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Simon de Montfort, gládio da Igreja

Iª Parte: A heresia cátara e os primeiros enfrentamentos

Pierre Belperron, La Croisade contre les Albigeois, Librairie académique Perrin, Paris, 1967.
Henri Martin, Histoire de France, Furne, Jouvet et Cie, Paris, 1878.
Achille Luchaire, Innocent III, la Croisade des Albigeois, Hachette, Paris, 1906.
Dominique Paladilhe, Les grandes heures cathares, Librairie académique Perrin, Paris, 1969.
Pascal Guébin e Henri Maisonneuve, Histoire Albigeoise, Librairie Philosophique J. Vrin, Paris, 1951.

O século XIII desponta com tempestuosa e sombria majestade.


Na esfera das idéias e da religião, anunciam-se para a França do Sul
lamentáveis calamidades: jamais as almas tinham sido sacudidas por
desordens tão grandes, não só em nossas regiões meridionais mas em toda a
catolicidade, desde a época das imensas lutas contra o arianismo.

A heresia dos cátaros, ou albigenses, incubada na libertinagem do


Languedoc
O Papado, a Igreja, o dogma cristão e o edifício inteiro da religião são
atacados por turbilhões de idéias saídas de todos os abismos do passado e do
futuro. As ruínas de eras extintas revivem e se atropelam com os germes de
tempos vindouros, que começam a eclodir sob formas múltiplas e estranhas.
O maniqueísmo tenta disputar o Ocidente à Igreja Católica, revivendo
a heresia greco-asiática dos dois princípios: “o deus bom, criador das coisas
invisíveis e incorruptíveis, e o deus mau, criador da Terra e de todas as
coisas visíveis”.
— “A Igreja Romana — afirmam os maniqueus — pela sua participação nas
riquezas materiais e nas ambições deste mundo, pela sua intervenção no governo da Terra
e pelas perseguições que prescreve, deixou a Cristo para seguir a satanás. Só existe
salvação na igreja dos puros, dos perfeitos, dos cátaros”.
Quando o discípulo, o crente, está bem instruído, ele recebe, pela imposição das
mãos, o consolamentum ou batismo espiritual, em oposição ao batismo de água, instituído
por um demônio chamado João Batista. O crente é transformado então em perfeito, e o
espírito santo desce sobre ele.

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Se o perfeito não sente coragem para suportar as austeridades dessa vida, pode
deixar-se morrer de fome, ou mesmo dar-se morte violenta se teme fraquejar sob a mão
dos verdugos católicos.
A Itália do norte e as províncias do sul da França são os dois grandes focos de
heresia, cujas labaredas se entrecruzam por cima dos Alpes.
O Languedoc estava singularmente preparado para acolher a heresia: sua
civilização requintada, sua extrema liberdade de gostos e de costumes, sua cultura
intelectual, tão brilhante e original, tudo isso lhe fazia insuportável o “despotismo”
religioso do Papa, e, em geral, toda tentativa de impor a crença pela força. A estreita
relação do Languedoc com muçulmanos e judeus havia feito desaparecer nele os
preconceitos ocidentais, para entregá-lo sem defesa e sem critério à invasão desordenada
de todas as idéias estrangeiras.
Desde o século XI, as cantigas dos trovadores desafiavam as bulas dos Papas,
atacando-as de igual a igual. O clero era desprezado, e os eclesiásticos não ousavam
mostrar-se em público sem esconder suas tonsuras.
A sociedade provençal admirava os cátaros, e aplaudia-os sem pertencer-lhes
inteiramente. Ela oscilava entre a sua própria libertinagem e o extremo ascetismo dos
maniqueus. Na superfície, quantas festas, quantas canções, quanta galanteria, quanta
volúpia elegante nos castelos! Toda uma poética e original civilização desabrochava ao
sol, nas praias do Mediterrâneo!
Entretanto, este florescimento era semelhante à vegetação exuberante que cobre os
vulcões: ela acusava o fervilhar de fogos interiores, que às vezes produziam ameaçadoras
explosões. Os gritos das vítimas do banditismo ressoavam, como lúgubre dissonância, em
meio às cantigas dos trovadores; paixões desenfreadas se incubavam sob os costumes
graciosos e levianos da nobreza. Havia uma ebriedade e uma vertigem de prazeres.
O Languedoc delirava, nas vésperas de sua ruína.
Nessas festas, impregnadas de orgulho e sensualidade, a sede de contrastes levava a
aceitar as pregações dos hereges.
Toulouse era a capital do maniqueísmo, e constava que o conde Raymond VI
participava das crenças dos cátaros. Numa viagem que ele fizera ao Aragão, tendo
adoecido gravemente, fez-se reconduzir em liteira a Toulouse, e como lhe perguntassem
porque se fazia transportar com tanta pressa, apesar da gravidade de seu mal, respondeu
que no Aragão não havia cátaros, em cujas mãos ele pudesse morrer.
A sua vida era de uma libertinagem desenfreada: casava-se e divorciava-se segundo
sua fantasia, e chegou a ter três esposas vivas.
A crise agravava-se cada dia mais, e parecia que de um momento a outro
presenciar-se-ia a expulsão dos bispos da região e a entronização pública dos perfeitos nas
dioceses de Toulouse.

