E o inquérito instaurado por um tribunal, vigente ad eternum e
com base em competência análoga? — uma reflexão.
É rotineiro para nós juristas que temas legais se confundam com o espectro político atual relevante. No entanto, pelo menos aqueles que respeitam nosso compromisso com a Justiça não deixam que inclinações políticas embaracem suas análises jurídicas. Ainda mais na presente conjuntura, é imperativo tratar com juridicidade o que, entre os Poderes, muito se resolve com carícias pecuniárias; formação de maiorias; aprovação de contas; indicações; vista grossa; panos quentes; e outras cositas más. Mas, aos legalistas de ofício impera muito mais observar os mandamentos impostos sobre TODOS nós — aqueles crivados na Constituição Federal; diga-se, muito frequentemente deixados de lado pelos integrantes dos três Poderes. Neste sentido, peço vênia àqueles que detém máxima vênia, o Supremo Tribunal Federal (STF), para tratar do Inquérito 4.781. Afinal de contas, para os fins do presente ensaio, não caberia a mim conferir-me vênia a mim mesmo. Cometo dolosamente a redundância acima, a fim de ilustrar os mandamentos jurisdicionais crivados na Constituição da República Federativa do Brasil, principalmente no que tange à vedação de emanar competência de um órgão jurisdicional para si mesmo, o que é ponto crucial desta análise. Não só é ponto crucial desta análise, mas foi escolha primordial do Constituinte que houvesse uma repartição estática das competências jurisdicionais, justamente a impedir confusões entre concessores e concessionários de competência decisória, evitando abusos de poder. Sendo assim, é vedado que juizados, seja qual for sua hierarquia, clamem para si a vênia material, formal ou subjetiva sobre o que quer que seja; a não ser em virtude de lei. Não menos vinculado por esta verdade está o STF, que não pode decidir sobre O aquilo, O quem e O que bem entender, mas tão somente quando lhe estender vênia a Constituição da República Federativa do Brasil e a legislação correlata. Este ponto é final. Mas do que trata então o referido Inquérito? Em linhas gerais, desde 2019, tramita perante o STF um Inquérito utilizado para proteger a honorabilidade e segurança dos Ministros deste tribunal. Até aqui, em tese, nada há a ser reparado, afinal de contas, é razoável temer pela vida de Ministros do STF, principalmente tendo-se em vista as ameaças sofridas por Joaquim Barbosa, quando cotado para a relatoria da lava-jato, após sua árdua relatoria do mensalão; a morte de Teori Zavaski, relator da lava-jato ao tempo de seu falecimento; e toda a insegurança que assola o Brasil. Entretanto, ocorre que inquéritos, via de regra, são competência do Poder de Polícia e prestam a investigar uma notícia-crime concreta no território de competência da Delegacia de Polícia materialmente competente. Mesmo assim, sob relatoria de Vossa Excelência Min. Alexandre de Moraes, o Inquérito 4.781 (Inquérito das Fakenews) foi instaurado em 14 de março de 2019 por Vossa Excelência Min. Dias Toffoli através da Portaria 69/2019 e distribuído de ofício para o Relator. Seu objeto: apuração de supostas ameaças de iminente lesão ou já consumada lesão à honorabilidade e à segurança do STF, de seus membros e de seus familiares. A autoria do referido inquérito foi — e permanece — mantida em sigilo. De início, havia 11 indiciados para apuração do seguinte: “…os responsáveis pelas postagens reiteradas em redes sociais de mensagens contendo graves ofensas a esta Corte e seus integrantes, com conteúdo de ódio e de subversão da ordem…”. Além das condutas diretamente “ameaçadoras”, o Inquérito apontara 5 financiadores da indiciada prática de disseminação de informações ameaçadoras, pois teriam garantido maior visibilidade às mensagens através de tráfego pago nas redes. Assim, teriam concorrido para a efetivação de ofensas à Corte e seus integrantes, propagando subversão da ordem. Entre estes encontra-se o nome de Luciano Hang, notável empresário brasileiro. Além do fato das expressões “subversão à ordem”, “garantia da segurança do Estado”, “conduta atentatória à Segurança