar, talvez
até desagradar, e pôs o bebê, todo agasalhado, nas mãos da garota mais
próxima.
Essa garota era Alicia. Ela recebeu o bebê sem grande surpresa,
enquanto Rosário se levantou, deu-lhe uma piscadela (cuide dele para mim,
eu volto logo), e foi ao encontro do armazeneiro. Este, que parecia feliz por
revê-la, tirou um saquinho preto do bolso e o entregou a Rosário, que o
levou à sua aia.
Depois, Rosário e o armazeneiro saíram. Na frente da taberna, cruzaram
com Goya e o assistente andando apressados sob a chuva.
Os dois entraram. Goya, que estivera naquele mesmo lugar uma hora
antes, procurou com os olhos e logo descobriu Alicia. Avançou diretamente
em sua direção. Ao ver aquele homem que a abordara poucas semanas
antes nos jardins, e que ela julgava reconhecer (a memória dos rostos fazia
parte do seu ofício), a aia de Alicia tocou discretamente com o dedo em seu
joelho.
Alicia viu o gesto, notou o homem idoso e bem vestido que vinha em sua
direção, na certa um cliente, um homem que ela nunca tinha visto, e
rapidamente, como fizera a aia de Rosário menos de um minuto antes,
livrou-se do bebê. Como, nesse momento, não havia outra garota ao seu
lado, deixou o bebê nas mãos da aia, que teve que pegá-lo.
Goya parou diante dela e perguntou: Você é Alicia? Sim, respondeu ela.
Está vendo, disse a aia, o senhor a encontrou. Goya puxou uma cadeira e
sentou-se diante dela, enquanto o assistente ficava em pé, próximo de
Alicia. Por um instante, esta teve medo de se ver novamente envolvida, sem
querer, em alguma história clandestina, mas o rosto de Goya, que a
observava fixamente, inquietou-a menos que o de Lorenzo, na carruagem.
Ele tirou o chapéu e se apresentou. Disse que se chamava Francisco
Goya, o que não provocou, tampouco ali, efeito algum. Despertou muito
mais interesse quando disse que era o pintor oficial do rei, e mais ainda
quando acrescentou que tinha esse cargo há muitos anos.
O senhor os conheceu?, perguntou a aia, apertando o bebê contra si.
Conheceu o rei e a rainha que tínhamos?
Mas é claro, disse Goya. Conheci-os muito bem. A rainha me convidava,
de vez em quando, para tomar chocolate quente com ela.
E o rei José? O rei José também. Comecei a pintar seu retrato. Eu o
conheço bem. Ele sabe apreciar o vinho espanhol, pelo menos ele.
As duas mulheres olhavam com surpresa aquele homem
um pouco gordo, completamente surdo, que só conseguia entender o
que lhe diziam pelas gesticulações do seu acompanhante (o que impedia,
certamente, que pertencesse à policia
secreta) e falava dos reis como se fossem seus amigos.
A aia lhe perguntou:
E o senhor está interessado na minha pequena Alicia? Sem ouvir a
pergunta, Goya inquiriu Alicia: Este bebê é seu? Ela sacudiu vivamente a
cabeça. Não, não, não era dela. Era de uma amiga, disse, indicando a porta.
Uma amiga que acabava de sair um instantinho.
Goya, então, se dirigiu à aia: Vim aqui porque quero que Alicia encontre
uma pessoa Outro homem?, perguntou a aia. Não, não, disse Goya
imediatamente, dessa vez Havia entendido, apesar dos lábios ausentes da
velha.
Esta começou uma descrição mirabolante dos talentos de Alicia, uma
menina muito dócil, explicou, muito compreensiva, que amava todas as
formas do amor (o que não combinava muito com a imagem de iniciante, de
novata, que ela tentara dar do seu ganha-pão no primeiro encontro dos
dois, nos jardins), mas esclareceu que esses talentos, esses serviços
particulares, com mulheres e homens por exemplo, naturalmente tinham
seu preço.
Anselmo sofria para traduzir, sobretudo as alusões ao amor lésbico e às
festinhas grupais. Ele se arranjava como podia.
Mas Goya entendia muito bem. Entendia que a velha não estava
entendendo nada. Ergueu as duas mãos e lhe disse, em voz bem alta, que
calasse a boca. O que ela fez,
enquanto ()bebê, em seus joelhos, sem dúvida assustado com o tom de
Goya, começava a chorar.
Escutem aqui, disse Goya às duas mulheres. Vocês podem me ouvir,
pelo menos? Eu quero que Alicia se encontre com uma pessoa que pode ser
muito importante para ela.
Quem?, perguntou a velha. E Alicia, agora reticente, quis saber: Não será
aquele do outro dia, por acaso? Quem? Ela contou então, e Anselmo dessa
vez conseguiu traduzir, que um homem fora procurá-la nos jardins para lhe
propor, sem dizer a razão, que ela deixasse a Espanha imediatamente. Um
homem insistente, um espanhol bem vestido, que lhe deu medo. Goya fez
algumas perguntas sobre esse homem - seu jeito, sua maneira de falar - e
reconheceu Lorenzo com facilidade.
Sim, sim, disse, sei de quem se trata. Eu conheço esse homem. Mas não é
dele que estou falando. Alicia, escute: você não conheceu a sua mãe, não é?
As duas mulheres se entreolharam com surpresa. Minha mãe?,
perguntou Alicia. Sim, sua mãe. E daí? Goya se dispunha a responder, a
dizer finalmente o motivo da sua visita, quando soaram gritos na rua, bem
na frente de Trabuco, e logo depois dez soldados quebraram a porta da
taberna e entraram em bando, mandando os que estavam lá ficarem em
seus lugares. Ninguém obedeceu. O primeiro reflexo da aia foi livrar-se do
bebê de Rosário, que desaparecera, uma sorte para ela, junto com seu
armazeneiro. O bebê, largado no chão, ao lado de um banco de madeira,
gritava no meio dos gritos.
Goya pegou a mão de Alicia e quis
puxá-la. Ela resistiu e se libertou. Goya perdeu-a de vista na multidão.
Perguntou a Anselmo se a via.
Ali!, disse o assistente mostrando a porta. Goya, no tumulto, tentou
avançar para a porta. Aparentemente, todos os que estavam dentro da
taberna, homens e mulheres, faziam o possível para fugir dali. E os
soldados só se interessavam pelas garotas, que corriam em todas as
direções gemendo e gritando, procurando a saída sem encontrála.
Na rua, Goya viu sete ou oito garotas, com as mãos amarradas nas
costas, sendo empurradas com golpes de culatra por uns homens em
direção às charretes ali estacionadas.
Viu a rua bloqueada dos dois lados, persianas que se fechavam,
mulheres que corriam de uma barreira à outra, enlouquecidas, e depois
voltavam. Aquilo o fez pensar em certas caçadas de outono, no campo.
Perguntou ao assistente o que estava acontecendo. É uma batida,
explicou Anselmo, abrindo muito os lábios. Uma batida. Ele tinha se
informado. É o que todo mundo diz, no bairro. Mas uma batida feita por
quem, para quê? Estão levando as garotas, explicaram. Todas as garotas das
tabernas, todas as putas, estão sendo levadas.
Todas as putas de Madri? Isso não se sabia ao certo. Ninguém podia
afirmar. Todas as deste bairro, pelo menos.
Todas as putas de Madri, disse um transeunte, sem dúvida seria um
bocado de gente.
Mas, por quê?, perguntou Goya. O que eles querem fazer?
Vão mandá-las para a América, disse uma mulher. Para a América?
Parece que lá estão precisando. De putas? Não, de mulheres. Essa maneira
de despachar mulheres para outros cantos do mundo já se praticava havia
muito tempo, e não só na Espanha. Com uma dupla vantagem: por um lado,
os países europeus se livravam com poucas despesas de garotas e mulheres
assumidamente depravadas, o que dava a esses países um crédito moral.
Assim se separava, conforme os Evangelhos, o joio do trigo, e as Igrejas se
consideravam satisfeitas.
Por outro lado, essas mulheres eram esperadas, muitas vezes, por
homens sós, que precisavam delas para cuidar de uma casa e até para
fundar uma família, ter filhos.
Quando chegavam, os homens, em pé no cais de desembarque,
sorteavam os números e cada um levava para casa aquela que o acaso lhe
havia escolhido. A mulher era entregue mediante uma contribuição
financeira para cobrir as despesas da travessia, paga adiantado.
Nas Antilhas, no México, e mesmo nos Estados Unidos, conheciam-se
famílias muito distintas que começaram com um sorteio.
Os homens podiam recusar, naturalmente. Nesse caso, não tinham
direito a uma segunda escolha e voltavam sozinhos. Quanto às mulheres
que não encontravam interessados, aquelas que nenhum homem queria,
acabavam em algum estabelecimento público, um hospital, uma
administração, limpando assoalhos, ou então com os negros numa
plantação de algodão, de tabaco, escravas entre tantos outros.
Goya começou a correr de um lado para outro gritando o nome de Alicia
a plenos pulmões. Pensou tê-la visto numa das charretes, a primeira que se
afastou sob a chuva. Correu atrás dessa charrete, tentou empurrar dois
soldados jovens, levou um golpe de culatra na têmpora direita, caiu. Seu
assistente chegou bem a tempo de ajudá-lo a se levantar, evitando que suas
pernas fossem esmagadas pelas rodas de uma segunda charrete, cheia de
mulheres amarradas que gritavam e choravam.
Perguntou então a Anselmo, apanhando seu chapéu: Onde está ela?
Você a viu?
Não. Anselmo não a tinha visto. A aia também a procurava por toda
parte, gritando seu nome. Na certa já a tinham levado no primeiro grupo.
Voltaram para a carruagem, parada em outra rua. Goya mancava
ligeiramente e um pouco de sangue escorria em sua bochecha. Anselmo
abriu a portinhola e baixou o degrau para que ele pudesse sentar e
descansar lá dentro.
Mas a carruagem estava vazia. Goya ficou furioso com o cocheiro, que
deveria ter impedido Inês de sair. O cocheiro se havia protegido da chuva
no corredor de um prédio.