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Reação sadia dos católicos


Entretanto, a França do norte e a Alemanha, que viam a cada instante a doutrina
maniquéia explodir em seu próprio seio, como incêndios ateados pelas fagulhas surgidas
da labareda provençal, agitavam-se com cólera, e ameaçavam de longe a ímpia terra do
Languedoc. Já circulava em todas partes a idéia de que os piores inimigos da Fé não
estavam mais às margens do Nilo ou do Jordão, mas no sul da França.
No próprio Languedoc, o partido católico, exasperado pelos progressos e as
provocações dos hereges, pedia o auxílio do estrangeiro.
A todos esses elementos de vitória e vingança não faltou o gênio capaz de
coordená-los e lançá-los à ação: na Cátedra de S. Pedro estava sentado um desses homens
cujo olhar de águia abarca todos os perigos, e cuja alma inflexível não recua diante de
nenhuma necessidade. Inocêncio III, semelhante ao Anjo exterminador, preparou durante
dez anos o espantoso furacão que precipitou afinal sobre as regiões provençais.
A vitória de Roma e da França sobre o maniqueísmo era inarredável.
rovíncias, essas inteligentes e orgulhosas cidades onde a liberdade teve enorme surto; essa literatura; essa
sociedade sem preconceitos, na qual a burguesia trata a nobreza em pé de igualdade, e rivaliza
com ela nas cortes de amor e nas liças dos torneios; tudo isso vai desabar em meio a torrentes de
sangue: os homens do Norte vão irromper na França meridional, esmagando, sob as patas de seus
cavalos de guerra, artes, indústria, poesia e liberdade!

A Cruzada espiritual
A tempestade se preparava lentamente no horizonte: os “monges brancos” de Cist
os primeiros instrumentos de que Inocêncio III se serviu. A própria escolha equivalia a u
ameaça: os cistercienses eram conhecidos como pregadores de Cruzada.A missão não te
resultado algum.No ano de 1203, o Papa enviou dois legados, Pierre de Castelnau e
oul, cistercienses também, munidos de poderes extraordinários e dispostos a agir com todo vigor,
s os perfeitos dedicaram-se a pregar de noite, em vez de fazê-lo em pleno dia.
maury, abade de Cister, foi logo em auxílio de seus filhos Pierre e Raoul; era ele um desses açoites de
a Providência envia nos dias de cólera. Aquele homem possuía, sob o hábito do monge, o gênio
de um Átila ou de um Genserico, mas não pôde utilizar imediatamente o gládio exterminador que
aciente por empunhar.
tinham transcorrido desde o envio dos primeiros missionários, e a obra não avançava.
es, dois clérigos castelhanos, Diego de Osma e Domingos de Gusmão, passaram pela região e encontraram-se com
Arnaud-Amaury, Pierre e Raoul, que já pensavam em
a sua missão. Os dois espanhóis reacenderam o fervor dos desanimados legados, e uniram-se a eles na pregação e nos
imava-se o momento em que iriam ser empregadas outras armas além da palavra.
ação crescia em ambos os lados.
Osma faleceu, implorando ao Senhor que descarregasse Seu braço sobre os inimigos da Fé; São
tinha sido vinte vezes coberto de escarros e de lama.

