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ONDE ESTÁ O NARRADOR NOS QUADRINHOS SILENCIOSOS?

Gabriel de Oliveira Monte.


Universidade Federal do Ceará, aluno, Fortaleza, Brasil.

RESUMO

Em seu livro Falas & Balões (2008), o pesquisador Marcos Nicolau traça uma linha do tempo na
forma que o narrador se apresenta nas histórias em quadrinhos. Aponta Nicolau (2008) que, a partir
da década de 1970, os narradores passam da terceira pessoa para a primeira. Os textos dos
recordatórios não apenas localizavam o leitor na história, mas também davam mais acesso ao
interior das personagens. Desse modo, pensamos que o espaço do narrador nos quadrinhos é o do
recordatório e que sua manifestação é puramente verbal. Isso nos leva a uma pergunta: Se o
narrador é somente verbal, nos quadrinhos silenciosos não existem narradores? O objetivo deste
trabalho é investigar se em quadrinhos silenciosos (aqueles que não possuem recordatórios ou
balões de fala) existem narradores e de que forma eles se manifestam. Yves Reuter (2014) propõe
que o narrador é: “aquele que, no texto, conta a história. O narrador é fundamentalmente constituído
pelo conjunto de signos linguísticos que dão uma forma mais ou menos aparente àquele que narra a
história.” (REUTER, 2014, p.19). A partir dessa definição de Reuter (2014), podemos pensar que,
nos quadrinhos, o narrador não estaria limitado somente a uma instância verbal, uma vez que a
história não é contada apenas por palavras. Neste trabalho, partiremos da classificação proposta por
Groensteen (2013) que pondera o narrador como uma instância responsável por unir o texto de
outras duas: o recitador e o mostrador. O recitador é aquele responsável pelo texto verbal e o
mostrador é o responsável pelo texto imagético.

PALAVRAS-CHAVE: Narrador; Quadrinhos Silenciosos; Mostrador.

INTRODUÇÃO

No meio acadêmico dos quadrinhos, ainda não existe um consenso sobre a instância
enunciativa que narra uma história em quadrinhos. Muito se discute sobre o que seria um
narrador nos quadrinhos e quais seriam suas funções (ou mesmo se é possível existir um).
Pesquisadores como Antonio Luiz Cagnin e Marcos Nicolau apontam que os narradores
existem enquanto texto verbal. Já Thierry Groensteen e Barbara Postema, entendem que,
por conta de sua linguagem “verbal + visual”, o narrador dos quadrinhos também está
presente nas imagens.
A nossa pesquisa vai se desenvolver a partir da seguinte questão: existiria narrador
em quadrinhos silenciosos, uma vez que ele também faz a narração através das imagens? Os
quadrinhos silenciosos têm como característica principal a ausência de texto verbal nos
diálogos e nos recordatórios. Em alguns casos, segundo Postema (2016), quadrinhos
silenciosos possuem onomatopeias e emanatas. Desse modo, esse tipo de gênero se mostra
o mais adequado para desenvolver nossa investigação sobre o narrador nos quadrinhos. Se
ele for somente uma instância verbal, ele não deve existir nesse tipo de quadrinho. Caso
contrário, sua existência deverá ser encontrada.
O objetivo principal deste trabalho é investigar a existência de um narrador nos
quadrinhos silenciosos. Para isso, usaremos como objeto o quadrinho Sshhhh!, feito pelo
quadrinista norueguês Jason, que foi publicado no Brasil pela editora Mino no ano de 2017.

QUEM É O NARRADOR?

Em 1975, no livro Os Quadrinhos: um estudo abrangente da arte sequencial:


