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Instâncias narrativas

Lilia Nara Santos Sena

Conforme Reuter (2002, p. 75), a instância narrativa corresponde a


associação entre “as formas fundamentais do narrador e às três perspectivas
possíveis”, com o fito de mostrar o universo literário de formas distintas e
causar efeitos sobre o leitor. Dessa forma, examina-se as obras por meio de
cinco instâncias, são elas: narrador heterodiegético e perspectiva passando
pelo narrador, narrador heterodiegético e perspectiva passando pela
personagem, narrador heterodiegético e perspectiva “neutra”, narrador
homodiegético e perspectiva passando pelo narrador e narrador homodiegético
e perspectiva passando pela personagem.

Em primeira análise, no trecho da obra “Os assassinos”, é possível


perceber a atuação do narrador heterodiegético e perspectiva “neutra”, uma
vez que não há nenhuma interferência do narrador, que se restringe a informar
os atos dos personagens, sendo impossível adentrar nos pensamentos desses.
De modo a seguir essa linha de raciocínio, Reuter (2002, p. 80) descreve o
narrador como uma “testemunha objetiva”, já que esse parece saber menos do
que os personagens.

Em segundo lugar, na passagem destacada do conto “O Horla”,


observa-se a ação do narrador homodiegético e perspectiva passando pela
personagem, visto que o narrador, integra a história que conta e verifica-se a
narração acontecendo ao mesmo tempo, em que os atos ocorrem. Diante
disso, Reuter (2002, p. 83) afirma que essa instância permite ao leitor “a
impressão de se estar na pele da personagem”, sendo possível acessar seus
pensamentos a medida que vão se formando. A exemplo da instância citada,
destaca-se o seguinte fragmento: “Saudei-o, sem saber bem por quê, a não ser
que a visão do navio deu-me grande prazer. [...] Tenho estado um pouco febril
nos últimos dias e sinto-me doente [...] De onde vêm essas misteriosas
influências que transformam a alegria em desânimo e a autoconfiança em
acanhamento? [...]

Na obra “O crime do professor de matemática”, evidencia-se o narrador


heterodiegético e perspectiva passando pela personagem, em virtude de o
narrador se limitar a expor o que passa pelo ponto de vista de uma
personagem específica, não apresentando os pensamentos dos outros
indivíduos. Dessa forma, Reuter (2002, p. 78) conclui que essa instância
permite a sensação de se estar bem próximo de uma personagem, ocasionado
o “interesse ou, ao inverso, o choque” a respeito da conduta do sujeito em
questão. Assim, a exemplo dessa categoria, destaca-se o trecho a seguir: “Via
também o rio que de cima parecia imóvel, e pensou: é domingo. Viu ao longe a
montanha mais alta com as escarpas secas. Não fazia frio, mas ele ajeitou o
paletó agasalhando-se melhor”.

Outrossim, no livro, “Memórias póstumas de Brás Cubas”, verifica-se a


presença do narrador homodiegético e perspectiva passando pelo narrador, em
decorrência da narração ser semelhante a de autobiografias ou relatos, onde o
narrador personagem conta sua vida retrospectivamente. Destarte, Reuter
(2002, p. 81) aponta que tal instância possibilita um “saber mais significativo de
cada uma das etapas da vida do indivíduo”, ficando assim, a cargo do leitor a
possibilidade de defender ou rejeitar as ideias apresentadas. Portanto,
constatam-se traços dessa instância por toda obra de Machado de Assis, como
no seguinte exemplo: “Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu,
Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne de um Lamb ou de um de
Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra
de finado. Escrevia-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia [...]”.

Já no romance de Alarcón, “O chapéu de três bicos”, percebe-se a


presença do narrador heterodiegético e perspectiva passando pelo narrador,
haja vista que o relator é dominador de todo o saber. Dessa maneira, Reuter
(2002, p 76) explica que nessa instância o narrador sabe mais do que os
personagens, conhecendo profundamente seu comportamento e sentimentos,
além de poder estar em todos os lugares e dominar o tempo. No entanto,
Reuter também destaca que apesar de deter todo esse conhecimento o
narrador nem sempre irá transmiti-lo ao leitor, “podendo retardar o momento de
lhe dar uma informação”. Por conseguinte, salienta-se o subsequente trecho “O
moleiro e a moleira adoravam-se, sim, loucamente; dir-se-ia, até, que ela o
amava mais do que ele a ela, apesar de ser tão feio e ela tão formosa. [...] Isso
não quer dizer, porém, que o amor de tio Lucas fosse menos vivo do que o de
dona Frasquita. Significava que ele tinha mais confiança na virtude da esposa
do que esta na dele [...]”.

Ainda em consonância ao pensamento de Reuter, convém destacar a


classificação dos modos narrativos, que se dividem em contar e mostrar. No
que se refere ao modo de contar, o narrador é aparente, sendo perceptível ao
leitor a sua atuação. Já no modo de mostrar, o narrador é menos aparente,
dando ao leitor a sensação de que a história acontece diante dos seus olhos
sem nenhuma interferência exterior. Assim, Reuter estabelece que no modo de
contar, o narrador poderá assumir sete funções complementares, são elas: a
função comunicativa, metanarrativa, testemunhal, modalizante, avaliativa,
explicativa e generalizante.

Nesse sentido, no trecho do romance de Alarcón, o chapéu de três


bicos, é possível identificar tais funções. A função avaliativa, que relata a
avaliação do narrador sobre a trama e os personagens, pode ser observada no
segmento, “apesar de ser tão feio e ela tão formosa”. No que se refere a função
metanarrativa, é por meio dela que o narrador tece comentários sobre a
história, ressaltando sua organização interna, como no fragmento a seguir
através do uso da expressão ‘digo isto porque’: “[...] apesar de ser tão feio e ela
tão formosa. Digo isto porque dona Frasquita era muito ciumenta [...]”.

A função testemunhal, conforme Reuter (2002, p. 66), “manifesta o


grau de certeza ou distância que o narrador mantém em face da história que
conta”. Essa função pode ser caracterizada pelos termos em destaque, “[...]
regozijava-se e ufanava-se de que todos gostassem dela tanto quanto ele, e
embora compreendesse que, no fundo, o invejavam [...]”. Já a função
modalizante, é empregada quando o narrador exibe seus sentimentos
desencadeados em decorrência do enredo, como na seguinte passagem, “era,
enfim, um Otelo de Múrcia, de alpargatas e barrete, no primeiro ato de uma
possível tragédia...”.

A função explicativa é utilizada pelo narrador quando esse quer


transmitir ao leitor alguma informação necessária para a compreensão da
trama. De semelhante modo, a função comunicativa corresponde ao momento
em que o narrador dirige-se ao leitor, buscando manter contato. No trecho a
seguir, é possível constatar essas duas funções simultaneamente: “Sabê-lo-eis
imediatamente”. Já a função generalizante ou ideológica, consiste nos valores
propostos pelo narrador para com a sociedade, como no segmento, “[...]
significava, principalmente, que tio Lucas era um homem de verdade – um
homem como o de Shakespeare, de poucos e firmes sentimentos; incapaz de
dúvidas; que acreditava numa coisa ou morria; que amava ou matava; que não
admitia graduação nem transição entre a suprema felicidade e o fim da sua dita
[...]’.

Referências

REUTER, Yves. A Análise da Narrativa: o texto, a ficcção e a narração.


Trad.: Mário Pontes. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.

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