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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 13: 17-21 NOV.

1999

O TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO DA INQUISIÇÃO:


O SUSPEITO É O CULPADO1

Lana Lage da Gama Lima


Universidade Estadual do Norte Fluminense

RESUMO
Autoridade máxima do Tribunal do Santo Ofício, o inquisidor acumulava as funções de investigador e juiz,
encerrando em suas mãos um enorme poder. Os estudos sobre o processo inquisitorial têm ressaltado que o
arbítrio do juiz era muito mais amplo nesta justiça do que noutras de sua época, devido ao grande número de
questões subjetivas, não resolvidas normativamente ou tratadas de forma ambígua pela legislação. Este
trabalho apresenta uma análise do papel do inquisidor, suas atribuições e prerrogativas, em um tribunal que
sempre primou por orientar seus processos no sentido de confirmar suas suspeitas iniciais e culpabilizar o
réu.
PALAVRAS-CHAVE: Inquisição portuguesa; inquisidores; atribuições legais; investigações criminais;
produção de verdades no espaço público.

Parece-me fundamental ressaltar aspectos da espécie de tácita presunção de culpabilidade da-


legislação e das práticas processuais do Tribunal quele contra quem existam indícios de conduta
do Santo Ofício Português, no intuito de caracte- delituosa” (TOMÁS Y VALIENTE, 1980, p. 57-
rizá-lo como uma justiça que oferecia aos réus 8).
chances mínimas de defesa, transformando assim,
Em outras justiças, após a acusação formal, o
via de regra, suspeitos em culpados.
réu tinha acesso aos traslados dos autos onde
Dentre as peculiaridades que tornavam os tri- constavam os nomes dos depoentes e os delitos
bunais do Santo Oficio mais temidos do que quais- de que era acusado. No Santo Ofício isso nunca
quer outros de seu tempo, tem sido destacada a acontecia, pois não havia praticamente diferença
não distinção entre a fase de instrução e a fase entre a primeira e a segunda fase, sendo o processo
probatória. O processo iniciava-se desde que se permanentemente alimentado com a inclusão de
faziam as primeiras diligências para averiguação novas acusações, permanecendo os autos em
da culpa, podendo o acusado ser submetido à pri- segredo até o final.
são preventiva, com ou sem seqüestro de bens,
Outra característica marcante do processo
assim que se acumulavam indícios contra ele, por-
inquisitorial era a reiterada busca da auto-acusa-
tanto antes de qualquer acusação formal.
ção do réu, expressada na pregação constante para
Sobre a culpabilização do réu nos tribunais in- que confessasse suas culpas e no uso da tortura
quisitoriais afirma Tomás y Valiente: “O processo como forma de extrair confissões. Não se pode
é orientado para comprovar a veracidade de umas esquecer de que esse estilo de processo de origem
suspeitas iniciais. À margem de qualquer declara- romana, conhecido por inquisitio, elevou a con-
ção de princípios, o funcionamento do processo fissão à categoria de “rainha das provas”.
inquisitorial parece dirigir-se a comprovar uma
Por outro lado, como explica Edward Peters,
“uma vez que a confissão se tornara essencial para
1 Comunicação apresentada na 21ª reunião anual da Asso- o próprio julgamento, os métodos utilizados para
ciação Brasileira de Antropologia, grupo de trabalho “Pro- a obter tinham que ser considerados como fazendo
cessos institucionais de administração de conflitos e pro- parte do processo jurídico [...]” (PETERS, s/d, p.
dução de verdades no espaço público: mediações formais
62). Daí a tortura do réu “pelo crime não estar
e informais”, sessão “Produção de verdades, mediações e
administração de conflitos no espaço público”.
provado ou pelas diminuições de sua confissão”

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 13: p. 17-21, nov. 1999


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O TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO DA INQUISIÇÃO: O SUSPEITO É O CULPADO

