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Consagrada em 1022, a abside do edifício abacial de San Pere de Roda comporta um dos primeiros deambula-
tórios e sua nave, terminada na segunda metade do mesmo século, não é menos audaciosa. Do exterior, distin-
guem-se a igreja abacial e seu campanário, a muralha do claustro associada ao refeitório e ao dormitório, duas
outras torres e diversos edifícios que serviam às atividades dos monges. O monastério apresenta-se como uma
cidadela fortificada suspensa no flanco da encosta, dominando orgulhosamente a solitude em torno.
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VIII. Dimensões comparadas da catedral gótica de Leão e do edifício românico que ela substitui.
Em Leão, os trabalhos empreendidos no século XIX permitiram revelar as fundações do edifício românico situa-
do sob a construção gótica que o substituiu (o caso de Salamanca permite, ao contrário, observar uma situação
excepcional, pois a catedral gótica é construída ao lado daquela de época românica, sinal bastante raro de res-
peito por um edifício anterior). O edifício românico (consagrado em l 073) comporta três naves, terminadas
cada uma por uma abside semicircular. Um século mais tarde, a construção de uma nova catedral é iniciada
pelo bispo Manrique de Lara ( 1181-1205), com o apoio do rei Alfonso IX. Interrompidos, os trabalhos são reto-
mados durante o episcopado de Martín Fernández ( 1254-89), que leva a cabo a edificação dos portais da facha-
da ocidental. A nova catedral multiplica de modo considerável o espaço interno utilizável, sinal ao mesmo
tempo do crescimento urbano e da vontade de poderio da Igreja.
17. A nave em berço da igreja abacial de Conques, segunda metade do século XI.
Realizada, em grande parte, na época do abade Odolrico (morto em I 065), a abadia beneditina de Conques pare-
ce ter sido terminada quando o abade Begon III (1087-1107) manda edificar a clausura. Na arquitetura români-
ca clássica, os arcos são em pleno cimbre e repousam sobre pilares, colunas ou semicolunas, geralmente orna-
dos de capitéis, como se vê aqui nas partes altas da nave principal. A abóbada central de berço, reforçada por
arcos cruzeiros, prolonga a mesma forma semicircular. A luz penetra apenas indiretamente na nave central, inclu-
sive na parte superior, onde as tribunas - andar sobreposto às naves secundárias - contrabalançam o repuxo
exercido pela abóbada central. Do mesmo modo, a abside, onde aparece o altar principal, é vazada apenas por
janelas estreitas (somente o cruzeiro do trdnsepto, encimado por uma torre ortogonal que data do século XIV, é
mais vivamente iluminado). Em uma nave românica, os contrastes de sombra e luz são fortemente marcados.
Do românico ao gótico
Os dois planos estão em escalas muito diferentes e levar-se-á em conta o fato de que a catedral de Bourges é mais de
duas vezes maior que a de Notre-Dame-du-Port.
atribuído habitualmente à igreja abacial de Saint-Denis, necrópole dos reis da
França (Roland Recht), observa-se nela uma das primeiras formulações, ainda
que parcial, desse projeto, entre 1130 e 1144, quando da reconstrução pelo
abade Suger do coro e da fachada do edifício. Durante as décadas seguintes, o
gótico afirma-se, adaptando-se a necessidades diversificadas, quando das obras
de numerosas catedrais do centro do reino da França (Sens, a partir de 1140;
Notre-Dame de Paris, a partir de 1163). Depois, atinge sua maturidade nos anos
1220-70, segundo modalidades em geral contrastantes (Chartres é terminada,
no essencial, por volta de 1220; Amiens e Reims, por volta de 1240; Bourges,
por volta de 1250). Pouco a pouco, o que se chama de opus francigenum (mar-
cando, assim, que a Ilha de França é o seu berço) é adotado através de todo o
Ocidente, com variantes múltiplas e cada vez mais refinadas, e torna-se, de
Burgos até Praga e de Canterbury até Milão, a técnica de construção dominan-
te até o início do século XVI.