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do tempo de São Luis, Etienne de Salagnac, narra que o fundador de sua ordem disse um dia à multidão reunida em
Prouille:
itos anos tenho-vos feito ouvir palavras de paz. Preguei, supliquei e chorei, mas, como se diz
Onde a bênção não produziu efeito, o pau produzirá ». A força prevalecerá, onde a bênção fracassou”.
nau, “cujos lábios não deixavam de proferir a palavra de Deus, para exercer a vingança sobre as nações e derramar o
castigo sobre os povos”, exclamava com freqüência:
— “A obra de Jesus Cristo não triunfará jamais neste país, se um de nós não morrer em defesa da Fé.
Queira Deus que eu seja a primeira vítima!”
Estavam eles igualmente prontos a derramar seu próprio sangue e o sangue de seus adversários.
Pierre de Castelnau foi atendido.
Um dia, intimou ele o conde Raymond a unir-se aos outros nobres para exterminar os hereges.
Raymond recusou-se e Pierre o excomungou; Inocêncio III ratificou a sentença por meio
de uma carta na qual tratava o conde de “pérfido, insensato e pestilencial”.
No dia 14 de Janeiro de 1208, Pierre de Castelnau saiu da cidade de Saint-Gilles após uma
entrevista tempestuosa com Raymond de Toulouse.
Subitamente aparece um tropel de ginetes em meio a uma nuvem de poeira; dirigem-se ao legado e
injuriam-no a grandes gritos. Um deles empunha a lança e golpeia-o violentamente nas
costas, exclamando:
— “Lembra-te do conde de Toulouse!”
Na confusão geral os assassinos fogem, enquanto Pierre cai por terra dizendo num
sussurro:
— “Que Deus te perdoe, assim como eu te perdôo”.
Aquele homem, implacável para vingar a honra de Deus, sabia no entanto perdoar
seu próprio assassino.
Todo o mundo estava convencido de que Raymond era o responsável.
“A reprovação desse assassinato era tal — escreve Pierre des Vaux-de-Cernay,
cronista da época — que até os próprios cães recusavam-se a comer da mão daquele que
matara o homem de Deus”.
Pode-se imaginar o furor de Inocêncio III ao saber da morte de seu legado; lançou
ele um brado de vingança que retumbou na Europa inteira, e ordenou que Raymond fosse
coberto de anátemas em todas as igrejas.
Agora, a lança e a fogueira encarregar-se-ão de submeter a heresia.

a de Inocêncio III
“Inocêncio, bispo, servo dos servos de Deus, a nossos filhos bem-amados os
condes e barões, e aos arcebispos das províncias de Narbonne, Embrun, Aix e Vienne,
nossa bênção apostólica. (...).
“Nós lhes ordenamos firmemente, em Nome do Espírito Santo e em virtude da
obediência que eles nos devem (...) que em todas suas dioceses eles declarem

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excomungados o assassino do servo de Deus e todos aqueles que o aconselharam,


