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TRANSCRIÇÃO AULA 02

MEMÓRIAS PÓS-
TUMAS DE BRÁS
CUBAS
MACHADO DE ASSIS
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Introdução e comentários

Fala, meu povo, tudo bem?

Bem-vindos à segunda aula sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas!

A sensação que tive ao ler este livro é a de que ele é uma espécie de ensaio de
Dom Casmurro. Algumas coisas que aparecem neste, já com um nível altíssimo
de refinamento, Machado ainda estava começando a desenhar em Memórias
Póstumas.

Mas, claro, Memórias Póstumas não é um livro ruim, de modo nenhum. Ele é
muito bom. Porém, é pesado porque em Dom Casmurro — e é disso que mais
senti falta aqui — existe alguma variação de tom; lá vemos cenas em que algo de
realmente bom acontece.

Memórias Póstumas é muito sufocante porque monotemático.

O livro só nos mostra a vidinha de merda de Brás Cubas, onde nada de bom
ocorre. Também não há um personagem que tenha algum tipo de brilho moral —
todos são meio torpes.

Mas, uma coisa boa que podemos tirar de Memórias Póstumas, é que se você,
leitor, sentiu-se mal lendo o livro; se achou que Brás Cubas exagerava; se
imaginou que aquela filosofia dele é um troço incômodo, tenho boas notícias.

Isso é um sinal de que você não é um cretino como Brás Cubas.

Agora, se você leu o livro e concordou com tudo o que Brás diz… então temos um
pequeno problema: é muito provável que você esteja vivendo uma vida como a
de Brás sem ser rico como ele era, e sem seus privilégios.

Logo, Memórias Póstumas tem esse peso pois na obra não há nenhuma
redenção. E isso me leva a um dos problemas da literatura brasileira: é muito
difícil achar por aqui personagens realmente elevados. Geralmente os
personagens das obras brasileiras estão muito abaixo da situação, seja moral,
social ou intelectualmente falando.

Mas, comecemos a aula antes que eu destrinche um pouco mais esse assunto.

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Início da aula

A carência de personagens elevados

É muito difícil encontrar, na literatura brasileira, um personagem grande — um


sábio ou um herói, por exemplo.

Quando temos um herói, o que nos surge é, por exemplo, Policarpo Quaresma,
de Lima Barreto.

Policarpo tinha heroísmo, mas era um idiota, ou seja, outro personagem abaixo
de sua situação; um herói trágico porque cômico.

E é meio difícil encontrar redenção ou mudanças de caráter ou personagens


realmente felizes nas obras nacionais.

Mas isso, de certo modo, faz sentido, pois não é muito fácil ser feliz num país
como o Brasil, essa é a verdade.

Agora vamos ao livro.

Galhofa e melancolia

Bem, como eu disse no começo da aula, Brás Cubas teve uma vidinha de merda.

Uma dica, leitor: quando você terminar o livro, volte aos primeiros nove capítulos
— sobre os quais falamos na primeira aula — e os releia. Neles somos apresenta-
dos ao amargor e ao cinismo galopantes de Brás Cubas.

Ao ler o livro inteiro e voltar a esses primeiros capítulos, é possível realmente


entender porque Brás é como é.

É por causa do que é apresentado neste começo de história que Brás Cubas
pensa de forma torpe; é por isso que não deu a mínima para ter morrido, pois já
tinha morrido em vida; é por isso que Brás não acredita no amor; é por isso que a
ideia de sacrifício, de obter algum sentido na vida ou de transcendentalismo
nem entram em seu vocabulário.

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É por esse motivo que Brás abraça, com tanto ardor e alegria, a filosofia de Quin-
cas Borba, o Humanitismo, uma filosofia do mais puro e completo egoísmo.

O começo do livro, por assim dizer, adquire uma outra cor quando você chega
ao final e depois relê o início.

Os filósofos clássicos, por exemplo, já sabiam que ninguém acorda um herói ou


um vilão, assim do nada. O caráter é algo que construímos ao longo do tempo até
ir se solidificando.

De modo que uma pessoa que tem bons hábitos e costumes e busca a virtude
todos os dias, acaba por tornar-se, a força de hábito e repetição, alguém virtuoso.

Mas por outro lado, se alguém, de modo habitual e repetido faz merdas, se torna,
com o tempo, um mau-caráter. Essa pessoa vai se transformando alguém com
sérios defeitos e vícios.

Brás Cubas é o caso de alguém que trabalhou com diligência a vida inteira
para virar um perfeito filho da p***.

E Quincas Borba, já que falei dele, tem uma personalidade mais sarcástica e leve.
Portanto, não me lembro de ter lido algo de Machado de Assis que fosse uma ode
à alegria.

Machado chega apenas no sarcasmo: você ri, mas essas risadas são meio
amargas.

E o curioso é que da primeira vez em que li Memórias Póstumas não senti nada
disso. Estava tão preocupado em absorver a técnica de escrita de Machado que
mal prestei atenção à trama.

E falando em trama, vamos a ela!

Aparências

Na última aula expliquei o significado do capítulo O delírio, explicando que Brás


Cubas era uma pessoa completamente cínica, sem nenhum fiapo de esperança
dentro de si.