Para explicitar esse novo sistema construtivo, sem equivalente na história,
pode-se partir do cruzeiro de ogivas, formado por duas nervuras em pedra que se
cruzam em ângulo reto e capaz de sustentar o restante da abóbada, feita de mate-
riais mais leves (figura 18, na p. 204). Todo o peso da abóbada é, assim, direcio-
nado para as quatro colunas que a sustentam, de modo que, mediante um con-
trapeso a essas forças assegurado por contrafortes e arcobotantes, os muros
laterais perdem seu papel de sustentação e podem ser substituídos por amplas
aberturas. Assim, têm-se os grandes vitrais que chamam a atenção tanto pela pro-
fusão quase impossível de captar das representações que contêm como pela
luminosidade colorida com a qual eles inundam o edifício. A realização da arqui-
tetura gótica é o desaparecimento tão radical quanto possível desses muros que
caracterizam o edifício românico e a invasão do lugar de culto por uma lumino-
sidade que, por certo, é rutilante e cambiante, mas que reduz os contrastes de
sombra e claridade e tende a fazer do edifício uma unidade de luz. Se o români-
co era uma arte do muro, o gótico é uma arte da linha e da luz, sinal indubitável
de uma relação com o mundo mais aberta, menos inquieta com o contato com
as realidades mundanas, tão presentes nas próprias portas das catedrais.
Através ou além da importância da luz, dois princípios estão no coração da
busca gótica. Em primeiro lugar, a unificação do espaço interior não é apenas a
conseqüência da luz colorida e contínua difundida pelos vitrais; ela é, de início,
ligada à adoção de plantas que tornam o edifício cada vez mais homogêneo
(supressão das tribunas, atenuação dos transeptos, integração do deambulatório
e das capelas laterais na unidade arquitetônica do coro) e que utilizam para todas
as partes da igreja medidas coordenadas fundadas sobre um módulo único (ilus-
tração X, na p. 202) Até no detalhe do desenho das colunetas ou molduras, tudo
Entre os séculos XI e XIII, não é apenas a igreja de pedra que muda, mas também
a Igreja como instituição. A criação das ordens mendicantes é um dos aspectos
mais marcantes dessas transformações. Para começar, evocar-se-á a figura de são
Francisco, personagem ao mesmo tempo singular e revelador das tensões de seu
século. Para isso é preciso recorrer às diferentes Vidas redigidas por seus discípu-
los conforme as regras do gênero hagiográfico, com a intenção de atestar a san-
tidade de Francisco e de fortalecer o seu culto. Trata-se, então, menos de uma
"verdade" biográfica que deve ser procurada nos textos do que a expressão dos
modelos e dos valores ideais de uma época. Francisco nasceu em 1181 ou 1182,
em Assis, uma das cidades da Itália central em que o comércio floresce precoce-
mente. Ele é o filho de um rico mercador, do qual lhe incumbe continuar os
negócios. Mas o jovem Francisco põe-se em busca de ideais mais elevados, sinal
de que o desenvolvimento das atividades urbanas não significa, necessariamen-
te, a formação de uma "burguesia" dotada de valores próprios bem assentados.
Interiorizando inconscientemente as hierarquias de seu tempo, ele sonha, de iní-
cio, com as proezas cavaleirescas e se prepara para partir para a guerra no Sul da
Itália. Mas uma visão sobrenatural o dissuade disso. Depois, enquanto ele ora na
igreja de San Damiano, diante da imagem de Cristo na cruz, este dirige-se a ele
e o convida a reconstruir a sua igreja. Como bom laico, que as realidades mate-
riais ainda impedem de elevar-se até as verdades espirituais, Francisco acredita
dever tornar-se pedreiro para reconstruir o edifício que ameaça cair em ruínas.
Mas, evidentemente, é para uma missão mais alta que Cristo o chama.
Francisco, cuja conduta o põe em conflito com seus pais, pouco a pouco toma
consciência disso e renuncia à herança paterna. Em um ato definitivo de conver-
são, ele se desnuda para restituir a seu pai os tecidos com os quais este faz
comércio e põe-se, nu, sob a proteção do bispo (figura 19, na p. 206). Em vez da
comodidade material que seu nascimento devia lhe proporcionar, ele abraça a
exigência de uma pobreza radical e escolhe "seguir nu o Cristo nu".
Sua mensagem, que começa então a pregar pela palavra, e sobretudo pelo
exemplo, surpreende por sua simplicidade: viver com o Evangelho por única
regra, fazer penitência. Francisco a põe em prática através de uma devoção que
associa o imediatismo e uma certa alegria, manifestação de uma comunhão com
21 O }érôme Baschet
21. O Triunfo da Igreja e dos dominicanos, 1366-68 (afrescos de Andrea di Bonaiuto, capela dos Espanhóis,
Santa Maria Novella, Florença).