Nacional” muito lembrarem períodos sombrios da história, ou simplesmente remontarem ao Adorável Mundo Novo de Huxley; pergunta-se: o STF detém competência para tanto? No caso de crimes cibernéticos, há previsão de que a polícia competente para instaurar um inquérito a fim de apurar tais condutas seja aquela da comarca onde esteja sediada a empresa provedora da plataforma utilizada para cometimento online da respectiva conduta criminosa. Sendo assim, a competência para apuração de tais crimes deveria ser do departamento de polícia civil responsável pela investigação de crimes cibernéticos do respectivo território onde esteja sediada a empresa implicada, leia-se: a Delegacia de Polícia (DP) responsável pela circunscrição do bairro Itaim Bibi, à Rua Leopoldo de Magalhães, São Paulo, no caso do Facebook, Instagram e WhatsApp; a DP responsável pela circunscrição do bairro Itaim Bibi, à Av. Brigadeiro Faria Lima, São Paulo, no caso do Google; e a DP responsável pela circunscrição do bairro Vila Nova Conceição, à Rua Professor Atilio Innocenti, São Paulo, no caso do Twitter. Note-se, neste diapasão, que a plataforma Telegram está sediada em Dubai, de forma que poderia ser de competência da Polícia Federal uma tal investigação. No entanto, o referido inquérito utiliza-se de uma construção hermenêutica. Cria-se uma presunção de que crimes cometidos na internet se consumam simultaneamente em todos os lugares (ubiquitariedade das redes sociais). Ademais, crimes de opinião, aqueles com animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi se consumam quando atingem a vítima. Neste liame, conforme o Artigo 43 do Regimento Interno do STF (RISTF) é facultativa a instauração de inquérito pelo próprio STF para apuração de infrações penais cometidas em suas dependências, seu território físico. Destarte, incidentalmente, o território do próprio tribunal seria também um local onde os crimes investigados teriam se consumado, indiretamente, uma vez que a honorabilidade e a segurança de Ministros estariam ameaçadas por conteúdos disseminados em plataformas digitais. É, assim, uma construção hermenêutica muito conveniente. Além disto, como mencionado, um inquérito policial sempre conta com um objeto concreto determinado. Aqui, todavia, tem-se uma notícia-crime abstrata sobre o suposto cometimento de condutas jamais individualmente especificadas. O que se apura é uma suposta ameaça intangível, sendo que o STF se confere o direito de utilizar quaisquer meios de prova para descobrir se, onde e por quem esta ameaça de fato existiria. Ademais, as condutas típicas imputadas aos indiciados, calúnia (Art. 138 CP); difamação (Art. 139 CP); e injúria (Art. 140 CP) são crimes que dependem, salvo exceção, de representação privada para que a polícia abra uma investigação. Mesmo assim, o STF não só conferiu vênia a si mesmo para abertura do referido inquérito, mas também prescindiu da representação de quaisquer ofendidos individualmente, como se o STF, enquanto órgão da República Federativa do Brasil, incorporasse a honorabilidade e a segurança de seus integrantes. Acredite quem tenha fé na República, mas os demais tipos penais sobre os quais o STF clamou vênia foram definidos em uma lei promulgada durante a Ditadura Militar pelo então presidente Sr. João Figueiredo, os chamados crimes contra a Segurança Nacional (Lei 7.170/83). Estes tipos penais versam sobre condutas violentas ou gravemente ameaçadoras contra o livre exercício dos Poderes; atos de propaganda em prol de discriminação ou da alteração violenta da ordem social; incitação de subversão ou de animosidade entre os Poderes; e, por fim, o crime de caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação. Mas, até mesmo lá, estava prevista a competência da Polícia Federal para apuração de tais condutas. Diga-se de passagem, hoje, a referida Lei 7.170/83, que está enraizada nos períodos mais sombrios das ditaduras varguista e militar, está revogada e as condutas imputadas aos indiciados não mais constam, nos mesmos termos, do Código Penal. Tais condutas foram adaptadas à realidade de “crimes contra o Estado