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Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (Ibilce)


Curso de Licenciatura em Letras (Integral)
Disciplina: Narrativa Brasileira II
Docente: Profa. Me. Amanda Miotto Muniz Castro
Discentes: Guilherme Milhomem Domene; R.A. 201043891;
Renan Gonçalves Rocco; R.A.: 201042193.

UM ENCONTRO COM A IRONIA MACHADIANA: UMA RESENHA


CRÍTICA

ASSIS, Machado de. Um encontro. In: ASSIS, Machado de. Obra Completa. vol. I. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 67-69.

GUILHERME MILHOMEM DOMENE


Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (IBILCE)
Universidade Estadual Paulista

RENAN GONÇALVES ROCCO


Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas (IBILCE)
Universidade Estadual Paulista

Este trabalho tem por objetivo resenhar criticamente o capítulo “Um encontro”,
presente na obra “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Publicado como
livro em 1881, o romance apresenta um narrador que conta toda a trajetória de sua vida após a
própria morte, autointitulando-se defunto autor com a intenção de deixar clara a ordem dos
acontecimentos – primeiro se fez defunto, depois, autor. Para Schwarz (2000), “O
espevitamento desta abertura, em que o impossível está dito em primeira pessoa, é grande.
Parece claro que a situação de “defunto autor”, diferente de “autor defunto”, sendo uma
agudeza intencionalmente barata, aqui não desmancha a verossimilhança realista, embora a
desrespeite”. A sutil ironia de Machado é um traço notável em suas obras e aparece bastante
em Memórias póstumas, pelo uso de temas como as classes sociais e a escravidão, a fim de
ironizar os privilégios da elite da época. No capítulo “Um encontro”, por exemplo, o
personagem Brás Cubas encontra-se com dois personagens conhecidos que se divergem em
identidade de classe, mas também que se relacionam, tanto entre si quanto com o
protagonista. A construção desse encontro é feita por meio de diversos recursos e
procedimentos literários, sendo muito presente, por exemplo, o emprego da volubilidade –
“Neste sentido a volubilidade é, como propusemos no início destas páginas, o princípio
formal do livro” (SCHWARZ, 2000). No decorrer da narrativa, o defunto autor é definido
pela volubilidade, ou seja, definido por “desdizer e descumprir a todo instante as regras que
ele próprio acaba de estipular” (SCHWARZ, 2000).

O 59º capítulo do romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de


Assis, recebe o título de “Um encontro” por apresentar ao leitor o encontro do personagem
Brás Cubas com alguma figura de seu passado. No capítulo em questão, o protagonista já é
um homem da alta classe da sociedade, herdeiro de uma prestigiada família do Rio de Janeiro,
e possui diversos privilégios sociais. Brás é apresentado como uma pessoa próxima ao
ministro Lobo Neves, um homem que provém a Brás privilégios políticos, enquanto está
sendo traído secretamente pela esposa com o próprio Brás Cubas.

O primeiro encontro que ocorre no capítulo 59 é dado pela saída de Brás da casa do
ministro. Brás não se encontra de fato com o personagem Lobo Neves, pois o encontro
referido trata-se da identificação de Brás com o personagem, enquanto considera assumir o
seu cargo profissional. Lobo Neves e Brás Cubas pertencem à mesma classe, eles cresceram
juntos no mesmo contexto social. No entanto, aos olhos de Brás Cubas, Lobo Neves alcançou
uma posição social mais elevada do que ele, já que seu antigo colega se tornou ministro de
Estado e roubou a sua amada.

O protagonista, então, apresenta-se atraído pela ideia de tomar o cargo de Neves e


indaga-se: “Por que não serei eu ministro?” (ASSIS, 1994) num tom soberbo. A reflexão
sobre a ideia é relacionada à Virgília, esposa de Lobo Neves e amante de Brás Cubas, já que o
casamento em que ela está inserida não passa de um acordo que envolve poder público e ela
poderia gostar de ver Brás neste cargo. Nota-se que o protagonista não tem um real interesse
em se tornar ministro, sendo suas únicas motivações: a possibilidade de interesse de Virgília e
a tomada de cargo de Lobo Neves do ministério. A partir dessa perspectiva, pode-se
interpretar tal vontade como um ato de vingança sobre o ministro, já que este lhe tirou
primeiro o amor de sua vida, Virgília. Brás Cubas demonstra sentir, em relação ao lobo, um
misto de inveja e indignação, o qual possibilita a leitura de que ele se sente ao mesmo tempo
superior e inferior ao ministro.
As reflexões acerca do cargo de ministro cessam a partir da aparição de um rosto
conhecido, ainda que Brás não o tenha identificado no primeiro contato. O defunto autor
apresenta, então, uma descrição pejorativa sobre a figura conhecida, a qual enfatiza
características que denotam miséria:

