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1 APRESENTAÇÃO DO TEMA

Com a reforma ao Código de Processo Penal promovida em 2008 pela Lei


11.689/08, houve uma alteração no modelo processual do Tribunal do Júri. Uma das
principais mudanças dentro desse procedimento foi aquela operada na forma de
quesitação¹. A partir da lei supramencionada, foi incluído no inciso no art. 483, III e
§2º, do CPP o chamado quesito genérico de absolvição, sendo questionado aos
jurados, de forma ampla e geral se eles absolvem o acusado.
Dessa forma, os jurados podem absolver o acusado por qualquer motivo, até
mesmo por motivos que não guardem relação com o Direito. Nessa perspectiva,
leciona Aury Lopes Jr:

No âmbito do STJ está pacificado: a formulação do quesito genérico é


obrigatória, como já explicamos anteriormente. Não se pode retirar do
acusado o direito de ser absolvido, por qualquer motivo, autorizado pelo
quesito genérico da absolvição. No momento em que a reforma optou por
reafirmar o julgamento por “íntima convição” (ainda que não concordemos),
simplificando a quesitação das teses defensivas para um único quesito, bem
como autorizando os jurados a absolverem inclusive “fora da prova” dos
autos, tem‐se que tal quesito é obrigatório e não pode o juiz subtrair da
defesa a chance da absolvição. (LOPES JR., 2018, p. 840).

Destarte, o presente projeto de pesquisa propõe explorar, dentro da


sistemática do Tribunal do Júri, a possibilidade de utilização, pelo órgão da
acusação, do recurso de apelação interposto nos termos do art. 593, III, “d”, do
Código de Processo Penal, isto é, quando a decisão dos jurados for manifestamente
contrária à prova dos autos, contra decisões absolutórias proferidas pelo Tribunal do
Júri, apoiadas no mencionado quesito genérico.
Outrossim, este projeto tem como escopo analisar se há, a partir da
interposição de tal apelação contra decisão absolutória do Conselho de Sentença²,
violação ao princípio da soberania dos veredictos, princípio constitucional aplicado
ao Tribunal do Júri.

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¹ “Os quesitos são as perguntas ou indagações, que demandam, como resposta, a emissão de uma
opinião ou um juízo” (NUCCI, 2018, p. 1051)
² Conforme os artigos 425, 433 e 447 do CPP, anualmente, o juiz presidente do Tribunal do Júri
elabora uma lista geral de jurados, composta por pessoas da sociedade. Dessa lista são convocados
25 (vinte e cinco) jurados para participar da reunião periódica e, dentre esses jurados, são sorteados
7 (sete) jurados, que formam o Conselho de Sentença, órgão responsável por julgar o caso concreto,
exarando seu veredicto.
Para tanto, importa colacionar a substancial definição de Tribunal do Júri,
consoante ensinamentos de Walfredo Cunha Campos:

O Júri é um órgão especial do Poder Judiciário de primeira instância,


pertencente à Justiça comum, colegiado e heterogêneo – formado por um
juiz togado, que é seu presidente, e por 25 cidadãos –, que tem
competência mínima para julgar os crimes dolosos praticados contra a vida,
temporário (porque constituído para sessões periódicas, sendo depois
dissolvido), dotado de soberania quanto às suas decisões, tomadas de
maneira sigilosa e inspiradas pela íntima convicção, sem fundamentação,
de seus integrantes leigos. (CAMPOS, 2018, p. 2).

Segundo Nucci (2008), em que pese a preexistência do júri em outras partes


do mundo, como na Palestina, na Grécia e em Roma, o Tribunal do Júri tal qual se
conhece hoje teve sua origem na Inglaterra, mais precisamente no ano de 1215,
com a Magna Carta, que ordenava o julgamento por meio de um Tribunal Popular,
conforme as leis do país. Anos mais tarde, foi estabelecido o júri na França, após a
revolução de 1789, visando substituir os magistrados monárquicos por integrantes
do povo, agora com ideais republicanos.
Assim, o júri se espalhou pela Europa, carregando princípios democráticos e
de liberdade, uma vez que o povo era visto como justo e os magistrados vistos como
corruptos. A partir daí o direito europeu migrou para o Brasil, como consequência da
colonização, e, próximo à independência do país, diante da edição de leis contrárias
ao ordenamento, forçosa foi a criação do Tribunal do Júri por decreto do Príncipe
Regente em 18 de junho de 1822.
Inicialmente, o júri surgiu para julgar os crimes de imprensa, sendo formado
por 24 (vinte e quatro) cidadãos “escolhidos de entre os homens bons, honrados,
intelligentes e patriotas [...]” (BRASIL, 1822, p. 1). A partir de 1824, com a
Constituição do Império, os jurados passaram a ter poderes para julgar demandas
cíveis e criminais.
Após inúmeras mudanças e diversas formas de previsão ao longo das
constituições do país, foi em 1988 que o júri se estabeleceu definitivamente dentro
dos direitos e garantias individuais (art. 5º, XXXVIII, da CR/88), com previsão de
competência mínima para julgar os crimes dolosos contra a vida. Além disso, com o
fito de se alcançar o status quo ante³ à ditadura militar, foram reestabelecidos os
princípios do Tribunal do Júri anteriormente previstos na Constituição de 1946,
sendo
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³ Expressão em latim que significa “o estado anterior”. (ENCICLOPÉDIA JURÍDICA, 2019).
eles, os princípios da soberania dos veredictos, da plenitude de defesa e do sigilo
das votações.
Dentre os princípios constitucionais aplicados ao Tribuna do Júri acima
mencionados, o presente trabalho visa analisar o tema proposto em confronto com o
princípio da soberania dos veredictos.
Conforme o art. 5º, XXXVIII, c, da Constituição de 1988, assegura-se à
instituição do júri a soberania dos veredictos. Na visão de Nucci:

