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3.1
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“É melhor ser considerado ruim, do que culpar um inocente”.
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“A prova cabe (incumbe) a quem afirma, não a quem nega”.
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“Ao que afirma, não ao que nega, cabe (incumbe) a prova”.
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“(Se) o autor não prova, o réu é absolvido”. (Traduções nossas)
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frente aos seus excessos. Tudo funcionava como se fosse uma via de mão única:
ao Estado, total liberdade para fazer o que bem entendesse, enquanto ao imputado
o que lhe restava era curvar-se pacificamente diante da realidade colocada à sua
frente, sendo aceitável naquela época até mesmo a prisão para tortura, segregação
a qual era utilizada para obtenção da “confissão, para revelar nomes de cúmplices
ou, ainda, em eventual contradição” (BENTO, 2007, p. 33).
Durante o período da Inquisição o processo penal era escrito, secreto e
sem contraditório, e o imputado, desde o início, era pelo Estado-Juiz tratado como
se culpado fosse (presunção de culpabilidade). Como observou Ricardo Alves
Bento (2007, p. 32) “esse procedimento de se presumir, mesmo antes da instrução,
que o cidadão é considerado culpado, é uma das principais características da
Inquisição”.
Insurgindo-se contra os postulados de um processo penal de base
inquisitorial, contra os abusos ao direito de liberdade do cidadão até então
praticados pelo poder estatal, em fins do século XVIII, precisamente em 1789,
momento em que a Europa se viu tomada pelos ideais iluministas, o Estado
francês, por sua Assembléia Constituinte, elaborou a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, aprovada em 26 de agosto de 1789. Essa declaração,
repelindo o tratamento de culpado que fora até então dispensado a todos os
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Em oposição a tal entedimento, dizia Manzini que a “[...] finalidade específica do processo penal
é a de conseguir a realização da pretensão punitiva derivada de um delito, através da utilização da
garantia jurisdicional, ou seja, a de obter, mediante a intervenção do juiz, a declaração de certeza,
positiva ou negativa, do fundamento da pretensão punitiva derivada de um delito, que faz valer
pelo Estado o Ministério Público (o pretor em função do ministério público)” (Tradução nossa).
“[...] la finalidad específica del proceso penal es la de conseguir la realizabilidad de la pretensíón
punitiva derivada de un delito através de la utilización de la garantia jurisdiccional, o sea, la de
obtener, mediante la intervención del juez, la declaración de certeza, positiva o negativa, del
fundamento de la pretensíón punitiva derivada de un delito, que hace valer por el Estado el
ministério público (o el pretor en función de ministério público)” (MANZINI, 1951, p. 247-248).
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A Escola Clássica surgiu no final do século XVIII e, baseando-se nos postulados iluministas,
defendia um Estado Democrático Liberal, de total proteção aos direitos individuais em oposição ao
absolutismo, à tortura e ao processo penal inquisitorial.
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não deveria ser presumido nem culpado, nem inocente, mas imputado, e mais,
exigia a prisão preventiva compulsória e generalizada para os crimes mais graves,
enquanto o segundo aderia a modelos de justiça sumária e substancial além das
provas de culpabilidade.
Todavia, o ataque mais incisivo aos pensamentos da Escola Clássica
partiu de Vincenzo Manzini, expoente da Escola Técnico-Jurídica, que
estigmatizou a presunção de inocência de estranho absurdo extraído do empirismo
francês. Para Manzini (1951), seria incompatível a presunção de inocência com
qualquer tipo de procedimento criminal, sobretudo àqueles que afetam
diretamente o direito de liberdade do cidadão sem que exista em seu desfavor uma
sentença definitiva, tais como a prisão cautelar e a prisão em flagrante, porque se
para a instauração de um processo e ou aplicação de qualquer medida segregadora
faz-se preciso indícios suficientes de autoria e prova da existência do crime, logo,
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A Escola Positivista apresentava como fundamento oposição ao liberalismo, defendendo o
desenvolvimento das ciências positivas do século XIX, calcado no conhecimento racional,
dogmático, acreditando ser a razão a fonte principal do conhecimento. Buscavam os positivistas as
causas dos fenômenos, e contrariando os clássicos, negavam a liberdade de escolha, a liberdade de
ação, firmando-se no determinismo que resultava dos fatores biológicos, físicos e sociais.
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“Pretendia o resgate do Direito Penal como ciência jurídica, sob bases eminentemente jurídicas,
livre de outras ciências sociais, dos fatores antropológicos, sociológicos, e até jusnaturalista.
Resgata-se também a responsabilidade penal, que passa a ser avaliada no centro da vontade
humana em agir contrariamente à lei, com critérios de exclusão da culpabilidade, graus de
agravamento e diminuição. O delito é definido como conduta típica, antijurídica e culpável”
(VARALDA, 2007, p.23).
