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A Mentira perante a Justiça

Sumário. Mais do que defeito grave de caráter ou hábito detestável, faltar à


verdade em Juízo é crime, a que a lei comina pena severa (art. 342 do Cód. Penal).
Tomar tento, pois!

I. Na esfera da Justiça, repugna muitíssimo à pesquisa da verdade


real — alma e escopo do processo — toda a sorte de mentira.

Está a demonstrá-lo mais de um texto legal. Dispõe, com efeito,


o art. 77 do Código de Processo Civil: “(…) são deveres das partes, de seus
procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo:
I – expor os fatos em juízo conforme a verdade”.

O Código de Processo Penal, de sua vez, reza assim: “A


testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer verdade do que souber
e lhe for perguntado (…)” (art. 203).

E, o que é mais, pune a lei, com rigor, aquele que, em processo


judicial, fizer “afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade (…)” (art. 342 do
Cód. Penal).

Falar verdade em Juízo constitui, pois, desde tempos


imemoriais, preceito inviolável.(1)

A razão desse escrúpulo — a que se deve atender, sem quebra,


nos negócios da Justiça — é que a mentira, conforme soberba lição de
Kant, passa pela “falta individual mais grave porque perverte o fim natural
da palavra (2); e esta, na frase de elegante escritor, deve trazer sempre
“o venerável selo da verdade”.(3)

É o quanto basta para encarecer o amor da verdade, virtude


sobre todas estimável.(4)

Mas, como advertiu o eloquente Cícero, pode a verdade


corromper-se com a mentira ou com o silêncio.(5)

De fato, é lição da experiência vulgar que, nos autos mesmos


dos processos que tramitam sob o aspecto grave da Justiça, tem a
2

mentira curso desembaraçado, como a secundar o dito célebre,


inscrito no texto sacro: Todo o homem é mentiroso.(6)

Ninguém ignora que, em obséquio ao exercício do direito de


defesa, haja até quem reconheça ao acusado o privilégio de poder, no
interrogatório, se não mentir, inventar a verdade.(7) É o que vociferam
alguns, com entono de arengueiro de praça pública: O único que pode
mentir em Juízo é “Sua Excelência o Réu”!

Alto lá! — ia quase a acrescentar apologistas do caos — que tal


licença se mostra, pelo comum, sobre indecorosa e inútil,
contraproducente. À uma, porque sempre se degrada e dá má cópia de
si o indivíduo que mente; à outra, porque a mentira, ainda quando
habilmente arquitetada, cedo se destrói e desvanece(8); à derradeira,
afastando-se da verdade real, poderá o criminoso deitar a perder
vantagens e benefícios não desprezíveis.

II Na memória dos brasileiros estão ainda bem vivos aqueles


episódios ruidosos, em que personalidades assaz conhecidas do
cenário político nacional — chamadas a prestar estritas contas à
Justiça —, ao depor acerca dos fatos que lhes eram imputados, não se
corriam de negá-los de pés juntos.

Desses, houve alguns aos quais se pudera ajustar, à maravilha, a


hipérbole que, em referência a certo mentiroso chapado, cunhou um
escritor de espírito e renome: “Mentia com tanta ênfase, que até mesmo o
contrário do que dizia estava longe de ser a verdade”.(9)

Como pelejavam contra a evidência, em rixa aberta com o


conjunto probatório, não lograram desviar de suas cabeças os golpes
da vigorosa clava penal.

Em suma: também no templo da Justiça — ainda mal! — entrou


a mentira. Os bons Juízes, porém, com o costumeiro discernimento,
saberão sempre apartar o certo do errado e a verdade da mentira,
dispensando a cada um o que lhe toca e merece.
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III. Como faz o objeto deste ensaio a mentira — sobre a qual triunfa
sempre a verdade —, não será despropositado trazer à colação o
acórdão seguinte:

PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE A LÇADA CRIMINAL
OITAVO G RUPO DE C ÂMARAS

Revisão Criminal nº 355.002/3


Comarca: Itu
Peticionário: CAB

Voto nº 2175
Relator

– Tem a confissão alto sentido moral no


processo-crime: ao admitir a autoria da ação
reprovável, revela o infrator caráter não
inteiramente deformado e como que certa
contrição pelo mal que fez; inculca, ao
demais, propósito de emenda e recuperação.
Por isso, havendo-se posto ao lado da
Justiça, ainda que com sério risco para sua
liberdade, é razoável se lhe defira algum
benefício (v.g., fixação de regime prisional
mais brando), à guisa de estímulo à cultura
dos valores éticos e galardão do mérito.