(SANTO OFÍCIO, 1640, Livro II, Título XIII, Santo Ofício na Espanha, a chamada “tábua” de
parágrafo XIII), estar prevista nos regimentos da Pedro Berruguete (c. 1450-1503), mostra São Do-
Inquisição, bem como as regras para sua aplica- mingos (1170-1221) como inquisidor. Trata-se de
ção (Idem, Título XIV). uma representação anacrônica, em que o santo
aparece presidindo uma cerimônia de auto-de-fé
No Santo Ofício, o peso concedido à confis-
nos moldes característicos do século XV, com o
são era ainda maior do que em outras justiças ba-
objetivo evidente de legitimar a implantação do
seadas na inquisitio pois, embora fazendo parte
tribunal, de origem medieval, na Espanha. A figura
de um processo judiciário, a confissão “mantinha
do santo/inquisidor destaca-se por sua posição
sua conotação sagrada, continuando a ser meio
central no quadro e por seu tamanho, despro-
de salvação da alma [...].” Daí a insistência leva-
porcional em relação aos outros personagens,
da até o último momento, muitas vezes à beira da
indicação inequívoca, pelos códigos pictóricos da
fogueira, para que o réu confessasse (LIMA, 1986,
época, de sua importância.
pp. 73-77).
O modelo concebido para o inquisidor se ins-
Finalmente, a quarta peculiaridade do proces-
pira nos do pai e do sacerdote. Cabe a ele, além
so inquisitorial, apontada por Tomás y Valiente,
de punir, consolar e animar os réus, fazendo ad-
diz respeito à amplitude do arbítrio do juiz, muito
moestações “com boas palavras” para que con-
maior nos tribunais da Inquisição do que nas outras
fessem e peçam perdão por suas culpas (SANTO
justiças suas contemporâneas, fato devido à
OFÍCIO, 1552, cap. 26). Recomenda-se aos
existência de um grande número de questões não
inquisidores que percorram os cárceres ao menos
resolvidas normativamente ou tratadas com
de quinze em quinze dias e sempre que necessá-
ambigüidade pela legislação que orientava as suas
rio, para ouvirem os presos acerca de suas neces-
ações. É sobre essa questão que tratarei neste
sidades e provê-las, procurando saber se sofrem
trabalho: o papel atribuído ao inquisidor no Santo
algum mal tratamento (id., cap. 30). Há também
Ofício.
recomendações explícitas para que não “escanda-
Do ponto de vista jurídico, uma das conse- lizem com suas palavras aos presos nem a outras
qüências da larga margem de arbítrio pessoal con- pessoas que requeiram sua justiça” (id., cap. 32).
cedida ao inquisidor era a variação do ritmo pro- Devem representar não a justiça implacável, que
cessual, apontada por Tomás y Valiente como na prática caracterizava a ação do tribunal, mas
quinta peculiaridade do processo inquisitorial. Em uma justiça misericordiosa, que se condói da sor-
sua essência, o Santo Ofício não era uma justiça te do réu e lamenta ter que puni-lo para sua pró-
rápida nem lenta, dependendo inteiramente do pria salvação.
arbítrio do inquisidor. Nos processos que exami-
Várias situações previstas no regimento evi-
nei — todos dizendo respeito ao mesmo tipo de
denciam o grande espaço concedido às decisões
delito: a solicitação de mulheres para “atos tor-
pessoais do inquisidor. Apesar de proibir a prisão
pes” por parte de clérigos durante a confissão sa-
de alguém denunciado por uma única testemunha,
cramental — o tempo de duração variou de um
faculta aos inquisidores ordenar tal procedimento
mês a dois anos, com exceção de um caso em que
se lhes parecer conveniente (id., cap. 24). Se du-
o solicitante foi condenado em apenas treze dias
rante o processo os acusados viessem com apela-
no terceiro processo em que foi réu.
ções e suspeições, permite-se que os inquisidores
A figura do inquisidor se delineia desde o pri- não as recebam se as acharem “frívolas”, proce-
meiro Regimento do Santo Ofício português dendo na causa “em diante como lhes parecer jus-
(1552) como emblemática da própria instituição, tiça”. Somente se as julgassem procedentes devi-
cujo lema, gravado em seus estandartes, era “mi- am enviá-las ao Inquisidor Geral ou ao Conselho
sericórdia e justiça”. da Inquisição (id. Cap. 33).
Os escolhidos deviam ser: “letrados, de boa A justiça inquisitorial admitia que os presos
consciência, prudentes, constantes, e os mais altos tivessem advogados ou procuradores para suas
e idôneos que se puderem haver, cuja vida e causas. Mas, apesar de serem indicados pelo
honesta conversação dê exemplo de sua pureza e próprio tribunal, eles também não tinham acesso
bondade [...]” (SANTO OFÍCIO, 1552. cap. 1). aos autos completos, e sim à versão vaga, usada
também no libelo acusatório e na prova de justiça,
É interessante lembrar que a imagem consi-
em que o nome dos denunciantes ou das vítimas,
derada fundadora da iconografia laudatória do

