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"Canetti tem uma nova perspectiva da natureza da vida
social; sua abordagem é nova e frutífera, o que lhe. dá
a base para uma visão inteligível dos assuntos humanos"
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_"Ca11'ctti mostra ·~ma dimensão impressionante do


• · · pensamento criativo do homem."
Booklist
"Canettí fe; o que os filósofos deviam fazer
e o que costumavam fazer: fç,rnecer-nos novo_s ~onceitos. '
Ele também, mostrou, de um modo que me parece inteirámente novo / · ·'.
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a interação do "mítico" com a matéria comum da vida humana. 1
Canetti é um do~ pssos grandes crigdores e um gêl1io _solitário." r ..• ;
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27416-1 R$ 9,60

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:> ISBN 85-85114-59-2''
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.~ Espaço e Tempo
Em 1981, Elias Canetti (1905-
recebe o Nobel, conferido ao conjunto
de sua obra.
Aqueles que conheciam Auto-de-fé e
Massas e poder já sabiam das virtudes que
justificavam o Prêmio Nobel para este es-
critor nascido na Bulgária, de família ju-
daica, um espírito andarilho e cosmopoli-
ta. Eram obras monumentais, feitas com a
paixão necessária para compreender uma
Europa em ruínas. O OUTRO PROCESSO
Algumas experiências básicas recor-- As cartas de Kafka a Felice
riam em todo o trabalho de Canetti - a
sensação de perda dolorosamente vivida
num mundo desfeito por guerras e infla-
ção, o surgimento compensatório de mo-
vimentos de massa como o fascismo e o
nazismo, a luta selvagem pelo poder- tu-
do isto numa escrita brilhante, metafórica,
com idéias livres e surpreendentes, num
estilo de magnífico prosador.

Todas estas qualidades se encontram


- em miniatura - neste livro O OU-
TRO PROCESSO . Tomando como pon-
to de partida a copiosa correspondência de
Kafka a Feiice Bauer, surge agora uma no-
va imagem de grande fabulador de A me-
tamo1fose e O processo: Kafka como um
escrito r preocupado com o poder, não
apena s nas suas construções ficcionais,
mas numa de suas mais secretas e podero-
sas ficções : sua própria vida.
Tudo começa no dia 13 de agosto de
191 2, quando Kafka conhece Feiice Bauer
na casn cio nmigo e protetor Max Brod.
N o di n 20 de setembro do mesmo ano,
Kafkn inicia uma correspondência turbu-
lcn tn que durará cinco anos e mais que se-
tcccm ns pngin ns . É daí que Canetti parte.
Nn ·orrcspondência a Feiice Bauer, Ca-
ncui vO Knflrn como um grafocrata, um
cscl'Í \0 1• qu e 11ii.o apenas analisa o poder to-
tnlit111fo q11c desilude e corrompe a condi-
ELIAS CANETTI
Prêmio Nobel de Literatura

O OUTRO PROCESSO
As cartas de Kafka a Felice

Traduzido do alemão por


H erbert Caro

• a
Espaço e Tempo
Rio de Jàneiro
© Carl Hanscr Verlag, Munchen, 1984
Título original: Der andere Prozess - Kafkas briefe an Feiice
Para Veza Canetti

Direitos de publicação em Língua Portuguesa no Brasil:


Editora Espaço e_Tcmpo Ltda.
Rua Francisco Serrador, 2 gr. 604 - Centro
20031 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Tel.: (021) 262-2011

Capa e diagramação: Cláudio Mesquita

C IP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Canctti, Elias, 1905-


C225o 0 outro processo: as cartas de Kafka a Feiice / Elias Canet-
ti; traduzido do alemão por Herbert Caro. - Rio de Janeiro: Es-
paço e Tempo, 1988.

Tradução de: Der andere Prozess: Kafkas bricfc an Feiice.


ISBN 85-85 114-59-2

1. Kafka, Franz, 1883-1924- Correspondência. 2. Bauer,


Feiice, 1887-1960. 1. Kafka, Franz, 1883-1924. Der andcrc Pro-
zess. Português. II. Título. III. Título: As cartas de Kafka a Fe-
iice.

CDD - 836
88-0604 CDU - 830-6
I

E agora elas estão publicadas num volume de 750


páginas, essas cartas de cinco anos de tormentos. O
nome da noiva, designado durante muito tempo tão
somente por um discreto "F. ", à semelhança de "K. ",
de- modo que por longos anos nem sequer se sabia co-
mo ela se chamava, e numerosas conjeturas eram feitas
a seu respeito - embora entre todos os nomes ventila-
dos jamais se acertasse o verdadeiro, uma vez que teria
sido impossível cogitá-lo-, esse non1e aparece agora
em letras garrafais na capa do livro. A mulher à qual se
dirigiam essas cartas está morta há oito anos. Cinco
anos antes de falecer vendeu-as ao editor de Kafka; e
seja qual for a opinião que se forme com relação a tal
procedimento, "a mais querida mulher de negócios"
do escritor demonstrou dessa maneira pela última vez,
aquela eficiência que tanto significava para ele e até
provocava nele sentimentos de ternura.
É bem verdade que, quando saíram as cartas, já
tinham decorrido 43 anos desde a morte de Kafka, e
todavia ocorria que a primeira reação que se experi-
mentava - reação que se devia à reverência por ele e à
sua desgraça - fosse de embaraço e pudor. Conheço
pessoas cujo constrangimento crescia durante a leitura
e que não conseguiam livra-se da sensação de estarem

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irrompendo em regiões onde justamente não lhes cabia vez, menciona-o numa carta a Max Brod, datada de 14
penetrar. de agosto . Fala-se ali do manuscrito da Betrachtung
Respeito-as 111'.:ito por essa sua atitude, porém não (Contemplação), que, na véspera, trouxera consigo, na
faço parte delas. Li aquelas cartas com uma emoção intenção de pô-lo em ordem definitiva com a ajuda do
tamanha como havia anos nenhuma obra literária me amigo.
causara. Elas figuram agora nessa série de inconfundí- "Ontem, ao ordenar as pecinhas, eu me achava
veis memórias, autobiografias e epistolários que nu- sob a influência dessa senhorita. É bem possível que
triam o próprio Kafka. Ele, cuja máxima qualidade era por isso se haja originado qualquer besteira, um arranjo
o respeito, não tinha receios de ler e reler as correspon- que talvez seja curioso apenas secretamente." Pede en-
dências de Kleist, de Flaubert, de Hebbel. Num dos tão a Brod que cuide em que tudo saia certo e de ante-
momentos mais aflitos de sua vida aferrou-se ao fato de mão expressa sua gratidão. No dia seguinte, 15 de
que Grillparzer já não sentia coisa alguma, quando co- agosto, encontra-se no diário a seguinte frase: "Pensei
locava Kathi Frohlich em seu colo. Em face dos hor- muito em... que embaraço de escrever nomes!... em
rores da vida, dos quais a maioria dos homens fe- F.B."
lizmente só toma conhecimento às vezes, mas que es- Em seguida, no dia 20 de agosto, uma semana
tão sempre presentes no espírito de uns poucos que for- após o encontro, tenta realizar em esboço objetivo da
ças íntimas exigiram em testemunha, só há um conso- Primeira impressão. Descreve a aparência da moça e
lo: na identificação com os horrores que aconteceram a percebe que, ao "acercar-se demasiadamente dela",
testemunhas anteriores. Sendo assim, cumpre-nos real- afasta-se um pouco de sua pessoa. Parecera_-lhe natural
mente agradecer a Feiice Bauer, porque guardou e pôs que ela, uma es tranha, fizesse parte daquela roda .
a salvo as cartas de Kafka, mesmo que tenha sido capaz Conformara-se imediatamente com sua presença. "En-
de vendê-las. quanto me sentava, olhei-a pela primeira vez mais deti-
Neste caso, seria pouco qualificá-las de documen- damente e, quando estava sentado, já tinha chegado a
tos, a n1enos que se usasse o mesmo termo com respei- uma opinião inabalável." A anotação interrompe-se
to aos relatos de vida de Pascal, Kierkegaard e Dostoie- em meio à frase seguinte. Os fatos mais importantes
vski. No que tange a mim, só posso dizer que essas deviam ainda ser relatados, e somente mais tarde se ve-
cartas entraram no meu espírito como uma vida genuí- rá quanta coisa faltava dizer.
na, e a esta altura afiguram-se-me tão enigmáticas e tão Em 20 de setembro, Kafka escreve pela primeira
familiares como se sempre me tivessem pertencido, vez a Felice. Chama-lhe à m emória - afinal tinham
desde que comecei a tentar acolher em mim seres hu- decorrido cinco semanas desde aquele encontro - a
manos, a fim de compreendê-los uma e outra vez. pessoa que na casa dos Brod alcançava-lhe por cima da
Na tardezinha do dia 13 de agosto de 1912, Kafka mesa uma fotografia após outra e por fim "com esta
travou conhecimento com Feiice Bauer no apartamen- mesma mão que agora bate as teclas, segurava a sua,
to da família Brod. D essa época, chegaram até nós vá- com a qual você selava a promessa de fazer no ano se-
rias descrições do encontro feitas por ele. Pela primeira guinte em companhia dele uma viagem à Palestina".

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A subitaneidade dessa promessa, a segurança com Brod, hospedou-se por poucas semanas no sanatório
que ela a fazia eram o que logo o impressionava gran- naturista Jungborn, na serra do Harz. Desse período,
demente. Kafka recebia o aperto de mão como se fosse datam anotações maravilhosamente ricas, livres de in-
um compromisso (Gelobnis), palavra atrás da qual se teresses do gênero "Talia" e da piedosa veneração pelas
esconde noivado ( Verlobung), e ele, que sempre hesita- moradas de grandes poetas. Mas os cartões postais que
va muito em tomar decisões e do qual cada meta que ele enviava à bela moça de Weimar receberam respostas
desejava atingir afastava-se, devido a milhares de dúvi- amáveis. Kafka copiou uma delas literalmente numa
das, em vez de aproximar-se, tinha que ficar fascinado carta a Brod e acrescentava o seguinte comentário bas-
por tamanha rapidez. Ora, a meta da promessa é a Pa- tante otimista para sua mentalidade: "Pois, ainda que
lestina, e dificilmente existiria a essa altura da sua vida ela' não me considere desagradável, fico-lhe tão indife-
palavra mais esperançosa para ele: é a Terra Prometida rente como qualquer panela. Mas, por que escreve-me
(das gelobte Land). então assim como quero? Ah, se fosse verdade que pos-
Mais significativa ainda se torna a situação, se le- samos amarrar raparigas só pela escrita!"
vamos em conta .o gênero de fotografias que ele lhe O encontro na casa de Goethe .encorajara-o. São
alcançara por cima da mesa. Elas haviam sido tiradas fotos daquela viagem as que alcança a Felice por cima
durante uma "Viagem Talia"*. Nos primeiros dias do da mesa nessa primeira tarde. A recordação de uma
mês de julho, umas cinco ou seis semanas atrás, Kafka tentativa de travar relações, de sua atividade de outro-
estivera junto com Brod em Weimar, onde lhe tinham ra, e que afinal de contas teve por resultado as fotogra-
acontecido episódios muito estranhos. A filha do zela- fias que então podia exibir, transferia-se à mqça sentada
dor da casa de Goethe, uma linda moça, despertara a à sua frente, a Feiice.
sua atenção. Kafka conseguira acercar-se dela. Chegara Também cumpre mencionar que nessa mesma
a conhecer sua família. Fotografara ... a no jardim e viagem, que se iniciou em Leipzig, Kafka foi apresen-
diante da casa. Recebera permissão de voltar e desse tado a Rowohlt, que reso]vera editar o primeiro livro
modo freqüentara livremente a casa de Goethe, não só dele. A combinação de breves fragmentos espalhados
nas horas habituais reservadas aos visitantes. Por acaso, pelos diários, sob a forma da Contemplação, dava muito
avistara a mocinha ainda diversas vezes nas ruas da pe- trabalho a Kafka. Ele vacilava. As peças não lhe pare-
quena cidade; com certa aflição, observara-a em ciam suficientemente boas. Brod insistia e não cessava
companhia de alguns rapazes; marcara um encontro, ao de exortá-lo. Finalmente chegara o momento. Na tarde
qual ela faltou, e imediatamente compreendera que os do dia 13 de agosto, Kafka trazia consigo a seleção defi-
sentimentos dela concentravam-se sobretudo em estu- nitiva e, como já se mencionou, tencionava tratar com
dantes. Aquilo passara-se em poucos dias. A agitação da Brod da disposição dos textos.
viagem, onde as coisas costumam ocorrer mais depres- Assim, pois, estava ele naquela ocasião provido de
sa, favorecera o contato. Logo depois, Kafka, sem tudo quanto pudesse infundir-lhe coragem: o manus-
crito de seu primeiro livro; as fotos da "Viagem Talia",
* A serviço da m11sa T alia (N. do T. ) entre as quais figuravam as daquela garota que tão cor-

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tesmente respondera aos seus postais; e no bolso tinha rem a importantes inclinações de sua natureza intrínse-
ele um número da revista "Palestina". ca, por compensarem algo que a ele mesmo falta ou
O encontro teve lugar no lar de uma família em por despertarem o seu espanto, aproximando-o, graças
cujo seio Kafka se sentia à vontade. Segundo conta, a este, da pessoa dela. Aqui só se falará dessas últimas,
tentava prolongar as noitadas em companhia dos Brod, pois são elas as que durante sete meses fixaram no espí-
e tornava-se necessário que estes, quando queriam dor- rito de Kafka a imagem de Felice. Foi esse o tempo que
mir, expulsassem-no amavelmente. Era essa família transcorreu até que ele tornasse a vê-la e nesse lapso de
que o atraía, em detrimento da sua própria. Ali a Lite- . sete meses originou-se aproximadamente a metade da
ratura não estava malvista. Todos se orgulhavam de bem extensa correspondência entre ambos.
Max, o jovem poeta da casa, que já se tornara afamado, Ela levara muito a sério a contemplação dos ins-
e seus amigos eram levados a sério. tantâneos, que tinham sido tirados justamente por oca-
Para Kafka, foi uma fase de múltiplas e bem exatas sião daquela "Viagem Talia". Levantara a cabeça so-
anotações. Documentam isso os diários da estada em mente quando ele dava qualquer explicação ou lhe
Jungborn, os mais belos dentre os seus relatos de via- passava outra foto. Por causa delas, até deixara de co-
gens e também os que mais diretamente se relacionam mer e, contestando qualquer comentário que Max fize-
com sua obra propriamente dita, neste caso com Amé- ra a respeito da comida, dissera que tinha horror de
rica. gente que comia continuamente. (Mais adiante se trata-
A riqueza das suas recordações de detalhes concre- rá da abstinência de Kafka em matéria de alimentação.)
tos é demonstrada pela assombrosa carta que ele dirigiu Contara que, na infância, apanhara muito .de seus ir-
a Felice em 27 de outubro e na qual descreve com a mãos e primos, sem saber defender-se contra eles. Es-
maior precisão o encontro com ela. Desde aquela tarde fregara com a mão o braço esquerdo, que, segundo
de 13 de agosto, haviam decorrido 75 dias. Nem todos afirmava, estivera naquela época cheio de contusões.
os pormenores da ocorrência, que ele guardava na me- Mas absolutamente não parecera choramingas, e Kafka
mória, têm a mesma importância. Alguns são anota- não podia compreender que alguém pudesse ousar dar
dos, por assim dizer brincalhonamente, a fim de mos- nela, ainda que ela então fosse apenas uma garotinha. E
trar a ela que percebeu tudo e que nada lhe escapou. Kafka se lembrava de como fora fraquinho na meni-
Desse modo evidencia ser escritor no sentido de Flau- nice, porém ela, ao contrário dele, cessara de comise-
bert, um escritor para o qual coisa alguma é trivial, rar-se. Contemplando o braço da jovem, admirava o
desde que seja correta. Com leve pontinha de orgulho seu vigor atual, no qual já não havia nenhum rastro
alista tudo isso, prestando assim uma homenagem du- daquela debilidade infantil.
pla, a ela, que merece ser fixada imediatamente em ca- Enquanto olhava ou lia qualquer coisa, Felice dis-
da uma de suas particularidades, e também um pouqui- sera de passagem que fizera estudos de hebraico. Ele se
nho a si mesmo, devido a seu olho perspicaz. espantara em face disso, mas não gostara da afetada in-
E no entanto há outras coisas das quais toma nota, diferença com que esse fato foi narrado e, secretamente
porque elas têm significado para ele, por corresponde- se alegrara mais tarde, ao constatar que ela era incapaz
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de traduzir "Tel-Aviv". Manifestara-se todavia que Fe- momentos antes houvesse saído da sala, calçando
lice era sionista, e isso agradara muito a Kafka. chinelos.
Ela dissera que copiar manuscritos lhe causava Anteriormente, ele mencionara, embora só breve-
prazer e pedira a Max que lhe enviasse alguns. Isso as- mente, que por acaso tinha consigo um número da re- ·
sombrou-o tanto que ele deu um murro na tampa da vista "Palestina". Falara-se sobre a viagem à Palestina
mesa. e, no decorrer da conversa, Felice estreitara-lhe a mão,
Felice encontrava-se a caminho de uma boda em "ou melhor dito, eu, intuitivamente, induzi-a a fazê-
Budapeste. A senhol'a Brod mencionou um lindo ves- lo." O pai de Brod e ele acompanharam-na então até o
tido de cambraia, que vira no quarto de hotel da moça. hotel. Na rua, Kafka, mergulhando num dos seus pe-
Em seguida, o grupo mudou-se da sala de jantar para a culiares "estados de devaneio", comportava-se desajei-
do piano. "Quando você se levantou, notou-se que cal- tadamente. Ficou ainda sabendo que ela esquecera sua
çava chinelos da sr: Brod, pois suas botas tinham que sombrinha no trem; pequeno detalhe q'ue enriquecia a
secar. Durante o dia, fizera um tempo horrível. Esses imagem que formava dela. Na manhã seguinte, bem
chinelos talvez a incomodassem um pouco e, ao fim da cedo, a moça devia viajar. "O fato de você ainda não
caminhada através da escura peça central, você me ter feito as malas e até tencionar ler na cama, deixava-
disse que estava acostumada a chinelos com saltos. Para me inquieto. À noite anterior, lera até as quatro da ma-
mim, tal tipo de chinelos era uma novidade." Os drugada!" Apesar de sua preocupação quanto à hora
. chinelos da mulher mais velha embaraçavam a Felice. matinal da partida, esse hábito dela tinha que incre-
Sua explicação a respeito do tipo de seus próprios, dada mentar a familiaridade com Felice, j::í. que o próprio
quando acabavam de passar pelo recinto escuro, fez Kafka costumava escrever de noite. ·
com que Kafka a sentisse fisicamente ainda mais próxi- Somando tudo, obtemos delas a imagem de uma
ma de si do que durante a contemplação do braço dela, criatura resoluta, que enfrenta com rapidez e franqueza
no qual, a essa altura, j á não havia sinais azuis. as mais diversas pessoas e, sem acanhar-se manifesta
Mais tarde, enquanto todos se preparavam para sU:a opinião acerca de quaisquer assuntos.
partir, sobreviera ainda outra ocorrência: "A rapidez A correspondência entre ambos, que do lado dele
com que você saíra da sala e logo voltara de botas imediatamente e do de Felice pouco depois se intensifi-
deixou-me de boca aberta. "Dessa vez, o que o impres- caria a ponto de trocar cartas diariamente - cumpre
sionava era a ligeireza da transformação. Sua própria assinalar que só se conservaram as de Kafka - , essa
maneira de modificar-se tinha característicos total- correspondência caracteriza-se por certos traços assom-
mente opostos. No seu caso, tratava-se quase sempre brosos. O que mais chama a atenção de leitores impar-
de um processo extraordinariamente lento, que ele de- ciais são as lamentações relativas a estados físicos. Elas
via realizar passo por passo, antes de confiar nele. já começam na segunda carta, na qual permanecem ain-
Kafka construía suas metamorfoses de forma inteira e da um tanto veladas: "Que desvarios não se apossam
exata, como se edificasse uma casa e ela subitamente se de mim, senhorita! Uma chuva de nervosismos me cai
achara diante dele como uma mulher de botas, embora em cima ininterruptamente. O que quero agora, já não

14 15
o quero no próximo instante. Ao chegar ao último pa- exige explicações. A exatidão a que a obriga corres-
tamar, ainda não sei em que estado entrarei no aparta- ponde àquela com que descreve seus próprios estados.
mento. Preciso acumular em mim hesitações, antes que Com relação a estes, muita coisa ainda terá de ser
se transformem em pequenas seguranças ou numa car- exposta. Sem o propósito de compreendê-los, todo o
ta .. . Minha memória é muito ruim ... Minha indolên- resto permanecerá incompreensível. Mas, a esta altura,
cia ... Certa .vez ... até mesmo me levantei da cama a somente deve ser assentado o que se manifesta como
fim de anotar aquilo que acabava de destinar a vo~ê. sendo o mais profundo intento desse primeiro período ·
Mas -logo voltei a deitar-me porque (este é outro de da correspondência: cumpre criar uma ligação, um ca-
meus males) censurava-me da estupidez de minha in- nal entre a eficiência e a saúde de Feiice, de um lado, e a
tranqüilidade ... " indecisão, a debilidade de Kafka, do outro. Por cima da
Percebe-se que aquilo que ele descreve em primei- distância entre Praga e Berlim, ele almeja aferrar-se à
ro lugar é sua indecisão, e com a narrativa inicia-se o firmeza de Feiice. As palavras de fraqueza que ele se
cortejo. Porém desde já, relaciona-se tudo com estados permite dirigir a ela voltam a ele com decuplicada for-
físicos. ça. Kafka lhe escreve duas ou três vezes por dia. Em
Logo ao início da quinta carta encontra-se a insô- clara contradição com suas contínuas asseverações de
nia, e a missiva termina com transtornos acontecidos moleza, trava uma luta tenaz e até inexorável por
no escritório, onde ele a escreve. A partir de então, não conseguir respostas dela. Unicamente neste pormenor,
existe absolutamente nenhuma que não contenha Feiice é mais inconstante do que ele, pois não está acos-
queixas. Ao começo, estas são compensadas pelo inte- sada pela mesma obsessão. Mas Kafka consegue impor-
resse que lhe desperta Felice. Kafka faz centenas de per- lhe a sua. Pouco tempo após, também ela já lhe escreve
guntas. Quer saSer tudo a respeito dela. Deseja obter diariamente e muitas vezes até duas cartas por dia.
uma idéia exata quanto ao que se passa no seu escritório Pois a luta travada por essa força que lhe propor-
e em sua casa. Mas isso soa demasiado vago, pois as ciona a regularidade das cartas de Feiice tem seu senti-
perguntas são muito mais concretas. Ela deverá do. Não se trata de um epistolário fútil, de um fim em
escrever-lhe: a que horas começa a trabalhar, de que se si, de uma mera satisfação. Está a serviço de sua criação
compõe seu café da manhã, qual a vista que se lhe des- literária. Duas noites depois da primeira carta a Feiice,
cortina a partir da janela do escritório, que tipo de redige ele A Sentença de um só golpe, em dez horas de
trabalho executa ali, como se chamam seus amigos e uma e a mesma noite. Poder-se-ia afirmar que com este
suas amigas, quem pretende prejudicar-lhe a saúde, re- conto corroborou-se a confiança que Kafka, como es-
galando-a com bombons. Esta é apenas a primeira lista critor, tem em sua própria pessoa. Ele lê a seus amigos.
de perguntas, à qual mais tarde se seguirão inúmeras Fica manifesta a inquestionabilidade desse trabalho. ·
outras. Kafka quer que ela esteja sadia e vá bem sob Nunca mais se distanciou dele, ao contrário do que fez
todos os aspectos. Faz questão de conhecer com igual em muitos outros casos. Na semana seguinte, origina-
meticulosidade os recintos nos quais ela vive e os horá- ram-se O Foguista, e no decorrer de dois meses, mais
rios de sua vida. Não admite nenhuma objeção e logo cinco capítulos de América, somando um total de seis.

16 17
Interrompendo o romance por quinze dias, escreve A feitamente admissíveis certas incoerências que um espí-
Metamorfose. rito tão consciente como o dele não gostaria de permi-
Foi, portanto, não só por nossa perspectiva poste- tir-se numa anotação individual de seu diário, porque a
rior, um período grandioso. Há na vida de Kafka bem consider_a ria desordenada. Porém, a maior vantagem é,
poucas fases que possam comparar-se com esta. A ava- como já mencionamos, sem dúvida alguma a oportuni-
liar os resultados - e que mais temos a nosso dispor dade para repetir-se, até às raias de "ladainhas". Kafka,
para julgar a vida de úm escritor? - o comportamento mais do que ninguém teve consciência da necessidade e
de Kafka nos três primeiros meses da correspondência da função das mesmas. Entre os seus característicos
com Felice era exatamente o que ele necessitava. Perce- mui(?) nitidamente delineados, eis o que mais amiúde
bera de que carecia, a saber, de alguma segurança à dis- provocou as falsas interpretações " religiosas" de sua
tância, de uma fonte de energia, que não perturbasse obra.
sua sensibilidade mediante um contato por demais Se, porém, a instituição desse intercâmbio episto-
próximo, de uma mulher que existisse para ele, sem lar tinha aquela enorme importância, que demonstrou
esperar mais da parte dele do que palavras, de uma es- durante três meses sua eficiência, e teve por resultado
pécie de transformador, cujos eventuais defeitos técni- criações tão inigualáveis como, por exemplo, A Meta-
cos ele conhecia e dominava a ponto de poder consertá- mo~{ose, como se explica então que emjaneiro de 1913 a
los imediatamente por meio de cartas. A moça que lhe correspondência se tenha interrompido subitamente?
prestava tal serviço não devia ficar exposta à família, de Neste caso, não basta contentarmo-nos com sentenças
cuja proximidade Kafka muito sofria. Era preciso que a vagas acerca de fases produtivas e improdutivas, tais
mantivesse afastada. Felice tinha que tomar a sério tudo como muitas vezes ocorrem na vida de um escritor.
quanto ele lhe dizia acerca de si mesmo. Para Kafka, Toda a produtividade depende de condições, e cumpre
oralmente pouco~comunicativo, era indispensável que empenhar-se em descobrir as perturbações que fizeram
pudesse abrir-se a ela por escrito, lamentando-se des- com que ela cessasse.
consideradamente de qualquer coisa, sem esconder na- Talvez não se deva esquecer que as cartas que
da que o incomodasse, enquanto escrevia, e relatando Kafka nesse primeiro período dirigia a Felice, ainda que
com todos os pormenores a importância, os progres- não se nos afigurem como cartas amorosas no sentido
sos, os percalços de sua obra. Nessa época, seu diário convencional, contêm mesmo assim algo estreitamente
fica interrompido. As cartas a Felice são uma espécie de ligado ao amor: para ele é importante que a m oça depo-
diário ampliado, que tem a vantagem de realmente ser site na sua pessoa alguma esperança. Naquele encontro
escrito todos os dias e no qual pode ele repetir-se com inicial, que por tanto tempo o sustentava e servia de
maior freqüência, satisfazendo assim uma necessidade base para todas as suas construções, teve consigo o ma-
essencial de sua natureza. O que escreve a Felice não nuscrito de seu primeiro livro. Ela o conhecera como
são coisas únicas, para sempre inalteráveis. Existe a escritor e não apenas como amigo de um autor do qual
possibilidade de corrigir-se em outra época, de confir- já lera alguma coisa, e a pretensão de receber cartas da
mar ou retratar. Na continuidade de uma carta são per- parte dela estriba-se no fato de Felice o considerar co-

18 19
~no tal. O primeiro conto que causa satisfação a Kafka, Sob o dia 23 de dezembro, acha-se a esse respeito a
JUStament~ A Sentença, é dela, é a ela que o deve, é a ela seguinte frase isolada: "Ah, se a sre Lindner (uma cole-
ga de Felice, que trabalhava com ela no mesmo escritó-
que o de~tc~u. Na verdade ele não está seguro do acer-
rio) apenas soubesse quão difícil é escrever tão pouco
to d~s op1moes da moça em assuntos literários e tenta
~as suas carta, influenciá-las. Pede-lhe uma lista de seu~ como eu faço!" Isto se refere ao reduzido volume da
livros, que ela nunca lhe envia. Contemplação e somente se explica como sendo resposta
a uma passagem evasiva de uma carta de Felice.
É só isso, até o grande acesso de ciúmes que acon-
teceu em 28 de dezembro, dezessete dias depois que
~elice era uma pessoa nada complicada, o que evi-
Kafka lhe remeteu o livro. As cartas escritas nesse lapso
denciam claramente os trechos que Kafka cita das car-
de tempo - e, como já foi dito, somente se conserva-
tas dela, poucos trechos, por sinal. O diálogo - se
ram as dele - ocupam quarenta páginas de tipo miúdo
cabe empregar esse termo muito padronizado com re-
e tratam de mil coisas. Fica evidente que Felice nunca
lação a algo tão complexo e insondável - esse diálogo
chegou a emitir uma opinião séria sobre Contemplação.
qu~ Kafka mantinha consigo mesmo através de Felice
Mas o ataque de Kafka dirige-se contra Eulenberg, que
facil~ente poderia ter-se prolongado por bastante tem-
po amda. Mas o que o perturbava era a ânsia de cultura a entusiasmou:
"Sinto ciúmes de todo o pessoal que aparece em
que ela manifestava, lendo outros autores e mencio-
nando-os em suas cartas. Kafka, por sua vez, somente tua carta, dos que mencionas expressamente e dos que
não mencionas, homens e moças, negociantes e escri-
dera à luz uma mínima fração daquele mundo imenso
tores (obviamente em primeiro lugar des·ses últimos) ...
que sentia ferver e_m sua cabeça, e fazia questão de que
ela pertencesse umcamente a ele, como escritor. Sintq ciúmes de Werfel, de Sófocles, da Ricarda Huch,
da Lagerlof, de Jacobsen. O fato de chamares Eulen-
. E~ 11 de dezembro, Kafka manda a Felice seu pri-
berg Hermann, em vez de Herbert, causa a meus senti-
meiro hvr_o, Cont:mplação, ~ue acaba de sair do prelo.
mentos de ciúmes uma alegria infantil, visto que Franz,
Acrescenta ao envio as segumtes advertências: "Escuta
sem dúvida alguma, permanece gravado em tua me-
trate meu pobre livro com gentileza! É precisament~
aquele punhado de folhas que me viste pôr em ordem mória. Gostas das Silhuetas (Schattenbilder)? Dizes que
1:aquela nossa noitada .. . Será que percebes como se dis- te parecem concisas e claras. Delas só conheço na ínte-
tingue~, quanto à idade, as diversas pecinhas? Entre gra a de Mozart. Eulenberg ... leu-a aqui. Mas não pude
elas, ha por exemplo, uma que tem pelo menos oito ou suportar essa coisa. É uma prosa sem fôlego, cheia de
dez anos. Mostra tudo isso apenas a um mínimo de impurezas ... Porém não duvido de que, na minha pre-
pessoas, para que não te façam desgostar de mim." disposição atual, cometa uma grande injustiça contra
No dia 13, volta a mencionar séu livro: "Sinto-me ele. Mas tu não deves ler as "Silhuetas". Mas agora vejo
muito feliz por saber que meu livro, não obstante as que estás entusiasmada por elas. (Imaginem: Felice está
reservas que m e inspire,... encontra-se em tuas caras entusiasmada por elas, totalmente entusiasmada, e eu
1nãos." desencadeio em plena noite minha raiva contra o au-

