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Da Presumida Segurança da Urna Eletrônica

Sumário. Instrumento de comprovada utilidade nos escrutínios


eleitorais, tem a urna eletrônica lugar de relevo na vida política
nacional. Mas, obra do engenho humano, está naturalmente
sujeita a falhas e imperfeições, que urge reconhecer e corrigir,
não venham a destruir a pedra angular dos regimes
democráticos, que é o voto do eleitor.

Sob a inspiração e patrocínio da Justiça Eleitoral, os meios de


comunicação do País (rádio, televisão, etc.) têm anunciado, com viva
força, que as urnas eletrônicas, em que depositam os eleitores os seus
votos, são, quando examinadas à luz da eficiência, precisão e
segurança, de todo o ponto confiáveis.
Da excelência de tais características foi constituída pregoeira e
avalista a renomada professora e mestra em Filosofia Política Djamila
Ribeiro, a qual, ao mesmo passo que encareceu em sumo grau a
confiança nas qualidades positivas daquele aparelho — por atender
aos requisitos da “segurança”, “checagem” e “transparência” —, contou com
o prestígio de lisonjeira informação: “Não recebeu cachê para participar
desta campanha”.
As circunstâncias em que elaborada como que conferem à
mensagem rigor dogmático. Ostenta, com efeito, caráter oficial,
expedida que foi por órgão da soberania do Estado: Tribunal Superior
Eleitoral, cujo Presidente — Ministro Luís Roberto Barroso — não é
lícito supor quisesse obrar com outro propósito que prover da
máxima garantia e lisura a realização dos pleitos(1).
Ao demais, isto de haver profissional de nomeada renunciado à
retribuição econômica ou verba honorária, a que fazia jus (por
sustentar o facho de importante campanha de interesse público), passa
por lance edificante de cidadania, poderoso a prevenir e afastar o
menor laivo de má-fé, restrição mental ou intenção reservada.
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Por fim, diz em crédito dos vibrantes discursos em prol dos


predicados vantajosos da urna eletrônica a Portaria nº 578, de 8.9.21, do
Excelentíssimo Senhor Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, que
criou a Comissão de Transparência das Eleições (CTE), e a Portaria nº
579, de 8.9.21, que tornou pública a composição do Observatório da
Transparência das Eleições (OTE): expressivo rol de representantes de
instituições e órgãos públicos (Congresso Nacional, Ordem dos
Advogados do Brasil, Ministério Público, Forças Armadas, Polícia
Federal, etc.), chamados a supervisionar a tecnologia aplicada ao
sistema eleitoral.
Tal conjunção de fatores, embora ponderável, afigurar-se-á
entretanto hábil para elidir toda dúvida sensata a respeito da urna
eletrônica?!
Terá deveras solidez absoluta o que dela dizem sujeitos, ainda
que fidedignos e de grande ilustração?!
Eis a pergunta que poderá fazer alguém, num mundo em que até
os rochedos se abalam!

II. No campo das ideias nenhum assunto está fora de exame e


debate. Princípio é esse que se autoriza com o timbre da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, da ONU, de 1948: “Todo homem tem
direito à liberdade de opinião e expressão, direito esse que inclui a liberdade de,
sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e
ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras” (art. 19)(2). Igual
disposição traz a Constituição da República Federativa do Brasil, de
5.10.1988(3).
Ao demais, e disse-o com razão e inexcedível propriedade Mário
Barreto, fino homem de letras: “Só as verdades intrinsecamente matemáticas
estão isentas de toda discussão”(4); argumento a que acrescentou peso e
força o saudoso e benemérito Prof. Napoleão Mendes de Almeida,
com dizer que só “o ignorante não duvida, porque desconhece que ignora”(5).
Pode, portanto, a dúvida representar estágio mais que
aconselhável, obrigatório, na busca incessante da verdade(6).
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Nas ações humanas é coisa vulgar o erro; desde que feita por
homem, a obra encerra, por força, alguma imperfeição, fatal
contingência contra que ninguém se mostrou ainda suficientemente
seguro. Esta é a regra geral! Não lhe constituem exceção notável
sequer aqueles nos quais arde o fogo do gênio e que, inteligências
privilegiadas, acreditam-se pupilos diletos da fortuna.
É que também sobre eles exerce implacável sua jurisdição a
“eterna falibilidade humana, cujos estigmas ninguém evita neste mundo”, como
sentenciou o nosso Rui(7).
Cuida-se aqui — escusava dizê-lo — somente do erro do
entendimento, não do que é parto da vontade viciada ou da malícia
(que fora gênero de desgraça grande supô-lo em sujeitos incumbidos
de prestar inestimáveis serviços à Pátria!).

III. Por padrão de segurança, declara o Tribunal Superior Eleitoral,


em seu texto de campanha, que a urna eletrônica “não é conectada à
Internet nem a nenhuma outra rede”.
Afirma ainda que o “boletim de urna” — extrato impresso dos
votos dos candidatos — é afixado no átrio da seção eleitoral para
conhecimento dos interessados em apurar o rigor do escrutínio.
Por fim, especialistas em segurança digital, instituições e órgãos
do Estado haverão de comprovar se o sistema de urna eletrônica é, em
verdade, sem falha e superior à crítica honesta.
A essas cautelas, que têm o cunho de imprescindíveis à
atestação da qualidade da urna eletrônica, duas outras sobrelevariam:
I- Máxima diligência na operação (que se quer indefectível) de
traslado e transposição dos dados do boletim informativo para o circuito
receptor do Tribunal Superior Eleitoral;
II- Estrita pontualidade no desenvolvimento e execução dos
programas (“softwares”) do Tribunal Superior Eleitoral, estremes de
senão ou mácula.
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A escrupulosa observância de tais normas afastará, por certo, o


