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REFLEXÃO CRÍTICA

“Nunca me sonharam”

Renan Gonçalves Rocco

A websérie que recebe o título “Nunca me sonharam”, disponibilizada no canal do


Instituto Unibanco no YouTube e dirigida pelo cineasta brasileiro Cacau Rhoden, retrata os
questionamentos acerca da realidade da educação no Brasil. Premiada como Melhor
documentário no festival de Los Angeles, a web série aborda os desafios e as expectativas das
escolas públicas brasileiras através de depoimentos de estudantes, professores, pais e
especialistas sobre o ensino e a educação atual, entregando relatos e promovendo reflexões
que incomodam, impressionam, preocupam, mas, também, emocionam. Assim, foi dividida
em 20 episódios com média de 5 minutos, explorando desde o direito à educação ao
desenvolvimento de projetos artísticos para que os alunos possam externalizar a arte que eles
são capazes de produzir.

Em se tratando do intrigante título “Nunca me sonharam”, pode-se dizer que a fala


do estudante Felipe Lima no decorrer da websérie deu origem ao título da obra. O jovem
declara que seus pais nunca haviam influenciado seus estudos, nem ninguém, pois não
acreditavam que ele poderia se tornar um profissional diplomado. Como mostra o excerto
abaixo, Felipe disse que nunca lhe sonharam e tampouco lhe ensinaram a sonhar e, agora, ele
está aprendendo.

Como meus pais não foram bem sucedidos na vida, eles também não me influenciavam, não
me davam força para estudar. Achavam que quem entrava na universidade era filho de rico.
Acho que eles não acreditavam que o pobre também pudesse ter conhecimento, que pudesse
ser inteligente. Para eles, o máximo era terminar o ensino médio e arrumar um emprego:
trabalhador de roça, vendedor, alguma coisa desse tipo. Acho que nunca me sonharam sendo
um psicólogo, nunca me sonharam sendo professor, nunca me sonharam sendo um médico,
não me sonharam. Eles não sonhavam e nunca me ensinaram a sonhar. Tô aprendendo a
sonhar.

Em se tratando da problemática relativa aos Direitos Humanos, pode-se afirmar


que a série se relaciona de forma bastante incisiva ao 26° artigo da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, que diz respeito à Educação como um direito básico garantido pela
Constituição. O 26º artigo formaliza a obrigatoriedade de uma educação primária gratuita para
todos. Independentemente da idade, a pessoa deveria ter acesso à educação e à alfabetização.

Artigo 26

1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos
nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A
instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior,
esta baseada no mérito.

2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade


humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas
liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a
amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as
atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será


ministrada a seus filhos.

No entanto, no decorrer da série, percebemos que esse direito não é plenamente


aplicado à realidade dos jovens que compõem a obra. Pertencentes, em grande maioria, a
grupos de vulnerabilidade social, esses jovens oriundos da escola pública veem, ao seu redor,
o suposto direito básico à educação ser deturpado. Os próprios estudantes e o corpo docente
percebem a disparidade de oportunidades desses jovens quando em comparação com alunos
de origens mais privilegiadas. Não à toa, um dos personagens da série, André Luiz Barroso,
expressa: o professor e diretor André Luis Barroso diz, de forma tocante, que " O jovem pode
sonhar, mas qual o jovem que pode sonhar? Qual o jovem que tem capacidade e tempo de
sonhar?".

Nesse sentido, pode-se relacionar essa problemática trabalhada na série com o


debate feito pelo teórico José Carlos Libânio no texto “O dualismo perverso da escola
pública: escola de conhecimento para os ricos, escola do acolhimento social para os pobres”
(1996), no qual coloca em pauta o fato de, no sistema capitalismo e nas reformas sofridas pela
educação em um contexto (neo)liberal, o contexto da escola pública, destinada a camadas
mais marginalizadas da sociedade, acaba se tornando um ambiente de acolhimento social, ou
seja, de fornecimento de alimentação e serviço social, em detrimento à função “original” da
escola em sociedade que é, justamente, de ensinar o conhecimento científico. Nas escolas
particulares, porém, o papel da escola de ser um lugar de conhecimento científico se conserva,
e se percebe, entre as classes dominantes e dominadas, uma dolorosa disparidade de
privilégios e, sobretudo, de direitos humanos básicos.

Entendendo como a educação está inserida na lógica da sociedade brasileira, é


possível enxergar como a inclusão das minorias marginalizadas nela pode ser considerada
como um avanço na condição social desses indivíduos. Isso não se deve apenas ao fato de que
o direito à educação é uma premissa básica, ou "porta de entrada" para outros direitos, mas
sim porque ela condiciona e limita a ocupação de diferentes espaços e posições sociais.