Imaginem um homem de trinta e oito a quarenta anos, alto, magro e pálido. As


roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro de Babilônia; o chapéu era
contemporâneo do de Gessler. Imaginem agora uma sobrecasaca mais larga do que
pediam as carnes, - ou, literalmente, os OSSOS da pessoa; a cor preta ia cedendo o
passo a um amarelo sem brilho; o pêlo desaparecia aos poucos; dos oito primitivos
botões restavam três. As calças, de brim pardo, tinham duas fortes joelheiras,
enquanto as bainhas eram roldas pelo tacão de um botim sem misericórdia nem
graxa. Ao pescoço flutuavam as pontas de uma gravata de duas cores, ambas
desmaiadas, apertando um colarinho de oito dias. Creio que trazia também colete,
um colete de seda escura, roto a espaços, e desabotoado.

(ASSIS, 1994)

Percebe-se, a partir do encontro dos dois personagens, que há um desdém por parte de
Brás Cubas sobre o seu conhecido e, também, uma sensação de reconhecimento. No romance,
o homem pálido aproxima-se de Brás e estabelece contato: “Aposto que não me conhece,
Senhor Doutor Cubas?”. Foi assim, a partir da confirmação de que não reconhecia sua face,
que o homem se apresentou como “Borba, o Quincas Borba”. A apresentação pelo sobrenome
denota que ele espera ser reconhecido pelo sobrenome antes do próprio nome, característica
essa de herdeiros de famílias da alta sociedade. Apesar de não fazer mais parte dessa classe,
Borba mantém comportamentos da elite, como se apresentar pelo sobrenome e reagir em
latim – “In hoc signo vinces! bradou.” (ASSIS, 1994).

Neste momento, pode ser notado o contraste de tratamento entre os personagens que
aparecem neste capítulo: Lobo Neves e Quincas Borba, um ministro e um mendigo. Ambos
vieram do mesmo meio social de Brás Cubas, tendo estudado no mesmo colégio e crescido
juntos. Apesar disso, Lobo Neves ocupa um renomado cargo público e pertence à alta classe
da sociedade, enquanto Quincas Borba encontra-se em situação de pobreza, fazendo uso de
roupas velhas e lidando com situações de fome. Brás Cubas encara Lobo Neves como uma
figura digna de respeito, ainda que não encare o ministro como uma pessoa superior a ele. Já o
Borba, por sua vez, é recebido com nojo e lástima. Quincas Borba é um personagem que
perdeu a sua fortuna e a sua posição social, tornando-se, como o próprio diz, um mendigo. A
repulsa de Brás Cubas sobre o colega de infância é explicitada no texto:

O Quincas Borba! Não; impossível; não pode ser. Não podia acabar de crer que essa
figura esquálida, essa barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que
toda essa ruína fosse o Quincas Borba. E era. Os olhos tinham um resto da expressão
de outro tempo, e o sorriso não perdera certo ar escarninho, que lhe era peculiar.
Entretanto, ele suportava com firmeza o meu espanto.
(ASSIS, 1994)