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Brás Cubas volta de Lisboa e vê a morte da mãe. Mais tarde, Lobo Neves “rouba”
tanto Virgília quanto o cargo político de Brás, deixando-o com as mãos
abanando. Depois, quando descobre que Brás perdeu o cargo, seu pai fica tão
desconsolado que morre. Um dos principais temas de Machado nesse livro é,
de fato, o amor às aparências.

Machado faz uma crítica a como a elite da sociedade da época era composta por
pessoas completamente vazias e covardes, que se moviam apenas por
interesse e eram escravas da opinião pública.

O pai de Brás Cubas fica tão desesperado porque o filho perdeu um cargo
político que, literalmente, a tristeza o abate a ponto de matá-lo.

E assim que o velho morre, Brás e sua irmã Sabina começam a brigar pela
herança; a rusga de ambos chega ao ponto de se separarem e não mais se
falarem até bem depois no livro. É aí que Brás começa a virar um “pegador”,
conquistando várias mulheres. Porém isso não o satisfaz, porque Brás era um
sujeito rico e, muito provavelmente, bonito. Logo, para ele não era muito difícil
conquistar mulheres.

Como não havia nenhum tipo de desafio naquilo, rapidamente a coisa ficava
chata, de maneira que Brás nem lembrava-se dos nomes das mulheres, mas
apenas das iniciais.

Então ele deixava-se viver, ora agitado ora apático, entre a ambição e o
desânimo. Brás via Lobo Neves já deputado, e perguntava-se porque ele mesmo
não tinha esse cargo se era muito melhor do que o outro.

Mas Brás achava-se melhor porque tinha mais brilho intelectual do que o rival?
Por que era mais bem preparado? Ou talvez porque fosse mais interessado no
bem do país?

Não. Brás Cubas era melhor do que Lobo Neves porque era o Brás Cubas.

“O pai de Brás tinha uma visão e uma expectativa sobre o filho que eram
bem fora da realidade.”

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Na verdade não. Os Cubas tinham dinheiro, mas em sua veias não corria sangue
aristocrático. Eram uma família de abastados que tinham enriquecido às custas
do bisavô, ele sim um grande comerciante.

Os filhos e netos eram, portanto, uns inúteis que deram sorte de nascer em
berço de ouro, sem nenhuma relevância real.

Mas tinham, repito, dinheiro, e nós sabemos muito bem, leitor, que com
dinheiro não se precisa de muita coisa a mais, não é?

Logo, as expectativas do pai de Brás não eram irreais: Brás só teve azar porque
Lobo Neves tinha “as costas mais quentes”, por assim dizer.

“Quando me lembrava do Lobo Neves, que era já deputado, e de Virgília, futura


marquesa, perguntava a mim mesmo por que não seria melhor deputado e
melhor marquês do que o Lobo Neves, — eu, que valia mais, muito mais do
que ele, — e dizia isto a olhar para a ponta do nariz... “

A ponta do nariz

Brás Cubas era tão nojento que no capítulo Um primo de Virgília, esse primo, que
era poeta, aparece na casa de Brás mais de uma vez e tenta mostrar-lhe algum
de seus poemas.

Só que Brás também era “poeta” e escrevia lá seus versos.

Por conta disso, Brás fica com inveja do sujeito, que tinha mais visibilidade, pois
possuía admiradores de sua obra, diferentemente de Brás, que era ignorado.

Então o que Brás fazia?

Se recusava terminantemente a deixar que a conversa descambasse para os


poemas de Luís Dutra, pois não queria que este acreditasse que era um bom
poeta.

Brás queria “fazê-lo duvidar de si mesmo, desanimá-lo, eliminá-lo. E tudo isto


a olhar para a ponta do nariz…”

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Repare que tanto neste quanto no capítulo anterior, O recluso, Machado diz que
Brás fazia alguma coisa enquanto olhava para a ponta do nariz. Na primeira
situação, Brás o faz quando inveja Lobo Neves; na segunda, enquanto inveja Luís
Dutra.

A seguir, temos o capítulo A ponta do nariz, que alguns de vocês, alunos,


acharam se tratar de uma digressão inútil, que nada tinha a ver com o restante
do livro.

Mas acontece que tem a ver sim, leitor, e muito.

A filosofia da ponta do nariz é, obviamente, uma tiração de sarro do egoísmo. É a


filosofia do “umbiguismo”; de quem só olha para si mesmo.

Segundo Brás Cubas, quando a pessoa só olha para o próprio umbigo — ou nariz:

“...perde o sentimento das coisas externas, embeleza-se no invisível,


apreende o impalpável, desvincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa
sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito,
e a faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é universal. Cada
homem tem necessidade e poder de contemplar o seu próprio nariz, para o
fim de ver a luz celeste…”

Ou seja, a luz do céu no seu próprio umbigo, leitor.

“...e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz


somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se
contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano não
chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as primeiras tribos.”

Se todo mundo fosse realmente egoísta e olhasse somente para si mesmo, a fim
de alcançar a luz eterna, não haveria mais sociedade pois não existiria mais
sexo. As pessoas nem — desculpe o palavreado — trepariam mais.

Seria uma auto-glorificação perene, com todos olhando para o próprio nariz e,
no fim, alcançando a divindade e a glória da luz sempiterna, pois estariam
vislumbrando a fonte de tudo que é bom e belo: si mesmas.

Esse é o Brás Cubas. O livro inteiro está resumido aqui.