Fazendo face à representação do Triunfo de São Tomás (adequadamente localizado na sala capitular de um con·
vento dominicano), esta vasta alegoria da Igreja põe o acento sobre práticas que se tornaram essenciais duran-
te os últimos séculos da Idade Média, especialmente a pregação e a confissão. Embaixo, à esquerda, um impo-
nente edifício eclesial é associado à hierarquia clerical, reunida em torno do papa. Adireita, os dominicanos
têm o papel principal: eles pregam e combatem os heréticos, enquanto cães devoradores lembram que sua mis-
são está inscrita em seu nome (dornini canes). Acima, quase no centro do afresco, um sacerdote recebe a con-
fissão de um fiel ajoelhado diante dele (o confessionário não existe durante a Idade Média). A confissão está
no cruzamento dos caminhos: aqueles que recorrem a ela são convidados por são Domingo a avançarem para
o paraíso. Tais como almas puras vestidas com túnicas imaculadas, eles são ali acolhidos por são Pedro, símbo-
lo da instituição eclesial e guardião da porta do céu. Uma vez transposto esse limiar, os eleitos gozam da visão
beatífica, quer dizer, da contemplação da essência divina, que aparece em meio a uma corte de anjos. Tal é a
recompensa suprema, à qual os cristãos chegam seguindo os ensinamentos da Igreja e recebendo, graças a ela,
os sacramentos salvadores. Assim, o afresco sobrepõe notavelmente os três sentidos da palavra "igreja": o ediff.
cio, a instituição clerical e a comunidade dos fiéis, chamada a se reunir na glória celeste.
de Fanjeaux, logo acompanhado por alguns discípulos que levam uma vida evan-
gélica, depois funda um primeiro convento em Toulouse. Em 1217 o papa apro-
va a nova ordem, posta sob a regra de santo Agostinho. Domingo vê na prega-
ção, apoiada pelo estudo e pela penitência, uma arma indispensável contra os
inimigos da Igreja. Os novos conventos daqueles que são chamados, justamen-
te, de frades pregadores multiplicam-se rapidamente, e Domingo morre à fren-
te de uma ordem poderosa, em 1221 (sua canonização ocorre em 1234). O per-
curso do fundador castelhano não se parece nada com o do santo dé Assis:e-te
é, logo de início, estreitamente ligado à instituição eclesiástica e, em_particutar,
à luta contra a heresia. De resto, os dominicanos tornar-se-ão especialistas nas
tarefas inquisitoriais e assumirão com orgulho essa função, considerando-se os
"cães do Senhor" (domini canes, de acordo com um jogo de palavras que o seu
nome permite em latim; figura 21, na p. 211). Os dominicanos também orien-
tam imediatamente suas atividades para o estudo e o esforço intelectual indis-
pensável para argumentar ao serviço da Igreja. Eles multiplicam, então, os studia
destinados à formação de seus membros, enquanto os primeiros franciscanos
procuram formas mais simples e mais imediatas de contato com Deus. Entre-
tanto, a despeito dessas diferenças iniciais, a evolução das duas ordens as apro-
xima, e muito em breve estarão, ao mesmo tempo, unidas por objetivos e práti-
cas bastante semelhantes e opostas por uma intensa rivalidade.
O sucesso das duas ordens que são chamadas de mendicantes, pois elas
querem, em seus inícios, nada possuir e viver apenas de dons de caridade, esten-
de-se logo a toda a cristandade. Os frades pregadores, caracterizados pela sua
vestimenta branca recoberta por um manto negro, são cerca de 7 mil por volta
de 1250 e dispõem de setecentos conventos no fim do século XIII, enquanto os
franciscanos (também chamados frades menores, em razão de sua humildade),
vestidos com um hábito de lã crua ou bege (nem pintado, nem embranquecido)
e reconhecidos, como Francisco, pela simples corda com um nó atada à sua cin-
tura, são talvez 2.500 por volta de 1250 e se repartem em cerca de 1.600 esta-
belecimentos meio século mais tarde. Outras ordens mendicantes de menor
importância também surgem, mas o Concílio de Lyon 11 (1274) limita seu
número a quatro: além dos franciscanos e dos dominicanos, trata-se dos carme-
litas, ordem fundada em 124 7, e dos eremitas de santo Agostinho, ordem cria-
da em 1256. Cada ordem, sob direção de um superior-geral e de responsáveis
provinciais, é dotada de uma coesão muito mais forte que as redes monásticas
anteriores. Cada uma delas conta, além de seu ramo masculino, com um com-
ponente feminino - como a Ordem das Clarissas, fundada por santa Clara de
Assis, associada aos franciscanos- e uma ordem terceira, na qual são acolhi-
dos os laicos que desejam viver devotadamente. O ideal de pobreza, associado
21 ~ Jérôme Baschet
à humildade e à penitência, é a característica primeira das ordens mendicantes.
