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A GÊNESE DA DELAÇÃO PREMIADA


NO BRASIL: PROCESSO 1267, FILIPA
DE SOUZA – A MENTALIDADE
INQUISITÓRIA NA RAIZ DA
LGBTFOBIA
Alexandre Melo4

O presente artigo tem como premissa o reconhecimento do


instituto de delação premiada nos Tribunais do Santo Ofício, tendo como
fundamento base o Processo 1267, que culminou na condenação da ré
Filipa de Souza, sentenciada pelo Tribunais do Santo Ofício na Santa
Inquisição, após a delação premiada produzida por Paula Siqueira, marco
da primeira persecução penal transcorrido em 18 de dezembro de 1591,
em Salvador, Bahia, sob denúncia da prática delitiva do crime do pecado
nefando da sodomia feminina. Traçaremos rota para Tribunais do Santo
Ofício, o surgimento no Brasil do Instituto de Delação Premiada, embora
já conhecido e ora legitimado pela exegese da Lei n.º 12.850/2013,
ancorada no processo penal brasileiro, Lei das Organizações Criminosas,
um instituto de decisão exclusiva do juiz que, constatando a colaboração
real, voluntária e autêntica do acusado, concede-lhe benefício que se
espelha no cumprimento de sua pena. Não se destitui a participação do
Ministério Público, visto que não é, exatamente, um acordo entre as
partes de um processo penal, perfazendo-se como instituto de direito
material, compacto na permissão do benefício por autoridade judicial, por
intermédio do provimento dos requisitos legais para tanto.
O correlato entre o acordo de não persecução penal (ANPP) e a delação
premiada está na autoincriminação do imputado, que consta a confissão
formal e circunstancial da autoria e a materialidade do crime ora praticado,
sendo incorporado precisamente no direito brasileiro pela Lei n.º 13.964,
de 24 de dezembro de 2019, substituindo o art. 18, da Resolução n.º 181,
de 7 de agosto de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, que
constituiu a primeira regulamentação acerca do tema.
4 Bacharelando em Direito pela Uninassau, Lauro de Freitas. Tata Riá Nganga a
Nkisi, Tat’etu ia mukixi, Nzo Mukumbi Kongo Kaiala.
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24 | Alexandre Melo

Severas críticas dos especialistas deste ramo do direito no atual


cenário brasileiro são notadas, questiona-se sua aplicabilidade e previsão
no ordenamento jurídico como raiz da mentalidade inquisitória dos Santos
Ofícios no sistema de justiça criminal brasileiro.
Ser um pesquisador do processo penal brasileiro de modo a dialogar
com profundidade no meio acadêmico é se deparar em um paradigma
essencial capaz de rastrear as convicções predominantes no positivismo
ou liberalismo, do sistema penal, acusatório, inquisitório, misto ou
inimaginável. A doutrina majoritária compreende que o sistema adotado
no Brasil é acusatório, e não é uma tarefa singela definir todos os vossos
desdobramentos ao se defrontar com seus temários de alta complexidade
no derredor da questão, muito embora encontremos diversos dispositivos
inquisitoriais no bojo do Código de Processo Penal Brasileiro.
Para melhor compreender isso, devemos trazer uma relação direta
com homem em seu tempo que consiga repercutir o perpétuo aplicado
hoje no Sistema Processual Penal Brasileiro, a mentalidade inquisitória,
recheada do absolutismo, autoritarismo do Poder Judiciário, associado
à Inquisição dos Santos Ofícios, evidenciando-se um paralelo entre o
indivíduo e o poder punitivo do Estado. Nesse diapasão, continuamos no
foco do direito processual penal e da hermenêutica constitucional, que
trazem emblematicamente distintivos do sistema inquisitório pautado
pelo fato de o juiz agregar as funções investigativa, acusatória e judicante.
Nesse marco podemos perceber a insurgência do ativismo punitivista,
que de regra é inquisitorial, marca de governos absolutistas, que arbitrário,
não cível e desumano, enraizado no sistema processual brasileiro. Para
tanto, questiona-se se há subversão do sistema constitucional no Estado
Democrático de Direito no tocante aos limites das premissas essenciais
do modelo de justiça negocial criminal inserido no art. 28-A, acordo
de não persecução penal, um instituto ressurgente de justiça negocial
no processo criminal brasileiro, como dispositivo acusatório, inserido
no sistema inquisitório, no tocante especificamente à exigência como
requisito de admissibilidade da Lei n.º 13.694/19, a confissão formal,
circunstancialmente do sujeito ativo acerca dos fatos que lhe foram
imputados da ação penal, demonstrando a perpétua mentalidade inquisitiva
idealizada no processo penal brasileiro, o intitulado Pacote Anticrime.