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“Si se presume la inocencia del imputado, pregunta el buen sentido, ¿ por qué entonces proceder
contra el?” (MANZINI, 1951, p. 254).
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No Brasil, dentre os adeptos de tal posicionamento podemos citar Paulo Rangel (2006, p. 23):
“Ousamos, aqui, mais uma vez, divergir de parte da doutrina. Primeiro, não adotamos a
terminologia presunção de inocência, pois, se o réu não pode ser considerado culpado até o trânsito
em julgado da sentença penal condenatória, também não pode ser presumidamente inocente”.
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[...] sagrado e inviolable sin duda el derecho de defensa, cierto y indiscutible el principio de que
al imputado no se le puede considerar culpable antes de la sentencia irrevocable de condena; pero
que se lo haya de conceptuar inocente mientras se procede contra él por serle imputado el delito, es
una tal enormidad, una tan patente inversión del sentido lógico y jurídico, que no se puede admitir
ni aun como forma retórica. Mientras hay un procedimiento en curso, no hay ni culpable ni
inocente, sino unicamente indiciado: solo en el momento en que recaiga en la sentencia, se sabra si
el indiciado es culpable o inocente (LEONE, 1963, p. 464).
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3.2
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Para Celso Ribeiro Bastos (1998, p. 153-154), “[...] os princípios constitucionais são aqueles que
guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Isto só é possível na medida em que estes não
objetivam regular situações específicas, mas sim desejam lançar a sua força sobre todo o mundo
jurídico [...] Em resumo, são os princípios constitucionais aqueles valores albergados pelo Texto
Maior a fim de dar sistematização ao documento constitucional, de servir como critério de
interpretação e finalmente, o que é mais importante, espraiar os seus valores, pulverizá-los sobre
todo o mundo jurídico”.
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estão pelas penas arbitrárias, fazendo com que a presunção de inocência não
seja apenas uma garantia de liberdade e de verdade, senão também uma
garantia de segurança (ou de defesa social), enquanto segurança oferecida pelo
Estado de Direito e que se expressa na confiança dos cidadãos na Justiça. É
uma defesa que se oferece ao arbítrio punitivo (LOPES JR., 2005, p. 181).
[...] nada justifica que alguém, simplesmente pela hediondez do fato que se lhe
imputa, deixe de merecer o tratamento que sua dignidade de pessoa humana
exige. Nem mesmo sua condenação definitiva o excluirá do rol dos seres
humanos, ainda que em termos práticos isso nem sempre se mostre assim.
Qualquer distinção, portanto, que se pretenda fazer em razão da natureza do
crime imputado a alguém inocente contraria o princípio da isonomia, pois a
Constituição Federal não distingue entre mais-inocente e menos-inocente. O
que deve contar não é o interesse da sociedade, que tem na Constituição
Federal, que prioriza o ser humano, o devido tratamento, mas o respeito à
dignidade do ser humano, qualquer que seja o crime que lhe é imputado
(SUANNES, 1999, p. 232).
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[...] la formulación tradicional del principio, se impone una exigencia normativa que requiere
que toda persona sea considerada inocente hasta tanto no se obtenga el pronunciamiento de una
sentencia condenatoria firme que destruya el estado jurídico de inocencia que el ordenamiento
jurídico reconoce a todos los seres humanos (BOVINO, 1998, p. 317).
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[...] aquí las reglas e los principios serán resumidos bajo el concepto de norma. Tanto las reglas
como los principios son normas porque ambos dicen lo que deve ser. Ambos pueden ser
formulados con la ayuda de las expresiones deónticas básicas del mandato, la permisión y la
prohibición. Los principios, al igual a las reglas, son razones para juicios concretos de deber ser,
aun cuando sean razones de un tipo muy diferente. La distinción entre reglas y principios es pues
una distinción entre dos tipos de normas (ALEXY, 2002, p. 83).
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devido processo penal há de ser estruturado sobre “as bases democráticas que a
consciência coletiva ergueu na Constituição de 1988, o que implica e exige uma
releitura do ainda vigente Código de Processo Penal, de tal modo que a sua
interpretação se dê à luz das normas constitucionais” (OLIVEIRA, 2007, p. 24).
A seguir, nos dois próximos capítulos, buscaremos fazer algumas
abordagens no sentido de demonstrar que não há incompatibilidade entre a
presunção de inocência e a prisão preventiva quando esta última é utilizada como
instrumento de garantia de efetividade do processo, assim como a medida cautelar
decretada para garantia da ordem pública afigura-se inconstitucional, por
apresentar caracteres de uma medida utilitária, violando não só os ideais do
Estado Democrático de Direito e o princípio da presunção de inocência, como
também os direitos humanos fundamentais, o que, ao final, contraria todas as
bases de um sistema processual penal garantista.
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