Eu lhe disse para vigiá-la! Mas eu tentei detê-la!, disse o cocheiro. Pedi
que ficasse aqui e esperasse! Mas ela estava tão...
O homem fez um gesto claro com a mão, um gesto que se entende em
todas as línguas. Inês estava louca: como tentar falar com ela?
Justamente por isso eu disse para vigiá-la!, gritou Goya. Do contrário eu
não precisaria de você! Onde vou encontrála, agora?
Sentou-se na beira da calçada e segurou a cabeça com as mãos.
Inês, ao sair da carruagem, caminhou na direção do movimento e do
barulho. Na confusão geral, ninguém reparou nela, ninguém a parou nem
perguntou nada. Com os olhos imóveis, a boca torta para um lado, ela
atravessou lentamente as fileiras de soldados, como um espectro que não
representa perigo nem desperta interesse. A chuva colava seu cabelo nos
pômulos magros e escorria pelo pescoço.
Passou por uma charrete carregada de garotas, entre as quais talvez
estivesse Alicia. Nem levantou os olhos nessa direção.
Percorreu a fachada do Trabuco, parou um instante em frente à porta,
tentando ouvir alguma coisa, depois entrou. Eram cerca das sete da noite,
num dia de junho.
Ainda se via claramente.
Lá dentro, na sala quase vazia, duas velhas que tratavam de um homem
ferido, que gemia. Dois policiais comiam presunto, em pé ao lado do balcão,
e bebiam vinho tinto
em silêncio. O dono levantava os bancos derrubados e amaldiçoava em
voz baixa uma longa lista de santos, todos eles uns bons filhos-da-puta.
Inês, ainda carregando a trouxa do asilo, atravessou a sala, com
passinhos arrastados, esmagando pedaços de vidro ao passar. No fundo,
sob um banco, no chão mesmo, encontrou por fim o que procurava: o bebê
de Rosário, largado ali. Tinha parado de chorar e dormia.
Ela se abaixou e pegou-o ternamente nos braços, como se aquele bebê
só estivesse esperando por ela, naquele dia, naquele lugar. Ajeitou os panos
que o envolviam, deu meia-volta e atravessou a sala no sentido oposto.
Ninguém lhe perguntou nada. Com o bebê nos braços, a trouxa nas
costas, Inês avançou pelas ruas de Madri.
Ao voltar para casa, Goya encontrou sua mulher na cama. Lavou
rapidamente o rosto e fez um curativo. Depois, às oito e meia, pediu ao
cocheiro que o levasse ao palácio da justiça, sozinho, sem a companhia de
Anselmo, e pediu para ver Lorenzo. Assunto urgente e importante, disse
aos guardas. Teve que aguardar diante da porta principal.
Também ali soldados entravam e saíam, oficiais davam ordens que
Goya não podia ouvir. Havia alguns anos, aliás, que nem sequer se
esforçava para ouvir os ruídos comuns. Ele se conformava com o silêncio,
de onde lhe vinham imagens que um simples som talvez afastaria.
Viu chegar charretes toldadas, com a noite caindo lentamente.
Funcionários nervosos e domésticas transportavam pastas, móveis e até
quadros, prataria, que iam empilhando às pressas nas charretes.
Goya, após vinte minutos de espera, aproveitou a confusão geral e a
falta de atenção dos guardas, que davam uma ajudinha aos empregados, e
se infiltrou no palácio.
Subiu as escadas sem que ninguém perguntasse o que estava fazendo ali
(e se lhe perguntassem, de todo modo não ouviria) e encontrou sem
dificuldade o caminho do gabinete de Lorenzo.
Empurrou a porta, que estava entreaberta, e entrou. Lorenzo estava
falando com seu secretário e parecia agitado, inquieto. Goya avançou
diretamente em sua direção, com uma bengala bastante robusta na mão,
quase ameaçador, e foi logo lhe perguntando se fora ele, Lorenzo, quem
tinha dado a ordem. Que ordem? A ordem de prender e mandar as garotas
para a América.
Com um gesto, Lorenzo dispensou o secretário, que ainda tinha coisas a
resolver com ele e saiu aparentemente muito contrariado. Depois
perguntou a Goya, articulando o melhor que pôde:
E por que eu daria essa ordem? Para se livrar da sua filha. Que filha?
Alicia. Sabe muito bem de quem estou falando. Você a viu, você falou com
ela, você lhe propôs que saísse da Espanha!
E ela recusou, disse Lorenzo. Você quer que ela vá embora porque
incomoda, você tem medo de que um dia tudo seja revelado!
Francisco, eu lhe peço, acalme-se e escute. Pegou as mãos de Goya e o
fez sentar numa poltrona. Primeiro repetiu, lentamente, olho no olho, que
nada, absolutamente nada, provava que Alicia fosse sua filha. Filha de Inês,
sim, sem dúvida. A semelhança entre as duas mulheres também o deixara
surpreso. Mas por que supor, por que afirmar que era ele o pai de Alicia?
Porque Inês dissera a Lorenzo: Você é o único homem que eu conheci? Mas
Inês tinha perdido o juízo, a razão. Goya também já sabia disso. Era
evidente. E então? Quem daria crédito às palavras de uma insensata?
Outra coisa. Goya, que conhecia todos os escalões do mundo, devia
saber melhor que ninguém: nas prisões mistas, assim como nos asilos e nos
hospitais, os relacionamentos sexuais são freqüentes e irregulares. É uma
maneira de passar o tempo, ou de matá-lo, tanto faz. As uniões acontecem
muitas vezes às cegas, na sombra, e são logo esquecidas. Quem poderia
garantir que, nos primeiros tempos de prisão, quando Lorenzo já tinha
saído da Espanha, ela não passou pelas mãos de um dos seus vizinhos de
cela, ou de vários?
Fui ao asilo, disse Goya. Paguei o que foi preciso e ela saiu.
Eu sei, disse Lorenzo, o diretor me avisou. Com certeza levou-a para a
sua casa?
Sim. E foi procurar Alicia, para reunir a mãe e a filha? Você continua
com essa idéia, mas eu não aprovo, acho isso cruel, você sabe disso. E não
encontrou a sua Alicia.
Não. Não a encontrei. Porque você decidiu mandá-la para a América.
Francisco, olhe para mim. Honestamente, você acha que eu faria isso?
Que mandaria deportar todas as prostitutas de Madri só para me livrar de
uma garota, de quem aliás ninguém pode provar que eu sou pai? Você me
considera capaz disso?
Goya focou seu olhar pesado em Lorenzo e disse: Considero. De
verdade? Sim, você mandou embora todas essas meninas para tirar a pobre
Alicia do seu caminho.
Você é capaz disso.
Escute mais um pouco, disse Lorenzo. Certo, eu estava a par desse
projeto, que é de vários meses atrás. Quando pediram minha opinião, eu
não disse que não. E pensei nessa Alicia, é verdade.
Goya pegou-o bruscamente, com força, pelas lapelas do casaco. Pediu
que, se ainda lhe restasse um pouco de piedade no coração, ele mandasse
chamar Alicia imediatamente e a devolvesse à sua mãe, Inês. O comboio das
garotas certamente ainda estava saindo de Madri. Se um homem a cavalo o
interceptasse, levando um pergaminho, tudo estaria resolvido. Alicia
reencontraria a sua mãe.
E com as outras garotas, você não se importa?, perguntou Lorenzo.
Goya lhe pediu que repetisse a pergunta. Não, ele não se esquecia da
sorte das outras garotas. Mas sabia que era ilusório, evidentemente,
esperar que libertassem todas. Ele se conformaria com Alicia. Fazia o que
podia. E ainda disse a Lorenzo:
Se você fizer isso, e sei que pode, vai me dar a prova de que dizia a
verdade.
E se for, perguntou Lorenzo, a melhor coisa que poderia acontecer com
elas?
O quê? Goya pediu que repetisse também essa pergunta, que não tinha
ouvido. Lorenzo repetiu e Goya se levantou furioso, dizendo: A melhor
coisa? Acabar como escravas na América? Não necessariamente escravas!
Claro que sim! Lorenzo também se levantou. Os dois homens estavam
frente a frente num grande aposento quase vazio que o secretário, de vez
em quando, espreitava entreabrindo a porta.
E Lorenzo, também tomado de cólera, começou a gritar, com a mão no
peito de Goya:
Em todo caso, é melhor do que continuar vivendo como elas vivem
neste grande bordel que vocês chamam de Espanha! Acorde, Francisco! A
Espanha é um enorme lupanar!
No ano passado se morria de fome! Os asilos de loucos recusam montes
de pacientes, como você mesmo deve ter visto! E não há nada a fazer! Não
se pode fazer nada, nada! Você pensa, estuda um problema, dá uma ordem,
e depois limpam a bunda com ela! Você trabalha dia e noite, e só recebe
punhaladas pelas costas!
Um bordel, sim! Um povo de putas!
E eu, também sou uma puta? Foi isso o que você quis dizer?
E como! A maior das putas! Dessa vez, Lorenzo explodiu. Não agüentava
mais. Exausto pelo trabalho, perseguido por suspeitas, pedidos
amargurados, recriminações, acusações de todo tipo, por fim encontrava
urna oportunidade de dizer a Goya o que, às vezes, pensava dele: Você
trabalha para quem lhe paga! Para qualquer um! Antes, eram aquele gordo
cretino do rei da Espanha e sua esposa desdentada, e o senhor Godoy,
quem sabe onde ele estará agora. Hoje é um Bonaparte, ou outro francês
qualquer. Amanhã, pode ser aquele bastardo do Wellington! E Ferdinando,
o idiota, se ele voltar algum dia, por que não? Você está lá, bem protegido
atrás da sua tela, não podem lhe fazer nada, porque você é um artista, não
se importa com mais nada, só junta ouro, fica rico! Então, não me dê lições,
por favor! Eu, pelo menos, tentei fazer alguma coisa, porque acredito no
que faço, acredito totalmente! Tentei com todas as minhas forças melhorar
as coisas, mudar este mundo horroroso, nem que fosse um pouco. Tentei a
vida inteira! Enquanto isso, você se limitou a olhar e aproveitar! Então,
vamos parar com isso! Não me diga mais nada! As putas foram embarcadas
para a América? E daí? Lá, pelo menos terão uma chance! Aqui, para elas, é
a miséria, o inferno, a vergonha e mais nada! Você pode entender isto, pelo
menos? Não? Não entendeu nada? Ou você é como todos os surdos, que só
ouvem quando querem?