natural receio do eleitor de que evento fortuito ou (por argumentar
somente) algum criminoso artifício lhe venham frustrar a intenção do
voto no candidato de sua preferência.
Trata-se de medidas que servirão a coibir toda anomalia no
funcionamento do processo eleitoral.
No caso, porém, de emenda de erros — matéria de gravidade
insigne! —, o interessado não haverá recorrer senão ao instituto da
auditoria, como instrumento revisional…
Mas a alegação de fraude — aqui é que está o busílis! — será
simples sopro de voz e expressão vazia de sentido, se a não
acompanhar o elemento material ou corpo de delito. (É que, em todas
as esferas da Justiça, os litígios devem julgar-se “pelo alegado e provado”).
Ora, de nenhum instrumento poderá valer-se o eleitor para
fazer prova da alegação de que foi lesado (por ter sido computado em
favor de outrem o sufrágio que dera a certo candidato).
Seria, portanto, impor-lhe ônus inexequível, como é a produção
de prova impossível (a que os patriarcas do Direito chamavam, com
bem de razão, prova diabólica)(8).
Há-se mister, pois, do elemento de contraste, ou pedra de toque,
da prova de que o voto foi atribuído exatamente ao candidato cujo
número o eleitor digitara na urna eletrônica. Para tanto, importa
muito seja dotada de núcleo no qual, de par com o voto oficial — que
é computado e impresso no boletim informativo do Tribunal Superior
Eleitoral —, se proceda ao seu registro físico (por criptograma), para
utilização futura, como prova instrumental, no caso de dúvida ou
impugnação do resultado da votação.
A falta de tal recurso, ou dispositivo de salvaguarda do voto, é, a
meu aviso, a razão principal de se não formularem ainda gerais
aplausos à urna eletrônica.
Esta árida e árdua questão tem sido já exposta a toda a luz por
autores de vasto saber e levantado senso crítico. É desse número
Charles Seife, professor de Jornalismo da Universidade de Nova Iorque
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e mestre em Matemática pela Universidade Yale; após advertir que “o


voto eletrônico tem potencial para transformar as eleições em um caos”, diz, com
bem de pesar: “É possível que nunca fiquemos sabendo se nosso voto foi
realmente computado ou engolido pelo aparelho”.
Ajunta, contudo, para honra e conforto da Humanidade: “Se o
software for aberto ao escrutínio público — se qualquer programador puder
estudar o código-fonte à procura de erros —, a contagem eletrônica dos votos
apresentaria um alto grau de confiabilidade”(9).
Por sua intensa campanha de esclarecimento a esse respeito, é
para crer que o Tribunal Superior Eleitoral esteja realmente a sanear,
na plenitude de sua força e grandeza, o nosso processo eleitoral,
expungindo-o de todo vício que possa contaminar o resultado das
urnas eleitorais e, destarte, livrá-lo da justa diatribe que lhe fulminara,
há mais de um século, o verbo inflamado e moralizador de Rui
Barbosa: “A fraude eleitoral da política brasileira é como o elemento servil na
formação de nossa sociedade: está por toda a parte”(10).
Em suma: façamos votos porque a urna eletrônica seja,
verdadeiramente, o augusto padrão miliário da estrada real da
Democracia!

Notas

(1) Nenhum motivo me depara o teor de proceder do


Excelentíssimo Senhor Ministro Luís Roberto Barreto, que o
desmereça das graves funções de Presidente do Tribunal
Superior Eleitoral; nele acho, aliás, muitos que o recomendem
para o seu exercício, e estão expressos no livrinho que lhe
dediquei e ofereci: Da Sentença (Doutrina e Jurisprudência), 2019,
pp. 11-17; www.scribd.com/Biasotti. (A benevolência do leitor
espero me relevará esta fumaça de vaidade, aqui necessária!).
(2) Apud Jayme de Altavila, Origem dos Direitos dos Povos, 4a. ed., p.
223; Edições Melhoramentos.
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(3) “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art.


5º, nº IV, da Const. Fed.).
(4) Últimos Estudos, 1944, p. 39.
(5) In Gramática Metódica da Língua Portuguesa, 29a. ed., p. 169;
Editora Saraiva.
(6) “Dubitando ad veritatem pervenimus”, escreveu o eloquente Cícero
(“Tusculanae Disputationes”, I, 30, 73), o que, traduzido para o
nosso vernáculo, quer dizer: Duvidando chegamos à verdade.
(7) Réplica, nº 10 (Obras Completas de Rui Barbosa, vol. XXIX, t. II, p.
49).
(8) “Prova diabólica – Probatio diabolica. Prova impossível de fazer-se. Prova
que se perde na noite dos tempos. Prova absurda” (Leib Soibelman,
Enciclopédia do Advogado, 3a. ed., p. 297; Editora Rio).
(9) Charles Seife, Os Números (Não) Mentem, 2012, pp. 220-222; trad.
Ivan Weisz Kuck; Editora Zahar; Rio de Janeiro. Em
confirmação da verdade de que também as máquinas, não só os
homens, conjugam o verbo errar na voz ativa, traz o autor à
colação dois casos frisantes: I- “(…) em 2003, uma eleição em Boone
County, Iowa, inicialmente registrou 144 mil votos em máquinas
eletrônicas, embora só houvesse 19 mil eleitores cadastrados”. II- “Às
vezes as máquinas roubam votos de um candidato e dão a outro. Em
2000, o sistema de votação eletrônica de um condado da Flórida registrou
16 mil votos negativos para Gore, enquanto Bush recebeu
aproximadamente 2.800 votos — tudo em uma área com menos de
seiscentos eleitores registrados” (op. cit., p. 221).
(10) Op. cit., vol. XXX, t. I, p. 73.

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