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e as circunstâncias (local, data, ocasião) que per- um funcionário do tribunal, que tem, por exem-
mitissem identificar exatamente o delito de que o plo, horário estabelecido regimentalmente. Tive
réu era acusado, não apareciam, substituídos por ocasião de encontrar em alguns processos anota-
fórmulas do tipo: “havera 14 para 15 anos se achou ções informando que a sessão de interrogatório
em certo lugar aonde ouvindo de confissão sacra- havia sido interrompida por ser “dada a hora”.
mental a certa pessoa do sexo feminino lhe disse Trabalhavam os inquisidores todos os dias que não
no mesmo ato da confissão que lhe queria muito fossem “de guarda”, isto é, feriados religiosos. De
[...]” (ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO quinze de março a quinze de setembro, de sete às
TOMBO, Inquisição de Lisboa, cód. 5175). dez da manhã. Havia um intervalo para a refeição
e voltavam às quinze, permanecendo até as de-
A sabida ineficácia de tais defensores levava
zoito horas. De quinze de setembro a quinze de
muitos réus a dispensá-los, mas nesse caso, o in-
março (meses de inverno) o horário era corrigido
quisidor podia indicá-los à revelia do acusado, se
em função da claridade, começavam o trabalho
julgasse “que é o negócio de qualidade para lhe
às oito e iam até às onze; retornavam às quatorze,
ser dado” (SANTO OFÍCIO, 1552, cap. 39).
permanecendo até as dezessete (id., cap. 72).
Portanto, ao inquisidor cabia tomar decisões arbi-
trárias que podiam prejudicar ou, ao menos teori- O Santo Ofício português teve, ao longo de
camente, beneficiar o réu. sua história quatro regimentos gerais (1552, 1613,
1640 e 1774), que refletiram conjunturas diversas.
Era atribuição do inquisidor geral julgar as
O de 1640 é o mais completo, demonstrando a
petições para comutação das penas. Nesses casos
consolidação da estrutura inquisitorial. O de 1774
devia considerar “quanto tempo há que [o réu]
foi fruto da intervenção do Marquês de Pombal,
cumpre sua penitência e com que humildade e si-
que instituiu mudanças radicais, descaracterizando
nais de contrição” (id., cap. 62). Assim, ter a pena
a Inquisição e transformando-a em tribunal régio,
atenuada dependia de fatores subjetivos interpre-
totalmente submetido aos interesses da Coroa.
tados pelo inquisidor. Não se pode esquecer de
que nos tribunais da Inquisição os delitos são O Regimento de 1640 é organizado em livros
também pecados e o julgamento das causas é in- e títulos. O livro I é dedicado justamente aos mi-
fluenciado diretamente pelo grau de arrepen- nistros e oficiais do Santo Ofício e às “coisas que
dimento demonstrado pelo réu. nele há de haver”. O perfil das autoridades inqui-
sitoriais é delineado de forma muito mais minucio-
Os inquisidores decidiam muitas questões a
sa do que no regimento de 1552. Além das gené-
partir de julgamentos pessoais, sem nenhuma regra
ricas condições morais exigidas anteriormente,
que garantisse a igualdade no tratamento dispen-
enumeram-se outras, que refletem a experiência
sado aos presos. Podiam, por exemplo, permitir
da ação inquisitorial na sociedade portuguesa du-
àqueles que necessitassem, deixar o cárcere para
rante praticamente um século: “serão naturais do
negociar algum bem de modo a garantir seu
Reino, cristãos velhos de limpo sangue, sem raça
sustento (é bom lembrar que as custas do processo
de mouro, judeu, ou gente novamente convertida
eram debitadas do réu). Essa dispensa era conce-
a nossa Santa Fé, e sem fama em contrário; que
dida pelo Inquisidor “como e quando lhe parecer
não tenham incorrido em alguma infâmia pública
ser serviço de Nosso Senhor” (id., cap. 64). Aliás,
de feito, ou de direito, nem fossem presos, ou peni-
o regimento determina que os inquisidores devem
tenciados pela Inquisição, nem sejam descenden-
cumprir seu ofício “sem consideração de outro
tes de pessoas que tivessem algum dos defeitos
respeito humano senão servirem a Nosso Senhor”
sobreditos: serão de boa vida e costumes, capazes
(id., cap. 66), fórmula que submete todos os
para se lhes encarregar qualquer negócio de im-
direitos dos homens aos interesses da Igreja. Vale
portância e de segredo [...]” (SANTO OFÍCIO,
lembrar que, ao se instalar em um território, o tri-
1640, Livro I, Título I, parágrafo II).
bunal do Santo Ofício obtinha jurisdição univer-
sal sobre todos os cristãos que ali estivessem, inde- É bom marcar que continua nesse regimento a
pendentemente de quaisquer privilégios de foro proibição de que haja parentesco entre os funcio-
que sua condição social implicasse, incluindo a nários que sirvam num mesmo tribunal (SANTO
nacionalidade. OFÍCIO, 1552, cap. 4; SANTO OFÍCIO, 1640,
Livro I, Título I, parágrafo III), evidentemente
É interessante notar que apesar de todo esse
como forma de impedir algum tipo de proteção
poder e da extensão de seu arbítrio, o inquisidor é
ou cumplicidade que atrapalhe a aplicação da jus-