1 A AMPLIAÇÃO TERRITORIAL DA INSTITUIÇÃO POLÍTICA


RELIGIOSA NAS TERRAS DE VERA CRUZ

Segundo Coelho (1987, p. 365), a primeira visita do Tribunal do


Santo Ofício ao Nordeste e às Capitanias do Sul do Brasil tinha um
cunho estratégico de expansão da área de atuação, controle e vigilância
da Inquisição sobre as colônias atlânticas. O Atlântico era um tipo de
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caminho de disseminação da civilização europeia e da cultura cristã.


Favorecia não só o trânsito de mercadorias e bens, que animavam o trato
mundial, bem como facilitava a troca de ideias, de costumes e até de hábitos
alimentares, não só exportados da Europa como também importados do
Novo Mundo e Oriente. Em 28 de julho de 1591 o então visitador do
Santo Ofício, Heitor Furtado da Mendonça, após procissão que terminara
na Sé Catedral de Salvador, começava sua cruzada contra os hereges nas
terras de Vera Cruz.

1.1 A LEITURA DOS EDITAIS DA FÉ E DA GRAÇA, MONITÓRIO


DA INQUISIÇÃO E A BULA DO PAPA PIO V

No Edital da Fé constituído pelo monarca, que outorgava a


conservação dos bens para aqueles que confessassem no prazo não
superior a 30 dias sobre o designo do tempo da Graça, os fiéis tinham
em tese um prazo para confessar suas depravações de heresia, a exemplo
da blasfêmia, proceder moral e por conseguinte denunciar transgressões
alheias perpetradas contra a Fé da Santa Madre Igreja. O Edital da Graça
convocava os fiéis a assumirem suas faltas de forma voluntária e objetiva
no prazo não superior a 30 dias do tempo da graça, para que supostamente
fossem perdoas pela mesa da Inquisição. O Monitório especificava todas as
iniquidades contra a Fé da Santa Madre Igreja, que poderia imputar fato
típico antijurídico e culpável pelo Tribunal do Santo Ofício.
Inicia-se oficialmente pelo Tribunal do Santo Ofício a persecução
penal no Brasil, em 28 de julho de 1951 (VAINFAS, 1997, p. 17-20), pela
mão do licenciado Heitor Furtado de Mendonça, fidalgo e deputado da
Inquisição portuguesa. Averiguada sua aptidão, o padre Heitor Furtado
de Mendonça foi nomeado visitador do Santo Ofício pela mão do Cardeal
Arquiduque Alberto d’Austria, Inquisidor Geral em Portugal, que lhe
designou em 2 de março de 1591 para as terras de Vera Cruz, com a
missão de ouvir confissões e denúncias de heresias e práticas de judaísmo,
nas cidades da Baía, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba. No dia 9 de junho,
domingo da Santíssima Trindade, decorridos 100 dias de viagem, aportava
em Salvador da Bahia a nau do Santo Ofício.

1.2 A ACUSAÇÃO DE CRIME DE SODOMIA FEMININA

A acusação de crime de sodomia feminina (ANAIS..., 1975, p. 309-


327) que deu justa causa à persecução penal para instauração de processo
inquisitório contra Felipa de Souza surgiu com base na delação de Paula
de Serqueira, que em 20 de agosto de 1591, durante o chamado período
da Graça (PORTUGAL, 1592), apresentou-se em Salvador, perante a
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mesa da Inquisição, para confessar de forma voluntária os seus pecados,


constantes no Monitório do Santo Ofício (PORTUGAL, 1592).
A confissão de Paula de Siqueira (PORTUGAL, 1592) suscitaria em
denúncia5 e como consequência outras 29 mulheres foram acusadas na
Bahia e no Recôncavo pela prática do crime de sodomia feminina, dentre
as quais estava Filipa de Souza, com quem manteve conjunção carnal por
mais de três anos. A tática de abordagem do Santo Ofício justificava-se nas
delações alheias mais até do que na própria confissão, visto que por meio
da denúncia do pecado6 se revelava a ofensa a Deus e à pureza da Fé. À luz
da Inquisição, o verdadeiro cristão demonstrava sua virtude na delação do
pecaminoso, infiel e herege nos fundamentos da Santa Madre Igreja.

1.3 O TEXTO MONITÓRIO

O texto do Monitório7, datado de 1536, constituía o elenco


pormenorizado dos crimes que recaíam na alçada do Santo Ofício, entre
os quais estavam judaísmo, luteranismo, asserções heréticas, blasfêmia,
apostasia, pacto com o Diabo, leitura de livros proibidos, insultos contra
a Igreja e a Fé (contestar a virgindade de Maria), bruxaria, quebranto e
feitiçaria.