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O amor multiplica a espécie. O nariz subordina a espécie ao indivíduo.

Esse trecho do livro é, também, uma tiração de sarro de algumas filosofias que
pregavam ideias estranhas de subordinar o indivíduo ao universal e ao bem
comum. Machado faz chacota tanto do egoísmo quanto desses filósofos.

O restante do livro é uma exposição e aplicação prática da filosofia do nariz. Como


sei disso?

Logo no capítulo seguinte — Virgília casada — Virgília, que nunca tinha chamado
especialmente a atenção de Brás, ao surgir casada o deixa fissurado, achando-a
lindíssima.

Brás então é chamado por Lobo Neves, marido dela, para um jantar, onde Brás e
Virgília valsam duas vezes, e então:

“Valsamos; e não nego que, ao conchegar ao meu corpo aquele corpo flexível e
magnífico, tive uma singular sensação, uma sensação de homem roubado.”

Veja que Brás Cubas não se apaixona de verdade por Virgília. Brás não a ama. O
que ama é o fato de que Virgília, que era casada e bonita, se sacrificava por ele.

O que Brás sente nesse trecho do livro não é amor, e tampouco paixão. É sim,
a “singular sensação de um homem roubado”.

Brás Cubas raciocina que Lobo Neves lhe roubou a mulher. Como Virgília era
dele, ou deveria ter sido, Brás começa a achá-la magnífica, e ainda confunde isso
com amor.

Ele sai do baile com a ideia de que Virgília é sua, e chega mesmo a dizer e repetir
“é minha!”

E então acontece uma coisa interessante: Brás encontra uma moeda de ouro
na rua.

É minha!

Ao ver a moeda, Brás repete o mantra “é minha” e a embolsa.

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Veja bem, leitor: o sujeito é rico e sai da casa de um amigo pensando em pegar a
mulher dele, dizendo que ela é sua. No meio da rua o sujeito encontra uma
moeda de ouro perdida, a pega, repete “é minha” e a embolsa. Lembre-se de que
o cara é rico.

No dia seguinte, Brás fica com remorso: talvez a moeda fosse de alguém pobre,
afinal de contas, que sem ela não teria como alimentar a família. Ou quem sabe
de alguém rico… Mas não importava.

O que importava é que era errado.

Então Brás envia uma carta às autoridades e pede que encontrem o dono da
moeda. Isso o deixa feliz… durante um segundo.

Brás fica feliz porque fez algo bom, mas quase imediatamente começa a se
julgar. Achava-se bom, talvez até grande, porque tinha devolvido uma moeda. E
assim Brás cria sua filosofia da safadeza.

A pessoa faz merda por um lado — xavecar Virgília — e algo de bom pelo outro
— a devolução da moeda — para, digamos, equilibrar a balança.

Quanto a isso, tenho algo a dizer: mesmo que fosse possível apagar uma coisa
ruim com uma boa, a boa teria que ser mais ou menos do mesmo nível da ruim.

Então perceba, leitor, que Brás Cubas não faz nunca, em nenhuma parte do livro,
quaisquer sacrifícios.

No dia seguinte, Brás encontra um embrulho misterioso na praia, que tinha jeito
de ser algo relevante. Ele dá um chute no embrulho para tentar determinar o que
é, e percebe que o item é pesado.

Brás surrupia o embrulho e nele encontra cinco contos de réis, uma quantia
considerável. Ao encontrar a grana, o que Brás faz? Guarda o dinheiro!

Por que Brás fez isso? Porque agora a situação era diferente: ali havia muito
mais dinheiro do que uma simples moeda.

A noite Brás vai à casa de Lobo Neves, cuja mulher Brás quer tomar para si, e
todos o elogiam pela honestidade no caso da moeda. E todo mundo, para não
ficar atrás, começa a contar histórias de desprendimento.

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Brás fica p*** da vida escutando as histórias, porque ele, e mais ninguém, queria
ser o centro das atenções.

E, voltando ao embrulho, Brás Cubas não precisava do dinheiro pois era muito
rico, mas logo começa a justificar seu achado como se fosse um presente da
Providência. Afinal de contas, por que aquilo teria de estar ali naquele momento?

Só poderia ser por um motivo: porque Deus queria lhe dar aquele dinheiro.

Logo, Brás fica famoso por ser honesto, pois devolveu uma moeda, enquanto,
às escondidas, surrupia cinco contos de réis e a mulher de Lobo Neves.

Ou seja, o nosso protagonista é um perfeito filho da p***.

No caso com Virgília, fica fácil entender que tudo não passava, para Brás, da
empolgação de fazer algo errado, e de vencer outro homem.

Publicamente, Lobo Neves triunfara. Mas pelas costas, Brás, em sua cabeça,
vencia todo dia porque colocava chifres no rival.

E olha, não posso negar que Brás tem, sim, algum afeto por Virgília, mas nunca
consegue se libertar desse egoísmo central e vital que carrega dentro de si.

Mesmo quando Virgília tenta fazer alguma coisa ou determinada situação exija
que Brás faça um sacrifício, nada acontece. Nunca passa pela cabeça de Brás
Cubas, por exemplo, abandonar Virgília para que a mulher pudesse ser feliz com
o marido e o filho.

Não. A única coisa qem que Brás pensa é fugir com Virgília, e que se danem o
marido e o filho dela.