linguagem e semiótica, Cagnin (2014) pensa o narrador como um contador de histórias. Sua
aparição nos quadrinhos acontece raramente, uma vez que estamos diante de uma
representação através das imagens que são vistas pelo leitor. Cagnin ainda diz que
“Enquanto as personagens dialogam entre si pelo texto escrito nos balões, o narrador se
dirige ao leitor, que lhe ‘ouve’ a voz no título das histórias e nas legendas. O título, texto
que está em todas as histórias, é onde o narrador marca sua indefectível presença.”
(CAGNIN, 2014, p.157). Para ele, o narrador é, somente, uma instância verbal, existindo
nos quadrinhos apenas no texto escrito. Em Falas & Balões: A transformação do texto nas
Histórias em Quadrinhos, Marcos Nicolau fala sobre as mudanças do texto escrito ocorridas
na linguagem quadrinística. Nos anos 1970, segundo Nicolau (2008), os narradores saíram
da voz em terceira pessoa para a primeira pessoa. Com isso, os narradores ganham mais
personalidade. Podemos lembrar das histórias contadas na revista Contos da Cripta, que
eram contadas por um personagem que aparecia somente na primeira e na última página de
cada história. A década de 1980 é definida por Nicolau (2008) pela transposição do
pensamento do personagem do balão de pensamento para os recordatórios. Precisamos aqui
fazer uma diferenciação entre pensamentos dos personagens e a narração feita por eles.
Tomemos como exemplo Eu, Wolverine, escrito por Chris Claremont e desenhado por
Frank Miller. Na primeira página de história, os recordatórios dizem: “Eu sou
WOLVERINE. Sou o melhor no que eu faço, mas o que eu faço melhor não é nada
agradável.” (CLAREMONT, C. e MILLER, F. 2015, p.7). Fica definido que o texto dos
recordatórios pertence ao protagonista da história. Na terceira página, o primeiro e o
segundo quadro mostram mais recordatórios com textos pertencentes a Wolverine. Mas, no
terceiro e no quarto, os quadros mostram balões de pensamento de Wolverine.. Podemos
concluir que, mesmo o texto dos recordatórios pertencendo a um personagem participante
da história, isso não vai, em princípio, deslocar os pensamentos para lá.
Ao considerar o narrador dos quadrinhos apenas como texto verbal não estaríamos
nos limitando a apenas um componente da linguagem? Afinal, os quadrinhos podem ser
compostos de texto verbal e imagem, apenas de imagens ou (mais raramente) somente por
texto verbal, com ou sem eventuais balões acompanhando-os. Cagnin afirma que “A
História só existe quando ela é narrada, quando existe alguém que conte alguma coisa para
outra pessoa. Este alguém é o narrador.” (CAGNIN, 2014, p.157). Mesmo sem esse
narrador nos recordatórios, as histórias continuam existindo, as imagens também nos
contam algo. Considerar apenas o verbal funciona para entendermos o narrador literário.
Mas se estamos analisando uma linguagem que possui outros elementos, eles devem ser
levados em conta para a análise da questão do narrador. Yves Reuter, no livro A Análise da
Narrativa: O texto, a ficção e a narração, propõe que o narrador é: “aquele que, no texto,
conta a história. O narrador é fundamentalmente constituído pelo conjunto de signos
linguísticos que dão uma forma mais ou menos aparente àquele que narra a história.”
(REUTER, 2014, p.19). A partir disso, podemos pensar que cada linguagem narrativa
possui o seu próprio tipo de narrador. Corroborando isso, Thierry Groensteen diz:
Não acredito na possibilidade de estabelecer uma ciência geral da narratologia
que seja válida em todos os tipos de narrativas em qualquer meio. Eu acredito que
a questão do narrador pode legitimamente ser levantada em relação a qualquer
tipo de história, mas que a questão deve ser colocada de novo para cada meio,
porque cada um tem seu próprio mecanismo enunciativo e, consequentemente,
uma configuração narratológica distinta. (GROENSTEEN, 2013, pp. 80-81,
tradução nossa)1 .

1
“I do not believe in the possibility of establishing a general science of narratology that would be valid across
all types of narratives in whatever medium. I believe that the issue of the narrator can legitimately be raised in
relation to any I believe that the issue of the narrator can legitimately be raised in relation to any type of story,
Em uma história, o narrador está no limite entre o mundo real e a diegese. É ele que
faz a ponte entre os dois. Posto isto, não devemos pensar que narrador e autor são a mesma
pessoa2 . O narrador é uma instância criada pelo autor da história. Se ambos fossem a
mesma pessoa, a leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas seria estranha, uma vez que
o narrador conta a história depois de ter morrido e Machado de Assis a escreveu em vida.
Ou ainda, em Asterios Polyp a história é contada por Ignazio, irmão gêmeo natimorto de
Asterios, o protagonista da história. Groensteen dá sua definição de narrador.
Quer seja considerado como um agente compulsório ou como opcional, [o
narrador] é definido em todos os casos como um intermediário entre a história e o
leitor, uma instância que expressa um ponto de vista sobre os eventos relatados.
Este ponto de vista é referido por Todorov como uma visão, por Genette como
uma focalização, por Franz Karl Stanzel como um Mittelbarkeit (uma transmissão
indireta, ou mediada), e por Ann Banfield como uma subjetividade.
(GROENSTEEN, 2013, p.80, tradução nossa). 3