20 21
tor.) Na tua carta aparecem todavia ainda outras pes- <ladeiramente botn, porque é capaz de produzir seme-
soas, e eu quero começar a brigar com todas elas, não lhantes mal-entendidos num homem sisudo, literaria-
para fazer-lhes mal algum, senão a fim de empurrá-las mente tão versado como é Stoessl..." Ele copia para
para longe de ti e de ler cartas nas quais se falasse unica- Feiice toda a passagem da carta, que é bastante longa e
mente de. ti, de tua família ... e naturalmente, natural- na qual depara com trechos surpreende_:1tes:_ "Um sen-
mente! de mim." so de humor dirigido para dentro, ... nao diferente da-
No dia seguinte, Kafka recebe dela uma carta ines- quele com o .qual, após uma noite be1:1 dormida ou um
perada - por ser domingo - e lhe agradece: "Queri- banho refrescante, trajando roupas limpas, saudamos
da, esta é realmente uma carta que enche a gente de com alegre expectativa e inexplicável sensação de ~ig~r
serena alegria, já que nela não pululam todos aqueles um dia livre, ensolarado. O senso de humor da propna
conhecidos e escritores ... " boa disposição." Um mal entendido de monstruosas
. ~a mesma noite ainda encontra a explicação da dimensões; cada palavra completamente errada! Kafka
cmme1ra da véspera: "A propósito: vejo agora mais não consegue conformar-se com o " senso de h umor "
cl~ramente por que a carta de ontem provocou em
Proveniente da sua própria "boa disposição" e torna a
mim tamanho ciúme. Gostaste tão pouco do meu livro citar seguidamente essas palavras. Mas acrescenta: "A,.
como outrora de minha fotografia. Isso nem seria mui- carta combína, por sinal, perfeitamente com uma _cntl-
to grave, uma vez que a maior parte do que se acha nele ca elogiosa, hoje publicada, e que só encontra tnsteza
são _cois~~ antigas ... Noto' em todo o resto a tua presen- no meu livro."
ça tao mttda_men~e que com o maior prazer me apresto É evidente que Kafka não esquecia o descaso que
para afastar 1med1atamente esse opúsculo com um pon- Feiice fazia da Contemplação. A intensidade com que se
tapé ... Mas por que não me dizes, não me dizer com preocupa com as reações dela diante do livro ~ão está
duas palavras que ele não te agrada? ... Seria por demais de acordo com seu hábito e oculta uma reprimenda.
compreensível que não saibas acertar-te com ele ... Afi- Ele quer dar-lhe uma lição. Feiice tomara u~a atitude
nal de contas, não haverá ninguém que consiga acertar- demasiado fácil, e Kafka revela pela sua quao profun-
se. Tenho (e sempre tive) certeza disso. O sacrifício, damente ela o feriu pela falta total de qualquer reação.
e~ matér~a de trabalho e dinheiro, que o perdulário Ainda na primeira metade de fevereiro ocorrem_os
editor realizou por minha causa, também me atormen- mais veementes ataques contra outros autores. Fehce
ta ... Mas tu não disseste nada. Na verdade prometeste quer saber sua opinião acerca da Lasker-Schüler, e ele
certa vez dizer qualquer coisa, mas nunca o fizeste ... " escreve: "Não suporto os poemas dela. Sempre que os
_ Em fü~s de j~neiro volta a falar sobre a Contempla- leio, sinto apenas tédio, devido ao vazio, e repugnância
çao. O escntor vienense Otto Stoessl, cuja obra e pes- em face do espalhafato artificioso. Pelas mesmas ra-
soa Kafka muito aprecia, enviou-lhe uma carta na qual zões também sua prosa me causa aversão , pois nela
trata dela: "Também se refere a meu livro, mas com age~ indiscriminadamente os esp,asmos do. cérebro d~
um desconhecimento tão enorme que, durante um mo- uma excêntrica mulher da metropole... Sim, ela vai
mento, causou-me a impressão de que meu livro é ver- mal. O segundo marido abandonou-a, ao que eu saiba.
22 23
Estão fazendo coletas para ela. Tive que contribuir com dele tamanha agressividade natural, inquebrantávef.
cinco coroas, sem compadecer-me dela nem um Pois, depois da leitura de qualquer uma de suas inúme-
pouquinho. Ignoro o verdadeiro motivo desses meus ras cartas, ecoam em nós os ataques que Kafka dirige
sentimentos, mas sempre a imagino como uma beber- contra si mesmo. Familiarizamo-nos com eles, como
rona, que de noite cambaleia através das casas de café... se fossem sua própria voz. Ora, o insólito do tom des-
Arre, Lasker-Schüler! Vamos, querida minha! Que sas investidas contra outros escritores, a ferocidade que
ninguém se coloque entre nós, nem tampouco a nosso nelas se revela, essa crueza, que, no fundo, são contrá-
redor!" rias à índole de Kafka, são sintomas de uma alteração
Felice quer ir ao teatro, para ver a peça Professor havida nas suas relações com Felice. Estas se modifi-
Bernhardi, e Kafka escreve: " ... Estamos unidos por um cam tragicamente em virtude da falta de compreensão
laço muito esfreito, . .. e se tu, minha querida, fores ver que ela demonstra diante da própria obra dele. Felice,
Professor Bernhardi, esse laço irresistível me arrastará cuja força, co?lo alimento incessante, é indispensável
contigo. Correremos então o perigo de ambos sucum- para que Kafka possa escrever, não sabe perceber a
birmos àquele gênero de literatura ruim que Schnitzler quem está nutrindo com sua ajuda, que consiste nas
representa a meu olhos." Por isso, naquela mesma suas cartas.
noite, ele assiste ao Hidalla, de Wedekind, no qual Sob este aspecto, a situação de Kafka complica-se
atuam o autor e sua mulher. "Pois, decididamente não sobretudo devido à natureza da publicação de seu pri-
gosto de Schnitzler e tenho pouca estima por ele. Claro meiro livro. Ele é por demais inteligente e sério para
que tem certas qualidades, mas suas m aiores peças de superestimar a importância da Contemplação. Trata-se
teatro e sua grande prosa estão, a meu ver, cheias de de um livro no qual já se acham esboçados alguns dos
uma virtualmente flutuante massa de escrevinhaduras seus temas. Mas é uma colcha de retalhos; não deixa de
das mais asquerosas. É impossível rebaixá-lo suficien- ser um tanto excêntrico, artificial; revela influências a-
temente... Só contemplando seu retrato, com aquela lheias (Robert Walser), e antes de mais nada faltam-lhe
expressão de falso enlevo, de uma compassividade tal coerência e inevitabilidade. P ara Kafka, a obra tem im-
como eu não gostaria de tocar nem com as pontas dos portância, porque teve consigo o manuscrito na oca-
dedos, consigo entender por que ele tomou esses ru- sião em que viu Felice pela primeira vez.
mos, a partir de suas primeiras obras (Anatul; A Ronda; Mas, seis semanas depois daquela noite, logo após
Tenente Gustl), em parte excelentes ... Não quero falar a primeira carta a Felice, adquirira ele inteiramente sua
de Wedekind na mesma carta ... Basta, basta! Como própria personalidade, graças à Sentença e ao Foguista.
me livrarei desse Schnitzler, que tenta interpor-se entre Quase mais relevante ainda, neste contexto, parece o
nós dois, como há pouco fez a Lasker-Schüler?" fato de ele ter plena consciência do valor dessas duas
Os ciúmes que lhe despertam certos autores, desde obras. A correspondência com Felice iniciava-se. Noite
que se trate de Felice, têm os vigorosos característicos por noite, Kafka prosseguia no seu trabalho literário.
que conhecemos de todas as ciumeiras. Enche-nos de Bastavam oito semanas para que chegasse, com a M eta-
assombro e também de alívio, constatarmos na pessoa morfose, à culminância de sua mestria, realizando algo

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que jamais lograria superar, uma vez que nada existe É bem verdade que nesses dias haviam ocorrido
que possa superar a Metamorfose, uma das poucas obras muitas outras coisas, que contribuíram para esse trans-
grandes e perfeitas deste século. torno. Acontecera, por exemplo, o noivado de Max
Quatro dias depois de ele ter terminado a redação Brod, seu mais íntimo amigo, que mais do que qual-
da Metamorfose, a Contemplação sai do prelo. Kafka en- quer outra pessoa o estimulara e insistira com ele para
via a Pelice esse seu primeiro livro. Durante 17 dias, que escrevesse. Kafka tinha receios de uma modifica-
almeja a respeito da obra qualquer manifestação da ção desse convívio amistoso, prevendo que ela seria
parte· dela. Entrementes, várias vezes por dia, ambos inevitável, em virtude da simples presença de uma mu-
trocam cartas. Kafka aguarda em vão. Já escreveu a lher ao lado do companheiro. Era também a época dos
Metamorfose e boa parte de América. Qualquer coração preparatívos das bodas de sua irmã Valli. Na moradia
empedernido deveria compadecer-se dele, que assim se paterna, que é a sua também, assistia ele muito de perto
dá conta de que o alimento das cartas de Felice, indis- tudo quanto fazia parte deles. Entristece-o que a irmã
pensável ao seu trabalho, lhe foi oferecido às cegas. Ela se vá, já que nisso pressente o esmigalhamento da fa-
ignorava a quem nutria. As sempre atuantes dúvidas de mília, à qual, por outra parte, odeia. Porém já se aco-
Kafka tornavam-se avassaladoras. Ele já não tinha cer- modou com, esse ódio e necessita dele. Perturba-o a
teza de seus direitos às cartas dela, desses direitos que multidão de acontecimentos inusitados que preenche
conquistara em momentos melhores, e sua criação lite- todo-o mês anterior ao enlace. Kafka pergunta a si mes-
rária, essência da sua própria vida, começava a es- mo por que tais noivados o fazem sofrer de modo tão
tancar. estranho, como se o afligisse imediata e diretamente
. alguma desgraça, ao passo que os próprios protagonis-
Uma conseqüência secundária, porém sig- tas mostram-se inopinadamente felizes.
nificativa graças à sua impetuosidade, eram os ciúmes Sua aversão à instituição do casamento, em prol da
que ele demonstrava com relação a outros escritores. qual estão sendo feitos tão amplos preparos, torna-se
Felice lia livros e feria-o profundamente pelos nomes mais aguda a essa altura, e ele dá vazão livre à sua rea-
que promíscuamente apareciam em suas cartas. Aos o- ção contra ela justamente numa área na qual se poderia
lhos dela, todas essas pessoas eram escritores. Mas ele esperar dele que a aceitasse. Começa a considerar Felice
mesmo, que é que era ele, na opinião dela? como um perigo. Suas noites solitárias acham-se amea-
Com isso teve fim a bênção que para Kafka repre- çadas, e Kafka faz com que ela o sinta.
sentara Feiice. Com sua imensa tenacidade, surpreen- Mas, antes de relatarmos de que maneira procura
dente reverso de sua fraqueza, ele se apegava à forma defender-se de tal perigo, cumpre sabermos algo mais a
estabelecida das suas relações, mas a partir de então vi- respeito da natureza da ameaça que pesa sobre ele.
rava o olhar nostalgicamente para trás, em direção· ao
paraíso daqueles três meses que nunca mais podiam
voltar. O equilíbrio, que ela lhe proporcionara, estava "Todo o meu modo de viver está orientado exclu-
destruído. sivamente para a criação literária ... O tempo é escasso;

26 27
as forças são exíguas; o escritório é um pavor e o lar é do" ou "sou cego", considerando que a ocultação de
ruidoso. É preciso que a gente se arranje por meio de tal defeito lhe imprimiria o estigma de impostor.
artifícios, uma vez que não é possível levar uma vida Desnecessário é perscrutar detidamente seus diá-
bela e reta." Eis o que Kafka já escreve a Felice numa rios e sua correspondência, para chegar-se à convicção
das cartas da primeira fase, em 1? de novembro de de que neste ponto se localiza o cerne, a raiz de . sua
1912. Em seguida, explica-lhe seu novo horário, me- "hipocondria". Sob a data de 22 de novembro de 1911,
diante o qual consegue sentar-se à mesa noite por noite acha-se no diário a seguinte anotação: "Certo é que
às dez e meia, para escrever, e prosseguir no trabalho, meu estado físico constitui-se no principal obstáculo a
segundo as forças, a vontade e a sorte, até à uma, às meu progresso. Com esse tipo de corpo, nada se pode
duas ou- às três da madrugada. conseguir. .. O meu é por demais comprido para sua
Porém já antes, nessa mesma carta, acaba de fazer debilidade. Não dispõe de menor quantidade de gordu-
uma observação a respeito de si próprio, e que dificil- ra capaz de produzir um benfazejo calor e de preservar
mente pode permanecer ignorada, tão monstruosa que um fogo íntimo; gordura alguma suscetível de nutrir
é nesse contexto: "Sou a pessoa mais magra que co- em qualquer momento o espírito acima das necessi-
nheço; fato muito significativo, levando-se em conta dades cotidianas, sem prejuízo do total. Esse coração
que já percorri muitos sanatórios ... " Esse homem em fraquinho que ultimamente muitas vezes me incomo-
busca de amor - pois, obviamente, deve-se supor que dou, como pode ele bombear o sangue através de todo
pretende obter amor - menciona logo que é o mais o comprimento destas pernas? ... "
magro de todos! Por que razão se nos afigura inadequa- Em 3 de janeiro de 1912, faz para si mesmo uma
da e quase imperdoável tal afirmação feita precisamente relação de tudo quanto sacrificou à sua produção literá-
nesse momento? O amor requer peso, trata-se do cor- ria: "Quando, no meu organismo, tornou-se evidente
po. Ambos precisam estar presentes. Um não-corpo a que escrever seria a atividade mais fecunda para meu
solicitar amor tornar-se-à ridículo. Grande agilidade, ser, tudo começou a rumar nessa direção, permanecen-
coragem, impulso podem substituir o peso, porém ca- do desocupadas todas as faculdades dirigi.das, sobretu-
recem ser ativos, exibir-se, converter-se, por assim di- do, aos prazeres do sexo, da alimentação, da bebida, da
zer, numa constante promessa. Em lugar deles, Kafka reflexão filosófica e da música. Emagreci sob todos
oferece outra coisa, que é peculiarmente dele, a saber, a esses aspectos. Isso era inevitável, porque minhas for-
plenitude é seu corpo. Mas isso só pode produzir efeito ças, em conjunto, eram tão exíguas que somente na sua
sobre uma pessoa de igual plenitude visual. Em ne- totalidade podiam pôr-se precariamente a serviço da ta-
nhuma outra acertará o alvo. Apenas causará a sensação refa de escrever ... ''
de algo sinistro. Em 17 de julho de 1912, estando no já mencionado
O fato de ele falar logo de sua magreza, acentuan- sanatório naturalista de Jungborn, escreve a Max Brod:
do-a tão fortemente, apenas pode significar que esta o "Tenho o estúpido propósito de tentar engordar e as-
fez sofrer bastante. Kafka sente-se coagido a comunicá- sim curar-me inteiramente, como se fossem possíveis a
la. É como se tivesse de dizer de si mesmo: "sou sur- segunda ou sequer a primeira dessas alternativas."

28 29
Cronologicamente, a seguinte manifestação refe- lher cortejada, (e ele cortejava apaixonadamente Mile-
rente à sua magreza é ajá citada carta a Felice, de 1? de na). "Alguns anos atrás, andei freqüentemente de bar-
novembro do mesmo ano. Poucos meses após, torna a co pelo Moldau. Remava rio acima, e em seguida
escrever-lhe: "Que tal o balneário? Neste ponto preciso deixava-me arrastar abaixo pela corrente, passando
infelizmente reprimir uma observação ligada à minha completamente estendido sob as pontes. Por causa da
magreza e à aparência que eu teria num estabelecimen- minha magreza, isso deve ter oferecido um aspecto
to de banhos. Ali me pareço com um menino órfào." bem divertido a quem me olhasse a partir de uma
Passa então a contar que, na sua infância, durante um ponte. Um funcionário de minha empresa, que certa
veraneio à beira do rio Elba, evitou entrar num balneá- vez me avistou assim, resumiu da seguinte forma o que
rio cheio de gente, por ter vergonha de seu aspecto. vira, não sem antes ter salientado suficientemente a co-
Em setembro de 1916, decide-se a consultar um micidade: o Dia do Juízo parecia iminente. Tinha-se a
clínico; empreendimento bem insólito em Kafka, que impressão de presenciar aquele momento em que as
sempre desconfiava de médicos. Sobre essa visita, es- tampas dos caixões já estivessem retiradas, mas os
creve a Feiice: "Achei muito agradável o médico que mortos ainda jazessem imóveis."
fui ver. Um homem calmo, um tanto cômico, que, no A figura do magro e a do morto unem-se na visão.
entanto, inspirava confiança pela idade e por sua massa Da combinação com a idéia do Juízo Final, resulta um
física (nunca pude compreender como tu lograste ter fé quadro do físico de Kafka dos mais desoladores e fatais
num tipo tão magro, tão comprido como eu) ... " que se possa imaginar. É como se o magro ou o morto,
Reproduziu mais alguns trechos dos últimos sete que, no caso, convertem-se em um só, tivessem em si
anos de sua vida, quando as relações com Felice já esta- apenas bastante vida para deixarem-se levar pela cor-
vam definitivamente cortadas. Importante é perceber- renteza e apresentarem-se ao Juiz Supremo.
mos que essa idéia da magreza se mantinha viva até ao Durante as últimas semanas de sua vida, no sana-
fim e coloria todas as suas recordações. tório de Kierling, os médicos haviam dado a Kafka o
Na famosa Carta ao pai, redigida em 1919, encon- conselho de não falar. Ele respondia então a perguntas,
tra-se mais uma passagem sobre os banhos de sua in- rabiscando em folhas de papel, que se conservaram, e
fância: "Lembro-me por exemplo das diversas ocasiões quando alguém indagava acerca de Felice, replicou:
em que nos despíamos na mesma cabina. Eu magro, "Em certa ocasião, eu devia acompanhá-la Gunto com
débil, delgado. Tu forte, alto, espadaúdo. Já no interior uma conhecida sua) ao Mar Báltico. Mas, devido à mi-
da cabina sentia-me miserável, não somente perante ti, nha magreza e a meus demais receios , tive vtrgonha."
senão per-ante o mundo inteiro, pois tu eras para mim o
padrão de todas as coisas."
A referência mais comovente encontra-se numa
das primeiras cartas a Milena, escrita no ano de 1920. Kafka jamais se livrou dessa suscetibilidade espe-
Também nesse caso sucumbe Kafka à coação de apre- cial acerca de tudo o que tivesse relação com seu corpo.
sentar-se desde cedo em toda a sua magreza a uma mu- C omo evidenciam as declarações citadas, esta já se deve

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ter manifestado na infância. Em virtude da magreza, Seu -quarto transforma-se em refúgio. Converte-se
ele se habituou desde cedo a prestar atenção a seu físico. num corpo externo, que poderíamos chamar pré-
Acostumou-se a atentar em tudo quanto lhe faltava. corpo. "Preciso dormir sozinho no meu domicílio ... É
Seu corpo propiciava-lhe um objeto de observa-ções a ansiedade que argumenta que, assim como quem esti-
que nunca lhe escaparia. Lá sempre permaneciam ver deitado no chão não poderá cair, nada nos poderá
próximos o que se via e o que se experimentava; um ocorrer se nos encontrarmos a sós." Não suporta rece-
não se podia separar do butro. Partindo da magreza, ber visitas em seu quarto. A própria convivência com a
Kafka adquiriu a inabalável convicção de sua fraqueza, família num e no mesmo apartamento atormenta-o.
e talvez não seja muito importante averiguar se esta "Não posso viver em companhia de outras pessoas.
sempre existiu realmente. Pois o que de fato existia era Detesto incondicionalmente todos os meus parentes,
a sensação de estar ameaçado, baseada em tal convic- não por serem meus parentes, nem por tratar-se de
ção. Kafka temia que forças hostis fossem penetrar-lhe criaturas ruins, . .. senão simplesmente porque são os
o corpo e, a fim de evitar que isso ocorresse, vigiava seres humanos que vivem mais perto de mim."
cuidadosamente o caminho que elas pudessem tomar. Suas queixas mais freqüentes referem-se à insônia,
Aos poucos, vinham à tona preocupações com deter- mas talvez seja esta apenas vigilância sobre o corpo, a
minados órgãos. Começou a evoluir uma sensibilidade qual, não se deixando desligar, sempre continua a per-
toda especial a respeito deles, até que cada qual se tor- ceber ameaças, espia sinais, interpreta-os e combina-
nasse alvo de separada vigilância. Porém, desse modo, os, esboça sistemas de contramedidas e carece, antes de
multiplicam-se os perigos. Há um sem-número de sin- mais nada, alcançar um ponto onde elas pareçam ga-
tomas nos quais um espírito desconfiado necessita rantidas: o ponto do equilíbrio das ameaç~s, no qual
atentar, desde que tenha tomado consciência das parti- uma faça contrapeso às outras, o ponto da tranqüili-
cularidades dos órgãos e da sua vulnerabilidade. Umas dade. Então o sono chega a ser autêntica salvação, pela
dores num ou noutro lugar recordam sua existência. qual a sensibilidade de Kafka, esse incessante tormento,
Seria imprudente e merecedor de castigo quem as ne- abandona-o finalmente e desaparece. Cria-se, pois, no
gligenciasse. Elas anunciam desgraças. São precursoras seu espírito uma espécie de veneração do sono, que é
do inimigo. A hipocondria é o troco miúdo da angús- considerado panacéia, o melhor remédio que se possa
tia; é a angústia, que, para distrair-se, procura e encon- recomendar a Felice, sempre que o inquieta o estado
tra nomes. dela: "Dorme! Dorme!". O próprio leitor nota em tal
exortação algo semelhante a um exorcismo ou uma
A sensibilidade de Kafka a ruídos é como um bênção.
alarme. Prediz desnecessários, ainda inarticulados peri- Das ameaças ao corpo fazem parte quaisquer tóxi-
gos, dos quais a gente se pode esquivar, evitando qual- cos, que nele entram sob as formas de inalação, de co-
quer barulho, como se fosse o diabo. Já bastam os peri- mida e bebida, de medicamentos.
gos identificados, cujos ataques bem informados ele re- O ar viciado é perigoso. Freqü_e ntemente se fala
pele, dando-lhes nomes. dele na obra de Kafka. Recordamos os cartórios do só-

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tão, no Processo, ou o superaquecido estúdio do pintor afigura-se-lhe nociva, por prestar demasiada atenção
Titorelli. Ar viciado equivale a uma desgraça, que aos órgãos avulsos. Verdade é que em tal repulsa à me-
conduz à beira de uma catástrofe. Os diários de viagens dicina há igualmente um pouco de ódio ao próprio ser:
estão cheios do culto aos ares saudáveis, e das cartas também Kafka se apanha na procura de sintomas,
manifesta-se o quanto Kafka espera do ar fresco. Até quando, de noite, não consegue conciliar o sono.
no maior frio do inverno, dorme ele com a janela aber- Assim sendo, é com a sensação de uma espécie de
ta. O fumo é aborrido. Uma vez que a calefação des- felicidade que se entrega a qualquer atividade que re-
gasta o ar, Kafka escreve num quarto não aquecido. queira e restaure a unidade do corpo. Fazer natação ou
Regularmente, completamente nu, diante da janela es- ginástica desnudo, descer a escada de seu domicílio a
cancarada, pratica ginástica. O corpo expõe-se ao ar saltos veementes, dar corridas, empreender extensos
fresco, a fim de que este lhe acaricie a pele e os poros. passeios ao ar livre, onde ele possa respirar bem - tu-
Mas ar genuíno somente se encontra na campanha. A do isso reanima-o e lhe confere a esperança de poder
vida campestre, que ele recomenda a sua irmã Ottla, ·escapulir-se por uma vez ou até por algum tempo da
mais tarde chegará a ser sua própria por muitos meses. desintegração proveniente de uma noite passada sem
Procura descobrir um tipo de alimentação de cuja dormir.
natureza inofensivo ele mesmo se possa convencer.
Durante longos períodos, é vegetariano. Ao começo,
tal comportamento não tem realmente caráter de asce-
tismo. Respondendo a uma pergunta preocupada de Em fins de janeiro de 1913, Kafka de~iste definiti-
Feiice, Kafka envia-lhe uma- lista das frutas que vamente, após diversos intentos malogrados, da
consome à noite. Empenha-se em distanciar de seu cor- conclusão do trabalho no seu romance. Por isso, o
po quaisquer venenos e riscos. Obviamente ficam proi- acento de suas cartas passa cada vez mais para lamenta-
bidos café, chá e álcool. ção. Porder-se-ia afirmar que doravante as cartas não
Quando trata dessa particularidade de sua vida, têm outro desígnio que não as queixas. Não existe nada
transparece nas suas frases um quê de leviandade e tra- sus·cetível de neutralizar a insatisfação. As noites, em
vessura, ao ·passo que as informações sobre a insônia cujo decorrer ele antes encontrava o caminho a si mes-
invariavelmente revelam desespero. Esse contraste é mo, sua justificativa, sua autêntica, sua única vida, per-
tão impressionante que nos sentimos induzidos a tentar tencem por enquanto ao passado. A essa altura, nada o
uma explicação. As recomendações dos naturopatas mantém de pé a não ser a lamúria, que assume o lugar
quanto ao corpo como unidade atraem Kafka, que ado- da criação literária, embora seja de um valor muito in-
ta por inteiro a rejeição da organoterapia. Ele, que nas ferior a esta, e converte-se no fator unificador. Mas,
horas insones se descompõe em órgãos, espiando os sem ela, Kafka emudeceria totalmente e se fragmenta-
sinais dos mesmos e meditando acerca das suas omino- ria em suas dores. Habituara-se à liberdade outorgada à
sas manifestações, necessita de um método que pres- correspondência, na qual é permitido exteriorizar tudo.
creva ao corpo a unidade. A medicina oficial Graças a ela relaxa, pelo menos em parte, a inibição,
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que lhe causa sofrimentos no trato com outras pessoas. perigo de parecermos pouco independentes, não pode-
Kafka necessita das cartas de Felice, que, como antes, mos deixar de ater-nos com máximo rigor às suas pró-
relata ocorrências da sua vida em Berlim e, quando não prias declarações. Certamente se experimenta vergo-
se pode agarrar a uma palavra animada da parte dela, nha, quando se começa a penetrar na intimidade dessas
"sente-se co1no num vácuo". Pois, apesar da insegu- cartas. Mas, em seguida, elas mesmas dissipam tal ini-
rança, "que, qual sombra maléfica, acompanha meu bição. Pois em face delas percebemos que um conto
não-escrever", seu eu permanece sempre objeto de sua como A Metamorfose é ainda mais íntimo. Deste modo,
observação, e quem se conformar com a necessidade de aprendemos finalmente em que ele difere de quaisquer
aceitar a ladainha das queixas como uma espécie de lin- outras narrações.
guagem, na qual se refugia todo o resto, perceberá,
através desse agente, que jamais emudece, os mais
estranhos fatos a respeito dele, informações tão preci-
sas, tão verdadeiras como só pouca gente já recebeu. Quanto a Felice, o mais importante era o fato de
Nestas cartas é contida uma inconcebível dose de ela existir, de não ser necessário inventá-la, já que era
intimidade. São mais íntimas do que seria a mais per- impossível que Kafka a inventasse tal como era. Ela era
feita descrição de uma felicidade. Não existe nenhum tão diferente, tão ativa, tão compacta. Ao girar em tor-
relato de qualquer homem vacilante, nenhuma denuda- no de Felice à algúma distância, Kafka idolatra-a e ator-
ção de si próprio que se possq comparar com elas. Esse menta-a. Acumula em cima dela suas perguntas, súpli-
intercâmbio epistolar é quase inacessível a criaturas pri- cas, angústias e minúsculas esperanças, na intenção de
mitivas , que nele somente avistariam o desavergo- arrancar-lhe cartas. Afirma que aquilo que ela lhe
nhado exibicionismo de uma impotência espiritual. concede em matéria de amor converte-se-no único san-
Pois, neles se lhes depara tudo o que faz parte dele: gue que lhe atravessa o coração, porquanto não dispõe
indecisão, ansiedade, frieza de sentimentos, minuciosa- de outro. Quer saber se da não se dava conta de que
mente descrita falta de amor, desamparo de tamanhas ele, nas suas cartas, não a amava propriamente, visto
dimensões que só a narração hiperexata o torna acredi- que, em caso contrário, só deveria pensar nela e escre-
tável. Mas tudo está formulado de tal modo que ime- ver acerca dela, ao passo que, na realidade, adorava-a e
diatamente se converta em lei e conhecimento. Inicial- aguardava que ela de algum modo o abençoa~se e lhe
mente um tanto incrédulos, porém com rapidamente prestasse auxílio nas coisas mais absurdas. "As vezes
crescente convicção, notamos que nada disso jamais se penso, Felice, que exerces tanto poder sobre mim que
esquece, como se essas confissões nos estivessem gra- deverias transformar-me num homem capaz de realizar
vadas na pele, como na Colônia Penitenciária. Há escri- o que é natural." Num momento benigno, expressa-
tores, bem poucos na verdade, que são tão inteira- lhe sua gratidão: "Que sensação, essa de ter encontrado
mente eles mesmos que qualquer manifestação que se um refúgio em ti, a salvo deste monstruoso mundo que
arrisque a seu _respeito deve soar como uma verdadeira apenas ouso enfrentar em noites dedicadas ao ato de
barbárie. Kafka foi um autor desse tipo, e, correndo o escrever."
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Ele sente em si a mais m1111ma ferida infligida a doso. "No fundo.,. não sei narrar, nem sequer sou ca-
outrem. Sua crueldade é a do não combatente, que ex- paz de falar. Quando conto qualquer coisa, tenho quase
perimenta a ferida por antecipação. Receia o choque; tu- sempre aquela sensação que poderiam ter criancinhas
do fere sua carne, e nada ocorre ao inimigo. Quando que tentem os primeiros passos."
em uma de suas cartas acha-se algo que possa ofender
Freqüentemente se queixa das dificuldades que
Felice, chama-lhe a atenção logo na próxima; obriga-a tem para conversar, da taciturnidade no trato com ou-
a descobri-lo; repete sua desculpa; ela, por sua vez, não
tra gente. Descreve-as com assombrosa clareza: "Passei
repara em coisa alguma e, na maioria das vezes, ignora
mais uma vez uma noitada inútil em companhia de vá-
a que ele se refere. Mas, a sua maneira, Kafka acaba de
rias pessoas ... Mordi os lábios, no empenho de ater-me
tratá-la como inimiga.
ao assunto, mas, por mais que me esforçasse, não es-
Consegue resumir em poucas palavras a essência
tive presente, sem que estivesse, todavia, em outro lu-
de sua indecisão: "Será que em algum momento tens
gar. Talvez não existisse durante essas duas horas.
conhecido a incerteza? Já viste como só para ti, sem
Deve ser assim, pois se tivesse dormido ali, na minha
consideração dos demais, abrem-se várias possibili-
cadeira, minha presença teria sido mais convincente."
dades, em diversas direções, e assim se cria pratica-
"Creio realmente estar perdido para a convivência com
mente uma proibição de te moveres?" seres humanos." Ele chega até à estranha asseveração
Não se pode subestimar a importância dessas "vá-
de que, durante as semanas de suas viagens com Max
rias possibilidades que se abrem em diversas direções"
Brod; não manteve sequer uma única conversa grande,
e do fato de que ele aviste todas elas ao mesmo tempo. coerente com ele, e na qual se salientasse todo o seu ser.
Elas explicam a autêntica relação que Kafka tem para
com o porvir. Pois, boa parte de sua obra compõe-se "Sou mais suportável, quando me encontro num
de tateantes passos rumo a sempre diversos futuros ambiente conhecido, em companhia de duas ou três
possíveis. Ele não reconhece tão somente um futuro. pess_oas igualmente conhecidas. Então me sinto livre.
Há muitos deles. Sua multiplicidade paralisa-o e pesa Não existe a obrigação de permanecer continuamente
sobre seu avanço. Unicamente quando escreve, quan- atento e de cooperar o tempo todo, mas sempre que eu
do, titubeante, aproxima-se de um deles, encara-o, ex- tiver ganas, poderei, se quiser, participar das atividades
cluindo os demais, mas nunca consegue identificar comuns, por muito ou pouco tempo, segundo a minha
mais pormenores dele do que permite o passo seguinte. vontade, sem causar desagrado a ninguém. Se estiver
A verdadeira arte de Kafka consiste em ocultar o que presente um homem estranho, que fizer ferver meu
fica mais remoto. É provável que seja esse avanço nu- sangue, melhor para mim: nesse caso posso tornar-me
ma direção determinada, com o abandono de todas as aparentemente bem vivo, por meio de forças empresta-
outras possíveis, o que o torne feliz durante a criação das. Mas, quando me achar numa morada estranha, ao
literária. Medida da produção e o próprio ato de andar, lado de várias pessoas estranhas ou de gente que se me
a nitidez dos passos bem-sucedidos, sem que se omita afigure estranha, o recinto inteiro me oprimirá o peito
nenhum nem.que algum, já realizado, permaneça duvi- e ficarei incapaz de mexer-me ... "

