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A absolvição por clemência no Tribunal do Júri

O cenário é o seguinte: uma cidade do interior gaúcho parou para assistir a um


plenário do júri. O promotor de justiça e o advogado sempre foram conhecidos por
apresentarem um excelente debate sobre as provas, sendo daqueles que, nos
mínimos detalhes, ganham os mais duros e difíceis casos.
Entretanto, esse júri era diferente.
Não havia uma incongruência sequer em todo o processo. A investigação
preliminar fora impecável. Todas as testemunhas foram verdadeiras ao alegar
categoricamente que o réu era o autor do fato imputado, corroborando com a tese
da promotoria.
Nesta senda, o Promotor de Justiça fez a sua sustentação oral, gabando-se de
todas as provas que existiam nos autos, e inclusive, de forma debochada, brincava
que o advogado teria de provar o improvável.
Porém, quando o presidente que presidia aquela sessão disse: “a defesa tem a
palavra”, o advogado concordou com discurso do promotor de justiça, mostrando
aos jurados que realmente os pilares para a condenação estavam presentes (a
materialidade e autoria).
Entretanto, pediu a absolvição, baseado na tese da clemência.
No Tribunal do Júri, no momento em que o promotor de justiça nada mais fala e a
voz da defesa se cala, passa a figurar como protagonista a consciência e a livre
convicção dos jurados. Esse sagrado momento ocorre na sala secreta, e é ali que
os próximos anos (ou até mesmo décadas) da vida de um ser humano serão
decididos.
No caso narrado, as provas dos autos não deixavam dúvidas sobre a autoria e a
materialidade do delito. Sabendo disso, o advogado de defesa sequer tentou
contestar esse fato. Entretanto, pediu aos senhores jurados que fosse concedida a
absolvição por clemência, e esses, no momento do voto genérico, assim o fizeram.
O Ministério Publico, então, recorreu com o argumento de decisão manifestamente
contrária às provas dos autos, com base no  593, inciso III, alínea d, do Código de
Processo Penal.
Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias: 
  III  –  das decisões do Tribunal do Júri, quando:
d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos
autos. 
Como ministra Lenio Streck:
Com a promulgação da Constituição de 1988, o tribunal do júri
consolida seu status de direito fundamental, na medida em que
passa a ser considerada uma garantia dos direitos individuais e
coletivos, regida por quatro disposições básicas: (1) plenitude de
defesa; (2) sigilo das votações; (3)  soberania dos veredictos; (4)
competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Em uma análise superficial, pode parecer-nos que o princípio da soberania dos
veredictos estaria hierarquicamente acima das regras processuais penais sobre o
recurso de apelação, pois se trata da colisão de um princípio previsto na Magna
Carta, e uma norma processual penal advinda de um Decreto Lei.
Entretanto, diversas convenções e tratados os quais o Brasil é signatário,
garantem o duplo grau de jurisdição, e, nesse sentido, tem sido o correto
entendimento do STF:
[…] III – A garantia do devido processo legal engloba o direito ao
duplo grau de jurisdição, sobrepondo-se à exigência prevista no
art. 594 do CPP. IV – O acesso à instância recursal superior
consubstancia direito que se encontra incorporado ao sistema
pátrio de direitos e garantias fundamentais. V – Ainda que não se
empreste dignidade constitucional ao duplo grau de jurisdição,
trata-se de garantia prevista na Convenção Interamericana de
Direitos Humanos, cuja ratificação pelo Brasil deu-se em 1992,
data posterior à promulgação Código de Processo Penal. VI – A
incorporação posterior ao ordenamento brasileiro de regra prevista
em tratado internacional tem o condão de modificar a legislação
ordinária que lhe é anterior. VII – Ordem concedida. (HC n. 88420,
Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, 1ª T., DJe 6/6/2007)
Todavia, já é pacificada a questão de que o juiz togado jamais poderá modificar o
entendimento do jurado sobre o mérito da decisão exarada em plenário, assim
como ensina o NUCCI:
Não é possível que, sob qualquer pretexto, cortes togadas invadam
o mérito do veredito, substituindo-o. Quando – e se – houver erro
judiciário, basta remeter o caso a novo julgamento pelo Tribunal
Popular. Porém, em hipótese alguma, pode-se invalidar o veredicto,
proferindo outro, quanto ao mérito.
Entretanto, não se mostra razoável remeter-se o caso a novo júri, tendo em vista
que o legislador, ao fazer a mudança dos quesitos prevista na Lei nº 11.689 de
2008, introduziu o quesito genérico, no qual o jurado pode absolver o réu, mesmo
essa decisão sendo contrária a prova dos autos, permitindo assim a absolvição
genérica, que poderá ocorrer inclusive por clemência. Como o saudoso
jurista Roberto Lyra nos ensinava:
o Júri decide por sua livre e natural convicção. Não é o jurado
obrigado, como o juiz, a decidir pelas provas do processo, contra
os impulsos da consciência. [“…] O Júri não está adstrito ao
alegado e provado nos autos, nem à estreiteza dos textos, e não
seria Júri se deixasse de sentir o conjunto das realidades
individuais e sociais.
Todavia, em caso de absolvição genérica, nunca saberemos o que
verdadeiramente levou o jurado a absolver, tendo em vista que o quesito não está
vinculado necessariamente com a tese defensiva, e, pelo sigilo das votações, que é
um direito fundamental juntamente com a soberania dos veredictos e a ampla
defesa, o Ministério Público não poderá recorrer de uma decisão na qual não sabe
os motivos da absolvição.
Da mesma forma, os jurados não são obrigados a condenar o réu porque
simplesmente este confessou o crime, tendo em vista que o jurado poderá, mesmo
ante a confissão do crime, ficar com dúvidas, e, em respeito ao princípio do indubio
pro reo,  deverá absolver o acusado.
Desta forma, o Parquet só poderá recorrer no caso de restar demonstrada alguma
nulidade processual, após a pronúncia, ou até mesmo restando comprovado que a
sentença do juiz-presidente é manifestamente contrária a lei expressa.
O Tribunal do Júri constitui, em essência, um tribunal popular, no qual a
consciência humana deve estar acima da dogmática do direito, tento em vista que
esta, não raras às vezes, não permite compreender o ser humano em todas as
suas nuances.  
Essa é a própria natureza da função de jurado, qual seja, analisar a conduta
humana e decidir segundo a sua livre convicção, a qual deve prevalecer no caso de
clemência, sendo que, neste particular, destaca-se o senso de humanismo do
corpo de jurados, pois essa é a fundamental razão para a existência do júri.
Como nos ensina Bluntschli:
Esta instituição não repousa sobre a ideia de que os leigos em
direito julgam melhor do que os conhecedores da técnica jurídica,
e sim sobre aquela de que uma pena quase não deve ser aplicada
enquanto a culpa não for manifestamente aos olhos do senso
comum.
Sendo assim, referida legislação concedeu aos jurados a prerrogativa de
absolvição, mesmo em sendo essa decisão absolutória manifestamente contrária
à prova dos autos.
Nesse sentido, os jurados possuem como parâmetro não apenas as provas
constantes nos autos, mas também as suas convicções pessoais e senso de
justiça. A absolvição por clemência não configura tão somente uma questão de
direito, mas também pode constituir um resultado de justiça no caso em concreto.
É sabido que nem sempre a justiça é encontrada imersa em nosso sistema judicial,
porém, inexoravelmente, a ética da conduta humana e da tomada de decisão
advém da ânsia de justiça intrínseca ao ser humano.
Nos dizeres de Eduardo Juan Couture:
nosso dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o
Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça.

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