Segundo Groensteen (2013), alguns meios, por conta de suas próprias


características, fazem com que esqueçamos a existência desse intermediário. É o caso do
cinema, que dá ao espectador a sensação de que os eventos ocorrem diante de seus olhos.
Ou o ainda o teatro e as artes performáticas, que são baseadas em uma performance que
parece imediata, onde não existiria um agente fazendo a mediação. Os quadrinhos, ao
contrário do cinema e do teatro, não criam a ilusão de que os eventos da história acontecem
em tempo real. Groensteen (2013) enumera alguns fatores que colaboram para isso, sendo
eles: 1) a visível descontinuidade da sequência narrativa; 2) a situação física e concreta de
ter um livro em mãos, dando ao leitor o poder de controle do ritmo da leitura e 3) o fato de
cada nova imagem não obliterar a anterior, não toma seu lugar, mas de adicionar, de modo
acumulativo, à totalidade das outras imagens que estão facilmente acessíveis.
Por todos esses motivos, a mostração gráfica, em contraste com a mostração
fílmica, não cria a impressão de uma história se desdobrando diante de nossos

but that the question should be posed afresh for each medium, because each has its own enunciative
mechanism and, consequently, a distinct narratological configuration.”, no original.
2
Com exceção de histórias de cunho autobiográfico.
3
“The narrator, whether regarded as a compulsory agent or as optional, is defined in every case as an
intermediary between the story and the reader, an instance that expresses a point of view on the events
recounted. This point of view is referred to by Todorov as a vision, by Genette as a focalization, by Franz Karl
Stanzel as a Mittelbarkeit (an indirect transmission, or mediacy), and by Ann Banfield as a subjectivity.”, no
original.
olhos. Portanto, não é possível invocar qualquer efeito de apagamento do
narrador, que é normalmente a consequência dessa impressão de "acontecer
enquanto observamos. Resta saber se, inversamente, o mecanismo enunciativo
dos quadrinhos realmente evoca a noção de narrador, e de que maneira.".
(GROENSTEEN, 2013, p.82,tradução nossa)4

No livro O Sistema dos Quadrinhos, Groensteen (2015) aborda a questão da


narração ser, em parte, carregada pelas imagens. Ele analisa uma página sem diálogos de
Alack Sinner: Reencontres, de José Muñoz e Carlos Sampayo (Figura 1). Os dois primeiros
quadros mostram um jornal colado na janela e o personagem Alack despertando. Para
Groensteen (2015), esses dois quadros bastam para transmitir o conteúdo narrativo que é
visível para essa sequência. As imagens que vem a seguir não possuem um prolongamento
desta sequência, elas mostram Alack acendendo um cigarro, depois ele passa mal e
mostram enquadramentos cada vez mais fechados na manchete do jornal (JOHN LENNON
KILLED). Nenhum quadro mostra, ao mesmo tempo, Alack e o jornal. Com a justaposição
das imagens, Groensteen (2015) deduz uma proposição narrativa, que ele admite requerer
uma grande dose de interpretação para assim fazê-lo. Ele constrói esse sentido da narrativa
a partir daquilo que lhe parece mais provável. Algumas imagens lhe dizem algo, podem ser
traduzidas em enunciados linguísticos (como o quarto quadro que pode ser traduzido na
frase “Alack acende um cigarro”). O quadro anterior poderia ser traduzido em “Alack
estende o braço para pegar um cigarro e um isqueiro”. Mas isso só é possível
retroativamente, após ver a ação do quadro seguinte. É a partir da confrontação das imagens
que nasce a narração. Esta sequência é finalizada no primeiro quadro da página seguinte.
Alack se inclina sobre um bidê, em uma posição que sugere que ele está vomitando. A
partir desse quadro, Groensteen traduz a sequência no seguinte enunciado: “A notícia do
assassinato de John Lennon afeta Alack ao ponto de fazê-lo passar mal.” (GROENSTEEN,
2015, p.117). Os quadros que aproximam o enquadramento na manchete do jornal são, de
acordo com Groensteen, “traduções gráficas dos efeitos que a notícia tem em Alack. O que

4
“For all these reasons, graphic monstration, in contrast with filmic monstration, does not create the
impression of a story unfolding before our eyes. It is not therefore possible to invoke any effect of erasure of
the narrator, which is normally the consequence of this “happening as we watch” impression. It remains to be
seen whether, conversely, the enunciative mechanism of comics actually calls forth the notion of a narrator,
and in what way.”, no original.
eles exprimem se passa completamente dentro da cabeça (e do estômago) de Alack Sinner.”
(GROENSTEEN, 2015, p.117).

