Você está na página 1de 4

A heresia dos Cátaros e o início da Inquisição

NOTA: Continuação do artigo originalmente publicado na edição de Novembro de 1999 da revista The Angelus,
este artigo é a defesa precisa de um capítulo muito incompreendido da história da Igreja Católica. Jean-Claude
Dupuis é PHD em historia pela Laval University de Quebec, Canadá.
A heresia dos cátaros espalhou-se por toda a Europa entre os séculos 11 e 13. Ela prosperou especialmente no
Languedoc (sul da França), daí o nome de heresia albigense (da cidade de Albi), pelo qual a heresia também é
conhecida. A palavra “cátaro” vem do grego katharos, que significa “puro”. Na verdade, chamar o movimento cátaro
de heresia cristã não é apropriado; ele mais parece uma nova religião [13]. Sua origem continua obscura, mas sua
doutrina se parece com as filosofias gnóstica e maniqueísta que circularam no Oriente Médio durante os séculos 3 e 4.
Note também que a Maçonaria alega ser herdeira dos mistérios iniciáticos dos cátaros.
De acordo com os cátaros, dois deuses dividiram o universo. O deus bom criou o mundo espiritual, e o mau
criou o mundo material. O homem é fruto dos dois deuses. Ele é um anjo caído aprisionado num corpo. Sua alma veio
do deus bom, mas seu corpo veio do deus mau. O objetivo do homem seria libertar a si mesmo da matéria através da
purificação espiritual, que demandaria uma série de reencarnações.
Como todos os hereges, os cátaros diziam que sua doutrina era o verdadeiro Cristianismo. Eles mantiveram a
terminologia cristã mas distorceram suas doutrinas. Eles diziam que Cristo era o anjo mais perfeito de todos e que o
Espírito Santo era uma criatura inferior ao Filho. Também ensinavam que o Antigo Testamento era obra do deus mau,
enquanto o Novo Testamento era fruto do deus bom. Eles negavam a Encarnação, a Paixão e a Ressurreição de Jesus,
e afirmavam que a Redenção resultou mais dos ensinamentos evangélicos que da morte na Cruz. Os cátaros diziam
que a Igreja se corrompeu desde a época de Constantino, e eles rejeitavam todos os sacramentos. Sem dúvida, o
movimento cátaro foi uma forma de paganismo com um toque de Cristianismo.
Se o mundo material é intrinsecamente mau, a ética cátara condenava todo contato com a matéria. Casamento
e procriação eram proibidos porque ninguém podia colaborar com o trabalho do Diabo, que procurava aprisionar
almas em corpos. Como a morte era a libertação, o suicídio era encorajado. Eles aplicavam a “endura” (jejum
forçado) aos doentes e às vezes até às crianças, matando-os por inanição, para acelerar o retorno da alma ao Céu. Os
cátaros se recusavam a fazer juramentos sob o pretexto de que Deus não se misturaria com assuntos materiais. Toda
forma de riqueza era condenada. Os cátaros desejavam alcançar um estado de “desencarnação” similar dos fakirs
(ascetas hindus). Além disso, os cátaros negavam o direito do Estado declarar guerra ou punir criminosos.
Obviamente, uma religião dessas não atrairia muitos fiéis. Por isso o movimento cátaro criou duas classes de
fiéis: os “perfeitos” e os simples crentes. Os primeiros, poucos em número, eram os iniciados, que viviam em
comunidades isoladas inteiramente obedientes à moral cátara. Os segundos, a vasta maioria, viviam livres de qualquer
dever moral, tanto em matéria sexual quanto em assuntos comerciais. Os cátaros não se submetiam às leis cristãs que
proibiam a usura e estabeleciam o princípio do preço justo. O crente cátaro tinha a garantia de ir para o Céu: bastava
receber, antes de morrer, o “consolamentum”, um tipo de extrema-unção.
Os cátaros ensinam uma moralidade dupla: ascetismo para a minoria e libertinagem para a maioria, com o
agravante da garantia de salvação eterna com pouco esforço. Agora é possível compreender porque essa heresia fez
tanto sucesso. Entretanto, a imensa maioria das pessoas permaneceu fiel ao Catolicismo. Os cátaros eram basicamente
os mercadores urbanos. Eles não eram muitos, talvez 5% ou 10% da população do Languedoc, mas eram ricos e
poderosos. Alguns praticavam a usura. O conde de Toulouse (França), o nobre mais importante do Languedoc, aderiu
à heresia cátara.