Goya - que só entendera a metade - nunca tinha visto Lorenzo perder
assim a calma, o domínio de si. O pânico, sem dúvida, explicava aquela
explosão. Um estado de alerta, o medo de um acontecimento súbito e fatal,
o final de uma época, de uma esperança, de um trabalho, o anúncio de um
vento perigoso que soprava do oeste.
Uma porta se abriu, dois oficiais franceses entraram no escritório.
Lorenzo foi na direção deles e disse algumas palavras. Eles responderam de
forma respeitosa.
Vinham, aparentemente, trazer-lhe algumas informações.
Goya, como de costume, não conseguiu entender o que se dizia.
Os três homens falaram durante dois ou três minutos, depois os oficiais
saíram. Lorenzo ficou totalmente imóvel por um longo momento. Goya se
aproximou dele e perguntou: O que disseram? Lorenzo virou o rosto em
sua direção e olhou-o sem responder, sem sequer vê-lo. Goya nunca iria
esquecer aquele olhar, mais sombrio e brilhante que nunca, que o
transpassava, um olhar de fracasso, de decepção e de cólera. Lorenzo
acabava de saber que as tropas anglo-portuguesas, comandadas por
Wellington, avançavam na Espanha com mais facilidade que o previsto. Em
certos lugares, as tropas espanholas, que teoricamente deveriam obedecer
ao rei José, aliavam-se aos
invasores para lutar contra os franceses. E a guerrilha estava cada vez
mais insistente e dura, como sempre acontece quando tropas arrogantes
não têm outra escolha senão a retirada.
Em poucos instantes, Lorenzo viu se desenhar, e confirmar, o final que
temia há vários meses. Pronto: havia chegado a hora. Tudo acabava sob
uma chuva fina de verão, em Madri pelo menos. E dessa vez nenhum
milagre se perfilava no horizonte. O grande Napoleão, sempre imerso em
suas negociações européias, nada podia fazer pelo irmão. Este, como os
dois oficiais acabavam de informar, tinha abandonado Madri algumas horas
antes.
Lorenzo, sem dizer uma palavra, ignorando as perguntas de Goya,
desviou a vista, baixou os olhos e saiu imediatamente do quarto sem olhar
para trás. Passou pela porta do gabinete sem fechá-la atrás de si.
Goya ficou sozinho, sem saber o que fazer. Toda esperança de encontrar
Alicia e de salvá-la parecia perdida. Lorenzo tinha saído para dar ordens
urgentes? Iria ceder? Será que voltaria? Impossível saber. Mas o pintor,
mesmo surdo, percebia aquele medo que, no palácio de justiça quase
totalmente deserto, corria de uma sala para outra.
Esperou quinze ou vinte minutos, sozinho. Lamentou não ter levado
Anselmo consigo, para ao menos saber o que estava acontecendo, o que se
dizia. Entrou em uma varanda, olhou para baixo. Continuava chovendo, a
noite caía. Goya viu a carruagem e o cocheiro à sua espera, um pouco
adiante, embaixo de umas árvores.
A maioria das charretes repletas de objetos e de papéis já havia se
afastado. Lorenzo estava instalando a esposa, muito nervosa, e os três
filhos, junto com um empregado francês, em duas carruagens
sobrecarregadas pelas malas. O secretário corria sem rumo em volta dos
veículos, procurando ser útil (pensou Goya), tanto quanto encontrar uma
vaga. Os dois oficiais franceses, com alguns outros cavaleiros, formaram um
pequeno esquadrão que se postou em torno das carruagens, evidentemente
para servir de escolta.
Um cavalo ficou livre, o de Lorenzo. Ele montou no último momento,
quando as duas carruagens já partiam pesadamente, e se protegeu com um
cobertor. Os cascos dos cavalos de tração escorregavam nas pedras
molhadas, e uma das portinholas, mal fechada, batia.
O secretário corria atrás das carruagens, agitando os braços e gritando.
Alguns minutos depois, não sobrava mais ninguém, exceto um vigia que,
com a cabeça protegida por um saco de juta, apanhava no chão, com as
mãos, os restos de vidro e de papel.
Goya ficou mais de meia hora, por própria vontade, dentro do prédio
abandonado. Ia de uma sala para outra, curioso com aquela atmosfera
particular, decifrando sem esforço o simbolismo das ornamentações de
madeira, olhando de alto a baixo os bustos brancos de alguns juristas
ilustres nascidos nos tempos modernos, cujos nomes nem conhecia. Viu
também as imagens de Cícero, de Demóstenes e se perguntou se aquelas
esculturas, renovadas de século em século, ainda se pareciam com os
personagens verdadeiros. Não, certamente não, pensou. O original está
perdido, as verdadeiras formas humanas foram destruídas pelo tempo,
como é normal. São imagens arbitrárias, ideais. E por que não, afinal de
contas? Por que me esforço tanto para que meus retratos pareçam com os
modelos? Quem vai se importar, dentro de vinte ou trinta séculos? Eu
poderia tranqüilamente pintar em casa todos os reis e todas as rainhas do
mundo, dando a eles a cabeça que quisesse: ninguém, mais tarde, iria me
criticar por isso. E poderia fazer a mesma coisa com os papas.
Sim, mas quem me pagaria? Não tinha resposta. Atravessou, numa
penumbra que o fazia cambalear, a sala do tribunal, onde vira Lorenzo
acusar os seus antigos confrades.
Pensou na vida desse homem, cheia de altos e baixos. Lamentou ter-se
separado dele logo após uma briga violenta. Talvez, afinal de contas, eu
estivesse errado ao censurá-lo, pensou. Os surdos têm dificuldade para
ouvir tudo, para saber tudo. Mas, de todo modo, ele poderia ter salvado a
garota. Sua filha. Como saber exatamente os verdadeiros motivos de uma
ação, como entender o comportamento de um homem?
Ele estava no alto da escada principal, sozinho em meio a todo aquele
mármore. Nos apliques, as velas se extinguiam uma a uma, e ninguém as
substituía. As sombras se espalhavam e se aprofundavam pouco a pouco.
Os bustos, tomados pela escuridão, pareciam fantasmas solenes, mas sem
força diante da noite.
Goya começou a descer. No terceiro ou quarto degrau, estacou de
repente. Tinha visto, como num sonho verdadeiro, Inês subindo em sua
direção. Estava encharcada e radiante, com a trouxa pendurada nas costas
e o bebê aninhado em seus braços. Foi até ela. Inês o reconheceu, parou ao
seu lado e lhe deu um amplo e belo sorriso, parecia que tudo agora ia bem,
ela estava simplesmente feliz. O pintor estendeu
o braço, tentou dizer alguma coisa mas não lhe saiu nada.
É o meu bebê, minha filhinha, disse ela com orgulho, sem notar que
tinha um garotinho nos braços.
E continuou a subir os degraus ainda falando com Goya (que não ouvia
nada das suas palavras): Shh... Ela está dormindo... O pai ainda não a
conhece... Não quero que faça pirraça quando ele vier... Não tem que
chorar...
Terminou de subir os degraus. No alto, hesitou um instante, decidindo
para onde ir. Goya entendeu que ela queria encontrar Lorenzo no seu
gabinete, o mesmo em que o tinha visto, e reconhecido. A mesma intuição
para lugares que, quando saiu da prisão, primeiro a levara à sua própria
casa, depois ao ateliê do pintor, agora a guiava até o gabinete de Lorenzo.
Goya retrocedeu, subiu atrás dela. Seguiu-a por um corredor até a porta
que havia ficado aberta. Ela entrou no gabinete, chamou Lorenzo pelo
nome e esperou. Ficou meio daquele aposento vazio e quase escuro. Sua
trouxa escorreu até os pés.
Chamou pela segunda, terceira vez. Sem entrar no gabinete, Goya a
observava pelo vão da porta. Ainda estava disposto a ajudá-la.
O comboio das garotas saiu de Madri no dia seguinte, cumprindo as
ordens recebidas, e se dirigiu primeiro para o oeste. Antes de descer rumo
a Sevilha ou Cádiz, pontos de embarque possíveis, o itinerário previa
passar por Toledo.
O sol brilhava outra vez, um sol quente de verão, e as moças, em pé nas
charretes, com os pulsos amarrados, sacolejantes, exaustas após uma noite
sem dormir, protegiam-se como podiam, com xales e lenços. Algumas
rezavam, desfiando um rosário, ou dormiam em pé. Outras, sem forças,
acocoradas no assoalho, de olhos fechados, gemiam interminavelmente.
Outras ainda, como Alicia, irritadas com essas lamúrias, tentavam fazê-las
calar,_ xingando, e até dando um pontapé de vez em quando. Para que mais
choro onde já há desgraça? - diziam.
Uns quinze soldados, franceses e espanhóis, comandados por um
tenente, faziam a escolta, três ou quatro a cavalo, os outros a pé. Pareciam
tão cansados quanto as garotas.
Quando o comboio avançava pelos planaltos desertos de Castilha, por
volta de meio-dia, ocorreu um fato que, pelos dois lados, foi considerado
quase milagroso.
As charretes estavam se aproximando de uma colina seca quando, no
alto dessa colina, apareceu um cavaleiro vestido de vermelho. Deteve o seu
cavalo, olhou para o comboio, uma das mãos sobre a vista, a outra
estendida, e um segundo cavaleiro veio célere entregar uns binóculos ao
primeiro, que parecia ser a figura que dava as ordens.
O chefe pegou o artefato e observou as charretes ao longe. Depois
arrancou com seu cavalo e fez um gesto que significava claramente:
avançar!
Quase imediatamente, o alto da colina se coalhou com várias centenas
de homens uniformizados de vermelho, que avançaram, de armas na mão,
em direção ao comboio.
Tratava-se de um importante destacamento do Exército inglês,
comandado pessoalmente pelo general Wellington, o homem dos
binóculos.