Mas, para Brás era muito cômodo fugir, não é mesmo? O sujeito não tinha família
ou filhos, era um solteirão de trinta e poucos anos de idade, e rico.

O que Brás sacrificaria fugindo? Nada.

O que Virgília sacrificaria fugindo? Tudo.

Brás não pensa em Virgília em nenhum momento, essa é a verdade.

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Quincas Borba

Então Brás encontra Quincas Borba, que está pobre e maltrapilho.

Depois que vai embora, surge a ideia, em Brás, de restaurar o pobre diabo e ser
um herói. E o resultado desse simples pensamento era que:

“…eu começava a sentir um bem-estar, uma elevação, uma admiração de


mim próprio…”

Preciso dizer uma coisa importante, leitor: quando lemos isso, geralmente pen-
samos que Brás é um sujeito baixo e mesquinho, não é mesmo?

Só que o ato de nos julgarmos muito bons por fazer uma coisa minuscula-
mente boa é bem real.

Me lembro de uma vez em que fui a um barzinho pois achei que o Italo Marsili
estaria lá — e no fim não estava — junto a um pessoal do Guerrilha Way, num
happy hour.

Então uma mulher, que parecia ter dinheiro, chegou a até mim, sabendo quem
eu era — pois eu já era “famoso” na época — com os olhos brilhando, uma postura
contrita e um sorriso luminoso, e me disse: “Raul, ontem eu vi um mendigo na
rua e o ajudei… comprei uma marmita para ele. Então fiquei pensando em como
essa gente sofre tanto!”

Leitor, a mulher deu uma marmita para um mendigo, não se aguentou e já


começou a pensar: “Nossa, meu Deus, como eu sou boa porque estou sentin-
do o fato de que os mendigos sofrem!”

No fim das contas, esse “eles sofrem tanto” queria dizer “eu sou muito boa!” A
mulher estava se achando maravilhosamente boa porque dizia para mim,
enquanto se comovia, que os mendigos sofrem muito.

Ela se comovia com seu próprio comover-se. Só que, deixe-me dizer uma
coisa, leitor: isso é puro orgulho.

Se você quer dar esmola, dê, e vá embora. Não saia contando para ninguém, É
por isso que, na bíblia, Cristo mandava que a mão esquerda não soubesse o que
fazia a mão direita.

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Cristo ordenou isso pois sabia que temos uma profunda e enraizada tendência
de estragarmos qualquer bom ato que fizermos.

A proposta

Depois de um tempo como amantes, Vigília começa a ter medo de que seu
marido desconfie de seu caso com Brás Cubas.

Brás então propõe à mulher que os dois fugissem juntos.

Virgília fica perdida, pois não queria abandonar tudo; na verdade não queria
abandonar nem o marido. Existe uma coisa que é incômoda, mas também é real,
leitor: nem todos que traem odeiam o cônjuge. Somos mais complexos que isso,
assim como a Virgília.

Além de ainda gostar do marido, havia outros motivos para Virgília não querer
fugir: as aparências, e seu filho.

Brás Cubas, como nunca pensa nos outros, fica com ódio de Virgília e “e sucessi-
vamente desesperado e frio, disposto a esquecê-la e a matá-la.”

Veja só, leitor! Só porque Virgília não quis jogar TODA sua vida para o alto
fugindo com ele, Brás passou a odiá-la. Que sujeito elevado!

Após muitos vais e vens, começa a ficar difícil para Brás frequentar a casa de
Virgília, pois as pessoas estavam começando a achar aquele negócio esquisito.
Então, como Virgília não quis fugir com Brás, ambos decidem pelo meio-termo:
compram uma casa e a dão para dona Plácida, uma senhora que era criada de
Virgília.

Plácida endeusava Virgília e sabia do caso dos amantes. A propósito, Machado


não deu esse nome à personagem à toa: "Plácida" significa mansa, serena, tran-
quila, quieta.

E é o que Plácida faz: fica quieta. Porém a mulher fica mal com aquela situação,
pois sabia que estava encobrindo nada mais, nada menos que putaria.

Então Brás faz um “grande sacrifício”, dando à Plácida os cinco contos de réis
que tinha achado.

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Brás é tão egoísta e avarento que, nem sendo rico consegue desembolsar algum
dinheiro a fim de sustentar a traição com a mulher de outro. Brás não só acha
que encontrou dinheiro porque Deus lho tinha dado, como pensa que aquele
dinheiro fora dado para que ele encobrisse um adultério.

Brás compra a consciência da velha, e ainda o faz com um dinheiro que não lhe
faria nenhuma falta.

Pois é, leitor… como pode ver, Brás Cubas é um sujeito especialmente baixo e
mesquinho. Isso até nos faz entender porque alguns comentaristas dizem que
Memórias Póstumas é um livro que critica a burguesia. De fato é.

Brás Cubas é um homem privilegiado e rico, que sente que pode fazer o que
quiser por causa de sua condição favorecida.

Se Brás fosse pobre, conseguiria fazer o que fez? Não.

Se fosse pobre, seria assim? Não.

Brás poderia ser um tipo diferente de canalha, talvez. Porém algumas canalhi-
ces só são acessíveis a quem tem recursos. E não confunda isso com o famoso
“porque é pobre é bonzinho”, leitor. Tanto que existe uma cena em que Brás
encontra Prudêncio, o rapaz no qual Brás cavalgava quando era novo, acabando
com as costas de outro negro.