Figura 1 - A página de Alack Sinner analisada por Groensteen

Fonte: GROENSTEEN (2015).


Podemos utilizar o mesmo método para Sshhhh!, a página que traduziremos sem
texto verbal é do primeiro capítulo (figura 2): O primeiro quadro mostra alguém segurando
a foto da companheira do corvo protagonista do álbum. O segundo mostra um urubu
batendo em uma porta. No terceiro, temos o urubu segurando um pedaço de papel e olhando
para a companheira do corvo que está ali na sua frente. O quarto quadro é um close no rosto
da companheira. No quinto, o corvo está olhando para baixo. No sexto, o chefe do corvo
acompanha um policial de justiça, o corvo para de trabalhar e eles se olham. Confrontando
essas imagens, podemos deduzir dessa sequência que o Urubu, após espionar a
companheira do corvo, vai até sua casa enquanto ele está no trabalho e faz algo com ela,
pois um policial vai até ele informar sobre algo criminoso (afinal, é um policial). Assim
como Groensteen (2015) analisa a página de Alack Sinner, nessa página de Sshhhh! temos
imagens que nos dizem algo e com a confrontação delas, deduzimos uma proposição
narrativa que faz sentido retroativamente, é o último quadro que vai dar sentido para os
primeiros.
Figura 2 - A página de Sshhhh! que traduzimos em enunciados verbais.

Fonte: JASON (2017).


Nos quadrinhos, as imagens produzem narração, como vimos nos dois exemplos. Se
mesmo sem texto verbal nós temos narração, isso significa dizer que o texto verbal
encontrado nos recordatórios, definitivamente, não representa a totalidade de um narrador.
Existem casos em que o texto dos recordatórios representam falas de personagens que não
estão em cena. É o que acontece em outra história de Logan, Arma X, escrita e desenhada
por Barry Windsor-Smith. Nessa história, os quadros mostram Wolverine desacordado
dentro de uma cápsula em um laboratório, enquantos os recordatórios nos contam os
diálogos que os cientistas daquele laboratório estão tendo. Groensteen (2013) separa texto
verbal e imagens em duas instâncias: recitador5 e mostrador. O primeiro é responsável pelo
texto verbal e o segundo pelo o que é mostrado nos quadros.

O RECITADOR
O recitador é a instância responsável pelo texto verbal nos quadrinhos. Sua atuação
acontece nos recordatórios e nas representações do som, como os diálogos e as
onomatopeias. Ele pode aparecer em terceira ou em primeira pessoa. Groensteen (2013)
ainda o divide em posturas:
1. Ele pode ser retraído ou pode ser intervencionista. Quando está retraído, permite
que as imagens, contendo ou não diálogos, falem por si sós, não intervindo na narração.
Quando está no seu modo intervencionista, ele se torna o principal narrador. Impondo sua
voz, faz com que as imagens tornem-se desnecessárias para o entendimento da ação. Um
bom exemplo de recitador intervencionista está em Príncipe Valente, de Hal Foster. Esse
tipo de recitador é chamado por Nicolau (2008) de narrador literário.
2. Às vezes é neutro e às vezes é envolvido. Ele se mantém neutro quando não dita
aos leitores como eles devem pensar. Nesse modo, o recitador é objetivo. Quando está no
modo envolvido, o destino dos personagens são de interesse para o recitador. É mais
comum quando o recitador é um dos personagens da história que nos é apresentada, como
acontece em Eu, Wolverine, de Chris Claremont e Frank Miller.
3. Ele pode ser confiável ou não-confiável. Entendemos que o recitador não pode ser
surpreendido, já que para contar uma história é necessário ter o conhecimento daquela
história. Quando o recitador finge algum tipo de surpresa por um acontecimento, ou quando

5
Reciter, na tradução para o inglês. Récitant, no original em francês.
nos mostra um plot twist, o recitador será do tipo não-confiável. Em The Superior Foes of
Spider-Man, roteiro de Nick Spencer e desenhos de Steve Lieber, o recitador da história é o
personagem conhecido como Bumerangue. Em um determinado momento, o recitador
conta que os vilões precisam se unir para conseguir atingir seus objetivos. As imagens, por
outro lado, mostram Bumerangue traindo seu parceiro. No fim da última edição, vemos que
o texto do recitador nos recordatórios fazia parte de uma história que o Bumerangue
contava para uma pessoa. Assim, podemos assumir que ele estava enganando o espectador,
já que os acontecimentos, como mostraram as imagens, eram contrários ao que ele dizia.