– Não há proibição legal de o Juiz conceder


regime semiaberto a condenado não-
-reincidente a pena inferior a 8 anos (art. 33,
§ 2º, alínea b, do Cód. Penal); a concessão de tal
benefício unicamente é defesa ao réu
condenado a pena que exceda a 8 anos (não
importando se primário), ou ao reincidente,
cuja pena seja superior a 4 anos.
4

1. CAB, por sua eficiente e culta patrona (Dra. Adriana Haddad


Uzum), propôs ação de revisão criminal, com o intuito de desfazer
sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito da 1a. Vara Criminal da
Comarca de Itu, condenando-o à pena de 1 ano, 9 meses e 10 dias de
reclusão, no regime fechado, por infração do art. 157, § 2º, ns. I e II,
combinado com o art. 14, nº II, do Código Penal.

Alega, em primoroso arrazoado, que a prova dos autos, frágil e


precária, não justificava a edição do decreto condenatório.

Acrescenta que a própria confissão do réu não devia ser


interpretada como prova decisiva de sua culpabilidade.

À derradeira, clama pela modificação do regime prisional para


aberto, com “sursis” (fls. 18/22).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em detido e


escorreito parecer do Dr. Oswaldo Henrique Duek Marques, opina
pelo provimento parcial do pedido para estabelecer ao sentenciado
regime prisional mais brando (fls. 24/27).

É o relatório.

2. Foi condenado o peticionário porque, na alvorada do dia 11 de


novembro de 1993, na Praça Dom Pedro I, na histórica cidade de Itu,
obrando em concurso e unidade de propósitos com outro indivíduo,
mediante grave ameaça exercida com emprego de armas de fogo,
tentou subtrair da residência da família Steiner, dentre outros objetos,
um revólver Taurus, calibre 38, com 5 projéteis intactos, e a carabina
Rossi, avaliados em CR$ 82.000,00 (oitenta e dois mil cruzeiros reais),
padrão monetário da época, não o conseguindo, porém, por
circunstâncias alheias à sua vontade.

Estavam os réus a perpetrar o roubo quando, chamada, veio


a Polícia em socorro das vítimas. Cercada a residência, os réus
entregaram-se, mediante voz de prisão.
5

Tramitou o processo segundo os cânones legais; ao cabo, a r.


sentença revidenda condenou os réus pelo crime de tentativa de
roubo.

Pretende agora o peticionário, com base na fragilidade da prova,


a absolvição.

3. Suposto digno de encômio o esforço de sua Defensora, a


pretensão do requerente não depara fundamento nos autos nem nos
melhores de Direito.

Em verdade, em presença do Magistrado que o interrogava,


admitiu que, acompanhado de um colega que dava pela alcunha de
Capeta, praticou a tentativa de roubo descrita na denúncia
(fl. 33).

As vítimas inquiridas na instrução, confirmaram as palavras do


peticionário (fls. 17/19).

Ante a certeza da materialidade e da autoria do crime, não havia


senão decretar contra o réu condenação.

4. Na ação especial de revisão, toca ao interessado fazer prova


convincente de que a decisão contra a qual se insurge ofendeu de
frente a prova dos autos ou contraveio a literal disposição de lei.

É que, visto como se acha sob o selo da coisa julgada, nenhuma


decisão se altera sem prova plena e superior a toda a dúvida sensata de
que hostilizou o Direito Positivo ou incorreu seu prolator em insidioso
engano.

