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NOTA: Continuação do artigo originalmente publicado na edição de Novembro de 1999 da revista The Angelus,

este artigo é a defesa precisa de um capítulo muito incompreendido da história da Igreja Católica. Jean-Claude
Dupuis é PHD em historia pela Laval University de Quebec, Canadá.

O Processo Inquisitorial
O processo inquisitorial variou de acordo com o país e a época, mas alguns traços básicos são claros.
De maneira geral, a Inquisição concedia ao acusado de heresia todas as oportunidades possíveis de defesa, e
apenas punia severamente os “irredutíveis”, aqueles que se obstinavam em rejeitar a fé. A Inquisição
procurou educar tanto quanto reprimir, de forma que algumas vezes seu trabalho consistia mais em erradicar
superstições populares do que lutar contra os subversivos. O procedimento judicial sempre era acompanhado
por pregações solenes.
Quando o tribunal da Inquisição se instalava numa cidade, ele proclamava um tempo de perdão de 01
mês. Nesse período, os hereges que confessassem espontaneamente suas faltas tinham a garantia de receber
apenas penitências leves e secretas. Depois deste prazo, os inquisidores publicavam um edital de fé
ordenando todos os cristãos, sob pena de excomunhão, denunciar os hereges e aqueles que os protegiam. A
Inquisição não comandava uma polícia secreta ou uma rede de espiões. Ela contava com a colaboração dos
católicos, de forma que, na prática, ela agia mais como guardiã do consenso social do que como um
opressivo órgão estatal.
A Inquisição Católica não se parece em nada com as inquisições totalitárias do século 20. Ela não
procurava encontrar traidores a qualquer preço. Seu único alvo eram os propagadores de heresias,
principalmente os líderes. A Inquisição não se ocupava da consciência dos hereges, apenas com sua ação
exterior.
O Papa confiou a Inquisição Medieval aos dominicanos e franciscanos. Estas duas ordens religiosas,
recentemente fundadas, davam sérias garantias de probidade e santidade. O conhecimento teológico e
canônico dos inquisidores era notável. Podemos dizer que a Inquisição foi confiada à elite do clero
medieval. Diferente dos tribunais revolucionários de 1793, os tribunais da Inquisição nunca foram
presididos por fanáticos, corruptos e pervertidos.
O inquisidor não julgava sozinho. Ele era assistido por alguns assessores do clero local, de forma que
podemos considerar isto o início do sistema de jurados. Além deles, o bispo auditava as sentenças e o
acusado podia apelar ao Papa. É razoável concluir que o processo inquisitorial era adequado, até mesmo
pelos padrões modernos. Contrariamente ao que foi dito, a Inquisição frequentemente absolvia os acusados.
Bernardo Gui foi o severo inquisidor de Toulouse entre 1308 e 1323. Ele pronunciou 930 julgamentos, dos
quais 139 eram absolvições.
O acusado podia defender a si mesmo ou utilizar um advogado, mas nem sempre era autorizado a
escutar as testemunhas da acusação. Historiadores condenaram severamente esta natureza secreta do
processo inquisitorial, mas é preciso considerar o contexto dos fatos. Os hereges que a Inquisição perseguia
eram ricos e poderosos. Muitos tinham soldados a seu comando. Não raras vezes, testemunhas de acusação e
até mesmo inquisidores foram assassinados. Testemunhar contra os líderes dos cátaros ou marranos era tão
perigoso quanto testemunhar contra os chefes da máfia hoje. Em 1485, o Grande Inquisidor espanhol Pedro
Arbués foi esfaqueado diante do altar por assassinos contratados pelos marranos. É por isso que a Inquisição
protegia o anonimato de certas testemunhas. Ela só recorria aos depoimentos secretos em caso de
necessidade.
O acusado também tinha benefícios. Ele podia apresentar, no início do processo, uma lista dos seus
inimigos pessoais. Se uma testemunha de acusação se encontrava na lista, seu testemunho era
automaticamente rejeitado. Além disso, o depoimento da testemunha anônima era tomado na presença do
advogado do acusado. Nessas ocasiões, o advogado do acusado era indicado pelo tribunal, para garantir que
a identidade das testemunhas não seria revelada. Mesmo assim, esses advogados não trabalhavam com
menos empenho: vários juristas espanhóis se destacaram pelas defesas que fizeram em tribunais da
Inquisição.