Outro conto

Machado quase nunca escreveu sobre as camadas mais baixas da população.


Só me recordo de um conto em que Machado fala sobre escravos, que se chama
O Pai Contra a Mãe. Neste conto, o autor não pinta os escravos como pessoas
perfeitas.

Essa história, inclusive, apresenta um dilema moral horrível. Trata-se de um pai,


negro e pobre, mas livre, cujo trabalho é caçar escravos fugidos.

Em certa situação esse homem acaba tendo que caçar uma escrava que estava
grávida. O homem caça a mulher para alimentar seu próprio bebê, que estava
morrendo de fome; a escrava, por sua vez, foge porque estava grávida e queria
proteger seu bebê.

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Os dois encontram-se numa posição horrível pois ambos querem proteger


suas crias.

Não há solução fácil aqui. Machado não era um idiota que imaginava que só por
ser pobre a pessoa automaticamente passa a ter virtudes.

Mas também é verdade que alguns vícios e problemas graves só estão


acessíveis a quem tem dinheiro.

Agora voltemos às memórias de Brás.

Consciência

Existe uma cena em que a voz da consciência fala a Brás Cubas sobre dona
Plácida, uma mulher que sofreu a vida inteira e agora era usada como
medianeira de uma traição.

A consciência da mulher fora comprada com uns poucos favores e um dinheiro


que não faria nenhuma falta a Brás.

Assim falou a consciência de Brás. Mas acontece que a consciência não é uma
força soberana, e podemos ignorar seu chamado. Brás chega a responder ao
apelo, mas justifica para si que está protegendo a mulher da miséria, fazendo
algo bom por ela.

E então vemos outra pérola que é parte de sua filosofia da safadeza:

“...o vício é muitas vezes o estrume da virtude.”

O vício aqui nesse contexto é a traição. Mas como essa merda precisava se
perpetuar, Brás teria que fazer algum bem — ajudar a velha.

Então, segundo Brás, fazer besteiras era, no final, o que faria crescer a virtude.

Brás mostra uma retórica das mais desavergonhadas que já vi. E depois de
Quincas Borba a coisa só piora. Brás torce a verdade e diz o inverso dela, de
modo que você ache que o que ele está falando faz muito sentido.

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O convite

Em outra parte do livro, mais a frente, Lobo Neves é chamado para um cargo
político no norte do país — presidente de província — deixando Brás sem Virgília.

Mas Lobo Neves, por algum motivo, convida Brás para ser seu secretário, e
Brás aceita.

Porém, a essa altura todos já sabem do caso de Brás e Virgília. O cunhado de


Brás, com o qual este havia se reconciliado, avisa sobre as fofocas a respeito dos
amantes, e o aconselha a não ir.

Brás Cubas, sempre muito altruísta, não dá a mínima para o conselho e diz que
irá sim.

Mas, no fim das contas, é Lobo Neves quem acaba não indo, pois, supersticioso
como era, não queria partir no dia 13.

Lobo Neves dá uma desculpa a seu superior que não cai bem, e acaba tendo que
mudar de partido mais tarde, por conta de tudo isso.

E fica tudo bem com Brás Cubas: ele continua com Virgília, Lobo Neves perde o
cargo que lhe tinha “roubado” e essa quase separação atiça o amor entre Virgília
e Brás, pois os dois quase perderam um ao outro.

E esse, segundo Brás, é o ápice de sua vida. Seu adversário estava derrotado, e
aquele era o auge da paixão entre ele e Virgília; enquanto isso, Brás vivia com
toda a liberdade de um solteirão.

Vou dizer mais uma vez, para que você grave essa informação: esse é o ápice da
vida do sujeito. Que vida de merda, né?

Daqui para a frente é só ladeira abaixo, leitor.

Ladeira abaixo

Morre Viegas, um parente de Virgília. O velho Viegas fora adulado a vida inteira
por Virgília para que desse alguma coisa de sua herança para o filho dela.

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Viegas morre numa cena patética, se apegando a quatro contos de réis. Esse
trecho mostra como a avareza é uma coisa nojenta e ridícula, que nos cega
completamente: o homem estava às portas da morte, e ainda pensava em
dinheiro.

“— Quarenta contos; não lhe dou por menos. Só os juros... faça a conta dos
juros... Vinham tossidas estas palavras, às golfadas, às sílabas, como se
fossem migalhas de um pulmão desfeito. Nas órbitas fundas rolavam os olhos
lampejantes, que me faziam lembrar a lamparina da madrugada. Sob o lençol
desenhava-se a estrutura óssea do corpo, pontudo em dois lugares, nos
joelhos e nos pés; a pele amarelada, bamba, rugosa, revestia apenas a caveira
de um rosto sem expressão; uma carapuça de algodão branco cobria-lhe o
crânio rapado pelo tempo.”

Ou seja, Viegas era um morto-vivo, uma caveira com a pele amarela, e ainda
barganhava quatro ou cinco contos de réis.

Essa é uma cena forte, principalmente para quem sofre um pouco com o
pecado da avareza.

Depois de um tempo, Virgília engravida e Brás fica se sentindo muito macho por
conta disso, enquanto imagina o bebê de mil formas diferentes; até que Virgília
perde a criança.