Não o demonstrou, contudo, a nobre Defesa, sem embargo da


suma diligência com que assistiu o réu.

Ora:

“É princípio assente que, na instância revisional, o ônus da prova passa ao


requerente. Nessas condições, não trazendo ele elementos novos em abono
6

das suas alegações, não merece deferimento o pedido” (Rev. Forense, vol.
171, p. 384).

Por isso mesmo que não provado que a sentença condenatória


infringiu a prova nem a lei, não há rescindi-la.

5. Num ponto, entretanto, acho razão à combativa Defesa e


é quando terça pela modificação do regime prisional.

Ao clamor do réu, juntou-se, aliás, a voz abalizada do insigne


Dr. Procurador de Justiça (fls. 25/26).

Com efeito, sobre primário, confessou o réu espontaneamente o


delito, e isto em presença do Magistrado.

Ora, a confissão tem alto sentido moral no julgamento do


infrator. Admitindo a autoria da ação reprovável, demonstra caráter
não inteiramente deteriorado e como que certa contrição pelo mal que
fez. Ao demais, inculca propósito de emenda e recuperação.

Destarte, uma vez se colocou ao lado da Justiça, ainda que com


sério risco para sua liberdade, é razoável deferir-lhe o benefício, à
guisa de estímulo e galardão.

Vem a pelo notar que inexiste proibição legal de o Juiz conceder


ao condenado não-reincidente a pena inferior a 8 anos o benefício do
regime semiaberto; o Código Penal, o que veda às expressas é que se
defira ele ao réu condenado a pena superior a 8 anos (não importando
se primário), ou ao reincidente, cuja pena seja superior a 4 anos.

Persuade-o a jurisprudência deste Egrégio Tribunal:

“Em se tratando de crime de roubo qualificado pelo emprego de arma,


sendo o réu primário, cuja conduta não indica reprovabilidade
exacerbada, é possível a fixação do regime prisional semiaberto, sendo
certo que o estabelecimento da modalidade fechada pela só gravidade do
delito não encontra amparo legal, estando o Juiz vinculado aos critérios
previstos no art. 59 do Cód. Penal, consoante dispõe o art. 33, § 3º, do
mesmo diploma” (RJTACrimSP, vol. 36, p. 116; rel. Ricardo Feitosa).
7

6. Isto posto, defiro parcialmente a revisão criminal para fixar ao


peticionário o regime semiaberto.

São Paulo, 19 de maio de 2000

Carlos Biasotti
Relator

IV. Pelo relevante significado que tem a confissão no processo penal,


deve a Justiça amercear-se daquele que, ainda com dano para sua
liberdade, preferiu ser sincero com o Juiz que o interrogou. Essa, a que
se pudera chamar coragem moral, é digna sempre de recompensa, não só
apologia.

Porque se trata no entanto de matéria grave, que entende com o


foro da consciência e do caráter do indivíduo, será ele unicamente o
árbitro da decisão. Em todo o caso, peço escusa ao gentil leitor para
trasladar aqui breves ementas que proferi, há bem de tempo, em
causas criminais:

1. “Do réu confesso é bem que se amerceie a Justiça: pois, ainda nos lábios
daqueles que resvalaram pela trilha sinuosa da delinquência, dizer verdade
passa por ato sempre louvável” (TACrimSP; Ap. nº 1.099.813/5).

2. “O teor de proceder do réu que confessa perante a Justiça o crime que


cometeu é dado notável, que lhe justifica o deferimento de regime menos
gravoso, pois a prática da virtude sempre merece louvor, ainda em relação
àqueles que violam a ordem jurídica” (TACrimSP; Ap. nº 1.208.539/0).

3. “A confissão espontânea e sincera do réu, pedra de toque do


arrependimento e do propósito de emenda, justifica-lhe a estipulação do
regime semiaberto para o cumprimento da pena privativa de liberdade,
ainda nos casos de roubo” (TACrimSP; Ap. nº 1.102.347/8).