O MOSTRADOR
O mostrador é a instância responsável pela mostração das imagens. Assim como o
recitador, Groensteen (2013) propõe tipos de postura para o mostrador:
1. Pode se manter retraído. O mostrador pode se manter no background quando não
decide tomar parte da narração. Isso acontece quando o texto do recitador toma todo o
quadro, fazendo com que exista um bloco de texto entre dois quadros. Isso também
acontece quando o mostrador propõe uma imagem cega: quando ela é toda de uma cor só,
normalmente preta ou branca. Temos exemplos em Sshhhh!. No capítulo 2, página 17 do
mesmo capítulo, o segundo quadro possui apenas uma onomatopeia ocupando todo o
espaço, como mostra a figura 4.
2. Ele se mantém neutro ou envolvido: Quando existe uma consistência de estilo na
história, o mostrador é considerado neutro. Quando existem variações conforme a história
muda, ele é do tipo envolvido. Em Wilson, de Daniel Clowes, cada página possui um estilo
gráfico. Em Sshhhh!, o estilo permanece o mesmo em todas as páginas. A única alteração
se dá no primeiro capítulo, quando acontece uma metalepse: as páginas 11 a 14 tem um
fundo branco, diferente do restante do capítulo em que o fundo é preto. Nessas páginas, nós
vemos a história que é desenhada pelo Corvo no último quadro da página 10, como
podemos observar nas figuras 5 e 6.
3. O mostrador pode ser confiável ou não-confiável. Ele é do tipo confiável quando
sempre nos mostra aquilo que é considerada a verdade na história. Ele é não-confiável
quando nos mostra algo dando a entender que se trata da realidade, porém é revelado que
não é. Groensteen (2013) dá o exemplo dessa segunda postura quando o mostrador mostra
as imagens de um sonho como se fossem a realidade. Em Sshhhh!, no capítulo 5, temos a
história do término de um relacionamento do protagonista da história nas cinco primeiras
páginas. Na página 6, a ex-namorada do corvo entra no banheiro e o encontra enforcado por
uma corda presa no teto. Na página seguinte, a ex-namorada do corvo está transando com
um outro personagem, então o corvo arromba porta do quarto e atira nos dois. As páginas
que vem a seguir mostram diferentes modos de vingança do corvo para sua ex. Então
entendemos que as páginas não tratam de realidades, mas de possibilidades.

Figuras 4, 5 e 6 – Exemplos de atuação do mostrador

Fonte: Jason (2017).

O NARRADOR FUNDAMENTAL
Groensteen (2013) desenvolve a ideia de uma terceira instância enunciativa que vai
coordenar o recitador e o mostrador: é o narrador fundamental 6. É ela que vai unir o texto
verbal do recitador com as imagens do mostrador, é responsável por organizar e selecionar
todas as informações que irão compor a narrativa. Anteriormente, Groensteen (2015) havia