Após esse acontecimento, Lobo Neves recebe uma carta anônima de denúncia,
acusando os dois, Brás e Virgília, pela traição. Por alguns instantes Lobo Neves
fica mudo, encarando Brás Cubas com um olhar assassino, porém no final
apenas age de modo frio, e Virgília faz tudo o que estava ao seu alcance para
enganá-lo.

E então, quando Virgília conta o que fez para enganar Lobo Neves, pasme, leitor…
Brás Cubas fica escandalizado pois não vira nenhum remorso na mulher,
nenhum arrependimento, nenhuma saudade, e fica se sentindo mal! Que
coitadinho, né?

Virgília fica possessa e diz que Brás não merecia os sacrifícios que ela lhe fazia.
Brás se aproxima dela para lhe dar um beijo na testa, e Virgília se afasta, como se
fosse o beijo de um defunto.

Brás acaba conseguindo reverter a situação ao falar palavras de conforto para


Virgília. Isso faz com que volte para casa feliz, pois, mais uma vez, a quase
separação atiçou sua paixão.
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Depois dessa cena temos mais alguns exemplos de egoísmo na história, e o


mais marcante talvez seja quando Brás conta o caso de um certo político de um
outro país que, durante um mês, havia ficado no Brasil em missão diplomática.

Enquanto estava por aqui, o tal sujeito quase conseguiu conquistar Virgília. Mas
o homem não foi capaz de “roubá-la” de Brás a tempo porque teve que voltar a
seu país, a Dalmácia, por conta de uma guerra sangrenta que eclodira por lá.

E Brás fica feliz.

Afinal a guerra — gente morrendo e vidas sendo destruídas — tinha tirado uma
pedrinha do sapato de seu sapato. Dane-se que tem uma guerra acontecendo,
certo? O que importa é que o rival foi embora. E tem mais: a Dalmácia fica tão
longe que nem dava para sentir nada a respeito.

E isso me leva a outro insight: é muito difícil sentirmos alguma coisa se ela não
está próxima de nós. Isso acontece com pessoas que não conhecemos;
nesse ponto não estamos tão distantes assim de Brás, infelizmente.

Humanitismo

Muita gente me perguntou sobre o Humanitismo.

Não vou entrar em muitos detalhes, mas digo o seguinte: o Humanitismo é uma
sátira de Machado de Assis.

O autor está tirando sarro de várias filosofias, principalmente de duas:

Positivismo: filosofia que pregava a crença na perfeição do homem,


alcançada pelo progresso material e das ciências;
Darwinismo: filosofia que pregava — ao menos de modo popular — a
sobrevivência do mais forte.

Repare que a filosofia de Brás é, por assim dizer, uma espécie de darwinismo
social.

Brás não tem pudor quanto a ferrar os outros porque é mais forte, e em sua
cabeça é justo que os mais fortes ferrem os mais fracos. Para Brás é assim que
as coisas são.

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Por exemplo, quando compra dona Plácida e sua consciência quer acusá-lo, o
que Brás usa para se justificar? “Eu a estou salvando da miséria.”

E, voltando ao Humanitismo, o que faz Quincas Borba?

Quincas inventa uma forma eloquente e absolutamente vazia de distorcer a


moral para justificar os erros dos outros, quaisquer que sejam. Segundo ele, o
homem tinha mais é que se adorar a si mesmo, porque cada homem era uma
Humanitas reduzida.

Mas como assim, Raul?

É o seguinte, leitor: tudo o que acontece é Humanitas, um coletivo humano. Logo,


não existem indivíduos, e sim a Humanitas, que é uma força presente em todos
nós; portanto, a Humanitas justifica tudo o que qualquer pessoa faça.

Então digamos, por exemplo, que fulano assassine o cicrano e arranque-lhe os


membros: isso é apenas a Humanitas corrigindo-se a si própria. É, em suma, o
mais fraco se ferrando pelo mais forte, numa balança que seu auto equilibra.

Peguemos, também, o exemplo da inveja. De acordo com Quincas a inveja é uma


coisa boa, pois é uma “admiração que luta”. Luta para destruir o que o outro tem.

E lutar é a função do gênero humano; estamos aqui para isso. Logo, a inveja é
boa.

Então veja, leitor, que para cada inversão Quincas usa uma justificativa diferente,
e são todas estúpidas e vazias. Mas Quincas é eloquente, e tudo o que diz justifica
as merdas que Brás apronta.

E o frango que Quinca Borba sugava enquanto explicava tudo isso a Brás Cubas?
Aquele frango só tinha chegado à mesa de Quincas por meio de um navio; esse
navio fora construído através do esforço conjunto de um monte de gente:
artesãos, marceneiros, lenhadores, marinheiros, comerciantes etc.

Ou seja, toda a civilização tinha se organizado para colocar, na mesa deles,


aquele frango que Quincas sugava com tanto ardor.

E Quincas segue fazendo um monte de sofismas vagabundos. E com isso


Machado faz outra crítica: as elites não gostam de ouvir algumas verdades. Os
pobres também não gostam, só que estes não têm recursos.
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E os pobres têm uma coisa que os ricos não possuem, que lhes facilita um pouco
a vida moral: privações.