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, . ~e$crições d~sse gênero são sempre usadas por ele Napoleão: "É terrível morrer sem filho s." Ao que
a gmsa de advertencia, e por numerosas que elas aos acrescenta: "E preciso preparar-me para aceitar essa
poucos_cheguem a ser, Kafka renova-as uma que outra sorte, pois ... nunca me será permitido expor-me ao ris-
vez. "E que não repouso em mim. Nem sempre sou co de ser pai." Na quarta, escrita na noite de São Sil-
'algo', e pelas ocasiões em que outrora talvez tenha sido vestre, ele sente-se abandonado como um cão e des-
'algo', preciso pagar com meses de 'não s.er' ... " Com- creve de modo quase rancoroso o barulho da festa na
para-se com um pássaro, que em virtude de alguma rua: Ao fim da carta responde a uma frase dela, que
maldição deva manter-se fora de seu ninho e volteie reza: "estamos ligados urn ao outro incondicional-
ininterruptamente ao redor desse ninho vazio, sem mente". Afirma que isso é mil vezes verdadeiro e que
nunca perdê-lo de vista.
nessas primeiras horas do ano no vo não nutre nenhum
"Sou um homem diferente daquele que eu era nos desejo mais veemente, mais aloucado do que o "de es-
dois primeiros meses de nossa correspondência. Não se tarmos atados indissoluvelmente pelos pulsos de tua
trata de uma nova metamorfose e sim de uma retrans- mão esquerda e da minha direita. Não sei realmente
formação, que provavelmente será duradoura ... Meu dizer por que essa idéia m e ocorre. Talvez seja por ha-
~sta~o atual.,. não é excepcional. Não te entregues a ver à minha frente um livro sobre a Revolução France-
ilusoes deste gênero, Felice. Não poderias conviver co- sa. Afinal existe a possibilidade de que ... em alguma
migo nem dois dias ... Afinal de contas, és uma moça e ocasião haja acontecido que um casal fosse assim leva-
desejas ter um homem e· não um verme mole, que se do ao patíbulo ... Mas, que coisas me passam pela cabe-
arrasta pelo chão."
ça!. .. Deve ser conseqüência do 13 no nú~ero do ano
Entre os contramitos que Kafka ergueu para sua novo.'.. "
proteção e pelos quais tentou evitar a aproximação físi- O matrimônio como patíbulo - com tal visão co-
ca de Felice e a penetração dela em sua vida figura o da meçara para ele o ano novo. Não obstante tantas vaci-
sua aversão a crianças.
lações e ocorrências contraditórias, nada se alterou, sob
"Nunca terei um filho", escreve ele já muito cedo, esse aspecto, no decorrer do ano inteiro. O que mais o
em 8 de novembro, mas então ainda interpreta tal deci- deve atribular na sua concepção do casamento é a impos-
são como inveja a uma de suas irmãs, que acaba de dar sibilidade de sumir em direção de algo pequeno; é in-
à luz uma garotinha. Mais séria torna-se essa atitude dispensável estar presente. O medo a uma força supe-
em fins de dezembro, quando a decepção que lhe cau- rior é central em Kafka, e seu recurso para livrar-se dela
sou Felice intensifica-se durante quatro noites consecu- é tornar-se pequeno. A sagração dos lugares das condi-
tivas em cartas cada vez mais sombrias e hostis. Já co- ções, que nele produz resultados tão espantosos que de-
nhecemos a primeira: é a que contém aquele acesso de vemos reputá-los coercitivos, não é outra coisa que não
fúria contra Eulenberg. Tampouco ignoramos a segun- a sagração do ser humano. Cada sítio, cada momento,
da, na qual Kafka censura a Felice a falta completa de cada rasgo, cada passo é sério, é importante, é singular.
qualquer reação a seu livro Contemplação. Na terceira, À violação, que é injusta, cumpre subtrair-se, fugindo
transcreve uma frase de uma antologia de citações de para muito longe. A gente converte-se em algo minús-
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culo, transforma-se num inseto, a fim de eximir os ou-
fluências dos adultos, o pequeno que é induzido a cres-
tros da culpa na qual incorreriam devido à ausência de
cer e por isso chega a almejar que isso aconteça, contra-
amor e à matança. "Esfomeando-nos", distanciamo-
riando assim a tendência mais genuína da sua natureza,
nos deles, que não cessam de acossar-nos com seus
que seria fazer-se cada vez mais pequeno, mais leve, a
asquerosos costumes. Não existe, porém, nenhuma
ponto de desaparecer.
instituição que mais impossibilite tal escape do que faz
o matrimônio. Nele, sempre, queira-se ou não, será
necess~rio estar presente, durante parte do dia e parte
da noite, numa proporção que corresponde a do
Quem então andasse à procura de possib~li~ad~s
cônjuge e não pode ser alterada. Pois, do contrário, não
de felicidade ou pelo menos de bem-estar na ex1stenc1a
haveria matrimônio. A posição do pequeno, que tam-
de Kafka, ficaria surpreso ao ver, após tantas e tantas
b~m existe lá, permanece, no entanto, ocupada pelas
cnanças. manifestações de desânimo, de obstinação, de_ ma!o-
gro, que há outras que revelem vigor e _determmaça~.
Certa vez, num_domingo, Kafka presencia em ca-
Temos, por exemplo, antes de m ais nada, a soli-
s~ '._'a louca, monótona, incessante gritaria, sempre rei-
dão no ato de escrever. Em meio à redação da Metamor-
mc1ada com novo vigor e acompanhada de cantos e
fose, pede Kafka a Felice que não lhe escreva de noite,
palmas", com que seu pai diverte de manhã um sobri-
na cama, em vez de dormir. Ela deve ceder-lhe tal ocu-
nho de segundo grau e de tarde um neto. As danças dos
pação noturna, que lhe outorga uma ~ontinha de o_rgu-
negros parecem-lhe mais afins. Mas talvez, pondera
lho, e para comprovar que o trabalho not_urno e ei:n
ele, não seja a gritaria o que tanto o enerva; pois, de
toda parte, até na China, apanágio dos hom ens, copia
qualquer je~to, carece-se de uma boa dose de força para
para ela um poeminha chinês, pelo qual ~em uma pre-
suportar crianças num apartamento. "Sou incapaz dis-
dileção toda especial: ocupado com seu livro, um eru-
so; não posso esquecer-me de mim mesmo; meu san-
dito esqueceu totalmente a hora de recolher-se. Sua
gue recusa circular, coagula-se por completo." E, se-
bem-amada, que a muito custo reprimira até há pouco
gundo constata, é precisamente essa exigência do san-
sua cólera, arrebata-lhe a lâmpada e lhe pergunta :
gue o que sói assumir a forma de amor às crianças.
"Sabes que horas são?"
Há, portanto, naquilo que Kafka sente em presen-
Assim enxerga Kafka seu trabalho noturno, qu an-
ça da criançada um quê de inveja. Porém se trata de
do ainda tudo vai bem e, ao citar esse poema, nem se dá
uma espécie de inveja diferente da que talvez caiba es-
conta de qualquer picuinha dirigida contra Feiice. M_ais
per~r. A sua ~nda acasalada com reprovação. À primei-
ra vista, as crianças parecem ser u~urpadoras da peque- tarde, em 14 de janeiro, quando a situaçã~ já _se ~od,1~-
cou, quando Feiice o desapontara e a cnaçao hterana
nez, na qual o próprio Kafka gostaria de esconder-se.
Verifica-se, contudo, que não são o pequeno autêntico, começava a estancar, recorda-se novamente do po_er~1a
chinês ' m as dessa vez o utiliza para traçar uma d1v1sa
que deseja sumir, assim como quer ele. Elas são o falso .
entre si e Feiice: "Outrora m e escreveste que gostanas
pequeno, que fica exposto ao barulho e às penosas in-
de estar sentada a m eu lado, enquanto escrevo. Lem-
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bra-te, ~odavia, de que então eu não seria capaz de fazê- estar em companhia de· homens que comam e bebam
~º- .. Pois escrever significa abrir-se em demasia . .. Por tudo quanto ele mesmo se nega: "Quando estou senta-
isso, não. há n_unca ~~fic~ente solidão ao redor de quem do à mesa, em companhia de dez conhecidos, que be-
esc~eve; Ja~1ais o s1lenc10 em torno de quem escreve bem, todos eles, café preto, invade-me diante de tal
sera excessivo, e a própria noite não tem bastante dura- espetáculo uma espécie de sensação de felicidade. Que a
ção. Sendo assim, não pode jamais haver 'a nosso dis- carne fumegue em torno de mim; que se esvaziem num
por o tempo adequado, visto que são extensas as dis- trago canecos de cerveja; que todos os meus parentes
~â1~_cias e facilmente nos desviamos ... Amiúde ventilei a cortem a meu redor. .. aqueles suculentos salsichões ju-
1de1a de que para mim o melhor regime seria encerrar- deus! ... Nada disso, nem tão pouco coisas muito piores
~e, provido de uma lâmpada e dos utensílios necessá- produzem em mim o m enor sentimento de repug-
rios para escrever, no mais remoto fundo de um vasto nância. Pelo contrário me causam satisfação. Absoluta-
porão chaveado: Trazer-me-iam a comida, porém mente não se trata de alegria maliciosa ... senão da tran-
sempre a colocariam no chão, atrás da porta m ais ex-· qüilidade totalmente isenta de inveja na contemplação
terna, longe do lugar onde cu me encontrasse. A cami- do gozo alheio."
nhada em busca dos alimentos, a percorrer, de roupão, Pode ser que essas duas situações de bem-estar se-
todos_ ~s aboba~ados recintos do subterrâneo, seria jam precisamente as que esperaríamos descobrir no es-
meu umco passe10. Em seguida, voltaria à minha mesa pírito de Kafka, ainda que a segunda se manifeste mais
par~ comer lenta e circunspectamente. Logo após, tor~ acentuadamente do que se imaginaria. Mas o que real-
na~ia a escrever. E que coisas escreveria assim! De que mente nos surpreende é o fato de que a e_le também
a b1smos não as arrancaria!"
tenha sido outorgada a felicidade da expansão, que se
C~mpre ler na íntegra essa carta prodigiosa. Nun- manifesta n a recitação. Sempre que ele relata à Felice que
c_a se_d~sse nada mais puro, mais austero sobre a criação acaba de ler para outros alguma obra sua, muda o tom
h_terana. Todas as torres de marfim desmoronam da carta. Ele, que é incapaz de chorar, tem lágrimas nos
d1a_n1:_e desse habitante de um porão, e o conceito da olhos ao término da recitação da Sentença. A carta de 4
solidao do pqcta, conceito freqüentemente abusado de dezembro, redigida lo go após essa ocorrência, é
~es~rovido de conteúdo readquire subitamente peso ~ realmente espantosa pela sua impetuosidade: "Queri-
significado.
da, gosto terrivelmente de ler minhas obras em voz alta
Eis o que representa para Kafka a única a verda- para outra gente. Alivia muito ao meu pobre coração
deira felicidade, em direção à qual ele se sen~e atraído introduzir-me aos berros nos ouvidos de um bem pre-
com cada u~a das suas fibras. Outra situação, de natu- parado, atento auditório. Mas, realmente, bramei com
reza bem diferente, mas que também lhe propicia todo vigor, e simplesmente afastei com meu sopro a
contentamento, é a posição ao lado de outrem, quando música que ressoava das salas vizinhas e desejava pou-
obser:'a o prazer alheio, experimentado por pessoas par-me o trabalho da leitura. Sabes que para o corpo
que nao reparem na sua presença nem tampouco aguar- não h á maior satisfação do que comandar criaturas hu-
dem dele qualquer coisa. Assim, por exemplo, gosta de mans ou pelo menos pessoas que acreditem em meu
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comando . " Conta que poucos anos atrás ainda sonhava
Sou incapaz de caminhar rumo ao futuro. Posso atirar-
co1_:1 a oportunidade d e ler em voz alta, num grande
m e nele, rolar através dele, cambalear em sua direção, e
salao lotado, toda a Education sentimentale, de Flaubert,
o que melhor sei fazer é permanecer deitado. M as real-
s:u livro predileto , e de prosseguir nisso sem interrup-
m ente n ão tenho nem planos nem perspectivas. Quan-
çao, durante tan tos dias e noites quantos fossem neces-
do vou bem, o p resente me ocupa inteiramente; quan-
sários, .. . "e as paredes reverberariam minha voz".
do vou mal, logo amaldiçoo o presente e ainda m ais o
O que ele almej a exercer n ão é, na realidade o · porvir. "
" comando". D essa vez, K afka, arrebatado p ela exalta-
Trata-se de uma resposta retórica, nada concreta,
ção , que continua a vibrar n ele, não se expressa com a
o que é comprovado pelo modo totalm ente inverossí:-
precisão habitual. O que quer p roclam ar é a lei; uma lei
mil com que expõe suas relações p ara com o futu ro. E
finalmente consolidada; e tratando-se de Flaubert essa
uma d efes a d e pânico . Alg uns m eses m ais t ard e
lei, p ara K afka vem d e Deus, e ele é Seu pr~feta.
chegaremos a conhecer outras explosões retóricas do
C ontudo percebe o que existe de libertador e divertido
mesmo gênero, que contrastam singularmen te com a
nesse gên ero de expansão: em p lena descrição das misé-
costumeira forma equilibrada, justa das suas frases.
rias sofridas em fevereiro e m arço, en contra-se subita-
M as, a p attir dessa carta, tomava corpo a idéia de
m ente uma cena que relata a Felice: "Uma bela noite
uma visita a Berlim; idéia essa j á ventilada havia algu-
em casa de M ax. Em frenesi li para o grupo um trecho
m as semanas. K afka deseja rever Feiice, para apartá-la
de i:neu conto ... (Provavelmen te se refere às p áginas de si pelo espanto causado por sua pessoa, o que não
finais da Metamorfose.) " Feito isso, divertimo-nos e de-
conseguira por m eio de suas cartas . Para a visita, esco-
mos boas risadas. Quando a gente cerra portas e jane-
lhe a Páscoa, durante a qual dispõe de dois 'dias livres.
las, para m an ter distante este mundo, torna-se possível
A m aneira como an uncia a visita é tão característica da
o bter aqui e ali a aparência e quase o começo da reali-
dade de u m a bela existên cia." sua indecisão que cumpre o citar passagens das cartas
escritas na sem ana anterio r à Páscoa. Seria a primeira
vez em mais de sete meses que ambos poderiam rever-
se, o primeiro autêntico reen contro desde aquela única
noite.
Por volta de fins de fevereiro, Kafka recebe uma
No di a 16, d o min g o p re ce d ente· à P áscoa,
carta de Felice, cujo conteúdo o assusta, porque soa co-
escreve-lhe: " Dize-m e com franqueza, Felice, se terias
m o se ele nunca tivesse dito n ada contra si e ela nada
na Páscoa, isto seria domingo ou segunda-feira, qual-
h ? uvesse percebido, nada acreditado, nada compreen-
quer hora livre para mim, e, se tivesses, acharias indi-
d~do . Ele não ~ntra logo nos méritos da questão, po-
cado que eu viesse ver-te?"
rem, em segui da, responde co m inusitada asp ereza.
N a segunda-feira escreve: " N ão sei se poderei via-
" Recent~mente m e perguntaste ... p elos m eus planos e
j ar. Hoj e tudo é incerto. Talvez seja certo am anhã .. .
p erspectivas. A pergunta assombrou-me ... N ão tenho
Quarta-feira, às 10 h oras, poderias obter a confir-
naturalmen te nenhum plano, nenhuma p erspectiva. - "
maçao:
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1
Na terça-feira: "Na verdade, prossegue opondo-se Felice cessara de acreditar na vinda de Kafka, o que
un:i ~bstáculo à minha viagem. Receio que ele continue se compreende facilmente depois dos contraditórios
e~istrnd o . Porém, como o bstáculo, perdeu importân- anúncios que recebera no decorrer da semana. Durante
cia, e, s_ob esse aspecto, eu bem poderia pôr-me a cami- 5 horas, ele permaneceu estendido no sofá do quarto de
nho. Eis o que quero comunicar-te a toda a p ressa." hotel, aguardando o incerto telefonem a de Felice. Ela
. Na _quarta-feir~: "V_ou a Berlim unicamente para morava longe, mas, mesmo assim, Kafka reviu-a. Fe-
dizer a ti que foste 111du21da a um erro m ediante as mi- iice dispunha de pouco tempo. Ao todo , estiverainjun-
nhas cartas e para mostrar-te quem realmente sou. Será tos duas vezes por poucos instantes. Eis o que foi o
que p ess?almente_ lograrei tornar isso mais claro do que primeiro reencontro, após mais de sete m eses.
consegui por escnto ?... O nde posso então encontrar-te Parece, porém, que Felice aproveitou muito bem
na man~ã de domin~~? Se, no entanto, h ouver algo esses breves lapsos de tempo. Toma sobre si a respon-
qu e me impeça de vtaJar, telegrafarei sábado, o m ais sabilidade de tudo. Afirma que ele se lhe tornou indis-
tardar."
pen sável. O resultado mais importante da visita é a de-
Na quinta-feira: " ... e às ameaças antigas acrescem cisão de se reen contrarem no Pentecostes. D essa vez, a
agora ou_tra~, que se manifestam recentemente, erguen- separação não devia durar sete meses, senão apenas sete
do p oss1ve1s o bstáculos à minha viagenzinha. Nesta sem anas. Tem-se a impressão de que Felice acaba de
época da Páscoa, há geralmente - eu m e esquecera dis- fixar finalmente uma meta para ambos e tenta instalar a
so - cong ressos de toda espécie de associações ... " Tal- Kafka a força necessária para uma decisão.
vez fosse n ecessário que ele participasse de um deles, Duas semanas depois do regresso, ele surpreende-
com o representante de sua companhia de seguros.
ª pela notícia de que trabalhou num subúrbio de Praga,
N a sexta-feira: " .. . E todavia continua ainda inse- assistindo a um jardineiro, sob uma chuva fria , só de
g ura essa minha viagem. Tudo se decidirá somente camisa e calça. Assevera que isso lhe fez bem. O desíg-
am~nh~ de manhã ... Se eu viajar, provavelmente me nio essencial fora " livrar-se por algumas horas dessa
alojarei no Askanischer Hof. .. Mas deverei dormir bas- mania de torturar-se a si próprio, em contraste com a
tante, antes de apresentar-me a ti."
fantasm agórica labuta no escritório ... Realizei assim
Ele não despacha esta carta antes de sá bado, dia 22. um trabalho obtuso, honesto, útil, taciturno, solitário,
No en velope se lê, como última notícia: "Ainda incer- saudável, cansativo." Desse modo, pretendia ganhar
to. " Mas, em seguida, naquele m esmo dia, toma o um sono um tanto m elhor na noite seguinte~ Pouco
trem para Berlim, onde chega pelo fim da tarde.
antes, juntara à carta a Felice uma que recebera de Kurt
No domingo de Páscoa, dia 23, j á no Askanischer Wolff, na gual este pede a remessa do Foguista e da M e-
H of, escrev~-lhe: "que aconteceu, Felice? ... Agora es- tamorfose. E como se assim se reanimasse a esperança de
tou em B:rhm. Precisarei partir esta tarde entre as qua- ser valorizado por ela na sua qualidade de escritor.
tro e as cinco. As horas vão passando, e de ti n enhum Mas, j á em 1? de abril, ele lhe escrevia uma carta
sinal de vida! ~or favor, envia-me uma resposta pelo
bem diferente, uma daquelas "contra-cartas" que cos-
m anda1ete ... Fico aguardando no Askanischer Hof."
tumava anunciar com an tecedência, a fim d e sublinhar
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o caráter definitivo das mesmas. "O gue temo real-
mente - acho gue será impossível dizer ou escutar al- que na Páscoa, e é recebido po1: sua famíli~. Como es-
go mais sinistro - é que nunca serei capaz de possuir- creve pouco depois, esta assumm, quanto a sua p~sso_a,
·te ... que me manterei acomodado junto a ti, sentindo a a atitude de completa resignação. "Eu me sentia tao
meu lado a respiração e a vida de teu corpo, e no fundo pequeno, e todos m e cerca:am, g~gantescos, com uma
estarei mais distante de ti do que agora no meu quar- expressão fatalista nas fi~ionomias; o ~ue es~ava de
to .._. gue p ara sempre permanecerei excluído de ti, por acordo com as circunstâncias. Eles possuiam a t1 e por-
mais profundamente que te indines sobre mim, e te tanto eram grandes, ao passo que eu não te possuía e
porei em perigo .. . " Essa carta indica o m edo à impo- portanto era pequeno ... Devo ter-lhes causado uma
tência, mas não se deve atribuir excessivo va1or a ela. impressão muito feia ... " O que_ nos assombra nessa
Convém interpretá-la mas não se deve atdbuir excessi- carta é a transferência dos conceitos de posse e poder
vo valor a ela. Convém interpret;í-la apenas no sentido para os de grandeza e pequenez físicas. A pequenez co-
d e um de seus múltiplos temores físicos, a cujo respeito mo equivalente à impotên cia é um aspecto que co-
já falamos detidamente. Felice nem sequer reage, como nhecem todos os que estão enfronhados na obra de
se não en tendesse a que se refere Kafka ou como se, a Kafka. A imagem oposta a pr esenta-se- nos ao~
essa altura, já o conhecesse bem demais para querer enormes, para ele superpoderosos, componentes do ela
compreehdê-lo. dos Bauer.
Ora, durante o s dez dias que ela passa em Mas O que o paralisa e assusta ~ão é tão ;ome1:te
Frankfurt, representando sua empresa numa feira, ele ?
essa família , e nela, spbretudo, a mae. Tambem. 11~-
recebe po ucas notícias dela, só cartões postais e um te- quieta o efeito que acaba de produz~r sobre., a p_ropr:a
legrama despachado no pavilhão de festas. Também Felice: " ... pois tu não és eu. Tua mdole e a~ao. Es
depois do regresso a Berlim, Felice escreve m enos do ativa, pensas com rapidez, notas tudo . O bservei- te em
que antes e suas cartas são m ais breves. Talvez haja per- teu lar, ... vi-te em Praga, na presença de gente estra-
cebido que esse é o único recurso do qual dispõe para nha. Sempre te mostraste participante _e s~mpre segu:ª·
influenciá-lo, e po r meio da privação de cartas tenta M as na minha companhia, perdes a vttahdade, desvias
impeli-lo à d ecisão que aguarda dele. Kafka mostra-se 0 olhar ou o fixa no capim, aturas minhas palavras

alarmado: "Tuas últimas cartas são diferentes. Minhas bobas e meu bem fundado silên cio, não queres saber
coisas já não te interessam tanto, e o gue é muito pior: n enhuma coisa séria a meu respeito. Apenas sofres,
deixaste de ter vontade de escrever-me." Discute com sofres, sofres ... " Basta que Felice se encontre ao lado
ela a viagem prevista para o Pentecostes. Deseja co- de Kafka, para que se comporte c?mo ele, emudcç~,
nhecer os pais de Felice. Alegando que sempre chega torne-se indecisa e mal-humorada. E , na verdad_e, mm-
num estado de plo rável, suplica-lhe gue não o espere na to pro_vável que ele n~o te12ha pe~cebido º, 1~1ot1~0 ~e~~
gare de B erlim. dessa insegurança. Fehce nao podia ter o seno prop?s1
Em 11 e 12 de m aio, Kafka revê Felice em Berlim. to de ficar informada acerca dele, urna vez q~1e_ sabia,º
Dessa vez, passa m ais tempo em companhia dela do que descobriria: novas e bem : loqüentes d uvidas: _as
quais nada tivesse que opor, a nao ser sua firme decisao
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de alcançar o noivado. Por outra parte, chama a nossa
atenção até que ponto a idéia que Kafka faz dela ainda de Feiice escreve Kafka: "Afina], que desejo de ti? Que
continua determinada por aquela única noite em Praga, me impeie para seguir-te? Por que não desisto, por q~e
"na presença de gente estranha". Talvez se explique as- não obedeço aos signos? Sob o pretexto de .tentar li-
sim por que alistamos ao começo tantos pormenores vrar-te de mim apego-me a ti ... " Logo depois, em 1.6
desse primeiro encontro. ' , . ,,
de junho, despa'cha finalmente a '' memoria '. e~ CUJ~
Mas, fossem quais fossem as novas apreensões ori- redação labutou vacilantemente uma semana mteira. E
ginadas pelo j eito como ela se comportava ao lado dele, a carta na qual lhe pede que s.e torne sua esposa.
promete Kafka escrever ao pai da moça uma carta, que É a mais esquisita de quaisquer propostas <le casa-
submeteria previamente à sua apreciação. Anuncia-a m ento. N ela, Kafka acumula dificuldades; na~ra ~ res-
em 16 de maio; volta a fazê-lo no dia 18; em 23, alista peito de si mesmo inúmeras coisas ~ue comphcanam .ª
m eticulosamente o que ela deverá conter. Porém a car- convivência num matrimônio, e exige dela que consi-
ta não chega nunca. Kafka não consegue escrevê-la; dere todos esses impedimentos. N as cartas que se se-
não pode. Felice, por sua vez, serve-se da única arma guem a esta, acrescenta outros obstácul?s: Nelas fica
de que dispõe, a saber, do silêncio, e o deixa sem notí- evidente sua oposição intrínseca ao conv~vio com uma
cias durante 10 dias. Por fim recebe ele "o fantasma de mulher. Mas, com igual clareza, patenteia-se o fato de ! 1