A soberania dos veredictos é a alma do Tribunal Popular, assegurando-lhe


efetivo poder jurisdicional e não somente a prolação de um parecer,
passível de rejeição por qualquer magistrado togado. Ser soberano significa
atingir a supremacia, o mais alto grau de uma escala, o poder absoluto,
acima do qual inexiste outro. Traduzindo-se esse valor para o contexto do
veredicto popular, quer-se assegurar seja esta a última voz a decidir o caso,
quando apresentado a julgamento no Tribunal do Júri. (NUCCI, 2018, p.
103).

Insta salientar que, no tocante ao cabimento do recurso de apelação baseado


no art. 593, III, “d”, do CPP, pela acusação, nos casos em que o réu é absolvido pelo
quesito genérico existem três diretrizes decisórias sendo seguidas no interior do
Superior Tribuna de Justiça.
A primeira linha de decisão, exarada no Habeas Corpus 288.054/SP, de
relatoria do ministro Nefi Cordeiro (2014, p. 3), considera que “a determinação de
novo julgamento porque compreendida a decisão como manifestamente contrária à
prova dos autos não configura violação à soberania do Júri, mas exercício legal de
conferência de suporte probatório mínimo para a realização do justo”.
Já na essência do Habeas Corpus 350.895/RJ, cuja relatora foi a ministra
Maria Thereza de Assis Moura e o relator para o acórdão foi o ministro Sebastião
Reis Júnior, houveram dois posicionamentos divergentes acerca do tema entre os
ministros.
Suscintamente, os ministros Rogério Schietti Cruz e Antônio Saldanha
Palheiro, vencidos, concluíram não ser cabível o recurso de apelação pela
acusação, em respeito ao princípio da soberania dos veredictos, uma vez que os
jurados podem absolver o réu por qualquer motivo.
Enquanto os ministros Sebastião Reis Júnior, Maria Thereza de Assis Moura e
Nefi Cordeiro (2017), mesclado o posicionamento adotado no HC 288.054/SP com o
posicionamento vencido dos ministros Rogério Schietti Cruz e Antônio Saldanha
Palheiro neste HC 350.895/RJ, decidiram que a formulação do quesito absolutório
genérico é obrigatória, sendo possível a absolvição por clemência, contudo, é
possível a anulação do julgamento por meio de apelação da acusação, por uma
única vez, sob o argumento de contrariedade à prova dos autos.
Lado outro, no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do Recurso
Ordinário em Habeas Corpus 117.076 Paraná, o Relator, ministro Celso de Mello,
apreciando o pleito, assim se manifestou:

[...] não mais se revela viável a utilização, pelo órgão da acusação, do


recurso de apelação (CPP, art. 593, III, “d”) como meio de impugnação às
decisões absolutórias proferidas pelo Tribunal do Júri com apoio na
resposta dada pelo Conselho de Sentença ao quesito genérico de
absolvição penal (CPP, art. 483, III, e respectivo § 2º). (BRASIL, 2019, p. 8).

Porém, o julgamento do ministro Celso de Mello não representa a posição da


maioria dos membros do STF, permanecendo em aberto o presente debate.
Com base nessa elucidação e a partir dos diferentes posicionamentos
adotados pelos tribunais superiores, a pesquisa resume-se a analisar, levando em
consideração o princípio da soberania dos veredictos e a íntima convicção, o
cabimento do recurso de apelação da alínea “d”, inciso III, do art. 593, do CPP, pela
acusação, quando o réu for absolvido com base no quesito genérico, sendo a
decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos, concorrendo,
assim, para a relevante discussão que há acerca do tema.

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