O fato foi considerado milagroso pelos dois lados por várias razões:
primeiro porque, do lado do comboio, os soldados da escolta, pouco
numerosos, sem condições de resistir, debandaram sem vacilar ao verem
os uniformes vermelhos descendo a colina a todo galope, como um campo
de papoulas em cólera. Vários militares espanhóis foram vistos largando as
armas no chão e levantando as mãos, bem felizes por terminar uma guerra
perdida.
Aquilo significava que as garotas estavam livres. Do outro lado, mais de
mil soldados britânicos, privados de mulheres fazia meses, viam surgir à
sua frente três charretes cheias de moças novas, de mãos amarradas, que
pareciam ter sido oferecidas, dadas a eles, e sem combate, por alguma
bondosa divindade.
O que aconteceu nas duas horas seguintes, no campo raso, não permite
atribuir o milagre à santa Virgem, nem mesmo a algum dos santos
conhecidos no local. É preferível ater-se simplesmente à suprema
providência. Os primeiros soldados ingleses que chegaram às charretes
cortaram as amarras das garotas e lhes ofereceram água.
Elas pularam para o chão e viram todos aqueles homens de uniforme
vermelho, agitando os braços, gritando, em inglês, coisas aparentemente
gentis e tranqüilizadoras enquanto corriam em sua direção. Wellington
acabava de fato, e não sem inteligência, após aquela fácil vitória, de
decretar uma hora de alto e de folga.
Os homens depuseram as armas, em boa ordem, pois tratava-se de um
exército inglês, seguraram pela cintura ou pelas mãos as garotas que
apareciam, de cuja profissão não podiam ter a menor dúvida, ofereceram-
lhes bebida, comida e as levaram, dando risadas, para as sombras dos
poucos bosquezinhos que salpicavam o campo.
Um dos primeiros cavaleiros a chegar ao comboio foi um coronel de uns
quarenta ou cinqüenta anos chamado Samuel Eddington, um filho caçula da
nobreza inglesa que havia escolhido o ofício das armas. Esse homem de
costeletas já grisalhas e olhos azuis notou, na terceira charrete, uma jovem
de cabelo castanho que permanecia em pé, sozinha, com o rosto
indiferente, quase desdenhoso, não demonstrando o menor interesse pelo
que acontecia em volta, como se nada daquilo lhe dissesse respeito.
Sem descer do cavalo, o coronel Eddington levantou o chapéu para
cumprimentar Alicia. Ela respondeu com um olhar de esguelha, um olhar
cuja eficácia conhecia bem, e cumprimentou-o balançando levemente a
cabeça.
Ele lhe ofereceu uma tigela de água fresca. Ela hesitou, depois aceitou,
agradecendo com um breve sorriso, e bebeu com a ponta dos lábios, sem
tirar os olhos do oficial.

Wellington entrou em Madri em 12 de agosto de 1818, poucos dias


depois da fuga do rei José e de Lorenzo. Foi recebido com glória e júbilo.
Mas a guerra da Espanha não havia terminado. Nos meses seguintes houve
até um incremento de ódio e horror. A capital foi reconquistada pelos
franceses, depois perdida, depois reconquistada e mais uma vez perdida.
Cada dia era marcado por novas invenções de atrocidade. Os adversários se
empalavam, cozinhavam e mutilavam, com machado e com serra, uns aos
outros. Viam-se cadáveres nus pendurados nas árvores sem que se pudesse
saber quem eram esses mortos e por que os tinham matado. Os chefes das
guerrilhas, inalcançáveis, imersos na população das aldeias, tornavam-se
ilustres em poucas semanas, enquanto o velho rei Carlos IV e sua mulher,
no exílio, viviam de uma pensão que Napoleão lhes pagava, viajavam de
Marselha para Nápoles, jogando baralho com tranqüilidade, fazendo
música, caçando, e um grupo de notáveis espanhóis, mais ou menos
liberais, em todo caso esclarecidos, reunidos em Cádiz na forma de um
parlamento, as Cortes, tentava redigir uma constituição, a primeira na
história do país, baseada, como os modelos americano e francês, na
soberania firme do povo.
Nesse parlamento havia numerosos representantes dos territórios
antilhanos, americanos e até mesmo das distantes Filipinas, que já não
temiam levantar a voz e dizer que seus países eram mais vastos e mais
ricos que a Espanha, à qual ainda estavam arbitrariamente submetidos.
Anunciavam independências próximas e sonhavam não com a morte da
nação, mas, ao contrário, com novas nações.
Goya, pouco antes da entrada de Wellington, perdeu a sua esposa, com
quem fora casado por trinta e nove anos. Viu-se envolvido em obscuros
problemas de inventário e, como previra Lorenzo, foi encarregado de
pintar o vaidosíssimo general inglês, que nunca estava satisfeito com sua
imagem e, enquanto lutava no Norte, mandou o quadro ao pintor, diversas
vezes, para fazer retoques ou acrescentar medalhas e distinções.
Pintou também o retrato de um dos chefes mais temidos da rebelião,
que entrara em Madri ao lado de Wellington: sobrancelhas hirsutas, ar de
pirata.
E continuava, principalmente à noite, a gravar placas de metal em que
fixava para sempre os desastres da violência humana, mas nunca as
mostrava a ninguém, ou quase ninguém.
Inês, depois da partida de Lorenzo, continuava a procurá-lo em toda a
cidade, com seu bebê nos braços. Libertadas por Wellington, as meninas da
vida voltaram rapidamente a Madri, mas a maioria das tabernas, apesar da
presença de soldados estrangeiros, foi fechada por decisão inglesa, em
defesa do interesse público. Era o caso da Trabuco. Rosário, a mãe do bebê,
procurou-o em vão, logo depois da batida e nos dias seguintes. Afinal o deu
por perdido.
Goya instalou um quartinho para Inês embaixo do seu ateliê e Dolores
cuidava dela em troca de um pouco de dinheiro. Entretanto, para não
despertar sem querer as lembranças da prisão, Goya decidiu não trancar a
porta desse quarto, de maneira que Inês pudesse sair quando desejasse. Ela
conhecia o caminho da casa e a encontrava com facilidade.
Na verdade, saía com freqüência, às vezes várias vezes por dia, com ou
sem o bebê. Ia ao palácio da justiça, onde novos magistrados aguardavam a
hora de assumir suas funções, assim que a sorte do país fosse definida. Os
guardas não a deixavam entrar. Ela ficava um pouco por ali e depois
voltava. Todos os dias, ou quase, também passava pela casa da sua infância,
confiscada pelo Exército inglês. Nela se haviam instalado oficiais britânicos,
os mais graduados nos quartos limpos e repintados às pressas, outros no
grande pátio, em barracas.
Também ali a rejeitavam. Os militares a tomavam por mendiga. Vagava
então durante horas nas ruas de uma cidade em sursis, recebendo às vezes
de um passante, de uma vendedora ambulante, uma maçã, um copo de leite.
As pessoas reconheciam aquela silhueta magra que caminhava devagar,
procurando às cegas o pai do seu filho.
Alguns a cumprimentavam, chamando-a pelo nome, umas crianças
caçoavam dela e gritavam:
A sua filha é um menino! A sua filha é um menino!. Ela mal os via, e
raramente respondia. Seus olhos se fixavam um instante nas coisas sem
enxergá-las. Ela existia em outro lugar. Sua vida estava parada num dia do
passado. jamais retomou o curso do tempo. Para uns velhos que a viam
passar de cabeça baixa, ela era a imagem da Espanha daqueles dias, uma
Espanha extraviada, empobrecida e certamente louca.
Lorenzo e sua família, que se dirigiam para a França, caíram numa
emboscada pouco depois de atravessar a comarca de Calatayud.
Dispararam contra eles, dos dois lados da estrada, e um dos homens da
escolta caiu. Lorenzo gritou ao cocheiro que transportava sua mulher e
seus filhos que escapasse depressa, enquanto ele ficava atrás com os outros
soldados.
Viram um grupo de camponeses se aproximando, pelas rochas. Eles
evitavam os espaços abertos e a terra trabalhada, escondiam-se atrás dos
troncos das árvores. Alguns portavam fuzis antigos, de mais de cinqüenta
anos, outros traziam sabres e navalhas, outros, ainda, ancinhos, estilingues
e barras de madeira afiadas. Dois ou três
deles, que pareciam crianças, tinham pedras nas mãos. Avançavam
rapidamente, com destreza, sem trocar uma palavra, conhecedores de cada
arbusto, decididos a massacrar os franceses que passavam por lá.
Lorenzo levantou a pistola e gritou, em espanhol, que eram amigos, que
não havia nenhum motivo para atacá-los, que ele não atiraria, que os
deixassem cuidar de um ferido que estava perdendo sangue na estrada.
Os outros não responderam, continuando em sua aproximação
silenciosa através dos campos. Quando chegaram bem perto, Lorenzo foi
obrigado a atirar, pela primeira vez, e certamente a contragosto, contra o
seu próprio povo.
Ele nunca havia treinado tiro, seu cavalo estava inquieto, a bala se
perdeu.
Como seus companheiros pareciam muito assustados, ordenou que
fugissem. Ele próprio saiu galopando atrás das carruagens que se
afastavam. Uma corda, disfarçada na poeira, estava estendida através da
estrada. Foi puxada bruscamente quando o cavalo passou, e este caiu.
Lorenzo caiu no chão. Recebeu uma pancada na cabeça, mas conseguiu se
levantar. Ouviu outros tiros - seus homens que o defendiam - e foi atingido
por um brutal golpe de ancinho no ombro. Voltou a cair.
Quando os camponeses o cercaram, dispostos a liquidá-lo, falou com
eles em espanhol e pediu misericórdia em nome de vários santos muito
populares na Espanha, o que os deteve por alguns instantes. Disse a eles
que não estava fugindo, só queria salvar sua mulher e seus filhos,
absolutamente inocentes. Depois ele voltaria à sua terra natal, para
cumprir suas obrigações como qualquer outro.
Entre os camponeses que participaram da emboscada havia um padre.
