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O DESPREZO PELA HUMANIDADE NO POEMA “ARDA DE RAIVA

CONTRA MIM A INTRIGA”, DE JUNQUEIRA FREIRE


Marina Campanhã Cury Sotine
Renan Gonçalves Rocco

Arda de raiva contra mim a intriga


Junqueira Freire

Arda de raiva contra mim a intriga,


Morra de dor a inveja insaciável;
Destile seu veneno detestável
A vil calúnia, pérfida inimiga.

Una-se todo, em traiçoeira liga,


Contra mim só, o mundo miserável.
Alimente por mim ódio entranhável
O coração da terra que me abriga.

Sei rir-me da vaidade dos humanos;


Sei desprezar um nome não preciso;
Sei insultar uns cálculos insanos.

Durmo feliz sobre o suave riso


De uns lábios de mulher gentis, ufanos;
E o mais que os homens são, desprezo e piso.

A presente dissertação tem como objetivo desenvolver uma análise descritiva e


interpretativa do poema “Arda de raiva contra mim a intriga”, do poeta brasileiro, inserido na
Segunda Geração do Romantismo, Junqueira Freire. O poema em análise carrega um intenso
mal estar do eu lírico para com certos comportamentos do ser humano, como a intriga, a
inveja e, sobretudo, a vaidade dos homens, tendo como tema principal justamente o conflito
entre a ojeriza do eu lírico diante da vileza humana. Pode-se perceber essa manifestação no eu
lírico por razão da protagonização de um conflito com o mundo e com os homens, os quais
são descritos no poema como invejosos, traiçoeiros e miseráveis. Diante disso, descontente e
pessimista – característica marcante do período ultrarromântico – com o mundo em que está
inserido, o eu lírico despreza, insulta e ri das causas de seu descontentamento.

O poeta, de acordo com a biografia disponível no site da ABL (Academia


Brasileira de Letras), ingressou na Ordem dos Beneditinos aos 19 anos e tornou-se Frei Luís
de Santa Escolástica Junqueira Freire no Mosteiro de São Bento de Salvador. No entanto,
após conflitos existenciais provocados pela vida de sacerdócio, afastou-se da ordem e saiu do
mosteiro. Após obter a secularização, publicou uma coletânea de versos fortemente
autobiográfica chamada "Inspirações do Claustro", e ao contrário do que o título sugere, a
obra expressa um traço de descontentamento com religião – não do que é divino, mas das
obras humanas. Assim, a tensão amarga do poema reflete os incômodos que atormentaram o
poeta em vida. Tendo feito parte da Segunda Geração do Romantismo no Brasil, notamos, ao
longo do poema, a predominância de sentimentos como a melancolia e de visões de mundo
egocentradas, além de um pessimismo diante da humanidade que se intrinca nas produções
ultrarromânticas de modo geral e, portanto, no poema a ser estudado.

“Arda de raiva contra mim a intriga” é um poema que possui forma fixa e regular.
Trata-se de um soneto petrarquiano, composto por 14 versos distribuídos em 04 estrofes,
sendo dois quartetos e dois tercetos. A maioria das estrofes têm versos de 10 sílabas sonoras,
portanto, são estrofes simples. Os versos são predominantemente decassílabos heroicos, ou
seja, com o esquema rítmico 10 (6,10). Há, neste soneto, variação do esquema rítmico entre
E.R. 10 (6, 10) e E.R. 10 (5, 9). Apesar da variação rítmica, predomina a regularidade dos
versos decassílabos.

Percebe-se, no poema, que as rimas dos quartetos se organizam pelo esquema


ABBA (interpoladas e emparelhadas) e as rimas dos tercetos organizam-se, respectivamente,
pelos esquemas CDC e DCD (rimas interpoladas e isoladas). Em se tratando de critérios
fonéticos, as rimas caracterizam- se como perfeitas por rimarem consoantes e vogais. Além
disso, o valor das rimas varia entre os tipos ricas, rimas de classes gramaticais diferentes, e
pobres, rimas de classes gramaticais semelhantes, sendo paroxítonas todas as palavras rimadas
no poema.

Note-se que o eu lírico do poema manifesta claramente um forte desprezo e raiva


nas duas primeiras estrofes, expressando insatisfação por meio de uma enumeração de
imposições à intriga – tais imposições podem ser comparadas às orações religiosas por causa
do seu formato imperativo e inverso à ordem natural da sentença (hipérbato).

Em se tratando da 1ª estrofe, deparamo-nos com uma personificação desses


comportamentos negativos - intriga e inveja - que o sujeito poético tanto despreza. Como que
as chamando para algum tipo de “desafio moral”, o eu lírico estabelece um diálogo com tais
personificações, como que para convocá-las para testá-lo e, dessa maneira, atestar sua aversão
e conflitos internos. A inveja também sofre personificação, sendo colocada como “inveja
insaciável” no poema, escolha essa que auxilia a caracterização personificada da intriga. No
terceiro verso, por sua vez, ocorre o uso da assonância com a consoante S – e, de forma
interpretativa, tendo em vista o trecho “Destile seu veneno detestável” (FREIRE, 2020, s./p.),
a repetição da sonoridade que a consoante S causa pode ser associada ao som de cobras,
conhecidas por possuírem veneno em suas presas. O veneno, a partir dessa concepção, pode
representar a intriga, a inveja e as calúnias da sociedade que contaminam os homens. Em
seguida, há o complemento: “A vil calúnia, pérfida inimiga.” (FREIRE, 2020, s./p.). Portanto,
além de detestável, considerando a interpretação de veneno como o modo da humanidade de
agir, o “veneno” possui caráter indigno, ordinário e falso.