4. “Até à mentira tem o réu licença de recorrer, como meio de defesa; não lhe
é lícito, entretanto, atribuir-se falsa identidade, que isto a lei define e pune
como crime (art. 307 do Cód. Penal)” (TJSP; Ap. Crim. nº 1.198.048-
3/2-00).
8

5. “Pela confissão espontânea do crime, é certo que o réu lavra contra si a


própria sentença condenatória, porém dá exemplo de grandeza moral:
demonstra aborrecer o vício da mentira e talvez se haja arrependido da
transgressão à lei. Não há ilegalidade, pois, em compensar-lhe a nota de
reincidência com a circunstância atenuante obrigatória prevista no art.
65, nº III, alínea d, do Código Penal”. “Quem se acusa a si mesmo escusa
acusador, e faz leve o seu delito” (Pe. Manuel Bernardes, Nova Floresta,
1711, t. III, p. 259). (TJSP; Ap. Crim. nº 993.06.072180-1).

6. “Situações existem, contudo, que, suposto não se ajustem ao rol das


descriminantes, toleram (se é que o não aconselham) confesse o arguido a
autoria do fato que lhe é imputado. São aqueles em que a sua negativa
quanto ao fato representaria, pelo estado da prova, um sesquipedal
insulto à inteligência do inquisidor e de qualquer pessoa de suficiente
consideração. Deveras, que mais atentatório do siso comum que isso
de insistir o réu em negar, perante o magistrado, aquele mesmo fato
cuja autoria admitira, sem ambages, na quadra do inquérito?!”
(Carlos Biasotti, Tributo aos Advogados Criminalistas, 2005, p. 80;
Millennium Editora Ltda.).

V. A Mentira: Pecúlio de Frases e Citações

Tema de muito alcance, da mentira já trataram infinitas


celebridades literárias. De notas de leitura extraí pequena coletânea,
que ao leitor peço vênia para expor à luz pública:

1. “A mentira é velha como o mundo. A crer-se no famoso conceito de


Talleirand, a palavra foi dada ao homem para esconder o pensamento”
(Nélson Hungria, Novas Questões Jurídico-Penais, 1945, p. 233).

2. “Mentira é uma locução contra a verdade. Para Kant, a mentira é a falta


individual mais grave porque perverte o fim natural da palavra” (Castro
Nery, Filosofia, 1931, p. 99).

3. “É um exemplo de presunção de homem, que aquele, que mente em uma


cousa, se presume mentir em tudo” (Lourenço Trigo Loureiro, Teoria e
Prática do Processo, 1850, p. 127).
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4. “Todas as variações graves são um indício positivo de mentira”


(Mittermayer, Tratado da Prova em Matéria Criminal, 1871, t. II, p.
30; trad. Alberto Antônio Soares).

5. “Há pessoas que mentem com mais firmeza do que os tímidos dizem a
verdade” (Edgard de Moura Bittencourt, Vítima, 1a. ed., p. 104).

6. Na batalha que se trava entre a acusação e a defesa, a mentira do réu, na


luta por sua liberdade, se não é elogiável sob o aspecto moral, também não
lhe é proibida. Dizer a verdade contra si próprio, com risco de um enorme
sofrimento, é atributo das criaturas superiores, mas a lei penal — observa
o velho Garraud — não quer o heroísmo” (Idem, Crime, 1973, p. 218).

7. “A experiência demonstra que a verdade é mais frequente na boca dos


homens do que a mentira” (Antônio Dellepiane, Nova Teoria da Prova,
140; trad. Érico Maciel).

8. “A história humana é um infinito oceano de erros, onde sobrenadam uma


ou outra verdade mal conhecida” (Marquês de Beccaria, Dos Delitos e
das Penas, § XV; trad. Torrieri Guimarães).

9. “A metade só da verdade é uma mentira inteira” (Almeida Garrett,


Obras Completas, 1854, vol. II, p. 732).

10. “Ninguém tem o direito de negar o que a evidência mostra” (Bento de


Faria, Código de Processo Penal, vol. II, p. 131).