Ele ficou surpreso com as palavras de Lorenzo, que lhe disse uma oração
em latim, e conseguiu que o deixassem vivo. Lorenzo queria mais: queria
encontrar sua família e protegê-la. Isso lhe foi negado. Mandaram-no para
uma aldeia vizinha onde ficou num galpão com outros prisioneiros de
guerra, todos militares, franceses e espanhóis, na maioria feridos.
Permaneceram ali, amarrados, durante uma semana inteira, sem
receber o menor cuidado, esperando que alguma decisão fosse tomada.
Tomada, onde? Jamais souberam. Naquele momento ninguém podia dizer
quem decidia o destino, e mesmo a existência, da Espanha.
Toda a alimentação que recebiam era uma água quente onde flutuavam
pedaços de couve e pontas velhas de gordura. Os aldeões não estavam
preparados para ter prisioneiros e não tinham como alimentá-los. Vários
feridos foram levados até um bosque de carvalhos, ali perto, e
provavelmente dizimados.
Num domingo de manhã, depois da missa, os camponeses amarraram
os cativos uns nos outros e os fizeram voltar a pé para Madri. Dois deles
morreram, de esgotamento, na mesma tarde. Os homens que os conduziam
cortaram as cordas que ligavam os mortos aos vivos e largaram os corpos
na beira do caminho.
Após mais de dois dias de caminhada, em que só lhes deram um pedaço
de pão velho e água estagnada das poças, chegaram às proximidades da
capital. Então, tiraram seus sapatos, amarraram sinos de vaca em seus
pescoços e fizeram uma entrada sonora na cidade, debaixo dos insultos dos
cidadãos.
Primeiro foram jogados no pátio de uma prisão, em algum lugar, sem
saber se seriam julgados, nem por quem, sem a menor notícia do resto do
mundo, ignorando até que poder estava instalado em Madri, ou no resto da
Espanha. Lá ficaram vários meses, mal alimentados, proibidos de falar
entre si. A metade deles morreu. Lorenzo resistiu. De vez em quando um
guarda lhe dizia: Você tem sorte de estar vivo. Todos os outros se foram.
Que outros? Lorenzo nunca soube. A maioria, sem dúvida, eram
espanhóis que, como ele, haviam apostado na França.
Em 1813, Wellington obteve diversos triunfos indiscutíveis. A batalha
de Vitória, no mês de junho, foi considerada decisiva. O ex-rei José escapou
por um triz.
Já havia, como bom conhecedor que era, mandado para a França uma
carga completa de obras de arte, sobretudo quadros, que incluía obras de
Ticiano, de Velásquez, de Corrège. Mas não iria conservá-las por muito
tempo. Expulso da França com a derrota do irmão, em 184, voltou quando
este, no ano seguinte, veio da ilha de Elba. E tornou a partir para sempre
após a derrota de Waterloo, em 1815, quando o irmão embarcava num
navio britânico, derrotado, para terminar sua lendária existência numa ilha
longínqua e desconhecida, Santa Helena.
José, que não deixara o trono com as mãos abanando, foi se instalar nos
Estados Unidos, na Filadélfia, onde os mais próximos às vezes ainda o
chamavam de sire.
Levou uma vida aparentemente ociosa e agradável, dando recepções,
cercado de mulheres, e morreu na Itália em 1844, vinte e três anos após a
morte de seu irmão.
Aqui ou acolá, durante as suas viagens, na Suíça, na Itália, nos Estados
Unidos, ele ainda comprava quadros, tudo muito legalmente, enfim. Mais
tarde se juntou ao irmão no mármore do túmulo, em Paris, no cemitério
dos Invalides. Ainda estão lá.
A quem entregar, em 1813, o trono da Espanha? Ou mesmo: havia
necessidade de um rei? A pergunta persistiu durante aproximadamente um
ano, desde que as tropas francesas foram expulsas da península. Ninguém
queria o velho casal real, que, aliás, não manifestava o menor desejo de
voltar do exílio. Carlos IV havia abdicado em favor do seu filho Ferdinando.
Foi para ele que a coroa voltou. Desde o infeliz encontro de Baiona, ficara
morando na França, num castelo pertencente a Talleyrand, onde rezava
diariamente durante horas, com o seu jovem irmão e seu tio, e queimava os
livros de Rousseau e de Voltaire que encontrava na biblioteca.
Esse personagem medíocre, neurótico, limitado, malvado, vingativo,
totalmente submetido ao jugo inflexível das velhas idéias, foi sem dúvida o
pior rei que a Espanha conheceu. No entanto, nas primeiras cidades que
atravessou, principalmente em Saragoça, foi recebido calorosamente.
Quando chegou a Madri, em 1814, onde poderia temer uma acolhida mais
morna, foi recebido com gritos de: Morte à liberdade! Viva Ferdinando!
Viva os grilhões! Viva a opressão!, palavras improváveis mas autênticas,
que iriam ressoar por muito tempo na memória da Espanha. Mas, como
acontece com freqüência e sempre surpreende os bons espíritos, o povo,
cansado e até exasperado com todos aqueles anos de caos inexplicável, de
invasões, excessos e miséria, recebia a volta da ordem com alívio. Pouco
importava a máscara sob a qual essa ordem se ocultava.
E a ordem foi restabelecida. A Constituição de Cádiz foi anulada de
imediato, todos os liberais famosos foram mandados para a masmorra na
noite de 12 de maio, assim como atores, jornalistas, advogados e até
mesmo aristocratas, todos os ilustrados e iluminados que conseguiram
encontrar em casa. No dia 12 de maio, quando Ferdinando ainda não
chegara a Madri, uma proclamação avisou que todos os que se
manifestassem a favor da constituição seriam executados imediatamente.
Depois fechou as universidades e os teatros. Finalmente, assim que
pôde, restabeleceu a Inquisição, agradecendo-lhe publicamente por ter
preservado a Espanha dos erros e depravações que se haviam abatido
sobre outros reinos. Segurança nacional e saúde moral acima de tudo. As
luzes se apagaram. O reitor da universidade de Cervera, ao receber o novo
rei, teve a sorte de pronunciar uma frase que o fez entrar imediatamente
para a história da Espanha: Longe de nós a funesta mania de pensar (la
funesta manía de pensar). Para mostrar que o país continuava sendo um
reino, distante das ideologias revolucionárias, também gritavam: Muera la
nación!
Goya deu a uma das pranchas dos Desastres de la guerra o título Murió
la verdad. Mas não era assim para todos. Oficialmente, pelo menos na
Espanha, a verdade estava de volta. Para confirmar isso, o rei anunciou que
todo herege teria a língua queimada com ferro em brasa.
Lorenzo, preso, não sabia nada, ou quase nada, desse recrudescimento
das sombras. Um guarda mais receptivo soltava alguma informação de vez
em quando, dizendo que os franceses tinham sido derrotados, que o rei
estava de volta. Que rei? Lorenzo não sabia, assim como nada sabia sobre
sua esposa e seus filhos. Goya talvez pudesse tê-lo visitado, assumindo os
riscos, mas não tinha a menor notícia dele.
Às vezes Lorenzo tinha a quase reconfortante impressão de ter sido
esquecido, perguntando-se por que as semanas e os meses passavam sem
que o julgassem. Entretanto, em 17 de junho de 1814, o chefe dos guardas
em pessoa veio vê-lo, trazendo sabão de barbear e uma navalha, e
ordenando-lhe que buscasse uma bacia de água para por fim fazer sua
higiene. Não disse o motivo daquelas atenções súbitas. Talvez não
soubesse.
No dia seguinte, uma carruagem veio buscar Lorenzo, só Lorenzo. Ele
subiu no veículo, tão enrijecido que mal podia levantar os joelhos. Viu que
saía de Madri e, para sua surpresa, parou em frente à velha sede da
Inquisição, que não via há muito tempo.
Fizeram-no descer, dois monges foram recebê-lo e o levaram para uma
cela, ajudando-o a caminhar. Lá havia um pouco de comida, água e até um
copo de vinho. Um velho dominicano, que ele não reconheceu, veio ajudá-
lo, também, a fazer sua higiene. O monge lhe perguntou se o ferimento doía,
mostrando assim que estava bem informado.
Às vezes, disse, esses golpes de ancinho são ruins, porque as
ferramentas saem do esterco e as chagas infeccionam.
Lorenzo disse que seu ombro estava cicatrizado, mas ainda o
incomodava. Quis saber por que, após tantos meses na escuridão, agora o
levavam para lá. O velho monge pareceu surpreso com a pergunta e
respondeu:
Ora... para o julgamento! Lorenzo não perguntou de que tipo de
julgamento se tratava. Só foi saber quatro dias mais tarde. Nessa manhã,
bem cedo, a porta da cela se abriu e quatro monges entraram. Pediram que
ele ficasse totalmente nu, coisa que fez, passaram água fria no seu corpo
três vezes, murmurando orações, e o vestiram com uma bata comprida de
tecido áspero. Depois, mandaram que se sentasse e puseram na sua cabeça
o alto chapéu cônico, de extremidade pontuda, que antes era usado pelos
suspeitos submetidos ao tribunal do Santo Ofício.
Lorenzo reconhecia aqueles preparativos minuciosos, aquele velho
ritual que ele próprio quis revigorar, e não dizia nada. Acabava de
entender, simplesmente, que o tribunal do Santo Ofício havia recuperado
suas antigas prerrogativas, e que ele iria enfrentá-lo.
Quando ficou pronto, os monges se postaram à sua direita e à sua
esquerda. Disseram-lhe que tinha de ficar com os pés descalços, o que ele já
sabia. Levaram-no através dos corredores até a sala capitular onde antes
eram feitas as reuniões, de que ele participava com ardor, em que eram
tomadas as decisões mais importantes.
Lá, como já esperava, encontrou o padre Gregorio. Não apenas não
estava morto, como parecia ter recuperado um pouco de forças. Seus olhos,
sempre do mesmo azul, fixaram-se severamente em Lorenzo quando este
se sentou à sua frente, num banco baixo, com os joelhos dobrados.
Primeiro fez o sinal da cruz, pronunciando as palavras latinas habituais.