Na 2ª estrofe, por sua vez, nota-se que o primeiro verso representa uma possível
antítese, na qual se opõe a união à traição. Em se tratando da interpretação do poema, aqui
pode ser percebida uma alusão à sociedade humana na visão pessimista e, até mesmo,
egocêntrica do autor, influenciada pela ótica ultrarromântica. Percebe-se, ainda, a mesma
proposta estabelecida na primeira estrofe, do tom de desafio por parte do sujeito poético para
com essas vilezas.

A primeira e a segunda estrofe formam, no poema, uma enumeração das críticas


do eu lírico articuladas com seu caráter amargo e irado. Ele atesta comportamentos e emoções
como intriga, raiva, inveja insaciável, calúnia, traição, miséria e ódio, aproximando-os
sintaticamente de forma a concentrar essas características e, de certa maneira, concentrar
também o mal-estar que representam, a fim, talvez, de intensificar seu próprio mal estar e dos
interlocutores. Entretanto, até o momento, não havia, de fato, um alvo físico a quem o eu
lírico direcionava sua aversão. É a partir da terceira estrofe que podemos identificar o alvo
desses proferimentos.

Em se tratando da 3ª estrofe, nota-se que todos os versos se iniciam pelo verbo


“saber” flexionado no presente, o qual marca uma repetição do mesmo termo no início dos
versos, assim construindo uma anáfora. Há a intenção do eu lírico de expressar o
conhecimento que lhe pertence e que é usado diante dos elementos que lhe causam ira. No
primeiro verso, o sujeito lírico exprime um senso de superioridade diante da vaidade
mundana. No segundo verso, há o trecho “Sei desprezar um nome não preciso” (FREIRE,
2020, s./p.), o qual pode ser, interpretativamente, uma alusão à humanidade como um todo;
em outras palavras, o desprezo que o eu lírico sente pode ser direcionado a qualquer
indivíduo, sem a necessidade de identificação, visto que, como o corpo do poema sugere, a
culpa dessas vaidades e intrigas é da humanidade em sentido geral. Pode-se perceber que, nas
duas primeiras estrofes, o eu lírico destila toda a sua ira para alguém que projeta intriga e
manifesta uma inveja insaciável e veneno detestável, e o conflito é esclarecido na terceira
estrofe, em que percebe- se a oposição do eu lírico à humanidade. O eu lírico ainda coloca no
terceiro verso da 3ª estrofe uma crítica aos “cálculos insanos” – “Sei insultar uns cálculos
insanos” (FREIRE, 2020, s./p.) – que pode ser uma referência ao modo de pensar e agir
extremamente racional de alguns homens em sociedade, sendo “cálculos” os pensamentos
considerados insanos no poema.

Na 4ª estrofe, o eu lírico contrapõe todo o poema repleto de ira, manifestando sua


satisfação ao dormir “feliz sobre o suave riso / De uns lábios de mulher gentis, ufanos”
(FREIRE, 2020, s./p.). Por meio de metáfora, metonímia e personificação referentes aos
lábios da mulher (gentis e ufanos) com que o eu lírico dorme, ele expressa amor e liberdade.
Em contrapartida, o eu lírico expressa conforto e liberdade a partir da perspectiva de lábios
femininos próximos a ele. Sendo a figura feminina considerada o extremo oposto da figura
dos homens, percebemos que a ideia da mulher, no poema, serve para aliviar o mal estar do
sujeito poético diante da perfidez dos homens, sendo posta nos versos de maneira antitética.
Por fim, a conclusão do poema é feita com o verso: “E o mais que os homens são, desprezo e
piso.” (FREIRE, 2020, s./p.), declarando que a única valorização do eu lírico é voltada à
gentileza, expressa pela imagem antitética da mulher e de seus lábios, uma vez que, conforme
lemos e analisamos anteriormente, as outras características da humanidade podem ser
desprezadas.

Diante do exposto, podemos perceber que o eu lírico do poema denota um


extremo desdém pela humanidade e por suas perversidades. A manifestação da sua ojeriza
para com os homens e seu suposto senso de superioridade perante tais comportamentos são
evidentes no texto, como também o seu descontentamento com esses comportamentos que
julga condenáveis e vis. O alívio manifestado pelo contraste estabelecido entre a natureza da
figura feminina e a dos homens surge como um ponto de conforto, embora breve e
acompanhado, também, pelo pessimismo e pela ira. Todos esses elementos caracterizam a
crítica temática à humanidade inspirada pela ótica ultrarromântica de Junqueira Freire no
poema “Arda de raiva contra mim a intriga”.

REFERÊNCIAS

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS (ABL). Biografia. Disponível em:


<https://www.academia.org.br/academicos/junqueira-freire/biografia>. Acesso em: 04 de jan.
de 2023.

BRASIL ESCOLA. Segunda geração do Romantismo. Disponível em:


<https://brasilescola.uol.com.br/literatura/a-segunda-geracao-romantismo.htm>. Acesso em:
04 de jan. de 2023.

FREIRA, Junqueira. Arda de raiva contra mim a intriga. In: SANCHES NETO, Miguel.
(Org.) Os 100 melhores sonetos clássicos da língua portuguesa. Belo Horizonte: Leitura,
2008.

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