uma carta", da qual se queixa com muita am argura e ele temer a solidão e pensar na força que lhe possa
que cita em seguida: "Estamos todos reunidos aqui, no conferir a presença de outra pessoa. N~ f1:n~ o, estabe-
restaurante do Zôo, após termos passado o dia inteiro lece condições irrealizáveis num matnmomo e conta
no zoológico. Estou escrevendo agora com o papel com uma resposta negativa, desejando-a e prov_ocan-
embaixo da m esa e ao mesmo tempo discuto planos de do-a. M as, ao mesmo tempo, confia em ~ue haJa, do
viagem para o verão." Ele lhe pede suplicamente que lado de Feiice, um forte, inabalável sentunento, q~1e
escreva cartas iguais às de antes: "Queridíssima Felice, elimine todas as dificuldades, e, enfrentando-as, arris-
por favor, escreve-me novamente acerca de ti, como que aceitá-lo. Imediatamente depois de ela haver pro-
fazias em outros tempos, tratando do escritório, das nunc1a. d o o " s1·m" , percebe Kafka claramente que~ mm-
amigas, da família, de passeios, de livros. Tu nem ima- ca deveria ter deixado a escolha da decisão em m aos de
ginas o quanto n ecessito disso para poder viver." Feiice. "As contraprovas ainda não estão esgotadas.
Kafka deseja saber se Felice encontrou algum sentido Sua quantidad e é im ensa. ,, Aparentement~ lev~ o
na Sentença. Envia-lhe o recém-publicado Foguista. Ela " sim" em consideração e a trata como sua quenda
lhe manda então uma só carta mais detalhada, e dessa noiva.
. M as , em seguida te digo que tenho, um medo
vez manifesta suas próprias dúvidas. Para responder- danado com relação ao nosso futuro e a desgraça que
lhe, Kafka prepara uma "memória", que, no entanto, possa resultar da minha índole e_culpa, amca~and~ nos-
ainda não está terminada. D epois dessa comunicação, sa convivência e ferindo especialmente a. tl. P~is, na
porém, interrompe-se de novo o fluxo de cartas da reali.dade , sou um homem frio, egoísta, msensivel,
· de
parte dela. Em 15 de junho, desesperado pelo silêncio isso apesar de toda a minha fraqueza, que mais escon e
do que atenua os meus defeitos."
52
53
E assim começa sua luta implacável contra o noi-
asco à minha presença? Ainda não percebes que preciso
vado, luta essa que durará dois meses e terminará com
permanecer encerrado em mim m esmo para que se
a fuga de Kafka. A frase que acabamos de citar carateri-
evite uma desg.raça, tua, tua desgraça, Felice?" Ele a
za nitidamente a natureza de tal luta. Ao passo que ele
anteriormente se descrevia - digamos: honestamente exorta a que induza seu pai a opor-se ao casamento,
- , entra agora, com o crescente pânico , um tom retó- agindo como advogado do Diabo e, eventualmente,
rico na correspondência. Kafka assume o papel de ad- mostrando-lhe as cartas d ele. "Sê sincera, Felice, since-
vogado contra si mesmo, que usa todos os m eios, e não ra para com teu pai, muito embora eu não o tenha sido.
Dize-lhe quem sou; mostra-lhe cartas; afasta-te com a
se pode n egar que estes, em certos momentos, são
ajuda dele do círculo abominável adentro do qual eu,
vergonhosos. Por instigação de sua m ãe, encarrega
u_ma empresa berlinense de detetives de fazer diligên- obcecado pelo amor, como estava e continuo estando,
arrastei-te por meio de minhas cartas, súplicas e conju-
cias quanto à reputação de Felice, à qual relata depois
ras. " O estilo rapsódico, que ele emprega dessa vez,
"a informação tão horrorosa como ridícula que rece-
soa quase como o de Werfel, que Kafka bem conhecia e
beu. Qualquer dia vamos rir-nos dela." Ela parece ter
acolhido serenamente essa atitude, talvez por causa do ao qual se sentia atraído com uma intensidade que hoje
parece inexplicável.
tom humorístico, cuja falsidade não chega a notar.
1
M as, logo depois, no dia 3 de julho, Kafka lhe comuni- Não se pode duvidar da autenticidade de seus to r-
ca que seus pais. manifestaram o desejo de que também m entos, e quando deixamos de focalizar Feiice, que
se esq uadrinhasse a família dela e que ele mesmo dera aqui já figura apenas como uma fantasmagoria, ouvi- 1

seu consenso a esse propósito. M as, com isso, ofende mos de Kafka coisas acerca de si próprío que nos
profundam ente a Feiice, que adora sua gente. Mediante confrangem o coração. O conhecimento que tem de
argumentos sofísticos, Kafka defende seu ato. Invoca seu estado e de sua natureza é inexorável e horripilante.
até a insônia, e muito embora não admita absoluta- De entre numerosas frases só reproduzo uma única,
mente ter feito qualquer coisa errada, pede desculpas que se afigura a mais importante e a mais terrível,
por tê-la ferido e retira a seus pais a autorização dada. aquela na qual afirma que, junto com a indife rença, o
Toda essa história está tão pouco de acordo com seu medo é o sentimento principal que lhe inspiram outras
caráter habitual que somente se explica pelo medo pâ- pessoas.
nico que lhe inspiram as conseqüências do noivado.
Quando está em j ogo a possibilidade de salvar-se A partir disso, poder-se-ia explicar a unicidade de
~o matrimônio, seu único recurso é a eloqüência contra sua obra, na qual falta a maioria dos afetos que tão gár-
s1 mesmo. Reconhecê-la imediatamente é facílimo. Sua rula e caoticamente pululam na literatura. Se refletir-
ca?cterística principal é a transformação de seus pró- mos acerca desse fato com um pouquinho de coragem,
prios temores em preocupações por Felice. "Não me verificaremos que nosso mundo se tornou tal que n ele
retorço há meses diante de ti como um bicho veneno- prevalecem o m edo e a indiferença. Ao expressar-se
so? Não esto u ora aqui, ora acolá? Ainda não sentes sem indulgência, Kafka foi o primeiro a retratar este
mundo.
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Em 2 de setembro, após dois meses de tormen-
tos incessantemente crescentes, Kafka subitamente os dias da estada numa casa de saúde em Riva, on~e
anuncia s~a fuga a Felice. É uma longa carta, redigida chegou a conhecer "a moça suíça". Kafka travou rapi-
em duas linguagens, a da retórica e a do discernimento. damente-contato com ela, e disso resultou um namoro,
Para ela~ "a i:náxima felicidade humana", que obvia- que ele nunca negou, não obstante toda a deli~adeza de
m~n:e n~o ~x~ste para ele e à qual renuncia em prol da sua discrição. M as tal ligação não durou mais de dez
cnaçao literana. Para si, a lição que lhe deram seus mo- dias. Tem-se a impressão de que ajove~1 o li~ro~ te~-
delos: "Entre os quatro homens que considero meus porariamente do ódio que Kafka sentia a s1 propno.
ge_nuínos par~ntes de sangue, entre Grillparzer, Dos- Durante seis sem:anas, entre meados de setembro e ?ns
toievsky, Klaist e Flaubert, Dostoievsky foi o único a de outubro, esteve cortado o vínculo entre ele e Feh ce.
casar-s~, e pode ser que somente Kleist, ao suicidar-se, . Já não lhe escrevia. N essa época, tudo se lhe_ a~gt~-
compelido por apuros íntimos e exteriores, tenha en- rava mais suportável do que o modo com? ela m~1st1a
c?~tr~do ª. solução acertada." Acrescenta que sábado no noivado. P or n ão ter notícias dele, Feh ce env1o_u a
via_J_ara a Viena, a fim de participar do Congresso Inter- Praga su 4 amiga Grete Bloch, pedindo que e_sta serv1s:e
nacional de Pronto Socorro e Higiene dá ficará prova- de intermediária entre ambos. Dessa maneira, atra:es
velment~ até ao sábado seguinte. Em seguida, encami- de uma terceira pessoa, iniciou-se uma nova, mmto
nhar-se-a a uma casa de saúde em Riva, onde se deterá estranha fase das suas relações.
P?r algum tempo, antes de talvez fazer, nos últimos
dias , uma pequ ena v iagem ao Norte da Itália. 1

Recomenda-lhe que aproveite esse tempo para acal-


mar-se, ao pas~o que ~le, pelo preço _da tranqüilidade Desde que Grete Bloch entra em cena, Kafk~ se 1

dela, renunciara a quaisquer cartas. E a primeira vez divide. As cartas que no ano anterior dirigia a Fehce:
que_ Kafka deixa de pedir que ela lhe escreva, e também daí por diante vão ao endereço de Grete Bloch. Agora e
ele mterromperá a troca de cartas. Por delicadeza tal- ela a cujo respeito Kafka quer ~aber tudo e faz as mes-
vez, esconde a ~el~ce que o Congresso de Viena' que mas perg untas habituais. Desep qu~ !h_e descr~va seu
realmente o atrai e o C ong resso Sionista. D ecorrera estilo de vida, seu trabalho, o escntono, as v1agen~.
exatamente ~m ano, desde que ambos haviam projeta- Reclama respostas imediatas a suas cartas _e, ao re_cebe-
do fazerem Juntos uma excursão à Palestina. las às vezes com atraso, pede que se combme um mter-
Kafka passou dias terríveis em Viena. No estado câmbio regular, que ele, no entanto, recusa. Int~ressa-
1~~entável em que se encontrava, o congresso e a mul- se pela saúde dela. Faz questão de sab~r ? ~ue le. ~o_b
t1dao ~e pessoas que ali via lhe pareciam insuportáveis. certos aspectos , torna-se nesse caso ma1: fac1~ obter_ex1-
Em ~:1~ tentou serenar por m eio d e algumas anotações t0 do que no de Feiice. G rete Bloc~ e mais ílex1vel,
no d1ano. Prosseguindo na viagem, foi a Ven eza. Nu- mais receptiva, m ais apaixonada. Por 1~so , ~orresponde
ma carta que dali dirigiu a FeJice, a decisão de desistir a todas as sugestões dele, se bem que nao leia log? ~udo
de uma união com ela aparece mais firme. Seguem-se quanto lhe recomenda. G~ava, porém, na memo~1a os
conselhos de Kafka e mais tarde volta a pondera-los.
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Ainda que leve uma vida meno . d,
ganizada gue Felice - d . s sau avel e menos or- quanto nessa situação se refere a ele. Grete Bloch, por
' nao e1xa de reflet · . b
vertências de Kafka d · . . ~r so re as ad- sua vez, sabe muito bem aiimentar constantemente a
faça reparos ainda d1~~ e~~re ~odo, i_ncita-o a gue lhe fonte do interesse que Kafka toma por ela. Logo na
ele repute totalment . fi g1cos, ev1~ando assim gue primeira conversa que travam, comunica-lhe coisas
e m rutuosa a sua 1 f] h •

sas cartas Kafka n uenc1a. N es- sobre Felice que nele despertam repugnância, como,
' n1ostra-se mais seg
tratasse dele, poderíamos d. . . uro ~', s_e n~o se por exemplo, a história de seu tratamento dental; ainda
tural que a abreviatura da c~rer. mais ~ut~ntano. E na- ouviremos referências a recém-implantados dentes de
cause menos problem s d respohdenc1a _anterior lhe ouro. Mas Grete Bloch também atua como conciliado-
original: trata-se de u; t º1 qdue outro~a o m. tercâmbio ra e, quando falham todos os demais recursos, logra
• A . ec a o em CUJO m · ·,
expenencia. Nas cartas d . . . d aneJo Ja tem arrancar de Felice um cartão postal ou qualquer outra
se-nos um tom bri lh _mg1 as_ a Grete Bloch depara- notícia. A gratidão que isso provoca em Kafka intensi-
outras e K fk nca ao que Jamais existia naquelas fica a afeição que sente por Grete Bloch. Mas ele deixa
, a a empenha- s · d· [;
grahjear a simpatia d e In is arçadamente em muito claro que seu interesse na pessoa dela não se res-
, . a moça.
Ha, todávia dois fat fi d tringe exclusivamente às relações que ligam ambos a
rentes Ele 1 ' . os un amentalmente dife- Felice. Suas .cartas tornam-se cada vez mais calorosas
. amenta-se muito m .
tra parco em matéria d . enos, quase que se mos- com respeito a Grete, ao passo que Felice nelas é tratada
não tarda em fazer lhe ee 9;e~xa~. Como Grete Bloch com ironia e distanciamento.
prias dificuldades K. . fk on idenc1as e fala das suas pró- E todavia ocorre· que justamente essa distância
la e consola-a. Aos a o~~i:n~dece-se das mágoas de- proveniente da correspondência com Grete Bloch e
numa espécie de co~ h' . rete Bloch converte-se çertamente também as conversas havidas com seu no-
num alter eao. Ele tenta~an f]e1ra de sofrimentos e até vo amigo, o escritor Ernst Weiss - que não gosta de
· ó msu ar-lhe suas · ·
t1culares como po antipatias par- Felice e desaconselha o casamento com ela - sejam fa-
' ' r exemp1o
que odeia desde a semana . fc 1· ' cont,ra iena, cidade

tores que incrementavam a obstinação de Kafka, que
anterior e de onde lh m e iz que la passou no verão então volta a cortejá-la. Mostra-se decidido a transfor-
r. , e escreve. Faz todo ,
a1asta-la de Viena e fi 1 o poss1ve1para mar desta vez em realidade o noivado e o enlace. Para
. ' ma mente conseg e
isso, ela tem a boa sorte de ser . ~e~o. om tudo que tal aconteça, luta com uma resolução que ninguém
a negócios. Kafka p 1 muito hab1l no que toca esperaria dele, considerando seu comportamento ante-
, e o menos, pensa que , E. , .
co traço que Grete Bl h e. 1s o um- rior. Permanece plenamente co ns ciente da culpa
oc tem em comum co F J'
e, como outrora ele pod h . m e ice, contraída no ano passado, quando inopinadamente
dade. ' e aunr forças dessa quali- abandonou Felice, no último instante antes da publica-
ção do contrato de casamento, e viajou a Viena e Riva.
tas. ~:sn~e~i~ç~:nd1anece ass~nto principal dessas car- Numa extensa carta de 40 páginas, redigida entre fins
e sua em1ssána q G Bl
compareceu pela pri· . ue rete och de 1913 e princípios de 1914, até conta a Felice o episó-
. me1ra vez em Pra D d . ,
c10, Kafka pode discut' fi ga. es e o 1m- dio da moça suíça e, ao mesmo tempo, pede-lhe a mão
1r rancamente com ela tudo
pela segunda vez.
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t
. . 1: r~lutância dela é não menos pertinaz do que a altivo. Já que está impregnado de Dostoievsky e fre-
ms1stenc1a de Ka?<a; atitude que dificilmente se pode qüen.temente se exterioriza no linguajar deste, corre-
levar a m~l, dep_o1s da experiência que Felice fizera com mos às vezes o perigo de mal interpretá-lo neste ponto.
ele. M a~ e precisamente essa resistência o que produz Porém Kafka jamais se vê a si mesmo como verme,
nele _maior segurança e tenacidade. Kafka atura humi- sem se odiar por isso.
lhaçoes e dolorosos golpes, uma vez que pode relatá- Mas, em seguida, Felice tornou-se insegura, em
l?s a Grete Bloch, à qual comunica tudo imediata e me- conseqüência da perda de seu irmão, moço bem-
t1culos~ment~. Uma parte considerável das torturas apessoado, ao qual m•.Üto admirava e que, segundo pa-
qu~ aplica a s1 próprio converte-se em acusações contra rece, teve que abandonar Berlim por causa de uma sór-
Fehce. Q~em ler as cartas às vezes dirigidas num e no dida história financeira, para imigrar nos Estados Uni-
mesn:o dia a Grete e Felice não poderá duvidar qual das dos. As defesas dela desmoronavam. Kafka apercebe-
duas e alvo do seu amor. As palavras carinhosas que se se logo da vantagem assim obtida, e, depois de outras
en~ontram nas cartas a Felice soam falsas e implausí- quatro semanas, consegue finalmente obrigá-la a
ve1s,_ ao passo que n~s escritas a Grete Bloch é possível consentir o noivado. N a Páscoa de 1914, celebra-se em.
senti-las n~s entrelinhas, não expressadas explicita- Berlim o compromisso não oficial.
mente, porem mais válidas.
Imediatamente após o regresso a Praga, Kafka
. ~ as, d~ra?te dois meses e meio, Felice mantém-se descreve o acontecido numa carta a Grete Bloch: "Não
mflexivel e tnd1ferente Tudo quanto Kafka 1
· · reveouno recordo nada que eu tenha realizado com tamanha de-
ano passado em matéria de fatos penosos quanto à sua terminação." Mas existe ainda outra coisa. que deseja
pe_s~oa, ela o devolve agora, reduzido a seu estilo pri- dizer a ela o mais depressa possível: "Meu noivado ou
m1t1~<?· Porém, na __maioria das vezes, nem sequer se meu casamento não modificam absolutamente nada
mamfesta. P_or ocas1ao de uma repentina visita que faz a nas nossas relações, que contêm, pelo menos para
el~ em Berlun, Kafka sofre, num passeio através do mim, belas e imprescindíveis possibilidades." Mais
T1ergart~n, ?, seu mais chocante vexame. A vil ta-se pe- uma vez pede-lhe um encontro, tal como já lhe propu-
rante Fehce co~o um cão", sem conseguir nada. O seram em diversas outras ocasiões. Prefere que este se
relato dess_e ~e?aixamento e do efeito que este produziu realize em Gmünd, a meio caminho entre Praga e Vie-
nele, subd1v1d1do em várias cartas a Grete Blo h , .
c , e 1n1- na. Ao passo que antes tivera a idéia de encontrarem-se
portante, 1:11esmo fora do contexto do caso do noivado. lá a sós numa tarde· de sábado, para regressarem na de
Tor~a evidente o profundo sofrimento que humi- domingo a suas respectivas cidades, pretende agora um
1haçoes causavam a Kafka. A capacidade de reduzir-se a encontro do qual Felice participasse também.
algo pequeno era cert~m:nt~ o seu dom mais singular, O calor de seus sentimentos por Grete intensifica-
mas ele usa_va-o ~a_ra d~m111~1r o impacto de ultrajes, e a se ainda mais a partir do noivado contraído na Páscoa.
bem-suced_1d~ m1t1gaçao deixava-o satisfeito. Sob esse Kafka sabe muito bem que sem ela não o teria conse-
aspecto, distingue-se marcadamente de Dostoievsk .
guido. Grete lhe conferiu força e interpusera certa dis-
comparado com este, Kafka é um homem sumamenr~ tância entre ele e Feiice. Mas, a essa altura, quando tu-
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d~ está arranjado, ela se lhe torna ainda mais indispen- do. Já não desejaria que os dentes de ouro sumissem, ...
savel~ O s rogo~ de Kafka no sentido de que haja conti- no fundo, nunca o desejei verdadeiramente. Só que
nuaçao d a amizade com Grete assumem um caráter hoje quase que m e parecem adequados, exat~i:11ente c~-
que, tratando-s~ dele, pode ser qualificado de tempes- mo devem ser. .. um defeito humano bem mudo, ama-
tuoso . Grete exig_e a devolução das cartas que lhe escre- vel, sempre perceptível, que os olhos jamais podem ~e-
veu. Kafka recusa s~parar-se delas, já que as aprecia gar; defeito esse que talvez me ~proxime mais d~ Feh~e
tant_o como se proviessem de sua noiva. Ele, que na do que faria uma den tadura sadia, em certo sentido nao
realidade não supo~ta nenhuma outra pessoa n em em m enos horrorosa."
seu quarto nem em sua casa, convida-a insistentemente C om as imperfeições, que agora notava - e hav~a
i:ara que v~n_ha visitá-lo no inverno naquele lar que en- ainda outras, além dos dentes de ouro - , Kafka quen a
tao ocupara JUnt? co~1. Felice. Suplica-lhe que venha a todavia desposar Felice. N o ano anterior, apresentara-
Prag_a e em_ seguida viaJe com ele a Berlim para a cele- se a ela de maneira terrível, exibindo todos os seus pró-
braçao_ oficial dos esponsais, substituindo seu pai. Pros- prios defeitos. N ão lograra a do_miná-lo_ tanto,que o f~z
segue mte~essando-se, talvez ainda mais, pelos assun- fugir dela e de Felice, rumo a Viena e R1va. La, na soli-
tos pessoais _d e Grete. Ela lhe comunica que foi ver, no dão e ná m ais profunda aflição, topou com a " m oça
Muse:.1 de _viena, a sala de Grillparzer, conforme ele lhe suíça" e sentiu-se capaz de amar, coisa que antes se lhe
sugenra_diversas vezes. Kafka agradece a notícia com afigur ava imposs ível. Com isso , fico u abala d a a
as seg~mtes frases: " Foi muito amável da sua parte "construção" que fizera a seu respeito, para usarmos o
encammhar-se ao museu ... Era necessário para mim termo que ele empregou posteriormente. ~eh~ que
saber que esteve na sala de Grillparzer e desse modo se nessa situação converteu-se para ele em questao de
e~tab~l~ce~, também entre mim e esse recinto uma rela- orgulho a obrigação de consertar se~ fracasso e de ob-
çao fisica. Grete tem dores de dente, ao que Kafka ter, apesar dos pesares, a mão de Fehcc. D essa vez, po-
reage, fazendo muitas perg untas preocupadas e descre- rém, percebeu que a descrição que ele me~m~ e~boçara
vendo, na mesma ocasião, o efeito que produzira sobre de si produzira nela o efeito de tenaz resisten c1a._ Um
ele a " dentadura de ouro quase completa" de F 1· • compromisso somente seria viável, se ele a aceitasse
"F e 1ce.
rancamente, nos primeiros tempos tive que desviar como sua esposa, com todas as imperfeições, que dora-
o olhar; a tal ponto me asustava o fulgor desse ouro vante procurava com avidez, e ela se conformasse com
(esple~dor realm~nte infernal num lugar tão pou co as baldas dele. Porém não se tratava de amor, se bem
apropriado) ... Mais tarde, porém, fixei-me nele propo- que Kafka lhe asseverasse o contrári_o. No _d ~correr da
sitadamente, sempre que possível, ... a fim de atormen- duríssima luta que travou por Fehce, o n gmou-se o
tar-me e de con vencer-me finalmente de que tudo isso amor pela mulher sem cuj a ajuda ele não teria saíd_o
era m es".10 real. Num momento de desatenção, até vitorioso do combate, o amor a Grete Bloch. O matri-
perguntei a F. se não se envergonhava daqui-lo. Natu- mônio não seria completo, sem que ele a incluísse nos
ra!mente, ela não sentia nenhuma vergonha, por sorte seus pensamentos. Todas as ações instintivas que Kafka
mmha. Mas agora es tou quase inteiramente conforma- empreendeu nas sete semanas entre a Páscoa e o Pente-
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costes seguem nesta direção. Certamente esperava ele notáfio ou um monumento à vida de um funcionário
contar igualmente com o auxílio de Grete nas penosas público de Praga. Se, durante a nossa estada na loja,
situações externas que em breve deveria enfrentar e das dobrasse a alguma distância do depósito um sino fú-
quais tinha medo. Mas outra idéia mais ampla também nebre, não estaria impróprio."
desempenhava um papel determinante, a idéia de que
um matrimônio, que ele reputava uma espécie de de- Já em 6 de junho, poucos dias após a referida re-
ver, de proeza moral, sem amor não podia resultar em cepção, despachou, já de Praga, uma carta~ _Grete Bl~-
sucesso. Ora, pela presença de Grete Bloch, à qual o ch; carta essa que soa singularmente familiar aos lei-
tributava, introduziria o amor na vida conjugal. tores da correspondência do ano anterior: "Querida sre
A propósito disso, cumpre assinalar que em Grete, ontem foi mais um daqueles dias em que me
Kafka, que no colóquio só raras vezes sentia-se livre, o senti completamente amarrado, incapaz d~ mex_er-me,
amor sempre nascia da palavra escrita. As três mu- incapaz de escrever-lhe a carta, à qt;al me impelia tudo
lheres mais importantes da sua vida foram Felice, Grete quanto ainda me restava de vida. As ~ezes - ~or en-
Bloch e Milena. Em todos os três casos, seus sentimen- quanto, você é a única a tomar conhecimento disso -
tos brotaram de cartas. simplesmente não sei como, sendo o que sou, posso
Aconteceu então o que era de esperar: o noivado assumir a responsabilidade de casar-me."
oficial, contraído em Berlim, transformou-se para Mas a atitude de Grete Bloch para com ele altera-
Kafka num pesadelo. Na recepção que a família Bauer ra-se de modo decisivo. A essa altura, ela vivia em
ofereceu em 1? de junho de 1914, ele sentiu-se "atado Berlim, onde não se sentia tão abandonada_ como em
como um criminoso", não obstante a tão avidamente Viena. Tinha seu irmão, ao qual muito se apegava,
desejada presença de Grete Bloch. "Se me tivessem ati- além de várias pessoas que conhecia de outra época.
rado a um canto, com autênticas correntes, rodeado Via também a Felice. Sua missão, na qual provavel-
por guardas, para que só assim avistasse o que aconte- mente confiara, a saber, a realização do noivado, logra-
cia, não teria sido pior. E isso eram meus esponsais! ra êxito. Mas, até pouco antes da sua instalação em
Todos se esforçavam por incutir-me vida, e, como não Berlim, ainda aceitara as missivas de Kafka, que eram
o lograssem, por suportar-me tal como era." Eis o que mal dissimuladas cartas de amor; respondera a elas;
anotou no diário poucos dias após. Numa carta a Fe- entre ambos existiam segredos relativos a Feiice, e cer-
lice, escrita quase dois anos depois, descreve outro sus- tamente se originara também nela um forte sentimento
to pespegado naqueles dias, e do qual ainda não se refi- por ele. O vestido que Grete usaria na celebração dos
zera, a saber, o que experimentou quando ambos em esponsais foi discutido na correspondência, como se ela
Berlim tinham ido juntos "comprar móveis para o lar fosse a noiva. "Não corrija nada nele," - escreve
de um funcionário público. Móveis pesados que, uma Kafka a esse respeito - "seja como for, ele será
vez postos no lugar previsto, parecessem inarredáveis. contemplado com os olhos ... bem, com os olh?s mais
Tu apreciavas, antes de mais nada, justamente essa soli- ternos." Essa carta foi escrita um dia antes da viagem e
dez. O aparador oprimia-me o peito, um perfeito ce- do noivado.
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O contrato de casamento, no qual, apesar disso, inabalável aversão a Felice. Desde o começo, demons-
ela não figurava como a noiva, deve ter causado um trar hostilidade ao noivado. Durante todo esse tempo,
choque a Grete. Quando, pouco depois, Kafka numa Kafka empenhara-se em conquistar o amor de Grete
carta se queix~va de qu;, ainda faltavam três meses para Bloch. Enfeitiçara-a por meio de suas cartas e a atraíra
as ~odas, replicou ela: Afinal de contas, você poderá cada vez mais para seu lado. Na fase decorrida entre o
mmto bem agüentar esses três meses." Esta frase - compromisso privado e os esponsais oficiais, suas car-
uma das poucas que conhecemos dela - basta ampla- tas de amor tiveram por destinatário não Felice e sim
mente para comprovar os ciúmes que, sem dúvida al- Grete Bloch. Esta foi assim colocada numa situação
gm:na, a~ormentavam a Grete. Vivendo então perto de embaraçosa da qual só podia sair mediante um único
Fehce, tinha que sentir-se especialmente culpada. So- recurso: ela tinha que converter-se em juíza de Kafka.
mente colocando-se ao lado da amiga, conseguiria li- Grete ofereceu então a Felice os pontos da acusação:
vrar-se dessa culpa. Assim chegava subitamente a ser trechos das cartas recebidas de Kafka, e que sublinhara
inimiga de Kafka. Punha-se a suspeitar da seriedade de com tinta vermelha. Felice trouxe ao "tribunal" sua ir-
sua decisão de casar-se. Ele, porém, continuava a mã Erna, talvez como "contrapeso" a seu inimigo
escreve~-lhe com plena confiança, descarregando cada Ernst Weiss, que participaria igualmente do julgamen-
:7e~ mais nas suas cartas o temor que nele provocava o to. A própria Felice proferiu a acusação, que resultou
1mmente enlace ~om Felice. Grete começava a espicaçá- dura e agressiva. Os escassos testemunhos de que dis-
lo. Kafk,a defe1:-d1a-se, usando os habituais argumentos, pomos não deixam claro se e em que sentido Grete
qua~t? ~ sua hipocondria. Uma vez que era ela a quem Bloch também interveio. Mas ela estava presente, e
se d1ng1a, mostrava-se mais convincente, mais senhor Kafk.a considerava-a sua verdadeira juíza. Ele não disse
de si do que nas cartas que no ano anterior enviara a nenhuma palavra. Não se defendia, e o noivado termi-
Feli~e. Log~ou alarmar a Grete, que, por sua vez, ad- nou despedaçado, assim como fora seu desejo. Partiu
vertiu a Feltce. Kafka foi então intimado a comparecer de Berlim e passou duas semanas numa praia de mar,
perante um "tribunal" em Berlim. em companhia de Ernst Weiss. No seu diário, descreve
Devido a esse "tribunal", que se reuniu em julho a paralisia que o acometera durante aqueles dias em
de 1914, no hotel Askanischer Hof, produziu-se a crise Berlim.
da dupla relação para com ambas as mulheres. O rom- Retrospectivamente, também pode parecer que
pimento do noivado, ao qual todo o seu ser impelia Grete Bloch impediu desse modo uma união da qual
Kafka, aparentemente lhe foi imposto de fora. Mas era sentia ciúmes. Igualmente podemos conjeturar que
como se ele mesmo houvesse escolhido a dedo os com- Kafka, numa espécie de previdente intuição, fê-la mu-
ponentes do grêmio. Preparara-os como nunca antes dar-se para Berlim e ali, por meio de suas cartas, pro-
réu nen~um fizera. O escritor Ernst Weiss, que residia duziu nela um estado que lhe propiciasse a força - que ·
em Berlim, era, havia sete meses, seu amigo. Além das a ele rn.esmo faltava - para redimi-lo do noivado.
~uas. qu,alidades literárias, acarretava à amizade algo Ora, esse modo de rompimento, sua forma
mes.tlmavel, do p_o nto de vista de Kafka, a saber, a sua concentrada à maneira de um "tribunal" - doravante,