Os pobres sofrem. Sofrem na pele. Para os pobres o mundo é sofrimento de


modo muito mais direto do que para os ricos.

Se um pobre escuta essa filosofia, de que a sociedade inteira se organizou para


colocar o frango à sua mesa, ele vai dizer: “Ué, eu consigo comer frango uma vez
por mês, me ferrando e trabalhando como um condenado. Como assim a
sociedade e o mundo se organizaram para mim? Não!”

Mas para o rico isso soa muito lógico e natural, pois essa é sua experiência de
mundo, num geral: as coisas se organizam para ele, e os fracos existem para os
mais fortes.

Então o Humanitismo não é uma filosofia que tenha alguma solidez ou seja algo
bem pensado, leitor. É apenas uma série de explicações fajutas para explicar
todo e qualquer erro.

Machado está dizendo o seguinte: Quincas Borba e Brás Cubas são dois idiotas.
São ricos, têm poder e influência, mas não passam de imbecis. Estão abaixo de
sua situação. São burros, no sentido mais estrito do termo.

Brás e Quincas se recusam a enxergar a verdade.

A burrice, leitor, muitas vezes não é um problema intelectual, e sim moral.

É por isso que há pessoas que, mesmo analfabetas e sem qualquer educação
formal, ainda são chamadas por nós de sábias.

Em contrapartida, há muita gente educada, culta e que estudou nas melhores


escolas e universidades, e ainda são palhaços, como Brás Cubas e Quincas
Borba.

O estudo por si mesmo não faz nada por você, leitor. Tem que haver uma
progressão moral junto no processo.

É por isso que todo grande filósofo exigia algumas coisas práticas de seus
discípulos, a fim de formar sua vida moral, e não apenas intelectual.

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Ladeira abaixo (pt.2)

O que acontece depois é muito simples. Lobo Neves acaba se reconciliando com
seu partido e vai subindo de escalão, até o ponto em que Virgília torna-se
baronesa.

Virgília , diga-se de passagem, também tinha muita ambição — assim como Brás
Cubas — e desejava ser nobre.

Depois desses acontecimentos, Brás perde Virgília.

Agora Lobo Neves é presidente de província, e Virgília, baronesa. Mas e Brás?

Brás fica com as mãos abanando, sem cargo político, sem mulher e filhos; sem
coisa nenhuma.

Sua irmã ainda lhe arruma uma moça nova, bonita e legal, mas a garota morre de
febre amarela antes do casamento.

Brás perde o filho, a amante, o cargo e a noiva. Antes perdera Marcela, o pai e a
mãe. Então perceba que a vida do sujeito é uma merda.

No final do livro, Brás encontra Marcela enquanto dava esmolas, já que fazia
parte de uma ordem que praticava obras de caridade. Marcela está num hospital,
à beira da morte, velha e decrépita, sem nenhum rastro de sua beleza de
antigamente.

Brás a vê morrendo.

Em outro momento, Brás encontra Eugênia, a moça que rejeitara só porque era
coxa. No encontro, Brás relata que Eugênia continuava coxa, porém triste.

Mas Eugênia tinha orgulho. Quando os dois se encaram, a mukher sustenta o


olhar de Brás, e não fica com dó ou vergonha de si mesma. Brás Cubas,
percebendo o orgulho da mulher, não lhe dá esmola.

O curioso aqui é que, ao ver o fim da vida dessas duas mulheres, por fora
acabamos por achar que Brás estava por cima, já que, afinal, estava dando
esmolas às duas.

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Mas se você olhar com um pouquinho mais de penetração psicológica, vai


perceber que a diferença ali é só externa.

Brás Cubas estava EXATAMENTE na mesma posição das duas mulheres. A


única diferença é que tinha dinheiro.

Brás estava sozinho, ficando velho e decrépito. Não tinha ninguém que o
amasse. Não possuía família. Não nutria a crença em algo superior. Não tinha
religião, e nem uma filosofia moralmente sólida.

Brás Cubas era um coitado.

Portanto, Marcela e Eugênia são imagens do próprio Brás. É como se Brás se


olhasse no espelho e a feiura de Marcela fosse um reflexo de sua própria feiura
interna.

Mesmo com todas as suas roupas bonitas e acessórios caros, por baixo
daquilo, Brás ainda era um velho decrépito, exatamente como Marcela.

A única diferença é que Brás Cubas escondia o que Marcela, forçosamente,


mostrava. E é justamente porque tinha como esconder, que no final do livro Brás
não faz nenhum mea culpa ou qualquer reflexão sobre as coisas que lhe
aconteceram. Brás nem cogita a possibilidade de que qualquer acontecimento
ruim que lhe sobreveio fosse de algum modo, responsabilidade sua. Diz apenas
o seguinte:

“Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do


emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é
que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com
o suor do meu rosto.”

Ou seja, Brás reconhece que algo de bom teve: era rico.

“Mais; não padeci a morte de Dona Plácida…”

Não morreu miserável.

“…nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras,


qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e,
conseguintemente que saí quite com a vida.”

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Em suma, nem faltou nem sobrou. Teve coisa boa e coisa ruim e Brás saiu quite
com a vida.

“E imaginará mal;”

Não imaginamos não, Brás!

“...porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno


saldo…”

Esse pequeno saldo é, para Brás, algo positivo.