6
Fundamental Narrator, na tradução do original para inglês.
proposto chamar essa entidade de artrólogo, uma vez que ele criava uma artrologia entre os
quadros de uma página e das páginas dentro de uma história. Ao processo comunicativo que
ocorre em um quadrinho, o trio recitador/mostrador/narrador é suficiente, de acordo com
Groensteen (2013), para descrevê-lo, diferente do que Gaudreault que propõe outras
subdivisões para o narrador.
O conceito de narrador fundamental nos ajuda a entender as perspectivas que podem
ser trabalhadas em uma história. Se tomarmos como exemplos quadrinhos autobiográficos,
temos uma primeira ideia de que a história se passa em primeira pessoa. Mas como afirma
Lucas (2012), é possível que o texto verbal esteja em primeira pessoa, mas a mostração não,
ela acontece em terceira. Em um quadrinho autobiográfico, o narrador fundamental
organiza o relato da personagem e articula com a mostração de sua história, criando a
narrativa. Traduzindo para a linguagem quadrinística, o narrador está na disposição do
layout das páginas, como Groensteen diz:
Se eu atribuo a responsabilidade (entre outros) pelo layout ao narrador, isso é
porque eu o vejo como uma operação que desempenha um papel integral na
narração, e não apenas uma questão de estética, técnica ou ornamentação. As
propriedades narrativas do layout surgem mais notavelmente do fato de que ele
impõe seu próprio ritmo no processo de leitura e, portanto, também no
desdobramento da história - que uma de suas funções é focalizar uma atenção
particular em certos momentos da ação manipulando enquadramento (usando um
quadro extra-grande ou um formato incomum) ou localização na página.
(GROENSTEEN, 2013, p. 96, tradução nossa.)7

Entramos agora no ponto central da nossa discussão: O que faz esse narrador fundamental
em um quadrinho silencioso? A mais óbvia constatação é a de que ele silencia o recitador e
deixa o mostrador no controle, que retira todo o som das cenas, tornando o quadrinho
silencioso. Mas essa seria uma visão superficial, que se estaria apenas focada na dicotomia
“quadrinho verbal - quadrinho sem texto”. Vamos tratar desta questão em Sshhhh!, de
Jason, mas utilizaremos também, a fim de comparação, o quadrinho Um Pedaço de Madeira
e Aço, do francês Chabouté. Na página 2 do primeiro capítulo de Sshhhh! (figura 7), vemos

7
“If I attribute the the responsibility (among others) for the layout to the narrator, this is because I see it as an
operation that plays a full part in narration, and not only a matter of aesthetics, technique, or ornamentation.
The narrative properties of layout arise most notably out of the fact that it imposes its own rhythm on the
reading process and therefore also on the unfolding of the story—that one of its functions is to focus particular
attention on certain moments of the action by manipulating framing (by using an extra-large frame or an
unusually shaped one) or siting on the page.”, no original.
o Corvo tocando flauta para ganhar trocados de passantes. Com o dinheiro recolhido, ele
para em uma lanchonete. A página seguinte mostra que ele comprou um cachorro-quente.
Vamos nos deter no primeiro e no último quadro da página 2. No primeiro, um balão com
um nota musical representa o som da música emanada da flauta. No último, o Corvo está
encarando o vendedor de cachorro-quente. Podemos deduzir que o narrador fundamental
não elimina o som, já que ele é representado no primeiro quadro. O que ele faz é escolher
os momentos onde há um intervalo entre sons. O último quadro, o que está sendo mostrado,
pode ser o intervalo entre o Corvo fazer o pedido e o vendedor atendê-lo, ou o momento
antes do Corvo começar a falar. O recitador não é silenciado pelo narrador fundamental, ele
não tem abertura para aparecer. A página 5 do mesmo capítulo (figura 8) reforça essa ideia.
Após ver, na página anterior, casais juntos, o Corvo se sente solitário. Ele pega uma pedra e
joga em um rio que passa por baixo de uma ponte. Então, uma corvo fêmea aparece e eles
se encaram. Nas páginas seguintes, nos é mostrado que eles terão um relacionamento
amoroso. No terceiro quadro da página 5, o narrador fundamental mostra uma onomatopeia
representando o som da pedra indo ao encontro da água. Essa onomatopeia ocupa quase que
metade do quadro. O penúltimo quadro mostra as personagens se encarando. Novamente,
reforça-se a ideia de que, naquele momento, temos um intervalo entre alguma emissão
sonora por parte das personagens. Outro indício de que o narrador fundamental escolhe
momentos de silêncio para a composição da narrativa é que as personagens aparecem de
boca fechada. Poucas vezes, ao longo dos 10 capítulos de Sshhhh!, existem momentos em
que o Corvo está com sua boca aberta quando se dirige a outros personagens. Quando isso
ocorre, aparece um balão de fala com um desenho representando sua fala, como acontece na
página 5 do capítulo 2 (Figura 9). Nessa mesma página temos um bom exemplo de como o
narrador fundamental organiza a narrativa. A página inicia mostrando o Corvo correndo e
entrando em um estabelecimento. Ele senta-se à mesa e pede um café. Isso acontece nos
quatro primeiros quadros desta página, o foco está no protagonista de Sshhhh!, nas ações
que ele faz.
No quinto quadro, o foco muda para o garçom preparando o café solicitado pelo
Corvo. No sexto, o garçom se depara com um esqueleto sentado na mesma mesa que o
Corvo. O narrador fundamental, ao mudar o foco do protagonista para o garçom, cria uma
elipse em que não é mostrado para o leitor de que maneira o esqueleto chega até o Corvo e
nem que ações são tomadas. Ao voltar o foco para eles, temos um momento de silêncio
entre os dois. É um caso diferente do que acontece em Um Pedaço de Madeira e Aço, onde
não há nenhum tipo de representação de som, mesmo quando as imagens mostram (e
sugerem) um homem tocando violão e cantando sentando em um banco. Se em Sshhhh! nós
temos os momentos de silêncio, aqui nós temos o som não sendo representado. Nesse caso,
o narrador fundamental silencia totalmente o recitador, construindo a narrativa apenas com
as imagens do mostrador. Em síntese, existe narrador nos quadrinhos silenciosos. Em
Sshhhh!, ele opta por mostrar, majoritariamente, momentos em que os personagens estão
em silêncio. Dessa forma, faz com que a narrativa seja conduzida através somente das
imagens do mostrador, com pouco espaço para o recitador.