Perceba que o princípio da denúncia anônima não é, por natureza, um procedimento injusto.
Atualmente é procedimento comum em vários países.
A outra grande crítica feita à Inquisição é o uso de tortura durante os interrogatórios. Novamente, é
preciso colocar os fatos em contexto. O interrogatório inquisitorial não se parece em nada com as torturas
sádicas da Gestapo ou KGB. Ele era relativamente brando quando comparado com as torturas impostas pela
Justiça Comum da época. Três métodos eram empregados:
1. A Garrucha era uma alavanca que esticava cordas amarradas aos pulsos do acusado. Quando era
acionada, a alavanca elevava o acusado a certa altura, e depois soltavam bruscamente ou aos solavancos, o
que causava dor intensa nos ombros do acusado.
2. O Potro era uma tábua, algumas vinham com espinhos, na qual o acusado era amarrado. O
torturador apertava as cordas, fazendo com que os espinhos ferissem a pele do acusado.
3. A Toca era um funil de tecido colocado na boca do acusado. O torturador jogava água no funil,
dando sensação de afogamento ao acusado.
O processo inquisitorial regulou minuciosamente as práticas de interrogatório. Para ser submetido à
tortura, era preciso ser acusado por crimes muitos graves, e o tribunal devia ter indicios muito claros da sua
culpa. O bispo local devia emitir sua concordância, o que protegia o acusado do zelo abusivo de algum
inquisidor. O interrogatório com tortura não podia ser repetido. As instruções também determinavam a
presença de um representante do bispo e de um médico durante o interrogatório, a proibição de colocar o
interrogado em risco de vida ou de mutilação, e a obrigação de prestar cuidados médicos imediatamente
após o interrogatório. Os doentes, idosos e grávidas eram dispensados de interrogatório sob tortura. Além do
mais, a tortura era raramente empregada: em 1-2% dos processos, de acordo com Jean Dumont.
É surpreendente descobrir que a maioria dos acusados suportou a tortura e foi, consequentemente,
absolvida. Se o objetivo dos torturadores era, como podemos pensar, obter confissões a qualquer custo,
então os inquisidores eram contraprodutivos. Pode-se questionar se o interrogatório sob tortura não era um
último meio de defesa oferecido ao acusado, um tipo de teste judicial similar à Ordália medieval. Esta é, em
minha opinião, uma hipótese a ser considerada.
A Ordália, ou “Julgamento Divino”, era um teste judicial comum até o ano 1000. O acusado provava
sua inocência perante o tribunal pela prova de fogo, água ou espada. No primeiro caso, ele segurava carvão
em brasa; se estivesse curado após certo período de tempo, o tribunal concluía que ele era inocente. No
segundo caso, o acusado era amarrado e jogado num grande tonel de água; se ele flutuasse, que era o mais
comum por causa do ar nos pulmões, o tribunal concluía que ele era culpado; se ele afundasse, era inocente.
Por fim, a prova da espada era o duelo entre dois cavaleiros recrutados por testemunhas contraditórias: a
vitória indicava qual delas dizia a verdade. A Igreja sempre lutou contra a Ordália, que era um método
supersticioso herdado do código legal primitivo dos pagãos germânicos.
O uso de tortura como meio de obtenção de prova é chocante à mente moderna, mas foi um avanço
comparado à Ordália. Não devemos esquecer que a tortura era muito mais comum nos processos criminais
seculares. Além disso, o Grande Inquisidor S. João de Capistrano proibiu o uso da tortura na Inquisição já
no século 15, mais de 300 anos antes do rei Luís XVI fazer o mesmo com a Justiça comum da França
(apesar da Espanha ter restabelecido seu uso no período).
Mesmo assim, o processo inquisitorial foi um avanço na história legal. Por um lado, ele
definitivamente descartou a Ordália, substituindo-a pelo depoimento de testemunhas, algo que se mantém
ainda hoje nos sistemas legais. Por outro lado, ele estabeleceu o princípio do Estado como promotor. Até
aquela época era a vítima que devia provar o crime, mesmo num processo criminal, e isso era especialmente
difícil quando a vítima era fraca e o criminoso era poderoso. Mas com a Inquisição a vítima não era mais do
que uma simples testemunha, assim como nos processos criminais de hoje. Era a autoridade eclesiástica que
tinha o ônus da prova.