A educação deve ser entendida como emancipatória, ou seja, deve promover


possibilidades para a libertação dessas minorias que, sob a lógica colonizadora, são destinadas
a ocupar posições subalternas na sociedade. A luta pelo direito à educação emancipadora,
portanto, está atrelada a projetos alternativos de sociedade e a outros direitos humanos
básicos, que possibilitam, em última instância, uma forma digna de vida para essas minorias.
Pode-se dizer, portanto, que a educação é uma ferramenta essencial para a construção de uma
sociedade mais justa e igualitária, e para que isso aconteça é necessário que ela esteja
disponível para todos, independentemente de sua situação socioeconômica ou sua origem.
Isso passa pela democratização do acesso à educação, pela eliminação de barreiras e pela
garantia de que todos possam desfrutar de uma educação de qualidade.

Assim, é importante que sejam implementadas políticas públicas para garantir a


inclusão e equidade na educação, que valorizem a diversidade cultural e promovam uma
educação crítica e libertadora. Isso inclui, por exemplo, políticas de ampliação do ensino
infantil, de acesso à universidade e de formação de professores. Por fim, é preciso que haja
maior investimento para implementação de programas e projetos que visem garantir a
inclusão educacional e o acesso à educação para as minorias, a fim de quebrar o ciclo de
exclusão social e permitir a construção de uma sociedade mais justa e equitativa.

Além das políticas públicas, é importante que haja uma reflexão sobre as práticas
pedagógicas e a construção de currículos que possibilitem a inclusão de conteúdos e
perspectivas diversas. Isso inclui a valorização das culturas e histórias das minorias, bem
como a inclusão de temas como gênero, raça e diversidade sexual. O episódio nove da
websérie trata da pluralidade no ambiente escolar, refletindo sobre a perspectiva de uma
escola plural: quanto mais se abrem espaços para o diálogo plural, mais a educação possibilita
o respeito às diferenças. Sabe-se que os jovens possuem dificuldades familiares, pessoais,
financeiras, e tudo isso, às vezes, pode distanciar o aluno do convívio social. Por isso é
necessária a compreensão de que a escola é um espaço a fim de homogeneizar o convívio
social dos alunos.

Essa reflexão também deve incluir a forma como os professores são preparados e
capacitados para lidar com alunos de diferentes origens e situações socioeconômicas. Isso
inclui a necessidade de formação continuada para desenvolver habilidades e competências
para lidar com a diversidade cultural e os desafios que ela traz, bem como a conscientização
sobre a importância da inclusão e equidade na educação.

Apesar de todos os esforços, ainda há muitos desafios a serem superados para


garantir que a educação possa cumprir seu papel emancipador. Ainda há uma grande
desigualdade no acesso à educação, e muitos estudantes, especialmente aqueles que
pertencem às minorias, enfrentam barreiras significativas para chegar à escola e obter uma
educação de qualidade. Para tanto, é interessante que os docentes tenham a consciência e a
crença de sua capacidade de transformação e emancipação do aluno. Como vemos no
episódio sete da websérie, transformar exige técnica e recursos dos docentes.

Dessa forma, entende-se que a educação precisa ser vista como uma
responsabilidade compartilhada entre os diferentes setores da sociedade, incluindo governo,
escolas, pais e comunidades. Isso inclui a colaboração de todos para garantir que os
estudantes tenham acesso a recursos e apoio para ensinar, aprender e crescer, bem como a
criação de uma cultura de valorização e investimento na educação. Todos possuem papel
principal no funcionamento da escola, especialmente no sentido de ter a visão do outro, pois o
reconhecimento da visão do outro leva à compreensão daquilo que realmente falta.

Por fim, é importante destacar a importância de se promover uma educação que


não só prepare os indivíduos para o mercado de trabalho, mas também para a vida. Como
relatado na websérie por Ricardo Agliardi, professor de Porto Alegre (RS), “formar para o
ENEM é importante, mas formar cidadãos, pessoas humanas e solidárias é mais importante.
Dentro disso, ele descobriu que ao tornar as pessoas mais solidárias, humanas, felizes, elas
fatalmente avançam na questão do ENEM, da universidade”. Compreende-se que a educação
é uma ferramenta importantíssima para construção de uma sociedade mais justa, livre e
igualitária, e para que isso ocorra é preciso garantir que todos possam desfrutar de uma
educação de qualidade, que possa contribuir para o desenvolvimento pessoal e social. É
preciso repensar não só a educação como um direito, mas também como um dever e uma
responsabilidade da sociedade como um todo, para garantir que todos os indivíduos possam
ter as mesmas oportunidades e desenvolver seu potencial.

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