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2 PROBLEMA

Após a reforma introduzida pela Lei nº 11.689/08 no Código de Processo


Penal surgiu uma controvérsia acerca do recurso de apelação previsto no art. 593,
III, “d”, do CPP. Isso porque, como já mencionado, tal reforma inseriu no art. 483, do
CPP, o chamado quesito genérico de absolvição, fazendo com que se questionasse
se ainda é cabível apelação, interposta pela acusação, quando a decisão do júri é
manifestamente contrária à prova dos autos, uma vez que os jurados, com base na
íntima convicção, passaram a ter autonomia legal para absolver o acusado seja qual
for o motivo.
Acerca dessa controvérsia, posicionamentos diferentes vêm sendo tomados
nos tribunais superiores, que ora defendem o cabimento do recurso de apelação do
art. 593, III, “d”, do CPP, interposto pela acusação, ora o não cabimento. Ressalte-se
que dentre os doutrinadores e operadores do Direito não é diferente, eis que
presente idêntica polarização de ideias.

2.1 Ante o exposto, indaga-se se a admissão do recurso de apelação,


interposto pela acusação, em face de decisão absolutória proferida pelo Tribunal do
Júri com base no quesito genérico (art. 483, III e §2º, do CPP) viola o princípio da
soberania dos veredictos?
3 HIPÓTESE

Conforme relatado, a partir da reforma na lei processual penal em 2008 houve


uma simplificação na forma de quesitação, ao ser inserido no art. 483, do CPP, o
quesito genérico, possibilitando, assim, que os jurados absolvam o acusado,
fundando-se em sua livre convicção, independentemente do conteúdo fático e
jurídico trazido à baila no momento do julgamento.
No que concerne à problemática arguida na corrente pesquisa, acerca da
violação do princípio constitucional da soberania dos veredictos caso se admita a
interposição de apelação com base na alínea “d”, inciso III, do art. 593, do CPP, há
na doutrina o entendimento de que a possibilidade de interposição do recurso não
contraria o princípio da soberania dos veredictos.
É como se posiciona o autor Guilherme de Souza Nucci:
Por outro lado, a simples existência do recurso de apelação voltando ao
questionamento da decisão dos jurados não constitui, por si só, ofensa ao
princípio constitucional da soberania dos veredictos; ao contrário,
harmonizam-se os princípios, consagrando-se na hipótese o duplo grau de
jurisdição. (NUCCI, 2018, p. 1.127)

Nesse contexto, a linha de raciocínio deste posicionamento se pauta no


argumento de que, em que pese o quesito genérico, a absolvição não pode ser
totalmente dissociada das provas que constam nos autos, de forma que a decisão
do júri seja absoluta e irrevogável.
Acerca da violação à soberania dos veredictos ao se admitir o recurso de
apelação em face da decisão dos jurados quando contrária à prova dos autos
entende Rogério Sanches Cunha:

Mas, diante do princípio da soberania dos vereditos, a modalidade de


apelação contra a decisão dos jurados é válida?
Entende-se no geral que sim, porque a instância superior não decide o
mérito da causa no lugar dos jurados, não absolve nem condena o réu.
Noutras palavras, em nenhum momento substitui os jurados, apenas
determina, diante de manifesta contradição entre o conteúdo probatório e o
resultado da decisão, que novo julgamento seja realizado, também pelo júri.
(CUNHA, 2019, s.p.)

Nesse sentido, defende-se a possibilidade da acusação de recorrer, por meio


de apelação, de decisão proferida no âmbito do Tribunal do Júri, quando for esta
manifestamente contrária à prova dos autos, sem que isso implique em
contrariedade a qualquer princípio constitucional, em especial o princípio da
soberania dos veredictos, eis que, provido o recurso, cabe ao Tribunal do Júri
proferir outra decisão e não ao juiz togado. Em consonância o ministro Joel Ilan
Paciornik4:

Entendo que a inovação trazida pelo art. 483, III, do CPP não derrogou o
art. 593, III, d, do CPP, não ofendendo a soberania dos veredictos a
anulação de decisão proferida pelo Tribunal do Júri, em segundo grau de
jurisdição, quando esta se mostrar diametralmente oposta às provas dos
autos, ainda que os jurados tenham respondido positivamente ao terceiro
quesito da absolvição genérica.