Lorenzo não abriu a boca nem para dizer amém. O velho Gregorio lhe
informou então que, por deferência especial, decidida lá em cima, Lorenzo
Casamares escapava das jurisdições comuns, mais expeditas nesses tempos
conturbados, e seria julgado exclusivamente pela Inquisição. Esse
julgamento seria comunicado às autoridades seculares, que fariam o que
quisessem, mas era bem provável que a decisão dos juízes civis
acompanhasse a dos membros do santo tribunal.
Lorenzo não tinha dúvidas a respeito. Embora houvesse emagrecido no
cativeiro, ele não perdera a acuidade e a rapidez naturais do seu espírito.
O padre Gregorio, numa voz que mal se ouvia, disse que os atos e gestos
de Lorenzo estavam sendo examinados havia dez dias pelo tribunal do
Santo Ofício, com a mais estrita atenção. Não havia por que julgar suas
ações de outras épocas, como por exemplo aquela absurda confissão obtida
pela força, nem as sevícias provavelmente exercidas contra uma das
prisioneiras. Tudo aquilo estava esquecido e não dava mais material para
um processo. Eram as atividades recentes de Lorenzo, após sua volta à
Espanha sob as ordens do rei José, que interessavam.
Você deve entender, disse o padre Gregorio, que nenhuma questão
pessoal pode intervir na nossa decisão. Não é apenas o homem que você é
que julgamos aqui hoje.
Você representa, aos nossos olhos e aos olhos de Deus, a quem nada
escapa, a própria personificação de todos os erros perniciosos e altamente
condenáveis dos tempos espantosos que atravessamos. Seu ódio à fé, as
perseguições que ordenou contra as tradições cristãs e aqueles que as
encarnam, seu diabólico afinco em apoiar as idéias e as práticas de uma
revolução sangrenta e sacríleca, suas repetidas afirmações da preeminência
natural do homem sobre Deus, ou seja, seu ateísmo obstinado e impiedoso,
que o torna um apóstata, tudo isso nos leva à mesma conclusão.
Lorenzo olhava para ele e ouvia tudo com grande interesse, embora o
final do discurso já lhe fosse conhecido. Nas considerações, no vocabulário
do padre Gregorio, reconhecia fórmulas fixas que ele mesmo já havia
empregado antes, e não só na sua condição de inquisidor. Ecos precisos do
passado lhe voltavam.
Seguia com facilidade o desenvolvimento das frases do grande
inquisidor e muitas vezes poderia terminá-las no lugar dele. Reconhecia as
seduções e as armadilhas dessa linguagem, que parecia ser auto-suficiente,
não necessitar de nenhum fato, nenhum ato, nenhuma prova, que se
contentava com afirmações categóricas, por assim dizer transcendentais, e
sua forma tinha uma harmonia tão sedutora quanto arbitrária.
Também via como aquelas frases podiam se inverter de repente, virar
ao avesso como uma pele, aplicar-se ora a um, ora a outro. Chegou a
perguntar-se, apesar do padecimento físico e das dores que ainda atacavam
seu ombro, se as idéias não nasciam das palavras, só das palavras, em lugar
de se originarem na vida verdadeira dos homens, nos seus sofrimentos e na
sua morte. Também se perguntava se, na sua existência dupla, não se havia
conformado, como o padre Ignácio e tantos outros, com as palavras, se as
idéias que havia defendido e proclamado, e que sem a menor dúvida o
levavam à morte, não eram simples ilusões, bandeiras agitadas no vazio.
Sem surpresa, ouviu o velho dizer: Foi tanta a sua obstinação no erro,
que a nossa primeira preocupação deve ser impedi-lo de repetir seus
crimes. E para isso só conhecemos um meio garantido, que é a morte.
Recomendamos então que seu castigo seja a morte. Que Deus, na Sua
grande misericórdia, queira apiedar-se da sua alma.
Fez-se um silêncio. Lorenzo esperava uma última bênção, como era de
costume. Não houve. Com um gesto curto, o padre Gregorio pediu aos
outros dominicanos que se retirassem, o que fizeram de imediato, em
silêncio, enquanto o velho baixava as pálpebras, como se estivesse
recolhendo-se por um instante.
Quando ficou a sós com Lorenzo, aquele homem que ele tinha escutado,
admirado e talvez amado, o padre Gregorio ergueu as pálpebras pesadas,
esperou alguns segundos e disse:
Não me esqueci de que, se hoje estou aqui, devo-o a você. Eu sei, meu
filho, que salvou a minha vida, como me prometeu na prisão. Nas atuais
circunstâncias não está em meu poder salvar a sua, você sabe disso. Na
época tempestuosa em que vivemos, os apetites de vingança sufocam todos
os outros sentimentos e somos levados, mais uma vez, pelo furor. No
entanto, quero recordar um ponto do nosso regulamento, e foi por causa
desse ponto específico que fiz seu julgamento ser atrasado mais de um ano.
Lorenzo, agora, estava surpreso. Não esperava essa revelação. Ouviu
com uma atenção aguda, talvez até com uma espécie de esperança, o que o
velho dizia: Se o tivéssemos entregue desde a sua captura às autoridades
de então, a um daqueles tribunais populares cujo objetivo era matar às
cegas, você estaria morto há muito tempo, e de maneira infamante. Por isso
consegui que o esquecessem por algum tempo, no fundo de uma prisão. Eu
esperava que o nosso Santo Ofício, com a ajuda de Deus, seria restaurado
em suas atribuições. Isso hoje é um fato consumado.
Lorenzo tinha dificuldade para captar o sentido das últimas frases: o
padre Gregorio fizera todo aquele esforço para ter a alegria de ele mesmo
condená-lo à morte, e dizer-lhe isso na cara? Indagava-se o que o velho
estaria escondendo, o que significava aquele ponto específico que
mencionara. Estava a ponto de perguntar.
Mas o padre Gregorio se adiantou:
Eu pedi, e afinal consegui, que fosse julgado aqui, por nós. Porque esse
ponto do nosso regulamento diz, com efeito, você não deve ter esquecido,
que a Igreja pode poupar a vida de um culpado se este se arrepender
pública e sinceramente dos seus pecados. Você se lembra disso, não é?
Lorenzo abaixou os olhos. Sim, ele se lembrava, por fim entendia, e no
fundo de si alguma coisa se alegrava com a idéia de que o velho fizera todo
aquele esforço por ele, durante mais de um ano, para desencavar esse
ponto preciso do regulamento da Inquisição. Quase se sentiu invadido por
uma espécie de ternura.
O velho disse: Então, meu filho, eu lhe pergunto agora: está disposto a
se arrepender pública e sinceramente dos seus crimes?
Lorenzo olhou o padre Gregorio nos olhos e não respondeu. Não baixou
as pálpebras, não baixou a cabeça. Não disse nada.
Foi o velho quem se inclinou para a frente e disse em voz muito baixa,
quase embargada, que poderia parecer emocionada: Arrependa-se, meu
filho, eu lhe peço... Arrependa-se... Você entendeu bem, não é? Ou quer que
eu torne a dizer? Salve o seu corpo, Deus se encarregará da sua alma...
Lorenzo permaneceu imóvel, com os lábios bem apertados, escolhendo
assim morrer e não renegar as próprias palavras, os próprios atos, tudo o
que talvez, em sua vida que chegava ao fim, fora apenas uma passagem pela
ilusão.
O padre Gregorio, demonstrando estar empenhado em salvar aquela
vida preciosa, pediu-lhe mais uma vez, quase implorando, que se
arrependesse. Lorenzo, novamente, permaneceu calado e imóvel. Então o
velho, após um longo momento de silêncio triste, pediu que ele o ajudasse a
levantar-se, pois suas pernas ainda o traíam às vezes. Lorenzo segurou-o
pelo braço, pôs a bengala em suas mãos e, lentamente, os dois homens
saíram juntos.
Para Lorenzo chegou o dia que será o último da sua vida. Isto lhe foi
dito ao amanhecer. Ele simplesmente abaixou a cabeça, para indicar que
entendia. O velho monge que o havia ajudado a lavar-se e a cortar o cabelo,
comprido até então, perguntou se ele queria se confessar antes de partir.
Lorenzo negou com a cabeça. De maneira alguma. Bebeu um copo
d'água. Descalço, com a longa túnica cinzenta dos penitentes, o chapéu
pontudo dos hereges irredutíveis na cabeça, ele avançou por aqueles
corredores que percorria pela última vez e, em frente à porta principal,
subiu sem resistir numa charrete pintada de preto, atrelada a duas mulas.
Sentou-se numa tábua de madeira.
Alguns monges se postaram dos dois lados da charrete, junto com os
soldados espanhóis armados e homens com tambores. O monge mais
jovem, na frente, segurava com as duas mãos uma cruz comprida onde o
corpo de Jesus, talhado em marfim, estava cravado no ferro. O cortejo
partiu em direção a Madri.
Lorenzo viu se aproximarem lentamente as construções da cidade onde
a morte o esperava na Plaza Mayor. Distinguia claramente as colunas do
palácio real, onde estivera tantas vezes, dominando o rio Manzanares. O dia
estava claro e bonito, não havia sinal de cólera ou alegria no céu. Para sua
surpresa, sentia-se calmo, livre de toda inquietação, sem o menor temor da
morte. Seu caminho terminava ali: não havia mais nada a dizer. Era inútil
rever os movimentos da sua vida, seus estudos, todas as suas lutas, todas as
esperanças e decepções. Inútil perguntar se estava certo ou errado, se
restaria alguma coisa dele. Tudo seria varrido em menos de uma hora.
Pensar nisso também era inútil. Um instante de dor, sem dúvida: e depois?
Não haveria mais nada, nenhum arrependimento, nenhuma vergonha. Ele
não tinha ganhado nem perdido, não se lembraria de coisa nenhuma, iria
tranqüilamente de um nada para outro.
Que imagem deixaria de si mesmo? Pouco lhe importava. Por que ficar
aterrorizado com a morte, pensava, se é um evento tão banal e tão simples?