11. “Mentir, como define Santo Agostinho, é dizer ou ir quem fala contra o
que entende: Mentiri est contra mentem ire” (Pe. Antônio Vieira,
Sermões, 1959, t. XIII, p. 413; Lello e Irmão – Editores; Porto).

12. “Só dos poetas gostava, porque quem mente por profissão, fala verdade”
(Idem, ibidem, t. XV, p. 292).

13. “De maneira que o Sol, que em toda a parte é a regra certa e infalível por
onde se medem os tempos, os lugares, as alturas, em chegando à terra do
Maranhão, até ele mente. E terra onde até o Sol mente, vede que verdade
falarão aqueles sobre cujas cabeças e corações ele influi” (Idem, ibidem,
t. IV, p. 158).
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14. “Mentir é ir contra a mente própria” (Pe. Manuel Bernardes, Nova


Floresta, 1711, t. III, p. 276).

15. “Toda a minha vida pública se resume neste lema: não mentir” (Rui
Barbosa, A Imprensa e o Dever da Verdade, 1920, p. 66).

16. “Que lugar haverá no mundo sem falsidades? Até no céu se entroniza a
mentira” (Rafael Bluteau, Prosas Portuguesas, 1728, vol. I, p. 32).

17. “A verdade é uma conformidade do pensamento com a palavra” (Idem,


ibidem, p. 195).

18. “Verdade: conformidade do nosso juízo com certo objeto” (Idem, ibidem,
p. 226).

19. “Mendaci ne verum quidem dicenti creditur” (Cicero; De Divinatione, II,


146). O mentiroso não é acreditado ainda quando diz verdade.

20. “Do mentiroso nem a própria verdade ousamos acreditar” (Alexandre


Herculano, Opúsculos, t. I, p. 89).

21. “Fala todos os idiomas da mentira” (Luís Viana Filho, Antologia de Rui
Barbosa, p. 82).

22. “Mentia com tanta ênfase, que até mesmo o contrário do que dizia estava
longe de ser a verdade” (Stanislaw Ponte Preta, Máximas Inéditas de
Tia Zulmira, p. 94).

23. “Tornou-se-lhe proverbial o descaro: mentia com quantos dentes tinha


na boca” (Xenofonte, O Príncipe Perfeito, p. 18; trad. Aquilino
Ribeiro).

24. “Os homens não são todos mentirosos, porque alguns já estão mortos”
(Bartle Quinker; apud Ambrose Bierce, O Dicionário do Diabo,
p. 120).

25. “Em 1566 um comerciante de tecidos de Brístol, na Inglaterra, declarou


que vivera quinhentos anos e que, em todo esse tempo, nunca dissera uma
mentira” (André Bierce, op. cit., p. 120).

26. “Mentiram mais do que permitia a força humana” (Camilo, A Queda


dum Anjo, p. 34).
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27. “Sob color duma verdade dizer mil mentiras” (Heitor Pinto, Imagem da
Vida Cristã, vol. II, p. 160).

28. “Quem deve mente por força”, reza o brocardo.

29. “Tais fórmulas derivavam de triviais manifestações de eutrapelia,


convencionais mentiras de polidez” (Afonso Celso, Oito Anos de
Parlamento, 1981, p. 87). Eutrapelia – Modo de gracejar sem
ofender (Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, 11a.
ed.).

30. Ergueu um monumento à mentira.

31. Querem alguns provar a verdade com a mentira.

32. “Quando é necessário mentir, não devemos ter escrúpulo em fazê-lo”


(Heródoto, História, 1950, p. 279; trad. Brito Broca).

33. “O mentiroso prudente de quando em vez diz uma verdade”


(mandamento cautelar dos fora-da-lei).

34. As alegações do réu são um impudente obelismo de mentiras.

35. “Uma mentira dita mil vezes torna-se verdade” (Joseph Goebbels,
ministro da propaganda de Hitler). Sofisma retórico alçado
à categoria de quinta-essência da pseudopublicidade, mas
repudiado com veemência por todos os sistemas doutrinários
que professam o primado da dignidade da inteligência humana.