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Kafka nunca usou outro termo a esse respeito - exer-
ceu sobre ele um efeito arrasador. Em princípios de
agosto, sua reação começou a tomar forma. O proces-
so, que até então, no curso de dois anos, acontecera nas
cartas trocadas entre ele e Felice, transformou-se em
seguida naquele outro Processo, que todos conhecem.
Trata-se do mesmo processo. Kafka ensaiara-o. O fato II
de ele ter incluído no livro infinitamente mais do que
poderíamos deduzir das cartas não nos deve iludir
quanto à identidade dos dois processos. A força que
antes procurara obter de Felice, ele a hauria agora do
choque causado pelo "tribunal". Ao mesmo tempo, o
Juízo Universal iniciou suas sessões: estalara a Primeira Duas ocorrências decisivas na vida de Kafka, e pa-
Guerra Mundial. O nojo que Kafka sentia por manifes- ra as quais ele, segundo seu jeito,_ teria pref~rido um
tações de massas, tais como as que acompanhavam a caráter especialmente privado, haviam decorrido sob a
conflagração, aumentava seu vigor. Quanto às ocor- mais penosa publicidade. Refiro-me ao "no!:7ado ofi-
rências privadas que nele se produziam, Kafka desco- cial", celebrado em 1? de junho no lar da fam1ha Bauer,
nhecia aquele desdém que distingue escribas insig- e, seis semanas após, em 1.2 de julho de 1914, no hotel
nificantes de escritores autênticos. Quem pensar que Askanischer Hof, o "tribunal", que resultou na ruptura
possa separar seu mundo íntimo do mundo exterior, do contrato de casamento. É possível comprovar que o
simplesmente não possui o primeiro dos dois e portan- teor emocional dos dois acontecimentos passou direta-
to é incapaz de separar qualquer coisa. Mas, no caso de mente a deixar seus vestígios no Processo, cuja redação
Kafka, sucedia que a debilidade que o acometia, a oca- Kafka iniciou em agosto. Logo no primeiro capítulo, o
sional interrupção de suas energias vitais possibilitava noivado converte-se na detenção , ao passo que o "tri-
apenas esporadicamente o ato de focalizar e objetivar bunal" ressurge no último, sob d forma da execução.
suas experiências "privadas". A fim de alcançar aquela
continuidade que ele considerava indispensável, neces- Algumas passagens dos diários tornam esse nexo
sitava de duas coisas: em primeiro lugar, um choque tão evidente que podemos permitir-nos demonstrá-lo,
muito forte, ainda que de certo modo errado, tal como sem que com isso infrinjamos a integrida?e do ~o-
foi o desse "tribunal", que mobilizou para a defesa mance. Se fosse necessário incrementar sua 1mportan-
contra o mundo exterior toda a sua atormentadora exi- cia, o conhecimento do epistolário em apreço seria um
gência de exatidão; e, em segundo, o laço entre o infer- meio adequado. Felizmente, tal necessidade não exi:te.
no exterior do mundo com o íntimo, que ele trazia em Mas a seguinte reflexão, apesar de ser em certo sentido
si. Isso acontecia em agosto de 1914. Ele mesmo deu-se uma intrusão, não priva em absoluto o romance de seu
conta do fato e, à sua maneira, expressou-o claramente. mistério, que com o tempo se intensifica constante-
mente.
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A detenção de Josef K. realiza-se num domicílio duas famílias no ato do noivado - para ele, sempre
que ele conhece bem. Produz-se, quando ainda se en- fora difícil manter sua própria a distância - impeliu-o
contra na cama, o lugar mais familiar para qualquer cada vez mais a tomar refúgio em si mesmo. Devido à
pessoa. Tanto n1.ais incompreensível é o que se dá nessa pressão que exerciam sobre ele, Kafka via nelas pessoas
manhã, quando um homem totalmente desconhecido estranhas. Entre os presentes, havia membros da famí-
planta-se à frente dele e outro, em seguida, comunica-- lia Bauer, com os quais ele realmente ainda não travara
lhe que está preso. Esta comunicação é, no entanto, conhecimento, e também outros convidados, que não
provisória. O ato verdadeiro, ritual da detenção sucede conhecia, como, por exemplo, o irmão de Grete Blo-
diante do inspetor no quarto da sre Bürstner, onde ne- ch. Estavam lá ainda outros que talvez tivesse visto em
nhum dos presentes, n em sequer K. tem nada que fa- uma ou duas ocasiões, rapidamente, mas até a mãe de
zer. Exige-se dele que, para a ocasião, use um traje pró- Felice, com a qual já conversara, mesmo assim lhe des-
prio para solenidades. N o quarto da srt'. Bürstner a- pertava desconfiança. E no que tocava a seus próprios
cham-se, além do inspetor e dos dois guardas, três jo- parentes, tem-se a impressão de que perdera a facul-
vens, qu e K. não reconhece imediatamente, senão ape- dade de reconhecê-los, uma vez que eles participavam
nas mais tarde. São fun cionários do banco, no qual de tal espécie de coação.
ocupa um cargo diretivo. Do apartamento situado ao Na cena da detenção de Josef K., depara-se-nos
lado oposto da rua, gente estranha observa o que uma mescla semelhante de pessoas estranhas e de co-
ocorre. Não se aduz nenhum motivo que justificasse a nhecidos mais ou menos próximos. Havia ali os dois
detenção, e o mais surpreendente é que, sem embargo guardas e o inspetor, personagens inteiramente novos;
de ela ter sido pronunciada, K. recebe licença para os habitantes da casa do lado oposto da rua, que ele
encaminhar-se ao banco e continuar a circular livre- talvez já tivesse avistado, sem que lhe dissessem respei-
mente. to; e por último os jovens bancários, que, embora os
Essa circunstância da liberdade de movimentos visse diariamente, tornavam-se para ele estranhos no
depois da detenção, é o que, antes de mais nada, recor~ ato de sua detenção, do qual participavam pela sua me-
da o noivado de Kafka, celebrado em Berlim. Durante ra presença.
aquela cerimônia, tinha ele a sensação de que essa coisa Mais importante, porém, é o lugar da deten ção, a
absolutamente não lhe dizia respeito . Sentia-se amarra- saber, o quarto da srt' Bürstner. Seu nome começa com
do e cercado por pessoas estranhas. O já citado trecho B, assim como Bauer, mas o mesmo B inicia também
do diário, que se refere a esse acontecimento, reza: "Es- o sobrenome de Grete Bloch. No quarto há fotos da
tava atado como um criminoso. Se me tivessem atirado família, e na cremona da janela está pendurada uma
a um canto, com autênticas correntes, rodeado por blusa. Mulher alguma assiste à detenção, porém a blusa
guardas, para que só assim avistasse o que acontecia, serve de conspícua substituta.
não teria sido pior. E isso eram meus esponsais!. .. " A Mas a irrupção na habitação da sre Bürstner, sem
qualidade embaraçosa que ambas as ocorrências têm que ela saiba de nada, preocupa K. A idéia da desordem
em comum é o fato de sua publicidade. A presença das ali produzida preocupa-o. De tardezinha, ao regressar

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do banco a seu lar, tem uma conversa com a srt' Gruba- o seu comportamento, que lhe causava satisfação, e no
ch, proprietária da casa. Não obstante as ocorrências da entanto estranhava que não se sentisse mais satisfeito
manhã, ela não perdeu a confiança nele. "Trata-se, afi- ainda."
nal, da boa sorte do senhor" - começa uma das suas É difícil evitar a sensação de que nessa cena a srt:
frases confortadoras. O termo "boa so rte", nesse Bürstner representa Grete Bloch. O desejo que Kafka
contexto, tem um som esquisito; é uma intrujice; re- experimentara por esta, manifesta-se veemente e ime-
lembra as cartas a Felice, nas quais se falava de "boa diatamente. A detenção - derivada daquele atormen-
sorte" unicamente de modo ambíg uo e aquilo soava tador processo do noivado com Felice- foi transferida
como se significasse ao mesmo tempo e antes de mais para a morada da outra mulher. K. , que na manhã ain-
nada '.'má sorte". K. observa que deseja pedir desculpas da não tinha consciência de culpa alguma, tornou-se
a sre Bürstner, por ter- se utilizado do quarto dela. A culpado por seu comportamento na noite seguinte, pe-
srt: Grubach tranqüiliza-o e lhe mostra o quarto, onde la agressão à srt: Bürstner. Pois esta " lhe causava satis-
tudo já se encontra arranjado em perfeita ordem. "A fação".
própria blusa não mais estava pendurada na cremona . A situação complexa, quase inextricável, na qual
da j anela." Já é tarde, e a srt' Bürstner ainda não está em Kafka se achava na época do noivado, foi por ele des-
casa. A srt' Grubach sente-se induzida a proferir a res- crita assim com deslumbrante nitidez no primeiro capí-
peito da vida particular da moça alguns comentários, tulo do romance. Almejara ele a presença de Grete Blo-
que têm caráter um tanto irritante. K. aguarda a volta ch no ato dos esponsais. Até demonstrara interesse pelo
da srt' Bürstner. Enreda-a, um pouco a contragosto de- vestido que ela usaria na ocasião. Não pod~mos excluir
la, num colóquio sobre os acontecimentos da manhã. a possibilidade de que dito traje se haja transformado
Isso tem lugar no quarto da moça, e a descrição chega a na blusa branca, pendurada no quarto da srt: Bürstner.
tornar-se ocasionalmente tão ruidosa, que, na peça Apesar de todos os seus esforços feitos na continuação
contígua, alguém dá várias vezes pancadas enérgicas na do "Processo", K. não consegue ter uma conversa com
parede. A sre Bürstner sente-se comprometida e mos- a sre Bürstner sobre o incidente. Habilmente, ela se
tra-se aflita pelo ocorrido. K., como se quisesse conso- esquiva, para o maior desgosto dele, e o assalto cometi-
lá-la, beija-lhe a fronte. Promete-lhe assumir a culpa de do naquela noite permanece entre ambos um segredo
tudo perante a senhoria. Mas ela não quer ouvir nada inviolável.
disso. Empurra-o à ante-sala. K. "agarrou-a e Também isso recorda a relação entre Kafka e
imprimiu-lhe beijos, primeiramente na boca, e em se- Grete Bloch. O que se realizou entre os dois, fosse o
guida em todo o rosto, como um animal sedento per- que fosse, nun.ca cessou de ser segredo. Tampouco se
corre rapidamente com a língua a vertente finalmente pode supor que esse segredo tenha sido discutido pe-
encontrada. Por fim, beijou-lhe o pescoço, no lugar da rante o "tribunal" no hotel Askanischer Hof. A esse
garganta, onde deixou longamente repousar os lá- respeito, não existe sequer o menor indício. Ali se tra-
bios." Depois de voltar a seu quarto, adormeceu logo, tava da atitude ambígua que Kafka assumira quanto ao
porém "antes de dormir refletia ainda um pouco sobre noivado. As passagens das cartas dirigidas a Grete Blo-

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eh, que esta revelou em público, referiam-se a Felice e Em Berlim houve uma única pessoa que o tratou
aos esponsais. No verdadeiro segredo que existia entre com "indescritível bondade". Kafka nunca se esqueceu
Grete e Kafka, nenhum dos dois tocou. No volume das disso. Era Ema, a irmã de Felice. Sobre ela lemos no
cartas que ch~garam até nós, falta tudo -quanto possa diário a anotação de 28 de julho: "Penso no trajeto que
esclarecê-lo. E evidente que algumas peças da corres- nós dois, E. e eu, percorremos juntos rumo à gare de
pondência foram destruídas por Grete. Lehrte. Não falávamos. Eu não pensava em outra coisa
A fim de compreendermos como o "tribunal" a não ser que cada passo se constituía num ga~ho para
que feriu Kafka com enorme impacto, converteu-se n~ mim. E E. comporta-se gentilmente para comigo. Por
execução narrada no capítulo final do Processo, é neces- incrível que pareça acredita mesmo em mim, apesar de
sário evocar algumas passagens dos diários e da corres- ter-me visto perante o tribunal. Notei até de vez em
pondência. Por fins de julho, Kafka empenhou-se em quando o efeito que esta fé me causa, sem, todavia, crer
descrever rápida e provisoriamente, por assim dizer de irrestritamente em tal sensação.''
fora, o decurso dos acontecimentos: A bondade de Ema e os enigmáticos sinais dados
"A corte reunida no hotel. .. A fisionomia de F. pelos pais quando tudo já estava terminado, condensa-
Ela passa as mãos pelos cabelos; boceja. Subitamente se ram-se na página final do Processo, pouco antes da exe-
concentra e profere coisas bem premeditadas, longa- cução, culminando nessa passagem maravilhosa que
mente guardadas, hostis. O regresso com a srr: Bl. .. " ninguém que a tenha· lido jamais poderá olvidar:
"Em casa dos pais. Umas poucas lágrimas da mãe.
Recito a lição. O pai entende-a acertadamente sob to- "Seus olhares fixavam-se no último piso da casa
dos os aspectos... Eles me dão razão; nada ou muito contígua à pedreira. Como uma luz que _raiasse,
pouco pode-se alegar contra mim. Diabólico em toda a abriam-se bruscamente os batentes de uma pnela, e
inocência. Aparente culpabilidade da sre Bl. .. " uma pessoa débil, delgada a essa distância e essa altura
"Por que os pais e a tia fizeram sinais para mim na inclinava-se de golpe muito para a frente, estendendo
despedida? ... " · ainda mais os braços. Quem era? Um amigo? Um ho-
"No dia seguinte, não fui ver os pais. Limitei-me a mem bondoso? Alguém que se compadecesse? Alguém
mandar um ciclista com uma carta de despedida. Carta que desejasse acudir? Era um só? Eram todos? Será que·
insincera, coguete. 'Não guardeis más recordações de ainda se podia esperar ajuda?"
mim!' Alocução que se faz no patíbulo." (Algumas frases mais adiante, lia-se na versão ori-
Depreende-se disso que já nesse tempo, em 27 de ginal: "Onde estava o juiz? Onde se encontrava a Alta
julho, duas semanas após as ocorrências, o "patíbulo" Corte? Tenho algo que dizer. Levanto as mãos.")
gravara-se em sua 111ente. Com a palavra "corte",
Kafka entrara na esfera do romance. Ao falar do "patí-
bulo", antecipou seu destino e seu fim. É notável a pre-
matura fixação da meta. Ela explica a segurança com No hotel Askanischer Hof, Kafka não se defen-
que se desenrola o Processo. deu. Permaneceu calado. Não reconheceu o tribunal
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que o julg~~a, : pelo silêncio manifestou que o rejeita- lo, e, quando foi escrita essa carta, o julgamento estava
va. Ess: silencio prolongou-se por muito tempo: du- ainda muito distante de seu fim.
ra~te tres meses, os laços entre ele e Feiice estavam in- Quinze dias após, na primeira, muito extensa carta
te~ra~ente cortados. Mas, às vezes escrevia ele a Erna, endereçada a Felice, escreve Kafka que não fora por tei-
a 1rma dela, a que confiava nele. Em outubro, Grete mosia que se manteve calado no Askanischer Hof; asse-
Bloch, recorda~do-se de seu papel original de media- veração não muito convincente. Pois já na frase se-
dora,!-ez tentativas no sentido de restabelecer O conta- guinte lemos: "O que disseste era perfeitamente claro.
to. N_a~ se conservou a carta que dirigiu a Kafka, ao Não quero repeti-lo, mas havia lá coisas que deveriam
con~rano da :,es~osta dada por ele: "Você afirma que a ser impronunciáveis, mesmo que estivéssemos a sós ...
odeio, m~s nao e verdade, - lê-se ali. - Admito que Nem sequer agora protesto contra o ato de teres feito
no Ask~mscher ~~f atuava como juíza de minha pes- com que a sre Bl. te acompanhasse, pois na carta a ela
soa, coisa _abommavel para você, para mim, para to- dirigida quase que te humilhei, de modo que a ela cabia
dos, mas isso era apenas aparente, pois, na realidade o direito de estar presente. Mas, que tenhas insistido na
est~va eu sentado em seu lugar, que não abandonei até presença de tua irmã Ema, à qual eu então mal e mal
hoJe." conhecia, isso não consegui compreender. .. "
Fácil se~ia interpretar o fim dessa passagem como O desenlace do caso, a ruptura do compromisso,
aut?-acusaçao; uma auto-acusação coineçada havia correspondia ao que ele desejara. A esse respeito, so-
~mto e nunca terminada. Não creio, porém, que com mente podia sentir-se aliviado. Mas, o que o melindra-
~sso se chegue ao fundo de seu significado. Muito mais va, o que o envergonhava profundamente era a publici-
importante afigura-se-me nessa frase o fato de ele de- dade do ato. A ignomínia de tal humilhação, cuja gra-
por Grete Bloch de seu cargo de juíza. Remove-a, para vidade só poderia ser avaliada à base de seu orgulho,
oc~par ele mesn:io o lugar que ela se arrogou. Não permaneceu acumulada nele; germinou o Processo e de-
existe nenhum tnbunal exterior, cuja autoridade Kafka sembocou integralmente no capítulo final. Quase em
reconheça. Ele é seu próprio tribunal inteiramente e silêncio, quase sem nenhuma resistência, K. se deixa
este sempre estará_em sessão. _Quanto à usurpação p~r- conduzir até à execução. Abandona subitamente por
petr~~a por ela, nao usa qualificação mais enérgica do inteiro as tentativas de resistir, que, na sua obstinação,
que era apenas aparente", e a maneira como mostra a perfazem o enredo do românce. A caminhada através
Grete que "percebeu" sua pretensão nos faz sentir que da cidade é como um resumo de todas as caminhadas
~a ~ealidade, ela nunca ocupou o assento de juíza. A~ anteriores, que visavam a defesa. "Então surgia diante
mves de deslocá-la pela força, demonstra-lhe que se deles, vinda de uma viela situada mais embaixo, a sre
trata de uma ilusão. Recusa-se a lutar com ela mas Bürstner, encaminhando-se à praça. Não ficava certo
atrás da nobreza de sua resposta esconde-se O ;ouco se realmente era ela, mas a semelhança era grande." K.
que lhe concede e que não inclui sequer o ódio do com- punha-se a andar, e dessa vez era ele quem determinava
ba~e. Kafka tem consciência de submeter-se a seu pró- a direção .."Determinava-a, segundo o caminho esco-
pno processo; nenhum outro tem o direito de instaurá- lhido pela senhorita que ia à sua frente, nãó por querer

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alcançá-la, nem tampouco por desejar vê-la o maior ocupar-se sem cessar com o Processo. E_m agosto,. co-
tempo possível, senão a fim de não esquecer a adver- meçou igualmente a elaborar a RecordafaO da ferrovia de
tência que ela representava para ele." Trata-se da ad- Kalda, obra que permaneceu inconclusa. Em outubro,
vertência relativa a seu segredo e à jamais confessada tirou duas semanas de férias , a fim de adiantar o ro-
culpa. Esta independe do tribunal, que se subtraíra a mance, porém, em vez dele, escrevia então Na colônia
ele; independe da acusação que K. jamais chegou a co- penitenciária e o último capítulo de América.
nhecer. Mas confirma-o no abandono da resistência No decorrer dessas férias, houve da parte das mu-
nessa sua derradeira caminhada. Porém a humilhaçã~ lheres tentativas no sentido de reatar as relações. A pri-
da qual se falou prolonga-se mais ainda, até as últimas . meira delas era uma carta de Grete Bloch, que Kafka
frases:
recebeu. Já citamos uma passagem de sua resposta, que
"Mas as mãos de um dos cavalheiros cingiram a parece "intransigente". Foi reproduzida no diário, com
garganta de K., enquanto o outro lhe enfiava a faca no o seguinte comentário: "Sei que está escrito que ~u per-
coração e ali .ª faria dar duas voltas. Com os olhos já maneça sozinho." Relembra a aversão que Fehce lhe
quebrados, via K. como os cavalheiros bem perto de causou "pelo jeito como dançava, baixando se:era-
seu rosto, face a face, observavam o desenlace. 'Como mente o olhar, ou ainda como, pouco antes de sair do
- ,, d'
um cao. - isse; era como se a vergonha tivesse de Askanischer Hof, passava a mão pelo nariz e pela cabe-
sobreviver-lhe."
leira." Evoca "inúmeros momentos de total a-
A derradeira humilhação consiste na publicidade lheamento". Mesmo assim, essa carta absorvia-o a
des:a morte, que os dois carrascos, perto do rosto dele, noite inteira; a obra ficava paralisada, ainda que ele se
espiavam, face a face. Os olhos quebrados são testemu- sentisse capaz de trabalhar. "Para nós todós seria me-
nhas dessa publicidade de sua morte. Seu último pensa- lhor se ela não me respondesse, mas certamente res-
mento dedica-se à vergonha, que é suficientemente ponderá, e eu aguardarei sua respost~." .
forte pa~a ,~obreviver a ele, e a frase derradeira que pro- Logo no dia seguinte, tinham-se intensificado ta~-
nuncia e: Como um cão!" to a resistência como a tentação. Kafka escreve que vi-
veu tranqüilo sem nenhum contato real com Feli~e, s~-
nhando com ela como se fosse uma defunta, que Jamais
pudesse voltar à vida, "e agora, quando se m e depara
Em agosto de 1914, como já foi dito, Kafka ini- uma possibilidade para aproximar-me dela, torna a ser
ciou a própria redação. Conseguiu dedicar-se a ela dia- 0 centro de tudo. Talvez até estorve o meu trabalho. E
riamente durante três meses, interrompendo-a so- todavia, quando, às vezes, eu pensava n ela_ nesses últi-
mente por duas noites, segundo relata, não sem orgu- mos tempos, sempre a julgava a pessoa mais remota de
lho, numa carta posterior. A maior parte do trabalho todas quantas já conheci ... "
ficava devotada ao Processo, objeto verdadeiro de seu O "centro de tudo'' - eis o que Feiice não deve
fervor. Mas, ao mesmo tempo, empreendia também ser eis o motivo por que ele não pode casar-se, nem
outras coisas, pois evidentemente não lhe era possível co~ ela, nem com mulher alguma. A moradia que ela
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não cessa de almejar é ela mesma, é esse centro. Kafka não, mas em certas ocasiões experimenta satisfação por
só pode ser seu próprio centro ininterruptamente ex- cumprir com seu dever tão bem como lhe permitem as
posto a agressões. A vulnerabilidade de seu corpo e de circunstâncias.
sua cabeça é autêntica condição para seu trabalho literá- Assevera que tal forma de vida é a que sempre pre-
rio. Por mais que se crie a impressão de que ele se tendeu levar, ao passo que a Fel ice a idéia de uma exis-
empenhe em proteger-se e garantir-se contra tal sensi- tência desse gênero invariavelmente causou repug-
bilidade, enganam todos esses esforços, pois, na reali- nância. Enumerando todas as ocasiões nas quais ela re-
dade, necessita da solidão para continuar desprotegido. velou tal aversão, cita como a derradeira, decisiva a ex-
Dez dias mais tarde chega uma resposta de Grete plosão de fúria no Askanischer Hof. A ele, que tinha a
Bloch. "Completamente indeciso quanto ao problema obrigação de salvaguardar sua obra, ficou claro que o
de replicar-lhe. Pensamentos tão sórdidos que nem posso que mais a ameaçava era a repulsa dela.
anotá-los." Como exemplo concreto das dificuldades exis-
O que chama "pensamentos sórdidos" condensa- tentes entre ambos, evoca a falta de concordância ares-
se nele, a ponto de produzir uma atitude defensiva cuja peito da moradia. "Teu desejo era uma coisa total-
força desta vez não convém menosprezar. Em fins de mente natural, a saber, um apartamento tranqüilo,
outubro, envia a Feiice uma carta muito extensa, que confortavelmente mobiliado, familiar, tal como o ha-
anuncia previamente num telegrama. É uma missiva bitam as outras famílias do teu e também do meu pa-
que revela espantoso distanciamento. Não contém drão social. .. Mas, o que significa o conceito que se
quase nenhuma queixa. Proveniente de um homem co- criava em ti quanto a uma residência dessa espécie? Sig-
mo Kafka, só pode ser considerada sadia e agressiva. nificaria que estás de acordo com os outros, mas não
Afirma nela que, na verdade, não teve a intenção comigo ... Quando esses outros contraem matrimônio,
de escrever-lhe. No Askanischer Hof ficara por demais já saciaram sua fome quase por completo, e o casamen-
evidente para ele a inutilidade de epístolas e de qualquer to é para eles tão somente o último, grande e belo boca-
outra coisa escrita. De modo bem mais calmo do que do. No que toca a mim, não é assim; não a saciei; não
nas cartas anteriores, declara que era seu trabalho o que fundei nenhuma firma comercial que deva progredir
tinha de opor-se com toda a energia a ela como a sua cada vez mais, de ano em ano, durante a convivência
máxima inimiga. Esboça uma descrição de sua vida matrimonial; não necessito de nenhuma moradia defi-
atual, com a qual parece não estar descontente. Conta nitiva, em cuja paz ordenada me cumpra gerenciar dito
que vive sem nenhuma companhia na casa de sua irmã negócio. Mas não apenas não preciso de uma habitação
mais velha, que foi morar com os pais, uma vez que o dessas; ela até me inspira medo. Tenho tanta sede de
çunhado está no front. Diz que ele habita três silencio- trabalhar. .. Mas as condições que encontro aqui obsta-
sas peças, sem ver a ninguém, nem sequer a seus ami- culizam meu trabalho, e se, acomodando-me a elas,
gos, e está trabalhando todos os dias, durante o último instalasse-me num aparamento tal como o desejas, isso
trimestre, sendo essa noite apenas a segunda em que significaria ... tentar tornar definitivas as referidas
não o fazia. Admite não se sentir feliz, absolutamente condições, o que seria o pior que me possa acontecer."