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tiça. contrário, e procurarão quanto for possível não


contrair dívidas que possam causar queixas ou
No título I do primeiro livro recomenda-se a
diminuir a autoridade que a suas pessoas e ofícios
obediência ao regimento por todos os funcionários
é devida” (id., ibid.).
e também a obediência às ordens dos inquisidores,
cujo comportamento é alvo de cuidados detalha- A menção aos “negócios” com “gente de na-
dos, ao contrário do que ocorre com o primeiro ção” é mais um sinal das práticas de extorsão
regimento, que se limita a enunciar algumas quali- levadas a efeito pelas autoridades eclesiásticas e
dades requeridas para o exercício do cargo: “Pro- inquisotoriais contra os cristãos-novos, que mui-
cederão em tudo de maneira que dêem de si bom tas e muitas vezes pagaram para garantir alguns
exemplo; tratar-se-ão com a modéstia e decência direitos ou salvar suas vidas. Esses mecanismos
conveniente ao seu estado; não farão agravo ou são fartamente conhecidos dos historiadores e
vexação a pessoa alguma com o poder de seus envolviam desde os mais baixos funcionários até
ofícios, ou com pretexto dos privilégios que go- o papado. A própria implantação do tribunal em
zam, nem consentirão que a façam seus familia- Portugal foi acompanhada por negociações que
res ou criados” (id., ibid., parágrafo VIII). retardaram o processo à custa de muito ouro reco-
lhido aos cofres do Vaticano.
Pode-se perceber por trás dessa recomenda-
ção uma longa história de exações e abusos de A determinação dos horários de trabalho dos
autoridade por parte dos ministros do Santo Ofí- inquisidores é mantida no regimento de 1640
cio, de suas famílias e mesmo de seus criados, (Livro I, Título I, parágrafo XI), atestando a
evidenciando o grande poder que foram acumu- estrutura burocrática dos tribunais. Como aponta
lando na sociedade portuguesa, marcada pela Bernard Vincent, a Inquisição Ibérica “funciona-
hierarquização estamental característica do Anti- rizou” inclusive sua prisão, regulamentando mi-
go Regime2. A tentativa de coibir abusos se ma- nuciosamente a ação do pessoal envolvido com a
nifesta ainda na seguinte admoestação: “Fala- carceragem, constituindo uma máquina de con-
rão com tal advertência na gente de nação [judeus trole que punha em prática mecanismos marca-
e cristãos-novos], que nunca deles se possa cui- dos pela modernidade (VINCENT, 1983, p. 89)3.
dar que o ódio de que todos devem ter ao delito se Não se pode esquecer que, paralelamente, proce-
estende também às pessoas, que antes se compa- dia-se na Europa ocidental à montagem das estru-
decerão quanto é justo das fraquezas daqueles que turas burocráticas que viabilizaram os Estados
cometerem culpas contra nossa santa fé” (SAN- Modernos4.
TO OFÍCIO, 1640, Livro I, Título I, parágrafo
O aumento do poder interno do inquisidor é
VIII).
atestado pelas recomendações relativas à Câmara
A constituição, ao longo do tempo, de um ter- do Secreto, onde se guardavam os papéis da Inqui-
reno fértil para a corrupção nos tribunais inquisi- sição. Enquanto o Regimento de 1552 permitia
toriais, bem como as práticas de suborno mais que os dois notários e o procurador que guardavam
comuns, são evidenciadas nas outras determina- as três chaves que abriam simultaneamente suas
ções do mesmo parágrafo: “Não terão trato ou portas tivessem acesso aos documentos, desde que
comunicação particular com pessoas de suspeita, estivessem os três presentes, o Regimento de 1640
que tenham ou possam ter negócios no Santo determina que a Câmara só se abra na presença
Ofício, nem delas se servirão, nem aceitarão dádi- de um inquisidor (SANTO OFÍCIO, 1552, cap.
vas ou presentes, ainda que sejam de pouca valia, 82; SANTO OFÍCIO, 1640, Livro I, título II,
nem a título de compra tomarão mercadorias ou parágrafo IV).
mantimentos a pessoa alguma por menos do preço
O terceiro título do livro I trata exclusivamen-
ordinário, nem pedirão emprestado a gente de na-
ção, pelos inconvenientes que podem resultar do
3 Sobre essa questão ver também FOUCAULT, 1977.