1.4 O TEMPO DA GRAÇA

A inquisição impusera um prazo de 30 dias para aqueles que


confessassem de maneira espontânea e sincera todas as práticas contrárias
à Fé da Santa Madre Igreja, blasfêmia, heresia, conduta moral, ademais
era de suma importância denunciar as infrações alheias cometidas contra
a Fé e os fundamentos da Igreja, para terem legitimidade de serem
perdoados pela mesa da Inquisição, comtemplando sobre argumentos de
benefícios de pena de morte, de prisão perpétua e de confisco dos bens.
Embora ancorada, a confissão não salvaguardava de imediato nem trazia a
harmonia perante o tribunal, fazendo-se ainda necessária a ampla e invicta

5 Confissão de Paula de Sequeira (PORTUGAL, 1592).


6 Confissão de Paula de Sequeira (PORTUGAL, 1592).
7 O registro em si, datado de Évora, a 18 de novembro de 1536, foi procedente por
D. Diogo da Silva, como Inquisidor mor, e tem a seguinte designação Monitorio
do Inquisidor Geral, per que manda a todas as pessoas que souberem d’outras, que
forem culpadas no crime de heresia, e apostasia, o venhão denunciar em termo de
trinta dias». ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, nº 4828, fls.
7-9v. Pode ler-se na sua versão integral, com transcrição diplomática em Primeira
Visitação do Santo Officio às Partes do Brasil, pelo licenciado Heitor Furtado de
Mendonça. Confissões da Bahia – 1591-92, Prefácio de Capistrano de Abreu, São
Paulo, Homenagem de Paulo Prado, 1922, p. 39-45.
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demonstração de pesar e arrependimento para a obtenção do perdão de


suas infrações e culpas (FRANCO; ASSUNÇÃO,2005, p. 10-111).

2 O PECADO NEFANDO OU LGBTFOBIA

Qual era o fundamento da Igreja sobre tribadismo? Parecia


contraditório que duas mulheres se deleitassem sexualmente sem
a intervenção falocêntrica do macho, um pensamento norteador da
mentalidade sexista da cristandade. Parte-se do fato de que no Tribunal
do Santo Ofício imperava uma visão misógina da sexualidade, atribuindo
exclusivamente ao homem o direito ao usufruto do prazer. O poder
eclesiástico não assimilava o interesse, ou a sensualidade que as mulheres
obtinham do nefando (MENDONÇA; MOREIRA, 1845) ou prática da
sodomia, considerando até a sexualidade feminina como agente desviante
do bem e da moral, cúmplice do mal e aliada do Diabo.
O fato é que a Igreja duvidava que os desvios de comportamento sexual
pudessem ser considerados uma heresia, uma blasfêmia ou simplesmente
um pecado venial, razão pela qual no texto Monitório de fundação em
1536 da Inquisição em Portugal nada consta sobre sodomia nem qualquer
outro desalinho do foro sexual. Só em 1553, por provisão de D. João III,
acrescida em 1555 da resolução do inquisidor-geral D. Henrique, é que a
sodomia passou para a competência jurisdicional do Tribunal do Santo
Ofício (MENDONÇA; MOREIRA, 1845, p. 292-293).

3 O PROCESSO INQUISITORIAL

Consta nos autos do processo 1267, que no dia 18 de dezembro de


1951, Felipa de Souza, com 35 anos de idade, fora conduzida e detida para
prestar depoimento no Tribuna do Santo Ofício acerca dos fatos que lhe
foram imputados, a fim de contradizer as acusações de práticas nefandas
(GINZBURG, 1989, p. 206) com outras mulheres. Cita-se, além de Paula
de Cerqueira, Maria Lourenço (PORTUGAL, 1592, p. 95). As mulheres,
em tese, já tinham seus estigmas aos olhos da Santa Madre Igreja entre
os séculos XII e XVIII, amplamente testificada pela ignorância masculina,
ciclo menstrual e suas fases de odres, sangramento, líquido amniótico
pós-parto, secreções da fisiologia feminina. Nesse contexto, o corpo
de uma mulher se tronava impuro, em contrassenso ao ato nefando na
prática de sodomia de conjunção carnal entre Felipa de Souza e Paula de
Cerqueira, tida como união torpe.8 Oportuno o destaque da jurisprudência
inquisitorial da Coroa Portuguesa ao descobrir o manto da sodomia
faeminarum (VAINFAS, 1997, p. 121). Registros apontam para pena
capital na fogueira pela prática do lesbianismo, segundo as Ordenações
8 Confissão de Paula de Sequeira (VAINFAS, 1997, p. 60-65).
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Manuelinas. Entre França e Alemanha neste mesmo marco já houvera


condenações de lésbicas à fogueira por atos e fatos com menor potencial
erótico do que os praticados por Paula de Cerqueira e Felipa de Souza
(MOTT, 1987, p. 29-30).

