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A PRÁTICA INQUISITORIAL NO “DIRECTORUM INQUISTORUM”

Lilian de Paula Lima

Resumo
A Inquisição foi criada no século XIII e o objetivo apresentado foi a contensão
da heresia albigense, também havia o desejo do Papado de se afirmar como
autoridade absoluta. Durante mais de três séculos esta Instituição aterrorizou a
população por causa de seus métodos usados para punir aqueles que iam
contra os dogmas ou questionassem o poder espiritual. Durante esse período
foram criados documentos que ensinavam os inquisidores como agir durante
os processos. Essa comunicação pretende discutir essas ações de acordo com
as perspectivas de Nicolau Eymerich e Francisco de La Peña usando como
fonte principal o “Manual dos Inquisidores”.

No ano de 1231 o governador de Roma escolheu alguns dominicanos para


defenderem a fé cristã dos hereges daquela região, e vários outros foram
designados para atuarem em regiões diversas. Assim, durante todo o exercício
do Santo Ofício coube aos monges da ordem dominicana o papel de procurar,
julgar e punir os hereges. Com uma bula do Papa Inocêncio IV a Inquisição foi
oficializada e, a partir daquele momento estava aberta a caça aos “desviados”.
As práticas utilizadas pelos inquisidores foram reunidas em vários manuais,
entre eles o escrito pelo frei dominicano Nicolau Eymerich em 1376 e revisado
por Franciso de La Peña em 1578. A segunda parte do manual é dedicada à
prática inquisitorial e descreve como deveria ser feita uma investigação e os
veredictos dados a cada caso.
Primeiramente, o inquisidor deveria ser indicado pelo Papa ou um
representante deste, após receber a indicação de uma região para atuar, o
dominicano teria que se dirigir ao rei ou governante pedindo ajuda na caça aos
desviados e que houvesse um acordo de apóio mútuo. O governante deveria
escrever uma carta delegando totais poderes ao inquisidor e ordenando aos
bispos e autoridades locais que também apoiassem o dominicano e
respeitassem as decisões tomadas por este. Segundo o modelo de Eymerich
esse é um trecho desse documento:

“Assim estamos falando com cada um de vós, e ordenamos a cada um, sob pena de
serdes punidos, que ajudais o inquisidor todas as vezes que, para cumprir sua missão, ele
precise se dirigir a vossas terras ou peça ajuda do braço secular. Ordenamos que recebais
bem o inquisidor, que prendais ou mandeis prender quem o inquisidor apontar como suspeito
de heresia, como difamados de heresia ou, como hereges, os leveis, sob vossa guarda, para
onde o inquisidor mandar, apliqueis as devidas punições de acordo com o julgamento e os
costumes.”