O número de hereges queimados pela Inquisição foi muito exagerado. Juan Antonio Llorente é a
origem desses números inflados, e muitas pesquisas ainda o utilizam como fonte [18]. Llorente foi um padre
apóstata que se colocou a serviço da ocupação napoleônica da Espanha. Depois de caluniar a Inquisição, ele
destruiu os arquivos, que poderiam contradizê-lo. Vários historiadores continuam a adotar números inflados
graças ao viés antirreligioso[19]. Entretanto, números de tal grandeza são rejeitados desde 1900 por Ernest
Schafer e Alfonso Junco. Historiadores honestos concordam que o número de vítimas da Inquisição
Espanhola é bem menor do que o geralmente conhecido[20]. Jean Dumont estima em 400 execuções durante o
reinado de 24 anos da rainha Isabela, A Católica. Isto é pouco comparado com as 100 mil vítimas do
expurgo dos “colaboracionistas” franceses entre 1944-45, ou as dezenas de milhões mortos por comunistas
na Rússia, China e outros países.
Note também que os condenados à morte nem sempre eram executados. Suas sentenças eram
substituídas por tempo na prisão, ou os acusados tinham a efígie (retrato, imagem ou escultura) queimada.
Além do mais, nem sempre os condenados eram queimados vivos. Em vários casos, foram enforcados antes
da fogueira. Lembre-se também que eram apenas os reincidentes obstinados que eram condenados à morte.
Algumas pessoas julgam incoerente a atitude da Igreja, que pede para perdoarmos nossos inimigos,
mas aceitou a pena de morte naquela época. Devemos lembrar que o dever da autoridade pública não é o
mesmo do indivíduo. O dever da caridade obriga o indivíduo a perdoar mesmo o assassino de parentes
próximos. Mas o primeiro dever de caridade do Estado é garantir a ordem pública, defendendo a
integridade física e espiritual dos seus cidadãos. Se a pena de morte é necessária para assegurar tais
deveres, a Igreja entende que o Estado pode recorrer a ela.  O Catecismo da Igreja Católica promulgado
pelo Papa João Paulo II (parágrafo 2266) reconhece a legitimidade da pena de morte.
De qualquer modo, menos de 1% das sentenças da Inquisição condenavam o réu à morte. Na maioria
das vezes, os hereges eram condenados a vestir uma cruz sobre suas roupas, a fazer peregrinações, a servir
na Terra Santa ou se flagelar, frequentemente de maneira simbólica. Às vezes o Tribunal confiscava suas
propriedades ou os aprisionava. As prisões da Inquisição não eram tão terríveis quanto dizem. Elas deviam
ser mais confortáveis que a prisão comum, já que alguns criminosos alegavam heresias a fim de serem
transferidos para as prisões da Inquisição. Além disso, os hereges frequentemente eram beneficiados com
anistias. A verdadeira história da Inquisição não tem nenhuma semelhança com a lenda negra. Bartolomé
Bennassar, que não é defensor do Santo Ofício, escreveu em L’Inquisition Espagnole, XV-XIX siècle (1979):
“Se a Inquisição Espanhola era um tribunal como os outros, eu não hesitaria em concluir, sem
sombra de dúvida, que era um tribunal superior aos demais.... Mais eficiente, sem dúvida, mas também
mais preciso e mais cauteloso, apesar das falhas de alguns juízes que podem ter sido orgulhosos,
arrogantes ou libertinos. Um tribunal que examina minuciosamente os depoimentos, que aceita sem hesitar
as impugnações de testemunhas suspeitas (e frequentemente pelas menores razões), um tribunal que
raramente emprega tortura e que, diferente dos tribunais civis, muito raramente condena alguém à pena de
morte e apenas com muita cautela condena ao terrível castigo das galés. Um tribunal ansioso por educar,
por explicar ao acusado porque ele estava errado, que admoestava e aconselhava, cujas penas graves
atingiam apenas os obstinados.”
Como um historiador competente e honesto, Bennassar só poderia rejeitar as calúnias que circularam
por séculos sobre a Inquisição. Mas como um liberal e relativista, ele não podia aceitar o princípio que
fundamenta essa instituição. No fim das contas, a única falta que a Inquisição pode ser culpada, segundo ele,
é ter combatido “falsas doutrinas”.

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