Levantou várias vezes o rosto para sentir o sol da manhã. Percebia os
solavancos do caminho, que provocavam dores no seu ombro, os olhares
surpresos dos camponeses, a garupa castanha das mulas à sua frente, os
pássaros que os seguiam, um dos soldados que tossia: tudo coisas que iriam
desaparecer com ele. Via sua sombra e a da charrete, que o sol projetava
nas paredes das casas quando passavam. Sim, uma sombra. Mais nada.
Estava a caminho do velho reino das sombras, o único reino que não
conhece revolução, nem leis novas, e que ninguém planeja conquistar e
submeter.
Para que se comprometer?, pensava. Para que se engajar num projeto,
trabalhar duro, lutar, bater a cabeça contra tantos obstáculos, se a morte
está ali, façamos o que fizermos, certa e fácil?
Pensou várias vezes na sua família, da qual não tinha notícias. Em certo
sentido, estava tranqüilo. Se sua esposa e os filhos tivessem sido
capturados, não teriam deixado de lhe dizer. E isso também, no fundo, que
importância tem? Sua esposa certamente encontraria outro homem, seus
filhos levariam a vida como pudessem, numa sociedade imprevisível. Do
futuro, da existência deles não saberia nada mais. Para que se preocupar
com isso em cima dessa charrete?
Ele completaria cinqüenta e quatro anos. Quando o comboio entrou em
Madri, o suboficial que comandava o pelotão deu uma ordem. Os tambores
bateram, num ritmo lento, e os monges começaram a cantar os Salmos da
penitência. Lorenzo também estava calmo. O cerimonial que estava
começando lhe parecia inutilmente teatral. Não sentia em si nada de
exemplar, nada de heróico, nada de inesquecível, nada que merecesse ser
contado. Encontrava, sim, talvez pela primeira vez, a contenção, o
equilíbrio, a distância, a indulgência cética que sempre lhe fizeram falta.
Sua última satisfação, que levaria para o túmulo, era a de não ter se
arrependido. Isso lhe dava uma espécie de orgulho indefinido, que ajudava
seu coração a ficar em paz. Pelo menos tinha sido capaz disso. Quanto ao
resto, nenhum sentimento o atingia. Sua morte seria tão inútil, tão
rapidamente esquecida quanto a sua vida.
Enquanto isso, nas ruas, os transeuntes eram agora mais numerosos.
Alguns se benziam diante da cruz que passava e tiravam os chapéus. As
mulheres murmuravam uma rápida oração. Eram muito raros aqueles que
aplaudiam o cortejo ou insultavam o condenado. Todos assistiam com
curiosidade àquele espetáculo que, pelo què se dizia, existira no passado,
esse ritual raro que o bom rei Ferdinando, El deseado, voltava a honrar,
para o prazer de todos.
Inês não está longe. Com três ou quatro outras mulheres, está
esperando sua vez numa fila, com uma vasilha na mão. Um homem veio do
campo com quatro cabras e vende leite fresco na rua. O bebê já tem quase
dezoito meses, começa a falar, a emitir sons, a dar alguns passos. E se
comporta bastante bem. Inês continua a chamá-lo de Alicia.
Aperta na mão direita a moeda que Dolores lhe dá todas as manhãs por
ordem de Goya. Ela sabe aonde ir, apreendeu como tem que fazer para
comprar leite. Num bolso guarda outra moeda, destinada a comprar pão e
presunto para comer. Depois anda pelas ruas, pelos jardins. À noite volta
mansamente ao quartinho onde mora. Dolores diz que ela é limpa e muito
religiosa. -Todas as noites se ajoelha diante de uma parede vazia e fica
longo tempo olhando para a frente, até que o sono a obriga a ir deitar-se.
Sua vez chegou. Ela dá a moeda, o dono das cabras a guarda e começa a
ordenhar uma das cabras. Nesse momento, ouvem-se os tambores se
aproximando. Todos giram a cabeça.
Uma pequena multidão se formou atrás da charrete e das mulas, que
vão para a Plaza Mayor.
De repente Inês larga a vasilha e o filho, corre em direção aos tambores
e vê Lorenzo, cujo torso e cuja expressão dominam a cena. Ela o reconhece
logo, mas não pode adivinhar de onde vem, aonde vai. Grita seu nome, ele
não ouve. Então, volta rápido para perto do homem das cabras, pega a
criança e se junta ao cortejo.
A charrete se adiantou uns trinta metros. Inês só enxerga o chapéu
cônico e a nuca de Lorenzo.
Mistura-se na multidão, tentando em vão se aproximar da charrete.
Avança, quase se deixando levar. É a única pessoa que grita o nome de
Lorenzo.
O suplício, na Plaza Mayor, atraiu muita gente, pelo menos dois mil
espectadores. Outra charrete já chegou, com um segundo condenado, que
Lorenzo não conhece. O outro não está com o chapéu cônico: trata-se então
de um assassino comum, que não passou por uma jurisdição religiosa.
Haviam construído um estrado ao lado da praça, em frente a outro
estrado, mais alto. No primeiro, que é de madeira tosca, erguem-se dois
postes e se vêem três homens: o carrasco e seus dois ajudantes. No
segundo estrado, decorado com brasões e tecelagens nas cores espanholas,
algumas cadeiras douradas de madeira esperam os convidados, ao lado de
uma poltrona forrada de tapeçarias.
As mulas de Lorenzo param. Ele troca um olhar com o outro condenado,
que tinha chegado antes: um rosto rude e cansado.
Por um minuto, Lorenzo perde sua indiferença e se interessa pelo
espetáculo. É mais forte do que ele. As duas charretes ficam paradas uns
dez minutos e Lorenzo dá uma espiada em torno de si. Em todas as janelas
há mulheres e homens que o observam, alguns até com binóculos de teatro.
Em frente ao estrado das execuções, a multidão mais compacta é contida
por cordas e pelas baionetas de mais de uma centena de soldados. Lorenzo
pensou, por um instante, que devia aproveitar o espetáculo, aquela era uma
ocasião rara, que nunca mais se repetiria. Depois, rapidamente, a realidade
da situação se impôs: ele não é um espectador como outro qualquer. É
aquele que as pessoas vieram ver morrer. Para que olhar formas e cores
das quais, em poucos minutos, não terá mais a menor lembrança?
Então uma orquestra militar começa a tocar. O que se ouve é uma
marcha, com cobres gloriosos. A multidão faz silêncio. Todos os olhos se
dirigem para o estrado bem decorado, e o rei Ferdinando, sétimo no nome,
faz a sua entrada. Ele quis assistir pessoalmente ao suplício e fazer seus
convidados aproveitarem. Disforme, de pernas curtas, torso pesado, um
olhar escuro sob as sobrancelhas grossas, o rei ergue a mão para saudar a
multidão, que o aclama gritando várias vezes: Víva el Rey! Atrás dele
avançam os dignitários da Corte, acompanhados de suas elegantes esposas.
Todos esperam o rei sentar-se, depois ocupam seus lugares.
O convidado de honra é o general Wellington, que não fica distante do
rei. Ele não veio por prazer, e sim porque não tinha outra saída: diplomacia
fúnebre. Só espera que a coisa não demore muito. O espetáculo da morte de
homens lhe é familiar, como a todos os soldados, mas ele considera, em
privado, que a morte mandada, a morte pública, é tempo perdido. Está
acompanhado de vários de seus oficiais. Um deles é o coronel Eddington,
que veio com uma mulher de fino porte, muito bem vestida, que parece à
vontade a poucos metros do rei da Espanha, e que é Alicia.
Ela está agitando um leque, como as outras damas presentes, e olha do
alto a multidão que saúda o rei e bate palmas. Do lugar onde está não pode
reconhecer Lorenzo, que se encontra a pelo menos sessenta metros dela.
Alicia só o viu uma vez, três anos antes, no interior de uma carruagem, por
apenas dez minutos. Desde esse encontro, o cabelo de Lorenzo foi cortado,
seu rosto encolheu, ganhou rugas e está com uma barba de vários dias,
preta e cinzenta.
O rei Ferdinando sabe quem ele é, e ficou oficialmente contente com a
notícia dessa execução. Como acabava de restaurar a Inquisição, não pôde
desconhecer as insistentes intervenções do padre Gregorio Altatorre em
favor de um arrependimento público, e havia temido até o último instante
que Lorenzo aceitasse salvar a vida humilhando-se.
Pessoalmente, preferia sua morte. Conhecia aquele homem que estava
ali, sentado num banco de madeira da charrete. Estivera com Lorenzo em
Baiona, durante as negociações entre seu pai Carlos IV e Napoleão.
Ele o detesta. Sempre o considerou traidor e perjuro e prometeu a si
mesmo que um dia o castigaria. Esse dia chegou, o que lhe dá uma alegria
íntima.
Para ele é também um divertimento, porque as preocupações o
assolam. A Espanha está extenuada, arruinada por anos de guerra e de
guerrilha, o tesouro está vazio, as prisões estão cheias, uma parte dos
notáveis deixou o país, ou ainda tramam contra ele. Além do mais, os
territórios do Novo Mundo se sublevam, um certo Simon Bolívar inflama a
Venezuela, que se declarou independente, o ouro de lá não chega mais: vai
ser preciso mandar tropas. Faz bem relaxar um pouco vendo um inimigo
morrer.
O último convidado de honra que ocupa seu lugar na tribuna oficial, na
segunda fila, atrás do rei, é o padre Gregorio. Ele também, como Wellington,
preferiria sem dúvida não assistir ao suplício. Secretamente, o espetáculo
da morte lhe causa horror. Sempre usa algum pretexto para não dar os
últimos sacramentos aos moribundos nem aspergir água-benta nos
cadáveres, mesmo os dos monges, seus companheiros.
Dois soldados o trazem, preso por correias num assento de madeira, e o
deixam no seu lugar, afastando uma cadeira dourada. O rei se vira para
cumprimentálo com a cabeça. O velho, com as pálpebras quase fechadas,
devolve a saudação da mesma maneira. O céu e a terra se reencontraram.
Lorenzo reconheceu o padre Gregorio e, é claro, também reconheceu o
rei. De modo que o monge fez questão de estar ali, ele também, apesar da
fraqueza física. Talvez tenha sido forçado. Será que considera o que está
para acontecer uma vitória sua? Difícil dizer.