Após isso o dominicano poderia exigir que o governante jurasse defender a


Igreja, se ele se negasse poderia sofrer com a excomunhão ou o interdito
(quando a região ficava impedida de receber qualquer intervenção jurídica ou
que fosse preciso um tabelião). Se isso não intimidasse o governante, deveria
ser aplicada algumas penas, que não poderia ser muito duras já que uma boa
relação com o poder secular poderia beneficiar a Igreja em várias ocasiões,
mas deveria servir para causar medo nas outras pessoas. Após se instalar, o
inquisidor teria que indicar um comissário inquisitorial, pertencente do clero
secular ou regular e que representasse a Igreja no caso de uma investigação
em que o inquisidor não estivesse presente.
Para tomar posse de suas funções o inquisidor convocava todos, através
de avisos nas paróquias, para um sermão geral. Nele, o inquisidor falava sobre
os perigos das heresias e determinava um período para aqueles que se
encontravam em “estado de pecado” se entregarem, sem sofrer as pesadas
penas, havia também a intimação para que todo que conhecesse algum herege
ou suspeito pudesse entregá-lo. Ao fim do sermão geral, o inquisidor concedia
quarenta dias de indulgência a todos os presentes e prometia três anos
aqueles que denunciassem os pecadores ou ajudassem de alguma maneira a
Santo Ofício.
Para guardar as informações feitas pelos delatores, o inquisidor relatava
tudo em uma agenda, que servia para futuras investigações. Após o término do
prazo de perdão para os confessos, o dominicano consultava as anotações e
analisava as denúncias, se em alguma houvesse uma possibilidade era aberto
um processo.
Havia três tipos de processos, por acusação, delação e por investigação. O
processo por acusação procedia da seguinte maneira: alguém da comunidade
procurava a sede do Santo Ofício na região e acusava uma pessoa de heresia,
o inquisidor perguntava a quem denunciou se queria ser apenas um delator e
deixava o processo nas mãos da Igreja ou se queria prosseguir para provar sua
denúncia. Nessa forma de processo o acusador optaria pela segunda, e então
começava o processo.
O inquisidor perguntava ao acusador nomes de pessoas que pudessem
testemunhar no caso de heresia, segundo Peña bastavam duas testemunhas
para provar a existência de boatos e por isso deveria começar um processo
mais rígido.
Quando as testemunhas iam falar com o inquisidor, primeiro elas tinham
que jurar sobre os quatro Evangelhos que iam dizer a verdade. Depois disso
começavam as perguntas como: de que forma conheceu o suspeito de heresia,
atitudes relacionadas à fé e moral do suspeito, se este tinha relação com
alguma seita ou se as pessoas comentam algo sobre ele. Por fim o inquisidor
perguntava se a testemunha estava depondo movido por algum sentimento
como o ódio ou ressentimento e o mandava guardar segredo sobre tudo o que
aconteceu. O escrivão que anotou todas as perguntas e respostas,
colocava a data e o nome das testemunhas. Se, após esses depoimentos
ficasse provada a existência ou suspeita de heresia, o inquisidor mandava
prender o herege, caso houvesse risco de fuga, o chamava para o
interrogatório, que será detalhado mais adiante. Era feita também, uma
investigação para saber se havia alguma rixa entre a testemunha e o suspeito,
se tivesse uma contenda de morte entre eles ou se o réu já tivesse sido
ameaçado ou agredido pela testemunha o depoimento era desconsiderado.
No processo por delação, e pessoa que denuncia não optava por ser
acusador e deixava todo o processo nas mãos do Santo Ofício.
No processo por investigação, segundo o manual, o inquisidor conversava
com pessoas “boas e honestas” para saber se havia alguém suspeito de
heresia, em caso afirmativo e se fossem fortes as suspeitas, começava o
interrogatório.
Para começar um interrogatório, o suspeito teria que jurar sobre os quatro
Evangelhos que iria dizer a verdade. Segundo Peña esse juramento era o
seguinte:

“Juro por Deus e a Cruz, pelos Santos Evangelhos, que toco com minha mão, dizer a verdade
Que Deus me ajude se mantiver meu juramento e que me castigue se eu quebrá-lo.”