Longe de serem pobres vítimas indefesas duma Inquisição fanática, os cátaros formavam um grupo poderoso e
arrogante que propagava uma doutrina imoral, oprimia os camponeses católicos e perseguia padres. Eles assassinaram
até o Grande Inquisidor, São Pedro Mártir (também conhecido como São Pedro de Verona).
A Igreja mostrou grande paciência antes de tomar medidas contra a ameaça cátara. As heresias albigenses
foram condenadas no Concílio de Toulouse em 1119, mas até 1179 Roma se limitou a enviar pregadores ao
Languedoc, tais como São Bernardo e São Domingos. Estas missões tiveram pouco sucesso.
Em 1179, o rei da França, o rei da Inglaterra e o imperador alemão já haviam iniciado, por iniciativa própria, a
repressão da heresia cátara, porque esta ameaçava a ordem social por suas doutrinas perversas sobre a família e os
juramentos. Lembre-se que o sistema feudal dependia do juramento que um homem fazia a outro. Negar o valor do
juramento era tão grave para a sociedade medieval quanto a negação da autoridade da lei na sociedade moderna.
Como se não bastasse, os pregadores cátaros passaram a encorajar a anarquia e a comandar milícias armadas,
conhecidas por diferentes nomes nos países onde atuaram (“cotereaux”, “routiers”, “patarins”, etc). Estas milícias
saqueavam igrejas, assassinavam sacerdotes e profanavam a Eucaristia. Em 1177 o rei da França, Filipe Augusto,
exterminou 7 mil desses homens, e acontecimentos idênticos ocorreram na Alemanha e Itália. Em 1145, Arnaldo de
Brescia e seus “patarins” conquistaram Roma e exilaram o papa. Ele proclamou uma república e permaneceu no
poder por dez anos, até a cidade ser tomada pelo imperador alemão Frederico Barbarossa e ele ser condenado à
fogueira pelo imperador. O movimento cátaro provocou desordem social em toda a Europa, e reinava sobretudo no
Languedoc.
A Inquisição conteve o massacre que ocorreria em toda a Europa, distinguindo os hereges dos fiéis, e os
líderes dos seguidores, aplicando penas proporcionais aos vários graus de heresia. Por fim, a Inquisição foi um
trabalho humanitário: ao punir os líderes, ela salvou a massa dos cátaros, que era mais vítima do que responsável pela
heresia. Ao caçar os hereges que se esconderam, ela evitou o renascimento do movimento cátaro e de toda a desordem
social e moral que essa heresia provocou.

O Tribunal da Inquisição pôs freio nos linchamentos públicos


NOTA: Originalmente publicado no site https://ocatequista.com.br/
Você é daqueles que acha que a Igreja matou milhões na fogueira na Idade Média? Então fique
sabendo que não foi bem assim! Foram as autoridades seculares (não-religiosas) que determinaram que a
heresia era uma ofensa a ser punida com morte, não a Igreja. E, na verdade, o Tribunal da Inquisição foi
montado para... salvar os hereges da morte certa! "Whaaaaaat?!" Sim, é isso mesmo que você leu: a
inquisição poupou muitas vidas.
Eu sei, eu sei, deve ter muita gente aí levantando a sobrancelha... Isso acontece porque não vivemos na
Idade Média e, por isso, não imaginamos o contexto corretamente. Naquela época não havia Estado como
conhecemos hoje, e as pessoas faziam justiça da maneira que lhes desse na telha. Como acusar pessoas de
um crime, prender e linchar sem julgamento, por exemplo.
A primeira coisa é entender que naquele tempo os territórios eram divididos em feudos. Aliás, o
conceito de país era irrelevante e qualquer coisa que desse errado era resolvido com as próprias leis do
senhor do feudo. Claro, se não existia nem país, imagine código penal... A outra coisa para entender é que a
religião era de suma importância na vida das pessoas. Assim, um ataque contra a religião era visto pela
população como um ataque contra ela própria, contra a sua estrutura e valores. Por isso, uma heresia era um
crime terrível.