Mas, como todas as outras aventuras monásticas anteriores, esbarra no parado-
xo do sucesso, que leva à multiplicação dos dons e à acumulação dos bens. Se
as ordens tradicionais impunham que cada monge não possuísse nada a título
individual, mas aceitavam as doações feitas à instituição, as ordens mendican-
tes, preocupadas em dar sentido ao ideal de pobreza, recusam essa opção. Mas,
logo, precisam forjar a teoria segundo a qual os bens recebidos por elas são pro-
priedades do papa e que a ordem tem apenas o seu uso, o que os franciscanos
espirituais não deixam. de denunciar como uma ficção hipócrita. •
A contribuição das ordens mendicantes tem a ver ainda mais com uma con-
cepção original do papel do clero regular. Mesmo aceitando uma regra de vida
comunitária e ascética, os mendicantes não optam por uma fuga do mundo.
Mesmo quando se referem idealmente ao exemplo dos eremitas do deserto (Alain
Boureau), assumem, na prática, viver em meio aos fiéis para pregar pela palavra e
pelo exemplo (na verdade, essa vocação pastoral caracteriza somente os ramos mas-
culinos das ordens; as mulheres permanecem confinadas em uma clausura tradi-
cional, o que, sem dúvida, favorece o desabrochar, particularmente entre as domi-
nicanas, de uma intensa devoção mística, que vem compensar a sua exclusão das
tarefas assumidas pelos frades). O século XII já havia visto certa aproximação entre
regulares e seculares, mas os mendicantes dão o passo suplementar instalando-se
no coração das. cidades (estes estranhos regulares, urbanos e pregadores, são, de
resto, chamados de frades, não de monges). As ordens mendicantes aportam,
assim, uma contribuição decisiva à Igreja de seu tempo, assumindo um enquadra-
mento e uma atividade pastoral ada~tados aos meios urbanos. Agindo assim, inter-
vêm em um terreno que é, normalmente, do clero secular, e os conflitos entre men-
dicantes e seculares não faltam, por exemplo, no seio da Universidade de Paris e,
mais amplamente, nas cidades, onde os bispos vêem com desconfiança esses pre-
gadores extremamente bem preparados, cujos sermões têm mais sucesso que aque-
les dos seculares e que captam para suas vastas igrejas os dons dos fiéis. O laço
entre ordens mendicantes e fenômeno urbano é, de resto, tão claro que se pôde
estabelecer uma correlação entre a importância das cidades medievais e o número
de conventos mendicantes que elas abrigam Qacques Le Goff). Em todas as cida-
des da Europa, sua implantação se faz segundo uma mesma lógica: tendo necessi-
dade de um amplo terreno, os conventos mendicantes se estabelecem nos limites
da zona construída e, considerando a concorrência existente entre eles, o mais
longe possível uns dos outros, segundo uma geometria bastante regular. Se uma
cidade abriga dois conventos mendicantes, o meio da linha que os liga é ocupado
pelos edifícios principais da cidade; se eles são três, o centro urbano ocupa aproxi-
madamente o ponto central do triângulo formado por eles.
.? 1 -1 }ér6me Baschet
características essenciais: o ensino não é mais submetido à autoridade do bispo
e diz respeito unicamente à corporação de mestres, os quais definem suas nor-
mas. A partir dali, a universidade é "um corpo profissional incorporado na
Igreja a título de instituição autônoma que, subtraída da jurisdição dos bispos
e dos senhores, é submetida unicamente ao poder pontifício e a seu controle
doutrinai" (Franco Alessio). Entre as primeiras universidades européias, dota-
das de estatutos no primeiro quartel do século XIII, é preciso citar ainda
Cambridge para a teologia, Montpellier para a medicina, Salamanca, Nápoles,
Pádua e, apenas pouco mais tarde, Toulouse (1234). Passada esta data, as
numerosas universidades criadas têm, em geral, apenas uma importância limi-
tada e um recrutamento regional.