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Ao fim da carta, defende a correspondência man- Em 5 de dezembro, recebe ele uma carta de Ema
tida com Ema, irmã de Felice, à qual tenciona escrever sobre a situação da família, que piorou bastante devido
no dia seguinte. à morte do pai, ocorrida poucas semanas antes. Kafka
Sob a data de 1? de novembro, lemos no diário de considera-se a si mesmo causa da perdição da família,
Kafka, ao lado de outras anotações, uma frase muito muito embora se sinta inteiramente desvinculado dela.
singular: "Muita auto-satisfação durante todo dia." Es- "Unicamente a perdição prossegue atuando. Infelicitei
sa sensação refere~se certamente àquela longa carta que Felice. Debilitei a capacidade de resistência de todos os
provavelmente já foi despachada. Kafka acaba de reatar que agora precisam dela. Contribuí• para a morte do
as relações com Felice, sem, todavia, fazer-lhe a menor pai. Provoquei atritos entre F. e E., e terminei causan-
concessão. A essa altura, sua posição era clara e firme e, do a infelicidade de E. também ... Somando tudo, rece-
ainda que ele às vezes manifestasse quanto a isso certas bi igualmente castigos bastante grandes; minha própria
dúvidas , permanecerá ela inalterada por muito tempo. posição em face da família seria suficiente como puni-
No dia 3, anota: "Desde agosto, é este o quarto dia em ção; também sofri tanto que nunca me refarei total-
que não escrevi coisa alguma. A culpa cabe às cartas. mente, ... mas, no momento, minha relação com a fa-
Vou tentar escrever nenhuma ou somente cartas bem mília causa-me poucos sofrimentos, em todo o caso
breves." menos do que F. ou E.".
Vê-se, portanto, que o que o estorva são suas pró- O efeito dessa culpa global que Kafka se atribui -
prias cartas. É uma percepção muito importante, total- ele, como perdição de toda d família Bauer - foi, co-
mente plausível. Enquanto o preocupa o problema de mo era de esperar, tranqüilizador. Não c~biam ali por-
apartar o Processo de Felice, dificilmente poderá dirigir- menores de sua atitude para com Fdice. O contexto
se outra vez a ela com tanta minuciosidade. Em conse- mais amplo da perdição geral da família abrange todos
qüência dela, o romance se enredaria. Qualquer análise os fatos avulsos. Durante seis semanas inteiras, acé 17
mais intensa de suas relações faria com que voltasse à de janeiro, não aparecem, no diário ou nas cartas, os
época anterior ao início da elaboração da obra. Seria nomes nem de Felice nem de Ema nem de outro mem-
como solapar as próprias raízes. Assim, pois, evita do- bro da enlutada família. Em dezembro, redige Kafka o
ravante escrever-lhe. Dos três meses seguintes, até fins capítulo "Na catedral" do Processo, e, ao mesmo tem-
de janeiro de 1915, não foi encontrada nenhuma carta po, inicia mais duas obras, A toupeira gigante e O substi-
sua. Kafka concentra todas as suas energias no afã de tuto do promotor público. Em 31 de dezembro, faz no diá-
trabalhar. Nem sempre o consegue, mas jamais cessam rio o balanço da produção do ano transcorrido; o que
as tentativas. Em princípios de dezembro, lê aos a_m i- contraria completamente seus hábitos e nos recorda os
gos Na colônia penitenciária, e não se sente "completa- diários de Hebbel:
mente insatisfeito". Como resultado desse dia, regis- "Labutei desde agosto, no conjunto nem pouco
tra: "Absolutamente necessário que continue a traba- nem mal." A seguir, após algumas restrições e exorta-
lhar; tem que ser possível, apesar da insônia e do escri- ções dirigidas a si mesmo, tais como é incapaz de repri-
tório." mir, alista as seis obras às quais se dedicou. Sem co-
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nhecimento dos manuscritos, - inacessíveis para mim comida, o sono a partir das onze horas, o quarto bem
- torna-se-me difícil determinar quantas páginas do aquecido, e acerta meu relógio que, há três meses, anda
Processo já se achavam escritas nessa época. Certamente adiantado em uma hora e meia ... "
já existia grande parte delas. Seja como for, a lista é "Durante duas horas, estivemos a sós no quarto.
impressionante, e não hesitarei em qualificar esses últi- A meu redor, nada a não ser tédio e desolação. Ao es-
mos cinco meses do ano de 1914 como o segundo tarmos juntos, ainda não tivemos nenhum instante
grande período da vida do escritor Kafka. ameno que me permitisse respirar livremente ... Tam-
Nos dias 23 e 24 de janeiro, realizou-se na locali- bém li alguma coisa para ela; as frases misturavam-se
dade fronteiriça de Bodenbach um encontro entre ele e de modo asqueroso, sem nenhum contato com a ou-
Feiice. Somente seis dias antes dessa ocorrência, lemos vinte, que estava deitada no sofá, de olhos cerrados,
no diário uma referência ao projeto de revê-la: "Sábado acolhendo o texto em silêncio ... Minha constatação era
verei- F. Se me ama, não o mereço ... Nesses últimos correta e foi aceita como tal: cada qual ama ao outro
tempos fiquei muito satisfeito comigo mesmo e utili- assim como esse outro é; mas crê não poder viver com
zei-me de muitos argumentos para minha defesa e au- ele tal e qual é." A intromissão mais sensível da parte
to-afirmação contra F ... " Três dias depois, lê-se: "Ces- de Feiice, é para Kafka a que se refere ao relógio. O fato
sei de trabalhar. Quando poderei voltar a fazê-lo? Em de seu relógio andar de modo diferente dos demais re-
que estado lamentável vou ter com F ... Incapacidade de presenta a seus olhos uma minúscula parcela de liber-
preparar-me para o encontro, ao contrário da ·semana dade. Pondo certo o relógio, Felice sal;>otou inadverti-
passada, quando mal me podia desprender de pensa- damente essa liberdade e a adequou a seu _próprio tem-
mentos importantes a seu respeito." po, ao do escritório e da fábrica. Mas a palavra "ama",
Era a primeira vez, após o "tribunal", que Kafka na frase final, soa como uma bofetada na cara. Sem
revia Felice. Dificilmente ela lhe poderia ter causado nada mudar, poderia dizer "odeia".
pior recordação. Visto que o Processo já se desligara dela Dali por diante, o caráter das cartas altera-se radi-
quase completamente, Kafka dispunha de maior dis- calmente. Kafka não pretende em absoluto recair na
tância e liberdade para avaliá-la. Os vestígios que o antiga maneira de escrever. Evita envolver Feiice nova-
"tribunal" deixara no seu espírito mesmo assim conti- mente no Processo. Daquilo que sobra deste, quase nada
nuavam inextinguíveis. A impressão deixada por Feiice pertence a ela. Decide escrever-lhe de duas em duas se-
acha-se registrada com certa reserva numa carta dirigi- manas, mas nem sequer a isso se atém. Das 716 páginas
da a ela, porém sem nenhuma mitigação no diário: de cartas contidas no volume em apreço, 580 corres-
"Cada um dia de si para si que o outro é inamoví- pondem aos dois primeiros anos, até fins de 1914. As
vel e desalmado. Eu não desisto de minha exigência de cartas escritas nos três anos de 1915 a 1917 ocupam, em
uma vida excêntrica, devotada exclusivamente a meu conjunto, não mais de 136 páginas. Verdade é que se
trabalho, ao passo que ela, surda a todas minhas súpli- perderam umas poucas d espachadas nesse período,
cas mudas, quer a mediocridade, o apartamento mas, mesmo que se tivessem conservado, não modifi-
confortável, o interesse pela fábrica, a abundância de cariam fundamentalmente a proporção. Doravante, tu-

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do se torna mais esporádico e também mais breve. sistível. Em virtude da grande quantidade de material,
Kafka começa a servir-se de cartões postais. A maior cresce a insaciabilidade do observador. O homem, que
parte da correspondência de 1916 utiliza esse meio de se considera gabarito de todas as coisas, ainda continua
comunicação. Utna razão prática de tal alteração quase desconhecido. Seus progressos no campo do co-
consistia no fato de essas missivas passarem mais facil- nhecimento são mínimos. Qualquer nova teoria a seu
mente pela censura então atuante na Áustria e na respeito obscurece mais do que ilumina. Unicamente a
Alemanha. Mas o tom já não é o mesmo. A essa altura, pesquisa imparcial, concreta, dedicada ao estudo de in-
quem se queixa muitas vezes de que ele não escreve é divíduos leva-nos paulatinamente adiante. Uma vez
Felice. Sempre é ela quem corteja, enquanto Kafka re- que essa situação já se prolonga por muito tempo e os
siste. Em 1915, dois anos depois da publicação do li- melhores espíritos sempre se deram conta desse fato,
vro, ela até lê - que milagre! - a Contemplação! um ser humano que se ofereça tão integralmente à in-
O encontro em Bodenbach pode ser considerado vestigação será, sob todos os aspectos, uma dádiva da
divisa d'águas nas relações entre Kafka e Feiice. Desde sorte. Mas, na pessoa de Kafka, sucede mais, e isso per-
que e]e conseguiu vê-la com a mesma implacabilidade cebem todos os que se aproximem de sua esfera priva-
com que julgava a si próprio, deixava de estar entre- da. Há algo profundamente emocionante nesse perti-
gue, indefeso, à idéia que dela fazia. Após o "tribunal" naz esforço. de um ser desamparado no sentido de sub-
colocara longe de si o pensamento na pessoa de Felice, trair-se ao poder sob todas as suas formas. Antes de
porque sabia muito bem que este poderia a qualquer descrevermos o transcurso ulterior das suas relações
instante ser evocado outra vez por uma carta da moça. com Felice, parece-nos indicado mostrar _até que ponto
Porém, graças à coragem encontrada numa nova ele estava obcecado por esse fenômeno que, na nossa
confrontação~om ela, ocorreu uma mudança nas pro- era tornou-se o mais urgente e o mais assustador. Entre
porções das forças existentes entre eles. Gostaríamos de todos os escritores, Kafka é o maior experto, no que
chamar esse novo período de retificação, pois Kafka, toca ao poder. Experimentou e configurou todas as fa-
que outrora hauria vigor da eficiência de Felice, tenta, cetas dele.
d ali por diante, convertê-la em outra pessoa. Um dos seus temas centrais é o da humilhação. É
também o que mais naturalmente se presta à observa-
ção. Já na Sentença, a primeira obra que conta para
Kafka, podemos localizá-lo sem nenhuma dificuldade.
Pode-se p erguntar se a história de cinco anos de Lá se trata de duas humilhações dependentes uma da
tentativas de distanciamento é tão importante que cabe outra, a do pai e a do filho. O pai sente-se ameaçado
ocupar-se com ela tão detalhadamente. O interesse por pelas supostas intrigas de seu filho; para pronunciar o
um escritor pode ir muito longe, certo, e quando os discurso de acusação, coloca-se de pé sobre a cama, e
testemunhos conservados são tão abundantes como assim tornando-se mais alto do que normalmente, em
neste caso, a sedução de tomar conhecimento deles e de comparação com o filho, tenta inverter a própria humi-
compreender seu nexo íntimo é capaz de tornar-se irre- lhação, fazendo com que, pelo contrário, ela se trans-

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forme em rebaixamento do outro, ao qual então No Processo, a humilhação emana de uma instância
condena à morte por afogamento. O filho não reco- superior, infinitamente mais complexa do que a família
nhece a legitimidade da sentença, porém a executa em da Metamorfose. Após ter dado prova de sua existência,
si mesmo e desse modo admite a amplidão do avilta- o tribunal humilha através de seu ato de esquivar-se.
mento que lhe custa a vida. A humilhação fica rigoro- Envolve-se num mistério que nenhum esforço conse-
samente limitada a si própria. Por absurda que ela seja, gue desvendar. A persistência no empenho apenas re-
do efeito que produz provém a força do conto. vela a inutilidade das tentativas. Qualquer pista que se
Na Metamorfose, a humilhação concentrou-se no segue resulta irrelevante. O problema de culpa ou ino-
corpo que a sofre: seu objeto está concretamente pre- cência, que deveria ser a única razão da existência do
sente desde o começo, pois, em lugar de um filho que tribunal, permanece secundário. Até mesmo se eviden-
alimente e sustente a família aparece subitamente um cia que o incessante afã de alcançar o tribunal é o que
besouro. Por essa transformação, vê-se irremediavel- cria a culpa. Mas o tema fundamental do rebaixamen-
mente exposto a uma humilhação, já que uma família to, tal como ocorre entre criaturas humanas, recebe .
inteira sente-se desafiada a impingir-lhe ativamente. O ainda variações, através de diversos episódios. A cena
vexame começa com certa hesitação, mas dispõe do em casa do pintor Titorelli, a cujo começo acontece a
tempo necessário para estender-se e intensificar-se. Aos perturbadora zombaria d.as garotinhas, termina - en-
poucos, todos participam dele quase involuntaria e re- quanto K. teme sufocar pela falta de ar no minúsculo
lutantemente. Realizam mais uma vez o ato preestabe- estúdio - com a apresentação e a compra de quadros
lecido desde o princípio: é a família que metamorfoseia sempre iguais. K. vê-se também forçada a assistir à
Gregor Samsa, o filho, irreversivelmente num besou- humilhação de outrem: está presente quando o comer-
ro, e este equivale, no contexto social, a um bicho no- ciante Block ajoelha diante da cama do advogado e ali
jento. se transforma numa espécie de cão; mas nem sequer
No romance América, há abundância de humi- esse ato, corno todos os demais, leva, em última aná-
lhações, que, no entanto, não são de natureza mons- lise, a qualquer resultado positivo.
truosa ou irreparável. Fazem parte dos conceitos acerca Já se falou em outro lugar do final do Processo e da
do continente cujo nome figura no título da obra: a vergonha da execução pública.
ascensão de Rossmann, promovida pelo tio, e sua que- A imagem do cão, usada nesse sentido reaparece
da igualmente repentina podem bastar como exemplo continuamente nos escritos de Kafka, inclusive em pas-
de muitas outras. A dureza das condições de vida no sagens de cartas qu·e se referem a ocorrências de sua
novo país é equilibrada pela grande flexibilidade social. vida. Assim lemos, por exemplo, numa carta a Felice
Na pessoa humilhada sempre se mantém viva a espe- urna passagem relativa a um incidente acontecido na
rança; a cada queda pode seguir nova ascensão. Ne- primavera de 1914: " ... quando eu corria atrás de ti no
nhum dos golpes que ferem a Rossmann tem a fatali- Tiergarten, tu sempre a ponto de afastar-te para
dade do definitivo. Entre os livros de Kafka, é este o sempre, e eu com a intenção de prostar-me ... naquele
mais esperançoso e o menos consternador. estado de humilhação tal como cachorro algum sofre

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mais profundamente." Ao fim do primeiro parágrafo ao superior, quer que o qualifiquemos de poder supre-
de Na colônia penitenciária, a imagem do condenado mo quer que o consideremos apenas terrestre. Pois, ali
preso com diversas correntes resume-se na seguinte toda a dominação converteu-se numa e na mesma coisa
frase: "O sentenciado aparentava, aliás, tamanha sub- e parece condenável. A fé e o poder coincidem; ambos
missão canina que se tinha a impressão de que seria ficam duvidosos; a servilidade das vítimas que nem se-
possível deixá-lo correr livremente pelas encostas e um quer chegam a sonhar com uma possibilidade de outras
simples assobio bastaria para que ele voltasse na hora condições de vida, deveria fazer um rebelde até a quem
da execução." não tenham influenciado em absoluto as ideologias co-
O Castelo, que pertence a um período muito pos- mumente papagueadas, muitas das quais já fracas-
terior da vida de Kafka, introduz na sua obra uma nova saram.
dimensão de amplitude. Mas esta impressão de vasti- Desde o começo, Kafka colocava-se ao lado dos
dão tem sua origem não apenas no elemento paisagísti- humilhados. Muitos fizeram o mesmo, e para obterem
co, senão - e muito mais - no mundo que o romance resultados positivos, foram em busca de aliados. A sen-
apresenta, mundo mais completo, mais rico em seres sação de força, que tal união provocava neles, privava-
humanos. Também neste caso, como no Processo, o po- os em seg~ida da experiência direta da humilhação, cu-
der esquiva-se: K.lamm, a hierarquia dos funcionários pú- jo fim não se vislumbra e que se perpetua diariamente,
blicos, o castelo. Vemo-los, porém sem termos em se- a todo momento. Kafka isolava cada qual dessas expe-
guida certeza de que foram avistados; a verdadeira rela- riências de outras do mesmo gênero e também das fei-
ção que existe entre a humanidade impotente, domicilia- tas por outrem. Não.lhe era dado liv rar-se delas, parti-
da ao pé do monte do castelo, e os funcionários públicos cipando ou comunicando-se. Velava por elas com uma
é da aguarda do superior. Mas jamais se faz a pergunta espécie de obstinação, como se fossem seu mais impor-
quanto ao porquê da existência desse superior. O tante patrimônio. Estamos tentados de considerar essa
que todavia parte dele, ampliando-se no meio das cria- obstinação seu dom mais genuíno.
turas comuns, é a humilhação perpetrada através do Pode ser que pessoas de tamanha sensibilidade n ão
domínio. O único ato de resistência contra ele, a saber, sejam realmente muito raras. Mais excepcional é o grau
a recusa de Amália de entregar-se a um dos funcioná- de retardamento das contra-reações, que no seu caso se
rios, tem por conseqüência que toda a sua família é ex- manifesta com particular intensidade. Ele m enciona
pulsa da comunidade da aldeia. A compaixão do escri- amiudadamente sua fraca memória, porém na realidade
tor pertence ao inferior, que aguarda em vão, e sua não deixa escapar coisa alguma. A precisão da memória
aversão dedica-se ao superior, que atua em meio à or- revela-se pelo jeito como corrige e completa recorda-
gia das pilhas de dossiês. É possível que haja no Castelo ções inexatas de Felice, relacionadas com aconteci-
aquele fator "religioso", que muitos pensam descobrir mentos de anos passados. Por outro lado, nem sempre
nele, mas somente desnudo, sob a forma de uma incom- dispõe com total liberdade de suas próprias reminiscên-
preensível, jamais saciada nostalgia do "em· cima". cias. Sua obstinação recusa-lhas. Ele é incapaz de jogar
Nunca se escreveu libelo mais claro contra a submissão irresponsavelmente com elas, à maneira de outros es-

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critores. Essa obstinação segue suas próprias, duras que logo após o rompimento do noivado, foi comer
leis. Poder-se-ia dizer que lhe permite economizar suas carne em companhia de sua irmã Ema. Se Felice esti-
energias defensivas. Assim possibilita-lhe não obedecer vesse presente, ele se limitaria a pedir amêndoas com
imediatamente a ordens recebidas, sentir, mesmo as- casca. Dessa maneira, executa com atraso ordens
sim, seus aguilhões, como se houvesse obedecido, e quando já não requerem submissão e ele cessou de a~
servir-se deles depois, para revigorar a resistência. char-se sob a opressão da noiva.
Quando, todavia, chega a obedecer, as ordens já não A taciturnidade de Kafka, seu pendor para guardar
são as m esmas, visto que então as destacou de seu nexo segredos, pendor esse que se manifesta até mesmo pe-
temporal, ponderando-as sob todos os aspectos, debili- rante o seu mais íntimo amigo, devem ser reputados
tando-as através da reflexão e despojando-as assim de a exercícios necessários à referida obstinação. Nem
seu caráter perigoso. sempre ocorre que ele se dê conta de silenciar. Mas,
Tal procedimento requereria um estudo mais por- quando seus personagens, no Processo e sobretudo no
menorizado. N ecessário seria documentá-lo mediante Castelo, abusam dos seus às vezes gá:rrulos discursos,
exemplos concretos. Aduzo apenas um único, a saber percebe-se que se abrem as próprias comportas de
sua repulsa tenaz a determinados alimentos. Kafka mo- Kafka: ele encontra a fala. Normalmente, sua obstina-
ra a m aior parte do tempo no lar de sua família, mas ção somente lhe concede pouquíssimas palavras, po-
n ão se ad ap ta aos hábitos da mesma em matéria de co- rém sob o aparente disfarce dos personagens, autoriza-
mida e os trata como se fossem ordens rejeitáveis. o subitamente a expressar-se livremente. O que se pas-
Desse modo, senta-se à mesa dos pais, isolado no seu sa não é aquilo que conhecemos das confissões de Dos.:.
próprio mundo gastronômico, o que lhe vale a mais toievsky; a temperatura é diferente, muito menos cáli- ·
profunda repugnância da parte do pai. Mas, nesse caso, da; não há tampouco nada amorfo; antes se nos depara
a resistência igualmente lhe propicia a indispensável alguma fluência no manejo de um instrumento nitida-
força para defender-se também em outras ocasiões e mente delimitado, tão somente capaz de produzir de-
em face de outras pessoas. N a luta contra as idéias fatais terminados sons, a agilidade de um virtuoso esmiuça-
que Felice tem a respeito do matrimônio, a acentuação dor, porém inconfundível.
dessas particularidades desempenha um papel cardinal. A história de sua resistência ao pai, e que não pode
Passo a p asso, Kafka resguarda-se do amoldamento ser explicada à base das costumeiras interpretações ba-
que ela espera dele. Mas, logo após a ruptura do com- nais, é também a história inicial dessa obstinação.
promisso de casamento, também Kafka pode sentir-se Sobre este assunto, foi dita muita coisa que parece to-
livre para com er carne. Numa carta que dirige a seus talmente eguivocada. Lícito seria esperar que a sobera-
amigos de Praga, a partir daquela praia do M ar Báltico, na visão que Kafka teve da psicanálise contribuísse para
aonde se encaminhou pouco depois do "tribunal" apartar pelo menos a ele mesmo de tal âmbito restriti-
berlinense, descreve, não sem asco, seu s excessos em vo. A luta contra o pai não foi jamais, na sua essência,
matéria do consumo de carne. Diversos m eses mais algo diferente de uma luta contra um poder superior.
tarde, relata ainda a Felice, com evidente satisfação, O ódio de Kafka dirigia-se contra a família como todo,

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e o pai não era outra coisa que não a parte mais podero- Mas, em momento algum, Kafka sentiu tal aversão em
sa desse clã. Quando estava iminente o perigo de uma face dos termos "poder" e "poderoso"; ambos perten-
família própria, a luta contra Felice provinha da mesma cem a seu vocabulário não evitado e inevitável. Certa-
raiz e tinha o mesmo caráter. mente seria interessante compilar nas obras, no diário e ·
Vale a pena recordar uma vez mais aquele mutis- no epistolário as passagens em que eles aparecem.
mo no hotel Askanischer Hof. Trata-se do exemplo Não é, no entanto, apenas a palavra, s~não tam-
mais elucidativo da obstinação de Kafka. Ele não reage bém o conceito em si, a saber tudo o que ele contém
a acusações do modo como reagiria outra pessoa; não em matéria de facetas infinitame'nte diversas. Katka
as revida por meio de contra-incriminações. Conside- pronuncia isso com coragem e clareza sem par. Pois,
rando a extensão de sua sensibilidade, é quase indubitá- porque teme o poder sob todas as suas formas, porque
vel que ele percebia e sentia tudo quanto se dizia contra o objetivo essencial de sua vida consiste na tentativa de
ele. Tão pouco o "reprime", como estaríamos tentados esquivar-se de todas as manifestações dele, nota-o, per-
de dizer, usando um termo que nesse contexto se su- _cebe-o, define-o ou configura-o em todos ague ês-cas~s
gere. Guarda-o no seu íntimo, tnas permanece qúe outras pessoas aceitariam como naturais.
consciente do acontecido e frequentemente o relembra;
Numa cena descrita num dos contos reunidos no
tão amiúde aquilo se intromete em seu espírito que po-
volume Preparações de uma boda na campanha, Kafka re-
deríamos reputá-lo o oposto de qualquer repressão. O
produz o "que existe de animalesco no poder, críando
que continua refreado é qualquer reação exterior a re-
em oito linhas uma monstruosa imagem do mundo:,,-
velar o efeito interno. Tudo o que ele dessa maneira
conserva em si é afiado con10 uma faca. Mas, nem ran- "Eu me achava indefeso, em face desse vulto, que
cor nem ódio, nem ira nem sede de vingança jamais o estava sentado à mesa, calmo, o olhar fixo na tampa.
induzem a abusar da faca. Aquilo prossegue separado Dei voltas a seu redor e senti como me estrangulava.
dos afetos, qual ente autônomo. Porém, ao negar-se a E111 torno de mim andava um terceiro, que se sentia
eles, subtrai-se ao poder. estrangulado por mim. Em redor do terceiro cami-
Deveríamos pedir desculpas pela utilização ingê- nhava um quarto, que se sentia estrangulado por ele. E
nua do termo "poder", se não fosse o próprio Kafka tudo isso prosseguia até às órbitas dos astros e ainda
quem o usava tranqüilamente, a despeito de toda a Sila mais além. Todos sentiam-se agarrados pelo pes~
ambigüidade. Em su~ obra, a palavra aparece nos mais A ameaça, as mãos cingem o pescoço, têm sua ori-
diversos contextos. A aversão que ele tinha por pala- gem no cerne mais intrínseco; é lá que nasce uma força
vras "grandes", exuberantes, devemos o fato de não de gravitação de estrangulamento, que mantém coeso
haver nos seus livros nenhuma meramente "retórica". um círculo em torno de outro, "até às órbitas dos as-
Por essa razão, jamais definhará sua legibilidade. O tros e ainda mais além". A pitagórica harmonia das es-
processo contínuo do esvaziamento e do reenchimento feras converteu-se numa violência das esferas, sendo
de palavras, processo esse que faz com que quase toda a que nelas prevalece a gravidade dos homens, dos quais
literatura se torne obsoleta, nunca o poderá afetar. cada um representa sua própria esfera.

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Kafka sente a ameaça dos dentes, sente-a a tal pon- "Pouco tempo atrás pensava o açougueiro que po-
to que cada dente o "atenaza", sem necessidade do deria poupar-se à faina da matança. Trouxe, pois certa
conjunto de suas duas fileiras: manhã um boi vivo. Que não repita isso! Conservei-
"Era um dia como outro qualquer. Ele mostrava- me por uma hora ou mais nos fundos da casa, na minha
me os dentes. Senti-me atenazado por eles, sem poder oficina, estendido no chão, com todas as minhas rou-
desvencilhar-me. Não sabia de que modo me pren- pas, cobertas e almofadas empilhadas em cima de mim,
diam, já que não se cerravam. Tampouco os avistava só para não ouvir os mugidos do boi, que os nômades
sob a forma de duas fileiras da dentadura, senão apenas assaltavam de tudo que era lado, a fim de lhe arranca-
• uns aqui e outros acolá. Queria segurar-me neles, a fim rem com os dentes pedaços de sua carne quente. Havia
de saltar por cima, porém não o consegui." muito, o silêncio se restabelecera, quando me atrevi a
Numa carta a Felice formula a assustadora expres- sair. Como borrachos ao redor de um tonel de vinho,
são do "medo à posição ereta". Explica um sonho que aquela gente jazia, cansada, em torno dos restos do
ela lhe relatou. Graças a seu comentário, não é difícil b OI.. "
reconstruir o conteúdo: "Havia muito, o silêncio se restabelecera ... " Cabe
afirmar que o narrador se esquivou de algo insuportá-
"Em compensação, interpretarei teu sonho. Se
não te tivesses deitado no chão, em meio à bicharada, vel, que voltou a encontrar a paz? Ora, após tamanho
não terias tampouco avistado o céu e as estrelas e não berreiro já não existe p,az. E a posição do próprio
poderias ser redimida. Possível é até que nem tivesses Kafka, mas quaisquer roupas, cobertas, almofadas do
mundo seriam incapazes de silenciar o bqmido que
sobrevivido ao medo à posição ereta. Comigo sucede a
mesma coisa: trata-se de um sonho que temos em co- ressoava em seus ouvidos. Ao subtrair-se dele, fazia-o
mum e tu o sonhaste para nós dois." apenas para, em seguida, ouvi-lo novamente, já que o
barulho nunca parava. Verdade é que o verbo "sub-
Para ser redimido, é preciso deitar-se em meio à trair-se", que acabamos de usar, é, com referência a
bicharada. A posição ereta é o poder que o homem Kafka, muito inexato, porquanto, no seu caso, sig-
exerce sobre os animais. Mas, justamente devido a ela, nifica que ele buscava o silêncio, para não escutar nada
que lhe confere poder, ele se torna exposto, conspícuo, que tivesse menos volume do que o medo.
atacável. Pois esse poder é ao mesmo tempo culpa, e Confrontado em toda a parte com o poder, dita
somente estendidos no chão, rodeados pela bicharada, obstinação às vezes lhe propiciava algum sursis. Mas,
podemos ver as estrelas, que nos redimem do assusta- quando ela não era s"uficiente ou fracassava, Kafka
dor poder do homem. exercitava-se na técnica de desaparecer. Nesse porme-
Dessa culpa na qual o homem incorre com relação nor, mostrava-se útil o proveitoso aspecto de sua ma-
aos animais dá testemunho a passagem mais rumorosa greza, pela qual, como se sabe, ele freqüentemente sen-
da obra de Kafka. O trecho aqui reproduzido encon- tia desdém. Mediante a diminuição física subtraía po-
tra-se no conto Uma velha página, da coleção intitulada der a si mesmo, e, desse modo, participava menos dele.
Um médico rural: Também esse ascetismo estava dirigido contra o poder.