4 Segundo José Mattoso: “Os primórdios do E stado Mo-


2 Bartolomé Bennassar realizou interessante estudo sobre derno só se iniciam quando se despersonaliza o exercício
o papel das prerrogativas sociais concedidas aos funcio- do poder, se uniformizam os direitos e deveres dos súdi-
nários do Santo Ofício espanhol nas disputas entre clãs tos, e se põe em prática um direito público baseado em
na Andaluzia, destacando-se o privilégio de foro princípios universais”. Ver “Condicionantes básicos”, em
(BE NNASSAR, 1976). MATTOSO, 1993, p. 371.

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te dos inquisidores. Além das qualidades reque- Não estamos mais diante do modelo de pai ou
ridas para todos os funcionários do Santo Ofício, sacerdote, mas de um funcionário modelo, um
apontadas no primeiro título, exigem-se para o profissional com conhecimentos específicos
inquisidor outras, que delineiam seu perfil profis- adequados à sua função, que deveria comportar-
sional propriamente dito: “É necessário que se- se de maneira impessoal no exercício de seus
jam licenciados por exame privado em alguma das deveres e ater-se ao âmbito de seus direitos.
Faculdades de Teologia, Cânones ou Leis, e que
No entanto, as próprias recomendações no sen-
tenham ao menos trinta anos de idade, pessoas
tido de coibir os abusos demonstram que o poder
nobres, clérigos de ordens sacras, e que primeiro
decorrente do cargo ainda extrapolava em muito
hajam servido no cargo de deputado, e nele te-
os limites do tribunal, espraiando-se pela socie-
nham dado mostras de prudência, letras e virtude,
dade como um todo. A profissionalização não di-
assim para saberem resolver e decidir as causas
minuiu as amplas prerrogativas sociais do inqui-
que hão de julgar, como também para nelas se
sidor, e sua margem de arbítrio pessoal durante o
haverem com grande inteireza e igualmente livres
processo permanecia grande. Na verdade, a di-
de toda paixão e respeitos que costumam pertur-
mensão simbólica de que se revestia o combate à
bar o ânimo dos juízes, de maneira que nem o fa-
heresia no imaginário popular, alimentado pelos
vor e piedade cheguem a ofender a justiça, nem o
espetáculos públicos dos autos-de-fé, fazia do
rigor exceda os termos da temperança, e sobretu-
inquisidor mais do que um funcionário graduado
do serão pessoas de tal procedimento e de tanta
do tribunal, transformava-o num representante da
autoridade, que com ela possam bem corresponder
justiça divina.
ao muito que deles confiamos” (id., parágrafo I).
Recebido para publicação em novembro de 1998.

Lana Lage da Gama Lima é Professora Titular de História da Universidade Estadual do Norte Fluminense
(UENF).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A. 1906. A Inquisição em Portugal e no Bra-
FOUCAULT, M. 1977. Vigiar e punir. História sil. Lisboa : s/ed.
da violência nas prisões. Petrópolis : Vozes.
TOMÁS Y VALIENTE, F. 1980. Relaciones de
LIMA, L. L. da G. 1986. Aprisionando o desejo : la Inquisición con el aparato institucional del
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(org.). História e sexualidade no Brasil. Rio Inquisición Española. Nueva visión, nuevos
de Janeiro : Graal. horizontes. Madrid : Siglo XXI.
MATTOSO, J. 1993. História de Portugal. Lis- VINCENT, B. 1983. Un espace d’exclusions : la
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problèmes d’exclusions en Espagne (XVI-XVII
PETERS, E. s/d. História da Inquisição. Lisboa:
siècles). Ideologie et discours. Paris : Publica-
Teorema.
tions de la Sorbonne.

OUTRAS FONTES

ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOM-


BO, Inquisição de Lisboa.

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