Em cada universidade, a autonomia permite à assembléia dos mestres, sob
a condução de seu reitor, decidir sobre sua organização interna (distingue-se,
em geral, a faculdade de artes, propedêutica em que são ensinadas as artes libe-
rais do trivium - retórica, gramática e dialética - e do quadrivium - aritmé-
tica, geometria, astronomia e música - e as "grandes" faculdades, de teologia,
direito ou medicina), bem como sobre o recrutamento de alunos e a cooptação
de professores, sobre os programas e autores ensinados, sobre os métodos utili-
zados e os graus conferidos (bacharelado, licenciatura, mestrado ou doutorado).
Mas o exercício da autonomia não se dá sem conflitos. Assim, o lugar prepon-
derante que os frades mendicantes começam a ocupar nas universidades a par-
tir dos anos 1230 suscita a hostilidade dos mestres seculares, que se queixam
notadamente da concorrência desleal daqueles que, pelo fato de pertencerem a
uma ordem, podem ensinar gratuitamente. Mas a posição dos mestres mendi-
cantes, que logo monopolizam as cátedras de teologia mais renomadas, é siste-
maticamente confirmada pelo papado, especialmente por Alexandre IV em
1225. É bem o sinal de que as ordens mendicantes exercem papel central na
instituição eclesial de seu tempo. Por decorrência, só pode ser dominante seu
lugar no seio das universidades, cuja função principal é fornecer à Igreja seus
fundamentos ideológicos mais firmes, ao mesmo tempo que a parte mais ins-
truída de seus prelados (muitos dos quais entram para o serviço das administra-
ções principescas ou reais).
O exercício de autonomia é combinado com a relativa homogeneidade dos
ensinamentos e das formas de organização, o que manifesta a universalidade do
poder pontifício, do qual dependem as universidades. A escolástica é seu méto-
do por excelência. Suas raízes remontam ao século XII: Anselmo de Canterbury
(1033-1109) esforça-se, notadamente em seu Por que Deus se fez homem, para
associar a fé e o intelecto (''fides quaerens intellectum") e convencer tanto por
raciocínios demonstrativos como pelo recurso aos argumentos de autoridade (as
20. Do latim quolibet, "não importa para onde"; proposição sustentada aleatoriamente, ao bel-pra-
zer do autor ou orador. (N. T.)
A partir do fim do século XII, uma insistência nova sobre certas práticas refor-
muladas leva a uma configuração inédita, cujo centro é ocupado pelo tríptico
pregação-confissão-comunhão. Como se disse, profundas transformações afeta-
ram a comunhão, sacramento "terrível", ato capital que assegura, ao mesmo
tempo, a coesão da comunidade cristã e sua divisão hierárquica entre os cléri-
gos e os laicos (assim, no decorrer do século XII, a comunhão sob as duas san-
tas espécies, o pão e o vinho, é progressivamente reservada aos clérigos, ao
passo que os laicos têm acesso somente à primeira). Convém, então, relembrar
aos laicos, tornados talvez hesitantes pela sacralidade esmagadora do rito, a
necessidade de comungar regularmente. É por isso que, na seqüência de várias
assembléias diocesanas, mas dessa vez por intenção de toda a cristandade, o
Concílio de Latrão IV (1215) torna obrigatório a todos os fiéis receber a comu-
nhão ao menos uma vez por ano, na Páscoa (cânone Omnis utriusque sexus).
Exigência mínima, que diz muito sobre os limites da participação sacramental
dos laicos ordinários, essa regra enseja uma conseqüência considerável, pois
ninguém poderia, sob pena de graves riscos espirituais, receber a eucaristia sem
estar previamente purificado de seus pecados. A obrigação da comunhão anual
impõe, então, o dever de uma confissão igualmente anual.