3.1 DELAÇÃO PREMIADA DE PAULA DE CERQUEIRA

Após confissão voluntária no tempo de Graça perante a mesa da


Inquisição, Paula de Cerqueira (VAINFAS, 1997, p. 61) colaborou com
o Tribunal do Santo Ofício delatando Felipa de Souza. Recebendo os
benefícios, fora condenada com uma pena leve de prisão no cumprimento
de seis dias, mais pagamento de multa de 50 cruzados, uma das mais
altas quantias pagas entre os sentenciados, beirando o exorbitante, muito
embora tivera posses para isso obtendo o perdão judicial. Já Felipa de
Souza, a ré, foi condenada tendo o texto da sentença lido em voz alta pelo
bispo visitador na sé e a comunidade religiosa, aos vinte e seis dias do mês
de janeiro de 1592, na presença da ré, e do visitador bispo e governador,
Manoel Francisco, com a pena de flagelo de açoite em público, que estaria
entre quarenta e duzentas chicotadas mais o degredo da Baía de Vera
Cruz (PORTUGAL, 1583).

Sentença

Acordão o Visitador do Sancto Officio, o Ordinario, e assessores, que


uistos estes autos, proua de testas [testemunhas] e confissão que fez
despois de pressa [presa] a Ree que prezente esta Felipa de Sousa
cristãa uelha custureira natural de Tauira do algarue filha de Manoel
de Sousa e de Sua molher môr Gllz [Maria Gonçalves] defuntos de
idade de trinta e cinquo annos, casada cõ frco piz [Francisco Pires]
pedreiro, moradora nesta cidade, consta a dicta Ree Felipa de Sousa
peccar O horrendo e nefando crime, de sodomia, peccado contra natura,
cõ muitas molheres assim casadas como Solteiras per muitas uezes,
em diuersos tempos sendo ella Ree ora agente Incuba, ora paciente
Sucuba, comssumando alguas uezes o ditto pecado nefando com o
comprimento natural de semelhantes actos como se fossem naturais,
ajuntando ella com as outras molheres compliçes seus uasos dianteiros
e tendo Ssuas deleitaçois abominaueis ella cõ as outras molheres; E
Consta a Ree Ser costumada a namorar moçheres, requestandoas,
com cartas de amores e cõ recados, e prezentes, e as prouocar ao
ditto abominauel peccado, e dar lhes abraços e beijos contenção torpe,
e desonesta, e abominauel, e gabarse de tam horrendos peccados
que cometia, nomeando as molheres com quem os cometia, os quais
horrendos peccados de sodomia cometeo ajuntandosse com as outras
molheres Sem auer outro algum Instromento penetrante, o que tudo
fez com pouco temor de deos, esquecida da Saluação de Sua alma. E
Posto que comforme o dereito Ciuil, a pena dos dictos Crimes he de
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morte natural, e de confiscação Uniuersal de todos os bens, Contudo a


Sancta Igreja como mãi piadossa não dá morte corporal, mas deixa a
uida aos delinquentes, pera que nella fação obras de pinitencia, com que
escapem á morte spiritual, pello que tudo uisto e o mais que destes autos
consta uisto outrossim o breue de Sua Sanctidade e a ordem que el Rey
noso sõr deu pera se proceder contra os delinquentes neste Crime de
Sodomia e contra natura, nos tribunais do Sancto officio, e a Comissão
que fez aos Inquisidores por elles aceitada; Condenão a Ree Felipa de
Sousa q. Seja açoutada publicamente pellos Lugares Costumados desta
Cidade, E Vá degradada pera todo Sempre pera fora desta Capitania da
bahia de todos os Sanctos na qual Cometteo tam horrendos peccados,
e nunca mais entre nella en todos os dias de Sua uida, e mandão que
antes de se saber a exsecução na Ree ella esteja na See hum domingo en
quanto se Selebrar o officio deuino da missa em corpo, em pee, com sua
uella, acesa namão onde lhe sera publicada esta Sentença, e lhe serão
Impostas penitencias spirituais as quais Serão as seguintes: JeJuará
quinze Sestasfeiras a pam, e agoa: a honra da morte de xpõ [Cristo]
nosso Redemptor: Jejuará mais noue Sabados a honra da pureza da
uirgem nossa Senhora, e rezara trinta e três uezes o psalmo de miserere
meideus, por quanto sabe ler. E Respeitando a ella Ree cometer os ditos
peccados sem auer mediante outro algum Instromento, querendo usar
com ella de muita misericordia a excusão das mais penas temporais
que de Rigor merecia, e a amoestão se aparte de comuersações de que
lhe podeuir dano á Sua alma, e pague as Custas: dada nesta cidade do
Saluador, na mesa da Sancta Inquisiçam aos quatro de Janeiro de mil e
quinhentos e nouenta e dous.