Ainda segundo os autores de manual, a principal arma nos interrogatórios


era a malícia, pois o réu usava vários truques para manipular as respostas e
não fazer aquilo que o inquisidor pedia. Eram esses truques: responder de
maneira ambígua; responder colocando condições; inverter a pergunta; se
fingir de surpreso diante das colocações do inquisidor; mudar as palavras das
perguntas; fingir debilidade física ou simular demência para fugir das perguntas
ou da tortura e simular ares de santidade.
Para fugir dessas artimanhas, o inquisidor deveria usar de muita malícia e
sagacidade e reverter sempre às perguntas, colocando o réu em situações
embaraçosas, onde acabaria confessando. Alguns dos truques utilizados pelo
inquisidor poderiam ser: colocar para conversar com o suspeito pessoas
íntegras, familiares ou antigos cúmplices convertidos, ou ainda ler os
depoimentos de testemunhas e os autos do processo (com algumas
modificações), mas não era recomendado falar os nomes das testemunhas,
pois, se caso acontecesse algo com elas, poderia inibir futuras denúncias de
outros.
Se através das perguntas a réu não confessasse, era submetido às
torturas, já que a confissão era mais importante do que qualquer prova.
Segundo os inquisidores as provas da heresia ficavam no cérebro e assim, só
quando o herege falava era que se provava. O inquisidor Luiz Roberto Lopes
(História da Inquisição, pág.38) afirmou que seria melhor se, além da
confissão houvesse o arrependimento e a denúncia de cúmplices, pois o réu
tornava-se um colaborador da Igreja.
Para os escritores do manual havia cinco obstáculos que impediam a
rapidez de um processo. O primeiro era o grande número de testemunhas,
como já foi dito bastavam apenas duas; segundo era a participação da defesa,
um advogado só servia para instruir o réu se a se arrepender e pedir uma pena
para o crime confessado. Esse defensor teria que ser um homem justo que
tivesse experiência com direito jurídico e econômico. O terceiro era a
destituição do inquisidor, que era feita quando havia suspeita contra ele. Para
os inquisidores Peña e Eymerich aceitar essa recusa enriqueceria o tribunal. O
quarto obstáculo é a apelação para anulação do processo, esta poderia ser
feita até para o Papa. Durante o tempo que o processo de anulação correr, as
sessões de torturas deveriam cessar. O quinto era a possível fuga do réu, e
nesse caso, ele já era acusado a morte e poderia ser executado por qualquer
pessoa.
Após todo o processo havia os veredictos dados a cada caso. Quando o
réu não confessava e não ficasse provada a denúncia de heresia, era feito a
absolvição através de um documento entregue ao antigo suspeito. Eymerich
deixa bem claro que deveria dizer que nada era provado, assim se houvesse
outra suspeita não haveria problema para a sentença. Se, no fim do processo o
Tribunal acreditasse que o réu foi apenas caluniado, sem provas e sem a
confissão, ele não era nem condenado nem absolvido. Ele era sentenciado à
purgação, num dia marcado o acusado teria que jurar não acreditar nas
heresias e ter pessoas que jurassem acreditar nele.
Outro veredicto era levar o acusado à tortura, se confessasse durante a
sessão, era perguntado novamente durante o auto-de-fé para a confissão ser
válida, já que a pessoa poderia confessar para fugir da flagelação. Para o
historiador Jeffrey Richards, (Sexo, Desvio e Danação – as minorias na
Idade Média, pág. 66) quando Inocêncio IV oficializou a Inquisição, só a
autorizava em caso de não haver morte ou derramamento de sangue, isso
claramente era falácia.
Se a suspeita fosse apenas leve ou grave o réu teria que abjurar, passaria
algum tempo na prisão e teria que ir às missas aos domingos deixando um círio
aceso nos degraus. Após abjurar, o suspeito não poderia ser acusado
novamente, se acontecesse iria direto ao julgamento do braço secular. Caso a
suspeita fosse violenta (e não fosse um relapso) o veredicto seria a prisão
perpétua.
Em todos os casos de hereges relapsos, era de imediato entregues ao
braço secular. Se alguém fosse condenado após a morte, sofria mesmo assim
com as penas, como o caso do herege John Wyclif que Jeffrey Richards
relatou; Wyclif morreu em 1384 ainda em comunhão com a Igreja, mas em
1411 foi condenado de heresia, anos após seu corpo foi exumado e queimado
e as cinzas foram espalhadas.
Nos autos-de-fé participavam toda a corte e a população. A escritora Anita
Novinsky (A Inquisição, pág.67) assim descreveu a cerimônia:

“Nas primeiras horas da manhã reuniam-se novamente os condenados nas suas celas, eram
vestidos com os sambenitos. Formavam a procissão. No lugar dos presos que haviam fugido
ou morrido, erguiam-se suas efígies, que eram queimadas na frente do povo para que seus
filhos carregassem a marca da vergonha”

Os hereges que abjurassem tinham que usar sempre um “hábito”, roupa


conhecida por sambenito ou saco bendito que era uma forma de marcar os
hereges. Na Inquisição Ibérica a cor dessa vestimenta variava de acorda com a
heresia, e após a morte do herege a roupa era colocada no alto de uma Igreja
paroquial, para que ficasse marcado na memória de todos e causasse ainda
mais vergonha nos familiares.

Para divulgar as sentenças e aplicar as punições todos eram convocados


para um sermão, depois era feito a leitura dos processos e ao final o inquisidor
dava dez ou vinte dias de indulgências para todos que estavam no local e três
anos para os que colaborassem no caso da abjuração do réu.
Essas práticas foram utilizadas em um período onde o cristianismo era ao
mesmo tempo fator de união e de dominação do povo por parte dos clérigos.
Todos os autores citados defendem que esta Instituição foi criada para afirmar
o poder papal e mostrar a influência que este tinha sob a monarquia. Apesar de
ter sido dominada pelo papa, a Inquisição Medieval teve o apóio de todos os
reis e em todos estados onde atuava, tinha a permissão dos soberanos. Os
métodos descritos foram usados por todo o período medieval e no começo da
Idade Moderna, na península Ibérica, onde o espírito de intolerância e a
procura por mais poder continuou.

FONTE
Eymerich, Nicolau. Manual dos Inquisidores. Revisado por Francisco de La
Peña. Prefácio de Leonardo Boff. Rio de Janeiro: 1993

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LOPEZ, Luiz Roberto. História da Inquisição. Porto Alegre, Mercado Aberto: 1993
NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisição. Editora brasiliense: 1990
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvios e Danação - As minorias na Idade
Média. Jorge Zahar Editor, 1993

Disponível em
http://www.congressohistoriajatai.org/anais2009/doc%20(33).pdf

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