A orquestra termina a marcha triunfal e passa para outra música, mais
lenta e sombria, com um fundo de tambores roucos. O rei faz um gesto, as
aclamações se calam.
Ao serem chamados,
Lorenzo e o outro condenado descem das charretes. Os ajudantes do
carrasco amarram as mãos dos prisioneiros atrás das costas e os conduzem
para o estrado de madeira tosca. Sobem, um atrás do outro, por uma escada
de madeira, enquanto os dominicanos se colocam na base do estrado, à
frente, de cara para os espectadores e o rei. Seus rostos são severos, como
exigem as circunstâncias.
Os ajudantes levam cada condenado até um poste. Mesmo para
Lorenzo, que é culpado de apostasia e de crimes contra a fé, o velho
suplício da fogueira, considerado medieval e longo demais, foi descartado.
Lorenzo não será queimado em praça pública. Será garrotado, como todo
espanhol condenado à morte.
O garrote é uma correia de couro que se fixa em torno do pescoço e se
amarra atrás de um poste. Por trás, contra a nuca, há uma ponta de ferro,
que passa através do poste por um buraco. Essa ponta de ferro está ligada a
um instrumento em forma de torniquete grande, manipulado com as duas
mãos. Com um movimento firme e brusco, o carrasco faz esse instrumento
girar, a ponta de ferro penetra na primeira vértebra cervical, e a morte, se
as coisas são bem-feitas, é instantânea. Uma técnica de execução limpa,
dizem os espanhóis, tão rápida e eficaz quanto a guilhotina, com uma
vantagem: sem efusão de sangue, ou com muito pouca.
Os dois homens estão sentados, cada um em um tamborete. As mãos
continuam amarradas. Tiraram o chapéu cônico de Lorenzo, que agora está
de cabeça descoberta. Olha para a multidão e lá, nas primeiras fileiras, vê
Goya. O pintor estava com um amplo chapéu preto, talvez para não ser
reconhecido pelo rei. Trouxe um dos seus cadernos de desenho e vários
lápis. Seus olhos estão fixos em Lorenzo, sua mão corre pelo papel. Lorenzo
se dá conta de que Goya está desenhando o seu último retrato.
No mesmo momento, ou quase, escuta a voz de Inês gritando o seu
nome. Quando a vê, imediatamente a reconhece. Ela está tentando se
aproximar do estrado através da multidão compacta. Não é fácil. A criança
no seu colo está chorando porque não tomou o leite. Os espectadores
protestam, pedem com brutalidade que se cale, que vá embora. Ela resiste.
Todos ouvem a sua voz rouca, acima dos tambores, gritando: Lorenzo!
Lorenzo!.
Os ajudantes terminaram de preparar o primeiro condenado. Um padre
se aproxima, com um crucifixo na mão, e lhe diz algumas palavras. O
homem pousa os lábios grossos na pequena cruz e a beija com devoção. O
padre lhe dá uma rápida bênção e se afasta alguns passos, de cabeça baixa.
A música pára, com exceção de um único tambor, que bate lentamente,
como um coração.
O carrasco vai para trás do poste, segura o torniquete com as duas
mãos, ergue os olhos. O condenado franze as sobrancelhas, não respira
mais e fecha a cara. O
rei faz um pequeno gesto para o carrasco. Este, um homem alto e
corpulento, dá o giro fatal. O tambor pára.
De onde está, Lorenzo ouve as vértebras do seu vizinho estalarem. A
multidão aplaude, porque o trabalho foi bem-feito. O homem morreu na
primeira tentativa. Alguns, entre os espectadores, dizem que a vítima não
sofreu. Não o bastante, diz uma mulher.
O padre Gregorio não quis olhar. Seus olhos ficaram fixos no chão, à sua
frente.
O carrasco e seus ajudantes se aproximam então de Lorenzo, que ouve
os passos atrás de si. O garrote é fixado, ele sente a ponta do ferro contra a
sua carne. O
carrasco procura o lugar preciso da morte. Por uma última vez Lorenzo
olha os homens e as mulheres à sua frente. Vê Goya, que desenha rápido,
olhando repetidamente para ele. Vê e ouve Inês, que continua repetindo o
seu nome, empurrada pelos outros. Vê o rei, que está sorrindo.
O padre se aproxima, falando em latim, e lhe oferece o crucifixo.
Lorenzo, apesar do garrote, consegue desviar a cabeça. Não, nem pensar.
O padre insiste, sem o menor sucesso, e se retira. Algumas reações na
multidão, do tipo: bem que ele merece, agora vai aprender.
Agora é sua hora de morrer. O tambor recomeça, numa cadência lenta.
O carrasco está quase encostado no poste, por trás, segurando o
instrumento com as duas mãos, e observa o gesto do rei.
Este se faz esperar. Lorenzo, que está de olhos abertos, vê Alicia na
tribuna. E a reconhece. É ela, com certeza. Alicia. O que está fazendo lá, a
poucos metros do novo rei? Só nesse momento alguma coisa dentro dele se
quebra. Quer evitar as lágrimas que lhe sobem aos olhos, mas não pode.
Sua vista fica embaçada. Alicia, sua filha, também veio vê-lo morrer. Como?
Por quê? Ele morreu sem poder responder.
Também morreu sem ver que, na tribuna onde estava sentado, o padre
Gregorio, de maneira quase clandestina, tira uma das mãos de dentro do
hábito e traça um sinal da cruz no ar.
O rei dá a ordem com um gesto. Inês grita pela última vez: Lorenzo!.
Alicia e outras mulheres desviam seus olhares por um instante, ocultas
atrás dos leques.
O carrasco gira o garrote com um golpe seco. A cabeça de Lorenzo cai
para a frente, relida pela correia. Ele não pode mais ouvir os clamores da
multidão. Está morto.
Os convidados de Ferdinando também aplaudem. Tudo correu bem, o
espetáculo era de qualidade. Um pouco curto, talvez. O rei se levanta para
retirar-se, porque os assuntos de Estado o chamam. Ficou apenas quinze
minutos. Antes de desaparecer na carruagem que o espera na praça, faz um
gesto que a multidão entende. E continua aplaudindo.
Com esse gesto, acaba de autorizar a orquestra a ficar mais uma hora ou
duas ali, tocando canções populares para as pessoas dançarem. É dia de
festa.
Os ajudantes do carrasco já tiraram os dois cadáveres dos postes e vão
desmontar os garrotes, que arrumam num baú de vime trançado. Goya, que
acaba de virar mais uma página, continua desenhando. Levam, ou melhor,
arrastam para fora do estrado os corpos dos dois supliciados. Cada corpo é
jogado na charrete que o trouxera até ali. Os monges dominicanos se
retiraram discretamente, em silêncio. Vão voltar no mesmo dia, a pé, ao seu
convento. E os espectadores mais jovens estão subindo no estrado,
meninos e meninas, e já dançam juntos, sorrindo.
Alicia sai da tribuna de honra de braços dados com o coronel Eddington.
Não é impossível que ela acabe recebendo o título de lady, em algum solar
inglês.
Os dois homens que trouxeram o padre Gregorio erguem agora sua
cadeira com correias e o levam embora. Seus olhos estão fechados. Ele não
vê nada.
O corpo de Lorenzo está deitado de frente, na charrete. Sua cabeça cai
para trás, a boca e os olhos estão abertos. Um muleteiro vai levá-lo até o
cemitério dos condenados à morte, fora da cidade. Inês permanece imóvel
ao seu lado, com a criança nos braços.
Quando a charrete começa a andar, uns garotos malvestidos se
aproximam e a rodeiam, dançando e cantando. Entoam uma cantiga de
roda que, como é freqüente na Espanha, fala de morte mais que de vida.
A charrete se afasta lentamente. Ninguém, ou quase ninguém, na praça
e nas ruas, presta atenção ao cadáver que passa.
Inês pega a mão de Lorenzo e a aperta em sua mão direita. Com o braço
esquerdo segura a criança. A família está finalmente reunida.
Goya, que viu Inês, corre para
alcançá-la e a chama por seu nome, várias vezes. Grita que volte, diz que
vai levá-la para casa, que vai cuidar dela. Aonde pensa chegar com esse
homem morto e essa criança que não é sua? Ela nem se vira.
A charrete entrou numa rua estreita e quase deserta que vai para o sul
da cidade. Os garotos ainda estão à sua volta, dançando e cantando. Na
certa vão continuar até o cemitério. Inês segura a mão do homem que
estava procurando há vinte anos, o único que ela conheceu na vida.
Também cantarola a meia-voz. Às vezes um sorriso atravessa os seus
lábios.
Goya os segue um pouco pelo beco, chamando Inês, depois desiste. Não
sabe se ela respondeu. Em todo caso, desde o dia em que veio bater à sua
porta, fez tudo o que pôde por ela. Agora está velho e precisa pensar em si
mesmo. Alguns acham, no seu meio, que a Inquisição também vai chamá-lo,
por ter colaborado com os franceses e por causa da imagem de uma mulher
totalmente nua que ele teria pintado. Goya não se preocupa além da conta,
ele sempre tem amigos bem situados, sabe que todos os artistas espanhóis
estão sendo perseguidos, o novo rei ainda lhe paga a sua pensão, ele vai
ver. Mas há algum tempo, principalmente após a morte de sua esposa,
pensa seriamente em deixar o país, que se tornou duro e impiedoso,
perigoso como a virtude, e ir morar em outro lugar, na França, por
exemplo.
Olha a charrete que se afasta pelo beco. Inês e Lorenzo saem ao mesmo
tempo da sua vida. Lembra intermitentemente de algumas imagens da sua
história em comum, imagens que vão esmaecer e logo, sem dúvida, como
tantas imagens, cairão no esquecimento. Lembra de ter chamado Inês de
fantasma, faz muito tempo. Revê com precisão, pela última vez, o rosto
desse fantasma que o perseguiu e que talvez ainda o persiga no futuro.
Fica parado no meio do beco. Não ouve nada. Vê a charrete, ao longe,
dobrando a esquina e desaparecendo. Está sozinho no meio da rua vazia.

FIM

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