“...que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos,


não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”

Egoísmo e cegueira

Preste atenção à ultima frase do livro, leitor.

Brás Cubas é totalmente cego e egoísta. Se apega tanto à sua necessidade de


não sair por baixo que ressignifica a morte do próprio filho.

Para ele, no fim, foi algo bom a morte da criança, pois dessa forma não
precisaria transmitir, ao próprio filho, o legado da miséria humana.

Brás desce ao nível mais baixo nesse final: louva, glorifica e ressignifica como
algo bom — como a única coisa que desequilibrou a balança em seu favor na
hora da morte — o fato de seu filho morrer ainda no ventre da mãe.

Esse é o nível de Brás Cubas, leitor. Esse é o nível de um sujeito que quer nos
ensinar como viver.

Esse é o nível de sua “sinceridade”. Mas, como vimos na primeira aula, nem se
quisesse Brás Cubas conseguiria ser sincero conosco, porque nunca o tinha sido
consigo mesmo.

A sinceridade é uma conquista, algo que vamos ganhando e aperfeiçoando com


o tempo. Quanto mais sinceros somos com nós mesmos, mais conseguimos
perceber o quanto mentimos para nós mesmos.
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Em suma, nem faltou nem sobrou. Teve coisa boa e coisa ruim e Brás saiu quite
com a vida.

“E imaginará mal;”

Não imaginamos não, Brás!

“...porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno


saldo…”

Esse pequeno saldo é, para Brás, algo positivo.

“...que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos,


não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”

Egoísmo e cegueira

Preste atenção à ultima frase do livro, leitor.

Brás Cubas é totalmente cego e egoísta. Se apega tanto à sua necessidade de


não sair por baixo que ressignifica a morte do próprio filho.

Para ele, no fim, foi algo bom a morte da criança, pois dessa forma não
precisaria transmitir, ao próprio filho, o legado da miséria humana.

Brás desce ao nível mais baixo nesse final: louva, glorifica e ressignifica como
algo bom — como a única coisa que desequilibrou a balança em seu favor na
hora da morte — o fato de seu filho morrer ainda no ventre da mãe.

Esse é o nível de Brás Cubas, leitor. Esse é o nível de um sujeito que quer nos
ensinar como viver.

Esse é o nível de sua “sinceridade”. Mas, como vimos na primeira aula, nem se
quisesse Brás Cubas conseguiria ser sincero conosco, porque nunca o tinha sido
consigo mesmo.

A sinceridade é uma conquista, algo que vamos ganhando e aperfeiçoando com


o tempo. Quanto mais sinceros somos com nós mesmos, mais conseguimos
perceber o quanto mentimos para nós mesmos.
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E o inverso também é verdade: quanto mais mentimos para nós mesmos,


menos conseguimos ser sinceros com nós mesmos e menos percebemos
nossas mentiras.

É por isso que, mesmo quando tenta ser sincero, Brás Cubas só conta mentiras.

Na boca do cínico e do insincero até a verdade se transforma em mentira.

O triste fim

Brás Cubas morre sem redenção e sem nenhuma iluminação moral no além;
continua sendo o mesmo miserável que fora em vida.

Só que na morte, Brás não tinha mais dinheiro e as coisas boas com as quais
afogava sua consciência em vida: sua chácara bonita, seus criados, sua comida
farta e gostosa; as mulheres que lhe corriam atrás, o teatro, as viagens para a
Europa, a admiração alheia.

Agora Brás só tinha o escuro do além.

Só que Brás é tão egoísta e obstinado que mesmo em tal situação não consegue
dizer que sua vida fora um fracasso.

O último recurso que usa para dizer que sua vida não fora um fracasso é dizer
que seu filho tinha morrido.

“Meu filho morreu. Ótimo! Então minha vida não foi um completo fracasso.”

Consegue perceber o peso disso, leitor?

Se você leu Memórias Póstumas e se sentiu mal, esgotado e triste; ou sentiu


raiva de Brás Cubas, saiba que é exatamente isso que o livro quis transmitir.

Brás Cubas é um homem desprezível; não há outro adjetivo melhor que esse
para descrevê-lo.

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Conclusão

Creio que agora deu para entender que a história de Brás estar no além e
conseguir ser totalmente sincero por causa disso é pura balela, não é, leitor?

A verdade é que embora tente e ache que é sincero, Brás não consegue.

E você, leitor, tem a oportunidade de descobrir, no espaço entre o que Brás acha
ser verdade e o que é verdade de fato, a distorção de tudo.

Para tudo Brás tem uma resposta na ponta da língua: uma justificativa.

Em vida, com riqueza, influência e eloquência, era fácil aplicar isso.

Na morte… aí a coisa muda.

Brás escreve o livro do além, conta sua história e usa sua eloquência para
enganar os vivos. Então veja que sua intenção não é nos iluminar de alguma
forma especial para que tenhamos uma vida melhor.

Brás, no fim, só deseja propagar a filosofia de seu próprio nariz.

Encerramento da aula

Leitor, essa foi a segunda aula sobre Memórias Póstumas!

Espero que você tenha gostado e que o conteúdo tenha sido útil.

Nosso próximo livro do clube será melodramático e bombástico, mas


provavelmente menos pesado do que Memórias Póstuma: O Morro dos Ventos
Uivantes.

Valeu por tudo, e um abraço do Mestle!

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