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] em campo muito distante, se viam os sublevados, representados na figura de um


índio, posto de joelhos, despojado dos seus vestidos e armas, com as mãos erguidas e em um
braço uma cobra enrolada, protestando a eterna vassalagem”.1 Com esse pequeno excerto dos
Autos de Devassa da Inconfidência Mineira que RETRATA a cerimônia religiosa realizada
para agradecer a Deus pelo movimento TER OCORRIDO apenas nas Minas e não ter
contagiando a capital da colônia e outros territórios, É POSSÍVEL OBSERVAR como a
desordem era perigosa à soberana “tão amável, tão pia, tão clemente”, sobretudo pela
GRANDE distância do centro de poder. Nas Minas, a preocupação da Coroa DEU-SE muito
devido à tributação, no sentido de garantir que os lucros chegassem aos cofres do rei, fazendo
de Vila Rica a “cabeça de toda a América” e a “pérola preciosa do Brasil”.2

Entretanto, tal controle não se limitou aos assuntos e às práticas fiscalistas e chegou ao
nível de temor à consciência do que seria “viver em uma colônia”. Durante todo decorrer do
século XVIII, a Coroa portuguesa não se desviou dos pensamentos de que, a qualquer
momento, poderia EXPLODIR uma sublevação na colônia, visto o potencial dos habitantes.
Não à toa, o índio da imagem criada sobre a cerimônia religiosa citada trazia consigo uma
serpente, pois, mesmo que se submetesse, poderia atacar as normas do Poder Central.
Diversas são as razões dos contestamentos, mas uma destaca-se: a distância. 3 PARA ISSO,
vale lembrar o que disse Antonio Vieira no final do século XIX:

A sombra quando está no zênite, é muito pequenina, e toda se vos mete


debaixo dos pés; mas quando o sol está no oriente ou no ocaso essa mesmo se
estende tão imensamente, que mal cabe dentro dos horizontes. Assim nem
amis nem menos os que pretendem e alcançam os governos ultramarinos. Lá
onde o sol está no zênite, não só metem estas sombras debaixo dos pés do
príncipe, senão também dos de seus ministros. Mas quando chegam àquelas
Índias, onde nasce o sol, ou a estas, onde se põem, crescem tanto as mesmas
sombras, que excedem muito a medida dos mesmos reis que são imagens. 4

Com esse pensamento do jesuíta, é notório que, por vezes, o Estado fazia-se presente
e, por vezes, ausente. Isso mostra que o Estado não conseguia abranger os indivíduos em suas
totalidades. Sendo assim, embora o imaginário político da época entendesse que o “Inimigo
com I maiúsculo se tornara, cada vez mais, o gentio bravo, comedor de gente nas florestas que
margeavam o rio Doce; o quilombola fugido [...]; o vadio itinerante e biscateiro” 5, outros
1
“Cerimônias religiosas em regozijo de se ter descoberto a conjuração”. In: Autos de Devassa da Inconfidência
Mineira, v.VI. p.407-408.
2
Segundo palavras de Simão Ferreira Machado, autor do Triunfo Eucarístico, publicado em 1734.
3
Citado por SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos da História de Minas no Século XVIII. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
4
Citado por SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p.91.
5
SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos da História de Minas no Século XVIII. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1999. p.90.
rebeldes iam construindo seus planos sediciosos e a ideia de inconfidência como
insubordinação, a fim de tornar independente a região das Minas. Esse movimento de homens
ficou conhecido como Conjuração Mineira ou Inconfidência Mineira e é interessante pontuar,
a priori, que, nos final do século XVIII, inconfidentes “passou a significar “o infiel ao
príncipe”, não sendo necessário mais utilizar o artifício da violência para incorrer no crime”6.

Em Minas, os projetos de Inconfidência agruparam homens de todas as regiões da


capitania, construindo uma “sociedade de pensamento”7. Naquela época, das Luzes, uma
sociedade de pensamento era a união de diversos homens de letras que compartilhavam suas
visões sobre política e estética, por exemplo. Isso ocorria em diversos lugares, desde salões e
Academias até mesmo por correspondência ou pelo simples partilhamento de leituras comuns.
A diversidade dessa sociedade de pensamento era restrita ao grupo que ela representava – dos
homens brancos e endinheirados da época. Havia inconfidentes de Vila Rica, Mariana,
Tejuco, São João Del-Rei, Rio das Mortes e Rio de Janeiro 8. Havia ouvidor, advogado,
engenheiro, filósofo, padre9, fiscal de diamante, contratadores de impostos da capitania,
servidores públicos da época e militares. Outros diversos tiveram ligações com o processo,
mas muitos não foram incriminados, apenas chamados como testemunhas. Logo, é notório
que, com a diversidade de origens e profissões, a sociedade de pensamento não era um grupo
monolítico. Ao contrário, havia discussões e divergências, próprias de uma elite intelectual
iluminista.