Em contrapartida, há autores que entendem que a inserção do quesito


genérico no Código de Processo Penal impede a interposição de apelação pela
acusação, uma vez que os jurados, pautados na íntima convicção, estão autorizados
a absolverem o acusado por qualquer motivo.
Quanto ao ponto, o ensinamento do autor Paulo Rangel reforça o
entendimento de que os jurados não precisam permanecer adstritos às teses e
provas apresentadas no processo:

Os jurados, com o advento da Lei nº 11.689/08, não estão mais obrigados a


seguir essa ou aquela tese defensiva, ou seja, podem absolver pelo motivo
que quiser, independentemente de acolher a tese técnica jurídica defensiva
exposta pelo advogado e/ou defensor público. O júri é soberano e soberania
não é autonomia. Os jurados não estão sujeitos ao que as partes sustentam
em plenário, salvo quanto aos limites da acusação, isto é, não podem
aumentar o thema decidendum estabelecido pelo MP em sua acusação,
mas não estão obrigados a seguir a tese técnica jurídica defensiva.
(RANGEL, 2018, p. 256).

Também acerca da liberdade dos jurados de absolverem o acusado por


qualquer motivo, ensina o autor Aury Lopes Jr.:

[...] com a inserção do quesito genérico da absolvição, o réu pode ser


legitimamente absolvido por qualquer motivo, inclusive metajurídico.
Portanto, uma vez absolvido, não poderia ser conhecido o recurso do MP
com base na letra “d”, na medida em que está autorizada a absolvição
“manifestamente contra a prova dos autos”. Como dito, com o quesito
genérico da absolvição, os jurados podem decidir com base em qualquer
elemento ou critério. (LOPES JR., 2018, p. 1.036).

Questionam os autores que seguem esse posicionamento a aplicabilidade do


art. 593, III, “d”, do CPP, no que tange à interposição do recurso pela defesa, após a
reforma introduzida pela Lei nº 11.689/08, já que se admite a absolvição por todo

4
HC 313.251 – RJ, rel. Min. Joel Ilan Paciornik, j. 28/02/2018
motivo, ainda que contrária à prova dos autos. Assim entendeu o ministro do
Supremo Tribunal Federal Celso de Mello5:

Registro, por necessário, que tenho adotado essa mesma orientação, no


sentido de também considerar inadmissível – quando não incongruente em
face da reforma introduzida no procedimento penal do júri – o controle
judicial, em sede recursal (CPP, art. 593, III, “d”), das decisões absolutórias
proferidas pelo Tribunal do Júri com suporte no art. 483, III e § 2º, do CPP,
quer pelo fato, juridicamente relevante, de que os fundamentos efetivamente
acolhidos pelo Conselho de Sentença para absolver o réu (CPP, art. 483, III)
permanecem desconhecidos (em razão da cláusula constitucional do sigilo
das votações prevista no art. 5º, XXXVII, “b”, da Constituição), quer pelo
fato, não menos importante, de que a motivação adotada pelos jurados
pode extrapolar os próprios limites da razão jurídica.

Entretanto, cumpre ressaltar, como já foi dito, que o posicionamento do


ministro Celso de Mello no julgamento acima não corresponde ao entendimento full
bench6 do STF, não se findando a discussão acerca do tema.
Sendo assim, embora a discussão não esteja pacificada na doutrina e
jurisprudência, a partir de uma análise transitória, tem-se que o recurso de apelação
do art. 593, III, “d”, do CPP, ainda pode ser manejado pela acusação, sem que isso
implique na violação ao princípio da soberania dos veredictos, pois, como expõe
Rogério Sanches Cunha (2019) outorgar aos jurados um poder ilimitado para que
julguem de maneira dissociada das provas dos autos é incompatível com os
preceitos basilares do ordenamento jurídico e com os objetivos do próprio Tribunal
do Júri.
Por fim, nos dizeres do ministro Joel Ilan Paciornik (2018) o controle feito pelo
Tribunal, de forma excepcional, da decisão absolutória dos jurados, que se revele
totalmente dissociada da prova dos autos, é plenamente admissível para que se
evite arbitrariedades e garanta a observância do duplo grau de jurisdição, uma vez
que essa decisão não é absoluta e irrevogável.

5
RHC 117.076 – PR, rel. Min. Celso de Mello, j. 01/08/2019
6
Full bench ou reserva do plenário, significa que a decisão deve ser tomada pela maioria absoluta
dos membros, conforme o art. 97 da CR/88. (TESAURO DO STF, 2019)

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