Agora que você já entendeu essas coisas vamos aos fatos: os nobres nos feudos puniam por crime de
heresia quem lhes desse na telha, promovendo linchamentos públicos.  O bicho pegava porque cada um
tinha lá o seu conceito de heresia. Hoje já é assim, imagine naquele tempo com muito menos acesso a
informações... Os desmandos dos senhores feudais "justiceiros" só tiveram fim quando a Igreja reclamou
para si o direito exclusivo de julgar os supostos hereges, já que os padres eram os únicos que possuíam a
formação teológica necessária para fazer a devida avaliação. Então, os tribunais da Inquisição surgiram,
justamente, para pôr freio à barbárie, oferecendo aos acusados de heresia um julgamento justo.
Bem diferente do que o senso comum pensa hoje, o fato é que “A Inquisição não nasceu da vontade de
esmagar a diversidade ou oprimir o povo, era mais uma tentativa de acabar com as execuções injustas”.
Quem afirma isso é o professor Thomas F. Madden, professor e presidente do departamento de História da
Universidade de Saint Louis (Missouri). Ele diz ainda:
"Heresia era um crime contra o Estado. O direito romano no Código de Justiniano
tornou-a uma ofensa capital. Governantes, cuja autoridade se acreditava vir de Deus, não
tinham paciência para os hereges. Nem as pessoas comuns, que os viam como foras-da-lei
perigosos que trariam a ira divina. Quando alguém era acusado de heresia no início da Idade
Média, eram trazidos ao senhor local para julgamento (...). O resultado é que milhares de
pessoas em toda a Europa foram executadas por autoridades seculares, sem julgamentos
justos ou uma avaliação competente da validade da acusação.
A resposta da Igreja Católica para este problema foi a Inquisição, instituída
primeiramente pelo papa Lúcio III em 1184. Ela nasceu da necessidade de fornecer
julgamentos justos para os hereges acusados, usando as leis de provas, e presididos por juízes capacitados. Do ponto
de vista das autoridades seculares, os hereges eram traidores de Deus e do rei e, portanto, mereciam a morte.  Do
ponto de vista da Igreja, no entanto, os hereges eram ovelhas perdidas que se afastaram do rebanho. Como pastores,
o papa e os bispos tinham o dever de levá-los de volta ao redil, assim como o Bom Pastor lhes havia
ordenado. Assim, enquanto líderes medievais seculares estavam tentando salvaguardar seus reinos, a Igreja estava
tentando salvar almas. A Inquisição providenciou um meio para os hereges escaparem da morte e retornarem para a
comunidade.
Como nenhum empreendimento humano é perfeito, houve certamente maus inquisidores, que praticaram
abusos e injustiças. Porém, as evidências históricas testemunham a favor da Inquisição, apresentando-a como uma
instituição que "salvou incontáveis milhares de inocentes (...), pessoas que de outra forma teriam sido torradas por
senhores seculares". (Thomas F. Madden. Artigo "The real Inquisition". Site da revista National Review).
Outro grande erro do senso comum hoje, é pensar que a Inquisição usava de cruéis torturas para a
confissão de seus réus. É o parecer dos mais renomados historiadores do mundo, especializados no tema das
Inquisições. Entre muitos, podemos citar Henry Kamen, Agostino Borromeo, Jean Louis Biget e Cecil Roth.
Todos esses historiadores célebres afirmam que a tortura muito RARAMENTE era aplicada nas diversas
Inquisições, e seus métodos eram relativamente brandos, se comparados aos aplicados pelos tribunais
seculares.
Por meio de decretos papais, A Igreja Católica impôs fortes limites à crueldade da tortura. Era
proibido derramar sangue dos réus e não se podia causar nenhum dano físico profundo ou permanente ao
prisioneiro. Por isso, durante os interrogatórios realizados pelos inquisidores, seria impossível ver cenas
como as mostradas muitas vezes em filmes ou posts caluniosos. A dama de ferro, por exemplo, é invenção
moderna. Vários museus do mundo já reconheceram que as damas de ferro que possuem em seu acervo são,
na verdade, peças fraudadas por impostores do século XIX em diante.
Outro detalhe relevante era que os Estados estabeleciam que a pena capital para crimes dessa natureza
era a morte na fogueira. Mas era muito comum que o herege condenado pela inquisição fosse morto por
estrangulamento antes de ser queimado na fogueira. Assim tinha uma morte mais rápida e menos dolorosa.