Figuras 7 e 8 – Páginas 2 e 5 do primeiro capítulos de Sshhhh!

Fonte: Jason (2017)


Figura 9 – Página 5 do segundo capítulo de Sshhhh!

Fonte: Jason (2017).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A questão do narrador nos quadrinhos ainda está se construindo e se consolidando.
Para uma mesma instância enunciativa, pesquisadores apontam para denominações
diferentes com, também, entendimentos diferentes. E essas definições, de certo modo, ainda
parecem buscar apoio nas outras artes, como a literatura e o cinema. As ponderações de
Thierry Groensteen sobre essa questão são importantes, pois elas se desenvolvem a partir
dos elementos constituintes da linguagem quadrinística. Com isso, foi possível construir um
pensamento sobre a posição do narrador em um quadrinho silencioso. De outro modo,
estaríamos “presos” nas definições de narrador em outras linguagens. É importante salientar
que nos apoiamos na teoria do narrador nos quadrinhos de Thierry Groensteen pois ela nos
parece mais apropriada e melhor desenvolvida. Outros pesquisadores, como Lucas (2012)
(apoiado nas ideias de Albert Laffay), faz uma equivalência entre o narrador fundamental
de Groensteen (2013) e o mostrador. A articulação feita entre o verbal e o imagético
também pode ser considerada como uma atividade desse mostrador. Independente do nome
(mesmo Thierry Groesnteen outrora denominou essa instância como artrólogo - mestre das
articulações), nos fica claro que existe uma instância enunciativa que cumpre o papel da
narração nos quadrinhos silenciosos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAGNIN, Antonio Luiz. Os Quadrinhos: um estudo abrangente da arte sequencial:


linguagem e semiótica. São Paulo: Criativo, 2014. 288 p

CLAREMONT, Chris; MILLER, Frank. Eu, Wolverine. São Paulo: Salvat, 2015.

GROENSTEEN, Thierry. Comics and Narration. Jackson: University Press Of Mississipi,


2013. 210 p. Tradução de Ann Miller.

____________________. O Sistema dos Quadrinhos. Nova Iguaçu: Marsupial, 2015. 186


p. Tradução de Érico Assis.

JASON. Sshhhh!. São Paulo: Editora Mino, 2017. 128 p. Tradução: Celio Cecare

LUCAS, Ricardo Jorge de Lucena. Narratologia e histórias em quadrinhos: do narrador ao


mostradorsonorizador?. In: Segundo Congreso Internacional Viñetas Serias: narrativas
gráficas: lenguajes entre el arte y el mercado, 2012, Buenos Aires. Actas 2012, 2012.

NICOLAU, Marcos. Falas & Balões: a transformação dos textos nas histórias em
quadrinhos. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2008. 68 p.

POSTEMA, Barbara. Silent Comics. In: BRAMLETT, Frank; COOK, Roy T; MESKIN,
Aaron. The Routledge Companion to Comics. Nova York: Routledge, 2016. p. 201-208.

REUTER, Yves. A Análise da Narrativa: o texto, a ficção e a narração. 4. ed. Rio de


Janeiro: Difel, 2014. 188 p.

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