O encontro de Brás Cubas e Quincas Borba destaca a miséria financeira em que se


encontra o antigo colega de colégio de Brás, mas também destaca o caráter miserável do
protagonista. Brás Cubas se vê numa posição em que é preciso dar a Quincas alguma quantia
de dinheiro, optando por entregar-lhe a nota menos limpa de cinco mil réis de sua carteira. O
contraste do desdém de Brás é retratado pelo entusiasmo e cobiça por parte de Quincas ao
receber a cédula. Entretanto, nota-se a miséria dúbia de Quincas Borba quando ele trata com
veneração a nota de cinco mil réis e, logo em seguida, recusa a oportunidade de trabalhar. O
personagem responde que não tem interesse em trabalhar, pelo fato de ser uma abjeção
cômica e triste, fazendo com que Brás reaja com desdém e decida sair de cena.
A partir da constatação do novo panorama social de Borba, Brás deixa de enxergá-lo
como um semelhante da alta classe e enxerga nele a necessidade de trabalho. A perspectiva
elitista de ambos personagens sobre trabalho é a de que esse diminui e humilha o homem, de
que torna o valor do indivíduo responsabilidade do proprietário – “Faltando fundamento
prático à autonomia do indivíduo sem meios — em conseqüência da escravidão o mercado de
trabalho é incipiente —, o valor da pessoa depende do reconhecimento arbitrário (e
humilhante, em caso de vaivém) de algum proprietário” (SCHWARZ, 2000). Para tanto,
Borba, que evidentemente mantém comportamentos e perspectivas elitistas, enxerga o
trabalho da mesma forma e por isso recusa a oportunidade. Pode-se fazer a leitura de que ele
prefere continuar na vida de mendigo, vivendo a filosofia da miséria, do que se tornar um
escravo.
Durante o romance, Brás Cubas também apresenta um desdém pelo ato de trabalhar.
No entanto, não hesita em sugerir o trabalho como forma de salvação para Quincas Borba.
Nota-se a ironia tratada no texto ao pontuar implicitamente o trabalho como um ato edificante
aos olhos do protagonista, pois este, em tese, nunca trabalhou. Brás é apenas um herdeiro de
trabalho alheio, mas não reconhece isso e exerce julgamento sobre o outro que não trabalha,
assim, prova-se que a volubilidade em Memórias Póstumas consiste em “desdizer e
descumprir a todo instante as regras que ele próprio acaba de estipular” (SCHWARZ, 2000).
O atrevimento de Brás Cubas em sugerir trabalho a Borba, como saída para sua situação,
caracteriza o tipo social do protagonista. Essa transposição irônica e, por conseguinte, cômica,
é um exercício de volubilidade do autor para o personagem, “o que lhe disfarça o lado gritante
da desfaçatez, ao mesmo tempo que aprofunda o seu tipo social” (SCHWARZ, 2000).
O procedimento literário de volubilidade também é notável na relação entre Lobo
Neves e Brás Cubas. A relação desses personagens inclui uma dicotomia de inveja e desprezo,
considerando que ao mesmo tempo em que Brás Cubas deseja estar no lugar de Lobo,
especialmente pela autoridade que ele possui enquanto ministro de estado e por sua relação
com Virgília, Brás se vê numa posição de superioridade em relação ao Lobo. Percebe-se a
inveja e o desprezo no trecho: “E então apareceu o Lobo Neves, um homem que não era mais
esbelto que eu, nem mais elegante, nem mais lido, nem mais simpático, e todavia foi quem me
arrebatou Virgília e a candidatura” (ASSIS, 1994, p.54). Brás Cubas apresenta convicção de
que é melhor do que Lobo Neves e de que poderia exercer seu papel com mais competência,
como prova o trecho: “perguntava a mim mesmo por que não seria melhor deputado e melhor
marquês do que o Lobo Neves, - eu, que valia mais, muito mais do que ele, - e dizia isto a
olhar para a ponta do nariz...” (ASSIS, 1994, p.58). O fato de Brás invejar a posição de um
homem inferior, como é Lobo aos seus olhos, pode ser categorizado como mais um exemplo
de volubilidade no texto, mas, desta vez, como um recurso de autoafirmação por parte do
narrador, visto que “a volubilidade inclui sempre algum tipo de desrespeito, e uma
complementar satisfação de amor - próprio, tornando onipresentes no universo narrativo as
notas do inadmissível'e da afronta.” (SCHWARZ, 2000).
Nota-se, por fim, que a relação entre os personagens do capítulo possui traços de
ironia. A riqueza de Brás é irônica tanto em comparação a Lobo Neves, que diferentemente
dele trabalhou e conquistou seu renomado cargo, quanto em comparação a Quincas Borba,
que carrega a miséria financeira, mas destaca a miséria virtuosa do protagonista. Brás Cubas
almeja estar no lugar de Lobo Neves, mas não se arrisca a enfrentar o mesmo que ele para
alcançar os seus objetivos. A filosofia da miséria a que se refere Borba no fim do capítulo
concretiza a ironia do narrador, pois ambos personagens são adeptos dessa filosofia: a miséria
de virtudes. Assim como Quincas Borba está insatisfeito e, contraditoriamente, confortável
em sua posição social, Brás Cubas não consegue abandonar a filosofia da miséria para mudar
de vida.
REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Marquesa, Porque Eu Serei Marquês. In: ASSIS, Machado de. Obra
Completa. vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 53-54.

ASSIS, Machado de. O Recluso. In: ASSIS, Machado de. Obra Completa. vol. I. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 58-59.

SCHWARZ, Roberto. UM MESTRE NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: Machado de


Assis. São Paulo: Editora 34 Ltda., 2000.

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