A transitividade que ligava os inconfidentes e resguardava suas diferenças eram


variadas, mas se destaca, e muito, as ideias professadas e os livros que eles possuíam,
principalmente sobre o ideário iluminista. Esse aspecto presente na maioria dos inconfidentes
é ressaltado no clássico O diabo na livraria do Conêgo 10 de Eduardo Frieiro. É óbvio que a
posse de um livro com fim em si mesmo não é percussora de revolução alguma, no entanto,
indubitavelmente, o conteúdo dos livros considerados ilegais pela Real Mesa Censória de
Portugal era diretamente contra a ordem monárquica setecentista. Por isso, é sustentável a

6
STARLING, H. M; FURTADO, J. F. República e sedição na Inconfidência Mineira: leituras do recueil por
uma sociedade de pensamento. In: MAXWLL, Kenneth (coord.). O livro de Tiradentes: transmissão atlântica
de ideias políticas no século XVIII. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2013. p.108.
7
Termo utilizado pelas historiadoras Heloísa Starling e Júnia Furtado.
8
Alguns partidários residiam no Rio de Janeiro, tendo em vista que havia um interesse pela expansão para o
litoral, pois, sendo Minas uma região continental, era estratégico ter acesso a um porto marítimo.
9
ALMEIDA, Roberto Wagner de. Entre a cruz e a espada: a saga do valente e devasso padre Rolim. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2002.
10
FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do Conêgo. São Paulo: Edusp, 1981.
ideia de que o projeto político, social e econômico dos sediciosos foi construído com base nas
referências de suas bibliotecas.

“Foi preso Luís Vieira, cônego da Cidade Mariana. Dizem que a sua culpa se
limita a terem-lhe achado um livrinho francês, relativo ao levante desta terra,
no qual se diz que podiam os habitantes viver sobre si, sem dependência do
comércio para o nosso reino à imitação do que fizeram os Americanos aos
Ingleses.” 11

Com esse pequeno trecho, é notório que a simples posse era concebida como ato
criminoso. Além disso, outros materiais como inventários e documentos inquisitoriais
demonstram a quantidade e variedade de obras localizadas em bibliotecas particulares da
época, no Brasil.

Eram proibidos os livros contrários à Religião, à Moral, à Cultura e à Ordem


Política vigentes. E, dentre as condições que tornavam os livros proibidos,
podemos ver a face do demônio: se o imaginário mineiro colonial
demonizava a sedição, a Natureza (a miséria do homem e a Natureza como se
concebia no século XVIII), a maledicência, o calundu e os libertinos, estas
ideias, ações e personagens, caso se fizessem presentes nos livros, tornavam-
se proibidos. Dona Maria I, em 1787, reformou a censura, criando um novo
organismo: a Comissão Geral para o Exame e a Censura de Livros. A nova
comissão, criada devido à inoperância da Real Mesa Censória, também não
conseguiu reprimir a entrada de livros proibidos em Portugal e no Brasil. Em
1793, o governo de Portugal retornou ao sistema dos três poderes: Inquisição,
o Ordinário e o Desembargo do Paço. Dentre os principais livros proibidos,
os franceses vinham em primeiro lugar, começando pelos filósofos da
Ilustração como D’Alambert, Brissot, Buffon, Condorcet, Condillac, Diderot,
Helvétius, La Mettrie, Mably, Marmontel, Montesquieu, Raynal, Rousseau,
Voltaire [...].12

11
A. de E. Taunay. Boatos sobre os inconfidentes mineiros (1789). Em: Jornal do Comercio, Rio, janeiro de
1943. Citado em: FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do Cônego: como era Gonzaga? E outros temas
mineiros. Belo Horizonte: Editora Itatiaia LTDA, 1957. p.22.
12
VILLALTA, Luiz Carlos. O diabo na livraria dos inconfidentes. In: NOVAES, Adauto. Tempo e História.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 370.

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