36. Já entrou em provérbio a notória vocação dos pescadores para a


mentira: dizia um deles que era tão grande o peixe que pescara,
que somente a sua fotografia pesou 2 kg. Nos ranchos em que se
acomodam, é também frequente dar-se com esta inscrição: Aqui
se reúnem pescadores e outros mentirosos.

37. A par dos mitômanos, que não conhecem outra linguagem


senão a da mentira, estão aqueles que não trepidam em
exagerar, a qualquer respeito, as qualidades e atributos de suas
coisas. Teor de proceder é esse que, as mais das vezes, ninguém
toma ao sério, por sabê-lo fruto de fantasia desordenada,
ingênua hipérbole ou mera bazófia. É da condição humana,
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com efeito, isto de exagerarem as pessoas as notas positivas de


tudo o que possuem: tanto lhes agrada ter e cobiçar o melhor ou
o mais raro de uma ordem ou classe!

38. Não incorre nas penas do art. 66 do Código de Defesa do Consumidor


(afirmação falsa ou enganosa) o agente que, para vender produto,
encarece-lhe as qualidades, sem contudo mentir sobre sua
natureza ou características. Espécie de “dolus bonus”, é
estratagema a que de ordinário recorrem os negociantes para
gabo de suas mercadorias, cujas excelências não raro exaltam
até aos cornos da Lua.

39. “Mentira branca — Mentira inocente, sem intenção de causar dano. Por
exemplo: mandar a criada responder que não se está em casa quando há
trabalho urgente a fazer, ou que se está doente para não ir a uma reunião
aborrecida” (R. Magalhães Júnior, Dicionário de Provérbios e
Curiosidades, l960, p. 168; Editora Cultrix; São Paulo).

40. “Isto de trazer alguém nome suposto para velar seus acidentes biográficos e
eximir-se do castigo é prática ignominiosa a que, de cotio, se entregam
sujeitos inescrupulosos. E, o que é mais: não raro granjeiam a terceiros
alguma benevolência, quando lhes afirmam que o fizeram sob a capa de
meio ou recurso de defesa (art. 307 do Cód. Penal). Desenganem-se,
porém, os que obram segundo este indigníssimo estalão: ao acoroçoar a
mentira e perverter o fim natural da palavra (que é dizer verdade), não
estão quebrantando apenas preceitos da Moral; estão de igual passo
infringindo regras de Direito” (TACrimSP; Ap. nº 1.021.323/5).

41. “A mentira, suposto sirva muita vez de recurso de defesa, não na admite a
Lei quando constitui violação de direitos de terceiros. Nesta censura
incorre aquele que, para ocultar passos de sua biografia penal, atribui-se
identidade de outrem a quem, por isto, causa danos morais graves. O
intuito de autodefesa não exclui, pois, o crime de falsa identidade” (art.
307 do Cód. Penal)” (TACrimSP; Ap. Crim. nº 1.099.779/9).

42. “Embora a mentira não deva entrar no templo da Justiça, que lhe fecha de
contínuo as portas como a inimigo público, a conduta do sujeito que faz
declaração falsa de pobreza para beneficiar-se de assistência judiciária
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gratuita não incorre em crime, pelo que não há indiciá-lo em inquérito


policial por falsidade ideológica (art. 299 do Cód. Penal)” (TJSP;
“Habeas Corpus” nº 990.08.043080-7).

43. “Incorre nas penas da lei (art. 342, § 1º, do Cód. Penal) a testemunha
que, ao depor em processo-crime, falta com a verdade acerca de fato
juridicamente relevante, com o intuito de favorecer o réu. A mentira não
pode ter entrada no templo da Justiça” (TJSP; Ap. Crim. nº
990.08.090617-8).

44. Pode a mentira perder seu caráter maligno ou reprovável,


quando empregada “per jocum” (por mero brinco ou gracejo),
“reservatio mentalis” (restrição mental, intenção reservada) ou
“dolus bonus” (fraude pia), em que faz as vezes de locução verbal
própria a mitigar a impressão forte da verdade. Exemplo: “Não
vai doer nada!”, acentua a enfermeira ao vacinar a criança, que,
após silenciosa expectativa, prorrompe, gemebunda, em choro
copioso.