favoreceram ou ajudaram seu crime.
“Que esta condenação seja solenemente renovada nos domingos e dias festivos, ao
som dos sinos e à luz dos círios, até que o assassino e seus cúmplices se apresentem ante
a Sé Apostólica e mereçam receber a absolvição. (...).
“E se esse castigo não lhe devolver a inteligência, nós saberemos fazer pesar
ainda mais nossas mãos sobre ele. (...).
“Mas, pelo contrário, a todos aqueles que, animados pelo zelo da Fé católica para
vingar o sangue do justo — que faz subir da terra ao Céu um apelo incessante, até que o
Deus das vinganças desça do Céu sobre a Terra para a confusão dos corruptores e dos
corrompidos —, a todos os que tomarem as armas contra esses pestíferos, que os
mencionados arcebispos assegurem a indulgência concedida por Deus e seu Vigário para
a remissão dos pecados (...).
“Avante pois, cavaleiros de Cristo! Exterminai a impiedade por todos os meios que
Deus vos proporcionar; combatei com mão vigorosa os sectários da heresia, fazendo-lhes
guerra mais rude do que aos sarracenos, pois são piores do que eles”.
“Quanto ao conde Raymond, ainda que voltasse a procurar o Nome de Deus e
desejasse dar satisfação a nós e à Igreja, não deixeis por isso de fazer pesar sobre ele o
fardo da opressão que ele chamou sobre si: expulsai-o de seus castelos e privai-o de suas
terras, a fim de que os católicos sejam estabelecidos em todos os domínios dos hereges”.
Ao mesmo tempo, inúmeros monges dos mil e duzentos mosteiros cistercienses
espalharam-se como enxames por toda a França, a Alemanha e a Itália, chamando o povo
às armas.
A Cruzada relâmpago
O exército reuniu-se em Lyon.
À testa marchavam os grandes senhores eclesiásticos e leigos, rodeados de seus
vassalos. Também compareceu uma multidão de cavaleiros da França, da Alemanha, da
Lorena, da Borgonha, da Lombardia e da Aquitânia.
Os cruzados penetraram nas terras de Raymond-Roger Trencavel, visconde de
Béziers e de Carcassone, e no dia 22 de Julho, festa de Sta. Maria Madalena, chegaram
diante de Béziers.
O bispo da cidade fez uma derradeira tentativa para convencer seu rebanho e
apresentou-lhe o ultimatum dos cruzados. Dirigindo-se aos católicos, “se é que os havia”,
intimou-os a render a cidade e entregar todos os hereges, que ele, bispo, bem conhecia e
dos quais tinha a lista. Se não pudessem, que saíssem da cidade abandonando os hereges,
a fim de não perecer com eles.
Eles responderam que “preferiam comer suas próprias crianças antes que fazer tal
coisa”.
Ao ouvir esta resposta, “o legado jurou que não deixaria em Béziers pedra sobre
pedra, e que levaria tudo a sangue e fogo”.

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A cidade foi tomada de assalto e inundada de inimigos. “Foi o maior massacre que
jamais se fez no mundo, pois nada foi poupado”. Os cruzados tinham perguntado ao
abade de Cister como distinguiriam os hereges dos fiéis:
— “Matai-os todos! — respondeu Arnaud-Amaury — Deus reconhecerá os seus!”
“Tudo foi passado a fio de espada, e ninguém se salvou. A cidade foi incendiada e
tudo ficou devastado, tal como se vê hoje, de sorte que não restou um ser vivo”.
Tal foi a primeira ação dos campeões da Fé. Os cruzados deixaram um monte de
ruínas e de cadáveres onde tinha estado Béziers.
Um silêncio de morte reinava a sua passagem: as guarnições dos castelos tinham
fugido para Carcassonne.
Aos olhos dos cruzados, esta cidade era tão diabólica quanto Béziers. Nela, os
judeus eram muitos e poderosos, e os hereges eram donos incontestados. O bispo tinha
sido expulso da cidade, e seu sucessor, Bertrand-Raymond de Roquefort, era de uma
família abertamente cátara.
No dia 3 de Agosto, enquanto os clérigos entoavam o Veni Sancte Spíritus, deu-se
o assalto.
As primeiras defesas são rapidamente desbaratadas, e nas ruas a luta se torna feroz;
Raymond-Roger Trencavel defende-se casa por casa, mas após duas horas de combate
encarniçado, vendo-se ameaçado por um movimento envolvente dos cruzados, ele é
obrigado a retirar-se às torres da cidade.
No dia seguinte, 4 de Agosto, os cruzados tentam o assalto, mas uma chuva de
pedras e flechas obriga-os a recuar. Esta chuva é tão violenta que ninguém se atreve a
socorrer um cavaleiro que jaz no fosso com uma perna quebrada.
E é neste instante que vemos aparecer pela primeira vez um barão francês que
deverá assinalar-se por sua bravura e que será conhecido ao longo das gerações como o
terror do Languedoc. Voltando ao fosso acompanhado de um único escudeiro, ele
consegue salvar o cavaleiro, apesar da torrente de projéteis que lhe atiram. Seu nome é
Simon de Montfort.
Por fim, no dia 15 de Agosto, rendeu-se Carcassonne.
Após celebrar a missa do Espírito Santo, Arnaud-Amaury reuniu o conselho do
exército para escolher um chefe que tomaria posse do viscondado de Trencavel. A escolha
recaiu sobre Simon, senhor de Montfort, mas ele recusou-se decididamente, e foi
necessária a autoridade do legado pontifício para fazê-lo ceder.
Inocêncio III aprovou imediatamente a decisão, e em duas cartas felicitou o conde
de Montfort por ser ele o “monte forte” que se opunha ao avanço dos inimigos da Igreja.

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