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A mesm1ss1ma tendência de desaparecer revela-se na "Como a toupeira, cavamos caminhos através de
sua relação com seu nome. Em dois dos seus romances, nós, e, ao sai'rmos de nossos montículos de areia des-
no Processo tanto como no Castelo , reduziu-o à letra i~i- moronados, todos enegrecidos, com as peles aveluda-
cial K. Nas cartas a Felice, acontece que o nome se das, erguemos as pobres patinhas rubras à procura de
torna cada vez mais minúsculo, até sumir por com- compaixão ... No decorrer de um passeio, meu cão des-
pleto. cobriu uma toupeira, que tentava atravessar a rua.
Existe um outro recurso ainda mais assombroso, Sempre se acercava dela num salto, mas em seguida
do qual Kafka dispõe tão soberanamente como só o soltava-a, pois era ainda um filhote um tanto temeroso.
• sabem fazer os chineses; é a façanha de metamorfosear- Inicialmente a cena divertia-me, e, me agradava a exci-
se em algo pequeno. Um.a vez que ele detestava avio- tação da toupeira, que, totalmente desesperada, procu-
lência, mas tampouco cria ter a força necessária para rava em vão um buraco no solo duro da rua. Porém, de
revidar, aumentava a distância que o separava do mais repente, quando o cão mais uma vez a golpeava com a
forte, reduzindo seu tamanho em comparação com pata estendida, deu um grito. Ks, Kss! - assim clama-
este. Tal encolhimento proporcionava-lhe duas vanta- va. E então tive a impressão ... Não, não tive nenhuma
gens: ele escapava da ameaça, por tornar-se demasiado impressão. Foi apenas uma ilusão, pois naquele dia an-
pequeno para ela, e livrava a si próprio de todas as re- dava com a cabeça tão pesadamente abaixada que à
prováveis armas da violência; pois, os bichinhos nos noite notei com espanto que meu queixo se encravara
quais preferia transformar-se eram sempre inofensivos. no peito."
Convém comentar isso, constatando que o cão
Uma das primeiras cartas a Brod lanç;:i muita luz que caçava a toupeira pertencia a Kafka, e este era seu
sobre esse talento singular. Foi escrita no ano de 1904, dono. Para a toupeira, que, com medo de morrer, pro-
quando Kafka tinha 21 anos. Chamo-a a "carta datou- curava um buraco na dura rua, ele mesmo não existia.
peira" e cito dela as passagens que considero indispen- O bichinho só temia o cão, e seus sentidos não aten-
sáveis à compreensão das metamorfoses de Kafka em diam senão a seu perseguidor. Kafka, porém, que do-
algo diminuto. Mas antes, gostaria de reproduzir uma minava toda a cena, graças à sua posição ereta, a seu
frase que já se encontra numa carta dirigida no ano pre- tamanho e à posse do cão, que nunca poderia ameaçá-
cedente a Oskar Pollack, amigo do jovem Kafka: "Que lo, ri-se inicialmente dos movimentos desesperados,
se honre à toupeira e a seu modo de viver, mas não a inúteis da toupeira. Esta, por sua vez, não imagina que
convertamos em nossa santa!" Isso ainda não é muito, talvez se possa dirigir a ele, pedindo que a socorra. Não
mas, seja como for, a toupeira aparece ali pela primeira aprendeu a rezar, e tudo o que é capaz de proferir são
vez. Já se acentua com certa ênfase "seu modo de vi- seus gritinhos. São a única coisa suscetível de comover
ver", e, quanto à advertência de que não convém a divindade, pois nesse caso, Kafka é o deus, o supre-
convertê-la numa santa, não podemos deixar de perce- mo, a culminância do poder, e, dessa vez, o próprio
ber nela o prenúncio de sua futura importância. Mas na deus até está presente. Ks, Kss! - assim clama a tou-
referida carta a Max Brod lemos o seguinte: peira, e, com tal clamor, o espectador converte-se nela.
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Sem ter de temer o cão, sente o que significa ser tou-
na Metamorjôse, ou uma espécie de toupeira, na T~ca. A
peira.
transformação em algo minúsculo torna-se mais pa-
O grito inopinado não é o único veículo a condu- tente, mais plausível, mais verossímil através do acer-
zir à metamorfose em algo pequeno. Outro fator são
camento do animal e do aumento de seu tamanho.
"as pobres patinhas rubras", estendidas para cima,
O interesse por bichos muito pequenos, especial-
quais mãos que supliquem compadecimento. No
mente por insetos, e que possa ser co~parado ~om o de
fragmento Recordação da ferrovia de Kalda, escrito em
Kafka, depara-se-nos unicamente na vida e na ht~ratura
agosto de 1914, encontra-se semelhante tentativa de dos chineses. Entre os animais prediletos dos chmeses,
aproximar-se de uma ratazana agonizante através da
figuravam, já em épocas muito remotas'. os g~ilos. No
"mãozinha" dela:
período Sung surgiu o costume de cnar gnlos,_ que
"Para os ratos que de vez em quando atacavam eram amestrados e incitados para lutarem entre s1. As
meus alimentos, bastava meu comprido facão ... Nos
P,essoas carregavam-nos sobre o peito, em noze~ esv~-
primeiros tempos, quando eu ainda observava tudo
;iadas, providas de toda a mobília de que ~ ammalzi-
com grande curiosidade, certa feita espetei um desses
nho pudesse necessitar. O dono de um, gr~lo famoso
animais e o mantive diante de mim, junto à parede, à
oferecia aos mosquitos sangue de seu propno braço, e
altura de meus olhos. Somente enxergamos animais
depois de estes terem ch~pado ~ sa~iedade,. recort~va-
pequenos com exatidão, quando se acham à altura dos
os a fim de servir ao gnlo o picadmho assim obtido.
olhos. Ao inclinarmo-nos sobre eles, até perto do chão,
M~diante pincéis especiais, conseguia-se instigá-:lo à
obtemos, a seu respeito, uma visão errada, incompleta.
agressão. Em seguida, os espectadores, agachados ou
O que mais chamava atenção nesses ratos eram as gar-
de bruços, contemplavam o combate dos g:il?~· Ao
ras grandes, um tanto ocas, porém pontiagudas nas ex- bichinho que se distinguisse por sua extraordmana va-
tremidades e por isso muito apropriadas para cavar.
lentia, conferia-se o nome honorífico de algum estrate-
No derradeiro embate, durante o qual a ratazana ficava
go da história chinesa. Po~s, julgava-se que ~ alma
suspensa à minha frente, junto à parede, o animal esti- desse general se tivesse radicado no ~orpo do mseto.
cava as garras rigidamente, como que contrariando sua Graças ao Budismo, a fé na metempsicose era, para a
própria natureza. Elas se pareciam com uma mãozinha maioria das pessoas algo completamente natur~l, de
estendida em direção da gente."
modo que uma convicção de tal gênero não parecia ab-
Para vermos bichinhos diminutos com exatidão, é surda. Em todos os tecantos do país, ia-se à procura de
preciso que se encontrem à altura de nossos olhos. Isso grilos adequados às exigências da corte imperial, e por
equivale ao ato de alçá-los a um nível igual ao nosso.
exemplares promissores chegava-se a pagar ~reç~s
Inclinando-nos rumo ao chão, numa forma de rebaixa- muito elevados. Contam que na época em que o impe-
mento, obtemos, com relação a eles, uma visão errada, rio dos Sung foi invadido pelos mongóis, o chefe su-
imcompleta. O processo de levantar animais menores premo dos exércitos chineses ficava deitado de bruços
até à altura dos olhos nos faz pensar no pendor de no chão, a olhar um combate de grilos, quando rece~eu
Kafka para engrandecer criaturas desse tipo: o besouro, a notícia do cerco da capital pelo inimigo e do pengo
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1mmente que a ameaçava. Mas ele não era capaz de mesmo Kafka*. Numa anotação que poderia ser tirada
afastar-se dos grilos, sem antes saber qual seria o ven- de um texto taoísta, resume ele o que lhe significa "o
cedor. Caiu a capital, e assim terminou o império dos pequeno": "Duas possibilidades: tornar-se infinita-
Sung. mente pequeno ou sê-lo. A segunda é a perfeição, ou
seja a inatividade; a primeira, o início, ou seja ação."
Já muito antes, no período Tang, grilos eram cria-
dos em pequenas gaiolas, por causa do cricri. Mas,
quer o dono os levantasse alto, a fim de observá-los
melhor de perto, enquanto cantavam, quer os apertasse
• sempre ao peito, devido a seu elevado valor e os reti- Sei muito bem que com isso frisei apenas uma pe-
rasse somente para limpar-lhes cuidadosamente a habi- quena parte daquilo que se poderia dizer sobre o poder
tação, sempre eram alçados à altura dos olhos, assim e a metamorfose na obra de Kafka. Um esforço que
como recomendava Kafka. Eram considerados iguais visasse um trabalho mais completo e mais extenso so-
ao observador, e, quando deviam lutar entre si este mente seria viável no projeto de um livro mais amplo,
. ' ao passo que aqui me cabe terminar o relato da história
acocorava-se ou deitava-se no solo ao lado deles. Mas
as almas dos grilos eram as de célebres cabos-de- da sua ligação com Felice, história essa da qual ainda
gu~rr~, e o desenlace de seus combates podia parecer cumpre narrar três anos.
n~a~s importante do que o destino de um grande im- De todos os áridos anos dessa relação, o de 1915
peno. foi o mais estéril. Decorreu sob o signo de Bodenbach.
O que Kafka certa vez formulara explici.tamente, o que
Entre os chineses, estão muito difundidas histórias exprimira por escrito, continuava a atuar nele por mui-
protagonizadas por bichos pequenos. Sobremodo fre- to tempo. Inicialmente, em conseqüência do embate,
qüentes são aquelas nas quais grilos, formigas ou abe- porém com intervalos mais espacejados, Feiice recebeu
lhas acolhem um homem em seu meio e o tratam à ainda diversas cartas. Nelas se encontravam lamenta-
maneira de seres humanos. Não se pode deduzir das ções relativas à estagnação da obra literária - que real-
cartas de Kafka a Felice se ele leu ou não os Contos mente estava parada - e ao barulho nas novas mora-
chineses de fantasmas e amores, de Martin Buber, um li- dias que Kafka passara a habitar. Sobre isso, escrevia
v_ro que _contém vários exemplos desse tipo de histó-
nas. (Sep como for, ele cita-o elogiosamente e com
desprazer - é a época de seus ciúmes de outros escri- * Em apoio a esta opinião, gostaria de mencionar aqui que o melhor conhecedor
moderno das literaturas orientais, Arthur Waley, concorda com ela e a comen-
t?r~s - constata que Felice já adquiriu a obra por ini- tou detalhadamente em numerosos colóquios. Talvez por isso seja Kafka o único
c1at1va _própria. Em todo o caso, porém, há algumas prosador alemão a quem lia passionalmente, e cuja obra lhe era tão familiar
como a de Pó Chü-1 ou o romance budista do Macaco, traduzidos por ele. Nos
na_rrat1vas dele que o situam d entro da literatura referidos colóquios travados com Waley. muitas vezes se falou do taoísmo 11atu-
chmesa. Desde o século XVIII, a européia amiudada- ral de Kafka, como também, para que não faltasse nenhum aspecto chinês, do
colorido especial de seu ritualismo. P ara Waley, isso era documentado de modo
mente se apossou de temas chineses. Mas o único escri- concludente pelos exemplos da Rewsa e da Comtmçiio da .l\111rallia Chinesa. Mas,
tor chinês por índole que o Ocidente pode exibir é no mesmo contexto, foram ainda mencionados outros contos. (N. do Autor)

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n:iais detalhadamente, e essas são as passagens mais fas- visto - conta-lhe já de Praga, após o regresso - , co-
cinantes. Torna-se-lhe cada vez mais difícil conformar- mo durante o longo trajeto evocava no ramo de lilases
s: com sua vida_ de funcionário. Entre as acusações que recordações dela e de seu quarto. Em nenhuma outra
nao poupa a Feltce, a mais grave se refere à sua vontade época, Kafka carregara consigo numa viagem o~jetos
de morar com ele em Praga. Não suporta essa cidade desse gênero. Não apreciava Dores. E logo no dia s~-
e, para sair dali, até mesmo ventila a idéia de alistar-se'. guinte, escreve que receia ter-se demorado ~m dema~ia
Quanto à guerra, o que mais o faz sofrer é o fato de não ali. Afirma que dois dias talvez tenham sido demais,
participar dela. Mas não se poderá excluir a possibili- visto que, depois de um dia, ainda seria fácil separar-se,
dade de que o convoquem. Em breve, chegaria a sua ao passo que dois já criavam laços que era doloroso
vez de ser ~ecrutado. Pede então a Felice que rogue a cortar.
que o considerem apto, assim como deseja. Mas, não Poucas semanas após, emjunho, realizou-se outro
obstante suas repetidas tentativas, isso não se realiza, e encontro, em Karlsbad. Dessa vez foi mais breve, e tu-
Kafka permanece no seu escritório de Praga, "desola- do saiu mal. Não se conhecem pormenores, mas numa
do, que nem uma ratazana eajaulada". carta posterior fala-se de Karlsbad e da "viagem rea~-
Felice envia-lhe Salammbô, com uma dedicatória mente horrorosa a Aussig". Tão pouco tempo depois
muito triste. A leitura dela deixa-o infeliz, e excepcio- da amena jornada de Pentecostes, a decepção deve ter
nalmente Kafka empenha-se em escrever uma carta re- sido especialmente. grave, pois Karlsbad passou a ser
confortante: "Nada terminou, não há nem escuridão incluída na lista das experiências mais penosas, logo ao
nem frio. Olha, Felice, somente ocorreu que minhas lado do Tiergarten e do Askanischer Hqf.
ca~tas se tenham tornado diferentes e mais raras. Qual Doravante, Kafka quase que cessa de escrever a
foi o resultado das cartas anteriores, mais freqüentes e Felice ou apenas rechaça as queixas dela, pro~ocada~
distintas? Tu o conheces. Devemos começar de
novo ... "
por seu silêncio. "Por que não escreves? -= diz de ~i
para si. - Por que atormentas F.? Seus cartoes p_ostais
Talvez fosse dita dedicatória o que o induzia en- evidenciam que o fazes. Prometes escrever e nao es-
contrar-se por ocasião do Pentecostes com Felice e creves. Telegrafas: 'Segue carta', mas, na verda~e, ~ão
Grete Bloch na Suíça Boêmia. Para ambos, este ia ser o segue, senão será enviada somente dentro de d~is dias.
único momento luminoso do ano. A presença de Grete Mocinhas talvez possam permitir-se tal procedimento,
Bloch talvez tenha contribuído para o bem-sucedido uma única vez e excepcionalmente ... " A inversão é
decurso desses dois dias. É provável que a essa altura se manifesta: ele inflige a Feiice exatamente o que ela,
haja dissipado em seu espírito algo do petrificante hor- anos atrás, lhe infligiu, e a referência a mocinhas que
ror, causado pelo "tribunal" que as duas mulheres ti- possivelmente tenham o direito de agir assim não com-
nham organizado contra ele. Felicc estava com dor de prova em absoluto que ele não se haja dado conta desse
dentes e pe~~itiu a Kafka que a acompanhasse a procu- fato.
ra de aspirina. Durante o passeio, ele podia De agosto a dezembro, Feiice não recebe sinais de
"demonstrar-lhe sua afeição cara a cara". Deveria tê-lo vida dele, e, quando mais tarde Kafka torna a
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,..

es~r_ever-lhe ocasionalmente, quase sempre o faz para um chinês e tivesse que regressar imediatamente para
reJeitar propostas de um novo encontro. "Seria bonito casa (ora, no fundo sou chinês e regresso para casa),
se estivéssemos novamente reunidos, mas acho melhor seria preciso que desse logo um jeito para voltar a este
evitá-lo. Tratar-se-ia de algo provisório, e coisas pro- lugar. Certamente tu gostarias disso também!"
visórias já nos fizeram sofrer bastante." - "Somando Citei quase todo o texto desse postal, porque nele
todas essas considerações, é melhor que não venhas." encontram reunidos num espaço resumido tantas cara-
- "Enquanto eu não estiver livre, não quero ser visto terísticas e predileções dele: o amor aos bosques, o pen-
nem quero ver a ti." - "Acautelo-te e também a mim dor por silêncio e solidão, o problema da magreza e o
contra esse encontro. Pensa bem nos anteriores. Então quase supersticioso respeito que tributa a pessoas gor-
deixarás de desejar que se repitam ... Por isso, nenhum das. Silêncio, solidão, o tempo nublado, ventoso,• a re-
encontro." ceptividade do que vive ou não vive - tudo faz pensar
A última dessas citações já data de abril de 1916, e no taoísmo e numa paisagem chinesa, e por isso topa-
no contexto da carta, da qual foi extraída, soa ainda mos desta vez com a única paisagem na qual Kafka diz
muito mais dura. Excetuando-se o magro -interlúdio do com respeito a si mesmo: "No fundo sou chinês ... " A
Pentecostes de 1915, a resistência de Kafka intensifi- frase final é a primeira tentativa autêntica de acercar-se
cou-se no decorrer de um ano e meio, e não há indícios de Felice, depois de muitos anos, e dela se originam os
de que isso se possa modificar. Mas, justamente nesse dias ditosos de Marienbad.
mesmo abril, aparece pela primeira vez num postal a As negociações - não podemos usar outro termo
palavra "Marienbad", que a partir de então ressurge - acerca das férias em comum prolongam.,.se ainda por
regularmente. Kafka planeja uma viagem de férias. um mês inteiro. Animam a correspondência de forma
Tenciona passar três semanas em Marienbad e lá levar assombrosa. Na intenção de amoldar-se ao gosto dele,
uma vida tranqüila. Os postais sucedem-se então com Felice até propõe um-sanatório. Talvez a recordação
maior freqüência. Em meados de maio, ele está real- daquele sanatório de Riva, onde, três anos atrás, o
mente lá, a serviço, e dali escreve logo uma carta deta- contato com a "suíça" se mostrara benéfico, haja exer-
lhada e um cartão postal a Felice: cido urna vaga influência sobre a sugestão. Mas Kafka
" ... Marienbad é incrivelmente linda. Havia mui- não gosta da idéia. Assevera que uma casa de saúde
to, eu deveria ter obedecido a meu instinto que me di- quase equivale a "um novo escritório a serviço do cor-
zia que os mais gordos são também os mais inteli- po". Prefere um hotel. De 3 a 13 de julho, Kafka e
gentes. Pois, para emagrecer não é necessário reveren- Feiice passam juntos dez dias em Marienbad.
ciar fontes de águas medicinais, mas vagar através de Ele deixou na mais perfeita ordem a repartição em
bosques tão formosos só se pode aqui. Verdade é que Praga. Sentia-se feliz de poder abandoná-la. Afirma ter
atualmente a beleza fica aumentada pelo silêncio e a so- estado "disposto a lavar, ajoelhado, um a um os de-
lidão, como também pela receptividade de tudo quanto graus da escada, desde o sótão até ao porão, a fim de
vive ou não vive, ao passo que o tempo nublado, ven- demonstrar-lhes desse modo a gratidão de poder sair."
toso quase que não a prejudica. Acho que se eu fosse Em Marienbad, Felice aguardou-o na gare. Kafka pas-
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,.

sou a primeira/ noite nu?1 quar_to feio, que dava para tas. Quando, no grande salão, ela ia aó meu encontro, a
um gatio. Porem, n~ dia segumte, transferiu-se para fim de receber o beijo das esponsais, percorreu-me um
um quarto extraordmariamente belo" no hotel "Bal- calafrio. Cada passo da 'expedição-noivado', em
moral". _Lá, Felice e ele ocupavam peças contíguas, e companhia de meus pais, era para mim um suplício.
ambos tinham_ a ~h~ve da porta de comunicação. A Nada me causava tanto medo como a idéia de estar a
en~aque~a e a msoma eram terríveis. Durante os pri- sós com F. antes das bodas. Agora, a coisa é diferente,
meiros dias e sobretudo de noite, Kafka sentia-se atri- e está bem. Nosso acordo, em poucas palavras: casa-
bulado e desesperado. Registrou no diário o seu péssi- mento depois do fim da guerra; alugar duas ou três pe-
mo estad_o. No dia 8, com tempo horrível, fez em ças num subúrbio de Berlim; deixar nas mãos ele cada
com.panhia de Felice uma excursão a Tepl. Mas, em um de nós a solução de seus próprios problemas econô-
s_egm~a, houve _"uma tarde maravilhosamente leve e micos. F. continuará trabalhando como antes, e eu,
lmda , e com_ isso realizou-se uma alteração total. bem eu ainda não sei ... Contudo, há atualmente nessa
Acont~ceram cu~co dias felizes com ela; como podería- situ;ção tranqüilidade, segurança e por isso possibili-
mos dizer: um dia por cada qual dos cinco anos de sua dade de viver. .. "
relação. No diário, K~fka anotou: "Nunca antes, a não " ... Desde aquela manhã em Tepl, decorreram
ser em Zuckmantel, tivera eu contato íntimo com uma dias tão lindos, tão leves como jamais teria imaginado
m~lh~r. E depois ainda com a moça suíça em Riva. A que me pudessem acontecer. Naturalmente houve em
pnme1ra era mulher, e eu ignorava tudo; a segunda não meio a eles algumas sombras, porém se impuseram a
passava de uma criança, e eu andava completamente beleza e a despreocupação ... "
confuso. Com F., só tivera intimidade através de car- No último dia das férias de Felice, Kâfka acompa-
t~s; pessoalmente, porém, há dois dias apenas. Aquilo nhara-a a Franzensbad, a fim de visitar ali sua mãe e
amda não fi~a inteiran:iente claro. Restam dúvidas. uma de suas irmãs. À noite, quando regressou a Ma-
Mas, como e bela a mirada de seus olhos serenados rienbad, onde tencionava passar mais dez dias, seu
essa eclosão de profundezas femininas." ' quarto fora alugado a outros hóspedes, e ele teve que
Na véspera da partida de Felice, Kafka começou a transferir-se para o muito mais ruidoso de Felice. As-
es~rever uma longa carta a Max Brod. Somente a ter- sim se explica que os primeiros postais escritos depois
mmou mais tarde, quando ela já se fora: da partida dela estejam cheios de lamentações sobre
" . . . M as, nesse momento, vi a confiança no olhar barulho, cefaléia e falta de sono. Mas, depois de cinco
de_ uma mulher e não pude permanecer insensível. .. outros dias, acostumara-se ao quarto antes habitado
Nao me cabe o direito de resistir a isso, tanto menos por ela, e então, com o atraso próprio dele, expressam-
porque, 1:1esmo que não ocorresse o que ocorre, eu 0 se nos cartões certa ternura e uma sensação de felici-
provocana voluntariamente, nem que fosse apenas pa- dade, que comovem o coração do leitor, já por causa de
ra re~eber outra vez aquela mirada. Ora, eu não a co- sua raridade. Devemos considerar uma verdadeira
~hecia: Entre outros escrúpulos refreáva-me naquela sorte o fato de Kafka ter permanecido nos lugares por
epoca Justamente o temor à moça que me enviava car- ambos freqüentados, ainda depois da partida de Feiice.

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Ele percorria os mesmos caminhos nos bosques de Ma- e reconciliaram-se entre si também através de um. acor-
rienba_d. Comia nos mesmos restaurantes os pratos do em matéria de comida. A rotina da vida na estação
prescritos para que aumentasse de peso. De noite, esta- de águas acalma Kafka e livra-o do medo a Felice. Após
va sentado na sacada que fora dela, à mesma mesa, e a partida dela, prossegue no mesmo tipo de regime,
escrevia-lhe à luz da lâmpada familiar a ambos. nos mesmos locais, e comunica isso a ela como uma
Tudo isso se lê nos postais. Dia por dia, Kafka espécie de declaração de amor.
despachava um, e algumas vezes até dois. O primeiro Mas também lhe presta homenagem de uma ma-
começa ainda com as palavras: "Minha pobre queri- neira menos íntima, mais elevada: "Imagina que nós
da .... ", pois Kafka continua sentindo-se mal. Sempre nem chegamos a conhecer o hóspede mais distinto de
que a chama "pobre", refere-se a si mesmo: o pobre é Marienbad, quer dizer aquele ao qual se tributa a maior
ele. "Escrevo com tua caneta, tua tinta; durmo na tua confiança humana: trata-se do rabino de Belz, atual-
cama; estou sentado na tua sacada ... Iss~ não faria mal mente talvez o expoente principal do Chassidismo. Es-
mas, através da porta simples, que tenho agora, ouço o' tá aqui há três semanas. Ontem juntei-me pela primeira
barulho do corredor e os ruídos dos casais vizinhos à vez às cerca de dez pessoas de seu séqüito, por ocasião
direit~ e à esquerda." Por enquanto, o barulho pros;e- de seu passeio vespertino ... E como vais tu, minha
gue pior do que todo o resto, pois, do contrário Kafka hóspede suprema de Marienbad? Ainda não tenho notí-
teria equivocadamente afirmado que "isso n;io faria cias e me contento com aquilo que me contam as velhas
m~l", logo após a descrição precedente. O postal ter- veredas, por exemplo hoje a alameda "Porfia e Se-
mma co1:1 a frase: "Agora vou ao Dianahof, para pen- gred o " .
sar em ti, debruçado sobre o prato de manteiga." Certa feita, quando havia dois dias hão tinham
. ~u1:1 postal posterior, comunica-lhe que, apesar chegado cartas dela, lemos: "A vida em comum mi-
da msoma e das dores de cabeça, está engordando e lhe mou-nos tanto: dois passos à esquerda bastavam para
envia "o cardápio de ontem". Lá se encontram com que a gente tivesse notícias." No segundo cartão do
indicação exata do horário, as coisas que esperaríamos mesmo dia, lê-se: "Querida, será que novamente exa-
:ê-lo consumir, tais como leite, m el, manteiga, cere- gero como outrora ao escrever-te demais? A título de
jas, etc., porém às 12 horas lemos, quase incrédulos, desculpa: estou sentado na tua sacada, a teu lado da me-
"carne cozida, espinafre, bata tas". sa, como se ambos os lados dela fossem pratos de ba-
Isso significa que Kafka realmente abriu mão de lança. O equilíbrio existente nas nossas boas noitadas
parte da resistência contra ela: o menu é importante parece estragado, e eu, sozinho num dos pratos, estou
nesse amor. Ele fica "gordo". Também come carne. na iminência de ir ao fundo. Ao fundo, porque estás
Visto que, de resto, alimenta-se com todo gênero de distante. Por isso te escrevo ... A esta hora quase que
coisas que já aprovava anteriormente, consiste o com- reina aqui aquele silêncio que almejo. A lamparina ilu-
promisso entre ambos na quantidade dos alimentos in- mina a mesinha da sacada. Todas as outras sacadas es-
geridos e na "carne cozida". Naqueles dias da estada tão vazias devido ao frio. Só se ouve, vindo da Kaiser-
comum em M arienbad, aproximaram-se um do outro strasse, um monótono ruído, que não me incomoda."

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Nesse instante, Kafka estava livre de angústia. En- Kafka, que falara sobre isso sem expectativa nem inten-
contrava-se sentado ao lado da mesa antes ocupado por ção, alegrou-se ao perceber que ela "compreendia tão
ela, como se fosse Felice. Mas o prato baixava, por cau- bem e tão desinibida mente a idéia do lar" . A partir
sa da distância dela, e por isso Jhe escrevia. Quase que desse momento, começou-a nutrir esperanças com res-
reinava o almejado silêncio. A lamparina iluminava tão peito a ela, e mediante a tenacidade, que no seu espír~to
somente a sua sacada, e o que o alimentava já não era substituía a força, exortou-a em todas as cartas envia-
indiferença. Todas as outras sacadas estavam vazias das a Berlim a que transformasse em realidade o proj e-
em virtude do frio. O monótono murmúrio, proce~ to de contatar o Lar Popular. Durante três ou quatro
dente da rua, não o incomodava. m eses, até princípios de novembro, escrevia-lhe quase
Aquela frase da época em que ainda não conhecia diariamente, e o tema mais importante, embora não o
realmente a Felice, e que rezava que o medo, ao lado da único, das cartas era o Lar Popular.
indiferença, seria a sensação fundamental que lhe inspi- Hesitantemente, Felice tentou informar-se. Temia
ravam os seres humanos, já não tinha a mesma força. que talvez somente estudantes universitários fossem
Ao desfrutar a liberdade proporcionada pela lamparina, admitidos ao trabalho na instituição. Kafka, na sua res-
Kafka também sentia amor: "Alguém deve velar, di- posta, estranha totalmente que nela se houvesse forma-
zem. Alguém tem que estar presente." do tal opinião. "Claro que foram universitários e uni-
versitárias, por serem na média as pessoas mais altruís-
tas , mais decididas, m.ais inquietas, mais exigentes,
mais esforçadas, mais independentes e mais perspi-
Qualquer vida que se conhece muito bem é ridícu- cazes, os que deram início a esse movimento e são ago-
la. Porém, quando a conhecemos ainda melhor, torna- ra seus líderes, mas qualquer outro ser vivo também
se séria e terrível. Ao regressar a Praga, Kafka iniciou pode tomar parte nele." (Dificilmente encontrare~os
um empreendimento suscetível de ser estudado a partir nos escritos de Kafka mais uma vez tantos superlativos
de ambos os seus aspectos. A imagem que se fizera da juntos.) Colocar-se à disposição da obra será infinita-
Felice de antes de Marienbad lhe fora insuportável, e mente mais importante do que ir ao teatro, ler Klabund
ele se dedicou então à hercúlea tarefa de alterá-la. Já ou qualquer outra coisa. Afirma que no propósito ha-
havia muito tempo, desde o encontro em Bodenbach, via também Um quê de egoísmo, pois não se trata de
tivera dela uma visão clara. Sem nenhuma considera- auxiliar e sim de buscar auxílio, já que desse trabalho se
ção, explicara-lhe o que o desgostava nela. Mas apenas podia extrair mais m el do que de t?das as flores , d_os
o fizera esporadicamente e sem esperança, porquanto bosques de Marienbad. Aguarda ansiosamente noticias
nada existia que pudesse ser sugerido para modificá-la. sobre a participação de Felice. Adverte-a que não tenha
Certo dia, em Marienbad, haviam conversado sobre o receios quanto ao Sionismo, do qual ela não tinha sufi-
Lar Popular Judaico de Berlim, instituição que cuidava cientes con hecimentos. Assevera que o Lar Popular po-
de refugiados e seus filhos. Espontaneamente, Felice dia desencadear energias e produzir outros efeitos que a
manifestara o desejo de cooperar ali nas horas vagas. ele, Kafka interessam muito mais.

