Você está na página 1de 7

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES - CCHLA


CURSO DE LETRAS

JOSÉ MICAEL SIMÕES CORDEIRO

A NARRATIVA DIALÓGICA DE NADA ME FALTARÁ

JOÃO PESSOA/PB
2023
JOSÉ MICAEL SIMÕES CORDEIRO

A NARRATIVA DIALÓGICA DE NADA ME FALTARÁ

Trabalho apresentado à disciplina de Teoria da


Narrativa - GDLCV0142, como requisito parcial
para a obtenção de nota.

Orientador: Prof. Dr. Arturo Gouveia

JOÃO PESSOA/PB
2023
I. PROPOSIÇÃO DO TRABALHO

1. Apresentação dos componentes

A vigente monografia tem como principal desígnio a análise sobre o romance


Nada Me Faltará, de Lourenço Mutarelli1. O escopo desta será de maneira estrutural na
categoria de diálogo, e o embasamento teórico para seu desdobramento será o livro
Dialogue: The Art of Verbal Action for Page, Stage, and Screen, de Robert McKee2.

2. Contextualização

A obra Nada Me Faltará, lançada em 2010, é o sexto romance do escritor e


desenhista Lourenço Mutarelli. O livro retrata a história de Paulo, um homem que
desapareceu com sua mulher e filha, retornando sozinho um ano depois, como se nada
tivesse acontecido. Mesmo interrogado por médicos, policiais, amigos e sua própria mãe,
nada evoca as suas memórias. Além disso, o desaparecimento de sua família não parece
incomodá-lo. Paulo passa a morar com sua mãe e frequentar sessões de terapia contra sua
própria vontade, fomentando a desconfiança de um investigador e desgastando ao
máximo sua relação com seus amigos e familiares, pois não parece a mesma pessoa de
antes.

3. Justificativa das escolhas

Nada Me Faltará, obra da autenticidade do autor Lourenço Mutarelli, justifica sua


escolha ao tecer uma narrativa exclusivamente através das relações de diálogo e a
construção desta excêntrica realidade pelo caráter das personagens expressas faz jus a sua
análise literária. A percepção de Robert McKee, ao tratar o diálogo como um dos
princípios fundamentais para a construção narrativa e compreensão das personagens nela
envolvida, torna-se indispensável para este trabalho analítico.

II. ANÁLISE TEXTUAL

Como Robert McKee se refere, o diálogo não se define como um processo de dois
lados somente, mas como ação através da fala. O diálogo concerne, portanto, ao papel de

1
Mutarelli, Lourenço. Nada me faltará. SÃO PAULO, Companhia das Letras, 2010.
2
McKee, Robert. Dialogue: The Art of Verbal Action for Page, Stage, and Screen. NOVA IORQUE, Grand
Central Publishing, 2016.
cumprir ativamente, seja de maneira narrativa ou dramática, funções para incorporar
dinâmica à forma como a história está sendo expressa. É o que ele aborda na seguinte
passagem do livro:

The etymology of the word “dialogue” traces back to two Greek terms: dia-,
meaning “through,” and legein, referring to “speech.” These two terms translated directly
into English become the compound noun “through-speech” — an action taken through
words as opposed to deeds. Every line a character speaks, whether spoken aloud to others
or silently in the mind, is, in J. L. Austin’s term, a performative: words that perform a
task.3

Compreende-se, por conseguinte, que o diálogo abrange diversas camadas na


construção narrativa ao expor elementos pertinentes e caracterizar as personagens nela
envolvida, servindo como veículo para o leitor inserir-se em seu enredo. O professor
elucida tal ponto nos seguintes termos:

Authors concentrate meaning by first eliminating the banalities, minutia, and


repetitious chatter of daily life. They then build their tellings to a crisis of complex,
conflicting desires. Under pressure, words fill with connotation and nuance. What a
character says in the face of conflict radiates the meanings hidden beneath her words.
Expressive dialogue becomes a translucency through which readers and audiences
perceive thoughts and feelings shadowed in the silence behind a character’s eyes.4

Tendo suas três funções - exposição, caracterização e ação - esclarecidas por meio
do que fora dito por Robert McKee, é notório seu hábil uso na obra de Lourenço
Mutarelli, Nada Me Faltará. No texto original, Paulo está desaparecido por um ano junto
a sua mulher (Luci) e filha (Ingrid) e, ao aparecer sozinho sem memória alguma, gera
uma grande comoção em seus familiares e conhecidos. Quando o autor decide utilizar-se
exclusivamente do diálogo para sintetizar a prosa, torna-se nítida a substituição do papel
narrativo ao situar o leitor no acontecimento informado:

3
A etimologia da palavra “diálogo” traça até dois termos gregos: dia-, significando “através,” e legein,
referindo-se à “fala”. Esses dois termos traduzidos diretamente para o inglês-português se tornam “através
da fala”—uma ação tida através de palavras em oposição aos atos. Cada coisa que um personagem fala,
seja em voz alta para os outros ou em silêncio na sua mente, é, na concepção de J.L. Austin, performativo:
palavras que performam uma tarefa.
4
Autores concentram significado ao eliminar banalidades, minúcias, e repetitivas conversas do cotidiano.
Eles então constroem suas narrativas para um complexo de crises, conflitando interesses. Sob pressão,
palavras se preenchem com nuance e conotação. O que uma personagem diz em frente ao conflito
demonstra os significados escondidos sob suas palavras. Diálogos expressivos se tornam translúcidos ao
leitores e a audiência compreende pensamentos e sentimentos nublados no silêncio por trás dos olhos de
um personagem.
(…) Ele apareceu.
Mas onde? Onde o encontraram? Como ele está?
Ele apareceu do nada.
Meu Deus! E como ele está?
Ele está bem.
Você já viu ele?
Não. Quem me ligou foi a Fernanda. Ele apareceu na casa da dona Inês.
Ele apareceu… O que foi que ele disse? Por onde ele andou durante todo esse
tempo? E como está a Luci, e a menina?
Ele não lembra de nada.
Não lembra? Como assim, não lembra? Minha Nossa! E a Luci e a Ingrid?
Ele não sabe.
Então elas continuam desaparecidas? E ele não se lembra de nada?
É. Parece que a polícia está lá, investigando.
E onde ele está?
Ele está no hospital.
Hospital? Em que hospital? Mas ele está bem?
Está. Está na Beneficência Portuguesa. Parece que ia fazer uns exames. (...)
(NMF, p. 6)