Heitor Furtado de Mendonça (PORTUGAL, 1592).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se a insurgência do instituto de delação premiada nas


condições distintas das penas aplicadas no Processo 1276, pelo mesmo
fato típico ante jurídico e culpável nos Tribunais do Santo Ofício, pela
prática do crime nefando de sodomia feminina, no perpétuo aplicado hoje
em nosso tribunais e varas atuais no sistema inquisitório criminal de
processo penal brasileiro, embora ancorado nas Ordenações Filipinas do
século XVII, com a previsão dos crimes de falsificação de moeda e de lesa-
majestade na época em que ainda era colônia de Portugal, que vigorou até
o advento do Código Criminal de 1830, a delação já era tratada com certa
relevância para o processo penal, segundo Salomi (2017, p. 153), inclusive
podendo alcançar o perdão judicial. Fato do qual nosso estudo discorda,
visto que nasce a delação premiada no processo 1267 de Felipa de Souza
confirmando todas as fases da persecução penal.
O contexto não deixa dúvida da raiz da mentalidade inquisitória do
controle social por meio da Inquisição, uma instituição política de cunho
30 | Alexandre Melo

religioso, chamada de Santo Ofício, órgão político que deu origem aos
tribunais do sistema jurídico da Igreja Católica Romana, entre os séculos
XII e XIII, com o objetivo de exterminar os hereges, termo utilizado para
se referir às pessoas que cultuavam crenças ou religiões diferentes da fé
católica.
A raiz da mentalidade inquisitória na LGBTFOBIA, na gênese da
delação premiada, foi apresentada no curso e no bojo do Processo n. 1276,
tendo a ré recebido o maior castigo entre todas as lésbicas de todas as
colônias da América (VAINFAS, 1997, p. 136).
É necessário ultrapassar a exegese do artigo primeiro da Constituição
da República Federativa do Brasil, no tocante aos princípios básicos para
pleno entendimento, o que não se trata de tarefa fácil ou singela para
senhores(a) letrados(a) de notório saber, contracenando como autores
do ativismo judicial. Vejamos então um homem comum vivendo numa
sociedade pluralista: qual seria a capacidade de cognição deste intérprete
à luz do artigo primeiro, norteador fundamental da Constituição de 1988?
Como este classificaria a República Federativa do Brasil quanto à forma
de Estado? Quanto à forma de governo? Quanto ao regime de governo? E
quanto ao sistema de governo? Para quem a Constituição foi escrita? Não
fugindo da ideia de que em tese este cidadão de forma direta ou indireta é
protagonista das instituições de poder.
Por fim, conclui-se que o processo penal brasileiro precisa
urgentemente evoluir e transpor a mentalidade inquisitória, o racismo
estrutural, numa opção política de separação das raças e classes, em um
país latino-americano de população miscigenada com predominância
negra, de classe média baixa, que não conhece o poder do Estado nem
sabe de onde surge, dessa forma jamais conseguirá entender e exercer
cidadania para o almejado Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS

COELHO, António Borges. Inquisição de Évora, dos primórdios a 1668.


2 vols. Lisboa: Editorial Caminho, 1987.
FRANCO, José Eduardo; ASSUNÇÃO, Paulo de. As metamorfoses de um
polvo: religião e política nos regimentos da Inquisição Portuguesa (séc.
XVI-XIX). Lisboa: Prefácio, 2005.
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In:
GINZBURG, Carlo (org.). Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Cia.
das Letras, 1989, p.143-275.
MENDONÇA, José Lourenço Domingues de; MOREIRA, António
Joaquim. História dos principais actos e procedimentos da
Direito, sociedade e cidadania: reflexões em pauta | 31

Inquisição em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,


1980.
MOTT, Luiz. O Lesbianismo no Brasil. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1987.
PORTUGAL. Arquivo Nacional Torre do Tombo. Processo de Felipa
de Sousa, nº 1267. 1592. Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/
details?id=2301154. Acesso em: 10 out. 2022.
VAINFAS, Ronaldo. Santo Oficio da Inquisição de Lisboa, Confissões
da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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