45. Mas as mentiras, ainda quando convencionais ou “jocandi animo”


(por gracejo ou pilhéria), nem sempre se toleram, agradam ou
edificam. Ilustra-o conhecida anedota:

“Certa manhã, um jovial dominicano que tem a absurda pretensão de se


rir do bos mutus (10), exclama, debruçado da janela:

— Frei Tomás, vinde ver um boi a voar!

Calmo, no seu passo pesado, Tomás aproxima-se, como para observar o


prodígio. O frade jovial triunfa, perdido de riso. E Tomás, impassível:

— Supus que era mais fácil ver um boi a voar do que um frade a mentir…

De fato, seria menos de surpreender uma alteração da ordem natural do


que uma alteração da ordem moral — para a sábia virtude do Doutor
Angélico” (João Ameal, São Tomás de Aquino, 4a. ed., pp. 56-57;
Livraria Tavares Martins; Porto).

46. Para quem tem “pernas curtas”, a mentira já foi longe demais; por
isso, aqui faço ponto, com este belo pensamento do clássico Pe.
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Antônio Vieira: “Quem fala muito não pode ser verdadeiro em tudo”
(Cartas, 1971, t. I, p. 110; Imprensa Nacional; Lisboa).

Notas:

(1) É fama que João Mendes Jr., mestre incomparável do Direito, ao


ensinar Processo Penal aos alunos da Faculdade das Arcadas,
evocava-lhes episódio da história da antiguidade, em que se
exaltavam as funções do Juiz. Recitava-lhes que no Fórum
egípcio havia uma pintura mural representando um julgamento,
e dos lábios do Magistrado pendiam estas graves palavras: “Eu
sou o secretário de Deus, no templo da Verdade e da Justiça” (apud
Vicente de Azevedo, Curso de Direito Judiciário Penal, 1958, vol. I,
pp. 47-48).

(2) Apud Castro Nery, Filosofia, 1931, p. 99.

(3) Eça de Queirós, O Mandarim, p. 20.

(4) Vem muito a propósito, mencionaar aqui as três coisas que os


persas haviam pelas mais importantes: “(…) montar a cavalo, atirar
com o arco e dizer verdade” (Heródoto; História, 1950, p. 72; trad.
Brito Broca).

(5) “Veritas vel mendacio corrumpitur, vel silentio” (De Off., I,23).

(6) “Omnis homo mendax” (Ps. 145,11).

(7) Por aborrecerem a mentira — a que, ordinariamente, recorre o


acusado como forma de defesa —, talvez alguns juízes
quiseram, no seu íntimo, antes se prestigiasse o silêncio, não
fora este sempre acintoso. De feito, haverá nada mais
inconciliável com as regras da urbanidade do que o silêncio
desdenhoso do réu que, no interrogatório, não atende às
perguntas do juiz?!

(8) Cai a lanço reproduzir aqui a ementa de acórdão que feriu o


tema:
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“O réu que, acusado de roubo, se defende mediante álibi (alegando que


estava preso ao tempo do crime), deve prová-lo cumpridamente, máxime
se permaneceu calado na fase extrajudicial e foi reconhecido, sem falta,
pela vítima e testemunhas. A força do argumento que assenta na negativa
loci pode-a abalar a menor dúvida. As crônicas policiais, com efeito,
registram mais de um caso de réu que, dado por oficialmente preso, foi
visto, à luz meridiana, a regalar suas entranhas em casas de pasto da
metrópole paulista” (TACrimSP; Ap. 250.559/6-São Paulo).

(9) Stanislaw Ponte Preta, Máximas Inéditas de Tia Zulmira, p. 94.

(10) “Bos mutus Siciliae” — “Boi mudo da Sicília” —, alcunha maliciosa


dada a Tomás de Aquino, “frade moço e corpulento, pesado e sério,
refugiado em teimosa mudez” (João Ameal, op. cit., p. 54).

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