Os dilemas, personagens e localidades são apresentados no diálogo e, ao abarcar


em suas características tudo aquilo que identificamos como exclusivo papel do narrador,
é perceptível que não há diferença senão pela forma como é exposto e pela quantidade de
vozes presentes, nas quais o narrador, aqui substituído, também recorre ao uso do
diálogo, mas de maneira indireta, justificando a mudança, tal qual dito por McKee da
seguinte forma:

Prose translates conflicts from the private, personal, social, and physical realms
into word-pictures, often colored by the inner lives of characters, before projecting them
onto the reader’s imagination. Consequently, prose writers pour their most vivid,
high-intensity language into first-or third-person narration rather than exchanges of
dialogue. Indeed, free indirect dialogue turns speech itself into narration.5

Dessa maneira, as funções do diálogo no romance substituem o papel do ser


narrador ao, por exemplo, trazer uma exposição através do diálogo, deixando de lado

5
A prosa traduz conflitos privados, pessoais, sociais, e reinos físicos em imagens de palavras, muitas vezes
coloridas pela vida interior dos personagens, antes de projetá-los para a imaginação do leitor.
Consequentemente, escritores de prosa colocam sua mais vívida e altamente intensa linguagem na narração
de primeira ou terceira pessoa invés de trocas de diálogo. De fato, o diálogo livre e indireto torna a própria
fala em narração.
uma possível descrição. Isso acontece quando, por conta da amnésia de Paulo, se tem um
momento de possível recuperação da memória do que poderia ter ocorrido com sua
família, presente no seguinte trecho:

(...) Eu vi a Luci e a Ingrid.


Você deve ter sonhado com elas. Deve ser isso.
Eu vi umas cenas, sabe?
Talvez você esteja recuperando a memória nos sonhos, quem sabe?
Não. Eu espero que não. Foi horrível!
Deve ter sido um sonho.
Eu estava espancando a Luci, cara.
Foi um sonho.
Eu batia nela com um martelo. (...) Eu batia nela com aquele lado do martelo que é pra
arrancar o prego, sabe?
Calma, Paulo. Esquece.
Eu via a carne rasgando. (...)
(NMF, p. 100)

Essa maneira de abordagem da provável memória demonstra uma concepção de


clímax constituída somente pelo diálogo, por trazer à tona, além de encontrar-se no final,
um momento chave e revelar uma verdade interna do protagonista desconhecida até por
si mesmo - um elemento expositivo. Isso fora abordado por Robert McKee com esta
definição:

Backstory is (...) an excerption of past, usually secret, events that the writer
exposes at key moments to propel his story to climax. Because revelations from the
backstory often inflict more impact than straightforward actions, they are reserved for
major turning points.6

Em outro exemplo, retrocedendo a alguns capítulos dentro do romance, é propício


notar o posicionamento de Paulo para com as pessoas em sua volta, ao demonstrar-se
completamente apático a toda a situação anormal em que se encontra, apresentada nesta
parte do livro, na qual está em uma sessão de terapia:

6
A história de fundo são trechos de eventos, normalmente secretos, passados que o escritor
expõe em momentos chave para levar sua história ao clímax. Devido às revelações causadas
pela história de fundo causarem mais impacto do que ações diretas, elas são reservadas para
grandes momentos decisivos.
(...) O pior é que, no fundo, eu realmente não sinto a menor falta delas.
Acho que estamos chegando num lugar importante.
Continue, Paulo. Deixe seu pensamento fluir.
Eu não me importo com o que possa ter acontecido.
Entendo… continue…
Eu não sinto nada em relação a elas. (NMF, p. 62)

Como característica substancial do diálogo, a exposição não somente age, mas é


auxiliar da caracterização e da ação pelo mesmo meio, uma vez que a própria
caracterização identifica o verdadeiro perfil do personagem, a fim de ocultá-lo, e, mesmo
assim, a ação verbal o revela. Isso é explicado nesta passagem de Robert McKee:

On the level of outer behavior, a character’s dialogue style melds with his other
traits to create his surface characterization, but at the inner level of true character, the
actions he takes into the world reveal his humanity or lack of it.7

O professor Robert McKee define a essência do diálogo em suas funções e o


cumprimento de objetivos, as quais traçam semelhanças contundentes aqui expostas com
outros tipos de narradores. De fato, o livro Nada Me Faltará reaviva a concepção de
diálogo na literatura brasileira como algo que conceitua e constrói tudo aquilo que se
reconhece como intrínseco e fundamental à estrutura da narrativa, através das relações
compostas pela fala como transmissor da linguagem, fomentando uma narrativa
dialógica.

7
No nível do comportamento externo, o estilo de diálogo de um personagem se funde com seus outros
traços para criar sua caracterização superficial, mas no nível interno de seu verdadeiro caráter, as ações que
ele realiza no mundo revelam sua humanidade ou a falta dela.

Você também pode gostar