Na Antiguidade tardia e nos primeiros séculos da Alta Idade Média, a Igreja
havia admitido a possibilidade de uma penitência que permitia purificar-se dos
pecados cometidos após o batismo. Tratava-se, então, de um ritual público que
só podia ser realizado uma única vez e era, por conseqüência, em geral retarda-
do até a aproximação da morte. Depois, a partir do século VII, os monges irlan-
deses introduzem em toda a cristandade o sistema de penitência tarifada/ 1 em
vigor até o século XII. Renovável, ela dava lugar a um ritual de reconciliação
pública, com freqüência realizado no portal norte das igrejas, que os penitentes
deviam atravessar arrastando-se sobre os joelhos e os cotovelos, depois de terem
cumprido escrupulosamente as indicações do Livro de penitências, que fixa para
cada falta o nível das penitências requeridas, sob forma de preces, jejuns, mor-
tificações diversas ou peregrinações (figura 50, na p. 498). No século XII, o for-
malismo rígido de tal sistema devia parecer cada vez mais inadaptado, ao passo
que os mestres em teologia, como Abelardo, definiam o pecado como uma pro-
pensão interior e sublinhavam a necessidade de avaliar os atos humanos levan-
do em conta sua intenção. De fato, uma prática penitenciai renovada surge
21. Na qual a cada falta corresponde uma penitência precisa, como uma espécie de "taxação" dos
pecados. (N. T.)
~ I ~ }érôme Baschet
tudes, assim como os tratados morais destinados aos laicos, uma quantidade
considerável de manuscritos é, então, votada ao aperfeiçoamento das técnicas
de introspecção da alma cristã. Mas se, de certa maneira, a confissão prefigura
a psicanálise, notadamente pelo papel regenerador que confere à palavra e à
declaração da falta, ela também se distingue radicalmente: enquanto a psicaná-
lise não confere nenhuma absolvição, a confissão articula a declaração liberta-
dora ao reforço do poder da instituição clerical, intermediária obrigatória para a
salvação (figura 21, na p. 211 ). Como preço do perdão que ela concede, a Igreja
se atribui, graças à confissão, um temerário instrumento de controle dos com-
portamentos sociais e se imiscui no mais secreto das consciências individuais.
O desenvolvimento da confissão é acompanhado daquele da pregação.
A prática dos sermões e das homilias remonta, é verdade, à Antiguidade, mas,
durante séculos, a pregação permaneceu integrada à missa e concebida como
um exercício erudito destinado principalmente aos próprios clérigos. No século
XII, entretanto, ela se amplia notavelmente e os laicos são seus destinatários
prioritários, tanto da parte dos regulares, como são Bernardo, ardente pregador,
como dos seculares, como Jacques de Vitry ( 1165-1240) ou Alain de Lille, autor
de uma importante Arte de pregar. Mas são principalmente os frades mendican-
tes que fazem da pregação um instrumento central de instrução dos laicos.
Dominicanos e franciscanos tornam-se "verdadeiros profissionais da palavra"
(Hervé Martin), formados na arte de pregar nos studia de suas ordens, difundin-
do em toda a cristandade "uma palavra nova" (Jacques Le Goff e Jean-Ciaude
Schmitt). A pregação é também um aspecto inerente ao ministério pastoral dos
seculares, mas o papado apóia decididamente a intervenção desses especialis-
tas que são os frades mendicantes, aos quais o Concílio de Latrão IV confia a
missão de "ajudar os bispos no ofício da santa pregação". Doravante, os sermões
são com freqüência pronunciados nas praças públicas, aos domingos e nos dias
festivos; eles também são organizados em vastos ciclos na época de Natal,
Quaresma, Páscoa, Pentecostes ou quando da passagem de um pregador itine-
rante reputado. Sobretudo, a nova palavra afasta-se dos modelos eruditos ante-
riores e pretende transmitir a mensagem divina ao mesmo tempo que "fala de
coisas concretas e palpáveis que os fiéis conhecem por experiência". O estilo
vivo e, por vezes, teatralizado dos pregadores, assim como o recurso constante
aos exempla, anedotas ou breves narrativas divertidas, destinadas a captar a
atenção do público, dando lugar a uma lição de moral, dos quais o dominicano
Estevão de Bourbon ( 1190-1261) compôs a mais ampla coletânea, completam
o dispositivo de uma palavra que se pretende eficaz.
Mas, eficaz para quê? A pregação visa, evidentemente, "fazer crer", quer