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Ainda em Marienbad, Kafka lera um livro sobre a cansa de ouvir detalhes; incita-a; critica-a; participa da
vida da condessa Zinzendorf, cujo espírito e cuja "obra elaboração de uma conferência que ela deverá fazer no
quase super-humana" na administração da igreja da ir- Lar Popular, e, com esse fim, lê e estuda a Doutrina da
mandade de H errnhut ele admirava. Refere-se freqüen- Juventude, de Friedrich Wilhelm Forster. Escolhe leitu-
temente a ela, e em todos os conselhos que daí por ras para as crianças da instituição; até mesmo lhe envia
diante dá a Felice, essa personalidade se lhe afigura um de Praga edições juvenis de certas obras que julga espe-
modelo, se bem que, na verdade, o julgue totalmente cialmente adequadas; com exagera~a meticulosidade
inalcançável. "Quando, depois das bodas, aos 22 anos, volta sem cessar a esse assunto; pede fotografias de Fe-
a condessa entrava em sua nova moradia em Dresden, Jice rodeada pelas crianças, que deseja conhecer de
que a avó de Zinzendorf mobiliara para os recém- longe, através da observação atenta. Elogia fervorosa-
casados de um modo muito confortávd em compara- mente a Feiice, sempre que está contente com seu com-
ção com o comum daquela época, prorrompeu em portamento, e esses encômios soam tão intensos que
pranto." Em seguida, Kafka cita uma frase piedosa da ela tem de considerá-los manifestações de amor. Porém
moça quanto à sua inocência com relação a tais extrava- estes só aparecem quando Feiice executa as indicações
gâncias e reproduz sua súplica à graça divina para que dele. Aos poucos, o que Kafka espera dela converte-se
esta dê segurança à sua alma e mantenha seus olhos realmente numa espécie de subordinação e obediência.
afastados de todas as tolices mundanas. Acrescenta a A retificação da imagem de Bélice, a modificação de seu
isso: "A gravar numa placa, que deverá ser afixada aci- caráter, sem as quais ele não pode imaginar uma vida
ma da entrada da loja de móveis." em comum com ela, transformam-se suçessivamente
Com o tempo, essa influência degenera numa ge- no ato de controlá-la.
nuína campanha, e se torna evidente o que ele na reali- Desse modo, Kafka toma parte nas atividades de
dade visa alcançar. Sua intenção é "desaburguesar" Fe- Felice, para as quais - segundo confessa numa carta -
lice, tirando-lhe da cabeça os móveis, que para ele re- a ele mesmo faltaria a necessária dedicação. O que ela
presentam o que há de mais terrível e odioso no matri- faz, realiza-o em seu lugar. Ele, por sua vez, precisa
mônio burguês. Ela deverá aprender quão pouco sig- cada vez mais da solidão. Em passeios dominicais bus-
nificam o escritório e a família, formas de vida prove- .ca-a nos arredores de Praga, i:nicialmente em compa-
nientes da avidez, e Kafka contrapõe a elas a humilde nhia da irmã Ottla, a quem admira como a uma noiva.
atividade de cooperar num asilo de crianças refugiadas. Um de seus colegas da empresa na qual trabalha, pensa
Mas o modo como insiste revela um grau de despotis- que Ottla fosse realmente sua noiva, e Kafka não vacila
mo espiritual que jamais esperaríamos atribuir a ele. em contar isso a Feiice.
Kafka exige relatórios sobre cada passo que a aptoxime Pa.ra as suas horas vagas, ele acaba de inventar um
do Lar Popular e depois sobre todos os pormenores do novo prazer, a saber, deitar-se na relva. "Faz pouco,
trabalho que Felice lá executa, após ter sido admitida. estava eu estendido ... quase que na valeta, (pois, esse
Entre as cartas, há uma na qual faz quase vinte pergun- ano, o capim é muito alto e denso também ali). Ocor-
tas. Sua insaciabilidade intensifica-se, e ele nunca se reu então que um cavalheiro bastante distinto, com o
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qual preciso estabelecer às vezes contatos oficiais, pas-
sasse pertinho numa carruagem puxada por uma pare- ainda não se sente capadtado para nenhuma obra nova,
lha, indo a uma festa ainda mais distinta. E eu me espi- as not,ícias referem-se ao destino de contos anteriores, a
chava, saboreando as alegrias que me proporciona o publicações e também a críticas. Já em setembro,
fato de ser um degradado." Num passeio que dá com comunica-lhe que recebeu um convite para Munich,
Ottla, perto de Praga, descobre dois sítios maravi- onde deverá ler um de seus escritos. Gosta de ler suas
lhosos, ambos "silenciosos como o Paraíso após a ex- obras em público e está com vontade de empreender a
pulsão das criaturas humanas." Mais tarde, caminha viagem. Quer qt:ie Felice .esteja presente e rejeita suas
também sem mais ninguém. "Será que conheces as de- propostas de encontrar-se com ela em Berlim ou Pra-
lícias de estar sozinho, de passear sozinho, de ficar esti- ga. Quanto a Berlim atemorizam-no as recordações
rado sozinho sob o sol? ... Já deste longas caminhadas dos esposais e do "tribunal", que, na verdade, só raras
sozinha? Ser capaz disso requer muita miséria antiga, vezes evoca nas cartas: dois anos separam-no daqueles
mas também muita felicidade. Sei que na infância es- dias. Mas, serripre que a menção de algum sítio berli-
tive freqüentemente sozinho, mas aquilo era sobretudo nense ressuscita as reminiscências, não hesita em fazê-la
conseqüência de uma coação e não de álguma liberdade notar quão vivas continuam as dores originárias dessa
venturosa,. ao passo que agora corro rumo à solidão época. Com relação a Praga, assusta-o a idéia de sua
como a água corre em direção ao mar. " E em outra família: não se poderia evitar que Feiice se sentasse à
ocasião escreve: "Dei um longo passeio, aproximada.:. mesa dos pais, e sua inclusão intensificaria a hegemonia
mente cinco horas, sozinho e não bastante sozinho, por do clã, aquela supremacia contra a qual ele luta inces-
vales desertos, porém não bastante desertos." santemente com suas débeis forças. Ao. manter Felice
Enquanto, dessa maneira, preparam-se os pressu- distante de Praga, age como um político desejoso de
postos íntimos de uma vida campestre, tal como, um impedir a aliança entre doís inimigos potenciais. Sendo
ano após, levará em Zürau, junto com Ottla, tenta assim, apega-se tenazmente ao projeto de um encontro
Kafka amarrar Fel.ice cada vez mais fortemente à comu- em Munich. Durante dois meses, a correspondência
preocupa-se com ele. Kafka sabe que uma leitura públi-
nidade do Lar Pop.ular Judaico de Berlim. Durante a
ca representaria para si uma fonte de energias, e tam-
semana, prossegue dedicando-se a seu trabalho de fun-
bém Felice, solícita e obediente como se mostra a essa
cionário público, que o enche de crescente asco, a tal
ponto que ainda ventila a idéia de refugiar-se no front, altura ' dá-lhe alento. Ambas essas fontes de conforto
a fim de fugir dele; pois, se fosse soldado, pelo menos deverão unir-se em Munich, incrementando-se n!ntua-
não haveria necessidade de poupar suas forças. Entre- mente. Mas isso não altera de modo algum seu jeito
tanto, Felice justifica-o m ediante as suas atividades no particular de tomar decisões. Mais uma vez assisjmos
Lar Popular. àquele titubeio que já conhecemos: a viagem é p:ová-
vel, mas ainda não certa; existem ameaças externa:; que
Mas, nas cartas redigidas nessa mesma época,
possam fazer com que fracasse. Depois de dois meses
Kafka menciona igualmente muitas vezes a sua produ-
de deliberações, lemos, numa carta enviada cinco dias
ção literária. Visto que se trata de um período no qual
antes: "Com cada dia que passa, a viagem torna-se
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mais provável. Em todo caso, te mandarei quarta ou se a Kafka, acabou rebelando-se. É provável que nas
quinta-feira um telegrama, ou com as belas palavras: suas repentinas explosões não tenha primado pela suti-
'Vamos lá!' ou com a triste palavra: 'Não!' E na sexta- leza. Acusou-o de egoísmo; reproche já muito antigo.
feira, Kafka põe-se a caminho. Kafka não o podia aceitar sem mais nada, porque o fe-
Uma peculiaridade imutável da índole de Kafka ria gravemente. Pois, como ele mesmo escreveu algum
manifesta-se no fato de ele jamais tirar uma lição de tempo após, a repreensão era justa. Mas, seu maior,
seus erros. A multiplicação de malogros e mais malo- seu máximo egoísmo provinha da teimosia, e esta so-
gros nunca tem por resultado qualquer êxito. As difi- mente permitia censuras que ele fazia a si. "Meu senti-
culdades permanecem sempre as mesmas, como se se mento de culpa é sempre suficientemente forte; não
tratasse de demonstrar a invencibilidade de sua nature- precisa ser alimentado de fora, e meu organismo não
za. Em inúmeros cálculos e reflexões, sistematicamente dispõe de bastante força para poder engolir amiudada-
se omite aquilo que poderia levar a um fim favorável. mente esse tipo de nutrição."
A liberdade de fracassar, como uma espécie de lei su- Com isso chegou ao fim a segunda florescência de
prema, fica sempre ressalvada. A ela cabe garantir em suas relações. O entendimento sumamente estreito du-
todas as encruzilhadas a possibilidade de escapar. Gos- rara quatro meses. Esse lapso de tempo pode muito
taríamos de qualificar isso de liberdade dos fracos, que bem ser comparado com aquela primeira fase de setem-
procuram sua salvação através de derrotas. Na proibi- bro a dezembro de 1912. Ambos tinham em comum a
ção de vitórias revelam-se a genuína índole de Kafka, esperança e o vigor que Kafka extraía à produção literá-
tanto como sua posição particular em face do poder. ria, ao passo que no segundo se visava a modificação
Todos os cálculos têm sua origem na impotência e no- do caráter de Felice e a possibilidade de· adaptá-la aos
vamente conduzem a ela. valores próprios de Kafka. A decepção havida na pri-
E assim, não obstante todas as experiências adqui- meira época tivera por conseqüência o estancamento da
ridas nos precedentes encontros breves e malogrados, obra. Desta vez, porém, o efeito do distanciamento de
Kafka pôs em jogo a sua conquista dos quatro meses Felice foijustamente o oposto: a separação fez com que
anteriores - o domínio sobre Feiice, mediante o Lar Kafka voltasse a produzir.
Popular Judaico de Berlim-, o que fez naquele único Ele retornou de Munich com novo ânimo. A lei-
sábado passado com ela em Munich. Ali ignorava tu- tura que dera ali resultara num "grandioso fracasso".
do: os lugares; as pessoas; o decorrer da leitura de sex- Fora lido Na colônia penitenciária. "Cheguei lá com meu
ta-feira, após um dia inteiro de viagem de trem; a se- conto como veículo de viagem a uma cidade que, além
qüência dos acontecimentos do sábado. No entanto, de ser para mim lugar de encontro e de desoladoras
assumia o risco, como se nele se escondesse uma secre- reminiscências da juventude, absolutamente não me in-
ta chance de liberdade. Numa "confeitaria abominá- teressava; recitei ali minha sórdida história em meio à
vel", houve entre ambos um atrito, a cujo respeito mais completa indiferença; nenhum cano de estufa va-
desconhecemos quaisquer pormenores. Parece que Fe- zia poderia estar mais frio. Em seguida privei com
lice, que por tanto tempo se empenhara em submeter- gente estranha, o que aqui só raras vezes me sucede."

118 119
As críticas eram desfavoráveis, e e]e lhes dava razão, médico rural. Igualmente escreveu ali A ponte, O caçadov·
dizendo que fora da parte dele uma "fantástica presun- Graco e A cavalo no balde de carvão. O que todos esses
ção ler algo em público, após não ter escrito, segundo contos têm em comum são amplidão de espaço, meta-
assevera com certo exagero, coisa alguma durante dois morfose Uá não em algo pequeno) e movimento.
anos. (Mas, em Munich, também ficara sabendo que
Rilke o apreciava muito e gostava especialmente do Fo-
guista, trabalho que preferia à Metamorfose e a N a colônia
penitenciária .) Foi todavia dita presunção- a apresenta- Quanto à última fase da relação com Feiice, muito
ção em público, o fato de existirem opiniões e em espe- pouco se pode deduzir das cartas dirigidas a ela. A carta
cial negativas, a derrota e a grandiosidade do fracasso escrita aproximadamente em fins do ano de 1916, que
em meio a pessoas desconhecidas - o que estimulou expõe detalhadamente as vantagens e desvantagens de
Kafka. Se a isso acrescentarmos o conflito com Feiice, uma moradia no Palácio Schonborn e as trata de modo
o qual lhe outorgava aquela distância íntima, indispen- "calculista", como ele mesmo se reprocharia, apresen-
sável para que pudesse escrever, compreenderemos seu tando sei~ pontos contra e cinco a favor, essa carta pre-
ren ovado ânimo depqis do regresso. sume ainda que depois da guerra ambos morariam jun-
Logo se pôs à procura de um domicílio, e desta tos. Nessa habitação, que então estaria preparada para
vez teve sorte: numa casinha da Alchimistengasse, que ela, Felice poderia repousar, pelo mínimo durante dois
Ottla alugara para si, ela o instalou num quarto bas- ou três meses. Verdade é que deveria renun ciar à cozi-
tante silencioso, feito para escrever. Lá Kafka sentia-se nha e ao quarto de banho. N ão se pode afo:mar que sua
imediatamente à vontade. Recusou. ver Feiice por oca- presença figure de modo muito convincente nos cálcu-
sião do Natal, e, pela primeira vez, esta se queixou de los. Mas, seja como for, aparece neles, e o que talvez
dores de cabeça que como que herdara dele. Q uase deva ser considerado ainda. mais importante: Kafka
desdenhosamente, Kafka refere-se ao Lar outrora tan- pede-lhe que reflita cuidadosamente e lhe dê um conse-
tas vezes dicutido. A estt~ ca beria doravante cumprir lho.
sua função de segurá-la e mantê-la amarrada, mas nada Dos primeiros meses do ano de 1917, em cujo de-
mais.
correr, até agosto, certamente lhe escreveu de vez em
Kafka passou momentos amenos na casa de Ottla. quando, não se conservaram nem postais nem cartas
A ndava melhor do que nunca antes nos dois anos pre- anteriores a setembro. Em fevereiro, Kafka começou a
cedentes. "Que coisa estranha cerrar a porta da casa habitar a morada no Palácio Schonborn. Lá nasceram
n esta viela estreita, sob a luz das estrelas!" - " Que outros contos do volume Um médico rural, bem como
beleza m orar ali! Como é lindo ir a pé para casa, des- alguns trabalhos não publicados, enquanto vivia, entre
cendo a velha escadaria do castelo, em direção à ci- eles coisas muito importantes, tais como A construção da
dade!" N esse ambiente originaram-se Um médico rural, muralha chinesa. A essa altura, não se mostra insatisfei-
O novo advogado, Na galeria, Chacais e árabes e A aldeia to, segundo constata numa carta enviada a Kurt Wolff
viz inha, que m ais tarde foram incluídos no volume Um cm julho de 1917.
l.?.O
121
. 1

O que se deu entre ele e Felice no mesmo mês de manifestações de Kafka que perm1ttam concluir que
julho, só podemos conjeturá-lo através de outras este já rompera definitivamente com Felice ou pelo me-
fontes. Por isso, a descrição não pode ser tão precisa nos tinha a intenção de fazê-lo. De Praga, ele
como as anteriores. Esse julho é o mês do segundo noi- escreveu-lhe duas cartas, que não chegaram até nós e
vado oficial. Verdade é que a guerra ainda estava longe nas quais provavelmente foi muito longe.
de terminar, e, segundo parece, o projeto original so-
freu alguma aceleração. Felice veio a Praga. Cabe supor A essa altura, estava realmente decidido a realizar a
que se tenha alojado no Palácio Schonborn, embora ha- ruptura. Como, porém, não confiasse nas suas próprias
ja indícios em contrário. Kafka e Felice visitaram juntos forças, indispensáveis para esse passo, acometeu-o uma
diversos amigos, a fim de anunciarem oficialmente o hemoptise dois dias após a segunda dessas cartas, na
compromisso dos esponsais. Brod assinala o caráter ce- noite de 9 a 1O de agosto. À base de uma descrição
rimonioso e levemente ridículo da visita que lhe fize- posterior, temos a impressão que exagerou um pouco a
ram. Mais uma vez, o casal se preocupou com a procu- duração desse ataque_. No entanto, é indubitável que
ra de uma moradia e a aquisição de móveis. É possível Kafka subitamente, a altas horas da noite, lançou da
que Feiice, descontente com o Palácio Schonborn, te- boca sangue dos pulmões e que tal fato manifesto, que,
nha insistido em que dispusesse desde o começo de do ponto de vista poético, evocava a idéia de uma "fe-
uma cozinha e de um banheiro. Durante as suas cami- rida sangrenta", teve para ele conseqüências muito sé-
nhadas, levava na sua carteira a importância extraordi- rias. Ainda que em seguida se sentisse aliviado, foi ver
nariamente alta de 900 coroas. Numa carta dirigida à sr~ seu médico, aquele doutor Mühlstein, qu~ pelo "vo-
Weltsch trata-se da perda temporária dessa carteira, e, lume de seu corpanzil" produzia um efeito tranqüiliza-
na mesma ocasião, Kafka menciona formalmente sua dor. Não é possível averiguar qual era a opinião real
"noiva". As demarches oficiais e essa espécie de intitu- desse clínico, mas o relato de Kafka bastava para apa-
lações talvez exigissem dele um esforço excessivo. Já se vorar Brod. Decorreram ainda várias semanas, até que
disse que aprender de experiências passadas não estava este conseguisse persuadir Kafka a consultar um tisio-
de acordo com sua natureza. Mas, possivelmente, re- logista. Pois, desde o princípio, Kafka tinha certeza das
corria ele, sem ter consciência disso, a adversidades verdadeiras causas de sua doença, e nem sequer a ex-
desse gênero, só para obrigar-se a fugir de novo. Na se- pectativa da liberdade, que para ele tinha maior impor-
gunda metade de julho, viajou em companhia de Felice tância do que todo o resto, tornava-lhe fácil a medida
à Hungria, para visitarem a irmã dela em Arad. No de entregar-se para sempre à medicina oficial, da qual
decorrer dessa viagem, deve ter ocorrido um sério atri- desconfiava com tamanha teimosia. Com a visita ao
to. Quiçá a confrontação com um membro da família especialista, em 4 de setembro, iniciou-se um novo pe-
de Feiice fosse necessária para apressar o rompimento. ríodo de sua vida. O veredito dessa autoridade, cuja
Em Budapest, Kafka abandonou Felice e retornou sozi- aceitação Kafka se coagia a impor-se, redimiu-o de Fe-
nho, via Viena, a Praga. Rudolf Fuchs, ao qual encon- lice, do medo ao matrimônio e da muito odiada profis-
trou nessa ocasião em Viena, anota em suas memórias são. Mas, ao mesmo tempo fazia com que ficasse conti-

122 123
nuamente amarrado à enfermidade, da qual morreria e sangue e expressamente de tuberculose. Para o seu pró-
que, naquele momento, talvez ainda não existisse. prio bem, não querem aposentá-lo. Ele permanece co-
Pois a primeira referência ao diagnóstico do espe- mo funcionário público na ativa. Tirará uma licença
cialista, que se encontra no diário de Brod, numa ano- de, no mínimo, três meses. Por enquanto, deve-se si-
tação que data do mesmo dia, nem soa extremamente lenciar a esse respeito perante os pais. As únicas pala-
grave. Fala-se lá de um catarro das pontas de ambos os vras que Felíce poderia considerar, à la longue, ameaça-
pulmões e de uma ameaça de tuberculose. Como se ve- doras aparecem ho fim da carta. Lá se lê: "pobre Felice
rificou, a febre cessou completamente depois de pouco qu~rida", e esse "pobre" , que tão bem conhecemos da
tempo. Iv1as as insólitas manipulações médicas resulta- correspondência anterior, soa, agora que o assunto é a
ram num plano de fuga, tal como Kafka necessitava enfermidade, como se pela primeira vez não se referisse
para sua salvação espiritual. Decidiu-se, portanto, que a si e sim a ela. "Deverá ser este o eterno epílogo de
ele devesse domiciliar-se no campo, provisoriamente minhas cartas? Não é uma faca que apenas fira de
por três meses. O sítio adequado estava previsto, ine- frente. Ela dá giros e tambéin fere de trás."
gavelmente, havia muito tempo. Era a granja de Ottla Num pós-escrito, acrescenta que após a hemoptise
em Zürau. Passaram-se quatro semanas, sem que Fe- se sente melhor do que antes. Isso corresponde à V€r-
lice ficasse sabertdo de tudo isso. Somente quando cada dade, mas talvez queira impedir assim que Felice, subi-
passo fora organizado em definitivo, três dias. antes do tamente alarmada, venha ter com ele.
traslado Zürau, em 9 de setembro, Kafka escreveu-lhe No dia 12 de setembro, inicia-se a estada em Zü-
finalmente uma primeira carta, de conteúdo muito sé- rau. Já a primeira carta a Brod dá a impressão de vir de
rio. Talvez pudesse ter-lhe comunicado já nessa opor- um mundo diferente. Explica que no primeiro dia era
tunidade a dura decisão de romper para sempre as rela- incapaz de escrever, porque gostava em demasia de tu-
ções com ela. Mas, por ter guardado o prolongado si- do e tampouco queria exagerar, como teria que fazer.
lêncio, depois de ter recebido as duas cartas de agosto, Mas também na seguinte lê-se: "Ottla realmente me
Pelice lhe escrevera em tom conciliante, como se ne- carrega sobre asas através deste mundo difícil. O quar-
nhum fato grave existisse entre eles, e Kafka recebera to está excelente, arejado, quente, e isso num ambiente
suas cattas amáveis em 5 de setembro, num momento doméstico totalmente silencioso. Tudo quanto devo
bem pouco propício, logo no dia subseqüente à visita comer cerca-me em abundância ... E a liberdade, antes
ao especialista. "Hoje - relata a Brod - chegaram de mais nada a liberdade! "
cartas de F., muito serenas, gentis, desprovidas de " ... Em todo caso, comporto-me com relação à
qualquer rancor, justamente assim como a vejo nos tuberculose, como uma criança se agarra à saia da
meus mais queridos sonhos. Desse modo, torna-se-me mãe ... Às vezes me parece que o cérebro e os pulmões
difícil escrever-lhe." se tenham entendido sem o meu conhecimento. 'As-
Porém, como já se disse, escreve-lhe em 9 de se- sim, as coisas não podem continuar,' - dissera o cére-
tembro, e conta de forma dramaticamente abreviada o bro e, depois de cinco anos, os pulmões dispuseram-se
que aconteceu a seus pulmões. Fala com insistência de a ajudar."

124 125
E a carta seguinte reza: "Co m Ottla vivo num mesmo que admitamos a validez dessa imagem, ela não
bom matrimoniozinho. Não num matrimônio no sen- deixa de induzi-lo imediatamente a uma inverdade, a
tido habitual de um curto-circuito violento, senão num saber à asseveração de que o melhor dos dois comba-
fluxo que vai, com pequenas sinuosidades, para a tentes, segundo escreve, pertence a ela. Afirma que
frente. Temos um lar bonito, que, segundo espero, nesses últimos dias absolutamente não duvidou disso.
agradará a vocês." Mas há algo que ensombra essa car- Sabemos, no entanto, que esta luta (ou como se queira
ta: "F. enviou-me umas poucas linhas, anunciando sua chamar o conflito) já terminou há muito tempo e que a
visita. Não a co_mpreendo. É esquisita ... " Felice nada m ais pertence, e "nesses últimos dias" me-
Ela veio. A respeito da visita, encontra-se uma nos que isso. Devemos considerar tal afirmação falsa
anotação no diário, da qual cito uma parte: "21 de se- uma tentativa de consoiá-la, aigo parecido com cava-
tembro. F. esteve aqui. Para ver-me, fez uma viagem lheirismo para com a mulher humilhada e rejeitada? Se-
de trinta horas. Eu deveria ter impedido que isto acon- ja co m o for, segue-se, não muito longe dessa passa-
tecesse. Assim como imagino a situação, suporta ela, gem, uma frase que bem merece ser citada como mani-
em grande parte por minha culpa, um máximo de des- festação de Kafka: " Sou um hom em mentiroso. De ou-
graça. Eu mesmo não consigo sossegar. Fiquei com- tro m odo. não logro manter o equilíbrio. M eu barco é
pletamente insensível e desajeitado. Penso na perturba- muito frágil. " Esta frase serve de transição para um pe-
ção de meu conforto, e à guisa de uma única concessão, ríodo extenso que resu me o con ceito que tem acerca de
apresento-me numa espécie de e.omédia." si. Está muito bem formulada . Merece ocupar seu lu-
A penúltima carta a Felice, a mais longa, escrita gar na literatura. Agrada tanto a KafKa que _ele a repro-
dez dias após a sua visita a Zürau, é a mais penosa de duz literalmente n um a carta a Max Brod e mais uma
todas quantas se conservaram. Custa algum esforço re- vez ipsis verbis no diário. Lá tem o direito de figurar,
produzir passagens dela. Nesse ínterim, ela lhe escreve- mas o leitor compreenderá por que prescindimos dela
ra duas vezes. Kafka não abrira as cartas e as deixara sob as circunstâncias em que se originou. Em seguida,
abandonadas em qualquer lugar. Eis o que logo de iní- lê-se mais um longo trecho sobre a acidentada sorte dos
cio comunica a ela. Acrescenta todavia que finalmente dois combatentes e o sangue derramado, e que conduz
passou a lê-las. O conteúdo envergonha-o, porém ele a uma questão que o preocupa seriamente: "Pois, se-
se julga a si próprio com dureza ainda maior do que ela cretamente creio que esta doença na realidade não é ne-
já faz há muito tempo. Tenta então explicar-lhe o espe- nhuma tuberculose e sim minha bancarrota geral."
táculo que oferece. Mas o sangue e a luta ainda não alcançaram seu fim.
Aparece aqui, 6 mito dos dois seres que se enfren- Kafka tira delas ainda outras conclusões. Bem inopina-
tam dentro dele. E um mito indigno e falso. A imagem damente surge a seguinte passagem: "Não me per-
do combate não basta para captar as ocorrências que se g untes por que levanto uma barreira. Não me humi-
realizam no seu íntimo. Desfigura-as mediante uma es- lhes tanto!" Nessas linhas, ele diz com todo o vigor que
pécie de heroização daquela sua hemorragia, como se se desfaz dela inteiramente e que para esse ato não há
realmente tivesse acontecido uma luta sangrenta. Mas, nenhuma explicação. Se a carta se limitasse a essas duas

126 127
r
frases, teria a força de uma elocução bíblica. Porém, mente" os lábios. A maior parte da carta consiste numa
logo após, Kafka atenua-a mediante um gesto vazio, reprodução da resposta a Max Brod, citada de memó-
mas, de súbito, depara-se-nos a verdade: "A autêntica ria, e que fora despachada ao amigo quatro dias antes.
ou pretensa tuberculose - escreve ele- é uma arma a Em seguida, afirma que seu estado físico está excelente,
cujo lado as quase inúmeras anteriormente usadas, ' mas que mal ousa indagar quanto à saúde dela. Acres-
desde a 'incapacidade física' até às alturas do 'trabalho' centa que, com argumentos muitos detalhados 1 pediu a
e ao rebaixamento da 'avareza', expõem-se no seu só- Max, Felix e Baum que não o visitem; o que se consti-
brio oportunismo e na sua índole primitiva." tui numa advertência a ela para que não volte a fazê-lo.
Finalmente Kafka revela a Felice um segredo no O último pará.grafo reza: ''Não conheço Kant,
qual nesse momento ele próprio ainda não acredita, mas aquela frase , segundo me parece, aplica-se so-
mas que, apesa r disso, se confirmará um dia: não have- mente a puvos e a guerras civis; dificilmente se refere a
rá cura para ele. Com isso, mata-se para ela, e através conflitos íntimos, porque neles existe apenas a paz que
de uma espécie de suicídio, subtrai-se-lhe no futuro . se almeja às cinzas."
Sendo assim, a maior parte do que contém essa Com isso, refuta um desejo de paz que Felice en-
carta foi ditada pelo empenho de esquivar-se a novas cobrira com uma citação de Kant. Pela referência à paz
i1:1portunações de Felice. Visto que Kafka já não expe- que se almeje às cinzas, Kafka toma refúgio na morte,
nmentava o menor sentimento por ela, niio lhe era da- ainda mais insistentemente do que ao fim da carta ante-
do oferecer genuíno consolo. Da felicidade obtida em rior. Na vasta correspondência que, na mesma época,
Zürau, que provinha da liberdade, não se podia haurir mantém com seus melhores amigos, jamais se fala de
arremedos de tristeza, e nem sequer de pesar. cmzas.
A última carta a Feiice data de 16 de outubro e O fato de ter-se convertido em verdade a doença
lê-se como se já não se endereçasse a ela. Kafka distan- inicialmente usada como um recurso não pode ser ad-
cia-a. Suas frases vítreas não a contêm. Parecem dirigi- mitido como justificativa. Esta encontra-se numa nova
das a uma terceira pessoa. Começam com uma citação série de anotações, contida no "Terceiro caderno em
de uma carta de Max Brod, que escreveu que as cartas oitavo", que Kafka iniciou dois dias depois da derra-
de Kafka manifestam grande serenidade e demonstram deira carta a Felice. O diário, que soía escrever antes,
que ele está feliz na sua desgraça. Para confirmar esta fica interrompido por vários anos. Da penúltima ano-
opinião, Kafka faz um relato da última visita de Felice. tação, por assim dizer atrasada, que nele se nos depara,
Pode s_er que nele haja alguma inexatidão, mas certa- constam as seguintes frases: " Até agora não registrei o
mente ~le é mais frio do que gelo. "Sentiste-te infeliz mais decisivo; por enquanto, flutuo em duas direções.
devido a essa viagem absurda, à minha conduta incom- O trabalho que me aguarda é enorme."
preensível, a tudo enfim. Eu não me senti infeliz." To-
da essa miséria atingia-o menos, porque a enxergava,
reconhecia e se mantinha calmo em face de tal percep-
ção, que o levou a cerrar " firmemente, muito firme-

128 129
ção humana, mas Kafka como alguém que
faz da linguagem um instrumento feroz de
dominação.
As cartas a Feiice sucedem-se sem in-
terrupção, como um ataque verbal, atuan-
do em estranha mistura de súplica e domi-
nação. Feiice deve contar a Kafka cada mí-
nimo detalhe de sua vida; a exigência é que
ela escreva diariamente, ainda que ele não
saiba com certeza, dividirá sua vida com a
noiva. O poder das palavras é tal que só
através das cartas, por investida verbal, o
amor é possível.
Kafka sofre e sente-se condenado. Is-
so, em si mesmo, bastaria para dar ao livro
de Canetti o título de O outro processo.
Entretanto, há algo mais: o episódio Grete
Bloch: Kafka prepara seu casamento com
Pelice e simultaneamente escreve à amiga
de sua noiva, Grete Bloch, cartas em tom
amoroso. O amor é uma consumação ab-
soluta, pouco importa quem é a amada:
essa é também a lógica do poder.
O episódio Grete Bloch acaba num
verdadeiro tribunal. Kafka sente-se grn-
tuitamente julgado, como um criminoso
sem culpa. O rompimento com Feiice é
inevitável. Kafka dispõe-se a escrever O
processo.
Quem procurar neste livro a gênese
de um dos maiores romances do século,
como desdobramento da vida pessonl d ·
Kafka, encontrará também outrn coisn:
sucedem-se reflexões incisivas sobre n nl'U•
de escrever, o compromisso com n oh, 11
literária, a experiência absolutiznnu· dn
poder e do amor, a luta de uma conNl'I 11
eia pela definição dos dilemas hum11110N,
Escrito com emoção, e traduzido 1n1111111
tralmente por Herbert Caro, O 01111·0 /n t1
cesso é mais do que um coment. rio 1111!11 ,,
Kafka: Canetti compreende Sltn 1~111 1 .11 1

escritor através da persona de K 111,1,

l;t/11111 rio N1•11•,1

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