Tais coisas eram ruins? Obviamente! Mas ao analisarmos um fato histórico não podemos fazê-lo sem
o devido cuidado com anacronismos. E, se colocarmos tais fatos dentro de seu contexto podemos perceber
uma significante melhora no tratamento dos réus. Uma prova disso está na pesquisa do Dr. Henry Kamen.
Segundo ele, haviam detentos de prisões seculares que faziam de tudo para serem reconhecidos como
hereges, para assim serem transferidos para uma prisão da Inquisição, onde sabiam que receberiam um
tratamento muito mais misericordioso.
Inquisição sem mortes na fogueira – a Igreja poderia ter feito isso?
Em nosso último texto falamos da questão do anacronismo, mas talvez algumas considerações ainda
passem pela nossa cabeça. Thomas Noffke, um pastor cristão valdense que vive em Roma ficou conhecido
por algo assim. Quando teve acesso ao resultado do estudo do Simpósio sobre as Inquisições, promovido
pelo Vaticano, se surpreendeu ao saber que somente uma pequena parcela dos réus das Inquisições foi
punida com a pena de morte e que a tortura era muito rara e era, em geral, bem mais branda do que a
aplicada em tribunais seculares.
Contudo, o pastor disse ainda que “não importa se há muitos ou poucos casos. O que é importante é
que você não pode dizer: ‘Estou certo, você está errado, e eu vou te queimar’”.
Já falamos sobre a importância da Inquisição para seu momento histórico, sobre como um grupo de
historiadores de renome internacional provaram que os réus recebiam tratamento muito mais humano do que
nos tribunais civis e que muitas vidas foram salvas graças a essa invenção. Além disso, alertamos sobre o
cuidado necessário para não agirmos de maneira anacrônica ao analisarmos os fatos históricos de um
período distinto.
Mas vamos nos deter agora sobre o cenário proposto pelo pastor Noffke, em que nenhum herege
tivesse sido queimado na fogueira das Inquisições, nem mesmo unzinho. É certo que a Igreja, ao assumir o
julgamento dos casos de heresia, conseguiu salvar incontáveis vidas da fogueira (pois os tribunais seculares
eram muito menos benevolentes, isso sem falar nos linchamentos sem julgamento). Mas seria possível que a
Igreja tivesse salvado a pele de TODOS os condenados por heresia?
NÃO, isso não seria possível! Por dois motivos:
1) Muitos condenados à fogueira estavam longe de ser pacíficos e inofensivos. Os hereges não eram
meros pecadores que ameaçavam o “monopólio” da Igreja Católica. Não compare a condição dos hereges de
hoje com a condição dos hereges medievais: são coisas muito diferentes! Hoje um herege não tem a
capacidade de deflagrar caos social, revoltas, violências graves e em massa, depredações, expulsão de não
concordares com sua seita de suas terras etc. Esses são males que um herege medieval poderia provocar,
com boa probabilidade (Podemos citar, por exemplo, os famosos casos dos Cátaros e dos Marranos).
Reis e senhores feudais católicos muitas vezes eram mergulhados em pecados de homicídio, adultério
etc.; portanto, o horror deles à heresia, em geral, não era tanto de interesse espiritual, mas sim de ordem
social. A disseminação de heresias era sobretudo um problema para o Estado, pois podia comprometer a
segurança da população e a estabilidade dos reinos.
2) Igreja não tinha esse poder o poder de impor aos governantes quais penas deveriam ser aplicadas a
cada tipo de crime. As autoridades seculares medievais determinaram que heresia era crime de lesa-
majestade. E o castigo para quem ameaçava a estabilidade do governo (em um mundo onde qualquer faísca
de conflito poderia causar uma guerra) não era outro senão a pena de morte.
Muita gente nutre a fantasia de que os papas mandavam e desmandavam no mundo inteiro. Mas antes
de começarmos a estudar a história da Idade Média, já tratamos desse equívoco de imaginar uma igreja toda-
poderosa. Sabemos que muitos papas passaram por enormes apuros sob a tirania dos governantes ocidentais.
Não, a Igreja medieval estava bem longe de ser toda-poderosa - apesar de ser muito influente.

Você também pode gostar