Democrático de Direito” pela Lei 14.197/2021. Em suma, o que realmente pasma é o caráter rigorosamente repressivo de uma lei promulgada enquanto os militares tentavam reacender a chama de uma ditadura já com prazo de validade vencido vigorando, hoje, para perseguir-se pessoas indeterminadas. Ou melhor, determinadas: todo e qualquer cidadão brasileiro que duvide da imparcialidade do STF e expresse isto com termos chulos ou agressivos por meio de redes sociais. Este é o objeto de fato do Inquérito das Fakenews. Pois, não há um objeto jurídico válido para a manutenção de seus efeitos. Já foi requerido, inúmeras vezes, pelo Ministério Público Federal (MPF) o arquivamento deste inquérito, mas o STF clama para si a vênia para utilizar dos meios idôneos para apuração dos crimes acima descritos, nos seguintes termos: “…medidas de polícia judiciária, tais como apreensão dos equipamentos de informática (hardwares) e realização de perícia nos mesmos e oitiva dos envolvidos, analisada a viabilidade jurídica de tais medidas no caso em concreto.” Neste sentido, o Ministro Relator empoderou-se para determinar a realização de diligências em domicílios, locais de trabalho e onde ele bem entender, a fim de garantir a segurança dos ministros do STF. No princípio, ainda era menor a dimensão do absurdo, pois o inquérito se limitava aos onze investigados. Mas, atualmente, o Ministro Relator invade conversas privadas de pessoas indeterminadas a fim de “esclarecer a dimensão da ameaça a sua corte”; a fim de esclarecer como indivíduos cooperaram para atuar em 08 de janeiro; a fim de investigar contatos do ex- Presidente da República; a fim de descobrir o que bem lhe agradar. Num exercício jocoso com esta realidade que muito machuca qualquer jurista leal ao Direito; seria o inquérito das Fakenews também usado pelo Exmo. Ministro caso viesse a desconfiar de sua esposa? Não se sabe, afinal de contas, o Inquérito não conta com um objeto concreto. Somente se pode especular. Se quiser, poderá. E nem o MPF, nem a Polícia, nem ninguém poderá impedi-lo, pois tudo tramita no mais resguardado sigilo. Por fim, o Inquérito não tem prazo de validade. Está aprazado até setembro de 2023, após 4 anos e meio de tramitação, mas este prazo não é de término. Como nas diversas oportunidades passadas, pode muito bem o Ministro Relator entender que a relevância do Inquérito está mantida e, assim, determinar nova data para simples e formalmente reiterar a necessidade sua prorrogação. Que deus abençoe o Brasil! Ao que parece, antes de melhorar, ainda vai piorar muito. Não é somente especulação, visto que tramita no Senado projeto de lei qualificando o crime de injúria como discriminação, se cometido contra pessoa politicamente exposta; visto que o Projeto de Lei das Fakenews — suspenso na Câmara — prevê competência de qualquer juízo nacional a oficiar plataformas digitais para excluir conteúdos, banir usuários, multá-las e muito mais. E veja-se que estes últimos são somente dois dos fortes indícios de que o Poder Legislativo está criando bases legais para ações que já vem sendo tomadas pelo STF, no âmbito do Inquérito das Fakenews. E pior, há uma cooperação entre o STF e as casas legislativas. Teoria da conspiração? Não! No âmbito do Inquérito, o Ministro Relator já determinou suspensão das atividades da rede Telegram por não cumprir seus ofícios. Ofícios estes que, não satisfeitos com a exclusão de conteúdos e banimento de usuários que tivessem atacado o PL das Fakenews, determinavam que o Telegram postasse informações apoiando o PL das Fakenews para demonstrar que os usuários daquela plataforma estavam disseminando “desinformação” quando chamavam-no de PL da censura e rechaçavam sua transformação em Lei. E este é somente UM dos tantos casos conhecidos. Sabe-se lá quantos outros casos existem ainda em sigilo, sabe-se lá… Salve-se quem puder.
O Absurdo Das Denúncias Genéricas (Ou, o Mágico de Oz e o Estado-Leviatã, Uma Simbiose Sinistra) - Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Edward Rocha de Carvalho - Empório Do Direito
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